Novos desafios na clínica psicanalítica com crianças

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Novos desafios na clínica psicanalítica com crianças
Novos desafios na clínica psicanalítica com crianças
New challenges in psychoanalytic clinic with children
Angela Maria Maggioli Rabello*
Resumo: Tendo por base as mudanças observadas na atualidade no comportamento
das crianças e seus núcleos familiares, o texto procura refletir sobre a atuação clínica e a
compreensão psicanalítica do sofrimento psíquico. Discorre sobre a tarefa desafiadora
para a psicanálise de estabelecer, em um universo de flutuação intensa como o atual,
uma nova ancoragem teórico-clínica que possibilite a ilusão de permanência e
constância no existir.
Palavras-chave: fluidez de vínculos, desafios na psicanálise, clínica com crianças, atualidade.
Abstract: From changes currently observed in children behavior and their familiar nucleus, the text aims at a reflection on the clinical experience and the psychoanalytical
understanding of psychic suffering. It discusses the challenging task for psychoanalysis to
establish, in our universe of intense fluctuation, a new theoretic-clinical anchor to make
it possible the illusion of permanence in existing.
Keywords: bonding variability, psychoanalytic challenges, clinic with children, contemporaneity.
* Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; mestre em saúde da criança e do
adolescente IFF/Fio Cruz RJ: Coordenadora do grupo de pesquisa “Os Primórdios da Vida
Psíquica – Clínica dos Primeiros Anos”.
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A palavra desafio, referida no título, nos remete à ideia de enfrentamento
com esforço e coragem de algo que desejamos ultrapassar para além do que
conhecemos ou vivenciamos. Não seria então a psicanálise em si mesma um
desafio no qual Freud se jogou e nos lançou há anos atrás?
A psicanálise trabalha com a transformação do ser. Tem como único instrumento de trabalho o encontro paciente/analista, do qual nenhum dos dois,
uma vez terminado o percurso, se perceberá como antes. Trabalha com o singular, com o inédito, com o imprevisível que cada encontro suscita.
Não há doses medicamentosas, não há receituário. Como afirma Celso
Gutfreind (2008), “os efeitos terapêuticos parecem vir de outras fontes, como a
sintonia, a empatia, a compreensão e a abertura para espaços narrativos”.
Tudo isto parece pouco e vago para uma proposta ousada, desafiadora – a
transformação do ser. Onde podemos nos ancorar para trabalhar neste ofício?
A partir das experiências clínicas, constroem-se teorias que sustentam alguns referenciais para a compreensão do ser. O analista se trabalha no encontro
com seu próprio analista, com seus pacientes e seus pares. De tempos em tempos, estes encontros, discutidos, escritos e analisados, promovem novas mudanças na teoria e na técnica. Não só porque houve um progresso e aí se avança mais
um pouco no desconhecido, mas também “porque as pressões culturais orientam
princípios e escolhas temáticas e de campo” (BONAMINIO, 2010).
Assim, delimita-se com isto que o campo de atuação é o encontro realizado na clínica, que este encontro transforma subjetividades, ou seja, possibilita
mudanças na existência daqueles que estão implicados, e que é marcado pelo
social, assim como nele interfere. Portanto, trata-se de um encontro bastante
sujeito à flutuação.
O que fará a amarração no que a principio parece fluido e disperso é a
possibilidade de narrar. Nós, enquanto humanos, precisamos de uma história
para nos contar, que se construirá em diversos encontros ao longo de nossas
vidas e nos dará a sensação de existir. As mudanças culturais exigem transformações nos textos a serem construídos. Atingida por estas mesmas transformações, a psicanálise também precisa sempre se reinventar e se recontar, tentando um novo olhar que permita a compreensão do que são a dor e o sofrimento experimentados pelo paciente nestas mudanças.
Retomando a questão da narratividade, para se ter esta ilusão de existência, é preciso lançar âncora numa história pessoal e coletiva, o que, neste universo de relações fluidas e passageiras da atualidade, parece difícil. Já não seria
isto um dos desafios, hoje, para o ser humano em geral e para a psicanálise?
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Como construir histórias em curtos espaços de tempo, estabelecidas em vínculos vários, parecendo por vezes supérfluos, sem costuras e sem tempo de
digestão?
