1 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer

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1 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer
Vol. 21, nº 1, Março 2012
21|
1
Revista do Hospital de Crianças Maria Pia | Departamento de Ensino, Formação e Investigação | Centro Hospitalar do Porto
Ano | 2012 Volume | XXI Número | 01
Directora | Editor-in-Chief | Sílvia Álvares; Director Adjunto | Associated Editor | Rui Chorão; Directora Executiva | Executive Editor | Margarida Lima
Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Porto | Director | Fernando Sollari Allegro
Corpo Redactorial | Editorial Board
Artur Alegria, CHP
Armando Pinto, IPOPFG
Carmen Carvalho, CHP
Cláudia Pedrosa, CHVNG/E
Conceição Mota, CHP
Cristina Rocha, CHEDV
Gustavo Rocha, CHSJ
João Barreira, CHSJ
Laura Marques, CHP
Lurdes Morais, CHP
Margarida Guedes, CHP
Rui Almeida, HPH/ULSM
Editores especializados | Section Editors
Artigo Recomendado – Helena Mansilha, CHP; Maria do
Carmo Santos, CHP
Perspectivas Actuais em Bioética – Natália Teles, CGMJM
Pediatria Baseada na Evidência – Luís Filipe Azevedo,
FMUP; Altamiro da Costa Pereira, FMUP
A Cardiologia Pediátrica na Prática Clínica – António
Marinho, CHUC; Fátima Pinto, HSM/CHLC; Maria Ana
Sampaio, HCV, Maria João Baptista, CHSJ; Paula Martins,
HPCM/CHUC, Rui Anjos, HSC/CHLO; Sílvia Álvares, CHP
Ciclo de Pediatria Inter-Hospitalar do Norte – Armando Pinto,
IPOPFG; Carla Carvalho, HSMM; Carla Moreira, HB/EB;
Conceição Santos Silva, CHPVVC; Fátima Santos,
CHVNG/E; Inês Azevedo, CHSJ; Isalita Moura, HSMM;
Isolina Aguiar, CHAA; Joaquim Cunha, CHTS; Susana
Tavares, CHEDV; Cármen Carvalho, CHP; Rosa Lima, CHP;
Sofia Aroso, HPH/ULSM; Sónia Carvalho, CHMA
Caso Dermatológico – Manuela Selores, CHP; Susana
Machado, CHP
Caso Electroencefalográfico – Rui Chorão, CHP
Caso Endoscópico – Fernando Pereira, CHP
Caso Estomatológico – José Amorim, CHP
Caso Radiológico – Filipe Macedo, CHAA
Genes, Crianças e Pediatras – Esmeralda Martins, CHP;
Margarida Reis Lima, HPP
Pequenas Histórias – Margarida Guedes, CHP
Consultor Técnico | Consultant
Gama de Sousa, Porto
Consultora de Epidemiologia e de Bioestatistica |
| Advisor of Epidemiology and Biostatistics
Maria José Bento, IPOPFG
Conselho Científico Nacional |
| National Scientific Board
Alberto Caldas Afonso, CHSJ, FMUP, Porto
Almerinda Pereira, HB/EB, Braga
Álvaro Aguiar, FMUP, Porto
Ana Maria Leitão, HSSM, Barcelos
Ana Ramos, CHP, Porto
António Martins da Silva, CHP e ICBAS/UP, Porto
Arelo Manso, Porto
Braga da Cunha, CHTS, Penafiel
Cidade Rodrigues, CHP, Porto
Conceição Casanova, CHPVVC, Póvoa de Varzim
Eurico Gaspar, CHTMAD, Vila Real
Fátima Praça, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia
Gonçalves Oliveira, CHMA, Famalicão
Helena Jardim, CHP, Porto
Henedina Antunes, HB/EB, Braga
Hercília Guimarães, CHSJ, FMUP, Porto
Ines Lopes, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia
José Barbot, CHP, Porto
José Carlos Areias, FMUP, Porto
José Cidrais Rodrigues, HPN/ULSM, Matosinhos
José Pombeiro, CHP, Porto
Lopes dos Santos, HPH/ULSM, Matosinhos
Luís Almeida Santos, CHSJ, FMUP, Porto
Luís Vale, HPBN, Porto
Manuel Salgado, HPCM/CHUC, Coimbra
Manuela Selores, CHP, Porto
Marcelo Fonseca, ULSM, Matosinhos
Margarida Lima, CHP, ICBAS/UP, Porto
Maria Augusta Areias, HPBN, Porto
Norberto Estevinho, HPP, Porto
Óscar Vaz, CHN, Mirandela
Paula Cristina Ferreira, CHP, Porto
Pedro Freitas, CHAA, Guimarães
Rei Amorim, CHAM, Viana do Castelo
Ricardo Costa, CHCB, Covilhã
Rosa Amorim, CHP, Porto
Rui Carrapato, CHEDV, Santa Maria da Feira
Teresa Temudo, CHP, Porto
Conselho Científico Internacional |
| International Scientific Board
Alain de Broca, Centre Hospitalier Universitaire Amiens, Amiens
Annabelle Azancot, Hôpital Robert Debré, Paris
Francisco Alvarado Ortega, Hospital Infantil Universitario La
Paz, Madrid
Francisco Ruza Tarrio, Hospital Infantil Universitario La Paz,
Madrid
George R. Sutherland, University Hospital, Edinburgh
Harold R. Gamsu, Kings College Hospital, Londres
J. Bois Oxoa, Hospitals Vall d’Hebron, Barcelona
Jean-François Chateil, Hôpital Pellegrin, Bordeaux
José Quero, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid
Juan Tovar Larrucea, Hospital Infantil Universitario La Paz,
Madrid
Juan Utrilla, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid
Luís Callís, Hospital Vall d’Hebron, Barcelona
Peter M. Dunn, University of Bristol, Bristol
Assessores Editoriais | Editorial Assistants
Carolina Cortesão
Paulo Silva
Publicação trimestral resumida e indexada por
Catálogo LATINDEX
EMBASE / Excerpta Médica
Index das Revistas Médicas Portuguesas
SciELO
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Design gráfico
bmais comunicação
Execução gráfica e paginação
Papelmunde, SMG, Lda
Vila Nova de Famalicão
ISSN
0872-0754
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4346/91
Tiragem
2.500 exemplares
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DE 0005/2005 DCN
Propriedade, Edição e Administração / Publisher
Departamento de Ensino, Formação e Investigação
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Condições de assinatura
Anual Nacional (4 números) - 40 euros
Anual Estrangeiro (4 números) - 80 euros
Número avulso - 12 euros
CGMJM, Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, CHAA, Centro Hospitalar do Alto Ave; CHAM, Centro Hospitalar do Alto Minho; CHCB, Centro Hospitalar da Cova da Beira; CHEDV, Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga;
CHMA, Centro Hospitalar do Médio Ave; CHN, Centro Hospitalar do Nordeste; CHP, Centro Hospitalar do Porto; CHPVVC, Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim – Vila do Conde; CHSJ, Centro Hospitalar de São João;
CHTMAD, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro; CHTS, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa; CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; CHVNG/E, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho;
DEFI, Departamento de Ensino, Formação e Investigação; FMUP, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; HB/EB, Hospital de Braga/Escala Braga; HCV, Hospital Cruz Vermelha; HPBN, Hospital Privado da Boa Nova;
HPCM/CHUC, Hospital Pediátrico Carmona da Mota; HPH/ULSM, Hospital Pedro Hispano/Unidade Local de Saúde Matosinhos; HPP, Hospitais Privados de Portugal; HSC/CHLO, Hospital de Santa Cruz/Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental;
HSM/CHLC, Hospital de Santa Marta/Centro Hospitalar de Lisboa Central; HSMM, Hospital Santa Maria Maior; ICBAS/UP, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto;
IPOPFG, Instituto Português de Oncologia do Porto, Francisco Gentil.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
índice
número1.vol.XXI
7 Editorial
8 Artigos Originais
Margarida Lima e Sílvia Álvares
Infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria
Joana Magalhães, Liliana Pinho, Catarina Mendes, Andreia Dias, Carla Zilhão,
Cristina Garrido, Susana Pinto, Guilhermina Reis, Margarida Guedes
13
Luxação congénita do joelho: que abordagem?
Revisão teórica e experiência de um Hospital Pediátrico
Luísa Neiva Araújo, Eduardo Almeida
19 Artigos de Revisão
Alterações ungueais em Pediatria
Susana Gomes, André Lencastre, Maria João Paiva Lopes
25 Casos Clínicos
Endocardite infecciosa num recém-nascido pré-termo
Cristiana Ribeiro, Marta Rios, Luísa Lopes,
Sílvia Álvares, Elisa Proença, Ana Guedes
28
Miosite orbitária numa criança
José Fraga, Aida Sá, Cristina Cândido, José Pereira Pinto, Fátima Dias
33
Síndrome de Miller Fisher numa criança
Dora Gomes, Filipa Leite, Nuno Andrade, Mónica Vasconcelos,
Conceição Robalo, Isabel Fineza
37
Paraplegia espástica familiar tipo 4
– antecipação ou variabilidade fenotípica?
Nádia Rodrigues, Sofia Ferreira, Lia Rodrigues,
Ana Castro, Célia Barbosa, Roseli Gomes
40 Artigo Recomendado
Maria do Carmo Santos
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
42 Perspectivas Actuais em Bioética
O direito à saúde na União Europeia em perspectiva diacrónica: elementos
para uma genealogia do artigo 35.º da CDFUE (cont.)
Luís Menezes do Vale
de Pediatria Inter-Hospitalar
54 Ciclo
do Norte
Febre de etiologia indeterminada – encruzilhada de diagnósticos
Manuel Oliveira, Carla Meireles, Patrícia Costa,
Margarida Guedes, Ana Luísa Lobo
57 Qual o seu Diagnóstico?
Caso Dermatológico
Ana Oliveira, Madalena Sanches, Manuela Selores
59
Caso Estomatológico
José M. S. Amorim
61
Caso Hematológico
Teresa São Simão, Miguel Salgado, Emília Costa, José Barbot
63
Genes, Crianças e Pediatras
Esmeralda Martins, Teresa Oliveira, Anabela Bandeira
65 Normas de Publicação
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
summary
number1.vol.XXI
7 Editorial
8 Original Articles
Margarida Lima e Sílvia Álvares
H1N1 Infection in a pediatric unit
Joana Magalhães, Liliana Pinho, Catarina Mendes, Andreia Dias, Carla Zilhão,
Cristina Garrido, Susana Pinto, Guilhermina Reis, Margarida Guedes
13
Congenital dislocation of the knee:
what approach? Review and experience of a pediatric hospital
Luísa Neiva Araújo, Eduardo Almeida
19 Review Article
Nail disorders in pediatrics
Susana Gomes, André Lencastre, Maria João Paiva Lopes
25 Case Reports
Infective endocarditis in a preterm newborn
Cristiana Ribeiro, Marta Rios, Luísa Lopes,
Sílvia Álvares, Elisa Proença, Ana Guedes
28
Orbital myositis in a child
José Fraga, Aida Sá, Cristina Cândido, José Pereira Pinto, Fátima Dias
33
A child with Miller Fisher Syndrome
Dora Gomes, Filipa Leite, Nuno Andrade, Mónica Vasconcelos,
Conceição Robalo, Isabel Fineza
37
Hereditary spastic parapelgia type 4
– anticipation or phenotypic variability?
Nádia Rodrigues, Sofia Ferreira, Lia Rodrigues,
Ana Castro, Célia Barbosa, Roseli Gomes
40 Recommended Article
Maria do Carmo Santos
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
42 Current Perspectives in Bioethics
The right to health in the EU in a diachronic perspective:
a genealogy of article 35º of the CFREU (cont.)
Luís Menezes do Vale
54 Paediatric Inter-Hospitalar Meeting
Fever of unknown origin – a difficult diagnostic problem
Manuel Oliveira, Carla Meireles, Patrícia Costa,
Margarida Guedes, Ana Luísa Lobo
57 What is your Diagnosis?
Dermatology case
Ana Oliveira, Madalena Sanches, Manuela Selores
59
Oral pathology case
José M. S. Amorim
61
Hematology case
Teresa São Simão, Miguel Salgado, Emília Costa, José Barbot
63
Genes, Children and Paediatricians
Esmeralda Martins, Teresa Oliveira, Anabela Bandeira
65 Instructions for Authors
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
editorial
A revista Nascer e Crescer teve origem há duas décadas no Hospital de Crianças Maria Pia, onde foi criada por iniciativa de um grupo de médicos motivados para a
promoção da actividade científica e da educação médica na área da pediatria, com a
convicção de que contribuiriam desta forma para melhorar a qualidade assistencial.
Com a criação do Centro Hospitalar do Porto e a integração da Revista no Departamento de Ensino, Formação e Investigação, surgiram dificuldades que nos esforçamos
por ultrapassar. A estas dificuldades acresceram outras, determinadas pela competitividade no mundo científico e na área da divulgação do conhecimento. Não tem sido fácil
manter a edição regular da revista Nascer e Crescer, aumentando o grau de exigência e
melhorando a qualidade dos artigos publicados. Foi necessário reformular o corpo editorial e redactorial da Revista, promover a formação dos revisores e garantir o secretariado. Para lhe dar uma maior visibilidade, passamos a disponibilizar os artigos em texto
integral no portal interno do Centro Hospitalar do Porto e no Repositório Científico de
Acesso Aberto de Portugal. Outro passo fundamental foi a indexação da revista Nascer
e Crescer em várias bases de dados bibliográficos, a última das quais a SciELO.
Na época difícil em que vivemos, marcada, entre outros, pelos constrangimentos
económicos e pelo encerramento recente do Hospital onde a Revista teve origem, queremos deixar aqui um apelo. Encaremos as dificuldades como oportunidades e como
mais um desafio à capacidade para nos adaptarmos às novas realidades e para fazer
mais e melhor. Sejamos capazes de dar continuidade a este projeto que deve ser motivo
de orgulho para o Hospital e para os profissionais que nele trabalham. Contribuamos,
individualmente e como conjunto, para aumentar a quantidade e sobretudo a qualidade
dos artigos publicados na nossa Revista.
Margarida Lima
Directora do Conselho de Gestão do Departamento de Ensino,
Formação e Investigação do Centro Hospitalar do Porto
Sílvia Álvares
Directora da Revista Nascer e Crescer
editorial
7
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria
Joana Magalhães1, Liliana Pinho1, Catarina Mendes1, Andreia Dias1, Carla Zilhão1,
Cristina Garrido1, Susana Pinto1, Maria Guilhermina Reis1, Margarida Guedes1
RESUMO
Introdução: A infecção por vírus influenza A H1N1 constituiu a primeira pandemia deste século. Para reduzir a propagação, foram enfatizadas medidas de protecção individual e atendimento e internamento em áreas específicas, com isolamento
de gotícula.
Objectivos: Avaliar a importância da área de isolamento
para casos de suspeita de infecção por H1N1 num Serviço de
Pediatria. Caracterização da infecção nos doentes internados.
Material e métodos: Consulta do processo clínico, com
avaliação segundo parâmetros definidos pela Direcção Geral de
Saúde. Tratamento de dados em Microsoft Excel 2007.
Resultados: A área de isolamento teve oito camas, com
36% de ocupação. Dos 28 doentes internados, 82% tinham indicação para investigação, positiva em 54%. Foi feita pesquisa
a 25 doentes fora do isolamento, positiva em 12%. Não ocorreu
infecção nosocomial.
Houve 23 casos, 74% de 16 de Novembro a 6 de Dezembro
de 2009. A idade variou entre seis semanas e 16 anos, com mediana de um ano. A febre foi constante, tosse, rinorreia e vómitos
foram frequentes. Os motivos de internamento foram febre em
pequeno lactente, intolerância oral e hipoxemia. A terapêutica
antiviral foi instituída em 13 doentes, com uma resistência. Em
sete dos casos ocorreram complicações: pneumonia bacteriana
provável (cinco), convulsão febril e abcessos esplénicos.
Conclusões: As medidas foram eficazes. A área foi sobredimensionada. Relativamente à pandemia, existem essencialmente dados de organizações governamentais. Parece importante confrontar resultados para definir estratégias para uma
futura epidemia.
Palavras-chave: gripe, H1N1, pediatria.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 8-12
INTRODUÇÃO
A infecção por vírus influenza A, subtipo H1N1 constituiu a
primeira pandemia do século XXI. Teve início no México em Abril
de 2009 e propagou-se rapidamente(1,2), o que foi facilitado pela
__________
1
8
S. Pediatria, CH Porto
artigo original
original article
elevada mudança antigénica, com consequente baixa imunidade
das populações, e pela elevada mobilidade das mesmas.
O pico de incidência no hemisfério Norte ocorreu em Outubro de 2009(3), tendo-se verificado mais tarde em Portugal, entre
16 e 29 de Novembro(4). Foi mais precoce que o da gripe sazonal,
que geralmente ocorre em Janeiro. Posteriormente a incidência
diminuiu, o que se poderá dever parte à evolução natural, parte
à vacinação que se iniciou em finais de Outubro. A infecção por
H1N1 teve uma elevada incidência, principalmente crianças e
adultos jovens (15-30 anos nos EUA(3), 0-10 anos em Portugal)(4),
tendo a maioria dos casos correspondido a doença ligeira. Não
obstante, verificou-se uma maior taxa de hospitalizações (0,7%
dos casos, em Portugal)(4), sobretudo de crianças com menos
de 4 anos(3). A mortalidade foi baixa (1,04/100000 habitantes,
0,38/100 000 em idade pediátrica)(4), envolvendo essencialmente
indivíduos com factores de risco(2,3,4).
O quadro clínico de síndrome gripal é inespecífico, comum
a muitas doenças, o que dificulta o diagnóstico(2,5). A suspeita é
confirmada através da identificação do vírus por RT-PCR (transcriptase reversa seguida de polimerase chain reaction) em zaragatoa da naso e orofaringe.
O vírus H1N1 pandémico é sensível aos inibidores da neuraminidase, sendo o oseltamivir por via oral o tratamento padrão.
Este parece diminuir o risco de complicações da doença, além
da duração da sintomatologia e do tempo de contágio(1,3,6,7).
A sua administração foi preconizada como terapêutica e como
quimioprofilaxia em doentes de risco. Foi descrita resistência ao
oseltamivir, num pequeno número de casos, por todo o mundo,
maioritariamente em indivíduos com terapêutica/quimioprofilaxia
prévias ou imunodeficientes(3,8,9).
Em todas as fases da epidemia houve preocupação em
diminuir a sua propagação, entre a população e aos profissionais de saúde, pelo que foram enfatizadas as medidas de
protecção individual e o atendimento e internamento dos doentes em áreas específicas, com isolamento de contacto e
gotícula. Por motivos de gestão de espaço e indisponibilidade
de um teste rápido fiável, foi realizado isolamento de corte
juntando os casos suspeitos e os confirmados, na maioria das
instituições.
MATERIAL E MÉTODOS
Objectivo principal: Avaliar a importância de uma área de
isolamento destinada a crianças com suspeita de infecção por
H1N1, activada no Serviço de Pediatria do Hospital de Santo
NASCER E CRESCER
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António (HSA) – Centro Hospitalar do Porto (CHP) entre 20 de
Novembro de 2009 e 9 de Janeiro de 2010.
Objectivo secundário: Caracterizar a infecção por H1N1
nos doentes internados no referido Serviço, de acordo com os
parâmetros definidos pela Direcção Geral de Saúde (DGS)(5).
Foi realizada revisão dos processos clínicos dos doentes
internados com infecção por H1N1, suspeita ou confirmada, no
Serviço de Pediatria do HSA-CHP no ano epidemiológico de
2009/2010.
Os dados foram obtidos através da consulta do processo
clínico dos doentes e tratados em Microsoft Excel 2007.
A importância da área de isolamento foi determinada através das taxas de ocupação e de contágio. A taxa de ocupação
foi calculada considerando o número de camas (8), e dividindo o
número total de dias de internamento pelos dias de internamento
disponíveis. A taxa de contágio foi calculada pela razão entre
o número de casos de infeção nosocomial e o número total de
casos.
As variáveis consideradas para a caracterização da infecção por H1N1 foram as seguintes: idade, sexo, etnia, semana
de internamento, apresentação clínica inicial [definição de caso
segundo orientação técnica (OT) 1 da DGS – Quadro I], factores
de risco (OT 1 – Quadro II), motivo de internamento, indicação
para investigação laboratorial (OT 2 – Quadro III), resultados
analíticos, terapêutica (OT 7 – Quadro IV), co-infecções e complicações (OT 1 – Quadro V)(5).
Quadro I - Definição de caso suspeito de infecção por influenza A H1N1 (OT1) (5)
Quadro III - Critérios para investigação etiológica laboratorial
num caso de suspeita de infecção por influenza
A H1N1 (OT 2) (5)
• Início súbito de febre (temperatura ≥38 °C) ou história de febre nos
últimos dias e, pelo menos, dois dos seguintes sintomas:
- tosse,
- cefaleias,
- odinofagia,
- mialgias/artralgias,
- rinorreia,
- vómitos/diarreia
e/ou
• Doente internado com síndroma gripal;
• Doente em UCI;
• Doente internado com pneumonia;
• Grávidas;
• Criança ≤ 12 meses;
• Suspeita de resistência do vírus aos antivirais;
• Investigação de cluster (dois primeiros casos);
• Profissional de saúde, com contacto directo com doentes.
• Doença respiratória aguda grave (incluindo pneumonia) sugestiva de
etiologia infecciosa.
Nota:
• Os lactentes, principalmente se tiverem idade ≤ 3 meses, podem
apresentar apenas febre ou hipotermia e prostração; mas também um
quadro clínico de sépsis, suspeito ou confirmado.
• Após os 3 meses a infecção poderá manifestar-se por infecção respiratória
baixa, de gravidade variável, nomeadamente bronquiolite, pneumonia,
bronquite, derrame pleural.
Quadro II - Factores de risco para infecção por influenza A H1N1
(OT 1) (5)
• Idade <5 anos e, em particular, crianças menores de 2 anos. Até aos 12 meses
considera-se uma situação de risco acrescido
• Portadores de doença crónica (principalmente se grave e/ou descompensada):
- pulmonar (incluindo asma com necessidade de terapêutica diária com
corticóides inalados);
- cardiovascular (excluindo hipertensão arterial isolada);
- renal;
- hepática;
- hematológica (incluindo drepanocitose);
- neurológica e neuromuscular;
- metabólica (nomeadamente diabetes mellitus);
- oncológica.
• Imunossupressão (incluindo imunossupressão induzida por medicamentos ou
infecção por VIH);
• Grávidas;
• Indivíduos de idade ≤18 anos sob terapêutica de longa duração com salicilatos;
• Obesidade mórbida (IMC ≥ 25 se idade ≤10 anos, IMC ≥35 se idade >10 e
<18 anos).
Quadro IV - Critérios para instituição de terapêutica antiviral nos
casos de infecção por influenza A H1N1 suspeita ou
confirmada (OT 7) (5)
• Critérios de gravidade clínica ou doença progressiva;
• Portadores de doença crónica (sobretudo se grave ou descompensada), imunodeprimidos, obesidade mórbida;
• Idade <2 anos;
• Grávidas e puérperas;
• Profissionais de saúde;
• Doentes internados (qualquer que seja o motivo).
Quadro V - Complicações da infecção por vírus influenza A
H1N1 (OT 1) (5)
Complicações com gravidade variável:
• Agravamento de doença crónica subjacente
• Infecção respiratória alta: sinusite, otite, laringite ou laringo-traqueíte
• Infecção respiratória baixa: pneumonia (inclui pneumonia bacteriana secundária), bronquiolite
• Complicações cardíacas: miocardite, pericardite
• Complicações músculo-esqueléticas: miosite, rabdomiólise
• Complicações neurológicas: encefalopatia aguda ou pós-infecciosa, encefalite,
convulsões febris
artigo original
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NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
RESULTADOS
No período de 20 de Novembro de 2009 a 9 de Janeiro
de 2010, no Serviço de Pediatria do HSA-CHP, foi activada uma
área de isolamento de contacto e gotícula (uso de viseira, máscara, luvas e avental), com lotação de 8 camas, adequadas para
as diferentes faixas etárias.
Foram internados 28 doentes, o que correspondeu a uma
taxa de ocupação de 36%.
A infecção por H1N1 foi confirmada em 15 casos (54%). Cinco doentes (18%) não tinham indicação para efectuar investigação laboratorial, de acordo com as orientações da DGS, embora o
teste tenha sido positivo num deles. Entre os 23 doentes com indicação para investigação, a infecção foi confirmada em 14 (61%).
Durante o mesmo período, foi efectuada pesquisa do vírus
H1N1 a 25 doentes internados no referido Serviço, mas fora da
área de isolamento, tendo a infecção sido confirmada em três dos
casos (12%). Cinco doentes (20%) não apresentavam indicação
para a colheita, embora o teste tenha sido positivo num deles.
Todos os casos de infecção por H1N1 foram adquiridos na
comunidade, tendo a taxa de contágio na enfermaria sido nula.
Fazendo uma análise conjunta dos doentes internados no
Serviço de Pediatria do HSA-CHP com infecção por H1N1, no
ano epidemiológico de 2009/10, obtém-se um total de 23 casos,
5 dos quais antes da área de isolamento ter sido activada (Gráfico 1). A duração de internamento variou entre dois e 78 dias,
com média e mediana de oito e cinco dias, respectivamente.
