ditabranda, eu? - Retrato do Brasil

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ditabranda, eu? - Retrato do Brasil
retrato
doBRASIL
DANTAS A peleja dos fundos de pensão das estatais contra o Lúcifer das privatizações
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | NO 21 | ABRIL DE 2009
AMARGO REGRESSO
A crise traz de volta os
nossos emigrantes
ÍNDIOS Eles fazem
vídeos surpreendentes
para mostrar sua cultura
POLO NORTE O gelo
do Ártico está
aumentando de novo
NEPAL Os maoistas
enfrentam os desafios da
transição ao socialismo
Ernesto Geisel,
general presidente
do Brasil (1974-78)
DITABRANDA,
EU?
O DEBATE SOBRE O REGIME MILITAR NO BRASIL ENTRE 1964 E 1985
PARAISÓPOLIS A vida dos 80 mil habitantes da segunda maior favela paulistana
Agora 100% das nossas propriedades rurais podem ter eletricidade.
Através dos anos, Pernambuco tem desenvolvido um
intenso programa de eletrificação rural, contando para isso
com o importante apoio da força de trabalho da Celpe.
Um grande impulso aconteceu em 1987, quando o então
governador Miguel Arraes adotou esta ação como uma
política de estado prioritária. A partir de 2004, o Governo
Federal deu início, através do Programa Luz para Todos, ao
desafio de garantir a universalização do acesso à energia
elétrica e do seu uso à população rural de todo o país.
De acordo com os dados da Aneel, Pernambuco tornou-se
o primeiro estado do Norte e Nordeste a atingir sua meta
do plano de universalização: a capacidade de atender
a 100% das propriedades rurais do estado. Uma conquista
que enche a todos de orgulho e alegria e que garante uma
vida cada vez mais iluminada para o povo de Pernambuco.
PERNAMBUCO ILUMINADO
É Pernambuco que se transforma no
primeiro estado do Norte e Nordeste
a atingir a meta de universalização
do Programa Luz para Todos.
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retrato
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Ponto de vista AS FORMAS DE DITADURA O que está por trás do debate sobre as metamorfoses
do regime militar brasileiro dos anos 1964-1985 6
População A IMIGRAÇÃO DOS EMIGRANTES A crise econômica global começa a empurrar para casa os
brasileiros que foram fazer a vida no exterior. Na bagagem, muitos problemas Natalia Viana 9
Política O DIABO DAS TELES A expulsão de Daniel Dantas das telecomunicações foi como um exorcismo, que
só confundiu a compreensão dos complexos problemas nascidos da privatização Raimundo Rodrigues Pereira 12
Futebol DRIBLANDO A LEI Com o fim do passe, os jogadores deveriam deixar de ser mercadorias. Mas há
muitas formas de manter tudo mais ou menos como era no passado Rafael Hernandes 31
Nepal AVANÇO REVOLUCIONÁRIO Os maoistas, aliados a outras forças, enfrentam o desafio de conduzir a
transição com um programa moderado e sem perder a revolução de vista Samir Amin 33
Reportagem PARAISÓPOLIS, UM LUGAR COMO POUCOS Encravada em meio a riqueza, a grande favela
paulistana é um local em que a violência é menor que a de regiões bem mais ricas Léo Arcoverde 36
Clima O PARADOXO DO ÁRTICO O gelo do polo Norte pode acabar, disseram alguns cientistas. Agora,
descobriu-se que ele voltou a aumentar Verônica Bercht 44
Cinema MUITO ALÉM DO VÍDEO Documentários ajudam a recuperar a identidade de povos indígenas e os
apresentam à sociedade como expressões da diversidade cultural Carlos Azevedo 47
Livro UMA HISTÓRIA POSSÍVEL Na Colônia e no Império, a matemática pouco se desenvolveu. Só no
século XX a disciplina adquiriu papel relevante no Brasil Tiago Tozzi 49
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CARTAS
REFORMA AGRÁRIA
Parabéns pela excelente reportagem sobre o MST (RB
edição 20). Muito informativa, analítica e consistente.
Maria Rita Kehl [São Paulo - SP]
A PROVAÇÃO DE BRAZ
Fiquei surpreso com a reportagem de Raimundo Pereira
sobre “Braz” e seus amigos (RB edição 17, dezembro de
2008). A tese central do texto: “a acusação de suborno é
baseada numa montagem de escutas telefônicas sobre
imagens de um jantar, no qual os acusados somente
estavam trocando informações não-criminosas”. E essa
montagem seria feita por interesses da Rede Globo, em
parceria com o delegado Protógenes Queiroz e a Justiça
Federal em São Paulo. Sem evidências e provas a respeito,
o artigo de 13 páginas só faz uma coisa: sugerir, sugerir,
sugerir... Dantas, Braz e Chicaroni não são vítimas
inocentes. É uma história em que o grande capital,
banqueiros e políticos acham que o mundo é seu parque
de brinquedos e o Estado e sua população
subordinados aos seus interesses.
Marcel Hazeu [por e-mail]
Ponto de vista:
AS FORMAS DE DITADURA O que está
por trás do debate sobre as metamorfoses do
regime militar brasileiro dos anos 1964-1985
POR UM MÊS, entre meados de fevereiro e
meados de março, as páginas de editoriais, comentários políticos e de cartas dos leitores da
Folha de S.Paulo, um dos maiores diários do
País, foram local de debate sobre a natureza
do regime militar brasileiro recente. O jornal
afirmou, primeiro, de passagem, em editorial
que critica o presidente venezuelano, Hugo
Chávez, que nosso sistema político, entre os
anos 1964-1985, foi como as “ditabrandas” que
“partiam de uma ruptura institucional e depois
preservavam ou instituíam formas controladas
de disputa política e acesso à Justiça”. Com
isso, quis dizer o que um de seus colaboradores, Marco Antonio Villa, tornou explícito poucos dias depois, na seção “Tendências e Debates” do jornal: “Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda
a movimentação político-cultural. Muito menos
os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei da
Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982”.
Depois, criticado por muitos leitores, políticos e intelectuais, o jornal recuou. Seu diretor
de redação, Otavio Frias Filho, disse que “o uso
da expressão ditabranda em editorial (...) foi
um erro”, porque o termo teria “uma conotação
leviana que não se presta à gravidade do assunto”.
Frias recuou atirando, no entanto. A professora Maria Victoria Benevides tinha considerado infamante o trecho do editorial. O jurista Fabio Comparato tinha dito que o autor do
texto e o próprio diretor do jornal deveriam ser
“condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro”. Frias aproveitou a reação dura dos dois intelectuais e contra-atacou, então, os “democratas de fachada”,
que não repudiam, “com o mesmo furor
inquisitorial [...] as ditaduras de esquerda”.
O debate envolve duas questões diferentes. Uma, a das metamorfoses do regime político que se instalou no País com o golpe militar
de 1964. Outra, a natureza de regimes políticos
de sistemas sociais opostos ao nosso, voltados
para a construção do socialismo. Comecemos
pela primeira.
O PAÍS DA “DITABRANDA”
A ditadura brasileira dos anos 1964-1985
sofreu transformações, e suas diversas fases, sem dúvida, podem ser adjetivadas. E,
se alguém foi a pessoa responsável pela consolidação das condições para que o período
1979-1985 pudesse ser de ditadura abrandada, esse alguém, com certeza, foi Ernesto
Geisel, o terceiro general-presidente do Bra6
sil, que governou por cinco anos, entre 1974 e
1978, e procurou eliminar, até mesmo fisicamente, todos aqueles que poderiam ser obstáculo a esse abrandamento.
Geisel trabalhou no gabinete do ministro
da Guerra de Getulio Vargas, na ditadura de
1937-1945. Segundo Elio Gaspari, um dos jornalistas que mais o conheceram e pesquisaram, Geisel era admirador de Benito Mussolini, o líder fascista italiano da época. Apoiou a
deportação de Olga Benário, mulher do líder
comunista Luiz Carlos Prestes, para a Alemanha. Olga foi enviada pelo regime nazista para
um campo de concentração, onde morreu.
Quando Adolf Hitler invadiu a Polônia,
dando início à Segunda Guerra Mundial, Geisel
estava de malas prontas com seu chefe, Goes
Monteiro, para visitar a obra de reconstrução
econômica da Alemanha, comandada pelo líder nazista após a derrota de seu país na Primeira Guerra Mundial.
Geisel foi um dos conspiradores responsáveis pelo golpe militar de 31 de março de
1964 que derrubou o presidente constitucional do País, João Goulart. Tomou posse como
presidente em 15 de março de 1974, “eleito”
por um colégio eleitoral armado pelos generais que o antecederam no cargo.
Com base em fitas gravadas que recebeu
de Heitor Aquino, auxiliar de Geisel, Gaspari
conta a conversa ocorrida um mês antes da
posse, entre o então “recém-eleito” presidente e o general Dale Coutinho, escolhido para
ser o seu ministro do Exército. Primeiro, este
conta que a situação de segurança do País
tinha melhorado, a partir de 1969, depois que
“começamos a matar”. Geisel o apoia. “Ó,
Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem de ser.”
Coutinho fala das operações de destruição da guerrilha do Araguaia, o esforço
para derrotar a ditadura a partir de um foco
de luta popular no campo, comandado pelo
Partido Comunista do Brasil. Geisel dá sequência ao assunto: “Sabe que agora pegaram o tal líder e liquidaram com ele. Não sei
qual o nome dele” (Gaspari conta, mais à
frente, que se trata do médico Osvaldo
Orlando da Costa, conhecido como
Osvaldão, que, depois de preso, teria sido
apresentado à população da região onde
atuava pendurado a um helicóptero e, depois, degolado). Geisel conclui o assunto
Araguaia dizendo: “Bom, o que eu queria assinalar é isso. Nós vamos ter que continuar
ano que vem. Nós vamos ter que continuar
essa guerra”.
Geisel, diz Gaspari, “conhecia, apoiava e
desejava a continuação da política de extermínio” de presos políticos. Apoiava, inclusive, a política de esconder os corpos dos mortos pela repressão. Gaspari conta também um
episódio em que isso fica absolutamente claro. Transcreve trecho de conversa de Geisel,
na qual ele diz a um chefe de segurança, a
respeito da notícia da captura e liquidação de
um grupo de pessoas que viera do Chile, passara pela Argentina e fora interceptado no
Paraná: “É, o que tem que fazer nessa hora,
agir com muita inteligência, para não ficar
vestígio nessa coisa”. Com Geisel, chegou ao
apogeu a política de extermínio e desaparecimento dos corpos de presos políticos pela
ditadura militar.
A política de repressão do general Geisel
foi seletiva. Embora tenha atingido muito
mais gente, era voltada contra a esquerda
especificamente. Procurou destruir a herança comunista do País. É dele a política de extermínio dos velhos dirigentes comunistas do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Procurou
atingir, especificamente, os setores da oposição democrática progressista mais aguerridos. Um exemplo: o general Augusto
Pinochet, chefe do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende, no Chile,
compareceu à posse de Geisel. E o deputado
baiano Francisco Pinto, do chamado “Grupo
Autêntico” do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, precursor do atual PMDB), da
tribuna do Congresso, chamou Pinochet de
“assassino”, “mentiroso” e “fascista”. Como
conta Gaspari, o deputado reclamara da
tranquilidade com que se recebera o ditador
chileno. Disse da tribuna: “Para que não lhe
pareça, contudo, que no Brasil todos estão
silenciosos e felizes com sua presença, falo
pelos que não podem falar, clamo e protesto
por muitos que gostariam de reclamar e gritar nas ruas contra sua presença em nosso
País”. Geisel pediu a sua cassação ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, amedrontado, cassou o deputado Pinto.
A repressão seletiva do general Geisel
pode ser compreendida com clareza no contexto de uma breve história da imprensa brasileira nos anos 1964-1985. O golpe militar,
ao contrário do que sugere o professor Villa,
não permitiu que se mantivesse uma grande
movimentação político-cultural no País porque foi extremamente violento com relação
à imprensa. Atacou e destruiu as publicações
da esquerda comunista, da esquerda católica
retratodoBRASIL 21
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Reprodução
e todas as publicações do movimento sindical urbano, de sem-terras e outras organizações populares que tinham então vida legal.
Seus jornais foram fechados, suas gráficas
próprias foram destruídas e os mais conhecidos de seus jornalistas foram presos ou entraram para a clandestinidade e tiveram seus
direitos políticos cassados.
A repressão foi violenta também contra
a imprensa do grande movimento nacionalista então existente. O maior dos jornais desse
movimento era a rede de jornais da Última
Hora, com edições diárias no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, no Recife e em mais nove
cidades do País. Seu proprietário era Samuel
Weiner (1912-1980), ligado a Getulio Vargas e
apoiado por empresários nacionalistas como
Fernando Gasparian (1930-2006) e José
Ermírio de Moraes (1890-1973). Weiner foi cassado pelo golpe e exilou-se. Vendeu, aos pedaços, a cadeia de jornais e o que escapou de
máquinas e equipamentos em suas sedes,
muitas delas invadidas e depredadas. Para
se ter uma ideia da extensão do efeito dessa
repressão, nunca mais se teve no País, desde
então, um diário de posições mais progressistas e com maior presença. Todos os que
foram feitos, a partir da iniciativa de jornalistas, e não de grandes empresários, só existiram por não mais que meio ano: O Sol, no Rio,
entre 1967 e 1968; o Jornal da República, em
1979-1980, e Retrato do Brasil, em 1986, os
dois em São Paulo.
Quando iniciou sua política de distensão
lenta, gradual e segura, logo no início de seu
governo, Geisel suspendeu, em março de
1975, numa das primeiras ações de seu governo, a censura ao grande jornal conservador O Estado de S. Paulo, que havia se recusado a obedecer à autocensura determinada
pela Polícia Federal (PF). A censura contra a
revista Veja também foi suspensa na mesma
época. Mas, três semanas depois, foi restaurada em função não da posição do patronato,
mas da postura do diretor de redação da publicação, Mino Carta. A censura voltou e permaneceu até fevereiro de 1976, quando Mino,
considerado um inimigo irredutível da ditadura, abandonou a empresa.
A censura aos jornais da ala mais
combativa do movimento progressista, como
o diário Tribuna da Imprensa e os semanários O São Paulo (da Arquidiocese de São Paulo), Movimento (de iniciativa de um grupo de
jornalistas) e Opinião (de Gasparian), só foi
suspensa em junho de 1978, quando, forçado
pela pressão de um amplo movimento de mas-
sas, Geisel teve de imprimir um ritmo mais
apressado à política de distensão lenta que
começara a pôr em prática já no início de seu
governo.
TRÊS CONJUNTURAS
A ditadura militar brasileira surgiu numa
conjuntura específica. Os americanos estavam
tentando consolidar suas posições diante do
avanço dos comunistas na Europa e na China e
das chamadas forças de libertação nacional em
várias colônias e países dependentes. Após a
derrota do Exército francês diante das tropas
vietnamitas em Dien Bien Phu, as Forças Armadas americanas passaram a defender o Vietnã, o Camboja e o Laos da “ameaça comunista”. Em 1956, os últimos soldados franceses saíram da Indochina, e em 1963 já havia um enorme contingente americano em sua substituição.
Na América Latina, a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro, triunfara em 1959 e surgira na esquerda latino-americana o lema de
criar “um, dois, três, muitos Vietnãs”. O golpe
militar no Brasil foi apoiado por dinheiro americano e teria a retaguarda armada americana
se a resistência do governo de João Goulart
fosse mais prolongada, conforme está provado por extensa documentação.
Mas a conjuntura de 1974, quando Geisel
tomou posse, era outra. Os americanos tinham
sido derrotados no Vietnã. Negociaram a saída
de suas tropas de combate em 1973. Em abril
de 1974, retiraram a guarda de segurança de
sua embaixada em Saigon, seus últimos soldados naquele país. Nos dois últimos anos de seu
governo, Geisel não tinha mais a conjuntura da
ofensiva americana para conter o comunismo
na América Latina: teve de conviver com a presidência de Jimmy Carter, nos EUA, e sua “política de direitos humanos”, que procurava mostrar uma outra face, benigna, do império americano, e pressionava as ditaduras latino-americanas, como a comandada por Geisel e por
Pinochet, a abandonar a política repressiva.
De certo modo, a conjuntura de meados dos
anos 1970 é como a de agora: depois de uma
ofensiva espetacular de um quarto de século –
dessa vez no campo econômico, com a financeirização da economia global –, o império americano está lambendo as feridas, provocadas
pela explosão da grande bolha especulativa criada por eles mesmos e procurando se recom7
Reprodução
Einstein: no capitalismo é impossível o cidadão “fazer uso inteligente de seus direitos”
por, com o governo de Barack Obama. É nesse
contexto que o debate sobre a “ditabranda” se
desenvolve.
Em meados dos anos 1970, enquanto o governo Geisel recuava e procurava eliminar a esquerda mais radical para que ela não ocupasse o
espaço deixado vazio, dentro do movimento democrático teve início um debate sobre a natureza do império americano, entre os que defendiam que ele afirmavam que ele realizara mudanças cosméticas com a “política de direitos
humanos” e que, portanto, precisava ainda ser
combatido. Dizia-se também que o governo
Geisel era nacionalista e democrático e que os
únicos a não aceitar essa avaliação eram os setores mais radicais da oposição – que, aliás, não
seriam democráticos porque defenderiam os regimes socialistas, de “ditadura do proletariado”.
De certo modo é o que se observa agora,
no debate sobre a “ditabranda”. Há uma nova
conjuntura, e os conservadores em geral procuram desqualificar a parte mais combativa do
movimento democrático. Ao também criticar o
uso do termo “ditabranda”, o editor de Política
da Folha, Fernando de Barros e Silva, referiuse, como Frias, a esses setores. Disse que “muitos intelectuais se assanham agora com a tirania por etapas que Chávez vai impondo à
Venezuela”. Disse que “o regime moribundo
mas terrível de Fidel Castro” ainda exerce um
fascínio “sobre figurões e figurinhas da esquerda nativa”. Afirmou ainda que a proposta de
Comparato, de obrigar os autores do neologismo “ditabranda” a ficarem de joelhos em praça
8
pública, lembrava a “tortura chinesa” com que
“a polícia política maoista punia desvios ideológicos durante a Revolução Cultural”.
A quem interessa isolar a esquerda na conjuntura atual? Na política oficial, há em curso
um esboço de polarização entre a possível candidatura do PSDB, de José Serra, governador
de São Paulo, e a também possível candidatura
da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
por uma coligação de partidos em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ambas as candidaturas buscam uma união ampla de forças
para enfrentar a grande crise pela qual o País
passa, decorrente, fundamentalmente, do fato
de que o caminho liberal que começou a ser trilhado no governo de Fernando Collor de Mello e
que foi aprofundado pelo governo Fernando
Henrique Cardoso não foi, em sua estrutura,
minimamente alterado.
ESQUERDA MODERNA
Ambas as candidaturas, entretanto, parecem procurar ancorar-se num setor social específico: o dos grandes empresários. Assim, setores progressistas mais radicais tendem a ser
apartados das alianças que estão se formando.
Esse tipo de ponto de vista foi bem expresso por Marcos Nobre, também colunista da Folha, que, no debate citado, mostrou qual é o alvo.
Nobre atacou as posições da esquerda que ele
chama de tradicional, que, em vez de “aceitar o
desafio de pensar uma nova relação entre liberdade e igualdade”, insistiu em reafirmar
posições antigas, coisas como “o desemprego
não é culpa do desempregado, mas de um sistema econômico que produz injustiça”, “o progresso material só significa progresso social e
político se houver uma justa e solidária distribuição de riqueza” e “por aí vai”.
Nobre toca num ponto crucial. A esquerda
política moderna nasceu em meados do século
XIX exatamente para qualificar a discussão da
democracia. O regime político novo, que havia
sido consolidado com as grandes revoluções
burguesas – a Inglesa, do fim do século XVII, e a
Americana e a Francesa, do fim do século XVIII
–, era, na época, uma decepção: o direito ao voto
atingia frações da população, as mulheres não
votavam, o trabalho, inclusive de crianças, não
tinha limites de horário. Foram as revoluções
sociais e o movimento dos trabalhadores de então que levantaram a ideia de que era necessária uma democracia nova, popular, socialista. E
é dessas ideias, exatamente, que surge, em
1917, a Revolução Russa.
Os conservadores partem do desmoronamento da União Soviética e concluem que a única forma de democracia é a democracia liberal,
cuja base essencial é a propriedade privada. Não
é, é claro. “O capital privado tende a se tornar
concentrado em poucas mãos, em parte em razão da competição entre capitalistas e em parte
porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de grandes unidades de produção em detrimento das pequenas. O resultado desses desenvolvimentos é a formação de uma oligarquia de
capitalistas privados, cujo enorme poder não
pode ser efetivamente contestado mesmo por
uma sociedade organizada democraticamente.
Isso porque, na medida em que os membros das
câmaras legislativas são selecionados por partidos políticos largamente financiados e além disso influenciados por capitalistas privados, para
todos os fins práticos, fica separado o eleitorado dos legisladores. A consequência é que os representantes do povo de fato não protegem suficientemente os interesses da maioria mais
pobre da população. Além disso, sob as condições atuais, os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as
principais fontes de informação – imprensa, rádio, educação. É, portanto, extremamente difícil, e, na maior parte dos casos, praticamente
impossível, para o cidadão individual, chegar a
conclusões objetivas e fazer uso inteligente de
seus direitos políticos.”
Esse extenso pensamento é evidentemente
atual, embora seu autor, Albert Einstein, o tenha
escrito em maio de 1949, para o lançamento da
revista socialista americana, Monthly Review.
retratodoBRASIL 21
População:
A IMIGRAÇÃO DOS
EMIGRANTES
A crise econômica global começa a empurrar para
casa os brasileiros que foram fazer a vida no
exterior. Na bagagem, muitos problemas | Natalia Viana
A casa da família Okajima, na Vila Nova
Cachoeirinha, na zona norte paulistana,
nunca esteve tão cheia. Em dois meses, o
sobrado onde moravam apenas Hideki e
Marie, um casal de meia-idade, passou a
abrigar quatro filhas, seus maridos e três
crianças. Hideki teve de improvisar, com
chapas de madeirite, quartos extras para os
novos moradores. Todos eles voltaram do
Japão, onde moravam. “É muita gente junta, estamos meio sem espaço, dormindo
na sala, na varandinha...”, reclama Evelyn
Okajima Duarte, 27, que regressou em meados de janeiro, depois que a fábrica onde
montava câmeras digitais passou a cortar as
horas de trabalho – e o salário. A irmã Agnes
veio com ela. Foi demitida da fábrica de
cabos elétricos na cidade de Karasuyama,
no centro-oeste do Japão. Sem os cerca de
3,5 mil reais que ganhavam, as irmãs tiveram de retornar ao Brasil com os filhos a
tiracolo. Deixaram os maridos por lá, ainda
empregados – mas não se sabe por quanto
tempo. “O sonho de fazer fortuna no Japão acabou”, resume Agnes.
Como elas, milhares de brasileiros que
partiram para tentar a sorte em países ricos
estão regressando. Esse retorno tem uma
marca fundamental: a crise econômica mundial. Existem atualmente cerca de 3 milhões
de brasileiros vivendo no exterior. Cerca de
metade está nos EUA, depois vêm a Europa e o Japão, regiões severamente afetadas
pela crise.
Não há números precisos, mas o Ministério das Relações Exteriores confirma
que, nos consulados, aumentou a quantidade de brasileiros que querem voltar. “Há
indicadores que mostram que está havendo o retorno de um número expressivo
de brasileiros por causa da crise”, diz o
retratodoBRASIL 21
embaixador Eduardo Gradilone, chefe do
Departamento Consular e de Brasileiros
no Exterior. “Difícil é saber quantos são.”
O Itamaraty não mantém controle do número de brasileiros que entram no País.
Outro grande problema é que a maioria
dos brasileiros nos EUA – principal destino dos emigrantes, com cerca de 1,5 milhão deles – e na Europa – onde vivem
cerca de 800 mil – está em situação irregular. Por isso, muitos evitam procurar os
serviços consulares. Resultado: o retorno
de toda uma geração de emigrantes acaba
sendo um fenômeno pouco dimensionado, invisível ao poder público.
NO JAPÃO É DIFERENTE
A grande exceção é o Japão, onde a maioria dos decasséguis brasileiros está em situação legal. Hoje vivem lá 330 mil brasileiros
que trabalham, na maioria, em fábricas. A
situação do país, que viu sua economia encolher fortemente no último trimestre de
2008, os afetou diretamente. Contratados
como mão de obra temporária, foram os
primeiros a ser dispensados. Há estimativas de que cerca de 40 mil brasileiros estejam sem emprego no país.
Muitos vão parar nas ruas, já que a
moradia geralmente é atrelada à empresa
que os contrata. “Tem muitas famílias
morando debaixo de ponte, dentro de carro, barracas de camping”, conta Humberto
Simomura, de 29 anos. Ele, que trabalhava
em uma fábrica de motores da Suzuki, também chegou a ficar sem teto. “Recebi o aviso prévio em outubro, mas só consegui
passagem de volta para o dia 15 de dezembro porque tem muita gente voltando. Tiraram-me do apartamento, tive de ficar na
casa da minha irmã.” Projetista formado,
Simomura foi para o Japão em 2002 com a
meta de juntar 50 mil reais para abrir uma
empresa. Mesmo depois de seis anos trabalhando duro, não conseguiu. De volta a
São Paulo, desabafa: “Eu me arrependo
muito de ter ido”.
No Japão, há muitos brasileiros que
permanecem em situação precária por não
terem como pagar a passagem de volta. A
saída é recorrer ao Itamaraty. Neste ano, 30
brasileiros foram repatriados pelo governo,
um processo que só é permitido quando o
requerente prova que não tem como se sustentar ou pagar a sua passagem. O número
é mais que o dobro do total de repatriados
no ano passado. “Estamos trabalhando
intensamente junto com o governo japonês”, diz Gradilone. Um pacote lançado em
fevereiro no Japão prevê maior facilidade
para os filhos de decasséguis ingressarem
em escolas públicas, apoio na busca de
emprego, treinamento profissionalizante e
estabilidade de moradia para os desempregados. “Em último caso, vai haver auxílio
ao retorno, que poderá ser feito, inclusive,
em cooperação com o Brasil se nenhuma
dessas medidas se provar eficaz”, diz o funcionário brasileiro.
NOS EUA, TODOS AFETADOS
Na falta de dados concretos, o cenário
se repete nos EUA sem qualquer ação do
Itamaraty. A crise, que no quarto trimestre
do ano passado levou a um encolhimento
de 6,2% do Produto Interno Bruto (PIB),
tem afetado tanto os imigrantes legais quanto os ilegais, segundo a professora Sueli
Siqueira, pesquisadora da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (Fapemig) e da Universidade Vale
do Rio Doce (Univale).
9
Arquivo pessoal
Evelyn e Agnes Okajima, no Japão: elas agora vivem apertadas na casa dos pais, em São Paulo
Desde 2007, ela entrevistou 398 mineiros da região de Governador Valadares que
haviam emigrado para os EUA e retornaram.
Desses, 43% voltaram por causa da redução
dos ganhos, e outros 37% por causa do
medo da deportação. “Há um movimento
de retorno mais acentuado e por um fator
mais determinado. Por causa da crise, o custo-benefício já não é tão grande. Os ganhos
se reduzem. Os que tinham dois, três empregos passam a ter nenhum”, diz ela.