Em seu livro, Celso Gutfreind (op. cit.), reconta a história de Hans, uma
das primeiras crianças citadas na literatura psicanalítica, utilizando-a para
exemplificar como estas transformações no social repercutiram na manifestação do sofrimento e nas formulações teóricas.
Hans padece da repressão sexual de sua época, impossibilitado de falar
sobre sexo e de ser ouvido porque crianças não eram para serem ouvidas naquele tempo em relação a qualquer assunto. Mesmo aos pais/adultos não era
permitido falar sobre sexo, somente experimentar e pensar. Freud padece destes mesmos conflitos, resolve investigá-los em seu mundo interno e tem a coragem de emprestar seu ego para se entender e entender seus pacientes, causando uma verdadeira transformação na compreensão e no acolhimento ao
sofrimento psíquico.
O autor segue narrando esta história de forma lúdica, trazendo os ingredientes desta investigação: a paixão pela mãe, a rivalidade de Freud com o pai em
função deste amor e, mais, descobre que isto é universal e proibido porque traria
um prejuízo grande ao desenvolvimento da humanidade. Indo mais além, Freud
afirma que toda esta trama existe na cabeça de todas as crianças e depois é esquecida. Contudo, estes desejos proibidos de serem expressos e verbalizados, escondidos de nós mesmos e sendo parte importante de nossa constituição, arrumam
um jeitinho de se fazer ouvir, que é através dos sintomas, código a ser decifrado
caso se encontrasse um ouvido atento, privilégio que Hans teve.
Hans, que é parte desta universalidade, tinha também estes sentimentos
sem poder falar sobre eles. Ameaçado de ter seu pipi cortado por sua mãe, tece,
em surdina, suas teorias sexuais, ameaçado até mesmo pela existência das
mesmas. O medo toma conta e Hans adoece até não poder sair mais de casa,
expressando seu sofrimento no medo de cavalos. Depois de um longo percurso, Freud e o pai de Hans conseguiram deslocar o medo do cavalo para o amor
e ódio pelo rival e uma vez liberado deste desconhecimento, senhor de seu
próprio desejo, ciente de sua verdade, Hans segue em paz consigo mesmo, esquecendo tudo isso.
De forma resumida e brincando um pouco, Celso Gutfreind mostra como aí
se inscrevem conceitos importantes da psicanálise, criados e marcados por uma
época determinada pela repressão sexual, a saber: o Édipo, as diferenças sexuais, a
sexualidade de forma ampla como meio de comunicação, o inconsciente expresso
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no desconhecimento que temos de nós mesmos e a amnésia infantil. Freud desenvolve uma técnica que oferece a escuta ao sujeito do inconsciente, este desconhecido tanto para pacientes quanto analistas, técnica que liberta das amarras e permite
que Hans amplie seu universo interior e vá à cata de novos sentidos.
Vemos então como a construção subjetiva e o social se entrelaçam neste
encontro, o social atravessando tanto o psiquismo do analisando quanto o de
seu analista. Os efeitos tanto sintomáticos quanto o das construções teóricas
têm a marca deste registro.
O que temos hoje? O que mudou de lá para cá? Quem são os pequenos
Hans que nos chegam hoje ao consultório?
Na época de Hans, a repressão sexual se estendia especialmente às crianças e às mulheres, num mundo onde prevalecia o poder daqueles que têm pipi
sobre os que não o têm. Uma cultura falocêntrica, onde a primazia do falo, a
ameaça de perdê-lo e a elaboração desta questão tornam-se um importante
referencial na compreensão do psiquismo e do sofrimento causado. O feminino se mantinha em segundo plano.
Não vivemos mais nesta época repressora da sexualidade e falocêntrica.
As mulheres não são mais só coadjuvantes de histórias. Com o decorrer do
tempo, ganharam e conquistaram espaços e protagonizam cenas. A atenção
que a clínica e os estudos psicanalíticos dirigiram aos cuidados iniciais entre
mães e bebês permitiu uma melhor compreensão da posição feminina e seus
efeitos na construção subjetiva.
No afrouxamento dos limites da repressão os homens se permitiram haver-se com o feminino em si mesmos e hoje participam ativamente dos cuidados aos filhos assim como as mulheres deixaram transparecer sua virilidade na
força de trabalho.
Os Hans de hoje vêm de famílias que sofreram mudanças radicais. As configurações familiares são diversas – famílias mono parentais, uniões homoafetivas e recasamentos que alteram a antiga configuração familiar – meios-irmãos, padrastos e madrastas, enfim...