A idade dos doentes internados com infecção por H1N1 variou entre as seis semanas e os 16 anos (mediana de um ano):
nove lactentes (< 12 meses), seis crianças com 1-5 anos, seis
crianças com 5-10 anos e dois adolescentes com 11 e 16 anos,
todos de etnia caucasiana e 65% do sexo masculino.
Relativamente à forma de apresentação clínica, depois
da febre, presente na totalidade dos casos, a tosse (74%), a rinorreia (52%) e os vómitos (43%) foram os sintomas mais frequentes. A tríade febre, rinorreia e tosse, associada ou não a
outros sintomas, verificou-se em 10 casos (43%). A odinofagia
(um caso), a diarreia (um caso) e as mialgias (dois casos) foram
sintomas menos comuns.
Dezoito doentes (78%) apresentavam factores de risco, nomeadamente idade inferior a cinco anos (14), imunossupressão
e obesidade mórbida (1), doença pulmonar crónica – asma sob
corticoterapia inalada (1) e epilepsia (2).
Três doentes (13%) não tinham indicação para investigação laboratorial, atendendo a que, segundo as orientações da
DGS (Quadro I), não preenchiam os critérios para definição de
caso suspeito de infecção por H1N1: lactente de nove meses
de idade com febre e rinorreia, criança de um ano com febre e
tosse, criança de sete anos com febre e vómitos.
Os principais motivos de internamento foram: febre em pequeno lactente (30,4%), pneumonia e intolerância oral (17,4%),
vómitos incoercíveis (8,7%) e hipoxemia (8,7%).
Além da pesquisa do vírus H1N1 por RT-PCR em zaragatoa
da naso e orofaringe, os exames complementares de diagnóstico
realizados foram: hemograma (91,3%), proteína C reactiva (87%)
e bioquímica sérica com transaminases (21,7%) (Quadro VI).
Quadro VI - Resultados de exames complementares de diagnóstico
Exame complementar
n
Valor
médio
Valor
máximo
11,7
12 008,0
50,3
35,4
257 857,0
13,7
26 730,0
91,6
75,1
436 000,0
9
2270
8
3
43 000
Hemograma
Hemoglobina (g/dL)
Leucócitos (/μL)
Neutrófilos (%)
Linfócitos (%)
Plaquetas (/μL)
21
Proteína C Reactiva (mg/L)
20
47,9
352,2
0,3
Transaminases
AST (U/L)
ALT (U/L)
5
44
21
51
23
35
19
N.º de casos
Infecção confirmada pelo vírus H1N1
Semana de internamento
Gráfico 1 – Distribuição temporal da infecção por influenza A H1N1 no Serviço de Pediatria
10
artigo original
original article
Valor
mínimo
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Quinze doentes (65%) efectuaram telerradiografia torácica,
tendo revelado alterações em 9 casos: hipotransparência sugestiva de condensação (5) e infiltrado intersticial (4).
A terapêutica antiviral não foi instituída em 10 casos (44%), o
que não está de acordo com as orientações da DGS (Quadro IV).
Não se registaram intolerâncias ou efeitos adversos associados
ao tratamento, embora tenha sido documentado um caso de resistência ao oseltamivir, confirmado no Instituto Ricardo Jorge.
Entre os 23 doentes internados com infecção por H1N1,
verificou-se uma co-infecção: meningite por enterovírus. Quanto à evolução, sete doentes (30%) apresentaram complicações:
pneumonia de provável etiologia bacteriana (5), convulsões febris (1) e abcessos esplénicos (1), mas nenhum necessitou de
admissão em unidade de cuidados intensivos. Não se registaram
sequelas nem óbitos.
DISCUSSÃO
A DGS estima que a infecção por vírus influenza A H1N1
pandémico teve uma incidência de 10% em Portugal(4). Houve
uma incidência elevada em crianças e jovens, com maior taxa de
internamentos de lactentes e crianças em idade pré-escolar. Assim, uma análise dos internamentos associados a esta doença
num Serviço de Pediatria parece ser pertinente.
A DGS determinou a activação da área de isolamento do
serviço de Pediatria do HSA-CHP, um hospital central, aquando
do pico de incidência da doença, vários meses após o início da
pandemia. Porém, a taxa de ocupação desta área de isolamento
foi baixa (36%), pelo que poderá ter sido sobredimensionada.
Dos doentes com infecção por H1N1 confirmada, a maioria (65%) esteve internada na área de isolamento criada para
o efeito, juntamente com outros doentes com síndrome gripal,
sem identificação desse agente. Contudo, não houve registo de
contágio no internamento e todos os casos confirmados foram
adquiridos na comunidade, pelo que esta área cumpriu o seu
objectivo.
Relativamente à distribuição temporal dos casos de infecção por H1N1, a maioria ocorreu na segunda quinzena de Novembro e na primeira semana de Dezembro, sobreponível ao
descrito pela DGS(4), segundo a qual o pico de incidência em
Portugal ocorreu na segunda quinzena de Novembro, com um
decréscimo posterior, mais acentuado a partir das últimas duas
semanas do ano civil.
A distribuição etária também está de acordo com o descrito
pelas instituições oficiais, com um predomínio das faixas etárias
mais baixas, compreensível dado que se trata de um estudo realizado em doentes internados num Serviço de Pediatria. Não
temos registo de casos em recém-nascidos, cujo internamento
terá ocorrido prioritariamente em unidades de cuidados intensivos e/ou intermédios especializadas.
Neste estudo, a maioria dos casos correspondeu a doentes
do sexo masculino, com um valor superior ao descrito pela DGS.
Nas descrições publicadas, a proporção tem sido variável(4,11,12).
A apresentação clínica foi compatível com o descrito, com
predominância da associação de febre, tosse e rinorreia(2,5,11,12).
Porém, a infecção por H1N1 foi confirmada em pouco mais de
metade dos casos suspeitos internados, o que pode ser justificado por se tratar de um quadro clínico inespecífico, provocado por
diversos agentes virais.
No grupo estudado, 13% dos casos de infecção por H1N1
não apresentavam critérios clínicos para definição de caso suspeito, podendo denotar uma baixa sensibilidade dos critérios da
DGS(2,5). Contudo, a definição de síndrome gripal inclui queixas
subjectivas, nomeadamente mialgias/artralgias ou cefaleias, que
em lactentes e crianças pequenas não são expressas.
Grande parte das crianças internadas apresentava factores
de risco, sendo o mais prevalente a idade <5 anos. Houve um
número reduzido de doentes com patologia crónica, o que pode
dever-se a um maior cuidado com a prevenção nessas crianças,
relativamente a medidas gerais e vacinação.
O principal motivo de internamento foi febre em pequeno
lactente, o que é explicado por uma atitude mais proactiva perante quadros febris em lactentes e crianças pequenas. Os outros
motivos estão relacionados com a presença e/ou suspeita de infecções graves como complicações ou diagnóstico diferencial, e
com intolerância oral.
A variabilidade dos resultados analíticos pode ser explicada pelas características da própria infecção por vírus influenza
H1N1. Alguns casos (5) com suspeita de sobreinfecção nomeadamente pneumonia bacteriana apresentaram valores mais elevados dos marcadores inflamatórios. Apesar de, na literatura, a
linfopenia ser referida como possível marcador precoce de diagnóstico (9), neste estudo isso não foi confirmado.
De acordo com as orientações da DGS, todos os doentes
internados com síndrome gripal tinham indicação para terapêutica com oseltamivir. Neste estudo, verificámos que esta não foi
instituída em quase metade dos casos confirmados o que poderá
ser explicado pela demora na confirmação etiológica e/ou melhoria clínica na ausência de terapêutica. No entanto, os estudos
confirmam a eficácia do oseltamivir na redução das complicações e do contágio(3,6,7), pelo que se considera que a terapêutica
antiviral deveria ter sido instituída.
Neste estudo, foi documentado um caso de resistência ao
oseltamivir, numa criança com uma imunodeficiência (síndrome
de DiGeorge e síndrome de Evans corticodependente) e obesidade mórbida, que havia tido o diagnóstico de gripe A e realizado a terapêutica antiviral adequada em ambulatório, antes
de ser internada. O défice imunitário e a terapêutica prévia com
oseltamivir são dois factores associados à maioria dos casos de
resistência descritos(8,9).
Segundo a OMS, apesar de uma elevada taxa de incidência
e de hospitalização na idade pediátrica, as complicações graves são mais frequentes nos adultos jovens(2,3,4). Neste estudo,
considerou-se ocorrência de complicações em 30% dos casos,
inlcuindo as admitidas pela DGS: pneumonia e convulsões febris. A criança com infecção resistente ao antiviral teve um internamento prolongado (78 dias) e complicado por abcessos esplénicos. Apesar de não estar documentada, não pode ser excluída
a associação desta complicação à infecção por H1N1.
No período em que decorreu este estudo, já estava em curso o programa de vacinação, que para os doentes com patologia
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crónica teve início a 2 de Novembro e para as crianças até aos dois
anos a 16 de Novembro(5). Apesar das indicações, nenhum dos
doentes envolvidos neste estudo tinha registo desta vacinação.
CONCLUSÃO
Os dados disponíveis sobre a epidemia pelo vírus H1N1,
no ano epidemiológico 2009/2010, foram fornecidos pelas organizações governamentais, dispondo-se de escassas casuísticas
locais(11,12,13).
O impacto parece ter sido muito inferior ao previsto, em
termos de incidência, morbilidade e mortalidade, o que pode
dever-se às características da própria doença, ou ser uma consequência da instituição precoce e efectiva das medidas de contenção(3,7).
No entanto, devemos registar e aprender com os casos
que evoluem de forma menos favorável, confrontar resultados,
e rever estratégias que possam ser adoptadas numa futura epidemia.
H1N1 INFECTION IN A PEDIATRIC UNIT
ABSTRACT
Introduction: The influenza A H1N1 infection was the first
pandemic in this century. To reduce the transmission, personal
protection measures were emphasized and clinical observation
and impatient care took place in specific areas, with respiratory
droplet isolation.
Objectives: To evaluate the importance of an isolation area
for children admitted to a pediatic ward with suspected H1N1 infection. To characterize of the infection in hospitalized patients.
Material and methods: Clinical files’ review. Evaluation
according to parameters set by National Health Authority review
using Microsoft Excel 2007.
Results: The isolation area had eight beds, and 36% occupancy. Of 28 inpatients, 82% met criteria for investigation, positive in 54%. Investigation was done on 25 patients out of isolation, positive in 12%. Nosocomial infection did not occur.
There were 23 cases, age ranged from six weeks to 16
years, 74% from November 16th to December 6th. Fever was
always present, cough, coryza and vomiting were common. The
reasons for hospitalization were fever in small infants, oral intolerance and hypoxemia. The antiviral therapy was instituted in 13
patients, with one resistance. Seven of the patients with H1N1
infection had complications: probable bacterial pneumonia (five),
febrile convulsions and splenic abscesses.
Conclusions: The protective measures were effective. The
area was oversized. With regard to the pandemic, there is basically data from government organizations. It seems important to
compare results to define strategies for a future epidemic.
Keywords: influenza, H1N1, pediatric.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 8-12
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CORRESPONDÊNCIA
Joana Magalhães
E-mail: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Luxação congénita do joelho: que abordagem?
Revisão teórica e experiência de um Hospital Pediátrico
Luísa Neiva Araújo1, Eduardo Almeida2
RESUMO
Introdução e objectivos: A luxação congénita do joelho é
uma anomalia rara que se integra no grupo das deformidades de
hiperextensão do joelho. A sua incidência é cerca de 1% da displasia do desenvolvimento da anca. Associa-se com frequência a
outras anomalias músculo-esqueléticas, sendo as mais comuns a
displasia do desenvolvimento da anca e o pé equino-varo. Em geral, o diagnóstico é estabelecido imediatamente após o nascimento. O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico, sendo que o
primeiro habitualmente resulta em melhor prognóstico. Os autores
relatam a sua experiência no tratamento da luxação congénita do
joelho e os resultados favoráveis nos doentes submetidos a redução conservadora imediata nas primeiras horas de vida.
Material e métodos: Realizou-se um estudo retrospectivo
descritivo com base na análise dos processos clínicos dos doentes com o diagnóstico de luxação congénita do joelho tratados
no Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Maria Pia, entre
1990 e 2008.
Resultados: Apresentam-se quatro casos de luxação congénita do joelho: três tratados por métodos conservadores e um
submetido a tratamento cirúrgico.
Discussão e conclusões: Os autores salientam a importância da redução imediata da luxação nas primeiras horas de vida
como fronteira de atitude terapêutica e prognóstico, onde o pediatra pode assumir um papel determinante no reconhecimento e
referenciação atempadas. Destacam a importância do exame ortopédico completo, para exclusão de outras deformidades associadas e a aparente irrelevância da patologia de base para o sucesso
do tratamento conservador precoce. A propósito dos casos clínicos
apresentados, faz-se uma revisão sumária desta patologia.
Palavras-chave: luxação congénita, joelho, criança.
tacto entre estas duas superfícies articulares. Foi descrita pela primeira vez por Chatelain, em 1822, na Suíça, citado por Shattock
em 1891(1). Apresenta uma incidência de 1:100000 nados-vivos,
cerca de 1% da incidência da doença displásica da anca (DDA). A
maioria ocorre de forma esporádica, com alguns casos familiares.
Segundo Jacobsen e Vopalecky, é mais comum no sexo feminino, na proporção de 10:3(2). Um terço dos casos é bilateral, e os
restantes com igual atingimento à direita e esquerda. Associa-se
com frequência (60%) a outras anomalias músculo-esqueléticas(3),
sendo as mais comuns a DDA e o pé equino-varo.
Diagnóstico e classificação
Em geral, o diagnóstico é estabelecido imediatamente após
o nascimento através do exame objectivo detalhado. À inspecção torna-se evidente o característico deslocamento anterior da
extremidade proximal da tíbia em relação aos condilos femurais,
permitindo a sua classificação em 3 graus(4,5) (Anexo 1):
I - Genus recurvatum: Hiperextensão do joelho superior a 15º;
conservada a capacidade de flexão completa;
II - Subluxação anterior da tíbia sobre o fémur: Hiperextensão
do joelho superior a 15º; flexão limitada do joelho a partir da
posição neutra; resistência ou instabilidade à flexão;
III - Luxação anterior: Joelho luxado anteriormente, normalmente sem flexão e instável (casos quase sempre cirúrgicos)
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 13-18
Anexo 1
INTRODUÇÃO
A luxação congénita do joelho é uma anomalia rara que se
integra no grupo das deformidades de hiperextensão do joelho,
sendo característico desta patologia o deslocamento anterior da
tíbia em relação ao fémur com graus variáveis de perda de con__________
1
2
S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto
S. Ortopedia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
As ecografias pré-natais podem fazer suspeitar o diagnóstico ao mostrar espessamento focal na área de fibrose do músculo
quadricípete e uma área anormal, hiperecogénica na porção distal deste músculo(6). O exame radiológico pode auxiliar a avaliação da forma dos condilos femurais e tibiais e das suas relações,
sendo a RMN um bom exame para avaliar o grau de fibrose do
quadricípete e os ligamentos, sobretudo nos casos de luxação
anterior (grau III).
artigo original
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Tratamento e prognóstico
O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. A escolha
depende da gravidade da luxação, idade do paciente e da presença de outras deformidades associadas. O objectivo é obter
uma capacidade de flexão mínima de 90º, independentemente
do tipo de intervenção.
Tratamento conservador:
Tratamento imediato, idealmente nas primeiras 24-48 horas
de vida. Redução da luxação através de manipulações de tracção suaves e vários movimentos de flexão passiva dos joelhos,
posteriormente imobilizados com uma tala sintética ou aparelho
gessado cruro-podálico, na posição de flexão conseguida (maior
grau de flexão possível). Ressalva-se especial atenção com
eventuais fracturas ou deslocamentos epifisários da tíbia proximal em manipulações mais “vigorosas” que darão a impressão
de flexão, tratando-se evidentemente de deformidade da lesão.
Esta manobra deverá ser repetida semanalmente até a obtenção
da completa flexão articular e a imobilização gessada tubular,
geralmente é mantida durante seis semanas.
CASOS CLÍNICOS
# Caso 1
Recém-nascido (RN) do sexo feminino, nascida a 2/8/1992.
Antecedentes obstétricos e pré-natais irrelevantes, com ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo.
Apresentação de pelve. Parto por cesariana. Síndrome polimalformativo detectado ao nascimento, caracterizado por luxação
bilateral dos polegares, ancas e joelhos (grau II) e pés equino
varos. Outros estigmas malformativos associados: microftalmia,
boca em tenda, implantação baixa dos pavilhões auriculares,
choro débil. CIV do septo trabeculado, grande. O diagnóstico final foi compatível com Síndrome de Larson.
Doente referenciada a Ortopedia com um mês de vida (Figura 1.1). Por impossibilidade de tratamento conservador com
aquela idade, foi submedida redução cirúrgica de LCJ bilateral
tendo realizado quadricíplastia aberta pela técnica de Ficher e
capsulotomia anterior (Figura 1.2). Posteriormente foi submetida
a correcção cirúrgica de pé boto equino varo bilateral; luxação
congénita da anca bilateral; luxação congénita da metacarpo
falângica do polegar bilateral. Actualmente apresenta marcha
autónoma com ortótese (Figuras 1.3 e 1.4).
Tratamento cirúrgico:
Recomendado nos casos de deformidades graves ab initio
(geralmente grau III), diagnóstico tardio ou falência do tratamento conservador (mais de três meses de tratamento conservador
sem evidência de redução da luxação ou flexão articular mínima
de 45º). As técnicas cirúrgicas mais utilizadas na correcção da
LCJ são a quadricíplastia aberta mais capsulotomia anterior pela
técnica de Ficher ou a secção percutânea do quadricipete pela
técnica de Roy e Crawford(7). O tratamento cirúrgico deve ser
realizado antes do início da marcha, idealmente antes dos seis
meses de idade(8). Na presença de outras deformidades associadas, o joelho deve ser tratado em primeiro lugar, seguido do pé
e finalmente da anca.
OBJECTIVOS
Os autores relatam a sua experiência no tratamento da LCJ
e os resultados favoráveis obtidos nos casos submetidos a redução conservadora imediata nas primeiras horas de vida.
Figura 1.1 – Primeira consulta de Ortopedia, com 1 mês de vida.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se uma análise retrospectiva dos processos
clínicos dos doentes com o diagnóstico de LCJ, tratados no
Serviço de Ortopedia Pediátrica na Unidade Maria Pia, CHP
entre 1 de Janeiro de 1992 e 31 de Dezembro de 2008. Os
parâmetros avaliados e que motivaram e o tipo de intervenção
terapêutica foram a idade de apresentação, gravidade da luxação e presença de outras deformidades musculo-esqueléticas
associadas.
RESULTADOS
Os autores apresentam quatro casos de luxação congénita
do joelho (sete joelhos): três tratados por métodos conservadores e apenas um submetido a tratamento cirúrgico.
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Figura 1.2 – Após redução cirúrgica dos 2 joelhos (joelho direito aos 3
meses e joelho esquerdo aos 7 meses).
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Figura 1.3 – Evolução: Cicatrizes
perna direita.
Figura 1.4 – Com aparelho bota.
Marcha autónoma.
# Caso 2
RN do sexo masculino, nascido a 14/11/2007. Apresentação cefálica. Parto eutócico às 38 semanas. Síndrome polimalformativo suspeito em ecografia e ressonância magnética fetal,
confirmado ao nascimento, caracterizado por luxação bilateral
dos joelhos, pé equinovaro bilateral, displasia da anca esquerda,
assimetria da mandíbula e retrognatia (Figura 2.1).
Referenciado a Ortopedia no primeiro dia de vida tendo
sido submetido a redução imediata da luxação congénita dos joelhos (grau III) (Figuras 2.2 e 2.3), posteriormente estabilizados
com tala gessada em flexão. Joelhos reduzidos estáveis, aos 30
dias de vida (Figura 2.4). Outros tratamentos do foro ortopédico
envolveram manipulações e gessos do pé equino varo bilateral,
manipulações do polegar na palma bilateral e colocação de tala
de Koszla (em D5 de vida) por luxação congénita da anca (LCA)
bilateral. Actualmente sem marcha, com doença neuromuscular
em investigação.
Figura 2.1 – Primeira consulta de Ortopedia, com 1 dia de vida.
Figura 2.3 – Primeira consulta de Ortopedia. Após redução
bilateral.
Figura 2.2 – Primeira consulta de Ortopedia. Após redução à direita.
Figura 2.4 – Evolução, com 30 dias de vida: joelhos reduzidos
estáveis.
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# Caso 3
RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes
obstétricos e pré-natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo. Apresentação cefálica.
Parto eutócico.
Luxação congénita do joelho direito (grau III) detectada
ao nascimento (Figura 3.1) tendo sido excluídas outras deformidades.
Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida. Submetida a redução imediata da luxação. Colocada tala gessada em
flexão. Aos nove dias de vida, com joelho reduzido estável, confirmado radiologicamente (Figuras 3.2 e 3.3). Às seis semanas
de vida, curada, com ressonância magnética do joelho: normal.
# Caso 4
RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes
obstétricos e pré-natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo. Apresentação cefálica.
Parto eutócico.
Luxação congénita bilateral dos joelhos, grau I, detectada
ao nascimento, tendo sido excluídas outras deformidades.
Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida (Figura
4.1). Submetida a redução imediata da luxação, conformado radiologicamente. Colocada tala gessada em flexão. Aos dois meses de vida, com joelho reduzido estável e evolução favorável
(imagens não disponíveis).
Figura 3.1 – Apresentação clínica
em D1 de vida.
Figura 4.1 – Apresentação clínica em D1 de vida.
Figura 3.2 – Rx de controlo do joelho pós-redução (D9).
16
artigo original
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Figura 3.2 – Apresentação clínica pós-redução
(D9).
DISCUSSÃO
A LCJ é uma anomalia rara que se caracteriza do ponto
de vista anátomo-patológico por uma contractura do mecanismo extensor do músculo quadricipete e da cápsula anterior da
articulação do joelho, aderências intra-articulares, hipoplasia ou
ausência de rótula (que se começa a formar depois de reduzida
a luxação) e deslocamento anterior dos tendões e músculos flexores, que agem como extensores.
A etiologia é desconhecida. Sugerem-se várias possíveis
causas, nomeadamente intrínsecas (genéticas ou displásicas)
e extrínsecas (mecânicas), podendo ambas coexistir no mesmo
doente(9). As causas intrínsecas incluem doenças específicas
dos músculos ou nervos, ou manifestação de laxidez ligamentar generalizada(10), de que são exemplo: síndrome de Ehlers-Danlos, síndrome de Larsen, artrogriposis multiplex congénita
e anomalias cromossómicas múltiplas (trissomias do cr.9 e 21,
monossomias e trissomias parciais, tetrassomia parcial 9p, e cromossomas em anel 13,14 e 18); As causas extrínsecas incluem
o mau posicionamento fetal, apresentação de pelve, a contractura do músculo quadricípete e outros.
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
A LCJ representa um desafio terapêutico. Apesar de não
ser consensual(11), a maioria dos autores defende que, de um
modo geral, as deformidades de hiperextensão do joelho devem
ser corrigidas logo após o nascimento. Nessa fase, existe maior
elasticidade ligamentar, o que facilita o tratamento, impede o
agravamento natural da deformidade e melhora o prognóstico(5).
O tratamento deve ser precoce e iniciar-se pelos métodos conservadores. Este tem melhor prognóstico, ao garantir um movimento articular final mais estável e amplo e maior força muscular
quadricipital. A dificuldade de redução aumenta com o número
de horas passadas após o nascimento. As formas de LCJ de
intervenção ortopédica mais tardia ou irredutíveis ab initio são
as que apresentam maior consensualidade em termos de atitude
terapêutica, envolvendo técnicas de correcção cirúrgica.
A experiência dos autores foi concordante com um artigo recente que relata o benefício no tratamento conservador imediato
nas primeiras horas de vida. C. Cheng et al (2010), descrevem
a experiencia em 19 casos de LCJ tratados com redução precoce nas primeiras 24 horas de vida, idealmente nas primeiras
oito. Esses doentes responderam favoravelmente ao tratamento
precoce, cujo seguimento em 4,3 anos mostrou uma evolução
funcional normal do joelho afectado, sem complicações. Essa
revisão parece ter sido a primeira a ser publicada demonstrando uma técnica que já era aplicada no Serviço de Ortopedia do
nosso hospital. Com efeito, os resultados apresentados nessa
revisão são comparáveis aos obtidos em três casos da nossa experiência, envolvendo redução imediata nas primeiras 24-48h de
vida. Esta redução fechada (“closed reduction”)(12) tecnicamente
é descrita como emprego de manipulações suaves, em tracção,
onde são aplicadas duas forças simultâneas: uma aplicada à
porção posterior e distal do fémur dirigida para a frente e a outra
aplicada à porção anterior e proximal da tíbia dirigida para trás.
Na nossa experiência a redução manual deve ser progressiva,
de hora a hora, até obtenção do ângulo mínimo de 90º. Posteriormente é feita a estabilização da extremidade imobilizada com
uma tala gessada. Não se verificou necessidade de colocação
de talas gessadas seriadas, uma vez que a redução completa da
luxação foi alcançada num primeiro tempo.
Nos dois primeiros casos, apesar de se tratar de síndromes
polimalformativos a atitude conservadora foi eficaz na redução
da luxação no caso 2. O timing de referenciação acabou por ditar
o tipo de abordagem, independentemente do tipo e gravidade
da patologia de base. É importante excluirmos malformações
coexistentes uma vez que é uma associação significativa e com
implicações terapêuticas.
teira de atitude terapêutica e prognóstico, onde o Pediatra pode
assumir um papel determinante no reconhecimento e referenciação atempadas. Destacam a importância do exame ortopédico
completo, para exclusão de outras deformidades associadas e
a aparente irrelevância da patologia de base para o sucesso do
tratamento conservador precoce.