Foi o que aconteceu com a paulista Raquel Talacimon, de 33 anos. Depois de nove
anos trabalhando como faxineira em Rhode
Island, ela viu seu rendimento diminuir rapidamente. “A primeira coisa que afeta é a
limpeza. Se a pessoa perde o emprego, corta
a faxineira. Eu perdi 20% das minhas casas
assim.” Por causa da situação, ela voltou em
dezembro último. “Todos os brasileiros estavam preocupados. Na comunidade católica que eu frequentava, em dois meses mais
20 voltaram.” Ela, que era imigrante ilegal,
sentiu também a pressão da nova legislação,
mais dura, que dificulta, por exemplo, a renovação da carteira de motorista para os ilegais. “Hoje o imigrante vive continuamente
com o medo”, resume Sueli.
NA EUROPA, XENOFOBIA
O mesmo medo tem sido companheiro constante dos que vivem na Europa.
Concomitantemente à crise econômica, as
leis de imigração endureceram no último
ano. No ano passado, foi aprovado o novo
pacto europeu de migração, que facilita a
expulsão de imigrantes ilegais. Neste ano,
foi aprovada uma diretiva que penaliza
empregadores que contratarem tais imigran10
tes. Na Itália, uma polêmica lei do primeiro-ministro Silvio Berlusconi abre espaço
para médicos delatarem pacientes em situação migratória irregular. A mensagem é cada
vez mais clara.
Foi exatamente por isso que o goiano
Caio Cesar Alves, de 19 anos, resolveu voltar para casa. Com uma identidade portuguesa falsa – pela qual pagou 200 euros –,
trabalhou durante dois anos e meio como
auxiliar de pedreiro em Paris. “Cheguei a
morar com 11 brasileiros que estavam no
mesmo esquema. Ganhávamos 1,2 mil
euros por mês”, conta ele a Retrato do Brasil
um dia após aterrissar no País. No fim de
2008, em meio a tantas notícias de colegas
sendo presos e deportados, decidiu deixar
de lado a identidade falsa. Ao mesmo tempo, a crise atingiu em cheio a indústria da
construção. “Consegui fazer uns bicos por
alguns dias em construções, mas só dava
pra comprar o que comer.”
O medo de ser mandado de volta tem
razão de ser. Desde o início da crise, a França tem aumentado a repressão aos ilegais, e
os provenientes do Brasil se tornaram alvos. Isso pode ser constatado no súbito
aumento de brasileiros barrados nos aeroportos. Desde outubro, o número dobrou:
de oito a dez por dia passou a 16 ou 17,
segundo o consulado brasileiro. O fato se
repete em outros países europeus, em especial Inglaterra e Espanha, onde os brasileiros são os mais barrados.
Na Espanha, um dos países mais afetados pela crise, os imigrantes estão tendo de
competir com a mão de obra local. De malas prontas para voltar ao Brasil, o
paulistano Rafael Ziegelmaier tem um per-
fil diferente do da maioria dos imigrantes.
O designer tem passaporte espanhol, foi para
Barcelona há três anos para cursar mestrado
e trabalhava na área de marketing de uma
empresa que vendia alumínio e sistemas de
iluminação. “A empresa vinha mal desde
outubro, as vendas caíram muito. No meu
departamento havia eu e uma espanhola.
Adivinhe quem foi para a rua...”
Em Portugal, 30% dos 180 mil brasileiros no país estão desempregados, segundo levantamento da Organização Internacional de Migrações (OIM), braço da Organização das Nações Unidas (ONU). Já é a
principal nacionalidade a participar do programa de retorno voluntário da organização, que financia a volta dos imigrantes. Em
2008, foram 247 brasileiros mandados de
volta – mais de 80% do total daqueles que
solicitaram o retorno de Portugal –, ante
194 no ano anterior. Os brasileiros também estão retornando em peso de outro
país, de migração mais recente, a Irlanda.
Em 2008, 246 brasileiros pediram apoio à
OIM para voltar ao Brasil – 64% do total.
Neste ano, o número já chegou a 216. Aos
poucos, o sonho de migrar para a Europa
vai tomando contornos de pesadelo.
FIM DO SURTO EMIGRATÓRIO?
Especialistas já veem uma mudança de
padrão no fluxo migratório. “A migração é
um fenômeno dinâmico. Os controles estão se tornando mais rigorosos em todos
os países desenvolvidos, por questões de
segurança, da crise econômica, de emprego”, diz Gradilone. “Ir ao exterior exige
um cuidado maior, documentação, um planejamento mais intenso do que existia antes.” Ao mesmo tempo em que esses países rechaçam mais fortemente a mão de obra
desqualificada, que forma o grosso dos
nossos imigrantes, há uma procura maior
por profissionais. “Isso nos preocupa, porque pode ter efeito de atração de talentos e
cérebros que pode não coincidir com nossos interesses. Temos de ficar atentos”,
completa o embaixador.
Para muitos, na incerteza da crise, ainda
é cedo para determinar quão profunda vai
ser essa mudança de padrão. Mas, para o
professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Duval
Fernandes, uma coisa é certa: o fluxo de
brasileiros indo para o exterior deve diminuir. “A atração da vida no exterior diminui à medida que diminui a facilidade de
retratodoBRASIL 21
arrumar emprego e obter renda. Ainda há
um estoque de brasileiros que vivem lá, mas,
se a crise se aprofundar, eles vão ter de
retornar”, diz.
Sueli Siqueira acredita que “o sonho
americano está sendo repensado”. Para ela,
o fato de que o Brasil tem sofrido menos
com a crise é fundamental para determinar
uma redução da emigração. “O que move o
migrante são condições piores na origem e
melhores no destino. Mas agora isso começa a se reverter.”
Seja um processo temporário ou permanente, fica a pergunta: Será que o Brasil
está preparado para esse retorno? Para Sueli, não. Os retornados são um grupo com
características muito específicas devido à
sua história de vida e aos impactos que a
emigração gera. De certa forma, eles são
como estrangeiros em seu próprio País.
Por isso, o crescente fenômeno do retorno merece mais atenção das autoridades.
“Não existe política pública consolidada
para receber esse imigrante que retorna.
Existem organizações que tentam dar
apoio, mas não há um projeto efetivo para
atender a essa demanda.”
Uma história comum é a de Evelyn.
Quando saiu do Brasil, há oito anos, ela
queria juntar dinheiro para poder fazer faculdade. Com o tempo, os planos mudaram.
Hoje, de volta à casa dos pais, sem uma poupança significativa, com uma filha a tiracolo e
um marido ainda na terra distante, cabe a ela
buscar um emprego. “Estou procurando
trabalho como recepcionista, e já mandei alguns currículos.” Se tiver sorte, conseguirá
uma vaga para ganhar de 500 a 700 reais por
mês – o que nem se compara aos 3,5 mil
reais que ganhava no Japão. “Mas tem de
ficar otimista, né?”
VOLTA DIFÍCIL
Muitos dos que estão retornando enfrentam grandes dificuldades. “A maioria
voltou sem um planejamento porque o
custo de vida no exterior é altíssimo. Se
você não tem recursos, tem de tomar rapidamente a decisão de comprar passagem e
vir embora”, diz Kiyoharu Miike, da Associação Brasileira de Dekasseguis (ABD),
com sede em Curitiba (PR), que atende
brasileiros que voltam do Japão. Segundo
ele, há dificuldades sérias em se recolocar
no mercado de trabalho. “Os emigrantes
que retornam são pouco valorizados porque não têm experiência. Estão adequados a uma outra cultura e passaram muito
tempo fora, têm um grande buraco no currículo”, diz Miike, cuja associação ajuda
decasséguis a arrumar emprego ou investir suas poupanças em negócios viáveis.
Arquivo pessoal
Simomura (ao centro), ainda no Japão: há muitas famílias morando debaixo de ponte
retratodoBRASIL 21
Segundo Sueli Siqueira, esse é um dos
principais problemas enfrentados pelos
retornados. Apenas 18% dos entrevistados
de Governador Valadares conseguiram voltar com alguma renda fixa. Outros 51%
chegaram com dinheiro para investir. Mas,
segundo Sueli, 70% deles perderam todas
as economias depois de um ou dois anos.
“São pessoas que não têm perfil empreendedor, ganharam dinheiro, mas não capital
cultural de conhecimento.” Outro grande
problema é que, para aqueles que voltam, o
dinheiro passa a ser um sinal de status, uma
maneira de se livrar da pecha de “fracassado”. Por isso, muitos acabam gastando sem
muita necessidade. “O emigrante que pertencia à classe média chega lá e vai limpar
banheiros. Quando retorna, ele precisa resgatar sua identidade, mas não tem nada
para conseguir isso, só o dinheiro.”
Além disso, o “choque cultural” muitas vezes gera uma condição psicológica séria. Para o psicanalista Décio Nakagawa, que
trabalha com emigrantes retornados, muitas vezes a volta é mais difícil até do que
emigrar. “A adaptação é difícil porque muitas vezes o emigrante guarda uma imagem
fotográfica de seu país. Quando retorna, o
tempo passou, as coisas mudaram e ele
perdeu esse processo. Fica difícil se relacionar emocionalmente com isso.” Nakagawa
chegou a identificar um quadro psicológico
que batizou de “síndrome do regresso”.
Segundo ele, em casos críticos, o retornado
desenvolve sintomas como confusão mental e dispersão do pensamento, distanciamento afetivo e tendência autodestrutiva.
“Ele abre um negócio suicida, por exemplo, um mercadinho ao lado de um supermercado. Há também, em muitos casos,
uma tendência suicida mesmo.”
Para Sueli Siqueira, a sensação de fracasso
acaba tendo repercussões psicossociais importantes. No caso do seu estudo, a conclusão é que quem sai perdendo é a região de
Governador Valadares. “Hoje a região recebe de volta pessoas frustradas, com problemas de saúde, sem perspectivas para o futuro e com uma percepção extremamente negativa do seu local de origem. Esse é um alto
preço a se pagar pelas remessas de dólares
enviados à região – que com certeza não enriqueceram os emigrantes trabalhadores.”
Outra certeza é que a região, que tem cerca de
17% de seus habitantes no exterior, não se
preparou para o melancólico desfecho da
onda migratória. E nem o nosso País.
11
Alex Silva
Política
O DIABO
DAS TELES
12
retratodoBRASIL 21
A expulsão de Daniel Dantas das
telecomunicações foi como o descarrego de um
demônio que instabilizaria o setor. Esse
exorcismo confundiu a compreensão dos
complexos problemas nascidos da privatização
das estatais brasileiras | Raimundo Rodrigues Pereira
1. Quem é Daniel Dantas?
Para alguns, Daniel Dantas seria o símbolo
da “privataria”, nome que muitos dão, com
fundadas razões, ao processo de venda das
estatais brasileiras. Talvez, para mais gente
ainda, Dantas é pior que isso – é o demônio.
• Um amigo do repórter, que conhece pessoalmente o personagem e acompanha sua
história há mais de uma década, responde,
em síntese, numa conversa de uma hora e
meia no fim de fevereiro: “É um gênio do
mal, comandante de forças poderosíssimas,
articulado com o que há de pior nas estruturas do Estado brasileiro”.
• O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal, especializada em crimes contra
o sistema financeiro nacional e em lavagem
de valores, dedicou quatro páginas de sentença em que condenou Dantas a uma espécie de avaliação psicológica. Diz que ele é
de “uma individualidade ímpar e irracional, egocêntrico”, “se desvincula facilmente
dos parâmetros sociais para satisfação de
seus interesses” e conclui: “sem hesitar, acredita no dinheiro, não como instrumento
legítimo para circulação de bens, mas como
algo determinante de suas ações ou omissões, bem como de todas as pessoas que
passam por seu caminho”.
• A senadora Heloísa Helena (PSOL-AL),
falando a Dantas na reunião conjunta das
comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs) “dos Correios” e da “Compra de Votos”, em setembro de 2005: “DuDANTAS, COMO LÚCIFER, O ANJO
EXPULSO DOS CÉUS Ilustração com base
em desenho do romance gráfico Prelúdios e
Noturnos, de Neil Gaiman. No original, o
rosto do anjo é do compositor David Bowie
retratodoBRASIL 21
rante toda a minha militância no PT, eu
sempre ouvi falar de Vossa Senhoria [...]
meio como um Lúcifer, o gênio do mal,
alguém preparado para as piores coisas, para
tudo aquilo que, na minha opinião, é da
essência do capitalismo: a chantagem, o
suborno, a espionagem, a corrupção”.
• A senadora Ideli Salvatti (PT-SC), atacando Dantas na reunião da Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em
meados de 2006, à qual ele compareceu para
esclarecer a denúncia da revista Veja de ter
sido a origem das informações que levaram
o semanário a publicar uma lista apócrifa
de pessoas com contas ilícitas em paraísos
fiscais, dentre as quais o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e Paulo Lacerda, então
chefe da Polícia Federal (PF): “Eu tenho o
convencimento de que o senhor faz o que
for preciso, com quem quer que seja, utilizando todo e qualquer instrumento, legal,
ilegal, [...] todo o elenco possível e
imaginável; com este, com outro, com qualquer governo, porque, para o senhor, eu
acho que só interessa o seu interesse financeiro, em primeiro, em segundo, em terceiro e até o último lugar”.
• A revista Veja, na edição de 16 de julho do
ano passado, comentando a prisão de
Dantas, por duas vezes, uma semana antes, na Operação Satiagraha: “Ele é expoente entre os negociantes e sistemas empresariais que nunca se expuseram ao poder purificador da concorrência, que se escondem
sob as asas estatais para fugir dos rigores da
lei e do vento trazido pela abertura econômica. Nada sabem sobre inovação ou produtividade, os reais motores da criação de
riqueza no sistema capitalista. Nesta condi-
ção, Dantas envolveu-se em praticamente
todos os grandes escândalos de economia
mista – estatal e privada – da última década
no Brasil”.
Demonizar alguém não é uma boa solução para um grande problema – no caso,
o processo de privatização do sistema brasileiro de telecomunicações. Este repórter
buscou uma outra saída; e, nas três primeiras partes desta história, procurou dizer
quem é Dantas e qual o seu negócio.
No processo em que foi condenado pelo
juiz De Sanctis a dez anos de prisão em
regime fechado e ao pagamento de multa
de 12 milhões de reais, Dantas chegou a ser
acusado pelo delegado federal Protógenes
Queiroz de ter oferecido dinheiro para tentar livrar o filho da prisão. Dantas não tem
filho, mas uma filha, que vive na França.
Ele mora no Rio de Janeiro, com a mulher,
num apartamento na Vieira Souto, a avenida mais famosa de Ipanema. O repórter o
visitou em meados de setembro passado,
cerca de um mês depois de seu depoimento à “CPI do Grampo”, durante a qual ele
convidou qualquer dos parlamentares presentes a ir a sua residência para confirmar a
mentira disseminada pelo noticiário sobre
a existência de uma parede falsa atrás da
qual os agentes da PF, durante sua prisão,
teriam encontrado discos rígidos de computador com registros criptografados.
De fato, a parede falsa não existe. O
apartamento é grande, com cerca de 600
metros quadrados. O escritório onde estaria a suposta parede, ao lado do quarto do
casal, tem, de fato, um enorme armário com
portas de correr, sem qualquer sinal de arrombamento.
Dantas mostra, sobre uma mesa próxima ao armário, o monitor Apple solitário,
13
do qual a PF levou a CPU, e, no armário, a
instalação com conexões para seis dispositivos USB, às quais estavam ligados os discos levados pela PF. Dantas diz que neles
estavam gravadas imagens fotográficas de
vários locais que está prospectando para fazer investimentos imobiliários, uma das
áreas para onde tenta se deslocar depois de
ter sido, como diz, “expelido do setor de
telecomunicações”.
No fim de fevereiro, o delegado
Queiroz divulgou carta enviada por ele ao
presidente americano, Barack Obama, referindo-se a esses discos, aparentemente
enviados pela PF brasileira a órgãos de segurança do governo dos EUA para serem
descriptografados. Queiroz repetiu sua
versão: os discos foram “encontrados dentro de uma parede oca na residência do
banqueiro-bandido Daniel Dantas”.
Queiroz queixou-se de que o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva mudou o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e co-
locou no seu comando “seis indivíduos
amigos de Lula, todos com um passado
ético extremamente questionável”. E pediu a “vigilância” e o “apoio” de Obama,
“para que os processos de avaliação e divulgação dos dados contidos nos 12 discos rígidos”, que ele diz estarem “em poder da CIA [serviço de inteligência dos
EUA]”, “não sejam obstruídos”.
O delegado Queiroz não quis falar
conosco. Procuramos um amigo dele, Luiz
Antonio de Medeiros, secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, que afirmou ter pedido a
ele, duas vezes, que recebesse o repórter.
Queiroz disse que só poderá falar depois
que a investigação da PF sobre ele for concluída. A reportagem de capa da revista Veja
de 11 de março, “A tenebrosa máquina de
espionagem do Dr. Protógenes”, mostra
que a investigação está perto da conclusão,
mas, principalmente, espalha fofocas. E não
serve para a história que nos interessa.
2. O representante do Citi
Dantas nasceu em Salvador, de família rica,
e se tornou muito mais rico: sua fortuna
deve estar na casa de várias centenas de milhões de dólares. Avaliar seus bens – imóveis, ações – não é simples, ele diz, em função dos preços de mercado que são muito
variáveis. De hábitos, Dantas é quase um
asceta. Trabalha das oito às oito. Não bebe,
é vegetariano. Não parece ter luxos – os
móveis de seu apartamento são velhos,
uma poltrona tem um buraco em um dos
braços. Quase não tem vida social, diz uma
pessoa que o acompanha há cerca de 30 anos
e acha que ele “não gosta de gente”.
Com base nas evidências examinadas
pelo repórter, Dantas não tinha qualquer
militância política mais expressiva. Mas suas
relações nesse campo eram, claramente, com
a centro-direita: com Antonio Carlos Magalhães, do antigo Partido da Frente Liberal
(atual Democratas), partido ao qual prestou
alguma assessoria; com Fernando Collor de
Mello e com Fernando Henrique Cardoso,
que o ouviram umas poucas vezes.
A mais importante de suas relações,
aparentemente, foi comercial, com o
Citibank. O banco americano tinha ocupado a presidência do comitê de bancos credores do Brasil, depois da quebra do País,
14
sob o regime militar, em 1982. Em 1994,
quando essa dívida foi, afinal, renegociada
– os compromissos da dívida antiga foram
trocados por outros – os famosos Brady
Bonds –, foi o presidente do Citi de então,
William Rhodes, que veio ao Brasil para selar
o compromisso em reunião com o então
ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso. Em 1996, o banco queria converter seus papéis em investimentos. Os títulos da dívida antiga tinham quase virado
pó. Com a renegociação e a nova conjuntura financeira no Brasil, os bradies eram ouro.
O Citi escolheu Dantas para aplicá-los.
Dantas tinha, então, 42 anos e uma história. Com 24, se formara engenheiro e iniciara carreira nas finanças. Com 26, foi consultor numa empresa do amigo Dório
Ferman, criador e dono do Banco Opportunity. Em 1972, com 28 anos, Dantas se
tornou doutor em economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV), com elogios de
seu mestre, Mario Henrique Simonsen,
banqueiro, ministro nos governos militares e, depois, participante do conselho de
administração do Citi. Com 29, obteve um
pós-doutoramento em finanças no Massachussets Institute of Technology (MIT).
Com 31, estava na alta finança. Foi vice-
presidente de investimentos da Bradesco
Seguros e Previdência e, com 32, presidente
do Icatu Empreendimentos e Participações,
da família de Vivi Nabuco, ex-mulher do
banqueiro Almeida Braga, ex-sócio, no
Bradesco, de Amador Aguiar, criador do
banco.
O Citi, segundo afirmou Dantas ao repórter, o selecionou em um “beauty
contest” – um concurso de beleza – depois
de conversar, no Brasil, com alguns dirigentes de bancos de investimento e empresas especializadas em gestão de recursos. Junto com representantes do Citi,
Dantas foi ao presidente Fernando Henrique Cardoso pedir apoio para a criação de
uma estrutura que facilitasse os projetos
imaginados. FHC apoiou a ideia, e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ofereceu uma linha de empréstimos para os negócios.
“Era pouca coisa”, diz Dantas, no começo
de março, na última de várias entrevistas
que o repórter fez com ele. No Plano Nacional de Desestatização, o BNDES já financiava os grupos privados em parte das
compras. Mas é claro que a visita ao presidente abriu portas para uma aproximação
com os fundos de pensão das estatais. Em
1997, foi feito, inclusive, nos EUA, um
seminário do Citi em conjunto com os
fundos, com o objetivo de familiarizá-los
com o mundo dos investimentos.
Para a escolha de Dantas pelo Citi pesou também o fato de ele, desde 1992, quando ainda estava no Icatu, ter criado, nas Ilhas
Cayman, o Opportunity Fund para investimentos no Brasil de capitais existentes no
exterior. Já nos últimos anos do governo José
Sarney (1985-1989), o País havia iniciado mudanças na sua legislação sobre finanças, com
vistas a atrair capitais de fora, mesmo os que
haviam saído ilegalmente. Muitos desses fundos tinham sido criados. Hoje, são mais numerosos ainda. Recentemente, o Ministério
da Justiça do Brasil conseguiu, com ajuda do
governo americano, o bloqueio de 500 milhões de dólares que estavam sendo enviados, por intermédio do sistema bancário daquele país, para o Opportunity Fund. O bloqueio, disse Dantas ao repórter, foi
suspenso pouco depois, logo que foi provada a natureza da operação: ela se referia à
venda dos direitos dos cotistas do Opportunity Fund na BrT à antiga Telemar, hoje
Oi, dos empresários Sérgio Andrade e
Carlos Jereissati. A operação foi realizada
retratodoBRASIL 21
retratodoBRASIL 21
José Carlos Moreira / Agência O Globo
para formar, com apoio do governo Lula,
a chamada BrOi, a tele verde-amarela.
Ao responder às notícias do bloqueio,
Dantas fez divulgar uma nota na qual apresentou uma lista com cerca de cem fundos
semelhantes ao Opportunity Fund. De fato,
a Opportunity Asset Management Inc., a
empresa do grupo de Dantas registrada em
Cayman, é como a Unibanco Asset
Management, a Votorantim Asset
Management e o Banco do Brasil Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A.,
empresas brasileiras com vários fundos registrados em Cayman que operam com ativos no Brasil.
O Opportunity Fund não foi nem o
único nem o primeiro fundo off-shore a participar da venda das estatais brasileiras. Um
ano antes, o Sweet River, fundo operado
pelo Liberal Bank, braço em Cayman do
Banco Liberal, do Brasil, já havia permitido
a associação bilionária de capitais locais e
internacionais que comprara a Companhia
Vale do Rio Doce. O NationsBank, americano, que tinha um pedaço do Sweet River,
emprestou 2 bilhões de dólares ao Bradesco,
que, ao final, acabou ficando com a parte
do leão na compra da Vale – colocou Roger
Agnelli, um de seus executivos, como o
comandante da companhia.
Houve um escândalo em torno do Banco Liberal. Dirigentes da instituição foram
acusados de, por meio do Liberal de
Cayman, ter roubado ou acobertado o roubo de cerca de 50 milhões de dólares do
Nations. Houve uma campanha de difamação na imprensa brasileira contra os acusados, que acabou não prosperando. O
Nations, então rebatizado de Bank of
America, que o comprara, abriu inclusive
um processo contra o repórter, autor de
artigos que contaram a história da campanha (por exemplo, “A versão que quase virou fato”, publicada no semanário
CartaCapital de 11 de setembro de 2002).
Depois, desistiu.
Desde sua escolha pelo Citi, em 1996,
até março de 2005, Dantas falava pelo banco e esta era sua grande força. Comunicava-se regularmente, quase diariamente,
com a direção da instituição, nos EUA.
Isso pode ser visto pela extensa lista de
cerca de 40 mil e-mails que o Citi e Dantas
foram obrigados, pela Justiça americana, a
permutar logo que, em março de 2005, o
Citi, digamos assim, traiu Dantas, afastou-o da condição de seu representante e
O jovem Dantas, ao lado de seu mestre e apoiador, Simonsen, que foi do Conselho do Citibank
moveu contra ele ação na Justiça dos
EUA, cobrando-lhe 300 milhões de dólares. De fato, desde outubro de 2004,
quando mudou de direção e a principal
interlocutora de Dantas na matriz do banco, em Nova York, Mary Lynn Putney, foi
afastada do cargo, o Citi tramava contra
Dantas, com os fundos de pensão brasileiros. Mas isso é adiantar a história.
Voltemos ao negócio de Dantas. Quando, em 1996, encontrou-se com FHC, estava
acompanhado de Putney e de William
Confort, que era o chefe internacional da área
de private equity do banco. Dantas deu ao repórter detalhes da reunião: “Confort explicou ao presidente o que era o private equity.
Esse setor das finanças reformou a indústria
americana, disse Confort a Fernando Henri-
que. A indústria nos EUA estava acomodada nas mãos de oligarquias familiares e administrativas no fim dos anos 1970. O private
equity promoveu sua reestruturação, ele disse”.
No Congresso brasileiro, em setembro
de 2005, Dantas tentou explicar o que é um
fundo de private equity. Arriscando uma tradução, ele disse tratar-se de “um fundo de
participações privadas”. Esses fundos têm
um administrador. “Ele identifica a oportunidade. Ele adquire o investimento. Ele
escolhe os gestores que vão tomar conta,
que vão gerenciar esses investimentos. Ele
fixa metas e objetivos, toma conta, cobra
resultado. Ele presta atenção se, porventura,
em algum momento, esse investimento se
torna conveniente de ser vendido. E, se assim for, o vende ou o refinancia.”
3. Um administrador de private equity
Os fundos de private equity são administrados por empresas consideradas não financeiras pela lei brasileira, por exemplo. Dantas
não acha certo ser chamado de banqueiro.
Diz ser um “administrador de recursos de
terceiros”. No seu currículo está exatamente isso, em inglês: diretor do Opportunity
Asset Management Ltda. (OAM Ltda.).
A empresa tem sede no 28º (e penúltimo) andar de um prédio ao lado da Academia Brasileira de Letras (ABL), na avenida
Presidente Wilson, no centro do Rio de Janeiro. Todo o andar é ocupado por empresas de Dantas. Numa parte do 29º andar
fica o banco Opportunity, de Ferman. Quase toda a parte sul, com magníficas vistas
para o Pão de Açúcar, a entrada da baía de
Guanabara e a marina da Glória, é ocupada
por salas de reunião. A maior parte dos en-
contros para a discussão dos contratos dos
acordos de sócios para a privatização das teles
foi feita nessas salas. Dantas tem escritório
no extremo leste do andar, na parte com
vista para o mar. Na parte norte fica a grande
sala de open-market, mercado aberto, na qual
meia centena de operadores realiza, para diversos fundos de investimentos ligados a
Dantas e a Ferman, operações de compra e
venda de ações, títulos e outros papéis nos
mercados financeiros daqui e do exterior.
Veronica Dantas, uma das sócias do irmão
Daniel, ocupa, com Ferman, mesas de frente
para os operadores. Em setembro do ano
passado, ela comentou com ironia o fato de
o delegado Queiroz ter considerado suspeito existirem muitas empresas registradas
naquele mesmo endereço: “É assim conosco
e com a torcida do Flamengo”, disse. Con15
sulta ao anuário Valor Grandes Grupos, sobre
os conglomerados brasileiros, mostra que
eles têm, geralmente, dezenas de empresas.
No caso de Dantas e seus sócios, embora
seja evidente, para um observador minimamente atento, que constituam um grupo do
qual Dantas é o líder, não há uma estrutura
legal de grupo econômico, entidade definida
nas leis brasileiras. As empresas criadas entre
os sócios surgem de negócios específicos e,
muitas vezes, como conta Veronica, durante
a visita do repórter, há empresas “de prateleira”, novas, já prontas para aproveitar negócios de ocasião.