Os tabus para a convivência social ainda prevalecem – o canibalismo, o
assassinato e o Édipo. Mas o Édipo que na época de Freud se sustentava no
tripé pai, mãe e filho, ao invés de um tripé, hoje tem uma centopeia de gente
fazendo parte. Como não se perder no percurso estabelecido pelo desejo que
precede o nascimento e sustenta a conjugalidade e a parentalidade mantendo
uma certa ordem de filiação? A dificuldade em sustentar a figura de autoridade, tão falada hoje em dia, não encontraria aí sua origem?
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Para se ter um bebê não é mais preciso ter uma relação sexual, é possível
escolher quantos embriões ficarão numa inseminação e de que sexo será aquele que será escolhido. Que teorias sexuais os Hans de hoje, gerados nesta situação criarão para si? Como isto influenciará sua construção psíquica? Quais
serão as fantasias de origem que sustentarão o solo do inconsciente?
Segundo o seminário de João Batista no CPRJ em 2014, os mitos sobre a
origem se mantêm na atualidade para compreensão da realidade psíquica, sendo hoje nossa atenção mais dirigida ao campo de Narciso do que ao de Édipo.
E também, como afirma Hurstel (2006), a demanda da origem não é de
um saber objetivo “é demanda do que significou para esses outros, que são os
pais, o fato de nos ter feito nascer. Ouvir dizer uma palavra sobre o desejo que
presidiu nosso nascimento”. O importante, talvez se possa pensar, é saber qual
o nicho psicológico onde o bebê é acolhido. Será ele capaz de reavivar o narcisismo de seus pais?
A inserção da mulher no universo profissional também nos faz repensar
outra afirmativa teórica. Se antes o que a ajudava a elaborar a falta do falo era
poder ter filhos, fazendo uma equivalência simbólica falo/bebê, hoje é falo/
trabalho. Se a maternidade não é mais uma das possibilidades de lidar simbolicamente com a castração, que lugar ocupa no psiquismo dos pais e quais os
efeitos disso na constituição psíquica do bebê?
Sua majestade o bebê tem que fazer muito para ganhar terreno. E faz. A
comunicação intra - útero vai se desvendando, seja pela tecnologia, seja por
estudos que surgem em outros campos. Como pode se comunicar desde cedo,
é estimulado precocemente. Faz grupo de música, psicomotricidade e tem
uma agenda cheia de compromissos.
Embora dependente, suas competências já são conhecidas e hoje podemos pensar numa certa autonomia que faz com que ele não só seja receptor do
meio como também capaz de promover mudanças. Seu psiquismo se constrói
nesta relação de trocas.
Passamos de um estudo do intra psíquico para pensar a construção do si
mesmo a partir da relação intersubjetiva, o que se estende à situação clínica.
Como afirma André Green (1990, p. 52), a atenção se dirige não ao sujeito ou
ao objeto e sim à relação entre eles:
[…] não se prestou atenção suficiente ao fato de que na
expressão “relação objetal” a palavra relação era o mais
importante... Em outras palavras, o estudo das relações é
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antes o dos elos que o dos termos unidos por eles. É a
natureza do elo que confere ao material seu caráter verdadeiramente psíquico, responsável pelo desenvolvimento
intelectual. Esse trabalho foi adiado até que Bion examinou os elos entre processos internos e Winnicott estudou
a interação entre o interno e o externo.
Outra transformação importante desde Hans até os dias atuais diz respeito a aspectos da repressão sexual. Poder ou não falar sobre sexo é assunto de
somenos importância atualmente. As crianças vivem sua sexualidade sem sequer ter tido tempo de elaborar teorias ou fazer conjecturas a respeito. O conhecido período de latência caiu no limbo, não se ouve falar dele.
Assim, o que precisa ser censurado ou recalcado se modifica recolocando
uma outra questão para a psicanálise - o que faz parte deste recalque? O que
fica desconhecido de mim mesmo?
As notícias em tempo real fazem com que o mundo externo invada o
mundo interno. Não raro, chegam aos nossos consultórios crianças que, apresentando fobia escolar, pensam serem tragadas pelas forças da natureza e por
isso não saem mais de casa, não é mais o cavalo, mas o terremoto, o tsunami
que faz ruir o ser.