CONGENITAL DISLOCATION OF THE KNEE:
WHAT APPROACH?
REVIEW AND EXPERIENCE OF A PEDIATRIC HOSPITAL
ABSTRACT
Background and objective: Congenital dislocation of the
knee is a rare anomaly that includes a group of hyperextension
deformities of the knee. Its incidence is about 1% of the
developmental dysplasia of the hip. It is often associated with
other musculoskeletal anomalies, the most common being the
developmental dysplasia of the hip and clubfoot. In general, the
diagnosis is established immediately after birth. Treatment can be
conservative or surgical, and the first one usually results in better
prognosis. The authors report their experience in the treatment of
congenital dislocation of the knee and the favorable outcome in
patients undergoing early reduction.
Material and methods: A retrospective descriptive study
was conducted based upon the analysis of medical records of patients diagnosed with congenital dislocation of the knee, treated
at the Department of Pediatric Orthopedics of Hospital Maria Pia
between 1990 and 2008.
Results: Four patients with congenital dislocation of the
knee are presented: three treated by conservative methods and
one that required surgery.
Discussion and conclusions: The authors highlight the
importance of early reduction of congenital dislocation of the
knee in the first hours of life as a frontier of therapeutic approach
and prognosis. Pediatricians can play a key role in timely recognition and referral. They also emphasize the importance of complete orthopedic examination in order to exclude other associated deformities, and the apparent irrelevance of the underlying
pathology for the success of early conservative treatment. A brief
review of congenital dislocation of the knee is presented.
Keywords: congenital dislocation, knee, child.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 13-18
COMENTÁRIOS
O principal valor desta revisão consiste na sua contribuição para apresentação e abordagem de uma anomalia congénita rara, com poucas referências na literatura científica actual.
Considerou-se igualmente interessante, o sucesso e a experiência demonstrada através da intervenção terapêutica mínima,
conservadora.
Como palavra final, os autores salientam a importância da
redução imediata da LCJ nas primeiras horas de vida como fron-
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CORRESPONDÊNCIA
Luísa Neiva Araújo
E-mail: [email protected]
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Alterações ungueais em Pediatria
Susana Gomes1, André Lencastre2, Maria João Paiva Lopes2
RESUMO
Estima-se que cerca de 7% das crianças com idade inferior
a dois anos tenha pelo menos um tipo de alteração ungueal e
que estas alterações representem até 11% dos motivos de recurso à consulta de Dermatologia Pediátrica. As alterações ungueais adquiridas na criança são semelhantes às observadas
no adulto, contudo diferem em prevalência e existem algumas
particularidades específicas da infância. A patologia ungueal de
origem traumática é a que mais motiva o recurso ao serviço de
urgência. As restantes alterações, sobretudo as crónicas e assintomáticas, são frequentemente desvalorizadas; no entanto,
podem constituir a primeira manifestação de doenças dermatológicas ou sistémicas.
Abordam-se as principais alterações ungueais congénitas,
traumáticas, infecciosas, secundárias a exposição farmacológica, neoplásicas e os sinais ungueais que podem ser identificados no contexto de outra doença cutânea ou sistémica.
Palavras-Chave: unhas, doenças cutâneas, crianças.
Noções Gerais: Embriologia, Anatomia e Fisiologia das
unhas
As unhas ocupam a superfície dorsal das falanges distais
das mãos e pés e são constituídas por quatro epitélios especializados: a matriz ungueal, o leito ungueal, a prega ungueal proximal e o hiponiquium. A matriz é um epitélio germinativo cuja proliferação celular dá origem a uma estrutura de múltiplas camadas
de células corneificadas que cobre o leito, denominada o prato
ungueal. O prato ungueal é uma estrutura rectangular, translúcida, cuja aparência rosada lhe é conferida pelos capilares presentes no leito ungueal. Na porção proximal do prato ungueal é
visível a lúnula, uma estrutura opaca, esbranquiçada, em forma
de semi-círculo que corresponde à visualização da porção distal
da matriz. O prato ungueal está inserido proximal e lateralmente
nas pregas ungueais e termina num bordo livre distal de coloração esbranquiçada causada pelo contacto com o ar. A camada
córnea da prega proximal forma a cutícula(3) (Figura 1).
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 19-24
INTRODUÇÃO
As alterações ungueais em idade pediátrica podem
apresentar-se de forma congénita ou adquirida, corresponder a
simples variantes do normal ou constituir a primeira manifestação de algumas doenças cutâneas ou sistémicas. Estima-se que
cerca de 7% das crianças com idade inferior a dois anos tenha
pelo menos um tipo de alteração ungueal(1) e que estas alterações representem até 11% dos motivos de recurso à consulta de
Dermatologia Pediátrica(2).
A patologia ungueal de origem traumática é a que mais motiva o recurso ao serviço de urgência; as restantes alterações,
sobretudo as crónicas e assintomáticas, são frequentemente
desvalorizadas pelos familiares, contudo a sua identificação e interpretação pode ser fundamental para o diagnóstico diferencial
de várias patologias.
__________
1
1
S. Pediatria, H Espírito Santo, Évora
S. Dermatologia, H Santo António dos Capuchos, Lisboa
Figura 1 – Anatomia da Unha normal
A unha é um derivado ectodérmico, cuja formação se inicia
na nona semana de vida embrionária. Às 13 semanas de idade
gestacional o prato ungueal é já visível e, progressivamente, adquire consistência e rigidez. Após o nascimento a matriz continua
a proliferar. A velocidade média de crescimento das unhas é de
cerca de 3 mm por mês (0,1mm/dia) nas mãos e 1mm/mês nos
pés. Situações de desnutrição podem reduzir esta velocidade e é
possível ocorrer paragem transitória do crescimento ungueal no
contexto de doença grave(4).
As unhas protegem a superfície distal dos dedos, potenciam a discriminação táctil e a capacidade para manipular pequenos objectos(5).
artigo de revisão
review articles
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Sinais ungueais – terminologia
Na maioria das alterações ungueais o diagnóstico é clínico,
pelo que se torna essencial compreender a terminologia adequada à descrição das alterações físicas identificadas no exame
objectivo (Quadro I).
A interpretação destes sinais ungueais é frequentemente
suficiente para estabelecer a correlação com o local anatómico
da unha afectado. Assim, lesões da matriz poderão manifestar-se como linhas transversais, pitting, leuconíquia, fissuração,
estriação longitudinal, onicomadese ou traquioníquia; enquanto
lesões do leito ungueal podem determinar hemorragia, onicólise
e hiperqueratose sub-ungueal(6).
Alterações ungueais observadas no recém-nascido e
lactente
Ao nascimento as unhas são finas, transparentes e friáveis.
O bordo distal livre pode ser encurvado para baixo, cobrindo parte da extremidade distal do dedo, ou exibir uma curvatura para
cima, acompanhada de concavidade do prato ungueal. A coiloníquia é uma alteração comum na criança, afecta habitualmente vários dedos e é auto-limitada, desaparecendo aos dois-três
anos.
O mau alinhamento da primeira unha dos dedos do pé é
uma distrofia ungueal de transmissão autossómica dominante
caracterizada pelo desvio do eixo do prato ungueal relativamente
ao eixo da falange distal. Pode ser unilateral ou bilateral. É uma
situação frequente ao nascimento, com melhoria espontânea
em alguns indivíduos, mas pode persistir até à idade adulta. As
complicações mais comuns incluem a predisposição para unha
incarnada, hipertrofia da prega ungueal lateral e paroníquia (caracterizada pela infecção dos tecidos moles peri-ungueais)(7).
O aparecimento de depressões transversais em todas as
unhas, linhas de Beau, pode ser observado em cerca de 25%
dos lactentes, traduzindo o desaceleramento transitório do crescimento verificado nos primeiros dias de vida. Apesar de ser um
achado comum no lactente, as linhas de Beau podem aparecer
em qualquer idade, manifestando-se habitualmente pelo envolvimento simultâneo ao mesmo nível de todas as unhas, o que
é concordante com uma causa sistémica (por exemplo doença
febril grave). O envolvimento de apenas um membro está documentado num caso de distrofia simpática reflexa(8). O aparecimento de várias linhas de Beau sequenciais traduz vários episódios de doença.
Lesões secundárias ao hábito de sucção digital podem ser
observadas, por vezes, ao nascimento sob a forma de pequenas vesículas de conteúdo límpido peri-ungueais que surgem na
sequência de sucção vigorosa pré-natal (hábito presente desde as 29 semanas de idade gestacional)(4). Durante a infância
10 a 34% das crianças têm comportamentos de sucção digital(9)
pelo que a unha está permanentemente sujeita a um ambiente
húmido que a hiperhidrata e fragiliza. A ocorrência de paroníquia aguda ou crónica é a complicação mais frequente, sendo
os principais agentes o estafilococos e ocasionalmente estreptococos beta-hemolíticos, gram-negativos e Candida albicans.
O papel irritante da saliva contribui para a exuberância da pa-
20
artigo de revisão
review articles
roníquia. A paroníquia pode ainda ocorrer na sequência de lesões traumáticas produzidas, por exemplo, durante o corte das
unhas. Caracteriza-se por sinais inflamatórios da prega ungueal
proximal ou adjacentes à porta de entrada. Se evoluir para a formação de abcesso, com visualização de pus sub-ungueal, este
deverá ser drenado em 48 horas para evitar o estabelecimento
de lesões permanentes na matriz ungueal.
Referem-se em seguida algumas condições congénitas
menos comuns:
A anoníquia congénita é rara, podendo ocorrer de forma
isolada ou associada a outras alterações, nomeadamente esqueléticas, como a sindactilia. A ausência de unha nos polegares
e de rótula integra a síndrome nail-patella. A anoníquia pode ser
também identificada nas síndromes de Coffin-Siris e Hallermann-Streiff.
Entre as displasias ectodérmicas hereditárias salienta-se a paquioníquia congénita, ou síndrome de Jadassohn-Lewandowsky, caracterizada por unhas amarelas ou acastanhadas, de consistência aumentada e aumento da curvatura do
bordo livre que assume a conformação em ferradura.
A braquioníquia é classicamente referida como um sinal
presente na sífilis congénita.
A hiponíquia congénita pode ser secundária à exposição
pré-natal a álcool ou a fármacos, tais como a varfarina, hidantoína e carbamazepina(4).
A ocorrência de baqueteamento digital congénito é uma das
características da osteoartropatia hipertrófica.
A microníquia e outras formas de onicodisplasia estão descritas na síndrome de Iso-Kikuchi.
Está relatada a ocorrência rara de candidíase ungueal
como única manifestação da infecção congénita a Candida albicans(10).
Alterações Ungueais adquiridas
As alterações ungueais adquiridas na criança são semelhantes às observadas no adulto. Importa, porém, salientar que
existem algumas particularidades específicas da infância e, sobretudo, que diferem em termos de prevalência.
Alterações ungueais de etiologia traumática
A ocorrência de traumatismo da unha é uma situação frequente na infância. O espectro das alterações traumáticas inclui
desde alterações agudas, tais como as feridas e hematomas, a
lesões crónicas como as produzidas pela onicofagia e hábitos de
manipulação repetida da unha.
O hematoma sub-ungueal pode ocorrer na sequência de
trauma fechado do leito ungueal que resulta na hemorragia dos
capilares do leito, com acumulação de sangue entre este e o prato ungueal. Manifesta-se por dor e coloração vermelha a negra
da unha. Se a unha estiver intacta pode ser necessário realizar
trepanação da unha com objecto punctiforme aquecido, para
evacuar o hematoma e aliviar a dor(11).
Lacerações ungueais são muito dolorosas e a sua correcção deve ser feita sob anestesia troncular. Se ocorrer avulsão
da unha durante o traumatismo esta deverá ser reposta sob a
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Quadro I – Principais sinais ungueais: terminologia e descrição
Alterações da Conformação da unha
Hipocratismo digital
Descrito por Hipócrates, refere-se à excessiva curvatura longitudinal e transversal das unhas dos dedos das mãos - unhas em vidro de relógio
- habitualmente simétrica e mais exuberante nos três primeiros dedos e associada a hipertrofia das falanges distais. Também denominado dedos
em baqueta de tambor.
Coiloníquia
Unha côncava, com bordos invertidos, sugerindo a aparência de uma colher.
Doliconíquia
Braquioníquia
Macroníquia
Microníquia
O quociente normal entre o comprimento e largura da unha é 1±0,1. Nas situações de doliconíquia este quociente é superior (unhas estreitas e
extensas), na braquioníquia ocorre o inverso (unhas largas e curtas).
Referem-se à alteração da dimenção de uma ou mais unhas que pode ser superior (macroníquia) ou inferior (microníquia) ao habitual.
Onicoatrofia
Redução da dimensão ou espessura do prato ungueal, habitualmente associada a maior fragilidade da unha.
Paquioníquia
Aumento da espessura da unha.
Onicogrifose
Alteração da unha em forma de garra.
Anoníquia
Ausência de uma ou mais unhas. Se ausência parcial pode designar-se hiponíquia.
Alterações da Superfície da unha
Linhas de Beau
Estriação transversal ou sulco visível no prato ungueal. Também se denominam linhas transversais.
Linhas de Mees
Linhas brancas que percorrem toda a extensão transversal da unha e podem atingir uma ou várias unhas. A sua localização altera-se com o
crescimento da unha. Descritas classicamente em associação com a intoxicação por arsénio, podem ser produzidas por diversas noxias.
Pitting (ponteado)
Depressões punctiformes localizadas na porção proximal do prato ungueal, em número, dimensão e profundidade variáveis de acordo com o
envolvimento da matriz.
Traquioníquia
Rugosidade da superfície ungueal que confere aspecto de opacidade acinzentada à superfície da unha.
Alterações do prato ungeal e tecidos moles adjacentes
Pterigium
Existem duas formas: Pterigium dorsal, caracterizado pelo crescimento excessivo da prega ungueal proximal que se funde com a matriz; e pterigium
ventral ou inverso que corresponde à aderência do hiponiquium à face ventral do prato ungueal.
Onicomadese
Descolamento proximal da unha.
Onicólise
Destacamento distal da unha; exibe habitualmente uma coloração amarelada pela interposição de ar entre o leito ungueal e o bordo distal do prato
ungueal na área não aderente.
Hiperqueratose
sub-ungueal
Hiperplasia do tecido sub-ungueal.
Alterações da consistência da Unha
Onicorrexe
Alteração do normal balanço entre a rigidez da unha e a sua flexibilidade (com aumento da rigidez) que origina fragilidade da unha. Pode condicionar
fragmentação do bordo livre da unha conferindo-lhe aspecto irregular.
Onicomalácia
Diminuição da consistência da unha.
Alterações da coloração da unha
Leuconíquia
Coloração esbranquiçada da unha. Pode tratar-se de leuconíquia aparente, se o aspecto embranquecido desaparece à digitopressão estando
mantida a transparência da unha (exposição a agentes de quimioterapia, hipoalbuminémia), ou verdadeira leuconíquia (secundária a lesão da
matriz ungueal). Ocasionalmente pode ocorrer leuconíquia limitada a uma banda longitudinal ou transversal, sendo o traumatismo a causa mais
frequente.
Linhas de Muehrcke
Pares de linhas brancas que percorrem toda a extensão transversal da unha. Traduzem uma alteração da vascularização do leito ungueal e
desaparecem com a pressão digital. Não são alteradas pelo crescimento da unha. Classicamente associadas a albumina sérica <2g/dl, desaparecem
após correcção da hipoalbuminémia.
Melanoníquia
Linha ou banda longitudinal de coloração acastanhada observada no leito ungueal.
Outras discromias
Outras alterações da coloração da unha. Importante o diagnóstico diferencial com coloração exógena (vernizes, pinturas, corantes de plasticina).
artigo de revisão
review articles
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cutícula e suturada com fio de sutura reabsorvível. Deve ser
criado um pequeno orifício na unha para drenagem. Se não
for possível repor a unha deverá ser colocada uma folha de
alumínio estéril a cobrir o leito ungueal durante 3 semanas. É
importante excluir a existência de lesões ósseas (presentes em
50% dos casos)(12).
A onicofagia é um tipo de lesão traumática auto-infligida
resultante da mordedura do bordo distal da unha. A prevalência desta condição é elevada em crianças em idade escolar e
adolescentes e pode associar-se a perturbações psiquiátrica(13).
Complicações decorrentes da onicofagia incluem traumatismo
peri-ungueal e infecção secundária (paroníquia, verrugas peri-ungueais). Podem utilizar-se vernizes com sabor desagradável
como forma de desmotivar a onicofagia, mas os resultados são
limitados.
Lesões ungueais provocadas pelo hábito de manipular as
unhas (por exemplo, manipulação digital persistente ou fricção
da superfície da unha contra objectos), são situações a considerar perante lesões crónicas, inespecíficas e sem outra etiologia
aparente. A perpetuação deste tipo de comportamentos pode
determinar a cronicidade das lesões e a evolução para distrofia
ungueal. A história clínica e a observação prolongada da criança
permitem habitualmente realizar o diagnóstico.
Perante lesões recorrentes, nomeadamente hematomas em
várias fases de evolução, com outros traumatismos associados
e sem correlação obvia com a história clínica há que considerar
a possibilidade de maus tratos ou síndrome de Munchausen por
procuração.
Patologia ungueal e peri-ungueal de etiologia Infecciosa
Etiologia bacteriana
A paroníquia, já anteriormente abordada, é a infecção bacteriana mais frequente. Nas crianças com hábitos de sucção ou
onicofagia os agentes etiológicos mais comuns são provenientes
da cavidade oral. Nos casos de gravidade ligeira a moderada
é em geral suficiente a aplicação de água morna sobre a lesão
e antibioterapia tópica (bacitracina, gentamicina ou mupirocina
aplicadas três vezes ao dia, durante dez dias). A terapêutica
antibiótica sistémica está indicada nas infecções persistentes
ou de maior gravidade e extensão, devendo ser consideradas
as penicilinas com actividade anti-estafilocócica (flucloxacilina,
amoxicilina em associação com ácido clavulânico) ou macrólidos
(eritromicina, claritromicina)(14).
A infecção peri-ungueal por pseudomonas pode surgir como
complicação de unha incarnada e confere coloração esverdeada
à unha e tecido peri-ungueal.
Pode ocorrer dactilite com formação de bolha peri-unguel
secundária à infecção por Streptococcus beta-hemolitico do grupo A, eventualmente com necessidade de drenagem.
Etiologia viral
A infecção pelo vírus do papiloma humano (VPH serotipos 1,2 e 4) pode determinar o aparecimento de verrugas peri-ungueais que causam dor, deformidade e compromisso estético. Como tratamento de primeira linha na criança podem ser
22
artigo de revisão
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utilizadas soluções queratolíticas (por exemplo ácido salicílico
em concentração elevada). A utilização de crioterapia com azoto
líquido é reservada para tratamento de segunda linha por ser
de aplicação dolorosa e requerer mais do que uma aplicação.
Podem utilizar-se imunomoduladores, como por exemplo o imiquimod, ablação por laser ou excisão cirúrgica. A recorrência é
alta.
A infecção periungueal por herpes vírus simplex tipo 1, habitualmente secundária a auto-inoculação de lesões herpéticas
peri-orais, pode desencadear a formação de bolha dolorosa peri-ungeal. A utilização de aciclovir diminui a duração da doença.
Etiologia fúngica
A onicomicose é a onicopatia mais frequente do adulto.
Todavia a sua prevalência em idade pediátrica é baixa (0,2 a
0,44%), sendo excepcional em crianças com idade inferior a 10
anos. Constituem grupos de risco para a doença as crianças com
trissomia 21 ou infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.
O diagnóstico é clínico, complementado pela identificação de
dermatófitos no exame micológico ou no exame directo do raspado ungueal com hidróxido de potássio. Os dermatófitos mais
comummente envolvidos são Trichophyton rubrum, T. tonsurans
e T. mentagrophytes (15).
O tratamento clássico inclui a utilização de anti-fúngicos
sistémicos - terbinafina, fluconazol, cetaconazol ou itraconazol –
em regimes terapêuticos prolongados (como exemplo, cita-se o
esquema posológico de terbinafina: 62,5mg/dia se peso < 20Kg;
125mg/dia se peso 20-40Kg e 250mg/dia se peso > 40Kg, em
tratamento contínuo durante seis semanas no caso de onicomicose de unha da mão ou três meses se atingimento de unha
do pé)(15). Apesar da boa tolerância da terapêutica sistémica e
da baixa incidência de complicações descrita nas várias séries
publicadas, é prudente a avaliação laboratorial mensal da função
hepática.
Em alternativa à terapêutica clássica, alguns autores defendem mais recententemente a utilização de anti-fungicos tópicos
como primeira linha na onicomicose pediátrica, pelo facto destes
agentes terem melhor penetração no prato ungueal da criança
comparativamente ao do adulto onde são considerados ineficazes(16). Soluções ungueais como a amorolfina a 5% e ciclopirox
a 8% estão disponíveis para utilização tópica, embora ainda não
estejam licenciadas para utilização na criança.
Alterações Ungueais adquiridas relacionadas com a exposição a fármacos
São reconhecidos os efeitos secundários de determinados
fármacos sobre as características das unhas. Habitualmente as
modificações envolvem todas as unhas, surgem em relação temporal com a administração do fármaco e desaparecem após a
sua suspensão, podendo, todavia, ser permanentes. Os fármacos mais frequentemente implicados são as tetraciclinas (onicólise e descoloração), antimaláricos e zidovudina (hiperpigmentação)(17). Está descrita a ocorrência de onicomadese secundária à
terapêutica com valproato de sódio(18) e melanoníquia secundária
à terapêutica prolongada com hidroxiureia(19).
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Manifestações Ungueais no contexto de patologia dermatológica
Algumas patologias dermatológicas associam-se a manifestações ungueais que, apesar de frequentemente inespecíficas, podem preceder o aparecimento das manifestações no
tegumento e auxiliar no diagnóstico. Citam-se alguns exemplos.
Eczema atópico: pode observar-se aumento do brilho do
prato ungueal por fricção repetida na pele por coceira. Alterações como distrofia ungueal, pitting e irregularidade da conformação da unha podem ocorrer se existir inflamação da matriz.
O envolvimento eczematoso peri-ungueal pode determinar paroníquia.
Psoríase: ocorre envolvimento ungueal em 7 a 40% das
crianças com psoríase e estas alterações associam-se com
maior prevalência de artrite psoriática. As alterações mais frequentes são o pitting e descoloração, mas pode ocorrer distrofia
ungueal.
Líquen plano: o envolvimento ungueal pode manifestar-se
como distrofia ou pterigium dorsal com perda progressiva e definitiva de unhas.
Alopecia areata: A alteração mais frequente é o pitting; a
onicodistrofia pode preceder a queda de cabelo.
Paraqueratose pustulosa: Doença inflamatória da extremidade digital e unha, de ocorrência rara, mais comum em
crianças com idade inferior a 5 anos. O evento inicial consiste
no aparecimento de vesículas na extremidade distal do dedo e
a evolução habitual incluiu a progressão para distrofia ungueal e
hiperqueratose sub-ungueal.
Doença de Darier: O envolvimento das unhas é frequentemente a manifestação inaugural da doença. O aspecto típico
consiste no aparecimento de uma banda longitudinal de coloração avermelhada, que termina com um defeito triangular do
bordo livre da unha.
Pitiríase rósea: Por vezes associa-se a pitting.
Distrofia de 20 unhas ou traquioníquia: Situação caracterizada pela rugosidade da superfície do prato ungueal de todas as unhas. Pode ser a forma de manifestação de inúmeras
doenças inflamatórias, incluindo a alopécia areata, líquen plano
ou psoríase.
Manifestações Ungueais no contexto de patologia sistémica
Algumas doenças sistémicas acompanham-se de alterações da conformação, estrutura, cor ou velocidade de crescimento das unhas.
A diminuição da velocidade do crescimento das unhas que
acompanha os episódios de doença grave, aguda ou crónica,
pode manifestar-se pelo aparecimento de linhas de Beau, um
achado relativamente frequente e inespecífico.
O hipocratismo é a alteração digital que mais frequentemente se observa em associação com patologias sistémicas
crónicas. (6)
Quadro II – Condições sistémicas associadas a hipocratismo
digital
Doenças
Cardiovasculares
Cardiopatia congénita (cianótica), malformação arteriovenosa pulmonar congénita, insuficiência cardíaca, endocardite
bacteriana
Doenças
Pulmonares
Fibrose quística, infecções crónicas (tuberculose, abcesso),
sarcoidose, fibrose pulmonar, neoplasias
Doenças
gastrointestinais
Doença inflamatória intestinal, parasitose, hepatite, atrésia
das vias biliares
Outras
Hipertiroidismo, infecção VIH, anemia de células falciformes
Outras alterações ungueais sugestivas de doença sistémica estão expressas no Quadro III.