Outra das críticas mais comuns a Dantas
é a de que, com pouco capital próprio aplicado nas empresas, ele controlaria “toda a
sociedade”, como lhe disse o deputado
Osmar Serraglio (PMDB-PR) na abertura
da CPMI citada. Serraglio foi específico: pediu que Dantas respondesse à crítica da relação do Opportunity com os fundos de
pensão das estatais.
Dantas deu os números do chamado
“fundo nacional” no qual estava associado
com esses fundos de pensão. O Opportunity tinha 0,36% do total de capital investido, cerca de 20 milhões de reais. O conjunto
de fundos de pensão investiu perto de 500
milhões de reais, cerca de 80% do total. Previ e Funcef, fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, aplicaram, por exemplo, 150
milhões de reais e 110 milhões de reais, respectivamente. Havia ainda participações do
BNDES – 40 milhões de reais, por meio
do braço de participações do banco, o
BNDESPar – e de uma empresa privada,
Delta, com participação pequena.
Serralho insistiu: perguntou se Dantas
achava certo os fundos de pensão precisarem de cerca de 90% de votos para afastá-lo
da direção de um fundo de investimentos em
que ele tinha participação mínima. “É exatamente esse o ponto”, respondeu Dantas. A
seguir, deu o exemplo de um fundo local famoso que ele e Ferman administravam na
ocasião. Quem tivesse aplicado nele o equivalente a 10 mil dólares em 1986, se quisesse
retirar o dinheiro naquele dia do depoimento, teria o equivalente a 5,2 milhões de dólares. “E o que fizeram os cotistas do fundo
nesse período?”, perguntou Dantas, para em
seguida dar a resposta: “Não deram nenhuma opinião”. Mais adiante na CPI , Dantas
voltou ao argumento, para dizer que o problema dele com os fundos de pensão era o
16
fato de estes não estarem preocupados com
o que deveriam: o retorno do investimento
feito. Eles queriam era mandar, disse.
No capítulo final desta história, o repórter procura saber dos dirigentes dos fundos de pensão por que, nos investimentos
de que participam – nos quais, muitas vezes, têm a maioria do capital quando somados às aplicações dos bancos oficiais –, eles
não dirigem os investimentos no sentido de
promover o desenvolvimento tecnológico
independente do País. E eles respondem que
seu compromisso básico é com o rendimento das aplicações.
Nossa história é cheia de contradições.
Conta a briga de um grande gestor de fortunas, brasileiro, que servia ao Citibank,
americano; mostra como os principais fundos de pensão, brasileiros, se associaram
com empresas estrangeiras – canadense, ita-
liana, americana – e acabaram expulsando
Dantas do setor de telecomunicações. A
história mostra que o gestor de fortunas diz
que seu negócio era fazer o dinheiro render, e os fundos de pensão dizem que o
compromisso principal deles era o mesmo.
A realidade é cheia de contradições.
Elas movem o mundo, dizia Hegel, um
dos maiores filósofos do século XIX.
Compreendê-las é essencial para o conhecimento. Mas o próprio filósofo achava que
a resolução das contradições empurra o conhecimento para perto da Ideia, onde ele
via algo como Deus. Dizer, na nossa história, que suas contradições são como uma
trama de Lúcifer, um anjo caído dos céus, é
compreensível. Mas não é a posição do repórter. A seguir, vamos à última parte do
esclarecimento inicial necessário para entender direito a guerra que virá adiante.
4. Veja publicou quase uma boa mentira
A tarefa de Dantas não era uma gestão de
dinheiro para ganhar mais dinheiro de tipo
simples. Ele administrava três fundos, com
uma complicação adicional: envolvia três
países e regimes fiscais e regulatórios diferentes. O fundo nacional já citado, formado com os fundos de pensão, estava
sediado no Brasil. Os outros dois – o
Opportunity Fund e o do Citibank – funcionavam nas Ilhas Cayman. O Federal Reserve, o banco central americano, determinava que, se o Citi tivesse a maioria de um
fundo de investimento, deveria registrá-lo
como “ativo imobilizado”. A consequência
da aplicação dessa regra é que o banco ficava
com menor liquidez, o que lhe trazia desvantagens. O Citi queria, então, que Dantas
achasse investidores com os quais formasse uma maioria, para que ele mesmo fosse
minoritário na associação.
Por motivos fiscais próprios, o Citi ainda exigiu que o fundo tivesse sede em
Cayman, o que era uma vantagem para
Dantas, que já administratava o Opportunity Fund lá desde 1992. Mas também era ruim,
porque os fundos de pensão, pela legislação
brasileira, não podiam aplicar no exterior.
Mesmo assim, Dantas formou, com o
auxílio dos fundos de pensão, a maioria de
capitais necessária para abrigar o Citi, exatamente nas condições pretendidas pelo banco americano. O Opportunity Fund de
Cayman entrou com 200 milhões de dólares; o fundo nacional, onde Dantas estava
junto com os fundos de pensão, com 560
milhões de reais; e o fundo do Citi, também de Cayman, com 700 milhões de dólares. Como, na época de formação dessa estrutura, em fins de 1997, o real valia mais
ou menos um dólar, o Citi ficou
minoritário nos projetos, como precisava.
Com base no capital dos três fundos,
Dantas buscou mais sócios e, com o capital ampliado, adquiriu a Telemig Celular, a
Amazônia Celular, a estatal Tele Centro Sul
(depois chamada de Brasil Telecom, a BrT),
o terminal de contêineres do porto de Santos, o Metrô do Rio e um pedaço da
Sanepar, a companhia de saneamento do
Estado do Paraná.
Em cada um desses projetos, o arranjo
de três fundos comandado por Dantas fez
arranjos societários específicos, dos quais
participavam os outros sócios, coinvestidores. Exemplo: no bloco de controle da
BrT, a Telecom Italia (TI) tinha 38% do
capital, e os três fundos, 62%. Na Telemig
Celular e Amazônia Celular, a Telesystem
International Wireless (TIW), canadense,
tinha 49% de uma holding que controlava as
duas empresas, e os três fundos, 51%.
Os coinvestidores tinham várias vantagens, para compensá-los pelo fato de não
estarem no comando estratégico da comretratodoBRASIL 21
A ESTRUTURA QUE COMPROU A BRASIL TELECOM E OS CINCO PASSOS
PARA ENTENDER A SUA CONSTRUÇÃO
1 Dantas construiu a estrutura básica das empresas
FUNDO NACIONAL
FUNDO DO CITI
OPPORTUNITY FUND
OUTROS
onde ficavam os
fundos de pensão, com
registrado nas
Ilhas Cayman, com
registrado nas
Ilhas Cayman, com
nacionais, entre os quais
empresas, fundos, com
34% ON da Zain
42,10% ON da Zain
9,75% ON da Zain
que compraram várias estatais com três fundos: um,
nacional, com os fundos de pensão, e dois em
Cayman, um do Citi e outro, do Opportunity. No
caso específico da compra da Brasil Telecom, esses
fundos formaram, em seguida, a Zain.
2,7% ON da Zain
2 A Zain se associou com coinvestidores – a maioria
PREVI
PETROS
ZAIN
OUTROS
fundo de pensão do
Banco do Brasil, com
fundo de pensão da
Petrobras, com
representava os três
grandes fundos, com
19,72% ON da Invitel
3,77% ON da Invitel
67,82% ON da Invitel
também fundos de
pensão com
INVITEL
empresa auxiliar da
Techold, com
100% ON da Techold
8,69% ON da Invitel
3 A Invitel era controladora integral da Techold, tinha 100% de suas ON. As duas empresas
desempenhavam aproximadamente o mesmo papel e foram criadas para facilitar o financiamento do
BNDES ao projeto, que, de fato, acabou vindo em duas partes, uma pela Techold, outra pela Invitel.
TIMEPART
TECHOLD
TELECOM ITALIA
que Veja considerava
um “absurdo”. Tinha,
da Solpart
representa todos os
investidores acima. Tinha,
da Solpart
o “sócio estratégico”.
Tinha, da Solpart
62% ON, antes
0,2% ON, depois
0% PN, antes
0% PN, depois
19% ON, antes
61,8% ON, depois
62% PN, antes,
0% PN, depois
SOLPART
a empresa que comprou
a BrT, com:
53,59% ON da BrT
Participações
BrT PARTICIPAÇÕES
a empresa vendida no leilão
de julho de 1998. Tinha:
96,81% ON da BrT
deles, os próprios fundos de pensão que, nesta
categoria, não pagavam a Dantas taxa de administração nem de desempenho. A Zain, com grande
maioria, mais os co-investidores somados, com 32,18
de ações ordinárias nominativas (ON), formaram a
Invitel.
19% ON, antes
38%, depois
38% PN, antes
0%, depois
4 A Techold associou-se com a Telecom Italia (TI) para
formar a Solpart, empresa que comprou a BrT. Mas tanto o
grupo comandado por Dantas, unido em torno da Techold,
como a empresa italiana tinham outros objetivos, comprar a
Embratel e a Telesp, respectivamente. Para isso, não
podiam ter mais de 19% de ações ON no consórcio Solpart.
Não podiam, também, desmanchar o consórcio antes de 5
anos. E os consórcios tinham de ser formados antes dos
leilões, é claro. A solução foi criar uma empresa, a Timepart,
cujas ações deveriam ser diluídas após o prazo de cinco
anos, formada por pessoas de confiança. Em vermelho
estão os números do controle da Solpart, após o
vencimento desse prazo.
5 No leilão de julho de 1998, o governo vendeu 20,18% do total de ações, onde estavam 53,59%
das ON, que permitiam o controle, da BrT Participações. Esta, por sua vez, tinha o controle da BrT –
possuía 65,36% do total de suas ações, nas quais estavam 96,81% de suas ON.
Fonte: Comissão de Valores Mobiliários
panhia. Por exemplo, não pagavam as taxas de administração e de êxito, características básicas da remuneração das empresas
de private equity. De um modo geral, antes e
depois do escândalo Dantas, a gestão dos
fundos de investimento por esses administradores de fortunas é paga com 1% a
2% de taxa de administração e 20% de taxa
de êxito. Esta é calculada como porcentagem do lucro conseguido pelo gestor acima
de um rendimento médio de mercado –
boa parte das vezes, o que se obteria com
uma aplicação mais conservadora, em depósitos interfinanceiros (DI), dos empréstimos feitos entre bancos.
Afinal, os acordos foram firmados, após
dezenas de reuniões entre dezenas de advogados e assessores representando as partes
envolvidas. Dois anos depois, no entanto,
uma grande disputa colocou, de um lado, os
fundos de pensão brasileiros e a Telecom
Italia e, do outro, Daniel Dantas. Na sua edição de 2 de agosto, a revista Veja, em artigo
sobre a compra da Brasil Telecom disse: “os
fundos de pensão pagaram 1.000 reais por
ação sem direito a voto; enquanto isso, uma
empresa controlada pelo pai de Dantas, pagou 1 real por ação com direito a voto e comprou 62% da companhia”. Como se provaretratodoBRASIL 21
rá, a seguir, a matéria de Veja pode ser classificada como uma quase boa mentira.
O esquema nesta página representa a estrutura societária que comprou a Tele Centro
Sul, depois chamada Brasil Telecom (BrT),
operadora de telefonia fixa nas regiões centrooeste e sul do País. No leilão de julho de 1998.
o governo federal vendeu as ações que tinha
na controladora da BrT, a BrT Participações.
Elas representavam apenas 20,18% do total
do capital da companhia leiloada, mas incluíam o suficiente para seu controle: 53,59% de
ações ordinárias nominativas (ON), com direito a voto. Essas ações foram compradas
pela Solpart, um consórcio de três companhias. Uma era a Techold, onde ficavam Dantas,
o Citi, os fundos de pensão e outros. Outra,
a Telecom Italia (TI). A terceira, a Timepart.
Na nossa história, mostraremos que quem
comandava os passos estratégicos da BrT era
Dantas, portanto, era ele o grande comandante da Solpart, compradora da BrT. Mas a
controladora parece ser a Timepart, que tem
62% das ON. Qual o mistério?
Voltando à matéria de Veja. Era verdade que os fundos de pensão tinham
comprado ações da Solpart a mil reais a
ação. E o pai de Dantas, comprara ações
a um real. Mas Veja omitira que:
• As ações compradas a mil reais cada
eram umas - as PN, “preferenciais nominativas”, sem direito a voto. As compradas a um real eram outras, ON.
• Todos os cotistas da Solpart - TI, Citi,
Dantas e muitos outros, e não apenas os
fundos de pensão - compraram as PN da
empresa a mil reais cada.
• Cada PN podia ser transformada em 1.063
ON por contrato de acionistas assinado por
todas as partes compradoras da Solpart.
• A criação da Timepart foi aprovada pelo
BNDES, a Anatel e a CCBL – Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia, que processou os pagamentos da privatização.
De fato, a invenção da Timepart foi um
acerto entre o grupo comandado por Dantas
e a TI, então comandada por Giovanni
Agnelli, da Fiat, para cumprir as regras da
privatização e manter os objetivos diversos
dos consorciados. A TI queria o grande premio do leilão de 1998: a Telesp, a operadora
de telefonia fixa da cidade de São Paulo, para
o que formara um outro consórcio com a
Globo. Os fundos comandados por Dantas
pretendiam, em primeiro lugar, comprar a
Embratel, a operadora de telefonia fixa de
longa distância. E, em segundo, a Tele
Norte Leste, com a telefonia fixa dos esta17
Folha Imagem
Demarco, quando ainda era do Opportunity. Depois, ficou contra Dantas em todas as paradas
dos litorâneos do Rio até a Amazônia (depois Telemar, depois Oi).
Os consórcios tinham de ser formados
e aprovados antes dos leilões. E não podiam ser alterados antes de cinco anos, para
que os empreendimentos tivessem estabilidade no controle.
A Timepart, com 62% de ON da Solpart,
tinha um poder fictício. Ele podia ser diluído:
os detentores das PN da Solpart podiam
transformá-las em ON, na proporção de 1
para 1.063, citada, a qualquer momento.
Quando essa conversão foi feita por todos,
a Techold ficou com 61,8% das ON. A TI,
com 38%. E a Timepart, com 0% de PN, foi
reduzida a 0,2% das ON. Os donos da
Timepart eram apenas pessoas de confiança
das partes – trustees, no nome em inglês –
para que o acordado entre elas fosse cumprido. Uma empresa como a Timepart já tinha
sido criada pela Anatel, para garantir que a
Telefonica de Espanha vendesse a CRT para
a BrT, história que adiante se contará.
Numa boa mentira, o mentiroso conta
partes menores da verdade e omite partes
essenciais. No caso do artigo de Veja, não era
uma boa mentira completa, porque a revista
não apenas omitiu. Mentiu também: disse
que a Timepart era controlada pelo pai de
Dantas, Raymundo Dantas. Não era:
Raymundo representava a Teleunion, com
33,80% da Timepart. Ao seu lado estavam a
Telecom Holding, do Citibank, com 33,10%.
E a Privtel Investimentos, com 33,10%.
5. Os interesses do pequeno Demarco
Nossa história não é, como a campanha da
demonização a representa, a de uma peleja
do bem contra o mal, em torno de grandes
ideais. É, no fundo, a de uma disputa de interesses políticos e comerciais. E, entre os
comerciais, interesses grandes e pequenos.
Um dos pequenos, notável, é o de Luiz
Roberto Demarco, que trabalhou no
Opportunity de novembro de 1997 a fevereiro de 1999, quando foi demitido e, a partir daí, tornou-se um implacável acusador
de Dantas para políticos, policiais e jornalistas. Ligou-se a todos os inimigos de
Dantas, na política e no meio empresarial.
Na política, o seu contato principal, para
nossa história, é com Luiz Gushiken. O futuro ministro do governo Lula era a principal liderança dos bancários paulistas na
18
oposição sindical que ganhou o sindicato já
nos anos 1980. Fora deputado federal por
três legislaturas, até 1989. Depois, foi coordenador da campanha presidencial de Lula
em 1998. Nessa campanha, Demarco ajudou Gushiken a construir uma “loja virtual” do PT, para arrecadar fundos por meio
da venda de livros, broches, camisetas. No
meio empresarial, ligou-se, primeiro à TI e
à TIW; depois, ao Citi. Ele não recebeu Retrato do Brasil nem respondeu a qualquer das
perguntas que lhe enviamos. Mas não há dúvida de que fez essa campanha por dinheiro, e não por amor à verdade. Do Citi, segundo documento visto pelo repórter, recebeu, pelo menos, 7,5 milhões de dólares.
Inimigos de Demarco também se uniram. Foi o inquérito policial de sua briga
com uma ex-esposa rica, de quem se divorciou, que deu acesso a Dantas ao conjunto
de e-mails trocados por Demarco com Luiz
Gushiken antes de o petista tornar-se ministro do governo Lula. Os e-mails fazem
parte de um processo, do ano 2000, que tramita na 28ª Vara Cível de São Paulo, no qual
Demarco cobra da ex-mulher 2,5 milhões
de reais por danos morais. Segundo perícia
policial constante do inquérito, ela invadiu
o computador do ex-marido.
No dia 17 de agosto de 2000, o diário O
Globo publicou artigo no qual Demarco falava de litígio entre ele e Dantas na Justiça de
Cayman e dizia ter juntado aos autos do processo documentos mostrando que o Opportunity Fund descumpria as regras brasileiras
estabelecidas para os fundos off-shore, visto
que ele próprio, morador de São Paulo, tinha aplicações nesse fundo. Depois da divulgação dessa notícia, a Comissão de Valores
Mobiliários (CVM), entidade que regulamenta e fiscaliza o mercado de compra e venda
de títulos e ações no País, lhe pediu os documentos apresentados em Cayman e iniciou
um inquérito administrativo.
A conclusão do órgão é de abril de
2003. Condena o banco Opportunity, a
empresa de asset management de Dantas no
Brasil, o banco daqui que operava as aplicações vindas de Cayman, o ABN-Amro e
mais quatro pessoas, entre as quais Verônica
e Ferman. As penas foram consideradas
brandas, entre 20 mil e 100 mil reais. Os punidos apelaram ao Conselho de Recursos
do Sistema Financeiro Nacional.
No Opportunity, Ferman foi o analista
informal da documentação apresentada por
Demarco no processo que tramitou na
CVM. O repórter o conheceu no começo
de sua investigação e o entrevistou diversas
vezes. Ferman apresentou o que seriam sinais de falsificação nos documentos de Demarco: somas incluindo valores em moedas diferentes; papel timbrado da empresa
na qual Demarco trabalhou com Dantas –
e não do Banco Opportunity ou das duas
empresas de asset Dantas, os únicos compatíveis com os termos da denúncia; planilha
anexa a um e-mail cuja data é anterior à da
planilha, dentre outros.
As conclusões de Ferman foram apoiadas por perícia feita pela Justiça paulista para
o processo na CVM. A sentença final, de
30 de agosto de 2007, absolveu todos os
condenados na primeira instância, em seis
votações – uma por 8 a 0 e as outras por 5
retratodoBRASIL 21
a 3. No seu voto, o relator do processo,
Felisberto Pereira, entre outras coisas, diz
que a perícia, um documento de cem páginas constante dos autos, verificou “anomalia”, “irregularidades” e “contrafação” nas
evidências apresentados por Demarco. Demarco foi derrotado no fórum da CVM,
mas sua luta mobilizou muita gente que combatia exatamente as regras da abertura do
mercado de capitais brasileiros.
O esforço de abertura da conta de capitais do País é antigo. Desde a penúltima quebra do sistema financeiro internacional, em
1929, o Brasil controlava rigidamente essa
conta. Em julho de 1986, quando o governo Sarney começou a transitar de uma política mais nacionalista para outra, mais liberal, os controles passaram a ser abrandados. O decreto-lei 2.285 orientou o Conselho Monetário Nacional (CMN) a aplicar
regras favorecidas de Imposto de Renda
(IR) para entidades que visassem trazer para
cá dinheiro, “fundos e outras entidades de
investimento coletivas, residentes ou
domiciliadas no exterior”. Em 1987, o Banco Central (BC) completou essa orientação
com a Resolução 1.289, que estabeleceu os
limites das aplicações favorecidas, e, em
1991, já no governo Collor, uma outra resolução do BC, a 1.832, criou um documento famoso, o Anexo IV, para disciplinar a
“constituição e a administração da carteira
de investimentos imobiliários mantidos no
País por investidores institucionais”, tais
como “fundos mútuos de investimento
constituído no exterior”.
E, finalmente, em janeiro de 1992, a
CVM baixou a Instrução 169 para regulamentar esses fundos. No inciso VI, a instrução especificava quem podia ser registrado
para gozar de isenção de IR: “entidade que
tenha por objetivo a aplicação de recursos
no mercado financeiro e de capitais, da qual
participem as pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas no exterior, e que
não tenha sido constituída ou opere em benefício exclusivo de uma pessoa física”. Sob
essa rede de leis, normas, resoluções e instruções nasceu, por exemplo, o Opportunity Fund, em 1992.
A regulamentação dos fundos off-shore
para aplicação no Brasil mudou com o tempo. Em junho de 1996, ocorreu um auge no
movimento especulativo de entrada de dólares no País, provocado pela política interna de juros reais altíssimos surgida no governo Collor e mantida por Fernando
retratodoBRASIL 21
Henrique Cardoso. Nessa época, como disse um dos donos do Banco Liberal ao repórter, “traziam-se dólares para cá para aplicar em qualquer coisa”. Na ocasião, a CVM
editou o “Ofício Circular 001/96” para exigir das auditorias desses fundos a comprovação da “inexistência de pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas no Brasil”.
Em março de 2000, quando a conjuntura já
tinha se invertido e o Brasil precisava de dólares, o CMN revogou tanto a Resolução
1.289, que disciplinava os fundos constituídos no exterior privilegiados por isenções
fiscais, como a 1.832, que criara o Anexo IV.
E a CVM revogou a Instrução 169.
Sob essas novas normas criou-se um
outro conceito: o de “investidor não residente”. Seriam investidores não residentes “as
pessoas físicas ou jurídicas, os fundos ou outras entidades de investimento coletivo com
residência, sede ou domicílio no exterior”, e
o entendimento passou a ser o de que a caracterização de “investidor estrangeiro” não
se refere mais à residência do proprietário
das cotas da entidade não residente que in-
veste no Brasil. Hoje, uma pessoa física ou
jurídica com RG, CPF ou CNPJ brasileiro
pode investir no Brasil por meio de um fundo coletivo registrado no exterior como não
residente no Brasil. O fundo é que tem de ser
não residente. Esse é o entendimento.
As normas antigas faziam parte do esforço inicial de abertura da conta de capitais do Brasil. Com as normas novas, a conta de capitais do País foi completamente
aberta. No ano passado, por exemplo, estrangeiros e brasileiros trouxeram para cá,
apenas pela rubrica da compra e venda de
ações e títulos de renda fixa, cerca de 220
bilhões de dólares; e levaram para fora cerca de 225 bilhões de dólares. E há quem
considere essa abertura insuficiente: tramita no Congresso projeto de lei do senador
Delcídio Amaral (PT-MS) que pretende
conceder perdão fiscal aos que tiverem remetido recursos para o exterior ilegalmente, mas os repatriem.
Mas a polícia passou a perseguir Dantas
com base na norma velha. Antes da polícia, porém, a política.
6. Dantas-Dirceu, uma ligação diabólica
A absolvição na CVM não foi um fim de
caso. Enquanto ela apurava as acusações de
Demarco, Dantas foi objeto de várias outras
denúncias. A principal redundou na chamada Operação Chacal, da PF. Em outubro de
2004, empregando quase cem agentes, comandados pelo delegado Ezio Silva, a PF,
por meio de invasões, levou meia tonelada
de documentos da sede das empresas de
Dantas, do banco Opportunity, do apartamento de Dantas, da casa da presidente da
BrT, Carla Cico, e da sede da empresa Kroll,
acusada de espionar, a mando de Dantas e
Carla, empresas e pessoas, entre as quais o
ministro Gushiken e o presidente do Banco
do Brasil, Cássio Casseb. A Kroll fora contratada pela BrT no fim de 2002, mas a empresa de telefonia, estranhamente, foi poupada da invasão da PF.
Ferman conseguiu na Justiça uma
liminar para suspender o exame dos discos
rígidos do servidor central de seu banco,
apreendido na batida realizada no Rio sem
mandato judicial . Mas o pedido de abertura dos discos voltou à cena, em função de
uma questão política: a investigação do chamado “mensalão”, iniciada no fim de 2005.
Graças aos esforços da senadora Ideli
Salvatti – política petista que tinha Dantas
na pior conta, como se viu na abertura deste artigo –, na CPMI já citada, foi feito um
pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF)
– negado pela ministra Ellen Gracie – para
permitir a abertura dos discos. Mas os autos da CPMI, enviados à Procuradoria Geral da República, resultaram em uma denúncia ao STF envolvendo 40 pessoas, entre as quais o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. Em maio de 2006, o processo foi enviado aos estados onde viviam
os vários acusados. Dirceu, que mora em
São Paulo, era apontado como “chefe de
quadrilha”, o elemento-chave de uma operação que teria desviado fundos para o Partido dos Trabalhadores (PT), por meio de
falsos contratos de publicidade de empresas controladas por Dantas – a Telemig
Celular, a Amazônia Telecom e a BrT –
operados por empresas do publicitário
Marcos Valério. Na época, o País vivia o auge
da campanha de desmoralização do governo Lula. Graças à pressão criada pelo
“mensalão”, Dirceu saiu da Casa Civil em
junho de 2005; a 1º de dezembro, foi cassa19
Folha Imagem
Dirceu: a imprensa o estigmatizara como “chefe do mensalão”. E ao associá-lo a Dantas, através da Telemig e da Brasil Telecom, formou a dupla maligna
do pelo Congresso e se tornou, para a grande mídia conservadora, um “maldito”.
Mesmo setores da esquerda e do movimento democrático progressista passaram a considerar Dirceu um traidor do presidente
Lula, a partir da hipótese de que Delúbio
Soares teria sido escolhido por ele. Na verdade, Soares tinha sido colocado na direção
do partido por indicação do próprio Lula.
Mas, para a mídia conservadora, ligar
Dantas e Dirceu era formar uma dupla do
diabo. Marcos Valério, ligado a Soares no
chamado “mensalão”, publicitário da
Telemig e da Teleamazonia, comandada, em
última instância, por Dantas, era o elo dessa união maldita.
A partir dos autos da CPMI enviados a
São Paulo, Ana Roman, procuradora da República, pediu – e obteve – da Justiça Federal
no estado a ordem para abertura dos discos
rígidos do Opportunity. “Acredita-se que o
HD (hard disk, disco rígido) do banco possa
conter dados que venham a demonstrar a
relação entre a Telemig e a Amazônia Celular
e Marcos Valério”, ela escreveu.
Com base na ação da procuradoria
paulista, foi aberto inquérito na PF de São
20
Paulo, e o delegado Ezio Silva, da Operação Chacal, que tinha apresentado seu relatório em abril de 2005, pedindo a condenação de Dantas, Carla e outros, foi encarregado de comandar a nova investigação. O inquérito de Silva transcorreu de meados de
2006 ao fim de março de 2007, quando ele
escreveu ao juiz – na época, um substituto
de Fausto De Sanctis, o titular da Vara –,
dizendo que, depois de semanas de
interceptação das comunicações do Opportunity, não pretendia mais prorrogá-la, visto que não tinha obtido resultados. Isso
significava, no fundo, que Silva não via a
pretendida ligação do “mensalão” com o
caso Dantas.
7. A polícia e seus objetivos móveis
Por motivos que o inquérito não explica, a
27 de março de 2007, mesmo sem resultados, a investigação de Silva, cujo objetivo era
encontrar as ligações entre a suposta espionagem de Dantas e o suposto “mensalão”
de Dirceu –, tendo atingido seu objetivo, ou
seja, visto que não encontrara o elo entre as
“duas quadrilhas”, a de Dantas e a de Dirceu, sofreu uma metamorfose e continuou.