O mundo parece se apresentar de forma tão elástica e com tantas rupturas
de elos que se aproxima de um mundo de dispersão, de excesso de informações
que carecem de vivências, com multiplicidades identificatórias que tornam difícil ter um ideal a seguir. Esta multiplicidade de vínculos por vezes dispersos
torna difícil a sustentação de focos de atenção, outro problema apresentado
pelas crianças de nossa época.
O que se coloca em questão neste cenário não é mais a elaboração da identidade sexual nem a resolução edípica como ideal terapêutico, mas a sustentação do ser, existir de forma una neste universo para dar conta da multiplicidade de escolhas.
Os sintomas – a desatenção, a falta de foco, o vazio, o refluxo, o medo difuso – apontam para a dificuldade de manter algo dentro de si. O objeto é facilmente perdível, de fato ele é sempre perdível. Contudo, perdas exigem elaborações para aguentar a falta e tecer costuras simbólicas, é um trabalho que
exige tempo.
Roussilon (2003) nos fala que o objeto está ausente perceptivamente, mas
deverá estar presente em um outro lugar, representado junto a um outro. Não
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é perdido, é perdido encontrado, é ausente perdido na percepção e reencontrado na psique, tornado presente nela, “re-presentado”. O autor afirma que nas
vivencias primitivas haveria uma sustentação da existência na psique do outro
onde o sujeito não estaria radicalmente ausente. Isto parece difícil de se manter
atualmente nesta fluidez de vínculos com frequentes rupturas por vezes nem
alinhavadas com palavras.
Segundo Bonaminio (op. cit.) a “realidade do objeto”, este outro sujeito
humano e a qualidade de suas respostas entram em cena na compreensão da
constituição do psiquismo e consequentemente na cena analítica, realçando o
psiquismo do analista.
Os remédios rapidamente aliviam estas dores de existir ou de inexistir.
Diagnósticos e remédios são importantes sim, orientam caminhos e aliviam
dores, mas também é importante que não encarcerem os sujeitos atrás de rótulos, impedindo-os de se conhecerem para além destas barreiras. A criança tem
TDH , não é um TDH, existe para além disto.
O mesmo pode ser aplicado às teorias psicanalíticas, elas estão aí para liberar e integrar diversidades, não para aprisionar. É preciso trabalhar em rede,
somos um entre outros, é necessário vencer as barreiras do narcisismo no
meio profissional.
Hoje nos propomos a tentar decifrar os enigmas do sofrimento humano
utilizando diferentes saberes, trocando ideias, refletindo e clinicando dentro
de uma perspectiva multidisciplinar. Esta rede permite que se faça circular os
sentidos destas experiências compartilhadas, promovendo desdobramentos
que nos ajudam a suportar nossos limites e nossas impossibilidades frente ao
enigma referido.
Os pais que hoje chegam ao consultório estranham a falta de resposta
imediata para melhorar seus filhos, supõem conhecer o analista sem nunca tê-lo visto, simplesmente porque leram o currículo na internet e “sabem” o que
seus filhos têm. As crianças já chegam diagnosticadas. Conhecer e saber são
fenômenos que envolvem sensações para serem percebidos e exigem uma renovação da sensibilidade através do envolvimento no contato com o outro.
Para alguns é impossível sustentar a ideia de que é preciso de tempo para
liberar seu filho da situação que o aprisiona, o impede de se sentir feliz e seguir
em frente ganhando a vida e construindo sua própria narrativa. É necessária a
implicação de todos que se relacionam com a criança para ajudá-la a nomear
o que sente. Oferecemos à criança um material quase em desuso para que possa se contar: lápis coloridos, papel para desenhar, massinha para modelar, maPrimórdios, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 67-76, 2014
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terial que lhe permite criar e inventar histórias que alinhavem o antes e o depois de suas mudanças.
Um nome dado ao que se sente bem sentido e bem dado, desfaz um sintoma, mas não rapidamente. Falar é melhor, o isolamento e a falta de trocas enlouquece como afirma mais uma vez Celso Gutfreind (op. cit.). Mesmo que
esta fala seja a comunicação estabelecida através de um desenho ou de uma
produção de massinha. Em terapia comunitária dimensiona-se a saúde mental
pelo número e qualidade de vínculos que a pessoa estabelece.
Os “monstros” têm nomes e é possível contar histórias para transformá-los e dominá-los. Só é preciso ter alguém receptivo para este tipo de escuta.