Quadro III – Alterações Ungueais que podem surgir no contexto
de patologia sistémica
Coiloníquia
Anemia ferropénica, hemocromatose, lúpus eritematoso
sistémico, doença de Raynaud
Onicólise
Infecção, hipertiroidismo, sarcoidose, amiloidose, doenças
do tecido conjuntivo, porfiria
Doliconíquia
Síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos e hipopituitarismo
Macroníquia
Síndrome de Proteus, outras megadactilias
Pitting
Síndrome de Reiter, incontinência pigmenti
Coloração amarela
Tuberculose, tiroidite, artrite reumatoide
Leuconíquia
Insuficiência hepática, cirrose, diabetes, hipertiroidismo,
desnutrição
Lúnula azul
Doença de Wilson
Linhas de Mees
Intoxicação por monóxido de carbono, doença de Hodgkin,
malária
Linhas de Muehrcke Hipoalbuminémia
Hemorragias
de Splinter
Endocardite bacteriana, lúpus, artrite reumatóide, síndrome
antifosfolípido, úlcera péptica, uso de contraceptivos (adolescentes)
Telangiectasia
Dermatomiosite, esclerodermia, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatóide
Pterigium ventral
Esclerodermia
Tumores da unha
A patologia tumoral da unha é pouco frequente em pediatria. No entanto, pela gravidade e necessidade de uma elevada
suspeição clínica para que seja feito um diagnóstico precoce
salienta-se o caso particular do melanoma.
Apesar da melanoníquia ser na maioria das situações uma
variante do normal com forte predomínio racial (presente em 77%
dos indivíduos de raça negra), o diagnóstico diferencial com me-
artigo de revisão
review articles
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
lanoma é apenas possível pela realização de exame histológico.
Favorecem a hipótese diagnóstica de melanoma os seguintes
factores: identificação de uma lesão pigmentada do tipo melanoníquia em indivíduo de pele clara, envolvimento de apenas uma
unha, alteração da aparência da lesão, pigmentação da pele das
pregas ungueais, espessura da banda pigmentada superior a 3
mm, história familiar de melanoma ou nevo displásico e alteração da estrutura da unha(20).
CONCLUSÃO
A maioria das alterações ungueais abordadas corresponde
a modificações subtis da estrutura ou aparência da unha, com
impacto estético e sintomatologia variáveis. Embora a correcção
total nem sempre seja possível, o estabelecimento de um diagnóstico correcto é fundamental para esclarecer sobre a eventual
benignidade e prognóstico das lesões e adoptar o esquema terapêutico mais apropriado à optimização estética e sintomática. O
reconhecimento do envolvimento da unha no contexto de outras
patologias deve alertar o médico para a importância da observação sistemática dos sinais ungueais.
NAIL DISORDERS IN PEDIATRICS
ABSTRACT
About 7% of children under two years of age have at
least one type of nail change and these disorders represent
up to 11% of the motifs for consulting Pediatric Dermatology. Acquired nail changes in children are similar to those observed in adults, but there are differences in the prevalence
and there are some particularities of childhood. Traumatic nail
injuries are the most frequent nail disorder observed at the
emergency department. Other disorders, especially chronic
and asymptomatic ones, are often undervalued, although they
might be the first manifestation of systemic or skin diseases.
We focused the most important nail disorders, such as congenital, traumatic, infectious, drug-related, neoplastic and nail signs
that can be identified in the context of skin or systemic diseases.
Keywords: nails, children, skin diseases.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 19-24
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CORRESPONDÊNCIA
Susana Gomes
[email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Endocardite infecciosa num
recém-nascido pré-termo
Cristiana Ribeiro1, Marta Rios1, Luísa Lopes1, Sílvia Álvares2, Elisa Proença1, Ana Guedes1
RESUMO
Introdução: A endocardite infecciosa é uma situação rara
mas grave no período neonatal.
Caso clínico: Os autores descrevem o caso clínico de um
recém-nascido, pré-termo de 31 semanas que ao 15º dia de vida
apresentou quadro séptico pelo que iniciou antibioticoterapia.
Nas hemoculturas efectuadas isolou-se Staphylococus aureus,
sensível aos antibióticos prescritos e o cateter epicutâneo-cava
introduzido no sexto dia de vida foi nesta altura substituído. Ao
25º dia detectou-se sopro sistólico grau II/VI, tendo o ecocardiograma mostrado imagem sugestiva de vegetação na válvula
tricúspide (dimensões-8,5x4mm). Por suspeita de endocardite
bacteriana, efectuou tratamento com vancomicina, gentamicina
e rifampicina. As hemoculturas posteriores foram estéreis e não
se verificou aumento do tamanho da vegetação. Em ambulatório
manteve-se clinicamente bem e actualmente, com nove meses
de idade corrigida apresenta vegetação de 3x3mm.
Conclusão: A suspeita de endocardite bacteriana deve ser
considerada nos recém-nascidos com sépsis hospitalar, internados numa Unidade de Cuidados Intensivos, com colocação de
cateter venoso central, sobretudo se os agentes envolvidos são
o Staphylococcus aureus ou fungos. A base do tratamento é um
curso prolongado de antibioticoterapia com um regime bactericida apropriado. Contudo a mortalidade permanece elevada.
Palavras-chave: catéteres venosos centrais, endocardite,
recém-nascido pré-termo, Staphylococus aureus.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 25-27
INTRODUÇÃO
O diagnóstico de endocardite infecciosa (EI) no período neonatal, apesar de pouco frequente, tem vindo a aumentar, devido
à maior sobrevivência de recém-nascidos (RN) pré-termo que
requerem técnicas invasivas, nomeadamente catéteres venosos
centrais(1,2). A incidência estimada é de 0,07% em RN internados
__________
1
2
S. Neonatologia, Maternidade Júlio Dinis, CH Porto
S. Cardiologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
em Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais(1). Estima-se
que cerca de 8-10% dos casos de EI diagnosticada na população pediátrica ocorra no período neonatal(3). A etiopatogenia é
complexa, mas na maioria dos casos associa-se a lesão a nível do endocárdio ou endotélio vascular que expõe o colagéneo
subendotelial, promovendo a deposição de fibrina e plaquetas,
dando origem a vegetações trombóticas não infecciosas(1,2,3,4,5).
Durante episódios de bacteriémia ocorre colonização da superfície atingida, levando à formação de vegetações infectadas.
Pode ocorrer em RN com cardiopatia congénita, mas mais frequentemente surge em RN com coração estruturalmente normal,
que necessitam de catéteres venosos centrais para alimentação
parentérica(1). Os sinais e sintomas são inespecíficos. Pode não
haver febre, mesmo na presença de septicémia(3). Laboratorialmente caracteriza-se por aumento dos marcadores de infecção,
trombocitopenia e geralmente hemoculturas persistentemente
positivas. A presença de vegetações no ecocardiograma é sugestiva do diagnóstico, mas a sua ausência não o exclui (alguns
ecógrafos não permitem visualização de vegetações inferiores
a 2mm)(2,4). Nos doentes sem cardiopatia congénita, surgem frequentemente na válvula tricúspide. Os principais microorganismos envolvidos são o Staphylococcus aureus, Staphylococcus
coagulase negativos, gram negativos (Klebsiella pneumoniae,
Enterobacter cloacae e Enterococcus faecalis) e fungos.
Os critérios de Duke modificados revistos em 2005 são os
mais consensuais para o diagnóstico desta patologia. São divididos em critérios maiores e menores, considerando-se casos
confirmados aqueles que reúnem dois critérios maiores ou um
critério maior e três menores ou cinco critérios menores, e casos
possíveis aqueles que cumprem um critério maior e um menor
ou três menores(6).
Critérios maiores:
1) Hemocultura positiva
- isolamento de agentes comuns de EI em duas hemoculturas distintas, na ausência de foco primário;
- microorganismo compatível com EI isolado em hemoculturas persistentemente positivas;
- única cultura ou serologia positiva para Coxiella burnetii;
2) Evidência de envolvimento do endocárdio
- Ecocardiograma sugestivo (oscilação de massa intracardíaca na válvula ou estruturas adjacentes; em material protésico na ausência de explicação anatómica
alternativa; abcesso; deiscência parcial de novo de
prótese valvular; insuficiência valvular de novo).
casos clínicos
case reports
25
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Critérios menores:
1) Factor predisponente para EI;
2) febre;
3) fenómenos vasculares;
4) fenômenos imunológicos;
5) evidência microbiológica - hemocultura positiva mas sem
preencher os critérios maiores previamente descritos.
O tratamento baseia-se num curso prolongado de antibióticos bactericidas, geralmente entre quatro a oito semanas, por
via endovenosa(1,2). Alguns estudos referem que a administração de aspirina em baixas doses pode reduzir a incidência de
eventos embólicos e o tamanho da vegetação(1,7). O tratamento
cirúrgico está indicado quando há compromisso hemodinâmico
com sinais de insuficiência cardíaca, culturas persistentemente
positivas apesar de tratamento antibiótico adequado, aumento
do tamanho da vegetação, sobretudo se dimensões superiores
a 10 mm e risco de embolização. A mortalidade nos RN com EI
permanece alta (alguns estudos referem atingir os 55%) e em
grande parte reflecte a população de alto risco que tipicamente afecta(1,2). Na população pediátrica em geral varia entre 10 e
20%, na maioria dos estudos publicados(1). A prevenção da infecção recorrente é importante, uma vez que após um episódio de
EI, o risco de recorrência é elevado.
CASO CLÍNICO
Recém-nascido do sexo masculino, pré-termo de 31 semanas, nascido de cesariana por apresentar traçado cardiotocográfico patológico. O índice de Apgar foi de 5/8, ao primeiro e quinto
minutos, respectivamente e o peso ao nascimento era adequado
à idade gestacional (peso:1305g). O ecocardiograma fetal efectuado às 25 semanas de idade gestacional foi normal (antecedentes
maternos de epilepsia, medicada até à oitava semana de gravidez
com valproato de sódio). Foi internado na unidade de cuidados
intensivos neonatais com necessidade de ventilação não invasiva
no primeiro dia de vida, por doença das membranas hialinas. O
rastreio séptico realizado ao nascimento foi negativo, no entanto,
com trombocitopenia (plaquetas: 65.000/mm3), tendo necessitado
de concentrado de plaquetas no terceiro dia. Ao sétimo dia de vida
apresentava 139.000/mm3 plaquetas e o estudo efectuado excluiu
causas mais comuns de trombocitopenia. Com 15 dias de vida, por
clínica de hipotonia e hiporreactividade efectuou rastreio séptico
que revelou um aumento da proteína C reactiva, desvio da fórmula
leucocitária para a esquerda e trombocitopenia (plaquetas:32.000/
mm3) com necessidade de novo concentrado de plaquetas. Iniciou
vancomicina e amicacina, tendo sido isolado em duas hemoculturas distintas Staphylococus aureus, sensível aos antibióticos
prescritos. O cateter epicutâneo-cava introduzido ao sexto dia de
vida, para nutrição parentérica, foi nesta altura substituído. Ao 25º
dia foi detectado sopro sistólico grau II/VI, tendo o ecocardiograma mostrado coração estrutural e funcionalmente normal, ponta
do cateter insinuada na aurícula direita e imagem hiperecogénica,
móvel, na válvula tricúspide, com cerca de 8,5x4mm sugestiva de
vegetação (Figura 1) e insuficiência tricúspide ligeira (Figura 2).
Por suspeita de endocardite bacteriana, completou oito semanas
26
casos clínicos
case reports
de tratamento com vancomicina, duas semanas com gentamicina
e cinco semanas com rifampicina. Efectuou um mês de tratamento com ácido acetilsalicílico na dose de 3 mg/kg/dia. As hemoculturas posteriores foram estéreis, a velocidade de sedimentação
manteve-se normal e a vegetação apresentou dimensões sobreponíveis. Efectuou ecografias transfontanelares ao sexto e 16º
dias que mostraram hiperecogenicidade periventricular bilateral,
sendo as ecografias subsequentes normais. Manteve-se sempre
hemodinamicamente estável e sem intercorrências neurológicas
ou respiratórias. Verificou-se normalização sustentada do valor
das plaquetas a partir do 53º dia de vida (250.000/mm3). Teve alta
Figura 1 – Imagem hiperecogénica, móvel, na válvula tricúspide, com
cerca de 8,5x4mm sugestiva de vegetação
Figura 2 – Insuficiência tricúspide ligeira
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
ao 71º dia de vida, orientado para Consulta de Cardiologia Pediátrica. Em ambulatório permaneceu sem sintomas cardiovasculares e verificou-se uma redução gradual do tamanho da vegetação. Actualmente, com nove meses de idade corrigida mantém à
auscultação cardíaca sopro sistólico curto no bordo esquerdo do
esterno e apresenta vegetação com dimensões de 3x3mm.
DISCUSSÃO
A variabilidade e inespecificidade da apresentação clínica
da EI no período neonatal acarreta dificuldades e atraso no diagnóstico, a não ser que haja um elevado grau de suspeição. Ecocardiogramas seriados são recomendados nos RN, com sépsis
hospitalar, internados numa Unidade de Cuidados Intensivos,
com colocação de cateter central, sobretudo se os agentes envolvidos são o Staphylococcus aureus ou fungos, mesmo na ausência de alterações de novo na auscultação cardíaca. Após o
diagnóstico de EI o cateter venoso central deve ser removido e o
tratamento com antibioticoterapia endovenosa deve ser iniciado
o mais precocemente possível. São necessárias doses mais elevadas de antibióticos relativamente ao tratamento de uma sépsis
hospitalar isolada, de forma a penetrarem na vegetação. O tratamento cirúrgico está indicado nos doentes com compromisso
hemodinâmico, ausência de resposta ao tratamento antibiótico,
sinais de embolização e aumento do tamanho da vegetação
(dimensão>10mm).
No caso clínico apresentado, o quadro clínico de sépsis
com isolamento de Staphylococcus aureus nas hemoculturas, o
aparecimento de sopro cardíaco/ insuficiência valvular de novo
num RN pré-termo com colocação de cateter venoso central e
o ecocardiograma mostrando vegetação intracardíaca confirmaram o diagnóstico.
Devido ao elevado risco cirúrgico nesta faixa etária, apesar
do tamanho da vegetação no final do tratamento antibiótico ser
sobreponível ao inicial, o facto do RN se ter mantido hemodinamicamente estável permitiu que se optasse por uma atitude expectante. Foi-se verificando diminuição progressiva do tamanho
da vegetação, apresentando na última avaliação uma dimensão
de 3x3mm, pelo que se mantém sem terapêutica. Apesar do
risco de recorrência e de complicações embólicas ser pequeno
atendendo às dimensões actuais da vegetação, nunca pode ser
eliminado.
Este caso raro de EI no período neonatal reforça a importância do conhecimento dos factores de risco e dos sinais sugestivos deste diagnóstico, de forma a instituir medidas terapêuticas
adequadas e atempadas.
INFECTIVE ENDOCARDITIS IN A PRETERM NEWBORN
ABSTRACT
Background: Infective endocarditis is a rare but serious illness in neonatal period.
Case report: The authors describe the case of a preterm
newborn, 31 weeks of gestation who presented at 15th day of life
a condition consistent with neonatal sepsis and antibiotic therapy
was administered. Staphylococus aureus, sensitive to antibiotics
that were prescribed, were detected in blood cultures and the
central venous line introduced at 6th day of life was replaced at
this point. At 25th day an II/VI grade blowing systolic murmur was
heard and the echocardiography showed a suggestive image of
vegetation (size-8,5x4mm) in the tricuspid valve. Bacterial endocarditis was suspected and the newborn was treated with vancomycin, gentamicin and rifampicin. The subsequent blood cultures
were negative and no increase on vegetation size was observed.
In ambulatory, he remained clinically well and actually, with nine
months of corrected age, the size of vegetation is 3x3mm.
Conclusion: Suspicion of infective endocarditis must be
considered in newborns with hospital sepsis in an intensive care
setting, with an indwelling catheter, especially if the agents involved are Staphylococcus aureus or fungi. The cornerstone of
treatment is a prolonged course of antibiotic treatment with an
appropriate bactericidal regimen. However mortality remains
high.
Keywords: central venous lines, endocarditis, preterm
newborn, Staphylococus aureus.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 25-27
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CORRESPONDÊNCIA
Cristiana Ribeiro
e-mail: [email protected]
casos clínicos
case reports
27
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Miosite orbitária numa criança
José Fraga1, Aida Sá1, Cristina Cândido1, José Pereira Pinto2, Fátima Dias1
RESUMO
Introdução: A doença inflamatória orbitária caracteriza-se
por um processo inflamatório, de etiologia desconhecida, que
pode atingir qualquer estrutura da órbita. Apresentamos um caso
clínico da forma que envolve os músculos extraoculares (miosite
orbitária).
Caso clínico: Criança do sexo masculino com nove anos
de idade, sem antecedentes patológicos de relevo, que iniciou
subitamente dor ocular à direita, acompanhada de edema palpebral homolateral. À observação, apresentava proptose, edema
palpebral moderado com rubor local, limitação da elevação da
pálpebra e da elevação e abdução do olho direito, com diplopia.
A investigação efectuada sugeriu o diagnóstico de miosite orbitária, tendo iniciado terapêutica com corticóide sistémico com
resolução do quadro.
Discussão: O presente caso descreve uma entidade nosológica rara em idade pediátrica, habitualmente benigna, mas
que se não reconhecida e tratada precocemente, pode originar
sequelas da mobilidade ocular.
Palavras-chave: miosite orbitária, doença inflamatória da
órbita, manifestações oculares.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 28-32
INTRODUÇÃO
O pseudotumor inflamatório da órbita, actualmente designado por doença inflamatória orbitária (DIO), é um processo
inflamatório dos tecidos orbitários. Apesar de a etiologia ainda
não estar esclarecida, alguns autores sugerem uma origem de
carácter auto-imune, secundária a infecção respiratória ou outro
processo imunomediado(1-5).
A primeira descrição é de 1905, quando Birch-Hirchsfield
descreve uma patologia orbitária caracterizada por aumento do
volume palpebral, na qual a exploração cirúrgica só identificou
um processo inflamatório dos tecidos envolventes. No entanto,
só em 1954, Umiker et al(6). o designa desta forma, pela sua capacidade para mimetizar clínica e radiologicamente um processo
maligno.
__________
1
2
S. Pediatria, H Vila Real, CH Trás-os-Montes e Alto Douro
S. Oftalmologia, H Vila Real, CH Trás-os-Montes e Alto Douro
28
casos clínicos
case reports
Na literatura, estão descritas algumas classificações para
esta entidade. A mais utilizada é a classificação de Rootman(7),
que se baseia na identificação de subtipos, de acordo com a estrutura orbitária na qual o processo inflamatório é predominante:
lacrimal; miosítica; anterior; difusa e apical. O Quadro I compara
as características dos diferentes subtipos.
A DIO acomete principalmente adultos, sendo a sua prevalência em idade pediátrica rara(8). É responsável por cerca de
6% de todas as lesões orbitais. Destas, apenas 6% dos casos
acontecem em crianças(9).
Clinicamente, os doentes apresentam-se com edema e hiperémia palpebrais, proptose, alteração da motilidade ocular, diplopia e dor. É geralmente unilateral. Uma apresentação bilateral
sugere a existência de doença sistémica de base. Em crianças,
podem observar-se sinais e sintomas de compromisso sistémico,
como febre, cefaleias, vómitos e mal-estar geral(1,8).
O diagnóstico é feito pela história clínica, exames físico e
oftalmológico cuidados, estudo analítico, tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) da órbita/seios da
face com contraste, e, em casos duvidosos, biópsia com estudo
anátomo-patológico(1,10).
O diagnóstico diferencial envolve qualquer patologia susceptível de induzir um quadro orbitário agudo, no entanto, em
crianças, é com a celulite orbitária e com a oftalmopatia tiroideia
que mais vezes esta entidade se confunde(1,10).
O tratamento consiste na administração de corticóide via
oral, habitualmente com resposta dramática em 48 a 72 horas.
Outras possibilidades terapêuticas com imunossupressores e radioterapia parecem ter alguma eficácia(1,8-10).
O principal objectivo do presente trabalho é descrever um
caso de miosite orbitária(11,12), um dos subtipos de DIO, em idade pediátrica e ilustrar as dificuldades no diagnóstico diferencial
com celulite orbitária, fazendo referência a aspectos imagiológicos e terapêuticos.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino, de nove anos de idade, raça
caucasiana, natural e residente em Vila Real, sem antecedentes
pessoais relevantes, que iniciou cinco dias antes da admissão
dor ocular direita, acompanhada de edema palpebral homolateral. É negado qualquer outro sinal ou sintoma acompanhante,
incluindo mal-estar geral, anorexia, emagrecimento, febre, vómitos ou cefaleias. São negadas infecção respiratória ou gastrointestinal previamente à sintomatologia actual.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Ao exame objectivo apresentava bom estado geral e de nutrição. Estava apirético e hemodinamicamente estável. A tiróide
era palpável, não aumentada de volume, de consistência preservada e sem massas. Ao exame oftalmológico tinha proptose,
edema palpebral moderado com rubor local, limitação da elevação e abdução do olho direito; referia também diplopia vertical no
olhar para a direita e para cima. A acuidade visual, campos visuais, fundoscopia e reflexos pupilares eram normais. O restante
exame objectivo e neurológico não mostrava alterações.
O estudo analítico inicial com hemograma, bioquímica,
PCR e VS, não mostrou alterações relevantes.
A TC da órbita realizada à admissão (Figuras 1 a 3) mostrou
ao nível da órbita à direita, marcado empastamento do recto medial, assim como ocupação significativa do espaço intra-cónico,
com má definição do recto superior e aumento dos tecidos peri-orbitários, podendo corresponder a lesão de natureza inflamatória ou lesão de outra natureza.
Figura 2 – TC órbita esquerda (corte sagital) sem alterações.
Figura 3 – TC órbitas (corte frontal) mostra espessamento do recto superior e recto medial.
Figura 1 – TC órbita direita (corte sagital) mostra espessamento do recto superior.
Quadro I – Comparação entre os subtipos (formas) de DIO(7)
Miosítica
Músculos
Anterior
Porção anterior do globo
ocular
Lacrimal
Glândula lacrimal
Difusa
Todos os tecidos orbitários
Apical
Ápice da órbita
Apresentação clínica
Dor
Ao movimento
À palpação
Moderada
Moderada
Severa, mas ocasional
Sintomas e sinais
↓ motilidade ocular;
acuidade visual mantida;
sinais inflamatórios locais
Deformação palpebral
em S; quemose e sinais
inflamatórios locais
Uveíte;
descolamento da retina;
↓ motilidade ocular
Bom
Bom
Uveíte;
descolamento da retina;
↓ motilidade ocular
Ocasionalmente com
sequelas
↓ acuidade visual;
↓ motilidade ocular;
proptose e quemose
Ocasionalmente com
sequelas
Reforço difuso com
contraste;
↓ da gordura orbitária
Infiltração apical irregular
com extensão aos músculos
e nervo óptico
Prognóstico visual Bom
Aspectos imagiológicos
TC & RMN
Espessamento muscular
e edema na inserção
muscular
Extensão variável até ao
Edema da glândula lacrimal
nervo óptico;
e tecidos subjacentes
↓ da gordura orbitária
casos clínicos
case reports
29
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Este aspecto é compatível com um processo ocular inflamatório, não se podendo excluir etiologia infecciosa. Perante estes
resultados iniciou terapêutica com metilprednisolona (2mg/kg/dia
endovenosa, durante cinco dias) e antibioterapia (ceftriaxone +
clindamicina) endovenosas, com recuperação quase completa,
persistindo apenas com ligeira limitação na elevação do olho direito (Figura 4).
Perante este diagnóstico iniciou prednisolona 1mg/Kg/dia,
durante 10 dias, com desmame progressivo em quatro semanas,
e resolução completa do quadro clínico.
A restante investigação não revelou alterações sugestivas
da existência de outra patologia de base (Tabela 1).
O exame neurológico e oftalmológico aos três e seis meses
após o início da doença foi normal, assim como a RM aos seis
meses.
Tabela 1 – Investigação etiológica complementar
Figura 4 – Limitação da elevação do olho direito.
Ao nono dia de doença verifica-se recidiva súbita da sintomatologia, pelo que é realizada RM orbitária (Figuras 5 e 6) que
apresentava espessamento do oblíquo superior, rectos superior
e medial à direita e um espessamento dos tecidos peri-orbitários,
traduzindo pseudotumor orbitário (forma miosítica).
Figura 5 – RM orbitária (corte frontal – T2): espessamento do recto superior e medial.
30
casos clínicos
case reports
•
IgG: 1000mg/dL; IgA: 98mg/dL; IgM: 85mg/dL; IgE: 119UI/mL
•
C3: 233mg/dL e C4: 36mg/dL Alfa-1 antitripsina: 190mg/dL
•
IgA e IgG anti-S cerevisae (ASCA): 2,0 UI/mL
•
Anticorpo anti-citoplasma dos neutrófilos (ANCA): negativo
•
Anticorpos anti-receptores acetilcolina: negativo
•
Anticorpo anti-músculo liso: negativo
•
Factor reumatóide: <20 UI/mL
•
Anticorpo anti-nuclear (ANA): negativo
•
Anti-dsDNA: 0,80 UI/mL; anti-SSA: 0,0 UI/mL; anti-SSB: 0,1UI/mL; anti-Sm: 0,0 UI/mL; anti-RNP: 0,9UI/mL; anti-Jo-1: 0,0 UI/mL; anti-Scl 70: 0,0
UI/mL; anti-CCP: 1,6UI/mL
•
Aldolase: 2,7UI/dL Creatina fosfoquinase: 46UI/L
•
TSH: 2,0UI/mL T4 livre: 1,3ng/dL Anticorpos anti-tiroideus: negativo
•
Prova tuberculínica: 0mm
•
Radiografia tórax: sem alterações
•
Ecografia abdominal: sem alterações
Figura 6 – RM orbitária (corte coronal – T2): espessamento do recto superior
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
DISCUSSÃO
O caso clínico presente ilustra as dificuldades para se estabelecer o diagnóstico de DIO na criança. Por um lado, porque é
uma entidade rara nesta faixa etária e por outro lado, pelo facto
de a história clínica e exame físico simularem um quadro de celulite orbitária.