Mudou de nome, passando de Dálien –
misto de Dantas e Álien, o alienígena – para
Satiagraha, mudou de chefe, passando a ser
comandada pelo delegado Protógenes
Queiroz, e mudou de objetivo.
A leitura do relatório final do delegado Queiroz e de seus inúmeros arrazoados pedindo prorrogação das escutas telefônicas e de internet, que atingiram dezenas de pessoas, mostra que ele mudou
de objetivo algumas vezes. Mas uma delas é mais evidente. Ocorreu depois que
ele recebeu a perícia realizada nos discos
rígidos do Opportunity pelo Instituto
Nacional de Criminalísta (INC). Seu
antecessor, Silva, havia pedido ao INC um
exame preliminar dos discos. Com base
nos resultados obtidos, incluiu, no relatório da Chacal, algumas listas de nomes
retratodoBRASIL 21
“sem ser de não residentes”, que revelariam “crime de evasão de divisas”.
Queiroz pediu ao INC, então, um trabalho mais conclusivo. Pouco antes de terminar sua investigação, um ano e três meses depois, em junho de 2008, e antes de
pedir a prisão de Dantas, de seus sócios e
outras pessoas, como o financista Naji
Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso
Pitta, Queiroz recebeu três laudos do INC.
Eles também não eram definitivos. Apresentavam várias listas de nomes. Na conclusão dos três laudos, entretanto, o INC
recomendou que fossem realizadas novas
investigações, algo como uma auditoria
contábil ao vivo no Opportunity.
O delegado Queiroz parece ter achado
isso muito difícil e mudou o objetivo de sua
investigação. Procurou uma saída aparentemente mais fácil: a busca de uma prova
de corrupção contra Dantas. E, a despeito
da precariedade do trabalho feito, convenceu De Sanctis a condenar Dantas,
Humberto Braz, um ex-executivo da Brasil
Telecom Participações, e Hugo Chicaroni,
um ex-professor da Universidade de São
Paulo (USP). Em “A provação de Braz”
(RB edição 17, dezembro de 2008), argumentamos que a prova de Queiroz deveria
ter sido mais bem examinada por De Sanctis,
pois havia evidentes irregularidades. Desde
a sentença do juiz, surgiram novos indícios
nesse mesmo sentido. Um deles é o fato de
que o vídeo do encontro decisivo entre Braz,
Chicaroni e um delegado, apresentado ao
juiz como tendo sido feito pela PF, ter, de
fato, sido gravado por dois profissionais a
serviço da Rede Globo. Uma pessoa que
assistiu às imagens – o vídeo faz parte das
evidências arroladas no relatório preliminar
do delegado federal Amaro Vieira, que investiga a investigação de Queiroz – disse
que elas mostram os dois operadores testando a câmera no banheiro do restaurante
El Tranvia, onde houve o encontro considerado crítico para a sentença de De Sanctis.
Queiroz, como se sabe, foi substituído
pelo delegado Ricardo Saadi e depois submetido a inquérito. Saadi, considerado especialista em investigar finanças, aparentemente está concentrado na investigação das
supostas operações de desvio de divisas por
Dantas e suas empresas. Espera-se que ele
divulgue seu relatório final ainda neste mês.
Saadi apresentou um relatório parcial com
242 páginas em meados de novembro passado. Desse relatório fica a impressão de
retratodoBRASIL 21
que nada mudou na investigação. A maior
parte dele é dedicada às reclamações dos
fundos de pensão contra Dantas e às pessoas e empresas ligadas a ele. Saadi ouviu
os presidentes dos três maiores fundos, reproduziu no relatório o folheto “O caso
Brasil Telecom”, divulgado pelos fundos
anos atrás, e resumiu vários processos movidos por eles contra Dantas. Todos esses
processos, assim como as respostas do grupo de Dantas na Justiça, foram retirados dos
tribunais quando do acordo feito em 25 de
abril de 2008, para a venda das participações do Citi e de Dantas e seus sócios para
a Telemar, com vistas à formação da BrOi.
No detalhe, Saadi apresenta duas novidades. Uma é um esquema de lavagem
de dinheiro que utilizaria as fazendas de
gado compradas recentemente pelo grupo de Dantas. A outra é resultado de duas
operações, na casa de Roberto Amaral,
ex-alto dirigente da Andrade Gutierrez,
e de seu filho, que poderiam ter feito transações ilegais com Dantas, a partir de paraísos fiscais.
Mas isso também, por enquanto, é só
isso: hipótese. Como é possível tirar conclusões de uma nota de rodapé no relatório, que diz sobre as fazendas: “A análise
dos documentos apreendidos é superficial”? Sobre os possíveis negócios ilícitos
entre Dantas e Amaral, outra nota de
rodapé afirma que “não se tem confirmação” de que a operação existiu.
8. A planilha chuchu com borboleta
Contra o trabalho de Queiroz surgiu também mais um documento. É o parecer de
Nelson Carvalho sobre os três laudos do
INC referentes aos discos rígidos. Carvalho é um dos maiores especialistas do País
em contabilidade. É o coordenador da edição anual da revista de negócios Exame 500
Melhores e Maiores Empresas do Brasil, da Editora Abril, e atual presidente do Grupo
Intergovernamental de Especialistas em
Padrões de Contabilidade e em Relatórios
Financeiros da Conferencia das Nações
Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), entre outros títulos. Ele
produziu, a pedido do Opportunity, o “Relatório Circunstanciado de Análise Técnica
dos Laudos do Instituto Nacional de
Criminalística (INC), da Operação
Satiagraha”.
O relatório relembra, como fez o repórter de RB no segundo trabalho de sua investigação (“Crimes perfeitos”, RB edição
14, outubro de 2008), que os peritos da PF
tinham recomendado que Queiroz trabalhasse mais para concluir direito sua investigação. Eles citam a frase dos peritos do
INC, contida no relatório de Queiroz de
meados do ano passado: “Assim, pelo exposto, para entender as operações e esclarecer a origem e destino das vultosas somas
movimentadas, faz-se necessário efetuar
exames contábeis e financeiros em toda a
documentação do Banco Opportunity, que
é o centro operacional-financeiro responsável pela operacionalização e movimentação
dos recursos e dos clientes da instituição,
pessoas físicas e jurídicas, tendo em vista a
dificuldade de se apartar os clientes normais daqueles que efetivamente possam ter participado de
operações suspeitas”. (o grifo é do repórter)
O parecerista Carvalho diz, em suma,
que o INC misturou chuchu com borboleta: juntou informações de um banco de
dados do Opportunity Fund Cayman com
as de um outro, um banco de dados sobre
fundos locais do Opportunity. Nos dados
do fundo de Cayman, os aplicadores são
identificados por números, mas não há
nomes nem qualquer número de documento pessoal. Nos fundos locais, os aplicadores
são identificados por número e com nome,
número de RG e CPF e mais dezenas de
dados identificadores da pessoa física ou
jurídica. O INC cruzou os dois bancos de
dados a partir dos números. Mas os
pareceristas dizem que “a premissa na qual
se basearam os peritos do INC para realizar
o cruzamento de dados foi totalmente incorreta: os números atribuídos internamente pelos sistemas de controle dos fundos
(off-shore e nacionais) são diferentes. O sistema Shareholder, relativo ao Opportunity
Fund, possuía uma numeração própria de
clientes e estava em base de dados própria.
No sistema Shareholder, inexistiam informações sobre dados cadastrais de investidores (nome, endereço, CPF ou CNPJ, etc).
Por seu turno, o sistema Cotista, referente
aos Fundos Nacionais, possuía sua própria
numeração de cotistas, era mantido em base
21
discos rígidos apreendidos pela PF na Operação Chacal. Mas, diz Carvalho, deveria ter
usado apenas os dados do período 19982000, porque a lei mudou e surgiu a definição de “não residente”, que inclui todos os
brasileiros, pessoas físicas ou jurídicas, que
tenham um comprovante de “não residente” legalmente aceito pelas autoridades.
Ferman, que entregou ao repórter as 42
páginas e os 39 documentos anexos do relatório de Carvalho, ironiza o trabalho da
polícia com um exemplo: “Eles concluíram
que uma recém-nascida tinha enviado para
o exterior 2 milhões de dólares usando o
CPF do pai. É que misturaram os dados de
uma menina, filha de um diretor do Opportunity, que, ao nascer, eu presenteei com
mil cotas do fundo Lógica II, um fundo
nacional”.
Terminado o exame das provas policiais,
nos últimos capítulos de nossa história, volta-se à questão maior que ela envolve – os
interesses comerciais. Primeiro, situando o
contexto no qual eles se desenvolvem.
Reprodução
de dados exclusiva e diferente daquela do
sistema Shareholder e mantinha os dados
cadastrais dos clientes”.
Carvalho concluiu assim seu trabalho:
“De todos os mecanismos de prova apresentados pelos peritos criminais para a comprovação do ilícito alegado, não há o que
subsista como conclusivo em nenhuma das
peças analisadas no âmbito deste relatório”.
Em outra passagem, ele diz ainda que, nas
suas demonstrações, o INC usou dados referentes ao período 1998-2004, que é o dos
Trechos da conclusão da PF: a
menor, com o CPF do pai,
estaria desviando recursos do
País ilegalmente. De fato, os
peritos apenas embaralharam
bancos de dados distintos
9. As conjunturas da privatização
O processo de reestruturação do sistema brasileiro de telecomunicações decorrente das privatizações se desenvolveu em conjunturas específicas. No momento, vivemos
uma dessas conjunturas, a do desmoronamento do sistema financeiro internacional
criado a partir dos EUA, no fim dos anos
1970, cujo desenvolvimento foi central para
a venda das estatais brasileiras.
A privatização brasileira foi planejada e teve
início no auge de uma primeira etapa do processo de inserção do País no novo mercado
global que se criou a partir do início dos anos
1990, com a financeirização da economia americana, o desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o grande desenvolvimento da China.
O Brasil não se inseriu nesse mercado
como a China, que adotou uma forte política de controle da especulação financeira.
Também não adotou uma política, como a
chinesa, de fortalecimento e desenvolvimento tecnológico de seu setor estatal produtivo. No fim dos anos 1990, por exem22
plo, a estatal China Telecom já era a empresa com o maior número de celulares do
mundo. Já o Brasil havia retalhado e vendido o sistema de telefonia celular que desenvolvera com expressivo esforço tecnológico
próprio.
Quando a venda das teles estatais brasileiras teve seu grande momento, em meados de 1998, com o leilão das fatias de
todo o sistema Telebrás – oito teles celulares e mais quatro empresas de telefonia fixa
–, a euforia dos primeiros anos do Plano
Real, implantado quatro anos antes, era
passado. A política de atrelar o real ao dólar,
que garantia uma cotação de um real para
um dólar, atraindo moeda estrangeira com
juros monumentais, logo seria substituída
pela de taxas de câmbio flutuantes, metas
de inflação e superávit fiscal para pagar juros em quantidade suficiente para manter a
dívida pública sob controle.
Mudou-se também o comando do BC.
Pode-se dizer que o mercado derrubou o
enfant terrible Gustavo Franco, o inventor do
falso real forte, e apontou ao presidente
Fernando Henrique Cardoso um dos seus,
Armínio Fraga, para assumir o lugar de Franco. Fraga era operador de George Soros, um
dos banqueiros que compunham o capital
da Sweet River, o fundo em Cayman que
participou da compra do controle da Vale do
Rio Doce por um consórcio formado pelo
Bradesco, pelos fundos de pensão brasileiros e pelo BNDESPar. Fraga foi o indicado
por Soros para representar o capital estrangeiro nos conselhos da Vale.
Quando a companhia foi vendida, em
1997, a expansão financeira internacional
tinha chegado ao seu apogeu, e várias crises
já haviam abalado os mercados emergentes
– no México, na Rússia, na Argentina. Em
meados de 1998, havia uma fuga de capitais do Brasil. O que valia, um ano antes,
quando da venda das concessões da Banda
B da telefonia celular – manter o controle
nacional –, deixou de valer. No grande leilão da Telebrás, o mote era trazer dinheiro
de fora, criando mais facilidades para atrair
o capital estrangeiro. Um relatório apresentado na Bolsa de Valores de São Paulo
retratodoBRASIL 21
retratodoBRASIL 21
Malan, como revelam gravações menos
divulgadas das dezenas de fitas que compõem
o grampo, estarem, secretamente, preparando um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para depois das eleições que
se aproximavam e nas quais o presidente se
reelegeria. Está no fato de esses diálogos
mostrarem que Fernando Henrique Cardoso
se comprometeu com Stanley Fischer, do
FMI, a fazer aprovar o que seria depois a Lei
de Responsabilidade Fiscal, que definiu como
compromisso central do orçamento público
a geração do chamado superávit primário, a
economia de recursos dos três níveis de governo para pagar juros da dívida pública.
No contexto do debate das privatizações
de 1998, quando o “grampo do BNDES”
veio a público, a invenção da figura do de-
mônio Dantas, por mais católica que tenha
sido a intenção, desviou o foco do verdadeiro problema: a política de inserção subordinada da economia brasileira ao mercado financeiro global, a fantasia de que a
economia do País seria estabilizada com o
Tesouro pagando, como faz até hoje, as
maiores taxas reais de juros do mundo.
Se em 1998 a crise pegou o Brasil, no
fim de 2000 ela pegou o coração do sistema: a economia americana mergulhou na
recessão, grandes bancos entraram em crise
e o setor de telecomunicações global perdeu seu ímpeto. Essa mudança na conjuntura ajuda a entender a ação da Telecom
Italia, talvez a figura central no enorme conflito que se instalou no sistema das teles no
País após a privatização.
FHC e Fischer, no Planalto, em fevereiro de 1999: o essencial no orçamento era pagar os juros da dívida
Folha Imagem
(Bovespa), na ocasião, mostrava as concessões feitas. O governo permitiu ao capital
estrangeiro comprar até 100% das ações leiloadas, em comparação com o máximo de
49% na Banda B. Suprimiu, além disso, a
exigência de um operador internacional na
formação dos consórcios compradores do
controle, o que abriu mais espaço para a
presença de instituições financeiras e investidores institucionais, e ampliou de 20%
para 25% o limite de participação dos fundos de pensão no processo. Para arrematar,
facilitou as condições de pagamento, a ser
feito, então, em três parcelas – uma de 40%
e as outras de 30% do valor, corrigidas pelo
IGP-DI mais juros de 12% ao ano.
Um dos argumentos centrais da crítica a
Dantas é que ele foi favorecido pelo governo
FHC e que o leilão da privatização das teles
foi contaminado por seus dons malignos.
De fato, as pessoas, representando grandes
ou pequenos interesses, fazem a história.
Mas não como a idealizam e, sim, dentro de
condições determinadas. E essas condições
não ajudam a provar que Dantas foi o gênio
do mal no processo específico da privatização das teles. Diálogos exaustivamente divulgados mostram a clara preferência dos financistas do governo – Luiz Carlos Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações, e André Lara Rezende, presidente
do BNDES – pelo Opportunity na disputa
pela Telemar, atual Oi, em detrimento da
“rataiada”, que é como os dois se referem ao
bloco liderado por Sergio Andrade, do grupo Andrade Gutierrez, e Carlos Jereissati,
do grupo La Fonte.
Os divulgadores desses diálogos, no
entanto, geralmente deixam de lado a razão
central dessa preferência. Mendonça de Barros e Lara Rezende queriam dólares. O consórcio capitaneado pelo Opportunity era
formado pelo Citi, pela Telecom Italia (TI)
e pelos fundos de pensão. Se esse consórcio adquirisse a Telemar, que foi vendida
por 2,9 bilhões de reais, a parte correspondente ao Citi e à TI ingressaria no País em
dólares. Já se a Telemar fosse comprada pelo
bloco da dupla Andrade-Jereissati – como,
de fato, ocorreu –, o pagamento seria (e o
foi) exclusivamente em reais.
O grande crime que os diálogos dos grampos revelam não é o favorecimento do Opportunity, que não existiu, porque o fundo não
comprou a Telemar. O grande crime, no entender do repórter, está no fato de FHC, Lara
Rezende e o então ministro da Fazenda, Pedro
23
10. No bloco dos grandes interesses
A Telecom Itália (TI) fora privatizada em
1997, em um esquema aparentemente
fantástico: um grupo de empresários,
ancorado na figura lendária de Giovanni
Agnelli, da Fiat, com 6,6% do capital da
companhia, apoiado pelo Estado italiano, com uma golden-share de 3,46% do
capital, supervisionaria a instalação de um
comando empresarial telecom competente e estável. O esquema, no entanto, durou apenas dois anos. Em junho de 1999,
o comando da TI passou de Agnelli, da
Fiat, para Roberto Colaninno, da Olivetti,
e, dois anos depois, deste para Marco
Tronchetti-Provera, da Pirelli.
No processo, a TI deixou de ser uma
das grandes estatais públicas da Europa e
tornou-se um monopólio italiano privado. Perdeu força no mercado, tornou-se
menor que a Telefónica de Espanha, que
tinha um quarto de seu tamanho no fim
dos anos 1980 e, hoje, está no próprio bloco controlador da TI.
A TI sob comando da Olivetti, empresa que produzia máquinas de escrever em
conjunturas pretéritas e parecia sem futuro,
viu, na crise e na telemática, na convergência
das mídias, uma plataforma para sair da
encalacração em que se encontrava. O Brasil
foi parte importante desse projeto. O primeiro grande lance dado pela TI no País,
depois da privatização, foi, tudo indica, forçar a BrT – a empresa comprada pelo bloco
do qual faziam parte, junto com Dantas e
além da TI, os fundos de pensão brasileiros e o Citi – a pagar um sobrepreço pela
Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT).
No esquema geral da privatização, a telefonia fixa da Telebrás foi dividida em quatro empresas, e a BrT era a parte que cobria
as regiões Centro-Oeste e Sul do País. A
CRT, uma operadora de telefonia regional,
de propriedade do estado do Rio Grande
do Sul, ficava na área da BrT e tinha sido
privatizada antes do leilão da Telebrás. Passara para o controle da espanhola Telefónica.
Pelas regras do novo esquema, a Telefónica
teria de vender a CRT aos controladores da
BrT, o que acabou ocorrendo em julho de
2000, quando a empresa espanhola recebeu
deles 800 milhões de dólares.
Isso só ocorreu, entretanto, após uma
encarniçada batalha na qual o Opportunity
denunciou que estava sendo pressionado pelo
24
governo federal a pagar mais do que a CRT
valia. Em 2006, ao depor na CCJ do Senado,
Dantas disse que estimava esse sobrepreço
em 200 milhões de dólares e que tinha sido
exatamente para descobrir o caminho desses
dólares que a Brasil Telecom teria contratado,
no fim de 2002, a Kroll, empresa de auditoria
posteriormente acusada de espionagem ilegal
no Brasil, a seu mando.
Não há dúvida de que a compra da CRT
foi o episódio que primeiro dividiu o bloco
de acionistas da BrT. De um lado ficaram
Dantas e o Citi. Do outro, a TI e os fundos
de pensão brasileiros. Porque os fundos de
pensão ficaram com a TI desde 2000, quando seus principais dirigentes eram nomeados pelo governo FHC, é questão relevante, a ser examinada mais adiante.
A posição da TI era explícita. Colaninno
a apresentou no Brasil ao diário Valor Econômico logo depois que assumiu o controle
da empresa: ele queria mudar o contrato
assinado com o Opportunity em 1998, para
ter o controle da BrT. Dantas contou a
mesma história com detalhes no depoimento ao Congresso em setembro de 2005. Ele
e Colaninno reuniram-se em maio de 2000
numa sala reservada do Copacabana Palace,
no Rio. “Disse que não havia sentido em
que a Telecom Italia, sendo uma empresa
de telefonia, não fosse a controladora da
Brasil Telecom”, contou Dantas aos senadores e deputados. “Ele disse que queria o
controle da Brasil Telecom e que só faria
sentido para ele ser controlador. Eu até argumentei e disse: Até entendo, mas o senhor também, enquanto Olivetti, é uma
empresa financeira que comprou a Telecom
Italia. Então, no aspecto empresarial,
estamos no mesmo nível”.
O contrato que dava o controle ao bloco de três fundos comandado por Dantas
fora assinado dessa forma pelos executivos
e advogados nomeados na gestão de
Agnelli, que estava, então, preocupado apenas com os rendimentos do investimento.
Não queria, ao contrário da gestão de
Colaninno, assumir o controle da empresa
brasileira na esperança de realizar grandes
negócios com ela.
É certo que Colaninno foi ajudado por
outras vítimas da crise que também tentaram sair dela desatando as amarras contratadas com Dantas. Uma delas foi a TIW. A
empresa canadense participou junto com
vários sócios – como o próprio Dantas –
do leilão da Banda B da telefonia celular de
1997, mas teve de criar as empresas nos locais onde ganhou: a Telet, no Rio Grande
do Sul, e a Americell, na região Centro-Oeste. Mandava nessas empresas, mas estava
tendo prejuízo com elas. Perto do fim de
2000, quando a crise do mercado das empresas da chamada nova economia disparou, a TIW amargava prejuízos somados
de cerca de 1 bilhão de dólares, segundo
estimativas. Só eram lucrativas suas participações na Telemig Celular e na Amazônia
Celular, as ex-estatais que comprara junto
com os três fundos comandados por
Dantas, dos quais era sócia, com 49%. Entre os 11 assentos do Conselho de Administração da holding do grupo, a TIW tinha
cinco e nomeara um diretor de operações
na Telemig. Mas, de fato, não comandava
estrategicamente a empresa.
A TIW iniciou então uma série de ataques contra Dantas com o objetivo de assumir o controle das duas ex-estatais. Isso se
vê de modo explícito em outro dos inúmeros grampos dessa história, o das conversas
entre Nelson Tanure, dono do diário Jornal
do Brasil, um ex-consultor de Dantas e então
seu assessor, Paulo Marinho, Bruno
Decharme, diretor internacional da TIW, e o
jornalista Ricardo Boechat. O famoso
colunista publicara em O Globo, em 16 de
abril de 2001, uma nota com informações
reveladoras dos planos do Opportunity para
derrubar, no dia seguinte, numa assembleia,
dois conselheiros da Telpart, a controladora
da Telemig, que haviam desmontado o controle de Dantas nessa empresa, ao terem se
bandeado do lado dele para o dos canadenses da TIW. No mesmo dia, a Previ moveu
uma ação na Justiça pedindo uma liminar
contra a realização da assembleia. No mesmo dia, a obteve.
Nas transcrições das conversas
divulgadas, lê-se Tanure comentando seu
acordo com Decharme para “levar Dantas à
loucura” e Marinho dizendo a Boechat que
o tal artigo, ainda a ser publicado, “diz tudo
o que a gente queria falar”. Em 2003, finalmente, a TIW perdeu a batalha e, no acordo com o Opportunity para lhe vender sua
parte na Telemig e na Amazônia Celular,
assinou documento no qual diz explicitamente que a sua motivação ao mover as
ações legais contra Dantas e suas afiliadas,
inclusive “nas quais certos fundos de pensão brasileiros são parte”, é decorrente de
retratodoBRASIL 21
“preocupações comerciais estratégicas”. Ou
seja: business, just business; negócios, apenas
negócios.
O esquema de Colannino não foi longe. A grande armação financeira que ele fizera com o Chase Manhattan para comprar a TI foi abalada: com a crise, o banco
americano passou a pressionar para receber dos que lhe deviam. Tudo indica que o
agressivo Colannino, aproveitando-se do
fato de que as Organizações Globo estavam falidas, com uma dívida de 2 bilhões
de dólares, montou um esquema, acertado com o Chase: tirou dinheiro com o
qual a Olivetti pagaria o Chase, para a Globo pagar o Chase, o que, para o banco,
dava na mesma. E, para Colannino, mantinha vivas as esperanças em um de seus
projetos importantes -ð o do portal
Globo.com, que valeria o meio bilhão de
dólares que a TI investiu nele, pensando
em exportar novelas para toda a América
Latina. Em pouco tempo, no entanto, o
portal passou a valer umas poucas dezenas de milhões de dólares. Colannino caiu
e Tronchetti-Provera, da Pirelli, assumiu a
TI em fins de 2001.
11. Os espiões italianos são melhores
Em 22 de julho de 2004, a Folha estampou
como manchete principal: “Empresa privada espiona o governo Lula”, referindo-se
especialmente ao então ministro Gushiken,
cujos e-mails teriam sido espionados. Essa
denúncia firmou a convicção de que Dantas
é um “monstro”, que espiona tudo. A revista CartaCapital, em inúmeras capas, pintou a imagem do “orelhudo”.
O que existia a essa altura era uma investigação da Kroll internacional encomendada pela presidente da Brasil Telecom, Carla
Cico, em dezembro de 2002 e capturada pela
Kroll, em função de movimentos comandados pela Telecom Italia de Tronchetti
Provera, como se verá adiante.
Tronchetti-Provera é um homem de
negócios. Queria fazer deslanchar, no Brasil, os negócios do celular, a Telecom Italia
Mobile (TIM). Na gestão de Colaninno,
com seus poderes de sócio estratégico na
BrT, a TI havia imposto condições que tornaram impossível à companhia participar
do leilão de licenças para a telefonia móvel
de fevereiro de 2001 e comprara licenças de
celular para a TIM em todo o País, inclusive
na área onde a BrT atuava.
Colaninno deixou essa herança, complicada, para Tronchetti-Provera. Pelas regras da
Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel), uma empresa não podia ter duas
teles numa mesma área. Por estar no bloco
de controle da BrT, a TI só poderia operar
celular no Centro-Oeste e em todo o Sul do
País se a BrT pagasse um preço: antecipasse
o cumprimento de suas metas de universalização dos serviços de telefonia fixa.
Maria Amália Coutrim, sócia de Dantas,
explica os fundamentos e as posições assumidas pela BrT no longo debate que se seguiu com a TI. Primeiro, a BrT encomendou
estudo ao banco de investimentos UBS
Warburg. O estudo mostrou que a BrT perderia dinheiro – 240 milhões de reais -ð se
antecipasse as metas de universalização. Isso
porque a antecipação era um ônus imposto a
ela em troca de um bônus: a licença para operar o celular, coisa que a BrT não tinha. A
companhia decidiu, então, não antecipar a
universalização. Iria cumprir essa meta no pra-
Folha Imagem
Manchete da Folha, 22 de julho de 2004: o jornal denuncia Dantas como “espião” e ajuda a formar a imagem do “monstro”
retratodoBRASIL 21
25
A Petrobras é mais do que uma empresa de petróleo.
E, se você pensar bem, mais do que uma empresa de
A Petrobras é respeitada no mundo inteiro por sua tecnologia e liderança na exploração e produção de petróleo em águas
profundas e ultraprofundas. É pioneira em biocombustíveis e investe sempre em fontes alternativas de energia. Mais do que
www.petrobras.com.br
energia também.
isso, a Petrobras é uma empresa comprometida com o desenvolvimento social e a sustentabilidade, valorizando a cultura,
as artes, o meio ambiente e a cidadania. Se o futuro é um desafio, a Petrobras está pronta.
zo máximo permitido pela Anatel, janeiro de
2004. Até lá, portanto, a TIM não poderia
operar celular em grande parte do Brasil.
Com o mercado de celular disparando,
Tronchetti-Provera recuou e as negociações
tiveram um primeiro acordo no fim de agosto de 2002. Por ele, a TI reduziu sua participação acionária na BrT e saiu do bloco de
controle da companhia, com o direito de
voltar depois do cumprimento, pela BrT, das
metas de universalização. Três meses depois,
em novembro, sob orientação de Dantas, a
BrT fez outro lance estratégico: comprou licenças para operar celular na sua região. Ficaram, então, a BrT e a TI com licenças de celular superpostas. E mais: a TI com o direito
de voltar ao bloco de mando da BrT.