No livro infantil “Quando nasce um monstro”, de Jean Taylor (2009), a autora
mostra que existem sempre duas possibilidades de lidar com os monstros: as
que nos paralisam e as que nos permitem seguir em frente na história abordando o ciclo da vida na relação com os “monstros”, dando sentidos ao mesmo
de forma que seja possível suportar a tensão do viver... podemos deixar que nos
comam e ai acabou a história ou levá-los para fazer parte do time da escola, aí
continua a história, lá ele poderá comer a professora aí acaba a história ou pedir
desculpas saindo pela parede e aí continua a história.
Alguns pais não ficam em análise, procuram outros caminhos que também existem. A psicanálise teve que dirigir o referencial teórico mais para o
campo da discriminação eu/outro, delimitar continentes no laço transferencial
para que este ser disperso possa se integrar.
Os analistas tornaram-se mais participativos, se apresentam mais vivos, se implicam, se conectam. Utilizando uma afirmativa de Green (op.
cit.), o analista hoje está em situação de “exclusão objetal”. O que se exige
em função disto é mais do que sua capacidade afetiva e empática, são também suas funções mentais, pois as estruturas de significação dos pacientes
que se apresentam atualmente têm sido colocadas fora de ação. Instaura-se
um espaço potencial ou suficientemente maleável para que os processos
internos de analista e analisando possam se comunicar dando origem à
criação de novos objetos que viabilizam a construção do processo de simbolização no paciente.
Não cabe ao analista julgar o social, porém cabe ajudar o paciente a se haver
com seu desejo e a vida conforme se apresentam a cada momento. O sintoma
busca de forma distorcida a realização de um desejo, a análise libera o sujeito
colocando-o frente à sua verdade, oferece assim conhecimento de si mesmo e
liberdade para construir novas histórias, podendo gerar novas significações.
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Este espaço criado com a pessoa do analista, esta troca intersubjetiva, em
que o inconsciente de ambos participa, sustenta um norte para este sujeito cujo
eu alastrou-se tanto que quase não é mais senhor em sua própria casa.
O que ainda permanece como fundamental na prática é a qualidade do encontro com a pessoa do analista. Este encontro promove costuras de partes dispersas, as imagens e as palavras tomam corpo e retornam em novas palavras.
Neste encontro, aquilo que se reconhece e se percebe através dos sentidos está
em primeiro plano porque é no domínio do sensível que se constrói a existência.
Vicente Bonaminio (op. cit.) afirma: “a ideia de pessoa como referência
organizadora em contraste com a dispersão atual do sujeito é uma noção dinâmica na qual podemos nos apoiar conceitualmente e emocionalmente”.
Ser acolhido pelo outro esperançoso, estar em paz com seu desejo, arranjar formas de representá-lo num jogo, num desenho, numa modelagem, criando uma nova versão para nossas vidas é o que se conhece como mais eficaz em
termos de saúde mental, afirma Celso Gutfreind (op. cit..).
Isto, como psicanalistas, às vezes esquecemos, porque também somos banhados pela dispersão social e pelo imediatismo de respostas. Quantas vezes
nos perguntamos sobre o sentido do que fazemos, sobre a eficácia de nosso
trabalho? Isso é trabalho? Ainda segundo Celso Gutfreind, esquecemos que
um ser se constitui frente ao testemunho de um outro ser, que às vezes sofre
porque desconhece sua verdade e poder formulá-la é fundamental para existir.
Isso é mais que tudo. Como dito também por Michel Tort (2001), a psicanálise
talvez seja a última resistência na questão do tempo, o sujeito sempre arranjará
um jeito para se fazer ouvir. Este é o desafio.
Angela Maria Maggioli Rabello
[email protected]
Referências
BONAMINIO, V. Rumos atuais e futuros da psicanálise. texto trazido pelo autor em
Conferencia realizada no CPRJ , 2010
GREEN, A. “L’analyste, la symbolisation et l’absence dans le cadre analytique”. In:
______. La folie prive. Paris: Gallimard, 1990. Capítulo 2.
GUTFREIND, C. As duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos: o pequeno Hans. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (Coleção Para ler Freud).
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pais. Revista Epistemo-Somática, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 163-173, set./dez. 2006.
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Revue Française de Psychanalyse, v. 68, n. 2, p. 421 – 439, 2004.
TAYLOR, J.; SHARRAT, M. Quando nasce um monstro. São Paulo: Moderna, 2009.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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