A criança apresentava alguns sinais e sintomas de celulite
orbitária. Apesar de analiticamente não ser compatível com um
quadro infeccioso, a TC orbitária sugeria um processo inflamatório envolvendo os músculos extra-oculares, não excluindo etiologia infecciosa, pelo que iniciou antibioterapia e corticoterapia sistémicas. A evolução clínica inicial foi satisfatória, no entanto após
ter interrompido corticóide verificou-se recidiva das queixas, pelo
que é realizada RM que afirma o diagnóstico de pseudotumor
inflamatório (forma miosítica). Foi reiniciada corticoterapia com
resolução completa do quadro.
Neste caso é curioso observar uma limitação da abdução
do olho direito. Este facto poderá dever-se à inflamação concomitante do oblíquo superior que está em relação próxima com
o recto superior, e cuja sensibilidade da RM não seja suficiente
para permitir esta distinção. Por outro lado a inflamação do recto
medial poderá condicionar uma hiperactividade do próprio músculo limitando a abdução ocular.
A miosite orbitária é um desafio diagnóstico, como se pode
observar no Quadro II onde se enumeram e caracterizam os
diagnósticos diferenciais e suas diferenças(11-14).
Tendo em conta a raridade desta patologia, a realização de
biópsia poderia ter algum interesse(7). No entanto os dados imagiológicos sugestivos, o risco inerente à realização da técnica e a
resposta favorável à corticoterapia permitiram o diagnóstico.
O valor da ecografia, de fácil acesso e baixo custo, poderá
ser importante na exclusão de massa tumoral e na avaliação dos
tendões de inserção dos músculos permitindo o diagnóstico diferencial entre miosite orbitária e oftalmopatia tiroideia, havendo
atingimento da inserção na miosite(15).
A frequência com que esta patologia se tem associado a
infecção respiratória prévia ou a doenças imuno-mediadas tem
levantado a hipótese de este processo ser mediado por mecanismos de auto-imunidade(1,4-7), facto que não se confirmou no
presente caso clínico.
O tratamento da miosite orbitária é semelhante à DIO. A primeira escolha é a corticoterapia com prednisolona, na dose de
1 a 1,5 mg/kg/dia, durante uma a duas semanas com desmame
gradual em 4 a 12 semanas(1,8,10-14). Outras possibilidades terapêuticas com eficácia comprovada em adultos, apesar dos possíveis
efeitos adversos importantes, incluem anti-inflamatórios não esteróides, fármacos imunossupressores (azatioprina, metotrexato,
micofenelato mofetil, ciclosporina, tacrolimus, anti-TNF α), imunoglobulina G hiperimune, anticorpo monoclonal anti-CD20 e radioterapia. A cirurgia reconstrutiva tem um papel fundamental sobretudo nas sequelas resultantes do atingimento muscular(16-18).
O prognóstico a longo prazo da DIO, e da miosite orbitária em particular, é muito variável, dependendo, entre outras, do
grau inicial de envolvimento das estruturas orbitárias, do número
de recidivas e da resposta terapêutica. Se não diagnosticado e
tratado precocemente a possibilidade de alteração irreversível
da mobilidade ocular e do nervo óptico é uma realidade. Esta
criança teve uma evolução bastante favorável, permanecendo
assintomática e com controlo imagiológico sem alterações, seis
meses após o quadro.
Quadro II – Diagnóstico diferencial da miosite orbitária (adapt. 12)
Dor Proptose
Diplopia
Limitação c/
Hiperemia
movimentos
Sintomas palpebrais Observações
conjuntival
oculares
RM: envolvimento muscular e inserção;
Dor com os movimentos;
Acuidade visual N
Miosite orbitária
+
Ligeira
+
+
Ligeira
Moderada
Oftalmopatia tiroideia
-
Variável:
Moderada a grave
+/-
+
Ligeira
Retracção palpebral
RM: sem envolvimento da inserção muscular;
Função tiroideia AN;
+/-
+
+
Edema e hiperemia
Clínica e laboratório sugestivos de infecção
Celulite orbitária
+++ Aguda
+/-
Neoplasia
-
Sub-aguda Crónica
+/-
+/-
-
Edema e proptose
Massa palpável
Outra DIO
+/-
++
+/-
+/-
+/-
Edema e hiperemia
Neuropatia óptica
Trombose seio cavernoso
+/-
+
-
+
+
Edema +/Proptose
Atingimento dos pares cranianos (III, IV, V, VI)
Cefaleias; febre; letargia +/-
Neurite óptica
+
-
-
-
-
Parésia pares cranianos
-
-
+
+
-
Ptose se III par
Clínica depende do par atingido
Miastenia gravis
-
-
+
+
-
Ptose +/-
Inicio insidioso; Agravamento com cansaço
-
Campos visuais atingidos; dor c/ movimentos
oculares
Legenda: DIO – doença inflamatória orbitária; RM – ressonância magnética; N – normal; NA – anormal.
casos clínicos
case reports
31
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
CONCLUSÃO
A miosite orbitária é uma doença rara em idade pediátrica
cujo diagnóstico e tratamento atempado são fundamentais. A RM
da órbita é o exame de imagem mais sensível. O seu diagnóstico
é feito após exclusão de causas secundárias. A primeira linha de
tratamento é a corticoterapia, mas nos casos refractários a utilização de fármacos imunossupressores poderá estar indicada.
ORBITAL MYOSITIS IN A CHILD
ABSTRACT
Background: Orbital inflammatory disease is characterized
by an inflammatory process of unknown etiology, which may affect any structure of the orbit. We describe a case report of inflammation of the extraocular muscles (orbital myositis).
Case report: A previously healthy nine year-old male, with
negative paste medical history, presented with right eye pain and
homolateral eyelid swelling of sudden onset. On physical examination there was proptosis, eyelid edema with moderate local
redness, and diplopia with limitation in the elevation of the eyelid
and of abduction and elevation of the eye. The investigation suggested the diagnosis of orbital myositis. Intravenous corticosteroid therapy was started with clinical improvement.
Discussion: This case report reports a rare, usually benign,
entity in children, which if not early recognized and treated may
cause persistent eye motility dysfunction.
Keywords: orbital myositis, orbital inflammatory disease,
eye manifestations.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 28-32
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CORRESPONDÊNCIA
José Fraga
[email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Síndrome de Miller Fisher numa criança
Dora Gomes1, Filipa Leite1, Nuno Andrade1, Mónica Vasconcelos2, Conceição Robalo2, Isabel Fineza2
RESUMO
Introdução: O síndrome de Miller Fisher, variante do síndrome de Guillain-Barré, é uma doença desmielinizante inflamatória aguda, que é rara em idade pediátrica. O seu diagnóstico
é baseado na tríade oftalmoplegia, ataxia e arreflexia. Em cerca
de metade dos casos está descrita uma intercorrência infecciosa
precedendo os sintomas neurológicos em cinco a dez dias.
Caso clínico: Os autores relatam o caso de uma criança
de cinco anos de idade com disartria, ataxia e oftalmoplegia após
episódio de gastroenterite aguda na semana prévia ao início da
sintomatologia. À observação apresentava disartria, parésia bilateral do VI par, fraqueza muscular distal (de predomínio nos
membros direitos) com ausência dos reflexos osteotendinosos
aquilianos. A investigação analítica e imagiológica inicial não revelou alterações. O resultado do electromiografia foi compatível
com poliradiculoneuropatia subaguda. O diagnóstico de síndrome Miller Fisher foi efectuado após exclusão de outras etiologias.
A evolução clínica foi favorável, sem insuficiência respiratória ou
outras complicações, com melhoria gradual dos défices neurológicos. Houve recuperação da ataxia ao fim de quatro semanas e
da oftalmoplegia três meses após o diagnóstico.
Conclusões: O síndrome Miller Fisher é extremamente raro em idade pediátrica e constitui um desafio diagnóstico
neste grupo etário. O prognóstico é habitualmente favorável. A
propósito deste caso são discutidos os principais diagnósticos
diferenciais.
Palavras-chave: síndrome de Miller Fisher, síndrome de
Guillain-Barré, doença desmielinizante, criança.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 33-36
INTRODUÇÃO
O síndrome de Guillain-Barré (SGB) é a causa mais comum
de paralisia flácida aguda nas crianças. Trata-se de uma polineuropatia periférica de início agudo, de natureza auto-imune, que
é precedida por um episódio infeccioso em mais de metade dos
casos. Classicamente caracteriza-se por paralisia progressiva e
simétrica, geralmente com carácter ascendente, e arreflexia. A pa__________
1
2
S. Pediatria, H São Teotónio, Viseu
Centro de Desenvolvimento da Criança Luís Borges, Consulta de
Neuropediatria, H Pediátrico de Coimbra
ralisia dos músculos respiratórios com necessidade de ventilação
mecânica é uma complicação possível do SGB. Pode ocorrer atingimento dos nervos cranianos. Estão habitualmente associadas
alterações disautonómicas (arritmias, hipotensão postural, flutuações da tensão arterial, sinais vasomotores)(1). O diagnóstico é essencialmente clínico. O estudo do líquido cefalorraquidiano (LCR)
e a electromiografia (EMG) são importantes adjuvantes diagnósticos. A análise do LCR mostra aumento da proteinorraquia e contagem celular <10 células/mm3 (dissociação albumino-citológica).
A electrofisiologia revela diminuição das velocidades de condução nervosa sensitiva e motora, compatível com desmielinização.
O prognóstico é geralmente favorável. A recuperação tem início
duas a quatro semanas após paragem da progressão e na criança
geralmente esta é completa. As sequelas neurológicas estão descritas em 5 a 25% dos doentes e a recorrência em 3% dos casos.
Em 1932, Collier descreveu a tríade ataxia, arreflexia e oftalmoplegia como uma variante do síndrome Guillain-Barré(2). No
entanto, em 1956, Miller Fisher relatou três doentes com esta
tríade clínica, mas como uma entidade separada, mais tarde denominada Síndrome Miller Fisher (SMF)(2,3). Este quadro neurológico é, actualmente, considerado uma doença desmielinizante
inflamatória aguda do sistema nervoso periférico, afectando principalmente os nervos cranianos(3,4). Desde que este síndrome foi
descrito pela primeira vez, em 1956, até 1992 foram relatados
223 casos, destes apenas 32 em crianças. A incidência estimada
na criança é de 2-8 casos/10 milhões(2,4). É mais frequente no
sexo masculino, com uma razão de 2:1, com um pico de incidência nos meses da Primavera(2,5,6). Em dois terços dos casos
está descrita uma intercorrência infecciosa, geralmente infecção
das vias aéreas superiores ou gastroenterite aguda, precedendo
os sintomas neurológicos em cinco a dez dias(2,7,8). Os microrganismos mais frequentemente descritos têm sido o Haemophilus influenzae e Campylobacter jejuni. A presença de anticorpos
anti-IgG GQ1b está associada ao SMF(4,9). Em 60% dos doentes
observa-se hiperproteinorraquia.
O curso natural do SMF é caracterizado por uma boa recuperação, com pouca ou nenhuma incapacidade funcional 10
semanas, em média, após o início da sintomatologia(2,5).
Apresentamos o caso clínico de uma criança de cinco anos
de idade com o objectivo de acrescentar mais informação a uma
entidade neurológica rara em Pediatria, visto que existem, até à
data, poucas revisões casuísticas de SMF publicadas. A propósito deste caso clínico são discutidos os principais diagnósticos
diferenciais.
casos clínicos
case reports
33
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
CASO CLÍNICO
Os autores relatam o caso de uma criança de cinco anos
de idade, do sexo masculino, que, sete dias após episódio de
gastroenterite aguda, inicia diplopia, alteração da voz e desequilíbrio. Este quadro teve início com diminuição da força muscular
dos membros direitos a que se associou limitação da mobilidade
ocular e disfonia. Teria ingerido mel na véspera do início da sintomatologia.
Recorreu ao serviço de urgência do Hospital local (hospital
nível II) com o quadro descrito com três dias de evolução. Ao
exame objectivo foi constatada disartria, parésia bilateral do VI
par, fraqueza muscular distal de predomínio nos membros direitos e ausência de reflexos osteotendinosos aquilianos.
As hipóteses de diagnóstico colocadas inicialmente foram:
síndrome Miller Fisher, botulismo e acidente vascular cerebral. A
investigação inicial, que incluiu glicemia, hemograma e bioquímica sérica, pesquisa de tóxicos na urina, pesquisa de toxina
botulínica nas fezes e tomografia computorizada cerebral, não
revelou quaisquer alterações.
Por agravamento clínico com recusa na marcha e prostração foi transferido para um hospital nível III para apoio de Neuropediatria e complemento de neuroimagem colocando-se nessa
altura as hipóteses de diagnóstico de encefalomielite aguda disseminada (ADEM), síndrome Miller Fisher e botulismo(4,10).
Realizou ressonância magnética (RM) cerebral e medular
que não evidenciou alterações. O exame do LCR, realizado ao
quarto dia de doença, não revelou aumento das proteínas nem
pleocitose. O índice de IgG e as bandas oligoclonais do LCR foram normais. A pesquisa de anticorpos anti-GQ1b não pôde ser
realizada. Não foram efectuadas coproculturas. Realizou EMG
com estudo de condução nervosa, uma semana após o início
dos sintomas, que mostrou uma diminuição das velocidades de
condução nervosa compatível com polirradiculoneuropatia subaguda. Este resultado permitiu o diagnóstico de síndrome de
Miller Fisher.
Ao sexto dia de internamento, constatou-se agravamento
da disartria e ataxia, com aparecimento de disfagia. No entanto
assistiu-se a melhoria clínica 48 horas depois, de tal modo que a
criança teve alta ao 11º dia. Nunca houve compromisso respiratório durante todo o internamento.
A evolução clínica desta criança foi favorável, com resolução completa da ataxia quatro semanas após o início da sintomatologia e melhoria progressiva da oftalmoplegia aos três meses.
DISCUSSÃO
O síndrome Miller Fisher é raro na criança, o que torna o seu
diagnóstico difícil. Pode estar associado a doenças infecciosas,
autoimunes e neoplásicas. No caso apresentado há referência a
gastroenterite aguda na semana prévia ao início do quadro.
O diagnóstico de síndrome Miller Fisher é essencialmente
clínico, pelo que na sua suspeita há que excluir outras causas de
fraqueza muscular, ataxia ou oftalmoplegia. Neste caso, o diagnóstico de SMF foi sugerido atendendo essencialmente à clínica
e efectuado após exclusão de outras etiologias. Realça-se que
na criança há com frequência formas atípicas de apresentação,
34
casos clínicos
case reports
o que implica excluir entidades que cursam com alteração da
vigília como a encefalite e encefalomielite aguda disseminada,
que se apresentam com ataxia como tumores cerebrais e intoxicações, que surgem com défice neurológicos focais como doença vascular cerebral e esclerose múltipla e ainda entidades
que se manifestam com oftalmoplegia como a miastenia gravis
e o botulismo. Assim sendo o diagnóstico diferencial deve ser
ser feito com as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas),
a poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda por compressão medular (traumatismo, tumor, abcesso), doença vascular cerebral, doença dismielinizante do sistema nervoso central
e doença da placa neuromuscular (botulismo, miastenia gravis)
(Quadro 1).
Quadro 1 - Diagnóstico diferencial de síndrome Miller Fisher
Doenças
Doenças
da Junção
Drogas
infecciosas
neuromuscular
Outros
Meningite
Traumatismo
Encefalite
Poliomielite
Botulismo
Miastenia gravis Intoxicação
Doença neoplásica
Doença desmielinizante do SNC
Doença vascular cerebral
Os exames complementares, nomeadamente o exame do
LCR e EMG podem ser normais no início do quadro, pelo que é
fundamental um alto índice de suspeição. No nosso caso, não
se verificou dissociação albumino-citológica no LCR o que pode
ser explicado pela precocidade da realização da punção lombar dado que a elevação da proteinorraquia ocorre tardiamente
(após a primeira semana)(10). Nos casos em que a punção lombar é realizada na primeira semana de doença, pode ser necessário repetir posteriormente para esclarecimento diagnóstico.
A EMG é útil para a confirmação do diagnóstico, sobretudo na
presença de características atípicas, mas também pode ser normal na primeira semana(10). Neste caso clínico o resultado da
EMG veio corroborar o diagnóstico de síndrome Miller Fisher. A
RM cerebral e medular permitiu excluir doença do sistema nervoso central nomeadamente doença desmielinizante.Na investigação etiológica poderia ter interesse neste caso a realização
de coprocultura com pesquisa de Campylobacter jejuni. Não foi
efectuada a pesquisa de anticorpos anti-gangliosídeo GQ1b, o
que poderia ter reforçado o diagnóstico. A patogenia do SMF é
atribuída a mecanismo auto-imune contra os antigénios dos nervos periféricos. Em cerca de 90% dos doentes com SMF podemos encontrar anticorpos anti-gangliosídeo GQ1b. Está descrita
também reactividade cruzada destes anticorpos com epítopos
de Campylobacter jejuni. Os gangliosídeos GQ1b constituem um
componente lipídico abundante dos nervos oculomotores o que
explica a oftalmoplegia(11,12).
A abolição dos reflexos osteotendinosos sugere o atingimento nervoso periférico, achado quase constante nesta entida-
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
de. A principal diferença entre SMF e as variantes mais comuns
do SGB é que os grupos nervosos a serem afectados em primeiro lugar nos doentes com SMF são os dos pares cranianos, resultando em alteração dos movimentos oculares e desequilíbrio.
A paralisia em outras formas de SGB é, na maioria dos casos,
geralmente ascendente com fraqueza muscular progressiva com
início nos membros inferiores.
Atendendo à boa evolução clínica do caso apresentado,
sem perda total da autonomia da marcha e sem necessidade
de ventilação mecânica, não se efectuou tratamento com imunoglobulina endovenosa. O tratamento com imunoglobulina ou
plasmaferese no SMF está reservado para as formas clínicas
moderadas e graves. Considera-se o uso de imunoglobulina
endovenosa ou plasmaferese na doença rapidamente progressiva, com incapacidade de caminhar sem ajuda, agravamento
da função respiratória e necessidade de ventilação mecânica e
na paralisia bulbar significativa(10). No entanto, não há estudos
randomizados realizados em idade pediátrica e os estudos de
evidência de imunoglobulina no SMF são escassos(13,14). O uso
de corticoterapia não está indicado no SMF por falta de evidência científica(15).
O SMF é habitualmente uma situação auto-limitada, como
aconteceu no caso clínico descrito. O prognóstico é quase sempre favorável, com uma boa recuperação e sem défices residuais. No entanto, existem casos descritos com evolução para
insuficiência respiratória e necessidade de ventilação mecânica.
A recuperação habitualmente começa dentro de duas a quatro
semanas após o início dos sintomas e está completa dentro de
seis meses(2).
CONCLUSÕES
O síndrome Miller Fisher é uma entidade neurológica rara
em idade pediátrica e constitui um desafio diagnóstico neste
grupo etário. A tríade clínica característica (ataxia, arreflexia e
oftalmoplegia) e os exames de imagem, nomeadamente a RM
cerebral, exame do LCR e a EMG ajudam a confirmar o diagnóstico e a excluir outras situações que podem ser clinicamente
sobreponíveis. A terapêutica é de suporte, sendo necessária vigilância e monitorização contínua destes doentes. A imunoglobulina endovenosa ou plasmaferese estão indicadas na doença moderada ou grave. O prognóstico é habitualmente favorável, com
recuperação total que ocorre em média ao fim de seis meses.
A CHILD WITH MILLER FISHER SYNDROME
ABSTRACT
Background: Miller Fisher syndrome, a variant of Guillain-Barré syndrome, is an acute inflammatory demyelinating disease that is rare in children. The diagnosis is based on the triad of
ophthalmoplegia, ataxia and areflexia. In about half of the cases
there is an infectious complication preceding neurologic symptoms in five to ten days.
Case report: We describe the case of a five year-old boy
who presented with a three-day history of diplopia, dysarthria and
gait disturbance following an acute gastroenteritis. On examination he was found to have ataxia, areflexia and ophthalmoplegia.
The laboratorial and imaging investigations were normal. The
results of electromyogram were consistent with subacute polyradiculoneuropathy. The diagnosis of Miller Fisher syndrome was
made after the exclusion of other conditions. The clinical outcome was favorable without respiratory failure or other complications, with gradual improvement of neurological deficits. Ataxia
was restored in four weeks and ophthalmoplegia improved three
months later.
Conclusions: Miller Fisher syndrome is extremely rare in
children and is a diagnostic challenge at those ages. Outcome is
usually good. This report outlines the frequency of Miller Fisher
syndrome and lists the differential diagnoses that should be considered.
Keywords: Miller Fisher syndrome, Guillain-Barré syndrome, demyelinating disease, child.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 33-36
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CORRESPONDÊNCIA
Dora Gomes
E-mail: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Paraplegia espástica familiar tipo 4
– antecipação ou variabilidade fenotípica?
Nádia Rodrigues1, Sofia Ferreira1, Lia Rodrigues1, Ana Castro1, Célia Barbosa2, Roseli Gomes2
RESUMO
Introdução: A Paraplegia Espástica Familiar (PEF) é um
grupo heterogéneo de doenças neurodegenerativas hereditárias,
com uma prevalência de 2/100000 indivíduos na população portuguesa. Caracteriza-se sobretudo por espasticidade progressiva e insidiosa dos membros inferiores, por degeneração do feixe
corticoespinhal.
Caso Clínico: Apresentamos uma criança com espasticidade e hiperreflexia progressivas dos membros inferiores, com
vários familiares da linha paterna com sintomatologia semelhante, sugerindo ao diagnóstico de paraplegia espástica familiar. Foi
identificada no probando uma mutação causal de paraplegia espástica familiar tipo 4.
Conclusão: Nesta família, a idade de início variou entre os
cinco e os 50 anos, e diminuiu em média 22,5 anos ao longo de
três gerações e, por outro lado, a apresentação e evolução da
doença foram aparentemente mais graves em gerações sucessivas, sugerindo a existência de fenómeno de antecipação.
Palavras-chave: doença de Strümpell-Lorrain, paraplegia
espástica familiar, paraplegia espástica familiar tipo 4, espastina,
antecipação, variabilidade fenotípica.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 37-39
INTRODUÇÃO
A Paraplegia Espástica Familiar (PEF), também conhecida
como Doença de Strümpell-Lorrain, é um grupo heterogéneo de
doenças hereditárias neurodegenerativas, sendo reportadas prevalências díspares na literatura variando de 0,5 a 12/100000(1-4).
Em Portugal, Silva et al, estima uma prevalência de 2/100000(5).
São características comuns às várias formas da doença a fraqueza muscular e espasticidade progressivas e insidiosas dos
membros inferiores. A penetrância é incompleta e dependente da
idade, é estimada em 85% aos 45 anos de idade(1).
Fisiopatologicamente caracteriza-se por degenerescência
das terminações do feixe corticoespinhal, com atingimento predominante das terminações das fibras mais longas que suprem
os membros inferiores.
__________
1
2
S. Pediatria, H Pedro Hispano, ULS Matosinhos
U. Neuropediatria, H Pedro Hispano, ULS Matosinhos
A maioria são de transmissão autossómica dominante, e
cerca de 40% destas formas correspondem ao tipo 4(5-7). A paraplegia espástica familiar tipo 4 está associada à mutação do
gene que codifica a espastina (SPG4). Apresenta elevada variabilidade inter e intrafamiliar quer na idade de início quer na
evolução clínica(1,7,8). Alguns autores descrevem o fenómeno de
antecipação para alguns tipos da doença, nomeadamente no
tipo 4, ou seja, doença de início mais precoce e mais grave em
gerações subsequentes(1,9-11).
O diagnóstico é sugerido fundamentalmente pela clínica sugestiva e história familiar. Existe diagnóstico molecular em várias
formas da doença, possibilitando o diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantatório.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, cinco anos de idade, referenciada à consulta de Neurologia Pediátrica por dificuldades na marcha com quedas frequentes, cansaço fácil e tendência a marcha
em bicos de pés. Os antecedentes pré ou peri-natais e neonatais
eram irrelevantes. Ao nível do desenvolvimento psico-motor era
notório o atraso na aquisição das etapas motoras, com início da
marcha com apoio aos 18 meses e sem apoio aos 24 meses
de idade e sempre com grandes dificuldades na corrida, sendo
o desenvolvimento cognitivo normal. Na história familiar eram
evidentes sintomas semelhantes em vários familiares da linha
paterna, nomeadamente o pai de 33 anos, com antecedentes
de cansaço fácil com a marcha desde os 25 anos e actualmente
com grandes dificuldades em deambular e com disartria e disfagia; o tio paterno de 28 anos com sintomas idênticos desde
os 25 anos e já com grandes dificuldades de deambulação; a
avó paterna de 53 anos que desde os 50 anos está depende de
apoio de cadeira de rodas; e a bisavó paterna de 72 anos com
dificuldades em deambular sem apoio, desconhecendo a idade
do início dos sintomas (Figura 1).
Ao exame neurológico apresentava dificuldades na marcha
em calcanhares, sem qualquer limitação na marcha em bicos de
pés, hiperreflexia limitada aos membros inferiores, clónus esgotável dos tornozelos, Babinski bilateral e limitação da dorsiflexão
das articulações tibiotársicas. A força muscular e os reflexos osteotendinosos dos membros superiores eram normais. As sensibilidades (dolorosa, térmica, vibratória e proprioceptiva) estavam
preservadas. O restante exame objectivo era normal.