O conflito tinha data certa para estourar: janeiro de 2004, quando a BrT já teria
cumprido suas metas de universalização, o
que de fato ocorreu. Ela e a TI, por meio da
TIM, estavam com licenças para celular
superpostas numa mesma área, E a TI, com
direito de voltar ao bloco de controle da
BrT. Quem tinha razão? Maria Amália diz,
com razão, que o governo Lula e os fundos
de pensão se voltaram contra Dantas na
disputa, mas que a razão estava com ele,
nas opções da BrT que comandou.
“Tronchetti-Provera declarou, na sala do
então ministro das Comunicações, Miro
Teixeira, que o Opportunity era
esquizofrênico. Declarou também que era a
BrT que tinha de abdicar do serviço de telefonia móvel. Ora, o celular era o futuro.
Sem o celular, a BrT não teria futuro.”
No fim de 2002, com Lula já eleito,
Dantas recebeu um recado de TronchettiProvera por meio de um assessor da BrT, o
publicitário Mauro Salles. Este se encontrara com Naji Nahas, financista conhecido,
então representando Tronchetti-Provera.
Nahas disse que tinha estado com Carlos
Jereissati, da Telemar, cujas relações com os
fundos de pensão das estatais eram antigas, e este lhe teria dito estar a par dos futuros passos desses fundos, especialmente da
Previ, no futuro governo Lula. Jereissati
disse a Nahas que o novo governo se comprometera a tirar o Opportunity das teles.
Melhor seria, portanto, Dantas negociar
com Tronchetti-Provera, pois o dano a sofrer seria menor. Dantas criptografou o recado transmitido por Salles e publicou o
resultado em seis edições dos classificados
do diário O Estado de Minas, entre 22 de
novembro de 2002 e 28 de março de 2003.
28
A TI acabou aceitando que uma solução
para seu conflito com o Opportunity fosse
dada por um tribunal arbitral, em Londres.
As negociações nesse fórum começaram em
dezembro de 2003. Mas Tronchetti-Provera
tinha outros trunfos. Sob sua gestão, sabese agora, graças a um processo conduzido
pela Justiça italiana, que ocorreram fatos que
levaram duas dúzias de pessoas do setor de
segurança da Pirelli a serem detidas sob acusação de atividades ilegais, principalmente
escutas clandestinas. O juiz do processo,
Giuseppe Gennari, de Milão, diz nos autos
que descobriu, numa investigação de dois
anos, uma “estrutura criminosa”, “plasmada especificamente por Giuliano Tavaroli”,
o responsável pela segurança de empresas
associadas da Pirelli, entre as quais, destacadamente, a TI.
Tavaroli ficou preso por um ano. Nos
seus depoimentos, disse que Nahas recebeu, em espécie, numa valise, alguns milhões de dólares e mais depósitos bancários como prestador de serviços para a
Telecom Latinamerica. A investigação italiana encontrou Naji Roberto Nahas como
“prestador de serviços” dessa empresa e
somou as quantias recebidas por eles a esse
título, entre 2002 e 2006: exatamente
25.473.811 euros.
Foi a TI que, de certo modo, deflagrou
a Operação Chacal. Ângelo Jannone, responsável pela segurança da TIM Brasil, também investigado e preso posteriormente no
processo italiano, entregou à PF em Brasília,
em 2004, em formato digital, documenta-
ção da Kroll obtida pelo “Tiger Team”, um
grupo a serviço da divisão de segurança da
TI. O “Tiger Team” entrou no servidor da
Kroll por meio de uma operação de
“hackeragem” contra um agente da empresa, Omer Oerghinzoy. O presidente da TI
no Brasil, Paolo Dalpino, entregou cópia
da documentação já em poder da PF “talvez à Folha de S.Paulo”, disse Tavaroli num
dos depoimentos na Itália.
Nos autos da Operação Chacal, a investigação aberta pela PF a partir da denúncia da
TI, não há nenhuma acusação de grampo
contra Dantas, nem mesmo contra a Kroll.
E os e-mails trocados entre Demarco e
Gushiken não foram capturados por grampo da Kroll, nem, como a Folha sugere na
manchete, quando Gushiken era ministro,
mas, sim, anos antes, pela então mulher de
Demarco, como já contamos. Nos autos da
Chacal, lidos pelo repórter, percebe-se que a
Kroll, grande empresa internacional especializada em perseguir a origem de dinheiro
sujo, controlada pela IBM, já contratada várias vezes pelo governo e por empresas brasileiras, parece ter mãos limpas. Mas, na ponta, parece, também, comprar funcionários
públicos menores para obter informações,
fichas cadastrais, extratos. Dantas disse ao
repórter que acusá-lo por problemas desse
tipo na investigação da Kroll seria muito
mais injusto do que acusar o presidente Lula
pelos supostos erros de Delúbio Soares no
“mensalão”, visto que, comparando-se os
dois casos, os passos na cadeia de comando
até ele eram muito maiores.
12. Uma outra crítica é possível
O presidente Lula, com certeza, apoiou a
campanha contra Dantas. No início de seu
governo discursou em seminário dos fundos de pensão das estatais chamando-os
de estratégicos. Colocou como seu ministro de “assuntos estratégicos” Luiz
Gushiken, especialista em fundos de pensão, com uma antiga ligação com o arquiinimigo de Dantas, Demarco. Gushiken foi
o responsável pela indicação de Sergio Rosa,
para o comando da Previ, e de Wagner Pinheiro, para o comando da Petros, os dois,
como ele, do movimento sindical dos bancários de São Paulo. E, sob o comando de
Rosa, o governo Lula unificou as ações contra Dantas dos três grandes fundos das es-
tatais, incluindo a Funcef, para onde foi o
economista Guilherme Lacerda, mais ligado a José Dirceu.
Rosa passou a ouvir Demarco por indicação de Gushiken, conforme disse ao repórter de RB. E os três grandes fundos “deram velocidade e priorização”, como diz Pinheiro, à campanha para afastar Dantas do
comando dos fundos que vinha do governo anterior.
Indiretamente, a demonização de
Dantas contribuiu para gerar a impressão de
que um grande problema da privatização das
teles brasileiras foi eliminado com sua expulsão do setor. Muitos acham que, de um
modo bem amplo, a privatização das telecoretratodoBRASIL 21
Sergio Lima/ Folha Imagem
Pinheiro, da Petros, Rosa, da Previ, e Lacerda, da Funcef: eles comandaram a ofensiva que derrubou Dantas do fundo nacional, do fundo do Citi e da BrT
municações foi um grande feito dos governos liberais. São apontados, como prova desse êxito, os números de linhas fixas e de celulares que existiam antes da privatização e os que
existem agora. E o fato de que qualquer
prestador de serviços sem escritório fixo hoje
poder responder, pelo seu celular, imediatamente, a todos os seus possíveis clientes. E
coisas do gênero.
O repórter não pensa assim. Acha que o
negócio da telefonia no País, com a privatização, tornou-se uma espécie de indústria automobilística, oferecendo a parcelas maiores da
população um bem sofisticado que, no entanto, é produzido, como os carros, sem maior
desenvolvimento da indústria e da tecnologia locais. O Brasil, não tem, por exemplo,
uma indústria de produção de chips, básicos
para a telemática e a construção dos celulares.
E, por esse motivo, no saldo exportação-importação nesse setor, tem um déficit anual de
perto de 10 bilhões de dólares.
Mesmo a chamada tele verde-amarela, resultante da fusão da BrT com a Oi, com alguns compromissos de palavra com o desenvolvimento de tecnologias locais, não se pode
ter como uma perspectiva de longo prazo.
Ao final dos acordos para a constituição da
nova empresa, a dupla de controladores
Andrade-Jereissati acabou convencendo o
governo de que não deveria existir, no apoio
que recebeu, tanto do presidente Lula que
comandou a mudança de leis para que a fusão
ocorresse, como dos bancos de financiamento oficiais, que contribuíram com vários milhões de reais para financiar a operação, qualquer cláusula que os impedisse de vender a
companhia a um comprador de fora do País.
retratodoBRASIL 21
O repórter acha que o destino da tele
verde-amarela pode ser o mesmo da Ambev,
que resultou da fusão, incentivada pelo governo federal, das cervejarias Brahma e
Antarctica. A global Ambev, nascida de processo abençoado com o dinheiro do BNDES
e apoio político oficial, também seria verdeamarela. Mas, hoje, tem sede num paraíso
fiscal, onde têm domicílio oficial seus grandes controladores, executivos de private
equity do mesmo tipo e época de Dantas.
Wagner Pinheiro, presidente da Petros,
o fundo de pensão da Petrobras, disse ao
repórter de RB, em meados de março, que o
acordo de formação da BrOi dá ao governo
o direito de impedir a venda. Ela só pode ser
feita com a concordância de 85% dos acionistas do bloco de controle. E nesse bloco,
só o BNDES tem 16%. E Previ, Petros mais
Funcef têm 32,9%, diz Pinheiro.
RB procurou também as duas principais
lideranças do PT na área dos fundos de pensão, Dirceu e Gushiken. Dirceu conversou com
o repórter duas vezes em fins do ano passado
e meados de março. Acha que o governo errou
ao ter tomado partido contra Dantas na disputa do empresário com os fundos de pensão. E
disse ter deixado isso claro a Gushiken e a Sérgio Rosa quando era ministro. Quando o repórter lhe perguntou se ele sabe se o governo,
por meio de suas autoridades de segurança,
como o diretor geral da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin), Mauro Marcelo, apoiou os
trabalhos clandestinos da TI no Brasil, como
está em depoimentos nos autos do inquérito
italiano, ele disse não saber. Mas admitiu que
isso pode ter acontecido sem conhecimento
do primeiro escalão do governo.
Gushiken não quis falar, sob qualquer
forma. Não quis, sequer, receber o texto antes de ele ser publicado, para ajudar com a
correção de possíveis erros factuais ou de raciocínios muito tortuosos.
Os três principais dirigentes dos grandes fundos, Sérgio Rosa, da Previ, Wagner
Pinheiro, da Petros e Guilherme Lacerda,
da Funcef, receberam o repórter. Os três
foram os comandantes das grandes operações que desmantelaram o esquema de
Dantas nas telecomunicações: 1) sua destituição do fundo nacional, em outubro de
2003; 2) as pressões contra o banco americano, negando-lhe contratos e intermediações, que levaram finalmente o Citi a afastar
Dantas do comando do seu fundo em
Cayman, em março de 2005; 3) a destituição de Humberto Braz do comando da BrT
Participações, a controladora direta da BrT,
no final de 2005; e 4) a devassa que foi feita
na BrT, a partir da nova diretoria, nomeada
após o afastamento de Braz, e que acabou
resultando em vários processos contra o
grupo de Dantas.
Dessa devassa saiu a pincelada última
no retrato do demônio Dantas. O departamento jurídico da nova BrT contratou um
advogado conhecido, José Roberto Santoro, um ex-procurador da República. Em
2002 ele foi apontado pelo ex-presidente
Sarney como sendo um dos articuladores
da operação que acabou exibindo pelo Jornal
Nacional da Globo pilhas de dinheiro
flagrado em escritório ligado à campanha
de sua filha Roseana, então candidata a
candidata da coligação PSDB-PFL para
disputar a Presidência contra Lula.
29
Santoro acabou afastado do cargo
quando foi divulgado grampo de Santoro,
feito pelo bicheiro Carlos Cachoeira, na
própria sede da procuradoria, em Brasília.
Às três horas da manhã, Santoro procurava convencer Cachoeira a entregar-lhe
uma gravação que serviria para matéria
sobre pedido de propina, de anos anteriores, feito por Waldomiro Diniz, na época
assessor do então ministro José Dirceu.
Com base nos seus arquivos, sob o comando de Santoro, a nova BrT despejou na
Justiça uma dezena de novas ações contra
Dantas e as empresas que controla. E os jornais e revistas passaram a ser alimentados
com notícias para reforçar as operações
jurídicas. Várias artigos foram publicados
com informações saídas evidentemente da
BrT e reforçaram, por exemplo, a tese de
que Dirceu, apontado como chefe da quadrilha do “mensalão” era financiado por
Dantas a partir da Telemig e da BrT, que
eram atendidas por agências de publicidade comandadas por Marcos Valério e
Duda Mendonça.
Os dirigentes da Previ, Petros e Funcef
não se identificam com as posições de
Santoro. Os três disseram ao repórter que
cobraram do presidente da nova BrT explicações pela contratação do polêmico advogado e que não as consideraram convincentes.
13. Ornitorrincos ou tico-ticos?
Nenhum dos presidentes dos três grandes
fundos de pensão das estatais, no entanto,
parece ter dúvidas de que era preciso romper com Dantas. Rosa tem 49 anos. É jornalista formado pela Escola da Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA-USP). Foi diretor eleito da Previ em
2000 e, desde o início do governo Lula, é
presidente nomeado do fundo. Comandou
o grupo que esteve em Nova York, no final
de 2004, para a cerimônia de aproximação
que abriu caminho para o “acordo put”, de
garantia de preço para eventual compra futura das ações do Citi na BrT. Ele diz o que
pode ser atribuído também a Pinheiro e
Lacerda: nas estruturas societárias, só
Dantas mandava, e ninguém mais.
Para todos, o repórter perguntou se
o esquema de controle da BrT por Dantas
não era, como lhe parecia no exame da
estrutura de societária de diversas empresas privatizadas, antes a regra do que a
exceção. De um modo geral, todos concordaram que é assim. Os fundos põem
muito dinheiro e mandam pouco.
Guilherme Lacerda, da Funcef, disse
mais, no mesmo sentido: que no capitalismo brasileiro é praticamente regra haver grande parte de ações preferenciais,
sem direito a voto, o que faz com que o
controle das empresas se faça por detentores de muito pouco capital.
O repórter aponta mais um problema.
Os dirigentes sindicais do PT, como Rosa,
Pinheiro e Lacerda, não foram contra a privatização? E, agora, os fundos de pensão
não estão sendo beneficiados por ela? Pi30
nheiro disse ao repórter que era “presidente de um fundo de pensão, gestor de recursos de terceiros que estão alocados em empresas capitalistas” e que seu papel é o de
“zelar por este patrimônio” e que “as crenças e posições políticas” não devem pautar
“o seu papel de gestor dos recursos”.
Lacerda é um petista de longa data e um
intelectual, doutor em economia pela
Unicamp. Diz que o repórter aponta, de fato,
um problema.“Tome-se o caso da Vale. Ela
foi privatizada e depois teve esse crescimento
estupendo. Quem ganhou? Foram todos os
acionistas, é claro. E funcionários, dirigentes.
Entre os acionistas, quem tinha mais, ganhou
mais. Nesse sentido, a Previ ganhou mais, foi
a grande beneficiária. A Funcef também ganhou muito. Aí há uma contradição se colocando. A Previ é dos trabalhadores e do Banco do Brasil. Mas não é de todos os trabalhadores. É de um grupo de trabalhadores”.
Como resolver essa contradição? Na
época do “mensalão”, Lacerda escreveu artigo no qual comentava a imagem criada
pelo sociólogo Chico de Oliveira de que os
dirigentes dos fundos de pensão seriam bichos estranhos, como o ornitorrinco, no
sentido de estarem a meio caminho entre o
socialismo e o capitalismo.
Os fundos de pensão nos governos liberais que antecederam Lula, respondeu
Lacerda, foram como os tico-ticos, que
chocam os ovos dos chupins,
aproveitadores do trabalho alheio. E agora, o compromisso dos dirigentes dos fundos de pensão seria “desatar complexos
nós surgidos à época da privatização”.
Não parece que a demonização de
Dantas corresponda a esse objetivo. Ainda hoje os fundos das estatais dizem que
foi um encontro entre Dantas e FHC em
2002 que promoveu um retrocesso na política dos fundos. De fato, o que ocorreu
foi outra coisa. Em 2001, o governo aprovou a Lei Complementar 108, que estabeleceu como regra que a entidade
mantenedora do fundo de pensão – a Petrobras no caso da Petros, a Caixa Econômica Federal, no caso da Funcef, e o Banco do Brasil, no caso da Previ – poderiam
criar estruturas paritárias para a direção
dos fundos. Metade dos postos dos conselhos de direção seriam ocupados por trabalhadores eleitos por seus pares, metade
por representantes nomeados pelo
mantenedor. O voto de minerva nesses
conselhos paritários seria necessariamente da empresa pública mantenedora.
Por muito tempo o PT ficou discutindo
apenas a questão formal da eleição e do estatuto de poder dos eleitos ou nomeados, mas
não o tipo de política – seu conteúdo de classe – a ser posta em prática por esses dirigentes. No poder, o PT desistiu da mudar o estatuto criado por FHC e o manteve. O voto
em qualquer questão decisiva, na executiva e
no conselho deliberativo dos fundos, tem necessariamente a concordância do governo.
Falta, parece claro ao repórter, uma
participação maior dos dirigentes dos fundos, saídos do movimento de trabalhadores, na orientação da política de investimentos gerais do País, para tirá-lo da dependência, um problema que vai além dos
horizontes corporativos dos trabalhadores de umas poucas empresas. Que são, de
certo modo privilegiados, e têm contradições com os interesses do conjunto dos
trabalhadores e mesmo com os interesses
de camadas médias do País.
No caso da disputa Provera contra
Dantas, se os fundos tivessem vencido a batalha e assim Provera tivesse ganho, o resultado mais provável é que não haveria uma
solução para as telecomunicações brasileiras
com um mínimo de conteúdo nacional. Nem
mesmo o do tipo que a BrOi representa. O
argumento usado pelos fundos de pensão,
ainda hoje, é o de que o negócio com a TI
era melhor, do ponto de vista comercial. Eles
não incluem nenhuma consideração de ordem nacional. Isto porque, é claro, por considerações apenas de ordem comercial, apoiaram a empresa estrangeira.
retratodoBRASIL 21
Futebol:
DRIBLANDO A LEI
Com o fim do passe, os jogadores deveriam deixar de ser
mercadorias. Mas há muitas formas de manter tudo mais ou
menos como era no passado | Rafael Hernandes
retratodoBRASIL 21
Anderson passou a “bater uma bolinha” –
isto é, treinar – com os jogadores profissionais do Porto. Quando completou 18 anos,
estreou pelo time profissional.
COZINHEIRA BEM PAGA
O artifício utilizado pelo clube português,
no entanto, é uma burla ao espírito da regulamentação da Fifa. A evidência é o salário
recebido pela mãe de Anderson, na casa das
dezenas de milhares de euros, algo que, certamente, pouquíssimos chefs da cozinha internacional conseguem. O Porto, obviamente, pagava a Anderson, por meio do restaurante – ao qual, aliás, ela nunca apareceu –, o
salário que ele deveria, mas não podia, por
razões legais, receber.
O caso foi denunciado ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Portugal,
que abriu investigação sobre o ocorrido.
Como não foram encontradas provas suficientes e Anderson acabou se transferindo para
a Inglaterra, o caso não foi adiante.
No Brasil, o fim do passe foi regulamentado pela chamada Lei Pelé, de 1998. A nova
legislação, assim como a estrangeira, tinha
como objetivo declarado extinguir a espécie
de servidão que existia na relação entre os
clubes e os jogadores brasileiros. Mas, assim
como a legislação internacional, a Lei Pelé dei-
Folha Imagem
Anderson é um cara sortudo, além de
talentoso. Após fazer sucesso disputando a
segunda divisão do Campeonato Brasileiro
pelo Grêmio porto-alegrense em 2005, com
apenas 17 anos ele se transferiu para o Porto,
tradicional clube de Portugal. De lá, entre uma
e outra convocação para jogar pela seleção
brasileira (imagem), foi parar no Manchester
United, time inglês em que atua ao lado de
Cristiano Ronaldo, escolhido pela Fifa como
o melhor jogador de futebol de 2008.
Um detalhe de sua história ilumina o
cenário do mundo do futebol profissional
atual, especialmente um de seus cantos mais
obscuros: o dos negócios. Desde o fim, na
década passada, do “passe” – figura jurídica
que obrigava os jogadores de futebol a se
manterem atrelados a seus clubes de origem –
, o futebolista profissional deixou de ser considerado uma mercadoria negociada entre os
clubes e, em tese, se transformou num trabalhador que presta serviços a quem o contrata. Diferentemente da época do passe,
encerrado o prazo do contrato nada mais o
prende ao contratante e, se qualquer uma das
partes quiser romper o compromisso em
vigência, paga uma multa como em qualquer outro negócio.
Parece tudo muito claro em teoria. Na
prática, no entanto, a situação é diferente,
como revela a história de Anderson. Uma
das condições impostas pela Fifa, a entidade
que regula mundialmente o futebol, é a proibição de transferências internacionais de menores de 18 anos, como forma de prevenção
contra a exploração de adolescentes. Mas,
então, como Anderson pôde ser contratado
pelo Porto aos 17 anos?
Para driblar a regra da Fifa, o clube português repetiu um esquema comumente utilizado pelos clubes europeus. Para garantir
que Anderson ficasse vinculado ao clube
mesmo antes de assinar um contrato profissional, ele se mudou para Portugal com a
mãe. Lá, ela foi contratada como cozinheira
por um pequeno restaurante português, de
forma a permanecer legalmente no país, e
31
xou abertos caminhos para um sem-número de novas formas de exploração, inclusive
de adolescentes.
Neymar Santos Júnior, atacante do Santos Futebol Clube, protagoniza um desses
casos, também com final feliz. Sua história
se desenrola desde quando ainda não havia
completado 16 anos, idade mínima exigida
pela legislação nacional para que se possa assinar o primeiro contrato profissional de trabalho. A essa altura ele já chamava a atenção
de muita gente, inclusive de times europeus,
como o Real Madrid (Espanha) e o Chelsea
(Inglaterra). Diante da possibilidade de perder um jovem e promissor talento e, assim,
deixar de ganhar muito dinheiro com uma
possível transferência realizada mais tarde, a
diretoria do Santos procurou e achou um
meio legal de mantê-lo vinculado ao clube:
um contrato de licença de uso de imagem.
O contrato de imagem é comumente
usado no meio artístico por atores e modelos infantis que participam de novelas, filmes e comerciais de TV. “É um contrato que
o vincula ao Santos, embora não como atleta profissional”, diz o advogado especializado em direito esportivo Edson Sesma.
“Esse tipo de acordo pode ser feito até com
bebês recém-nascidos”, explica.
RESCISÃO, O VELHO “PASSE”
Quando completou 16 anos, Neymar assinou seu primeiro contrato como futebolista profissional e, em fevereiro, quando
completou 17 anos e nem havia estreado
profissionalmente, o acordo foi renovado
em bases bem mais generosas para o jogador. Interessantes são os detalhes: primeiro
ficou acertado que, em uma possível transferência para outro clube, 40% do valor da multa
rescisória estabelecida (estimada em 30 milhões de euros) seria repassado ao Grupo
Sonda. Em troca, este pagaria 2,5 milhões
de euros à família do atleta, detentora desse
direito. Ficou acertada também a emancipação civil de Neymar, de forma que ele pudesse assinar um compromisso de longo prazo, de cinco anos, maior que o máximo de
três anos permitido para atletas entre 16 e 18
anos.
Os detalhes do contrato de Neymar revelam que a tal multa rescisória, que deveria
ser paga por quem rompe o contrato, funciona, na verdade, como a antiga transação de
compra e venda do passe do jogador. A diferença é que hoje a multa é temporária, válida apenas para o tempo da vigência do con32
trato, enquanto na época do passe os direitos do clube valiam praticamente durante
toda a carreira profissional do atleta. O direito da família de Neymar a uma parte do valor da multa rescisória, a qual, eventualmente, deveria ser paga pelo próprio jogador,
mostra também uma semelhança com o que
ocorria no passado, quando o jogador tinha
direito a uma porcentagem do valor estabelecido por seu passe.
A Lei Pelé parece também ter incentivado a criação de um mercado paralelo para
negociar os altos valores envolvidos nessas
transferências disfarçadas de multas
rescisórias. A participação do Grupo Sonda
é apenas um dos muitos exemplos de investidores, pessoas físicas ou jurídicas, que
adquirem direitos sobre as transações que
envolvem jogadores. Não é incomum que o
primeiro detentor desse direito revenda tudo
ou parte dele a terceiros, o que acaba, muitas
vezes, complicando transações futuras em
razão das divergências de interesses entre os
diferentes investidores envolvidos.
Se as histórias dos jogadores de futebol
se resumissem aos finais felizes vividos por
Anderson e Neymar, seria o caso de dizer
que as manobras legais para contornar a legislação são aspectos secundários do problema. Infelizmente, nem todos têm a sorte
desses dois. “Temos muitos jovens que,
sonhando em se tornar jogadores de futebol, acabam confiando em desconhecidos e
são explorados”, diz Frans Nederstigt, coordenador do Projeto Trama, organização de
respeito aos direitos humanos.
É o caso de José de Melo Júnior, de 21
anos. No ano passado, quando encerrava seu
contrato com o Santos, seu último time, recebeu uma proposta de um homem chamado Sílvio, supostamente empresário, para
atuar pelo Ionikos, time da segunda divisão
da Grécia. Discutidas as bases do acordo e
financiado por um amigo, partiu para Atenas, onde, dois dias depois, assinaria contrato. Foi recebido por um brasileiro e instalado em um bom hotel para aguardar um
sócio de Sílvio que o levaria até o clube para
fechar o acordo.
Os dias se passavam e ele não recebia
nenhum contato nem conseguia falar com o
empresário no Brasil. Sem falar inglês – e
muito menos grego – e sem seu passaporte
– retido pela administração do hotel, que
permitiu que ele continuasse dormindo e
comendo no local –, Melo entrou em um
beco sem saída. Felizmente, depois de quase
cinco meses na Grécia, o agente de seu irmão, também jogador, ficou sabendo da
história e resolveu pagar de seu bolso todas
as despesas de hotel e trazê-lo de volta, no
início de fevereiro.
Casos como o de Melo são mais comuns
que os de Anderson ou Neymar e envolvem
uma figura que ganhou grande destaque à
medida que, nas últimas décadas, a
mercantilização do futebol se acentuou: a do
intermediário que conta, a seu favor, com a
frouxa fiscalização da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
COMÉRCIO DE JOGADORES
São legalmente autorizados a exercer a
função de empresários dos jogadores os chamados “agentes Fifa” (credenciados pela entidade), advogados, pais, cônjuges e irmãos, explica Sesma. Mas um acordo pode
ser fechado mesmo sem a participação formal de um representante legal. Assim, um
indivíduo pode intermediar uma negociação – e, com isso, receber parte dos valores
envolvidos nela – e simplesmente não colocar seu nome no contrato.
“O futebol é a comercialização do atleta”, diz Nederstigt. “Funciona no sentido
de investir em atletas mesmo se eles ainda
não podem dar retorno. Se eles se tornam
um bom investimento, ficam todos felizes.
Mas, se não, esses atletas de 16, 17, 18 anos
são abandonados.”
Trata-se de um fenômeno especialmente forte no Brasil. De um lado, há o fato de
que, somente em 2007, os 20 maiores clubes
brasileiros arrecadaram mais de 455 milhões
de reais com a negociação de atletas, pouco
mais de um terço de sua receita total naquele
ano. De outro lado, estão os jovens, em sua
grande maioria vindos de origem muito
pobre, que veem no futebol um meio de
enriquecer, assim como Ronaldo, Kaká ou
Robinho, que são como gotas d’água no mar
de candidatos a ídolo.