Perante a clínica de fraqueza, espasticidade e hiperreflexia
dos membros inferiores numa criança com vários familiares com
casos clínicos
case reports
37
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
sintomatologia semelhante foi colocada como hipótese diagnóstica a PEF. A apresentação familiar sugeria uma forma da doença
de transmissão autossómica dominante.
A ressonância magnética cerebral e medular foi normal, nomeadamente, sem alterações de sinal da substância branca e
em particular dos feixes piramidais, da estrutura ou morfologia
do corpo caloso.
O estudo molecular foi dirigido inicialmente à pesquisa de
mutações, delecções e duplicações do gene SPG3A, por ser a
forma autossómica dominante que frequentemente se manifesta na infância. Contudo, o estudo por DHPLC (denaturing high-performance liquid chromatography) não identificou mutações,
nem a análise por MLPA (multiplex ligation-dependent probe amplification) identificou delecções ou duplicações do gene SPG3A.
Dada a forte suspeita clínica de estarmos perante uma forma
autossómica dominante da doença, foi ainda realizado o estudo
molecular do gene SPG4, por DHPLC, que identificou a mutação
missense c.1158T>G (p.Asn386Lys) em heterozigotia no exão 8,
mutação já descrita por outros autores e considerada causal(12),
confirmando o diagnóstico de PEF tipo 4.
DISCUSSÃO
A heterogeneidade clínica e genotípica são uma característica chave da PEF. Mesmo dentro de cada família não existe
consistência fenotípica, sendo manifesta a grande variabilidade
na idade de início dos sintomas, na gravidade clínica e evolução
da doença. Apesar de na PEF tipo 4, a idade média de início dos
sintomas serem os 30 anos, a doença poder-se-á apresentar em
qualquer idade. A doença tipicamente evolui inexoravelmente,
habitualmente de forma insidiosa, apesar de alguns indivíduos
permanecerem apenas ligeiramente afectados ou mesmo assintomáticos(7). Esta variabilidade justifica a necessidade de uma
vigilância adequada de familiares assintomáticos.
Figura 1 - Heredograma
38
casos clínicos
case reports
No presente caso é evidente que em gerações sucessivas
a doença se manifestou em idades progressivamente mais precoces e os sintomas são sucessivamente mais graves e rapidamente progressivos, podendo este facto traduzir o fenómeno de
antecipação ou simplesmente a conhecida variabilidade fenotípica da doença. Nesta família, a idade de início varia dos cinco
aos 50 anos e diminui em média 22,5 anos ao longo das três
gerações.
Os cinco indivíduos descritos nesta família distribuídos por
três gerações, não constituem número suficiente para concluir
ou excluir antecipação.
O fenómeno de antecipação, ou seja, a diminuição da idade
de início dos sintomas e/ou o aumento da gravidade dos sintomas em geração subsequentes tem sido descrito em estudos
que envolvem várias famílias afectadas pela doença(11) ou que
estudam apenas uma família mas com muitos indivíduos afectados pela PEF(10). Outros autores, pelo contrário, não encontram
evidências suficientemente consistentes que confirmem este fenómeno na PEF tipo 4(7).
Apesar de a maioria dos indivíduos afectados por esta forma da doença apresentarem a forma pura da doença, a forma
complicada da doença tem sido descrita por vários autores(1,13).
As formas complicadas associam-se a outras manifestações,
como défice cognitivo, epilepsia, retinopatia e neuropatia óptica, ataxia, disartria, surdez, neuropatia periférica e ictiose, entre outras. Nesta família, o pai do probando apresenta sintomas
rapidamente progressivos e também sinais de disfunção bulbar
como a disartria e disfagia, o que sugere uma forma complicada,
não manifesta nos restantes familiares.
Deverá suspeitar-se de PEF em indivíduos com clínica característica e história familiar positiva. Deverá ponderar-se o estudo genético molecular após a exclusão de causas estruturais
de paraplegia espástica. Dada a heterogeneidade genotípica,
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
o estudo molecular deverá ser dirigido pela clínica e forma de
hereditariedade subjacente. O estudo molecular do gene SPG4
deverá ser realizado em doentes com a forma pura de paraplegia espástica familiar autossómica dominante de início na idade
adulta e o estudo do gene SPG3A em formas puras autossómicas dominantes de início na infância. Contudo, à semelhança do
descrito neste caso clínico, em crianças afectadas em que há familiares com doença de início na idade adulta, deve solicitar-se o
estudo molecular do gene SGP4, quer pela sua frequência quer
pelo fenómeno de antecipação, que tem vindo a ser associado a
esta forma de PEF.
A disponibilidade de confirmar, em várias formas da doença, o diagnóstico clínico com o estudo genético molecular, permite oferecer a possibilidade de diagnóstico pré-natal e diagnóstico
genético pré-implantatório, quando a mutação, delecção ou duplicação causais são conhecidas.
CONCLUSÃO
O diagnóstico de paraplegia espástica familiar deve ser
considerado em doentes com sintomatologia característica, nomeadamente fraqueza muscular e espasticidade limitadas aos
membros inferiores, de evolução progressiva e insidiosa, e história familiar positiva. O diagnóstico molecular deverá ser dirigido pela clínica e formas de hereditariedade subjacentes a cada
caso individualmente. São, contudo, necessários mais estudos
que envolvam grande número de famílias, para esclarecer se o
fenómeno de antecipação está de facto associado à PEF tipo 4
ou se se trata apenas de variabilidade fenotípica.
HEREDITARY SPASTIC PARAPLEGIA TYPE 4
– ANTICIPATION OR PHENOTYPIC VARIABILITY?
ABSTRACT
Introduction: Hereditary spastic paraplegia is a heterogeneous group of inherited neurodegenerative diseases, with a
prevalence of 2/100000 in the Portuguese population. It is mainly
characterized by progressive and insidious spasticity of the lower
limbs due to degeneration of corticospinal tracts.
Case Report: We present a child with progressive spasticity and hyperreflexia of lower limbs, with several relatives of the
paternal line with similar symptoms, suggesting the diagnosis of
hereditary spastic paraplegia. A causing mutation of hereditary
spastic paraplegia type 4 was identified in the proband.
Conclusion: In this family, the age of onset varies from five
to 50 years, and decreased in average 22,5 years over three generations. The clinical presentation and progression apparently
tended to be more severe in successive generations, witch these
suggests the phenomenon of anticipation.
Keywords: Strümpell-Lorrain disease, hereditary spastic
paraplegia, hereditary spastic paraplegia type 4, spastin, anticipation, phenotypic variability.
BIBLIOGRAFIA
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Nascer e Crescer 2012; 21(1): 37-39
casos clínicos
case reports
39
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Should neonates sleep alone?
Morgan BE, Horn AR, Bergman NJ
Biol Psychiatry 2011; 70: 817-25.
ABSTRACT
Background: Maternal-neonate separation (MNS) in
mammals is a model for studying the effects of stress on the
development and function of physiological systems. In contrast, for humans,MNSis a Western norm and standard medical
practice. However, the physiological impact of this is unknown.
The physiological stress-response is orchestrated by the autonomic nervous system and heart rate variability (HRV) is a
means of quantifying autonomic nervous system activity. Heart
rate variability is influenced by level of arousal, which can be
accurately quantified during sleep. Sleep is also essential for
optimal early brain development.
Methods: To investigate the impact of MNS in humans,
we measured HRV in 16 2-day-old full-term neonates sleeping
in skin-to-skin contact with their mothers and sleeping alone,
for 1 hour in each place, before discharge from hospital. Infant
behavior was observed continuously and manually recorded
COMENTÁRIOS
Com uma semana de vida, os bebés precisam cerca de 16
horas de sono, repartidas em partes iguais entre o período da
noite e do dia1(1). Contudo, diversos factores podem afectar a
satisfação desta necessidade, e não é incomum o aparecimento
de bebés com choro inconsolável e prolongado, uma das situações que maior stress coloca aos pais(2) e que pode perturbar a
regulação do sono.
Outro factor, é a qualidade da vinculação, sabendo-se que
pode afectar a qualidade do sono e a homeostasia a atingir nos
primeiros meses de vida. No trabalho de LifeBeijers(3), verificou-se que os bebés que tinham mais despertares no primeiro semestre, desenvolviam uma vinculação insegura-resistente aos
12 meses de vida, isto é, são crianças que têm dificuldade em
se tranquilizar através da mãe, demonstrando em relação a
esta busca de contacto e, simultaneamente, resistência a esse
contacto.
Um aspecto que tem sido também discutido quanto aos benefícios emocionais para os bebés, é o de dormirem ou não com
os pais – co-sleeping, podendo significar, conforme os autores,
dormir na mesma cama ou no mesmo quarto dos pais. Considerada como uma forma de dar segurança e expressar afecto, é
uma prática comum, ainda que nem sempre referida pelos pais.
40
artigo recomendado
recommended article
according to a validated scale. Cardiac interbeat intervals and
continuous electrocardiogram were recorded using two independent devices. Heart rate variability (taken only from sleep
states to control for level of arousal) was analyzed in the frequency domain using a wavelet method.
Results: Results show a 176% increase in autonomic activity and an 86% decrease in quiet sleep duration during MNS
compared with skin-to-skin contact.
Conclusions: Maternal-neonate separation is associated
with a dramatic increase in HRV power, possibly indicative of
central anxious autonomic arousal. Maternal-neonate separation also had a profoundly negative impact on quiet sleep duration. Maternal separation may be a stressor the human neonate
is not well-evolved to cope with and may not be benign.
Keywords: Heart rate variability, hidden regulators,
maternal-neonate separation, skin-to-skin contact, sleep,
stress.
Têm sido relatados acidentes – de sufocação e estrangulamento
- de crianças pequenas que dormiam na cama com adultos, pelo
que é uma prática desaconselhada.
Este assunto torna-se no entanto polémico, e tem relevância na norma da prática médica da separação do recém-nascido
da mãe. Neste estudo, esta questão é analisada como possível
factor gerador de stress no bebé, através das suas consequências sobre o sono e bem-estar.
Foram estudados 16 recém-nascidos, que no seu segundo
dia de vida, eram monitorizados com electrocardiograma contínuo, durante uma hora em duas diferentes condições de sono –
em contacto pele-a-pele com a mãe, e num berço junto da cama
da mãe. A variabilidade da frequência cardíaca foi o parâmetro
escolhido para quantificar a actividade do Sistema Nervoso Autónomo, sistema envolvido nas respostas fisiológicas ao stress.
Os resultados foram muito expressivos, demonstrando-se
que na situação de co-sleeping, havia uma muito menor activação autonómica e uma proporção muito maior de sono profundo.
Na situação de separação da mãe, os indicadores apontam para
uma activação autonómica central ansiosa, com um impacto negativo na qualidade do sono.
Conhecendo-se a importância do sono para o neurodesenvolvimento, e os efeitos prejudiciais sobre aquele da hormona
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
de libertação da corticotrofina, com uma interferência selectiva
sobre o sono profundo, a activação das respostas autonómicas
ao stress que este estudo confirmou, pode assim, e de modo
indirecto, afectar o desenvolvimento cerebral. Neste estudo,
os bebés separados da mãe, revelavam uma maior dificuldade
para entrar numa fase de sono profundo, e quando o faziam,
mantinham-no por menos tempo.
O contacto pele-a-pele, tem também a capacidade de fazer
terminar o choro do bebé, imediatamente após o parto e noutro estudo(4) verificou-se que tinha também um poder analgésico, durante o procedimento de recolha de sangue em recém-nascidos.
Tendo em conta estes dados da pesquisa, é de admitir
que as rotinas hospitalares poderão estar a interferir significativamente em importantes mecanismos inibitórios da activação de respostas ansiosas no recém-nascido, através da
estimulação táctil e térmica no contacto pele-a-pele entre a
mãe e o bebé.
Deste modo, e apesar dos riscos conhecidos do co-sleeping,
e tendo em conta as necessidades de repouso da mãe, será
também importante ter em conta as características do recém-nascido, nomeadamente a sua propensão para reagir com
stress fisiológico à separação da mãe, e poder proporcionar-lhe
alguns períodos de contacto pele-a-pele com a mãe, num ritmo
regular e diário.
Maria do Carmo Santos1
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 40-41
BIBLIOGRAFIA
1. Thiedke C. Sleep disorders and sleep problems in childhood.
Am Fam Physician 2001; 63: 277-84.
2. Douglas P. Managing infants who cry excessively in the first
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4. Gray L, Watt L, Blass EM. Skin-to-skin contact is analgesic in
healthy newborns. Pediatrics 2000; 105, e14.
__________
1
Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Maria Pia / CH Porto
artigo recomendado
recommended article
41
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
O direito à saúde na União Europeia em
perspectiva diacrónica: elementos para uma
genealogia do artigo 35.º da CDFUE (cont.)
Luís A. M. Menezes do Vale1
SUMÁRIO
Nesta segunda parte do nosso estudo, prestamos atenção
ao direito à saúde, tal como reconhecido no âmbito da UE, concentrando-nos no artigo 35º da CDFUE. E dado que esta norma
prescreve (i) um direito, (ii) de solidariedade, (iii) à saúde - em
que os Leitmotiven da Europa da Saúde, da Europa dos Direitos
e da Europa Social parecem convergir e intersectar-se - o nosso
objectivo vem a ser o de reconstituir as raízes históricas dessas
três vertentes do projecto europeu, descrevendo os respectivos
cursos evolutivos, enquanto afluentes que desaguam no artigo
35º, alimentando-o constantemente. Esperamos assim suscitar
uma reflexão crítica, que abra novas possibilidades de evolução,
ao fazer das marcas genéticas do artigo 35.º verdadeiros arrimos
para repensar, imaginar, descobrir, projectar e realizar a contínua
reconstrução crítico-regulativa do direito devotado à protecção e
promoção da saúde na UE.
Palavras-chave: Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia; artigo 35º CDFUE; políticas da saúde; políticas
sociais; direitos humanos e fundamentais.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 42-53
O DIREITO À SAÚDE NA UNIÃO EUROPEIA
1. As raízes do artigo 35º da CDFUE
A UE consagra um direito (de solidariedade) à saúde no
artigo 35.º da CDFUE.
Vale isto por dizer que, à semelhança do que sucede nos
planos jusinternacionais universal e regional, geral e sectorial
(ONU, CE, OMS), também no contexto do sistema jurídico da
União, o direito à saúde assinala uma profícua intersecção da
socialidade com a jusfundamentalidade e a tutela da saúde propriamente dita. Ora, pressupostos estes três referentes e os seus
desdobramentos históricos, resulta delimitado o tema (saúde),
afinada a perspectiva (de direitos humanos) e indicado o pendor
ou a tónica (socializante) da nossa reflexão sobre o artigo 35º.
__________
1
Mestre em Direito, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra
42
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
1.1. A Europa da Saúde
1.1.1. A saúde na UE
O Tratado da CEE começou por não conferir poderes específicos à comunidade europeia em matéria de saúde1. Ao abrigo
do Tratado de Roma, a protecção da saúde pública não figurava no direito primário como uma missão comunitária, nem como
uma acção per se, tendo apenas lugar através das directivas sobre política sanitária progressivamente adoptadas e aparecendo,
por norma, sob a alçada da liberdade de circulação de mercadorias. No demais, as preocupações reportavam-se à protecção
social de trabalhadores migrantes e respectivas famílias, cujos
seguros de saúde e acesso aos cuidados sanitários precisavam
de ser garantidos, de modo a permitir a liberdade de circulação
do factor trabalho.
As primeiras grandes alterações foram introduzidas com o
Tratado de Maastricht, no qual se consagrou um mandato genérico da UE em matéria de saúde (no então artigo 129º), criando
condições propícias ao desenvolvimento de uma política comunitária para o sector, se bem que marginal (flanking policy).
Acresce que os artigos 2º e 3º foram modificados de maneira
a incluir uma menção à melhoria da qualidade de vida entre as
tarefas comunitárias e a integrar o concurso para a obtenção de
um elevado nível de saúde no lote das actividades a desenvolver
pela comunidade.
Contudo, a competência comunitária permaneceu reservada a questões de saúde pública, enquanto os direitos individuais
relativos à saúde resultavam indirectamente protegidos no contexto da liberdade de movimento.
Com efeito, embora não recebessem protecção a nível comunitário, a liberdade de circulação de bens e serviços
(prestados e recebidos) e a liberdade de estabelecimento
permitiram a atribuição de direitos relativos à saúde, como o
de adquirir produtos médicos noutro Estado-Membro (Acordão Decker), de receber tratamento médico além-fronteiras
(Acordão Kohl) ou de desenvolver actividade médico-profissional num outro país da UE (Directiva 93/16/CEE sobre a
livre circulação de médicos e o reconhecimento mútuo dos
seus diplomas, certificados e outros comprovativos das qualificações formais).
O mesmo vale por dizer que se confiava aos Estados-Membros a competência para a organização dos respectivos sistemas de saúde e de segurança social, cabendo-lhes determinar
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
as condições de acesso aos cuidados e às prestações sociais e
o âmbito de cobertura dos sistemas, e regular as relações médico-paciente e outras questões médicas correlacionadas, como
as que se prendem com a eutanásia ou a medicina reprodutiva.
O cenário começou a alterar-se mais rápida e significativamente já ao abrigo do Tratado de Amesterdão e do seu insípido
sucessor, assinado em Nice.
De facto, com o dealbar do século, em resultado de um
debate lançado pela Comissão [Comunicação da Comissão
sobre a evolução da política em matéria de saúde pública
(15/04/1998)] e da experiência já adquirida com programas
de acção e actividades anteriores, iniciou-se uma nova fase
no tratamento europeu da saúde, marcada pelo propósito de
conceber e levar à prática uma estratégia global integrada
no sector. Definiu-se um novo quadro de acção no domínio
da saúde pública até 2008 (que incluía um novo programa
de acção, no lugar dos antigos programas especializados)
e uma estratégia geral da comunidade em matéria de saúde
(que obrigava a uma integração com as iniciativas adoptadas nas políticas relativas ao mercado único, à protecção
social, ao emprego e ao ambiente). Uma Comunicação da
Comissão, de Maio de 2000, veio apelar à concentração dos
recursos da União naqueles aspectos em que a intervenção
comunitária pudesse trazer um valor adicional efectivo, sem
duplicar esforços que os Estados- Membros, ou até certas
organizações internacionais, se achassem em melhores condições de empreender.
Em Dezembro de 2001 a Comissão Europeia deu o
seu acordo a uma análise da provisão de cuidados de saúde e de cuidados para os mais idosos, na qual se concluiu
que, embora diferentes - em termos de desenho, prestação
e financiamento - os sistemas nacionais estão confrontados
com desafios semelhantes. Em consequência, apontaramse-lhes três objectivos comuns: acesso aos cuidados de saúde, qualidade, e sustentabilidade. A Comunicação em apreço
tem de ser vista em conexão com as conclusões do Conselho Europeu de Lisboa, que teve lugar em Março de 2000, e
da Cimeira de Gotemburgo, realizada em Janeiro de 2001,
durante os quais se lançou um apelo à modernização dos
sistemas de protecção social na União Europeia e se exigiu
a preparação de um relatório progressivo e de guidelines no
campo dos cuidados de saúde.
Em 2002, foram estabelecidas directrizes políticas gerais neste campo, através do novo conceito de Europa da
Saúde, e, para reforçar o combate às ameaças de saúde,
criou-se o Centro Europeu para a prevenção e Controlo de
Doenças, que, desde então, vem desenvolvendo meritórias
acções de cooperação transfronteiriça, no tocante aos sistemas de saúde e às determinantes de saúde. O Sistema de
Informação da Saúde também foi chamado a desempenhar
uma função nuclear na nova atitude de consciencialização
europeia neste domínio, enquanto com o Fórum Europeu de
Saúde se visou permitir a participação dos diferentes agentes de saúde pública na elaboração das políticas do sector.
Em 15 de Julho de 2004, a Comissão lançou um Processo de reflexão acerca da promoção da saúde para todos,
no âmbito da revisão da Estratégia de Saúde, definida em
2000. Foram convidados grupos de interesse, instituições
públicas e cidadãos individuais, tendo-se gerado um aceso
debate, que extravasou das fronteiras comunitárias, para envolver diálogos com países como a Noruega e a Suíça, os
EUA e Israel.
A 23 de Outubro de 2007, a Comissão Europeia adoptou uma Nova Estratégia de Saúde, designada “Together for
Health: A Strategic Approach for the EU 2008-2013”, cuja
intenção pioneira consistia em fornecer um enquadramento
estratégico abrangente às questões nucleares da saúde e
demais aspectos que, no âmbito de outras políticas sectoriais, com elas contendam. Para o efeito, propôs-se estabelecer objectivos claros, orientadores dos futuros trabalhos a
nível europeu, e pôr de pé um mecanismo de implementação
que garantisse a respectiva consecução, em parceria com
os Estados-Membros. Segundo os responsáveis da União,
a Estratégia, ainda em vigor, encontra-se focada em quatro
princípios e três temas estratégicos.
Os princípios requerem: uma abordagem axiológica
(baseada na universalidade, no acesso a cuidados de saúde de qualidade, na equidade e na solidariedade, - fazendo,
assim, da capacitação dos indivíduos, da redução das desigualdades evitáveis e injustas e da comprovação científica
da qualidade tarefas verdadeiramente fundamentais); o reconhecimento das conexões entre a saúde e a prosperidade
económica (assumindo o lema virgiliano de que a saúde é
a maior riqueza, de modo a encarar as despesas no sector
como um investimento na prevenção de custos futuros e nos
factores de uma maior prosperidade); a integração da saúde
em todas as políticas (uma vez que as condições de saúde
se encontrarem na dependência de uma multiplicidade de
factores); e o reforço do papel da UE no debate sobre a saúde global (conferindo-lhe um papel de liderança na matéria).
Por seu turno, os objectivos estratégicos incluem: a
Promoção da Boa Saúde numa Europa em Envelhecimento;
a Protecção dos Cidadãos face às Ameaças à Saúde e a
Dinâmica dos Sistemas de Saúde e Novas Tecnologias.
A União mostra-se particularmente cuidadosa com
a forma como as políticas de saúde são definidas, levadas
a cabo e monitorizadas, e excogitou já alguns mecanismos de consideração do seu impacto, como é o caso das
Commission’s integrated impact assessment guidelines.
Sobressai também, neste âmbito, o trabalho realizado
pelo Grupo de Alto Nível sobre os Cuidados de Saúde e Cuidados Médicos - um conjunto de peritos, criado na sequência da Comunicação da Comissão de 20 de Abril de 2004
e que iniciou funções em Julho do mesmo ano. A sua actividade cobre sete áreas: aquisição e provisão de cuidados
de saúde além-fronteiras, profissionais de saúde, centros de
referência, avaliação da tecnologia de saúde, informação e
“e-saúde”, impacto da saúde e sistemas de saúde e segurança dos pacientes), tendo concorrido igualmente para outros
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
43
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
trabalhos relevantes em matéria de saúde e cuidados médicos, como é o caso do Método Aberto de Cooperação2 em
cuidados de saúde e cuidados de longa duração, delineado
pela Comissão em 2004.
A evolução não parou desde então, assistindo-se,
nomeadamente, à reforma do regime instituído pelo Regulamento 1408/71, à introdução do Cartão da Saúde, ao
desenvolvimento de novos programas e estratégias da UE
(como o Programa comunitário no campo da protecção do
consumidor e da saúde), ao lançamento da Carta Europeia
dos Direitos dos Pacientes e ao delineamento mais aturado
dos serviços de interesse geral (de índole económica ou propriamente social)3.
Em 20 de Outubro de 2009, em resultado do trabalho
conjunto dos comissários responsáveis pelas áreas da saúde
e da política social, a Comissão produziu uma Comunicação
designada «Solidariedade na saúde: reduzir as desigualdades
no domínio da saúde na União Europeia» [COM (2009), 567],
que apontava uma série de objectivos ambiciosos: integrar a
ideia de distribuição equitativa na noção de desenvolvimento
económico e social geral; melhorar as formas de colaboração com os Estados-Membros, os diversos stakeholders e
as regiões; aumentar o apoio da União à investigação sobre
as desigualdades na saúde; organizar auditorias às políticas
para verificar do seu impacto na redução das desigualdades
de saúde; incentivar o Estados-Membros a utilizarem melhor
a política de coesão, os fundos estruturais e a política de
desenvolvimento rural, para influenciarem positivamente as
principais determinantes da desigualdade na saúde; dirigir
actividades a certos grupos vulneráveis (como minorias étnicas, migrantes e ciganos); explorar as possibilidades de
uma combinação fecunda da ajuda ao desenvolvimento da
Comissão com o trabalho sobre as desigualdades na saúde; melhorar a aferição e o controlo das desigualdades na
saúde, prevendo-se que o primeiro relatório seja publicado
em 20124.
Já em 2011, a Directiva sobre os cuidados de saúde
transfronteiriços [Directiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Março de 2011 (JO L88/46 de
4.4.2011)] veio prescrever um conjunto de regras acerca da
autorização e reembolso da prestação de cuidados ou aquisição de produtos de saúde num Estado-Membro diferente do
Estado-de-afiliação, tendo aproveitado para fazer um ponto
de situação em matéria de tratamento jurídico da saúde no
seio da União. Com efeito, aclarou as relações da nova legislação com o sistema dogmático em que deverá integrarse e forneceu mesmo um conjunto de noções que, apesar
de terem um significado meramente funcional (por restrito
ao âmbito e à finalidade do novo diploma), de modo algum
devem ver subestimada a sua valia (pelo menos, heurística).