No Brasil, o futebol exerce um grande
atrativo como forma de ascensão social, diz
Sandro Orlandelli, avaliador de jogadores,
com anos de experiência trabalhando para o
Arsenal, da Inglaterra. “Na Europa, o garoto com 13 ou 14 anos começa a criar independência e tem oportunidades proporcionadas pelo governo e pela estrutura familiar,
que fazem que ele possa escolher em qual
profissão atuar. Ele não se vê em uma situação de desespero, como os jovens brasileiros se veem”, completa.
retratodoBRASIL 21
REUTERS/Adrees Latif
Nepal:
AVANÇO
REVOLUCIONÁRIO
PROMISSOR
Os maoistas, aliados a outras forças, enfrentam o desafio
de conduzir a transição com um programa moderado e sem
perder a revolução de vista | Samir Amin
O Nepal, pequeno país de 147 mil quilômetros quadrados e quase 30 milhões de habitantes, encravado
entre China e Índia no lado sul da cordilheira do Himalaia, foi uma monarquia nos primeiros 240 anos
de sua história independente, completados no ano passado. Reformas políticas introduzidas nos anos
1990 transformaram o regime, antes autocrático, numa monarquia constitucional e criaram um sistema
multipartidário. A partir de 1996,o regime passou a enfrentar uma revolta armada liderada pelo Partido
Comunista do Nepal-Maoista (PCN-M). Em abril de 2006, após inúmeras crises políticas que levaram
à renúncia do rei Gyanendra, os rebeldes maoistas chegaram a um acordo que encerrou a guerra civil. No
ano seguinte, eles se juntaram ao governo provisório então instalado em Katmandu. No ano passado,
uma Assembleia Constituinte eleita com ampla liberdade partidária e na qual os maoistas se tornaram a
principal força aboliu a monarquia e transformou o Nepal numa república federal. Em agosto, um
gabinete liderado pelos maoistas foi instalado no poder tendo à frente Prachanda, o principal líder do
PCN-M.
O texto a seguir, de autoria de Samir Amin, foi publicado na edição de fevereiro da revista americana
Monthly Review. Amin é um conhecido e respeitado intelectual egípcio, autor de vários livros e artigos.
Aqui, ele procura sintetizar o processo político em curso no Nepal e traçar suas perspectivas.
Imagine. Um exército de libertação que
apoia uma revolta camponesa generalizada chega aos portões da capital, onde o
povo se insurge, tira a realeza do poder e
acolhe como seu libertador o Partido Comunista do Nepal-Maoista (PCN-M), cuja
eficiente estratégia revolucionária dispensa
maiores demonstrações. O que está em
questão aqui é o avanço revolucionário vitorioso mais radical da nossa era e, por
isso, o mais promissor.
Essa vitória no Nepal criou as condições para uma revolução popular nacional e
democrática descrita pelo próprio PCN-M
como uma revolução antifeudal e anti-imperialista. De fato, a revolta urbana generalizada, unindo as camadas empobrecidas da
população com a classe média, forçou todos os partidos políticos do Nepal a se proclamarem “revolucionários republicanos”.
Antes da vitória dos maoistas, outros partidos trilharam o caminho do “combate
pacífico”, na via reformista, investindo suas
esperanças nas “eleições”.
Deliberadamente, o PCN-M escolheu
firmar um acordo conciliatório com esses
retratodoBRASIL 21
partidos que escolheram a via “pacífica”, entre os quais o Partido Comunista do Nepal,
Marxista-Leninista Unificado (MLU), o Congresso Nepalês e outros. Sua avaliação é de
que a agregação desses partidos dá à revolução um mínimo de legitimidade, de forma
que ela não possa ser contestada junto às
massas.
Esse acordo – descrito pelas autoridades das Nações Unidas que o recomendaram como um “acordo de paz” – conferiu
a uma Assembleia Constituinte a responsabilidade de escrever uma nova constituição republicana, democrática e popular. Eleições multipartidárias colocaram o PCN-M
como o principal partido, possibilitando,
dessa forma, a coalizão vitoriosa.
O acordo conciliatório não resolve todos os problemas futuros. Pelo contrário,
ele revela a amplitude deles. Os desafios
que as forças populares revolucionárias enfrentam são gigantescos. Eles foram divididos em cinco blocos – terra, Forças Armadas, tipo de democracia a implantar, federalismo e dependência econômica –, que
serão examinados a seguir.
33
REUTERS/Rupak De Chowdhuri
REFORMA AGRÁRIA
O levante camponês foi gerado pela análise correta do PCN-M sobre a questão agrária e pelas conclusões estratégicas, também
corretas, dela derivadas: a grande maioria dos
camponeses poderia ser organizada em uma
frente unificada e passar à luta armada e à
ocupação das terras para reduzir ou abolir a
renda da terra paga aos proprietários e expulsar os usurários das vilas, etc. O levante
gradualmente se espalhou pelo país e o exército camponês, organizado pelo PCN-M,
infligiu derrotas às Forças Armadas estatais.
No atual contexto de “conciliação”,
duas linhas foram apresentadas pelas forças políticas associadas e representadas no
Parlamento:
• A linha defendida pelo PCN-M, de uma
reforma agrária revolucionária radical, garantindo acesso à terra (e aos meios necessários
para se viver dela) a todos os camponeses
pobres (a grande maioria). Essa reforma, entretanto, não propõe acabar com a propriedade dos camponeses médios e ricos.
• A vaga linha defendida, em particular, pelo
partido Congresso Nepalês, de uma reforma agrária mais “moderada”, que exige, antes da aplicação de novas regras no campo,
o retorno da antiga ordem feudal-usurária
nas áreas que já foram liberadas pela revolta
camponesa.
FORÇAS ARMADAS
Na questão militar, a coexistência das
duas forças armadas (a rebelde e a estatal)
obviamente não pode durar. O PCN-M sugere a fusão. Seus adversários temem (e admitem publicamente) que nessa fusão os
soldados rasos do Exército estatal sejam
“contagiados” pela ideologia maoista e propõem, em vez da fusão, a absurda ideia de
“reabilitar” os integrantes do Exército
maoista, que seriam integrados às Forças
Armadas estatais.
DEMOCRACIA
O grande ponto dos debates para o qual
convergem todas as atenções, no entanto,
refere-se ao tipo de democracia a ser implantada no Nepal: burguesa ou popular. Na
sociedade nepalesa há defensores de uma
fórmula convencional (rotulada rotineiramente como “ocidental”), resumida nos seguintes componentes: sistema multipartidário, eleições, separação formal dos poderes e
proclamação dos direitos humanos e das
políticas fundamentais.
34
Fim da guerra civil: nepaleses comemoram
Os maoistas dizem que os direitos básicos sobre os quais repousa essa forma de
“democracia” colocam o respeito à propriedade privada no topo da hierarquia dos assim chamados direitos humanos. Como
contraproposta, o PCN-M defende que se
dê prioridade aos direitos sociais – direito à
vida, à comida, à habitação, ao trabalho, à
educação e à saúde –, sem os quais não é
possível nenhum progresso social. A propriedade privada não é considerada “sagrada” e seu respeito é limitado à necessidade
de implementação dos direitos sociais.
Em outras palavras, um grupo defende
o conceito de democracia identificado com o
direito santificado de propriedade e
dissociado das questões relacionadas ao progresso social (o conceito burguês e dominante de “democracia”), enquanto o outro
defende a democracia associada ao progresso social.
O debate, no Nepal, não é obscuro, mas
frequentemente polêmico. Entre os defensores da “democracia ocidental” estão revolucionários autênticos. Em suas fileiras há também democratas indubitavelmente sinceros,
mas que não são muito sensíveis às verdadeiras misérias que as classes populares sofrem.
Os maoistas lembram que não desafiam a propriedade camponesa privada nem
mesmo a propriedade capitalista, nacional ou
estrangeira. Não descartam, porém, a nacionalização de propriedades se for considerada
necessária aos interesses nacionais (como a
proibição de bancos estrangeiros imporem
aos nepaleses a integração do país ao mercado financeiro mundial). Eles colocam em
questão apenas as terras e edifícios “feudais”,
que sucessivos reis deram aos seus clientes
quando os autorizaram a dispor das comu-
nidades camponesas. Não contestam os direitos pessoais e um Judiciário independente, responsável por garantir o respeito a esses direitos, e somam a esse programa, sem
reduzi-lo, os direitos sociais. A democracia
popular que eles definem dessa maneira será,
claro, colocada em prática gradualmente com
a intervenção tanto das classes populares
auto-organizadas quanto do Estado.
Com relação ao futuro, obviamente não
há “garantias” que protejam o Nepal, por
exemplo, da tentação de retroceder a um
Estado autocrático ou do não menos provável alinhamento oportunista com o que
parece ser o “possível” para o futuro imediato, com a adesão do PCN-M à linha “moderada” dos seus rivais. Entretanto, que direito há em condenar a experiência a priori,
quando se sabe que as questões levantadas
aqui são objeto de sérios debates – com grande pluralidade de opiniões – dentro do próprio partido?
Uma das novidades do processo em curso no Nepal é que essas análises e o debate
sobre as estratégias a seguir vão além das
ideologias de libertação nacional populistas
do tempo da Conferência de Bandung, de
1955. Os regimes que surgiram na época das
lutas – legítimas e populares – de libertação
nacional na Ásia e na África eram menos avançados. A ideologia sobre a qual a legitimidade do poder repousava não usava o marxismo como referência e foi criada com um
pouco disso um pouco daquilo. Associava
uma leitura do passado grandemente
reinventado, apresentada como sendo essencialmente “progressista” (por meio de
alegadas formas de democracia do exercício
do poder nas sociedades antigas e interpretações religiosas de uma natureza semelhante), e mitos nacionalistas com um pragmatismo dificilmente crítico com relação às necessidades de modernização tecnológica e administrativa. Por isso, o “socialismo” que
caracterizou os regimes de Bandung continua extremamente vago, difícil de distinguir
do controle estatal populista que redistribuiu
e garantiu a “justiça social”.
Os maoistas do Nepal desenvolveram
uma visão diferente. Eles abstêm-se de reduzir a “construção do socialismo” à realização
do atual programa, mesmo na sua máxima
extensão: reforma agrária radical, exército popular, democracia popular. Eles entendem esse
programa como “nacional, democrático e
popular”, que abre o caminho, não mais do
que isso, à longa transição ao socialismo.
retratodoBRASIL 21
FEDERALISMO
As geografias física e humana dos vales
himalaicos são expressas pela extrema diversidade das comunidades camponesas do
Nepal. Não são apenas dois, três ou quatro
“grupos étnicos”, mas uma centena das assim chamadas comunidades. O povo dessas
comunidades quer recuperar o uso de sua terra, expropriada pelos clientes dos generais conquistadores a serviço dos reis. Também quer
ver reconhecida sua dignidade e tratamento
igual. Mas não quer a separação. Esse também é o caso entre as várias comunidades da
Terai (as planícies na fronteira com a Índia),
que recentemente se tornaram o alvo principal da intervenção estrangeira.
A fórmula de uma república federal, defendida pelos maoistas, certamente pode satisfazer as demandas do povo nepalês. Isso não
exclui o perigo de adversários do poder estatal
centralizado manipularem essa fórmula.
DEPENDÊNCIA ECONÔMICA
O Nepal é classificado pelas Nações Unidas como “país subdesenvolvido”. A administração moderna do Estado, dos serviços sociais e o desenvolvimento de uma
infraestrutura moderna dependem da ajuda
externa. O governo em vigor parece ciente da
necessidade de se libertar dessa extrema dependência. Porém, sabe que essa libertação
só poderá ser gradual. A soberania alimentar
não é a principal questão no Nepal, embora
a autossuficiência nessa área esteja geralmente associada a níveis deploravelmente baixos
de consumo. O maior problema é a organização de redes de distribuição mais eficientes
e econômicas que liguem os produtores do
campo aos consumidores urbanos, algo que
traz à tona os interesses dos intermediários.
Um programa que desenvolva a produção
em pequena escala, meio artesanal e meio
industrial, capaz de reduzir a dependência
dos importados, exigirá esforço árduo e tempo para produzir resultados adequados.
Os maoistas propõem um modelo de
desenvolvimento “inclusivo”, ou seja, que
beneficie as classes populares diretamente e
em cada etapa, em vez do modelo indiano de
crescimento associado com um modelo social “exclusivo”, que beneficia apenas 20% da
população e condena os 80% restantes à estagnação, se não ao empobrecimento. Isso
testemunha a escolha de princípios que não
se pode deixar de apoiar. Porém, falta criar
programas que tornem o modelo realidade.
A INFLUÊNCIA EXTERNA
O Nepal revolucionário enfrenta a extrema hostilidade do seu principal vizinho, a
Índia, cuja classe governante teme a contaminação. A revolta endêmica dos Naxalistas
(grupo rebelde de tendência maoista, classificado como “terrorista” pelo Estado indiano) poderia, se tomar como ponto de partida as lições das vitórias obtidas no Nepal,
REUTERS/Gopal Chitrakar
Prachanda toma posse como primeiro-ministro: os maoístas avançam com cautela
colocar seriamente em questão a estabilidade
dos modos de exploração e opressão em
vigor no subcontinente indiano.
Essa hostilidade não pode ser subestimada. Ela é uma das razões da reaproximação militar entre a Índia e os EUA. Ela mobiliza recursos materiais e políticos consideráveis. Entre outras coisas, a Índia financia a
tentativa de construção, no Nepal, de um
partido político hindu alternativo nos moldes do chauvinista BJP indiano, análogo ao
partido islâmico do Paquistão e alhures ou
ao partido budista do dalai-lama. O apoio
dos EUA e de outras potências ocidentais –
Inglaterra em particular – é coordenado por
meio desses projetos reacionários. A cristalização de uma poderosa força política hindu
nepalesa poderá acontecer se as conquistas,
mesmo que modestas, do novo Nepal forem adiadas por muito tempo. Essas intervenções externas poderiam também mobilizar os reacionários nepaleses e provocar movimentos de “secessão”. A assistência externa – sempre com fios, mesmo que invisíveis, amarrados – e o discurso demagógico
sobre direitos humanos e democracia alimentado pela rede de ONGs têm lugar na estratégia do inimigo.
O acordo conciliatório em vigor atrasa a
implementação de um programa de reformas
radical que é a fonte da popularidade do PCNM. Ele encoraja certas tendências – mesmo
dentro das fileiras da liderança política – a se
manterem nos limites do que esse acordo permite, abrindo assim o espaço para a
contraofensiva da reação. Mas não há com o
que se desesperar. Os maoistas reafirmaram
publicamente que as classes populares têm o
direito de se manter mobilizadas e continuar
lutando para que seu programa seja aplicado,
independentemente das deliberações da
Assembleia Constituinte. O PCN-M não caiu
na armadilha eleitoral que busca votos acima
de tudo. Ele distingue cuidadosamente o que
se chama de base social (“grupo social”), composta pela maioria (camponeses pobres, trabalhadores urbanos das classes populares, estudantes e jovens, mulheres e setores patrióticos
e democráticos das classes médias), da sua base
eleitoral (“grupo eleitorado”), a qual, como
todas as bases eleitorais, continua volátil. Transformar essa base social popular em bloco social
organizado governante, uma alternativa ao bloco feudal-usurário destituído do poder, é o objetivo da luta de longo prazo do PCN-M.
Tradução PAULO CUNHA.
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Reportagem:
PARAISÓPOLIS
UM LUGAR COMO POUCOS
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retratodoBRASIL 21
Encravada em meio a mansões e prédios de alto padrão,
a segunda maior favela paulistana, habitada por 80 mil
pessoas, é um local em que a violência é menor que a de
regiões bem mais ricas | Texto Léo Arcoverde Fotos Carla Bispo
Um mar de mansões cerca Paraisópolis, o lugar que, no início de fevereiro, apareceu no
noticiário policial das TVs do Brasil inteiro.
São casarões medindo metade de um quarteirão e arranha-céus de 30 andares, com apartamentos de pelo menos 150 metros quadrados. Imóveis que valem até 2,5 milhões de
reais. Que sufocam a favela de quase 18 mil
casas de alvenaria, boa parte sem revestimento, onde vivem 80 mil pessoas envolvidas
num manto cor de tijolo, de um vermelho
forte nas horas de maior incidência solar.
As mansões e apartamentos caros intimidam a segunda maior das 1,6 mil favelas
paulistanas, que é como um pedaço do Rio
de Janeiro, onde convivem dois brasis frente
a frente: o dos 10% dos brasileiros que detêm
90% da renda nacional e o dos 90% dos brasileiros que detêm os 10% restantes. Abismo
social só parecido com o que conhecem os
cariocas na junção Rocinha–São Conrado ou
Dona Marta–Ipanema.
Paraisópolis fica a três minutos do estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi,
casa do São Paulo Futebol Clube, e a menos
de mil metros do Palácio dos Bandeirantes,
sede do governo paulista e residência de José
Serra. Está encravada numa faixa extensa do
terreno ligeiramente irregular que separa as
avenidas Giovanni Gronchi e Morumbi.
Está, ainda, a dez minutos do shopping
Cidade Jardim, o mais luxuoso da cidade,
onde a “dondoquice” paulistana que não abre
mão de andar com seus cãezinhos a tiracolo
faz uso de um fraldário canino – o primeiro
do mundo!
Nas portas das casas, barulhentas, as roupas justas, curtas e em tons berrantes, meninas que já são mães e mães que mal sentiram
o gosto da adolescência gastam os olhos com
o movimento, um vaivém intermitente que
por aqui chamam de furdunço. E como tem
gente na rua! Com biótipo nordestino, quase
todos têm a mesma cor, ora mais claros, ora
mais escuros. A pele parda de um marrom
que, nos mais velhos, parece couro rachado –
sinal de herança dos anos vividos na caatinga
do sertão. Mulheres com no máximo um
retratodoBRASIL 21
metro e sessenta e homens igualmente de
estatura mediana, todos se sentam às portas
das casas, que se multiplicam por vielas com
relógios de luz aos magotes presos à parede.
É casa demais para pouco espaço. A densidade populacional em Paraisópolis é alta: mil
habitantes por hectare – cerca de 10 metros
quadrados por pessoa, – contra trinta habitantes por hectare no Morumbi – mais de
300 metros quadrados para cada morador.
As crianças, olhos vivos, correm pelo meio
de ruas sem calçadas que levam nomes de
pensadores do século XIX, como o francês
Ernest Renan e o inglês Herbert Spencer. Espaços de lazer praticamente não existem: há
um único campo de futebol, o do Alemão,
na rua Melchior Giola, parte central da favela.
Não existe uma única praça em toda a
Paraisópolis.
A favela é a queridinha do terceiro setor:
nada menos que 54 ONGs atuam lá. Só o
programa de voluntários do Hospital Israelita
Albert Einstein, um dos mais disputados,
realizou 300 mil atendimentos a crianças e
adolescentes em 2008. Os pacientes são recebidos num complexo de 4,5 mil metros quadrados, com ambulatório médico, salas de fisioterapia e fonoaudiologia, biblioteca,
brinquedoteca, auditório e quadra
poliesportiva.
Os colégios Porto Seguro, Pio XII e Santo Américo, a Graded School (que construiu e
montou uma biblioteca), a Porto Seguro Seguradora e a fabricante italiana de computadores Arce também estão na favela. Tem até
instituição de mãe de atriz famosa: a ONG
Florescer, criada há 20 anos pela empresária
Nádia Rúbio Bacchi, mãe da atriz Karina
Bacchi, da TV Record. Atende 900 crianças e
emprega mulheres da comunidade.
A HISTÓRIA
Nem sempre foi assim. Paraisópolis cresceu ignorada pelo poder público e, durante
décadas, foi indesejada por seus vizinhos abastados. O começo de sua história se dá nos
idos da década de 1920, quando a então Fazenda do Morumbi foi loteada em 2,2 mil
terrenos. A ideia inicial era destinar aquela área,
a exemplo de outras na região, a investidores
estrangeiros e brasileiros endinheirados. Mas
o negócio não vingou. Entre os motivos estava o fato de o local ser muito escondido se
comparado às partes do Morumbi que prosperaram. “Era a época do ciclo do café, não
existiam ali as grandes avenidas que encontramos hoje, como a Giovanni Gronchi”, lembra Nelson Baltrusis, urbanista e autor de uma
dissertação de mestrado e de uma pesquisa
de doutoramento sobre Paraisópolis.
“Naquela época, era muito difícil o acesso
àquela parte da cidade, só dava para atravessar o
rio Pinheiros de barco. Existiam proprietários
estrangeiros, proprietários que tinham morrido
e cujos lotes estavam no espólio. Enfim, existia uma infinidade de situações jurídicas que
contribuíram para a formação daquilo que conhecemos hoje por Paraisópolis.”
O resultado? O local permaneceu desocupado por mais de 20 anos, até ser invadido
por migrantes nordestinos atraídos pela promessa de emprego na construção civil, o que
deu início ao que Baltrusis classifica como a
“segunda etapa” da ocupação. “É quando
ocorre o desenvolvimento do entorno e a instalação de um polo industrial na zona sul,
sobretudo na região de Santo Amaro.” Isso
até os anos 1960 e meados da década seguinte, época em que 1% dos paulistanos morava
em favelas (hoje são 16%, percentual que em
números absolutos significa que nada menos que 400 mil famílias – entre 1,6 milhão e
2 milhões de pessoas – vivem em favelas).
A partir de então, não é mais possível
mudar-se para Paraisópolis por meio de ocupação. De duas, uma: ou se muda para a casa
de algum parente ou conhecido ou se compra ou aluga um imóvel, um esquema que
envolve transações informais, feitas ao arrepio da lei, uma vez que os imóveis são considerados irregulares. “Os contratos, quando existem, não são registrados num cartório de imóveis. Existe um documento que
descreve a transação realizada entre as partes,
com firmas reconhecidas em cartório”, diz
Baltrusis. São documentos comerciais váli37
dos, mas que “não têm a força de um título
registrado no cartório”.
Nessa época, Paraisópolis começou a
despontar como grande favela. A prefeitura de São Paulo, não tendo como combater
o crescimento desordenado da área, oficializou seu nascimento pela Lei nº 700.198,
de 1968. No fim do mesmo ano, começaram os arruamentos.
Administração após administração, o local
foi recebendo migalhas de melhoramentos. Na
década de 1970, sua população já ultrapassava a
marca dos 20 mil habitantes. É a época em que
viviam em São Paulo perto de 600 mil nordestinos – hoje são 3,6 milhões.
A “terceira etapa” da ocupação de
Paraisópolis, segundo Baltrusis, compreende os anos 1980 e 1990 e está baseada, sobretudo, em dois fatores: 1) a falência do Banco
Nacional de Habitação (BNH), em 1986, “que,
por mais críticas que possamos fazer, era o
órgão responsável pela política habitacional
do País”, e 2) a remoção da favela Água Espraiada, localizada próximo dali, na margem
oposta do rio Pinheiros, na década de 1990.
No local da antiga favela surgiu um centro
comercial desses que se costuma qualificar
como “de primeiro mundo”. “Restou àquele
pessoal todo ir para Paraisópolis ou para as
áreas de manancial próximas às represas, na
zona sul”, explica Baltrusis. Com um detalhe: os caminhões da própria prefeitura ajudaram esses moradores com a mudança.
O LUGAR
Hoje Paraisópolis ocupa uma área de 799
mil metros quadrados (o equivalente a 80
campos de futebol). Cerca de 90% de seus
domicílios estão em situação irregular. A favela é dividida em cinco áreas: Antonico, Brejo,
Centro, Grotão e Grotinho. Alguns mapas
incluem o Brejo e o Centro numa mesma
região, repartindo, assim, a favela em quatro
grandes pedaços. Trata-se de uma forma de
simplificar a descrição do território. É uma
medida mais formal do que qualquer outra
coisa, já que os moradores do Brejo sabem,
e afirmam, que não vivem no Centro, e viceversa. E as diferenças de uma área para outra,
de fato, existem.
O Antonico se distingue por ser a maior
delas e por abrigar, por exemplo, a sede do
programa do Einstein, o mais badalado trabalho social e assistencial desenvolvido em
toda Paraisópolis. A região dá nome ao
Córrego do Antonico, que cruza praticamente
toda a extensão da favela, mais ou menos
38
paralelamente ao curso da avenida Giovanni
Gronchi, antes de passar bem próximo ao
estádio do Morumbi e seguir em direção ao
rio Pinheiros.
É a região de maior visibilidade em
Paraisópolis para quem passa diariamente pela
Giovanni Gronchi. Faz divisa, praticamente,
com outra favela muito conhecida, a do Jardim Colombo, que ocupa uma área pequena
se comparada à de Paraisópolis, do outro lado
da avenida, beirando o muro que cerca o
Gethsêmani, um dos três cemitérios nobres
que ficam próximos um do outro naquela
região (os outros dois são o Cemitério da Paz
e o Cemitério do Morumbi). Um local para
gente rica, onde foi enterrado, por exemplo,
há dois anos, o corpo de Octávio Frias de
Oliveira, dono do jornal Folha de S.Paulo.
O Brejo fica no lado oposto ao Antonico
se tomarmos como referência a Giovanni
Gronchi. A área abriga, na rua Iratinga, a
sede da ONG Florescer. É o lugar da favela
mais próximo do Palácio dos Bandeirantes, e sua vizinhança se difere da do Antonico
em termos arquitetônicos: é cercada por
mansões, em vez dos edifícios de alto padrão que ladeiam a Giovanni Gronchi. É
através do Brejo, ainda, tomando a rua Flávio Américo Maurano, que se tem acesso à
avenida Morumbi.
Perto do Brejo, moradores de Paraisópolis fizeram de um terreno baldio, situado
no fim da rua Rudolfo Lutz, um campo de
futebol. Não se trata, porém, de um espaço
público de lazer. É uma área privada. Alguns contam que pertence a um “figurão”
do Morumbi que cercou o lugar para conter
o avanço da favela. O fato é que, há mais de
dez anos, enquanto não se constrói nada, ali
é o lugar das peladas de fim de tarde e fins de
semana daqueles que não jogam no campo
do Alemão, que fica próximo, no Centro de
Paraisópolis, ou são loucos por futebol e
batem bola nos dois lugares.
O Centro é onde Paraisópolis “ferve”.
Lugar de intenso movimento durante o dia e
a noite, a área concentra a maior parte dos 3,1
mil estabelecimentos comerciais existentes na
comunidade. Lá se deu a inauguração de uma
filial das Casas Bahia, maior rede de varejo de
móveis e de eletrodomésticos do Brasil, no
fim do ano passado. O evento contou com a
presença de Michael Klein, proprietário da
rede, e do prefeito de São Paulo, Gilberto
Kassab. A loja (a primeira das 550 da rede a
ser instalada em uma favela) ocupa um terreno de 1,5 mil metros quadrados na rua Ernest
O centro, visto a partir da Avenida
Giovanni Gronchi
retratodoBRASIL 21
Renan, principal via comercial de toda Paraisópolis, e fatura 1 milhão de reais por mês –
300 mil reais a mais que o faturamento, por
exemplo, da filial situada no shopping West
Plaza, na Barra Funda, na zona oeste
paulistana.
No Centro também está a sede da União
dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, associação de bairro presidida até o ano
passado por José Rolim, vereador pelo PSDB
durante a legislatura passada (2005-2008), que
não conseguiu se reeleger no mais recente pleito eleitoral. Hoje, em seu lugar, preside a associação seu antigo vice, Gilson Rodrigues,
24, importante liderança estudantil da região
e articulador do processo de criação de grêmios em escolas de Paraisópolis.
O Grotão é, de longe, a região mais pobre. Sua aparência é bem diferente da do
Antonico, do Brejo ou do Centro. Lá, o
amontoado de casas e de sobrados sem revestimento dá lugar a barracos, aos montes,
que se avolumam à medida que nos distanciamos do Centro e nos aproximamos do
muro que separa a favela do Cemitério do
Morumbi. São construções de madeira e lata,
ladeadas pelo esgoto que corre a céu aberto.
Na parte mais funda do Grotão, o arruamento é precaríssimo, bem diferente do de
outras áreas, onde há ruas extensas, retas e
relativamente largas, como a Ernest Renan,
a Iratinga e a Pasquale Gallupi, que cortam
Paraisópolis de cima a baixo, acompanhando o curso da rua Giovanni Gronchi.
É no Grotão que resta uma única e considerável área não construída, um terreno baldio, irregular, onde os moradores do entorno não permitem que ocorram novas invasões. Têm medo de que uma eventual ação
de remoção, causada por uma ocupação recente, dê motivo para que todos os que vivem no entorno, mesmo já há muito mais
tempo, sejam prejudicados.
A rua Pasquale Gallupi é o limite entre o
Grotão e o Grotinho. São áreas vizinhas e
parecidas, sendo a segunda uma baixada, que
foi transformada, de uns anos para cá, num
imenso canteiro de obras. Lá está o Centro
Educacional Unificado (CEU) Paraisópolis,
inaugurado pela prefeitura em dezembro
passado. Com mais de 10 mil metros quadrados de área construída, num terreno com
25,4 mil metros quadrados, a obra impressiona pelo tamanho. Ao seu lado, seguem em
curso as obras de uma Escola Técnica Estadual (Etec). Num terreno vizinho, homens
trabalham erguendo prédios da Companhia
retratodoBRASIL 21
39
A FAVELA NA TV PROTESTOS CONTRA A AÇÃO DA POLÍCIA FIZERAM PARAISÓPOLIS
APARECER NAS TELINHAS DE TODO O PAÍS
A cronologia dos acontecimentos é conhecida. Em 2 de fevereiro, um grupo cerca de 40
pessoas entrou em confronto com a Polícia Militar por volta das 17h, na avenida Giovanni
Gronchi. Os manifestantes queimaram pneus, sacos de lixo e pedaços de madeira,
formando barricadas e amarrando postes com correntes para interditar as vias de
acesso à favela. Pelo menos oito veículos foram depredados, e seis adultos e três
adolescentes (apenas um com passagem anterior pela polícia, por furto), presos. O País
inteiro acompanhou tudo pela TV.
A razão do quebra-quebra teria sido a morte de Marcos Porcino, de 25 anos, morador da
favela e foragido desde setembro do presídio Franco da Rocha I (na região metropolitana de São Paulo). No dia anterior, por volta das 12h30, uma viatura policial deparou
com dois veículos, um Stilo roubado e um Palio Weekend, em alta velocidade e na
contramão, na rua Taubaté, próximo ao Cemitério do Morumbi. Os policiais barraram o
Stilo fechando a rua. Houve troca de tiros e Porcino morreu. Seu comparsa, Antônio
Galdino de Oliveira, de 24 anos, que dirigia o Palio, foi preso por porte ilegal de arma.
Como ele é cunhado do mandachuva do tráfico local, Francisco Antonio da Silva, o
Piauí, o episódio causou alvoroço entre os delinquentes de Paraisópolis. A Polícia
Militar suspeita que o próprio Piauí, um dos líderes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), possa ter desencadeado a reação violenta de dentro da penitenciária Nestor Canoa, em Mirandópolis, interior do estado. Ele cumpre pena desde
agosto do ano passado por sequestro, receptação, roubo e falsidade ideológica.
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), uma
versão do governo paulista das Cohabs existentes Brasil afora.
UMA MULHER
Cabelo ligeiramente grisalho preso na altura da nuca, óculos de armação preta com
uma corrente prateada presa às pontas das
duas hastes. Clara Ana da Silva, 60, moradora
da rua Herbert Spencer, no Antonico, está sentada numa cadeira do lado esquerdo da porta
da União dos Moradores e do Comércio de
Paraisópolis. São quatro horas da tarde. Atarracada, um metro e sessenta, se tanto, branca,
pele castigada pelo tempo e pelo sol, bermuda de jeans azul-quase-branco de tanta lavagem, blusa de algodão azul-marinho com listras cor-de-rosa, unhas dos pés e das mãos mal
pintadas de cinza, ela diz estar esperando a hora
da aula do programa de alfabetização de jovens
e adultos. “Faz seis meses que comecei a estudar e já aprendi a escrever meu nome. Ainda
não sei ler nem escrever, mas vou aprender!”,
diz, entusiasmada.
Nascida no município de Camocim de São
Félix, região de Caruaru, agreste pernambucano, Clara diz não lembrar exatamente em que
ano veio para São Paulo. “Tive muita sorte...
Cheguei num domingo, na segunda fui trabalhar no Palácio dos Bandeirantes. Mexia com a
máquina de lavar louças.” Pela explicação – de
que oito meses depois se casou com um porteiro do Palácio e um ano depois teve seu filho
mais velho, que hoje tem 33 anos –, Clara chegou provavelmente no ano de 1974. Desde
então, jamais morou fora de Paraisópolis. “Meu
marido e eu não tínhamos condições de pagar
aluguel. Eu já morava aqui com uma tia e dois
primos, ele também.”
40
Fala daquele tempo com nostalgia, elogiando o lugar. “Daqui até lá em cima, na
Giovanni”, ela aponta na direção da avenida
do estádio do Morumbi, “tinha um gramado bonito, não havia nenhuma dessas casas.
Quando cheguei, era difícil achar casa de alvenaria... Tudo barraco de madeira, mas não tão
colado um no outro”, diz. Clara ia a pé de casa
para o Palácio dos Bandeirantes. “Naquele
tempo demorávamos quase uma hora, não
tinha ônibus nem perua. Estavam começando a fazer as ruas.” Logo que se casou, Clara
deixou a casa da tia para morar, com o marido,
na Pasquale Gallupi, transversal da rua em que
mora hoje. Daí, foram aparecendo os filhos.
Precisavam de uma casa maior. Clara fala
da sorte mais uma vez. “Nunca fiquei sem
trabalhar. Depois de sair do Palácio, trabalhei nove anos numa casa de família e dez
anos em outra, aqui no Morumbi. Meu companheiro, esperto que é para negócio de dinheiro, nunca ganhou salário mínimo. Sempre deu um jeitinho de tirar um pouco mais.”
Mudaram-se para a Herbert Spencer, casa de
quintal grande, prevendo o futuro, quando
os filhos começassem a pensar em se casar.
“Hoje, moramos meus quatro filhos e eu,
tudo no meu quintal. Dois casados e dois
comigo.” A casa vale hoje, certamente, mais
de 60 mil reais.
Ao falar do marido, Clara mostra uma
pontinha de ressentimento – “Não coloca o
nome dele aí, não, faz poucos dias que ele me
deixou.” – e de arrependimento: “É que eu
desfiz um negócio... E ele é doido por dinheiro. Estava para comprar uma casa, quarto e
banheiro, na Melchior Giola. Queria se separar, só pode! Comprar uma casa sem me dizer nada? Peguei ele no pulo. Quando o
dono da casa foi lá buscar o dinheiro, tomei
os 14 mil reais que ele tinha guardado. Que
desaforo!” E ele volta? Mora sozinho hoje?
“Se eu não tivesse ficado com o dinheiro, acho
que voltava. Hoje, não sei não. Está morando só, sim. Se fosse com outra, eu ia lá e
quebrava tudo!”
Quatro e meia, hora de começar a aula, e a
professora está esperando.
OUTRA MULHER
São dez horas da manhã e Aurenice Soares, a Nice, 46, está voltando da mercearia
Cremel – segundo maior supermercado da
favela – para casa, perfazendo uns 15 minutos de caminhada e carregando em cada mão
três sacolas plásticas com frutas dentro. Depois de deixar as compras sobre a mesa da
cozinha, sem fechar a porta de casa, senta-se
num banquinho, de costas para o espelho
que até dias atrás fazia parte de seu salão de
beleza. “Se eu fechar, não param de gritar meu
nome, não consigo ter paz... Ô, vizinhança
para me encher o saco!”
A casa, na rua Iratinga, no Brejo, tem
fachada verde, porta envernizada com janelinha cinza e vitrô com cortina branca bordada
com ursinhos marrons e fundo verde, tudo
combinando. É a quarta casa do lado direito
da viela Vila Rica, número 10, medindo 2,5
metros de largura por 5 metros de comprimento. São dois andares, sendo o de baixo
dividido em dois cômodos (sala e cozinha)
por outra cortina; o banheiro e o quarto,
onde Nice dorme com o marido, Benício
Duarte, pedreiro, ficam em cima, onde ela
também encontra espaço para a máquina de
lavar roupa.
Nascida em Jequié, sudoeste da Bahia, Nice
mora há 18 anos em Paraisópolis. Chegou a
São Paulo aos 9 anos, em meados da década
de 1960, junto com a irmã Mariovalda e a tia
Zefa. Instalaram-se no Capão Redondo, bairro
da zona sul, na rua Henrique Reichman. “Fomos os primeiros moradores dessa rua, onde
até hoje 80% das pessoas de lá são da minha
família.” O bairro fica a dez minutos de
Paraisópolis e, de quando em quando, Nice
visita seus familiares.
Casada pela primeira vez aos 14 anos, já
fez quase de tudo. Foi babá, diarista,
governanta, chapeira, culinarista, chocolateira,
açougueira, gerente de rede de restaurantes,
empresária (era dona de banquinhas de
churros), vendedora de cocada e cabeleireira.
“Só não roubei porque nunca tive a chance de
pegar o que é de rico, porque dos pobres não
tem graça, não...” Chama o que faz hoje de
retratodoBRASIL 21
“manutenção de cabelo em domicílio”. Mas
só para conhecidos.
O amor a levou para Paraisópolis. Seu segundo marido, que ajudou Nice a criar seus
três filhos, todos fruto do primeiro casamento, pediu para que ela se mudasse. “[Meu primeiro marido e eu] já estávamos separados na
época. Ele me deixou sem dizer o motivo. Eu
amava aquele homem de uma forma... Não
era amor, era doença, queria estar respirando o
mesmo ar que ele”, diz. O motivo da mudança? Esse homem foi o primeiro perueiro de
Paraisópolis e pediu que Nice fosse morar numa
casa da rua Rudolfo Lutz, porque assim ele
poderia comer na casa dela e sempre ver as crianças, as quais considerava como filhos.
Naquela época ela morava com os filhos
no bairro de Artur Alvim, na zona leste. “Era
vizinha dos meninos do Raça Negra [grupo
de pagodeiros muito famoso na década de
1990].” Apartamento próprio, carro na garagem, um Gol do ano quitado. “Foi quando
ele saiu de casa. Antes, moramos muito tempo de aluguel no Brooklin, numa das casas
de seu Nicola, pai do Rivelino, aquele ex-joga-
dor, sabe?” Nice conta que, logo depois da
separação, o que mais a torturava era, ao conversar com o ex pelo telefone, receber como
resposta: “Você não merece saber o motivo.
Amo você e os nossos filhos”. “E ele não
tinha outra!”, diz ela.
Depois de muito tempo, ela descobriu o
motivo: aquele homem que a ajudou tanto
na vida tinha se tornado pastor da Assembleia
de Deus. “Ele agora está vivendo em Taboão
da Serra, onde fica a tal igreja. Não ligo mais
para ele.” Nice está casada pela terceira vez e há
seis anos mora com o atual marido.
A RELIGIÃO
O Nordeste – de onde vieram os moradores de Paraisópolis – sempre foi e continua sendo, proporcionalmente, a mais católica dentre as
cinco regiões brasileiras. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
que analisa o crescimento das chamadas igrejas
neopentecostais no País entre 1940 e 2000, aponta: 70 anos atrás, 98,9% dos nordestinos se declaravam católicos apostólicos romanos e 0,7%
da população se dizia evangélica.
Hoje, a predominância da igreja romana não é tão grande: 79,9% dos nordestinos se declaravam católicos no censo de
2000, o último desse tipo realizado pelo
IBGE, ante 10,3% de evangélicos assumidos. Apesar do salto espetacular no Nordeste, as neopentecostais não obtiveram a
expansão, em número de fiéis registrada,
por exemplo, na região Norte, onde praticamente 20% da população se declara evangélica, ou no Centro-Oeste, em que 18,9%
se dizem seguidores do protestantismo.
Esses números servem de base para entender por que hoje, em Paraisópolis, mais de
2,5 mil praticantes assistem às três missas
dominicais celebradas pelo padre Luciano
Borges Basílio, na Paróquia São José. “Como
99,9% dos moradores daqui da região são
nordestinos, há uma predominância muito
grande de católicos”, explica Basílio, carioca de
34 anos que chegou a Paraisópolis como
diácono, no fim de 2006, a mando do bispo
diocesano dom Emílio Pignolli.
De acordo com ele, há, em toda Paraisópolis, oito templos católicos e um nono sen-
Missa na Paróquia São José, o maior templo religioso de Paraisópolis, comandada pelo Padre Luciano: lota aos domingos
retratodoBRASIL 21
41
do construído. Fora os 32 círculos bíblicos
espalhados nas cinco regiões da comunidade.
Trata-se de grupos, explica o padre, que fazem
reuniões e até celebrações, realizadas por sacerdotes da localidade, sem que seja necessário ao
fiel se deslocar até um dos templos. São os
maiores aliados da igreja, junto com a tradição
católica do povo nordestino, acentuada ainda
mais naqueles oriundos do meio rural, na disputa com os protestantes.
Os templos pentecostais, apesar de tudo,
já são mais de 50 em toda a favela. Como em
outros lugares, estão instalados em qualquer
brecha, no que já foram pequenas lojas ou
reduzidos galpões. O maior deles fica na rua
Ricardo Avenarius, justamente a mesma da
Paróquia São José, que simbolicamente é o
coração do catolicismo na comunidade. É uma
Assembleia de Deus, um templo tido como
de médio porte: comporta 150 pessoas sen-
tadas, durante um culto, tranquilamente. Só
nessa mesma rua, há mais duas Assembleias
de Deus.
O problema para a Igreja Católica é que o
distrito de Campo Limpo, onde está a maior
parte de Paraisópolis – o restante pertence ao
distrito do Butantã –, faz parte da zona sul
paulistana. Nela, as pentecostais, apesar de tão
divididas e pulverizadas, ou também por isso,
são muito fortes. Basta dizer que o Templo
Maior de São Paulo, tida como “segunda sede
mundial” da Igreja Universal do Reino de
Deus, do bispo Edir Macedo, fica na avenida
João Dias, no bairro de Santo Amaro, a poucos minutos da favela.
Na hierarquia da Igreja Universal, o Templo Maior é menos importante apenas que o
chamado Templo da Glória do Novo Israel,
sede mundial da igreja, localizado no bairro de
Del Castilho, zona norte do Rio de Janeiro.
A VIOLÊNCIA
Paraisópolis não é um lugar violento.
Pelo contrário: levantamento publicado pelo
jornal Folha de S.Paulo em 6 de agosto de
2008, com dados referentes ao segundo trimestre daquele ano, mostra que a região onde
a favela se localiza registrou índices de
criminalidade abaixo dos da maioria dos
bairros nobres da cidade.
Os dados referentes ao 89º Distrito Policial (DP), no Portal do Morumbi, distrito
policial que atende a região de Paraisópolis,
revelam que, nos itens furtos e roubo a banco, a área está acima da média da cidade. Entre
abril e junho do ano passado, Paraisópolis
registrou 317 furtos (15 acima da média) e
um roubo a banco, crime de rara ocorrência
no restante de São Paulo.
Levando em consideração a soma do número de ocorrências, o levantamento do se-
Grotão, a área mais depauperada: no local sem arruamento, barracos de madeira em meio ao esgoto a céu aberto
42
retratodoBRASIL 21
EM MEIO À RIQUEZA, PRÓXIMA DO PODER PARAISÓPOLIS É CERCADA PELO RICO
BAIRRO MORUMBI E ESTÁ NÃO MUITO LONGE DA SEDE DO GOVERNO PAULISTA
Alguns números básicos da grande
favela paulistana
• 80
mil habitantes
• 17,7
mil domicílios
• 799
mil m2 de área total
• 3,1 mil estabelecimentos comerciais
• 90% dos lotes são irregulares
• 20 mil reais custa uma casa com
quarto, sala e banheiro
Ilustração Alex Silva
• 614
gundo trimestre do ano passado mostra que
o 89º DP ficou abaixo da média registrada no
município, com 728 ocorrências, enquanto a
média da cidade foi de 966. O 89º DP tem
menos crimes que os distritos que atendem
os Jardins (1.492), Santa Cecília (1.073), Monções (1.697), Paraíso/Vila Mariana (1.136), Vila
Sônia (1.447), Ibirapuera (1.446), Perdizes
(2.865), Pinheiros (2.359), Santo Amaro
(2.424), entre outros.
Segundo Celso Lahoz Garcia, delegadoassistente do 89º DP, o maior problema de
Paraisópolis é o tráfico de drogas. “Faz um
ano e meio que estou neste distrito. Desse
tempo para cá, o que mais tem ocorrido é a
descoberta, pela polícia, de várias bocas de
fumo dentro de Paraisópolis”, diz.
De acordo com ele, não há incidência
maior de uma droga sobre outra. “É tudo,
maconha, cocaína, crack... De resto, não tem
muito coisa. Para uma população de 80 mil
pessoas, podemos afirmar que Paraisópolis é
um lugar tranquilo.”
É comum se atribuir à figura de Juarez,
pernambucano de Garanhuns, hoje com
mais de 60 anos, o fato de, há até bem pouco tempo, Paraisópolis ter sido ser um lugar ordeiro e intransponível para o tráfico
de drogas. É o que garantem os moradores
mais antigos.
Retrato do Brasil colheu relatos de gente
com mais de 30 anos de Paraisópolis que
topou conversar sobre o assunto desde que
na condição de anonimato. Por dois motivos: eles temem represálias tanto por parte
de antigos desafetos de Juarez quanto de
retratodoBRASIL 21
reais por mês é a renda média
familiar
• 25% dos adultos estão desempregados
Fontes: Datafolha, Pesquisa Programa Einstein na Comunidade
de Paraisópolis, Secretaria Municipal de Habitação e União dos
Moradores de Paraisópolis
seus amigos e admiradores, que existem aos
montes na favela até hoje.
E quem é esse tal Juarez? No 89º DP, não
consta um único mísero registro que o
desabone. Um artigo do jornal O Estado de S.
Paulo, de 9 de fevereiro passado, fala um pouco a seu respeito: “Durante a década de 1990,
um ladrão de cargas e justiceiro chamado
Juarez foi o responsável por manter a ordem
informalmente na favela à base da violência.
Juarez também mantinha o tráfico de drogas
afastado de Paraisópolis. Em 2003, integrantes do PCC [Primeiro Comando da Capital]
conseguiram expulsá-lo, e também seus aliados, da região. Foi então que Piauí assumiu o
controle do tráfico”.
Informações confirmadas, em parte, pelos antigos moradores. Eles afirmam que
Juarez teria, sim, envolvimento com algum
tipo de crime, mas muitos não confirmam a
versão de que, paralelamente à figura do justiceiro, existia a do ladrão de cargas. O fato é que
Juarez impôs, à mão de ferro, durante décadas, uma espécie de “cartilha de bons costumes” a que os moradores de Paraisópolis não
podiam deixar de obedecer.
As histórias são muitas. “Se um homem
batesse na mulher e ela contasse ao Juarez, ele
dava um prazo de 12 horas para o sujeito
pagar. Podia se esconder onde fosse que a
turma do Juarez o encontrava e lhe quebrava
as costelas, para aprender a não encostar a mão
numa mulher”, diz uma moradora, que chegou a ser casada com um dos integrantes do
grupo de justiceiros. “Apanhava de chicote de
couro cru trançado que o Juarez usava!”, ela
completa, entusiasmada. Juarez morava no
Centro de Paraisópolis, na rua Ernest Renan,
bem próximo ao campo do Alemão. Era sobrinho de outra figura muito conhecida na
favela: Luiz Caboclo, também natural de
Garanhuns, tido por muitos como o mais
antigo morador de toda a Paraisópolis, hoje
falecido. Seria um dos filhos de João Caboclo,
irmão de Luiz.
Antigos moradores contam, também,
que, até ter sido expulso da comunidade por
traficantes ligados ao PCC, Juarez era um bemsucedido comerciante dentro de Paraisópolis.
Possuía uma mercearia de médio porte e uma
adega. “Se faltasse gás em casa e a gente fosse
pedir pro Juarez, ele dava, sem nenhum problema. A gente recebia até cesta básica se a
situação estivesse muito preta”, diz outra
moradora. E um ponto que ninguém discorda: a mão de ferro do bando justiceiro comandado por Juarez pesava mais forte ainda
se o caso fosse de roubo dentro da favela.
“Podia ser de uma roupa no varal. Se a
pessoa pegasse o que fosse alheio, o couro
comia”, conta um morador. Juarez, dizem
ainda, não tolerava o comércio de drogas dentro de Paraisópolis. “A época do Juarez...
Aquilo, sim, eram tempos de glória, se vivia
em paz aqui”, diz a mesma moradora, que
manteve um relacionamento com um integrante do grupo.
Dentre todos os relatos, somente duas
controvérsias: a cobrança de uma taxa por
parte do grupo, em troca da tranquilidade,
que não podia, em hipótese alguma, ser
sonegada, e o irmão de Juarez, Giovani, integrante do grupo e bastante violento, sobretudo quando pedia algo, um cigarro que
fosse, a um morador. “O Juarez nunca usou
do poder que tinha para humilhar as pessoas. Agora, o irmão dele não prestava”, lembra um morador.
A saída de Juarez da favela, em 2003, não
foi um processo rápido. Teria ocorrido da
mesma forma que acontece no Rio de Janeiro, onde, em determinada região, uma milícia
armada leva vários dias, ou meses, para tomar
o controle da comunidade das mãos do grupo adversário. Nessa guerra, nenhum morador duvida, Juarez não foi morto.
“Ele está vivo, vinha aqui até um tempo
desses. Faz uns dois anos que não temos
notícias dele”, contam. Mas a maior parte do
seu grupo não teve o mesmo fim. Entre os
que morreram, um dos primeiros foi
Giovani. Dizem que ninguém chorou por
sua morte.
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Clima:
O aquecimento global
pode acabar com a calota
de gelo do polo Norte,
disseram alguns cientistas.
Agora, descobriu-se que o
fenômeno contribuiu para
que a capa gelada voltasse
a crescer | Verônica Bercht
Em novembro de 2007, no fim do verão
ártico, uma enxurrada de notícias revelou ao
mundo que o derretimento da calota polar
havia atingido um ponto nunca visto, pelo
menos, nos últimos 200 anos. Cientistas
afirmaram que, com o aquecimento global
em curso, o mar Ártico ficaria livre de gelo
muito antes do que estipulavam as previsões mais pessimistas lançadas pelo IV Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em 2004. Houve até um cientista que previu que isso acontecerá em 2013!
As consequências, disseram eles, serão
trágicas, e seus efeitos alcançariam todo o
planeta: em poucas décadas, a neve das montanhas, as geleiras das regiões polares e todo
o gelo depositado sobre o continente antártico, no outro polo, derreteriam, desaguando nos mares. O nível dos oceanos subiria
1,8 metro até o ano de 2100, submergindo
cidades inteiras e pondo em risco metade da
população humana. É bom lembrar que o
gelo das calotas polares, que são a água do
mar congelada, flutua sobre o mar e, por
isso, não contribuirá para a elevação do nível
dos oceanos.
Mas, para a surpresa desses cientistas, no
verão de 2008, a calota polar ártica voltou a
crescer – timidamente, é verdade –, contrariando as estimativas de diminuição contínua.
No inverno 2007-2008 (no hemisfério Norte, a estação vai de novembro a maio), alguns estudos que acompanham continuamente o comportamento do clima no mar
Ártico registraram mudanças significativas.
44
O PARADOXO
DO ÁRTICO
E, no inverno em curso, a quantidade de
gelo que se formou até fevereiro superou
aquela dos dois invernos anteriores.
Mas o que aconteceu para que ocorresse
uma mudança tão inesperada? Não é fácil
responder. Um artigo publicado no fim do
ano passado na prestigiada revista científica
inglesa Nature Geoscience, assinado por Kjetil
Vage e Robert Pickart, do Woods Hole
Ocanographic Institution, sobre o qual reinou o gélido silêncio da grande imprensa,
ajuda a dar um primeiro passo na direção
das respostas. Ele mostra um enorme paradoxo: o grande derretimento de 2007 foi
fator fundamental para o recrudescimento
do frio no ano seguinte.
FLUTUADORES ROBÓTICOS
O estudo se restringe aos fenômenos
locais da dinâmica interna do clima na Terra e
compara dados observados numa escala de
tempo muito pequena – apenas dois invernos. Para além deles, estão os fenômenos
astronômicos – os movimentos da Terra, a
atividade solar, as explosões das supernovas,
os movimentos da Lua –, sempre lembrados por cientistas que afirmam veementemente que as mudanças no clima do planeta
têm origem em causas naturais. Para estes,
as alterações climáticas em curso, a exemplo
do passado, mostram que estamos vivendo
uma transição, e, daqui a uns 20 anos, o planeta entrará num período de temperaturas
extremas: mais frio nos polos e mais calor e
secura nos trópicos.
Vage e Pickart lideram uma equipe composta por cientistas de instituições de diversos países – Canadá, França, Dinamarca, além
de colegas da instituição americana em que
trabalham. Essa equipe acompanha desde o
ano 2000 o movimento da água supersalgada
e gelada que se forma no Atlântico Norte
quando a temperatura cai e a água do mar
congela. Desde então, eles coletam, ano a ano,
dados de temperatura e salinidade da água
em vários pontos do Atlântico Norte e em
várias profundidades. Para isso, utilizam
flutuadores robóticos, instrumentos que se
assemelham a grandes termômetros
encapsulados em metal, que descem automaticamente à profundidade de 2 mil metros
e coletam os dados em várias profundidades. Periodicamente, os flutuadores sobem
à superfície e transmitem as informações via
satélite, submergindo a seguir para recomeçar o trabalho. Eles são muito úteis, pois no
inverno a presença de gelo dificulta a navegação dos navios de pesquisa.
Com essa técnica, os cientistas descobriram que as águas geladas e densas formadas
no inverno de 2007-2008 atingiram, pela primeira vez após 15 anos, profundidades abaixo
de mil metros, voltando a alimentar com vigor
o braço profundo de um sistema de correntes
marítimas conhecido como Cinturão TermoHalino, um dos mais importantes meios de
distribuição da energia solar tropical para as regiões subpolares da Terra.
A atividade do cinturão tem forte papel
na determinação do clima. Há evidências, por
retratodoBRASIL 21
Ilustração Alex Silva
exemplo, de que sua alimentação tenha sido
muito vigorosa durante o Período Quente
Medieval, quando as temperaturas médias
do planeta se alteraram para cima. O fenômeno contrário, o enfraquecimento da alimentação do cinturão, está relacionado com
outra grande mudança climática que ocorreu
na Idade Média, a Pequena Era Glacial, de
sentido inverso da anterior.
Quando a circulação do Cinturão Termo-Halino está ativa, a corrente quente do
Atlântico Norte alcança a região subpolar,
vinda dos trópicos. Ali, ventos frios do Oeste, da região de Labrador, na costa leste do
Canadá, tomam calor da corrente oceânica e,
aquecidos, chegam à Europa, elevando a temperatura da costa do continente e de parte de
seu interior. Para se ter uma ideia do efeito
desse fenômeno, basta comparar a temperatura de inverno em Londres, na Inglaterra,
que é de cerca de -5°C, com a da Terra Nova,
no Canadá, que está na mesma latitude, que
normalmente fica em torno de -15°C.
Ao atingir as proximidades da costa da
Irlanda, a corrente desvia-se para noroeste,
passa pela Islândia e pela Groenlândia, resfriando-se lentamente até encontrar o gélido
mar de Labrador, ao sul, na costa do Canadá, onde as águas frias, salgadas e densas
submergem sob o manto de água do mar
congelada, deslizando vagarosamente de
volta para o Equador. Esse arco de retorno
descrito pela corrente do Atlântico Norte, conhecido como giro subpolar, alimenta a circulação do Cinturão Termo-Halino.
retratodoBRASIL 21
Em 2004, um estudo comprovou que
desde meados de 1990 a alimentação do
cinturão estava muito enfraquecida. Isso foi
interpretado como consequência do aquecimento global e, na época, foram feitas previsões de que, ao contrário do observado no
passado, esse fenômeno elevaria a temperatura nos polos, favorecendo, portanto, o
derretimento do gelo.
O estudo mostrou ainda que as águas
da corrente do Atlântico Norte podem levar
20 anos para percorrer toda a rota do giro,
entre as costas da Inglaterra e do Canadá. Já
o percurso completo do Cinturão TermoHalino leva mais de mil anos.
OSCILAÇÃO DO NORTE
Até recentemente, acreditava-se que o vigor da alimentação do cinturão estava associado a outro fenômeno, a oscilação do Atlântico Norte, relacionado, por sua vez, à circulação atmosférica, especialmente no inverno,
e muito importante para o clima da região. A
oscilação rege a umidade do ar e, portanto, a
ocorrência de chuva e de neve e também a
direção dos ventos locais. Esse padrão oscila
(daí o nome) entre duas configurações. Quando está plenamente positivo, a massa de ar
que atravessa a região norte dos EUA cruza
o oceano Atlântico mais ao norte, em direção aos países escandinavos, provocando
tempestades de inverno mais intensas e numerosas sobre o oceano, invernos mais secos e frios no norte do Canadá e da Groenlândia e mais quentes e chuvosos na Euro-
pa. O inverno na costa leste dos EUA permanece com temperaturas mais amenas e
muita chuva.
Na fase negativa extrema, a massa de ar
do continente americano chega mais ao sul e
cruza o Atlântico alcançando a boca do mar
Mediterrâneo, na altura de Gibraltar, passando sobre a península Ibérica.
Nessa fase, a oscilação produz tempestades menos numerosas e mais fracas sobre o
oceano e leva ar úmido para o sul da Europa
e norte da África, enquanto o norte europeu
recebe correntes de ar frio e seco. A costa leste
dos EUA sofre com abruptas quedas de temperatura e, consequentemente, com maior
ocorrência de neve.
A oscilação do Atlântico Norte não atua
sozinha na determinação do clima de inverno, mas estima-se que ela seja responsável
por 30% da variação no transporte de calor
pela corrente do Atlântico Norte nessa estação do ano. Ainda não se sabe o que leva à
sua mudança de fase, embora se reconheça
que é um processo natural, intensamente
relacionado com as correntes oceânicas e com
variáveis relacionadas à própria atmosfera.
A variabilidade da oscilação é enorme.
Ela pode mudar de fase num mesmo inverno, em anos ou décadas e, ainda, em cada
fase, aumentar ou diminuir de intensidade. Desde 1980 ela tem se mantido predominantemente muito intensa na fase positiva, mantendo um comportamento que
não é observado há mais de 200 anos. Alguns cientistas atribuem essa novidade ao
45
Ilustração Alex Silva
aquecimento global, mas não há unanimidade a respeito.
O estudo de 2004 já havia sugerido que
o enfraquecimento do giro subpolar não estava completamente relacionado à oscilação
do Atlântico Norte. Durante a década de
1990, ela mudou de fase duas vezes, enquanto o giro continuou enfraquecendo.
Vage e Pickart mostraram que, no inverno de 2007-2008, a água fria e densa atingiu
maior profundidade no oeste do mar de
Labrador, no sul e ao longo da costa leste da
Groenlândia, no mar Irminger. Essas observações foram confirmadas por outros
grupos de pesquisa que acompanham o clima no Ártico. Mas, se estava claro que a
convecção profunda (o movimento descendente da água fria e densa) havia retornado
numa extensa área no lado oeste do giro
subpolar, a “questão óbvia”, segundo os
autores era: “Por quê?”.
As análises mostraram que o inverno de
2007-2008 registrou uma queda significativa
da temperatura do ar em relação à média dos
cinco anos precedentes. Evidenciaram também que a oscilação do Atlântico Norte foi
fortemente positiva nos invernos de 20062007 e de 2007-2008, contrastando com índices próximos a zero ou negativos nos cinco invernos anteriores. Mas a convecção profunda ocorreu apenas no fim do inverno de
2007-2008.
46
Vage e Pickart sugerem que, no inverno de 2006-2007, condições locais atuaram com mais vigor do que a oscilação,
impedindo que a convecção profunda
ocorresse. Mesmo com a oscilação fortemente positiva, os ventos naquele inverno chegaram à costa canadense provenientes do sul da Groenlândia, onde o giro
subpolar ainda está um tanto aquecido,
transferindo calor para a atmosfera. No
inverno de 2007-2008, os ventos tomaram a direção contrária, levando o frio da
costa canadense para o sul da Groenlândia, facilitando, assim, a ocorrência da
convecção profunda. Vage e Pickart concluíram, como os outros pesquisadores,
que a mudança de fase da oscilação não
atua sozinha na alteração do vigor da alimentação do Cinturão Termo-Halino.
DIFERENTE DO IMAGINADO
Outra conclusão do estudo coloca em
xeque as previsões feitas após o verão de
2007: o déficit de gelo de um inverno não é
pré-condição para a retração da calota polar
no inverno seguinte. Isto é, a formação do
manto de gelo no mar num inverno não tem
o efeito cumulativo que se imaginava. Mais
que isso, os autores sugerem que o derretimento das geleiras no Canadá entre 2004 e
2007 e da capota polar no verão de 2007
ajudou a criar as condições para o retorno
da convecção profunda. O derretimento das
geleiras aumentou o fluxo de água doce dos
rios que desembocam na costa do Atlântico
Norte canadense. Da mesma forma, o gelo
formado pela água do mar há mais tempo é
constituído principalmente por água doce.
Assim, havia mais água doce no mar de
Labrador no inverno de 2007-2008 e, com
as baixas temperaturas, ela rapidamente se
congelou, tornando o ambiente mais frio e
propício para a formação de mais gelo. “Ironicamente”, escrevem os autores do artigo,
“o desaparecimento da calota de gelo do Ártico, atribuído ao aquecimento global, deve
ter ajudado a disparar o retorno da
convecção de inverno no Atlântico Norte.”
Analisando dados do passado recente, os
cientistas verificaram que uma situação semelhante ocorreu no extraordinariamente frio
inverno de 1971-1972.
Outro aspecto notável do inverno de
2007-2008, lembram Vage e Pickart, foi que a
redução da temperatura do ar sobre o Atlântico Norte subpolar não foi um fenômeno
local. De acordo com dados do Goddard
Institute for Space Studies, a temperatura
global caiu 0,45°C entre os invernos de 20062007 e 2007-2008. O decréscimo foi particularmente forte sobre o norte da América do
Norte, onde a temperatura média de inverno foi mais do que 3°C mais fria no inverno
de 2007-2008.
Uma possível explicação para isso pode
estar fora dos limites da região do Atlântico
Norte. Os autores sugerem que o forte fenômeno La Niña, que ocorreu no mesmo
inverno, tenha alguma relação com o comportamento climático do inverno no Ártico
e apontam para a necessidade de se incluirem
fenômenos climáticos globais nos diagnósticos sobre a convecção profunda.
“A miríade de fatores que envolvem o
sistema atmosfera-oceano-gelo que levou ao
retorno da convecção profunda no inverno
de 2007-2008 expõe a complexidade do sistema convectivo no Atlântico Norte, tornando difícil prever quando a convecção irá ocorrer”, concluem.
Nenhum modelo climático apontava
qualquer evidência de que a alimentação
do Cinturão Termo-Halino voltasse com
vigor, ainda mais logo depois do verão
de 2007. O trabalho de Vage e Pickart,
porém, sugere que as previsões sobre o
derretimento da calota polar foram muito precipitadas e que o clima no Ártico
ainda guarda muitos mistérios.
retratodoBRASIL 21
Divulgação
Cinema:
MUITO ALÉM
DO VÍDEO
Documentários ajudam a
recuperar a identidade
de povos indígenas e os
apresentam à sociedade
como expressões da
diversidade cultural |
Carlos Azevedo
Há um novo tipo de documentário no meio
cultural, feito por cineastas indígenas. Podese assistir a eles em festivais ou comprar o
DVD em pontos de venda como grandes
livrarias e casas de comercialização de vídeos.
Entre eles estão alguns best-sellers, como o
divertido Cheiro de Pequi, dos índios cuicuro,
ou Amendoim da Cutia, do povo panará, este
considerado pelo antropólogo Claude LéviStrauss “de longe o melhor filme que eu
tenha visto sobre os índios da América do
Sul. Tudo é um sucesso: a escolha dos temas, dos lugares, dos enquadramentos; e a
qualidade das imagens é sensacional”, escreveu o cientista. “Temos constantemente a
sensação de sermos autorizados a ver a vida
indígena por dentro.”
Ao todo já são 70 filmes produzidos
junto a 40 povos indígenas do Brasil com
base em 3 mil horas de gravação, e novos
vídeos estão em produção, envolvendo outras comunidades. Esse é um resumo da
atividade de 23 anos de uma entidade chamada Vídeo nas Aldeias, uma ONG cujo
objetivo inicial era registrar e impedir que se
retratodoBRASIL 21
perdessem traços culturais dos povos indígenas e que vem obtendo resultados muito
mais importantes que os esperados.
Vincent Carelli, fotógrafo e cineasta franco-brasileiro de 55 anos, está envolvido com
os índios desde o fim da década de 1970. Os
indígenas brasileiros já vêm sendo filmados
há muitos anos e manifestaram a ele sua
insatisfação com a maneira distorcida como
os documentaristas “brancos” os retratavam.
Carelli fez uma primeira experiência diferenciada, que foi filmar junto com os
nhambiquaras de Rondônia. “Foi mágico.
Eu gravava e imediatamente depois mostrava a eles. Isso motivava discussão e a participação de todos, e faziam inúmeras sugestões de mudança, de tal forma que eles
passaram a me dirigir. Era um vídeo sobre
uma manifestação cultural deles, a Festa da
Moça. O interessante é que eles foram críticos quando viram o resultado. Diziam:
‘estamos com muita roupa’; ‘nossa pintura
está malfeita’. No ano seguinte, me chamaram para filmar de novo. E aí se apresentaram com todo o rigor. Esse vídeo foi para
eles como uma carteira de identidade: ‘Esses
somos nós’, diziam. Cópias foram mandadas para as outras tribos e para amigos na
cidade. E para mim o vídeo serviu também
como instrumento para captação de recursos, para continuar o trabalho. Levei-o para a
Europa e para os EUA. Neste, principalmente, houve um apoio considerável. Mais tarde, os europeus também se engajaram.”
Com o surgimento do sistema VHS de
vídeo, mais barato e portátil, tudo se tornou
mais viável. A ideia de que os índios deveriam
fazer seus próprios vídeos prosperou. Carelli
conta: “Começamos a formar cineastas indígenas, dar câmeras e ilhas de edição a eles.
Tudo é discutido com os chefes, que escolhem os que vão ser cineastas entre os jovens
mais preparados. Na maioria, são professores das escolas indígenas, que já estudaram
em Brasília e outras cidades. Fazemos um
treinamento de um mês, na aldeia, e depois
começamos a gravar. Eles aprendem rapidamente e desenvolvem capacidade técnica. O
tema é decidido por eles, toda a aldeia participa, dá sugestões, faz o roteiro, escolhe os
que vão ser protagonistas e estes dizem como
pretendem atuar e o que vão dizer. Os jovens cineastas são filhos, sobrinhos, netos e
todos vão discutindo cada tomada, como
fazer a captação do som, como desenvolver
a trama e, depois, participam da edição.Todos
desejam participar e participam. É, de fato,
uma produção coletiva”.
APURO TÉCNICO
Os vídeos mostram uma apropriação da
linguagem de cinema e de documentário. A
câmera clássica, discreta, sem “nervosismos”
do tipo zoom in e zoom out, ou “chicotes”.
Firme, como se sempre estivesse em tripé,
mas se vê pelo making of que, na maioria das
vezes, é operada na mão. Iluminação correta,
aproveitando as nuances de luz dentro dos
ambientes e corrigindo com luz artificial as
sombras à luz do Sol. Enquadramento cuidadoso e busca das melhores imagens e ângulos. Operando simultaneamente com
duas ou três câmaras, obtêm-se planos e
contraplanos bem aproveitados na edição e
47
Reprodução
Bilhete de Lévi-Strauss: “o melhor filme que eu tenha visto sobre os índios da América do Sul”
que dão fluidez e naturalidade à ação. Desenvolvem-se travellings engenhosos utilizando
instrumentos improvisados, como duas
equipes montadas em bicicletas acompanhando moças que vão à roça de bicicleta (imagem da página anterior). Destaque para a
qualidade do áudio, captado com cuidado.
Não se chega a um resultado como esse por
sorte ou acaso, mas com muito trabalho,
criatividade e talento. E conteúdo, porque
essa gente tem algo a dizer.
Mas o que parecia ser uma façanha – filmar com correção as histórias da aldeia –
deixa logo de ser o ponto central. O processo que está em curso é muito maior do que
isso. Na verdade, o papel do vídeo é de instrumento da recuperação e da afirmação de
uma identidade cultural. É um movimento
criador em dois sentidos, para dentro da comunidade e para fora dela, para a interação
com a sociedade envolvente, brasileira, mas
também com outros povos.
Para dentro da comunidade, funciona
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como um espelho que detona um poderoso processo de recuperação e afirmação de
identidade. Ao querer fazer o vídeo, ao escolher o roteiro, ao participar de toda a sua realização como cineastas, roteiristas, produtores, personagens, editores, um povo se reconhece nas imagens. Ao cuidar de tudo, das
locações, das falas, dos gestos, da luz e do
som e dos detalhes da pintura e adereços
corporais, estão indo buscar elementos de
sua cultura. Não é por acaso que, no filme
dos panará, O Amendoim da Cutia, uma das
personagens – a mulher do pajé, que aparece
em várias cenas trabalhando e depois como
xamã – afirma: “Eu sou uma velha que estava adormecida e agora está acordando”. Para
entender plenamente o que ela quer dizer é
preciso lembrar que esse povo era o dos
míticos “índios gigantes”, que foi atropelado pelas obras da rodovia Cuiabá–Santarém.
Na década de 1970, foi transferido pelos irmãos Villas Boas para o Parque do Xingu
quando se encontrava a caminho da extinção.
Suas terras foram logo invadidas por fazendas. Mas, 21 anos depois, em 1994, seus
remanescentes conseguiram recuperar parte
delas e voltaram.
“Reincorporar sua identidade cultural
agora”, diz Carelli, “requer um esforço de
vulto. Isso não quer dizer voltar à ‘pureza’
primitiva, não é realizável e nem mesmo
desejável. A comunidade já incorporou instrumentos e costumes dos ‘brancos’. Viver
as duas culturas simultaneamente é o seu
futuro. Ao contrário do que muita gente
pensa, e como demonstra a experiência de
vários povos, mesmo manejando essa situação complexa, eles não deixam de ser
índios, povos diferenciados, e assim vão
continuar enquanto puderem conservar sua
terra e condições de sobrevivência como comunidade.” Carelli lembra o diálogo de um
jovem cineasta com seu avô, que relatava
tradições da tribo: “‘Avô, você nunca me
contou isso!’ ‘Mas você nunca quis saber,
nunca me perguntou’”. Carelli acrescenta:
“O vídeo funciona assim, como um espelho, que faz a comunidade se ver, se
redescobrir, se reconhecer perante si mesma
e perante as outras comunidades: ‘Esses somos nós’. E isso vai muito além do vídeo,
é um renascimento”.
De acordo com Carelli, o vídeo também
é instrumento para o povo indígena se apresentar e se tornar conhecido pelo restante do
povo brasileiro: “Como prevalece muito
desconhecimento e preconceito sobre os índios, não há um só público que assista a um
vídeo desses que não se surpreenda e fique
bem impressionado. Sim, não são brutos,
há ali uma cultura, diferente, mas humana,
tanto quanto qualquer cultura”.
A repercussão em outros países foi forte
desde o início. Tanto é que, durante os primeiros 18 anos desse trabalho, quase que a
totalidade do financiamento para a produção
veio do exterior. “A situação se inverteu a partir de 2003, com o governo Lula, com a nova
política do Ministério da Cultura, de prestigiar
a diversidade cultural e destinar verbas para as
comunidades quilombolas, indígenas e da
periferia das cidades, por meio dos ‘Pontos
de Cultura’ e do programa ‘Cultura Viva’.
Hoje, a comunidade que quer fazer seu vídeo
apresenta um roteiro ao Ministério da Cultura (não precisa ser escrito, pode ser oral, gravado) e se candidata a disputar com outros cineastas o financiamento. Os recursos são limitados, mas um número considerável de projetos tem se viabilizado”, diz Carelli.
retratodoBRASIL 21
Livro:
UMA HISTÓRIA
POSSÍVEL
Na Colônia e no Império, a matemática pouco se
desenvolveu. Só no século XX a disciplina adquiriu
papel relevante no Brasil | Tiago Tozzi
Escrever sobre história da ciência, para um
público não especializado, não é um intento
fácil, uma vez que fica sempre a questão, aos
que se enveredam nesse projeto, sobre o quanto se deve abordar da história em geral, pensada aqui naquela que tem como foco as transformações sociais, e o quanto se deve
aprofundar sobre o conteúdo científico específico a que se propõe relatar.
Tal dicotomia, que evidentemente é falsa,
uma vez que o conhecimento científico é produzido historicamente, se apresenta apenas
pelas necessárias simplificações e cortes ligados à divulgação para públicos não
especializados.
Com a matemática ocorre o mesmo, ainda mais pela forma como essa área do conhecimento é vista pela sociedade, que em geral
lhe atribui um grau de dificuldade de compreensão muitas vezes maior do que o real.
Isso ocorre, provavelmente, devido à dificuldade que a educação e suas práticas têm em
lidar com ela.
É nesse caldo que junta história, matemática e educação que se insere a obra de
Ubiratan D’Ambrósio, professor emérito da
Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), publicada em 2008. Mais conhecido no Brasil como “o pai da etnomatemática”, ele argumenta que a “matemática acadêmica”, da qual trata o livro e que se relaciona
com aquilo que aprendemos na escola, é apenas uma das muitas etnomatemáticas exisUMA HISTÓRIA CONCISA DA MATEMÁTICA
NO BRASIL
Autor Ubiratan D’Ambrosio
Editora Vozes
Ano 2008
Páginas 128
retratodoBRASIL 21
tentes, cada uma vinculada a uma dada civilização ou sociedade (incluindo aquela que nasceu e se desenvolveu na Europa), não havendo hierarquia de valor real entre elas.
Essa forma de abordar a matemática é de
vital importância, uma vez que aprendemos
na escola que existe uma única matemática,
que seria uma obra coletiva de toda a sociedade, enquanto, historicamente, o processo não
foi tão equitativo e colaborativo, conforme
percebemos pela leitura dos indícios trazidos
pelo livro.
ESFORÇO LOUVÁVEL
A obra de D’Ambrósio representa um
esforço que, se não é inédito, no mínimo é
louvável e raro, na medida em que busca trazer, em um pequeno livro, a história e a matemática – em ponto de equilíbrio –, destacando as transformações sociais e o desenvolvimento da última.
Esse empreendimento se torna ainda
mais valioso se levarmos em consideração
que a temática cuja história é ali contada se
refere à de um País onde, pelo menos até o
início do século XX, o desenvolvimento
dessa disciplina foi marginalizado em relação aos países centrais – no caso, países da
Europa, como Alemanha, França, Inglaterra
e Itália. A forma como isso se reflete no reconhecimento da história dessa produção
nacional pode ser muito bem ilustrada pelo
caso relatado de Joaquim Gomes de Sousa,
mais conhecido por “Sousinha” que, vivendo no século XIX, em pleno Império, ousou produzir conhecimento matemático de
forma independente, mas atrelado às questões centrais que se discutiam na Europa.
Contudo, ao tentar se inserir no debate conduzido pelas nações centrais, foi tristemente
ignorado em suas ideias.
Com o intuito de destacar a relação permanente entre dominador e dominado que
caracterizou a organização social e política
brasileira, tanto de um ponto de vista interno quanto externo, e suas conexões com
a produção do conhecimento, o livro passa
em revista os diversos e conturbados períodos de nosso passado, sempre com um
olhar mais histórico que crítico na produção do conhecimento matemático e na educação matemática, as quais – como supostamente se concebe – seriam dois lados de
uma mesma moeda. Supostamente porque, na atualidade, o Brasil possui uma
posição bastante destacada nas pesquisas
em matemática e um bom desempenho nas
olimpíadas internacionais. Porém, segundo os índices nacionais e internacionais, tem
uma educação básica sofrível.
Essa aparente contradição talvez tenha
seu cerne na própria relação dominador–
dominado mencionada acima, decorrente
da qual grande parte da população brasileira sempre ficou à margem do processo
educativo. Como a posição de um país
numa dada escala de produção de conhecimento se deve muito mais à qualidade do
que é produzido do que à quantidade, apesar do grande “incentivo” dado a quem
publica grande quantidade de artigos, não é
difícil compreender a falsa contradição existente na asserção anterior e que pode ser
confirmada pela leitura da obra.
Como a produção do conhecimento
matemático no Brasil sempre esteve atrelada à
educação, vemos que aqueles que detiveram o
monopólio da instrução também o detiveram na produção, fato esse claro quando
D’Ambrósio analisa o papel dos jesuítas, dos
militares com as escolas de engenharia e, posteriormente, o governo, com as instituições
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Reprodução
de ensino e pesquisa. Esse é um ponto importante de reflexão trazido na leitura; por
ele, vemos que, em toda a nossa história, a
matemática sempre foi vista como um conhecimento no mínimo estratégico, no qual
vários obstáculos eram interpostos no caminho daqueles que queriam ter acesso a ele.
Por meio da visão panorâmica apresentada pelo livro, perdemos de vista os
detalhes da produção do conhecimento
matemático, com seus debates e questões
centrais, mas ganhamos uma maior visão
de conjunto, destacada pelos movimentos dos atores de cada período associada
com a ideologia dominante da classe que
estava no poder. Isso, é importante realçar, mantém-nos atentos à importância do
conhecimento enquanto instância
legitimadora de uma dada classe que quer
tomar o poder ou se manter nele.
PAPEL POSITIVISTA
Infelizmente, o livro não parte para a análise, também crucial, desse pormenor, deixando para o leitor a tarefa de ligar os fatos e
ajustar as lentes. Contudo, são ilustrativas
sobre isso a discussão do papel dos
positivistas no Brasil, com sua matemática
retirada dos escritos de Augusto Comte, associado principalmente aos militares, e a nova
Reprodução
Sousinha: produção tristemente ignorada
Exame de artilheiro, meados do século XVIII: era preciso ter conhecimento matemático
matemática trazida da Europa de fins do século XIX, a qual encontrava nos liberais daqui
seus representantes.
É assim, seguindo essa linha de raciocínio, que o autor culmina a obra mostrando
o grande desenvolvimento da matemática
brasileira no século XX, resultado, entre outros, do maior intercâmbio com os países
centrais (o que, por sua vez, relaciona-se com
o momento histórico vivido na Europa).
Localiza, associada a isso, uma burguesia industrial nascente em São Paulo, que busca,
na produção de conhecimento, assegurar o
seu direito de “dirigir o País”, fato esse destacado pela criação da Universidade de São
Paulo (USP) na década de 1930. Essa universidade, como destaca o autor, teve um papel
importantíssimo na inserção do País na produção do conhecimento matemático (e, sem
exagerar, dos outros conhecimentos também), mas isso se deveu à política de trazer
do exterior os profissionais que produziam
o conhecimento nas nações centrais.
O merecido destaque dado pelo autor ao
Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), pela sua produção matemática
de alto nível, poderia ser criticado pelo esquecimento de seu papel importantíssimo na
educação, com seus programas atuais de formação de professores e de discussão do currículo de matemática praticado na educação básica no Brasil.
Tomando como referência a intenção do
autor para com o livro, de “descrever a inter-
relação de eventos e indivíduos, de fatores
políticos, econômicos e ideológicos, que
acompanham fatos e personagens da História da Matemática do Brasil” (conforme explica na introdução), os objetivos foram cumpridos, principalmente considerando-se a dificuldade de se escrever uma obra como essa,
que trata da história do desenvolvimento de
uma disciplina em um País com mais de 500
anos de história e onde todas as implicações
dessa tarefa são amplas e complexas para
uma abordagem “concisa”, conforme anunciado pelo título.
A obra, mesmo assim, cumpre a sua tarefa para aqueles interessados numa visão factual
e panorâmica da evolução histórica da matemática no Brasil, podendo ser de grande valia
como uma introdução bastante objetiva ao
tema, apesar de fragmentada, pela quantidade
de referências e dados apresentados.
Pensando para além das armadilhas que
uma abordagem descritiva da história nos
conduz, e considerando a forma adotada pelo
autor para apresentar esse desenvolvimento
da matemática no Brasil, valeria a reflexão sobre o apontamento deixado por Nietzsche,
na sua Segunda Consideração Extemporânea: da
utilidade e desvantagem da história para a vida: “Precisamos da história, mas precisamos dela de
outra maneira que o mimado caminhante
ocioso no jardim do saber”.
TIAGO TOZZI é físico, professor de física e matemática,
pós-graduando em ensino de ciências na USP.
BRASÍLIA
SBS Quadra 4, Lotes 3/4 – Asa Sul – (61) 3206-9450/9448
EXPOSIÇÃO
Peter Paul Rubens e seu Ateliê de Gravura
De 24 de abril a 24 de maio de 2009
Terça a domingo, das 9h às 21h
Classificação: livre
Entrada franca
Galeria Vitrine
CURITIBA
Rua Conselheiro Laurindo, 280 – Centro – (41) 2118-5409
EXPOSIÇÃO
Programação
abril/2009
30 Anos de Fotografia
De 7 de abril a 3 de maio de 2009
Terça a sábado, das 10h às 21h
Domingo, das 10h às 19h
Classificação: livre
Entrada franca
Galeria da CAIXA
RIO DE JANEIRO
Av. Almirante Barroso, 25 – Centro – (21) 2544-4080
EXPOSIÇÃO
Ser Jovem na França
De 23 de abril a 17 de maio de 2009
Terça a sábado, das 10h às 22h
Domingo, das 10h às 21h
Classificação: livre
Entrada franca
Galeria 3
SALVADOR
Rua Carlos Gomes, 57 – Centro – (71) 3322-0228/0219
EXPOSIÇÃO
Madeleine Colaço – A Tapeceira dos Trópicos
De 17 de março a 26 de abril de 2009
Terça a domingo, das 9h às 18h
Classificação: livre
Entrada franca
Galeria Mirante e Salão Nobre
SÃO PAULO
Av. Paulista, 2.083 – Cerqueira César – (11) 3321-4400
EXPOSIÇÃO
Dag Alveng – Nova Iorque Noruega 1979/2008
De 26 de março a 3 de maio de 2009
Terça a domingo, das 9h às 21 h
Classificação: livre
Entrada franca
Galeria da Paulista
CAIXA. O banco que acredita nas pessoas.

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