Institui-se agora um regime dual, uma vez que o Regulamento 1408/71 continua a aplicar-se, com as alterações entretanto sofridas, aos casos para que foi inicialmente pensado.
Basicamente, o Estado-de-tratamento fica impedido de discriminar os cidadãos de outros Estados-Membros no acesso
44
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
à saúde e o Estado-de-afiliação proibido de discriminar os
cuidados transfronteiriços em matéria de reembolso, a não
ser mediante a introdução de restrições com algum dos fundamentos indicados na directiva. No entanto, a autorização
prévia passa a ser excepção em vez de regra, indicando-se
os casos em que é permitida, e as razões admissíveis para a
sua recusa (cf. art. 8º).
Actualmente as atribuições em matéria de saúde estão ancoradas no artigo 152º (título XIII) do TUE (consagrado à saúde
pública), que não confere à UE senão poderes funcionais para
agir em complemento das políticas nacionais, na realização de
um nível elevado de protecção da saúde (art. 3º).
As competências na matéria pertencem, pois, em princípio, aos Estados-Membros, prevendo o §2 uma coordenação
dos seus programas e políticas e uma competência partilhada,
quanto à legiferação sobre assuntos comuns (de segurança,
saúde pública e melhoria da saúde humana), que requer da UE
uma mera acção de apoio, coordenação ou complemento. De
um modo muito particular, há-de reparar-se que a União respeita plenamente as responsabilidades dos Estados-Membros em
matéria de organização e fornecimento dos serviços de saúde e
cuidados médicos.
a) Conclui-se do exposto que, no âmbito das diferentes políticas e práticas públicas5 adoptadas nas muitas áreas do sector6, as principais instituições comunitárias - desde a Comissão
Europeia ao Conselho, passando pelo PE (com destaque para
as Comissões Parlamentares do Ambiente, da Saúde Pública
e da Segurança Alimentar) e pelos órgãos consultivos (como o
Conselho Económico Social), sem falar nas inúmeras agências
especializadas (EMEA, ECDC, EFSA, PHEA, etc.) - tiveram já
ocasiões de sobejo para se pronunciarem sobre (ou interferirem
n’)a saúde (e sua defesa, protecção e realização jurídicas), no
exercício das respectivas competências (exclusivas, partilhadas
com os Estados-Membros ou de complemento, coordenação e
apoio das políticas e acções destes últimos), com vista à realização das atribuições que lhes estão cometidas, e desencadeando, desta feita, uma considerável panóplia de efeitos, com
extensão e intensidade diferenciadas7, em redor de um conjunto
de intenções precípuas, escoradas nas fundações axiológiconormativas da UE.
Neste último caso, pensamos no acervo de valores e
princípios considerados comuns aos diferentes sistemas de
saúde da UE, talqualmente foram proclamados pelo Conselho e convocados em diversas estratégias e em intervenções
normativas no sector8. Entre os valores contam-se a universalidade, a solidariedade e a equidade. Quanto aos princípios de funcionamento ou operativos - que todos os cidadãos
esperam poder encontrar em qualquer sistema de saúde da
UE - incluem a qualidade, a segurança, a confidencialidade,
a participação dos pacientes, o acesso à justiça e a exigência
de uma base ética e empiricamente rigorosa para a acção.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
1.1.2. O direito da saúde na UE9
No enquadramento assim definido, a União Europeia tem
procurado objectivar normativo-juridicamente as suas fundações
axiológicas gerais e os princípios normativos que as precipitam,
aos mais diferentes níveis e sob diversas formas e meios, desta
feita permeando a multifacetada actuação desenvolvida, na esfera social vertente, pelos actores, em redor dos temas e com os
efeitos mencionados.
De modo meramente epitomático, destacaríamos, ao nível
do direito material primário, os artigos 2º, 3º, 5º, e 6º do TUE,
que vertem efeitos importantes sobre a matéria, bem como os
dispositivos 9º, 16º, 18º, 56º, 57º e 168º do TFUE, sem esquecer
obviamente os preceitos números 1, 2, 3, 8, 20 a 26 e 31 da
CDFUE, que se referem explícita ou implicitamente à saúde.
No que concerne ao direito secundário, multiplicam-se os
diplomas de uniformização e harmonização, a que se somam
ainda os actos jurídicos (normativos ou não) e para-jurídicos dos
principais órgãos e instituições europeias, como sejam as Resoluções do Parlamento, as Conclusões do Conselho, as Comunicações da Comissão ou as Opiniões e Pareceres do Comité
Económico e Social Europeu.
O activismo e construtivismo dos tribunais, que têm lentamente cerzido a malha normativa sustentadora da ordem jurídica
da União, bem como da policy que sobre ela se edifica, não estiveram ausentes da esfera da saúde10, restando bem patente o
seu contributo para a densificação do direito e política europeias
do sector através de uma série de arestos famosos (Duphar,
Kohl, Decker, Smits e Peerbooms, Vanbraeckel, Keller, Watts,
Acereda Herrera, Stamatelaki, Elchinov)11.
Naturalmente que à solidez da jurisprudência judicial da
União não é alheio o concurso doutrinal dos advogados gerais,
em cujas alegações não raro se descobrem importantes critérios de jurisprudência dogmática, que acrescem às elucubrações
e modelos prático-normativos desenvolvidos por muitos outros
especialistas, no labor de disquisição e redensificação do direito social comunitário, seja na vertente da saúde pública, seja
a respeito da realização de um elevado nível de protecção de
saúde, seja do acesso à prevenção e aos cuidados comunitários
(o mesmo é dizer, no que respeita às várias facetas do direito à
saúde, talqualmente recortado pelo artigo 35º da Carta dos Direitos Fundamentais e sem prejuízo das muitas outras normas da
UE que reverberam no tratamento jurídico da saúde). Contudo,
a perspectivação jusfundamental da saúde requer uma alusão,
ainda que brevíssima, à ligação da UE com a agenda dos direitos fundamentais. De facto, se nem tudo na protecção da saúde
são direitos, a verdade é que o artigo 35º emerge de uma Carta
de Direitos Fundamentais e utiliza expressamente a linguagem
dos direitos na sua abordagem à tutela da saúde pelo direito.
1.2. Os direitos fundamentais na UE
1.2.1. Das origens à CDFUE12
Como consabido, a UE nasceu sob o signo das liberdades
económicas funcionalizadas à constituição de um mercado comum. No entanto, o lastro cultural da jusfundamentalidade, bem
vincado em muitos países europeus e cada vez mais emulado no
plano internacional, dificilmente poderia deixar a UE indiferente,
tendo conduzido a um acolhimento progressivo dos direitos fundamentais no seu seio. Todavia, o reconhecimento e promoção
desse património civilizacional começou por ser sobretudo obra
dos tribunais, não obstante algumas iniciativas desgarradas por
parte de outras instituições comunitárias [como a Declaração
Conjunta do Parlamento, da Comissão e do Conselho sobre a
protecção de direitos fundamentais, de 05.04.197713]. De facto,
ultrapassada uma primeira fase em que se recusava pura e simplesmente a aferir a validade do direito comunitário pelos direitos fundamentais, a jurisprudência comunitária evoluiu para uma
assimilação destes últimos a princípios gerais de direito - cujo
respeito incumbiria aos tribunais assegurar (casos Stauder e Internationale Handelsgesellschaft) -, passando, mais tarde (a partir do famoso aresto Nold), a pressupor e equacionar, nos seus
juízos, a CEDH e os instrumentos de direito internacional pertinentes. A recepção das soluções jurisprudenciais pelo direito
originário ocorreu gradualmente a partir do Acto Único Europeu
(no seu preâmbulo) e sobretudo com o Tratado de Maastricht
(nos então artigos F, n.º 2, J, n.º 2 e K, n.º 1). O Tratado de
Amesterdão referiu-se-lhes expressamente no artigo 6.º, n.º 2.
No ínterim, tinham-se multiplicado já as Resoluções sobre o assunto; porém, nas vésperas da proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais, sendo certo que se reconheciam os direitos
fundamentais como bases axiológicas da UE, nos termos dos
artigos 6º, n.º1 e 7º do TUE, continuava ausente um catálogo de
direitos fundamentais próprios da União, faltando-lhe igualmente
a competência para aderir à CEDH.
1.2.2. A CDFUE14
a) A Carta dos Direitos Fundamentais resultou de uma iniciativa da presidência alemã, que procurou tirar as devidas consequências da panóplia de relatórios sobre direitos humanos, encomendados pela UE, no final dos anos 90. Acabou por ver a luz
do dia sob a forma de uma solene proclamação do Parlamento,
Conselho e Comissão, pelo que não constituía inicialmente mais
do que uma manifestação de soft law, influenciando o direito da
União apenas de modo indirecto. Todavia, considerou-se ab initio
que incorporava e exprimia princípios gerais pré-existentes no
direito da União, defendendo-se inclusive a sua utilização como
critério interpretativo. Para além disso, à importância da clarificação normativa operada, juntava-se o impacto simbólico do
diploma, tanto mais que se descortinava no preâmbulo um certo
compromisso com a vocação constitucionalizante que o direito
comunitário vinha assumindo. Com efeito, não só o mesmo se
refere explicitamente aos povos da Europa (no lugar das usuais
altas partes contratantes), como coloca declaradamente o ser
humano no centro da sua acção e vê nas pessoas, individualmente consideradas, na comunidade humana e nas gerações
futuras, titulares de responsabilidades e deveres derivados do
gozo dos direitos que enuncia (Ana M. Guerra Martins).
Por tudo o que nos parece avisado esmiuçar - ainda que
apenas ligeiramente - a génese, fundamentos e justificação, fontes e conteúdo, procedimento de elaboração e ulterior evolução
da CDFUE.
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
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NASCER E CRESCER
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b) A decisão de criação de uma Carta dos Direitos Fundamentais foi tomada no Conselho Europeu de Colónia, de 3
e 4 de Junho de 1999. Na sua Conclusão n.º 44, o Conselho
preconizou o carácter ou intenção meramente declarativa e não
constitutiva do documento, e, na Conclusão seguinte, incumbiu
a presidência europeia de criar as condições de implementação
da decisão, até à realização do Conselho Europeu extraordinário
de Tampere, agendado para 15 e 16 de Outubro de 1999. Nessa
altura, o Conselho definiu a composição e estabeleceu os métodos de trabalho do corpo responsável pela redacção do esboço
da Carta, o qual viria a receber o nome de Convenção (tendo o
seu gabinete sido denominado de Presidium).
A 13 de Setembro de 2000, a Comissão Europeia publicou
a sua primeira Comunicação sobre o esquiço da Carta, subscrevendo genericamente o seu conteúdo, apesar de sugerir algumas modificações pontuais; porém, a 11 de Outubro, numa
segunda Comunicação, optou por uma posição mais pragmática
quanto à respectiva natureza jurídica.
Por fim, no Conselho Europeu de Biarritz (13-14 de Outubro) a versão provisória da Carta foi unanimemente aprovada e
remetida para o Parlamento e a Comissão, tendo obtido a concordância do primeiro em 14 de Novembro de 2000 e a aprovação da segunda em 6 de Dezembro do mesmo ano. Seguiu-se
a assinatura pelos Presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão, que proclamaram a Carta em nome das
respectivas instituições, a 7 de Dezembro, em Nice.
c) A elaboração da Carta primou pela pluralidade dos participantes e a transparência dos procedimentos. Além de representantes dos Chefes de Estado e de Governo, dos membros do
Parlamento Europeu e dos Parlamentos Nacionais e de um Comissário europeu, estiveram presentes observadores do Tribunal
Europeu de Justiça, e recolheram-se as visões dos enviados do
Comité dos DESC, do Comité das Regiões, de vários grupos
sociais e de especialistas. Os serviços de secretariado foram
assegurados pelo Secretariado-Geral do Conselho. Além disso,
a Convenção criou propositadamente um sítio electrónico para
divulgar os materiais que analisou, os documentos que produziu
e as diversas versões provisórias da Carta que discutiu, e manteve as sessões de reunião abertas a todas as pessoas, levando
em conta as críticas de muitas ONG’s (mais de 70 associações
estiveram envolvidas) e as opiniões das instituições públicas interessadas (stakeholders).
d) Com a Carta, a protecção dos direitos fundamentais foi
genericamente elevada a princípio fundador e requisito indispensável de legitimidade da UE, reconhecendo-se assim a obrigação jurídica de respeitá-los – nos termos previamente definidos
e casuisticamente consolidados pela jurisprudência do Tribunal
Europeu de Justiça. Todavia, o novo Diploma nasceu apenas
com o modesto ensejo de tornar evidentes os direitos que já faziam parte do património comum dos europeus, numa homenagem mais à segurança jurídica do que à justiça, o que aumentou
as dúvidas acerca do preciso alcance da sua validade e eficácia,
mormente quando estivesse em causa a deficitária dimensão social da construção europeia (os direitos de entono social ou a sua
refracção sobre as políticas sociais da União).
46
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
e) Ainda assim, pretendeu-se que dela constassem os
direitos fundamentais: (i) garantidos pela CEDH, (ii) derivados
das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros (na
qualidade de princípios gerais de direito comunitário), e (iii) exclusivos dos cidadãos da União. No que concerne aos direitos
económicos e sociais contidos na CSE e na Carta dos Direitos
dos Trabalhadores, deviam ser igualmente levados em conta, na
medida em que não se limitassem a estabelecer objectivos para
a acção da União.
A CDFUE não visou, pois, a criação de direitos novos,
preferindo remeter a determinação do sentido das suas provisões para a CEDH e a jurisprudência do TEDH, tomadas como
standards de referência. Apesar de tudo, trouxe algumas novidades relativamente àqueles parâmetros de referência: o artigo 5º acrescentou a proibição de tráfico humano à proibição de
escravatura e trabalho forçado; o artigo 10º juntou o direito à
objecção de consciência à liberdade de pensamento, consciência e religião. Por sua vez, os artigos 3º e 8º responderam aos
avanços tecnológicos e científicos e às ameaças que colocam
aos indivíduos (o primeiro, proibindo a clonagem reprodutiva de
seres humanos, e o segundo, referindo-se aos dados pessoais).
No que toca aos direitos sociais, os obstáculos a superar
eram bem maiores. A Carta não quis desempenhar a seu respeito nem um papel propriamente de reforço, nem muito menos a
função de um verdadeiro trampolim, instituindo, no entanto, uma
nova plataforma de estabilização, que possui o ambivalente significado de todos os limiares. Também quanto à saúde o Estado
de Direito a nível internacional não mudou com a Carta: como é
óbvio, não se consagra um direito a ter saúde, mas um direito à
saúde, cingido ao acesso à prevenção em matéria de saúde e
aos cuidados médicos, talqualmente previstos nas legislações
nacionais.
f) A verdade, pois, é que a CDFUE deixara muitos problemas por resolver. Daí que, um ano depois, o Conselho Europeu
tenha reunido em Laeken, na Bélgica, acordando uma convenção sobre o futuro europeu, para decidir se a Carta deveria ser
incluída no direito da UE e se esta deveria assinar a CEDH.
Entretanto, estavam em curso os procedimentos para a redacção de uma Constituição Europeia, que viria a ser concluída e
submetida ao Presidente do Conselho Europeu a 10 de Julho
de 2003. Entrementes, a Convenção Europeia responsável pela
elaboração do Tratado estabelecendo uma constituição para a
Europa decidiu incorporar a CDFUE no texto constitucional.
Em 18 de Julho de 2003, o Chairman da Convenção Europeia entregou a versão completa do Tratado à presidência italiana
do Conselho Europeu, solicitando-lhe a condução de discussões
produtivas acerca do projecto, de modo a que pudesse reunir o
consenso de todos os Estados-Membros. A 31 de Dezembro, no
final da presidência italiana, faltava ainda um acordo final sobre
o projecto, tendo entretanto sido introduzidas algumas emendas,
designadamente com a adição de um par de parágrafos ao Preâmbulo e de alguns aditamentos aos artigos acerca das provisões
gerais da Carta. No Conclave Ministerial de Nápoles (CIG 2003),
tocou-se mesmo na saúde pública, em alguns aspectos da cláusula de solidariedade e no problema da adesão à CEDH.
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
Mal assumiu a presidência, a 1 de Janeiro de 2004, a Irlanda tomou a seu cargo a prossecução das tarefas. Em 17 e 18 de
Junho de 2004, chegou-se finalmente a um entendimento quanto
ao Projecto de Tratado, do qual efectivamente passava a constar
a Carta dos Direitos Fundamentais.
No entanto, como se sabe, o processo de ratificação da
Constituição europeia ficou bloqueado no momento da aprovação pelos Estados-Membros, face às recusas francesa e irlandesa. A Constituição acabou por ser afastada, surgindo, em
seu lugar, depois de uma longa travessia do deserto, o Tratado
de Lisboa de 2009 (que estava longe de ser a Terra Prometida,
como se tornou evidente…). Na verdade, o Mandato de 2007 e
o resultado final obtido na capital portuguesa distanciavam-se
bastante do anterior projecto constitucional. No que concerne à
CDFUE, em vez de incorporada, foi objecto de proclamação solene e assinatura formal (com algumas emendas menores), em
Estrasburgo, a 12 de Dezembro de 2007, pelos Presidentes do
PE, do Conselho e da Comissão e publicada depois no jornal oficial (na véspera da assinatura do Tratado de Lisboa), sendo-lhe
atribuído valor jurídico equiparado ao dos tratados constitutivos
(artigo 6.º).
1.3. A Europa Social
1.3.1. A socialidade na UE: políticas, direito e direitos
Não merece disputa que os objectivos primordiais da Euratom, da CECA e da CEE tinham um cariz essencialmente
económico. As instituições comunitárias originárias achavam-se
desprovidas de competências em matéria social, considerada da
exclusiva regedoria dos Estados-Membros.
No momento de arranque da União, o Tratado de Paris era
sem dúvida o mais generoso do ponto de vista social, já que incluía disposições sobre a liberdade de acesso ao trabalho, a readaptação dos trabalhadores e o fomento do emprego. Por seu
turno, o Tratado Euratom limitava-se a estabelecer algumas condições de segurança para a vida e a saúde dos trabalhadores.
Já o Tratado de Roma continha normas de direito social comunitário (artigos 48º a 51º) e alguns programas de política social
(como sucedia com os previstos nos dois capítulos do Título III);
as primeiras criavam obrigações jurídicas para os Estados-Membros relativamente aos trabalhadores comunitários, garantidas
pela Comissão e fomentadas pelo Fundo Social Europeu; as segundas pressupunham um modelo de cooperação interestadual
apontado à instituição de melhores condições de vida e trabalho
no contexto do mercado comum, e conducente a uma gradual
harmonização dos sistemas sociais e à aproximação dos sistemas jurídicos nacionais.
Em geral, o embrionário direito social comunitário servia somente para formalizar, de modo muito limitado e precário, alguns
direitos sociais, sempre instrumentalizados à garantia da liberdade de circulação dos trabalhadores e respectivas exigências
sociais, com o objectivo último de evitar distorções no mercado
comum (v.g. que lhe diminuíssem a eficiência ou perturbassem
a estabilidade funcional); quanto à política social, visava apenas
impulsionar a harmonização das políticas estatais e orientar os
comportamentos das instituições e interlocutores sociais, com
o propósito de remover obstáculos à concorrência, facilitando a
mobilidade do factor trabalho.
O lento vagão da socialidade europeia continuava atrelado
à locomotiva económica, que corria por calhas da política e do
direito, forjadas à sua medida. Os escassos programas, políticas e directivas sociais da época não chegavam para vencer a
tibieza política e a parcimónia da regulação jurídica no tocante à
socialidade e aos direitos sociais, que, por isso, permaneceram
marginais e consequenciais, evoluindo por tímido arrastamento.
Nos anos 70 ainda se esboçou uma aproximação ao tema,
através das garantias instituídas pelas directivas sobre a igualdade, mas, em rigor, parece justo afiançar que, até ao presente
século, só por duas vezes o processo de integração indiciou intenções de conferir à comunidade uma dimensão social de maior
envergadura: em 1989, com a Carta dos Trabalhadores, e, em
2000, mediante a tutela autónoma de direitos sociais no capítulo
que a CDFUE devotou à solidariedade.
Claro que a doutrina há muito denunciava este deficit social e que os próprios tribunais vinham urdindo a sua teia, bem
mais do que larvar: tendo começado por não aceitar que os argumentos sociais de natureza económica pudessem justificar
regulações nacionais com consequências restritivas para a livre
circulação em geral (e especialmente de mercadorias), a jurisprudência foi aos poucos concedendo dignidade jurídica às razões fundadas na solidariedade e na igualdade sociais; a ponto
de alguns especialistas entenderem que, antes mesmo da viragem do milénio, se havia já formado um núcleo duro de garantias
sociais, construídas a partir do princípio da não discriminação e
das exigências de justiça distributiva e social.
1.3.2. Da política ao direito social
Em 1986, na esteira de vários programas sociais (19741980 e 1980-1986), o Acto único Europeu lançou o desafio de
conferir ao Mercado Interno uma dimensão social e assegurar a
coesão económica e social. Todavia, segundo Catherine Goybet,
é a partir de 92 que a questão social adquire uma nova centralidade na Europa. A acta final do Tratado de Maastricht trouxe
consigo três importantes protocolos sobre o assunto: o n.º 3, relativo ao artigo 119º do TCE, o n.º 14 acerca da política social, e o
n.º 15, dedicado à coesão económica e social. Apesar do boicote
da Inglaterra e da Irlanda, que preferiram manter-se à margem,
o protocolo 14 significou um efectivo aprofundamento da Europa
Social, ao incorporar como acervo a Carta Social Comunitária
dos Trabalhadores e ao instigar à sua efectivação, através das
instituições, mecanismos e medidas oferecidas pelo Tratado.
Mais tarde, com o Tratado de Amesterdão, a Inglaterra aceitou finalmente o Protocolo sobre política social, assegurando
uma maior coesão europeia no que toca aos planos de desenvolvimento da União. Por outro lado, o protocolo e acordo anexos
sobre a política social foram integrados no TCE, cometendo aos
Estados e à UE a prossecução dos objectivos sociais neles fixados, no quadro definido pela Carta Social de Turim (entretanto
revista), e pela Carta de Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. A grande inovação do Tratado consistiu, porém, na
previsão de uma política de emprego, correspondente ao Título
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VII e que, colocada ao serviço da realização dos objectivos definidos no artigo 2.º do TUE, visava constituir um terceiro elemento
estratégico da futura União, a par das dimensões económicas e
monetárias. Por outro lado, graças aos artigos 6.º e 7.º, parecia
encetar-se um caminho conducente à consideração dos direitos
sociais como verdadeiros direitos fundamentais da União.
Contudo, refreando um pouco os ânimos, Nice representou
um certo abrandamento da dinâmica de progresso social (paulatina que fosse), a despeito de ter dado lugar à definição da Agenda Social Europeia para 2000 e à formalização dos direitos de
solidariedade na Carta dos Direitos Fundamentais. Com efeito, o
elan dava mostras de enfraquecer, como de resto se confirmou
aquando das vicissitudes atravessadas pelo Tratado Constitucional (por complexas e contraditórias que sejam as causas do seu
insucesso). De algum modo, escutou-se o canto de cisne das
perspectivas mais optimistas, enquanto as divergências mais ou
menos latentes quanto ao modelo social europeu, aos conteúdos
do social e ao próprio ritmo dos avanços sociais intumesceram,
rebentando em conflitos abertos. Como a Agenda Social parecesse menos preocupada com uma política social global do que
com as questões de género, a luta contra a pobreza e exclusão
social e a garantia das condições de trabalho e envolvimento
dos trabalhadores nas transformações laborais em curso, a segurança social permaneceu remetida aos Estados-Membros,
confiando-se na cooperação inter-estatal para fazer face às necessidades de modernização detectadas.
Em 2001, a cimeira de chefes de Estado e de Governo da
União ainda tocou a reunir em torno de um projectado novo modelo social europeu, segundo um triângulo estratégico constituído
por políticas económicas, sociais e de emprego; mas perdera-se
muito do fôlego anterior. Não se imaginava ainda a crise do final
da primeira década do novo século, que hoje nos força a rever o
próprio projecto europeu, quiçá lamentando a desvalorização do
ideal de desenvolvimento (social e economicamente) sustentável que constituía uma das suas grandes promissões...
Oficialmente, a União reconhece ainda a existência de três
grandes modelos sociais (numa tipologia que, infelizmente, pouco aproveita da profundidade dos estudos há muito desenvolvidos por Gosta Espin-Andersen e complementados, com especial
acutilância no que toca aos países meridionais, por Maurizio Ferrera). Fala-se, portanto, em modelo liberal, modelo meridional
(da Europa do sul) e modelo moderado, usando como critério
o grau e extensão da constitucionalização dos direitos sociais que seria praticamente nula no primeiro caso, global no segundo
e intermédia no terceiro.
1.3.3. Do direito social aos direitos sociais
1.3.3.1. Evolução
Como vimos, apesar de quanto dispunha nos seus artigos
117º a 119º, o Tratado de Roma secundarizava quaisquer arremedos de direitos sociais relativamente ao desiderato de integração económica. A socialidade só encontrava algum abrigo
nos artigos 2º, 6º e 7º do TUE, relativos aos objectivos da União
e aos direitos fundamentais. Já o TCE consagrava os artigos 2º
e 3º à igualdade e o 13º à proibição de discriminação e devotava
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current perspectives in bioethics
todo um capítulo (136º a 153º) às políticas e aos direitos económicos e sociais, cuidando ainda do meio ambiente nos artigos
174º a 176º.
A Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais
dos Trabalhadores, de 9 de Dezembro de 1989, representou, por
isso, um marco no reconhecimento dos direitos sociais, em que
pese o seu valor meramente simbólico e a debilidade provocada
pela exclusão do Reino Unido. De feito, a Carta continha direitos
individuais e colectivos, de prestação e não auto-exequíveis, que
podiam ser lidos como um acervo de princípios sociais mínimos
correspondentes a conquistas da história política europeia, e que
exortavam a um reforço dos compromissos sociais da UE. Uma
finalidade para que apontara o Preâmbulo do próprio Acto Único
ao referir-se à Carta Social Europeia de Turim.
Ainda assim, no cenário descrito, foi sobretudo à jurisprudência do TJC que se deveu alguma – muito lenta - sedimentação dos direitos sociais no âmbito comunitário, para o que utilizou
a referência a instrumentos internacionais específicos como os
Convénios da OIT, a CEDH, a Convenção de Genebra de 1951,
a CSE, a Carta Comunitária dos Trabalhadores e os precedentes
da jurisprudência de Estrasburgo. Curiosamente, no âmbito da
política de desenvolvimento e adesão – sem imediatas implicações quanto ao relacionamento com os esquemas de protecção
social dos Estados-Membros - a União fez sempre questão de
evidenciar que os direitos sociais deviam ser um importante factor de ponderação.
Nesta medida, a previsão de alguns dos mais importantes
direitos sociais da tradição jurídico-constitucional ocidental na
CDFUE - a maior parte deles agrupados sob a epígrafe capitular
da solidariedade - representou sem dúvida um progresso, pelo
menos de um ponto de vista simbólico.
1.3.3.2. Os direitos sociais na Carta15
Os direitos fundamentais da Carta não deixam de constituir
um importante elemento federador da UE (G. Canotilho), pelo
que convém não menoscabar a inclusão, entre eles, dos direitos
sociais. Os obstáculos que precisaram ser superadas para obter
esta pequena conquista depõem a favor da sua importância. De
facto, se a Convenção experimentou enormes dificuldades para
obter a concordância geral quanto ao quomodo e ao próprio an
da inclusão dos direitos no catálogo, tal deveu-se essencialmente a três ordens de razões, para muitos ainda subsistentes: em
primeiro lugar, a fragilidade de que padecem as fontes de inspiração em matéria de direitos sociais, já que o Tratado é parco
em referências, a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais
dos Trabalhadores não possui força vinculativa e a Carta Social
Europeia é regida por um princípio de geometria variável que a
sujeita a uma aplicação assimétrica pelos Estados-Membros16;
em segundo lugar, a alegada ausência de uma tradição constitucional comum suficientemente clara e evidente no que respeita aos direitos sociais; e, em terceiro lugar, a própria natureza
complementar e subsidiária das atribuições da UE no domínio
(do) social.
Conquanto ponderosos, os argumentos não se nos afiguram - ainda que à distância - igualmente pagantes. Por outro
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lado, haveria que sopesá-los com as razões esgrimidas pelos
defensores de uma inequívoca consagração dos direitos sociais.
Assim, enquanto estava a ser elaborada a CDFUE, o Comité dos
DESC da ONU, por exemplo, desenvolveu instâncias junto da
Convenção para que esta assegurasse os direitos económicos,
sociais e culturais em pé de igualdade com os direitos civis e
políticos, arguindo que, de contrário, a Carta se traduziria num
inaceitável retrocesso, representando mesmo uma contravenção
às obrigações do PIDESC, nomeadamente a de adoptar medidas progressivas destinadas à promoção dos direitos.
No final, o mérito da previsão deve ser creditado sobretudo
aos franceses que - apoiados por italianos, belgas, espanhóis e
pela maioria dos alemães – tiveram de vencer a oposição dos
países nórdicos, da Holanda, do Reino Unido e da Irlanda, onde
a constitucionalização dos direitos sociais, conotada com uma
certa rigidez regulativa, costuma ser preterida em favor da maior
flexibilidade permitida pelo diálogo e negociação sociais.
A estratégia seguida pelos principais proponentes obedecia
a três linhas-de-força, a saber: o reconhecimento de um princípio
da solidariedade (no preâmbulo e como tête de chapitre autónoma); a inclusão, sob a sua alçada, de um conjunto de direitos
económicos, sociais e culturais; e a garantia de uma protecção
horizontal dos direitos (artigo 53º).
Relativamente ao modus de inserção e previsão eleito, procurou contornar-se a dificuldade de delimitação dos direitos segundo os critérios tradicionais, empregando uma sistematização
inovadora que os agrupou em cinco categorias - dignidade, liberdade, justiça, solidariedade, igualdade e cidadania. Na prática,
porém, os direitos sociais espraiam-se por todo o catálogo, extravasando da sua sede específica no capítulo da solidariedade.
Com efeito, nem todos os direitos sociais foram concentrados no capítulo IV, ficando de fora a liberdade sindical [incluindo o direito de constituir sindicatos (12º)], o direito de acesso à
formação profissional e contínua (14º, n.º 1), a liberdade profissional e o direito de trabalhar (15º), assim como a liberdade de
empresa (16º). Por outro lado, há direitos no capítulo IV que não
são direitos sociais, mas de terceira geração [protecção do ambiente (37º), defesa do consumidor (38º)]. Existem ainda direitos
sociais aparentemente esquecidos pela Carta, como o direito
das pessoas idosas à protecção social.
Por fim, não se previu nenhum regime específico para os direitos sociais, aplicando-se-lhes indiscriminadamente as disposições horizontais dos artigos 51º e seguintes, que regem também
os direitos civis e políticos.
Não é este o local para uma apreciação mais detida sobre o
assunto. Ainda assim impõem-se duas observações.
A tradicional formulação dos direitos sociais como direitos
dependentes de complementar determinação normativa – i.e.,
non self-executing – estribou-se, aqui, a título suplementar, no
próprio princípio da subsidiariedade [que impedia o alargamento, através da Carta, das tarefas da UE, previstas nos tratados
(51º/2)]; em consequência, a sua concreta configuração e radicação subjectiva depende das disposições (nacionais ou comunitárias) que os devam consagrar, bem como das diferentes práticas
nacionais. Note-se, contudo, que, relativamente à protecção da
saúde estatuída no artigo 35º, a remissão feita não abrange o direito comunitário, apontando somente para as práticas e direitos
nacionais.
Mau grado esta dependência de concretização, pelo direito comunitário e nacional (seja constitucional, seja legislativo),
recusou-se a simples positivação através de normas programáticas ou meramente enunciadoras de fins gerais (que coincidiriam
com os escopos da União), asseverando, assim, a valia de uma
socialidade jussubjectiva. Todavia, cumpre também lembrar, no
tocante ao valor jurídico dos direitos sociais da Carta, que a mesma começou por não ter efeito vinculativo. Além disso, atenta a
vontade e razão do legislador histórico do diploma, os seus preceitos não deviam ultrapassar de modo algum os textos que os
haviam inspirado. Contudo, no quadro da governance multinível
e do sistema jurídico de interjuridicidade vigente na UE, tem tido
acolhimento a proposta de uma interpretação em conformidade
com o direito, seja da União, seja internacional, seja ainda dos
Estados-Membros, em que se atribua prevalência ao mais subido nível de protecção de entre os consagrados nas três fontes
indicadas17. Uma proposição metodológica que não deixa de gerar polémica e tropeçar em imensos escolhos, designadamente
quanto a saber em que consiste o tratamento mais favorável,
como se cotejam as diferentes tutelas e de que modo se procede
à necessária aquilatação18. Para além disso, há normas, como a
do 35º, que, por dispensarem o superlativo (protecção mais elevada), não devem admitir a interpretação comparatística de vezo
maximizador, por mor de um raciocínio ex differentiae ou mesmo
a contrario senso. Seja como for, tivemos já ocasião de propugnar que a interpretação axiológico-funcional do direito comunitário, alinhada com o sentido normativo-político do projecto europeu, aconselha como razoável (no mínimo…) a impossibilidade
de diminuir os níveis de protecção abaixo do patamar garantido
pela Carta e demais instrumentos internacionais vinculativos,
mesmo que as devoluções, aos Estados-Membros, das tarefas
de concreta realização dos direitos, sejam feitas tanto para os
regimes actuais como para os futuros (conferindo-lhes assim
enorme discricionariedade), e que as instituições comunitárias
pareçam deste modo isentas de prevenir e impedir qualquer reformatio in peius por via das suas políticas sociais.
Mais audaz no reforço da socialidade (mormente com respeito aos media político-institucionais de realização dos respectivos princípios e direitos jurídicos) se revelava o malogrado Projecto de Constituição Europeia, no qual se incorporou a CDFUE,
como parte II. Na versão final do Tratado, o texto surgia dividido
em quatro partes, três das quais continham regulações conexionadas com os direitos sociais. O I.2 ancorava-os nos valores e o
I.3.3. enquadrava-os nos objectivos. Os artigos I.9.1, I.9.2, I.9.3. e
III.208 consagravam cláusulas gerais em matéria de direitos fundamentais. Para além disso, delineavam-se vários direitos sociais
específicos, a par de outros direitos com dimensões sociais (II.61,
II.63, II.65, II.74, II.75, II.81, II.83, II.84, II.85, II.86, II.87, II.88, II.89
e II.90 a II.98) e de direitos regulados nas políticas sociais da Parte
III (assim os artigos III.116-121 e III.124 e os artigos III.205, III.209,
III.210, III.211e III.214). Previam-se também órgãos de protecção
e instituições de garantia específicas (verdadeiras garantias ins-
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titucionais), com a constitucionalização do Conselho Económico
e Social (III.389 a III.392) e do Fundo Social Europeu e a criação
de um Comité de Protecção Social (III.217). Por fim, valiam ainda
as cláusulas interpretativas do II.113 (53.º), em que se acolhia o
princípio da protecção mais favorável.
Paralelamente distinguiam-se os direitos dos princípios (5º),
subordinava-se o padrão de protecção aos parâmetros resultantes das tradições constitucionais comuns (3º) e procedia-se à
constitucionalização das explicações da Carta.
Após Nice, e a apesar dos recuos na política social, da desventura da Constituição Europeia e das dificuldades entretanto
atravessadas pelo projecto europeu, os direitos sociais da Carta
sobreviveram, gozando hoje de vinculatividade ex vi do artigo
6.º do TUE - que elevou a CDFUE a direito primário da União,
inserindo-a no sistema básico dos tratados constitutivos.
1.3.3.3 Os direitos sociais na UE: noção, estatuto e
função19
Segundo Teresa Sanjuán20, tanto o Tribunal de Justiça
como os tribunais constitucionais de muitos países da União utilizam um conceito amplo de direitos sociais, no qual se incluem
todos aqueles direitos que contribuam para o desenvolvimento
do Estado social e das suas cláusulas de igualdade e dignidade.
Ao contrário do que ocorria no constitucionalismo clássico e em algumas concepções originárias desta categoria
de posições jurídicas, por um lado, e do que sucede com
algumas revisionistas e altamente empobrecedoras leituras
liberais que deles vêm sendo feitas recentemente, por outro
lado, os direitos sociais não se circunscrevem às pretensões
e faculdades jurídicas de uma classe ou grupo social (trabalhadores, pobres, desvalidos, necessitados), estendendo-se
antes a todas as pessoas e cidadãos, como genuínos direitos de titularidade universal, posto que com uma largueza,
diversidade e profundidade de exercício variáveis (dentro de
certas margens e sempre obedecendo a orientações principiais) em razão das circunstâncias individuais e das opções
de políticas públicas que o conflito e a alternância políticoideológicas e a evolução económica possam ditar, tanto na
União como nos diferentes Estados.
Peritos da comunidade pronunciaram-se já sobre a noção,
o estatuto e a função dos direitos sociais no contexto da União.
Demarcaram-nos das políticas sociais, apesar do relacionamento que com elas mantêm, mas distinguiram-nos também das liberdades jurídicas (sem embargo das pressuposições e implicações recíprocas); reconheceram a multiplicidade e diversidade
das funções que desempenham, consoante sejam concebidos
como direitos subjectivos e justiciáveis, garantias institucionais
que constrangem o Estado a manter um determinado instituto jurídico, defluências de objectivos do Estado (que este deve observar em toda a sua actuação legislativa e administrativa) e séries
de programas que confiam ao legislador a missão de velar pela
realização do direito através de leis ordinárias (quer possuam
efeitos em relação a terceiros ou apenas face aos Estados);
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para além disso, confirmaram ainda o diferente estatuto (constitucional ou legal) que lhes é atribuído em diferentes EstadosMembros. O debate a este respeito, cujos termos e argumentos
dispensam apresentações, reveste-se de especial acuidade no
seio da União, dadas as suas peculiares características jurídicopolíticas. Daí que Udo di Fabio tenha mesmo preconizado a criação de um tribunal comunitário especial com competência para
julgar questões concernentes aos direitos fundamentais.
2. O direito à saúde do artigo 35º num relance21
Da convergência e fusão destes influxos se alimenta o artigo 35º. Não se pretende, com isto, ver nele um ponto de chegada, antes uma fonte permanentemente nutrida por aqueles veios
mais ou menos subterrâneos. Antes de tudo o mais, avançamos,
portanto, uma elementar proposição metodológica, segundo a
qual o artigo em apreço deve ser interpretado com atenção às
três componentes que historicamente nele se encontram e cruzam, mesmo que prossigam depois os seus diferentes caminhos,
vindo a irrigar outros terrenos.
Trata-se de uma objectivação dogmática do direito, cujo
conteúdo se mostra passível de diferentes estratégias de racionalização, mais ou menos compatíveis, mas que, em todo o
caso, deve ser transcendida por aquelas intenções de validade
normativa e justiça – de que nos fala J. Balkin – que são seu
pressuposto, ideal regulativo e fundamento último de constituição, e as quais, como tal, nunca logrará manifestar e cumprir
totalmente. Com efeito, se considerarmos - ademais da sua génese prescritiva ou da evolução da consciência jurídica geral e
do sistema dogmático que integra - a teleologia jurídica de que
deve participar (segundo os bons parâmetros de protecção e
promoção da saúde, dos direitos humanos e da solidariedade),
encontraremos um fundamental elemento para lhe descortinar o
sentido e para o densificar em termos jurídicos, assim ele seja
problematicamente convocado.
Numa radiografia grosseira, apercebemo-nos de que o artigo 35º consagra para todos os cidadãos dos Estados-Membros,
mas também de Estados-Terceiros (ainda que se encontrem em
situação ilegal no território da União), um direito de acesso à prevenção e um direito de beneficiar de cuidados médicos, bem como
um princípio finalístico de garantia de um nível elevado de saúde,
que naturalmente possuem diferentes estruturas e intensidades
normativas, mesmo se a todos se reconhece um jaez social. Com
efeito, na primeira parte, está em causa um direito negativo de
liberdade (que impede a União ou os Estados-Membros de limitarem ou suprimirem o acesso de cada um à prevenção da saúde)
mas também um direito de protecção (garantia de acesso igual à
prevenção de saúde e de manutenção das condições de vida, ambiente e trabalho azadas a uma precaução dos riscos de saúde).
Por seu turno, o direito a beneficiar de cuidados médicos implica
um dever de realização, ainda que os Estados possam escolher
os meios mais adequados de o levar a cabo.
Quanto ao Zielverpflichtung da segunda parte do artigo,
integra pelo menos uma proibição de omissão e um dever de
criação, organização e modelação dos meios adequados à realização de um elevado nível de saúde.
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CONCLUSÃO
Consideramos que uma perspectiva jurídica - filosófica, teórica e dogmaticamente inter-(e sobretudo trans-)cultural – oferece hoje suporte a uma juridicidade pública social, estruturada e
densificada por um conjunto de princípios e critérios vinculativos
partilhados, posto que sujeitos a diferentes determinações, ao
longo de uma escala de sedimentação, que desliza até a realidade - com a qual dialogicamente interage, pela qual é alimentado
e a cujos problemas procura responder, a vários níveis.
Sucede sermos hoje levados à conclusão de que mudou
o contexto problemático e intencional do direito, nas suas vertentes económicas, políticas e ético-culturais, porque se alterou
a auto-compreensão do homem, que é sempre aquilo que faz
época (Ortega y Gasset). Difundiu-se um poderoso ethos consumista e a adopção de práticas e relacionamentos consonantes,
os quais, não deixando de transportar elementos de bem-estar,
gratificação, e até libertação e pluralismo, se revelaram amiúde
alienantes ou pelo menos, pouco emancipatórios (contrariamente ao que avonde se alardeia…). Como consequência, obnubilase cada vez mais o debate público sobre uma matéria já de si
delicada - como sabemos ser a da saúde - por bulir com as relações intersubjectivas e a organização da sociedade de que o
direito se ocupa.
Cremos que a reconstrução de uma ordenação juridicamente justa para a esfera da saúde deve reter um conjunto de
ideias-força, de que se deixa uma breve resenha:
- A saúde é um bem de importância pública. De um ponto de
vista económico, apresenta as características de um bem
de mérito e (pelo menos) semi-público; a sobredeterminação jurídico-política da economia, porém, mais confirma
o seu interesse público e social, ainda que actualmente
a configure e conforme sobretudo como bem acessível
(Suzana T. Silva), nos termos das regras e princípios que
regem os respectivos serviços de provisão (ditos bens de
acesso).
- Quer as determinantes da saúde - nomeadamente os esquemas de provisão de cuidados (terapêuticos, paliativos,
curativos, etc.) e de prestação de medicamentos – quer,
mais genericamente, todas as interacções que a têm por
objecto, colocam importantes questões de justiça;
- O direito regula muitas dessas relações que entretecem a
esfera da saúde, regendo agentes, acções, objectivos e
consequências (macro e micro);
- No cerne desta regulação deve estar um direito à saúde,
em sentido amplo, desdobrável numa série de momentos
subjectivos e objectivos, negativos, positivos e activos,
materiais e procedimentais, e com a necessária atenção
aos problemas que a respeito de cada um deles se podem
suscitar.
Aceites como dados incontornáveis a profunda diferenciação social e a radical pluralidade epistémica dos nossos dias,
uma actualizada perspectiva jurídica de teor antropológico-culturalmente institucionalista (P. Häberle, A. Supiot, R. Jäeggi), deverá ver nos direitos sociais o fundamento axiológico-normativo
básico para os muitos estatutos sociais da pessoa e do cidadão.
Com efeito, os direitos sociais requerem a institucionalização de
diferentes posições jurídicas no seio dos vários sistemas sociais,
estabilizando normativamente as condições de acesso justo aos
diversos bens (educação, saúde, segurança social, cultura, etc),
em dialéctica com as respectivas dinâmicas internas e dialogando com os respectivos discursos de reflexiva constituição, num
sentido correctivo e transformador.
Não se veja aqui qualquer tentativa de restaurar uma prémoderna ordenação jurídico-estatutária da sociedade22, impossível depois da experiência cultural de subjectivismo filosófico,
individualismo antropológico, finalismo económico, contratualismo político, cientismo epistemológico e formalismo axiológico,
que a modernidade propiciou. Nos nossos dias são as pessoas
concretas que criam as máscaras, as justificam e as utilizam instrumentalmente; não as máscaras que constituem e definem as
pessoas.
Efectivamente, num mundo complexo e gasoso, faz-se necessária a criação de zonas ou ambientes favoráveis ao direito
- espaços juridicamente balizados e internamente sinalizados
(i.e., iluminados por faróis jurídicos) - atravessados pela intenção
prático-problemática da juridicidade e animados pelas correntes
que esta propulsione. Tentando decerto prevenir a redução do
direito a um discurso da área aberta (para o qual nos alerta Aroso
Linhares) e corrigir o protestantismo interpretativo a que alude
Sanford Levinson, há todavia que confiar efectivamente na instilação de uma cultura jurídica – i.e., na impregnação de um ethos
do justo e do recto – entre os sujeitos de direitos e deveres que
somos todos nós; um nomos que, sem invadir e colonizar o campo da ética e da responsabilidade absoluta, do amor e da caridade, ou da mera cortesia ou uso social, se torne todavia padrão
basilar das relações intersubjectivas na esfera pública, como um
sentido comungado do que nos devemos uns aos outros enquanto membros de colectividades feitas de diversas comunidades, e,
assim, unidos por uma solidariedade23 institucionalmente actualizada e sujeita a modulações em função daquelas, mas cuja ideia
inspiradora as transcenda, i.e., cujo princípio normativo conheça
critérios diferentes mas persista sendo o da justiça social.
A esta luz, a Europa tem ainda um caminho a fazer para que
o direito à saúde seja devidamente recortado no quadro de um
espaço político-económico e sócio-cultural não assente apenas
nas liberdades de concorrência e de escolha e nas liberdades
circulatórias que as servem. Não basta uma muito parcial integração sistémica de índole económica, cuja ligação legitimante
ao mundo-da-vida se faz apenas através dessas liberdades. A
coesão nacional não pode ser substituída pela simples competição internacional, antes clamando por um novo sistema, mais
complexo, de integração em rede, cooperativamente elaborado
– que pode comportar especializações, mas não deve sacrificar
totalmente as exigências de justiça geral, distributiva e social, em
matéria de saúde, às que decorrem de uma justiça comutativa
que hiperboliza a liberdade individual. Liberdade e saúde são
dois bens a ponderar, numa referência à dignidade das pessoas
concretas (que requer respeito, protecção e promoção da autonomia e da responsabilidade individuais). Daí que a liberdade
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current perspectives in bioethics
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de circulação na UE deva ser encarada com cautela, pois, ao
tocar este aspecto precário da construção europeia e dos equilíbrios frágeis em que se escora, atinge um nervo profundo da
própria inteligência e normação jurídicas da saúde: o da composição adequada – razoável, moderada, bem medida, i.e., correcta - de autonomia e responsabilidade individual e colectiva na
repartição dos recursos necessários para intervir proficuamente
na matéria.
Mais do que numa fáustica vitória absoluta sobre a fragilidade (M. Benasayag) e vulnerabilidade do homem ou na total
evitação tecnológico-social dos riscos inerentes à aventura individual e ao convívio com os outros, é na esperança da (e na
responsabilidade pela) justiça que deve residir, também quanto
à saúde, a nossa aposta jurídica.
«Bei der Gesundheit verhält es sich ähnlich wie bei
der Gerechtigkeit:
Wer sie erlebt, nimmt sie für selbstverständlich»
Paul KIRCHHOF, “Das Recht auf Gesundheit”,
in Stimmen der Zeit, Heft 1, Januar 2004, p. 44.
ABSTRACT
In this second part of the investigation we will focus our attention on the right to healthcare, as recognized by the UE, concentrating our thoughts exclusively on article 35º of the CFREU.
And since this precept prescribes a (i) solidarity (ii) right (iii) to
healthcare - where the Europe of Health, the Europe of Rights
and Social Europe seem to converge and intersect - our goal comes to be the reconstitution of the historical roots of these three
components of the European project, describing their evolutionary course, as if they were streams, flowing into article 35º, and
continually feeding its content. By means of such a display, we
hope to propel some critical reflection, opening new possibilities
of evolution, and using the referred genetic marks of article 35º as
true sources to rethink, imagine, project and enact the continuous
regulative re-construction of the EU Law specifically devoted to
health protection and promotion.
Keywords: Charter of Fundamental Rights of the European
Union; Article 35º; European Health Policies; Social policies; Human Rights and Fundamental Rights.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 42-53
BIBLIOGRAFIA
1. Cfr. Michaelowski S., “Health Care Law” in Peers S, Ward A,
The EU Charter of Fundamental Rights: politics, law and policy, Hart Publishing, Portland – Oregon, 2004, pp. 287-308.
2. V. Jorens Y. (Ed.), Open Method of Coordination. Objectives
of European Health Care Policy, Nomos Verlagsgellschaft,
Baden-Baden, 2003; e, em português, o nosso Racionamento e Racionalização no acesso à saúde., op. cit., volume II,
pp. 286 e ss.
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current perspectives in bioethics
3. V. o Livro Branco sobre os serviços de interesse geral [COM
(2004) 0374] e a Comunicação da Comissão ao Parlamento
Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões que acompanha a comunicação “Um mercado único para a Europa do século XXI”. Os
serviços de interesse geral, incluindo os serviços sociais de
interesse geral: um novo compromisso europeu [COM (2007)
725].
4. V., também, o recente documento da Comissão Europeia
(Direcção Geral do Emprego, dos Assuntos Sociais e da
Igualdade de Oportunidades; Direcção Geral da Saúde e dos
Consumidores), Reduzir as desigualdades no domínio da
saúde na União Europeia, Serviço de Publicações da União
Europeia, Luxemburgo, 2011.
5. Hervey TK, McHale J, Health law and the European Union,
Cambridge University Press, Cambridge, 2004, pp. 43 e ss;
Hervey T, “The European Union and the governance of health
care”, in The European Union Center of Excellence, University of Wisconsin, p. 1 (http://eucenter.wisc.edu /OMC/Papers/
Pro tection/hervey.pdf).
6. Saúde pública, acesso aos cuidados de saúde, toxicodependência, informação de saúde, protecção de dados e privacidade, emprego e aspectos sociais, ambiente, desenvolvimento, segurança alimentar, regulação e mobilidade dos
profissionais, investigação, medicamentos, dispositivos técnicos, desporto, etc
7. V. Hervey TK, McHale J, Health law and the European Union,
op. cit., pp. 395 e ss.
8. V., nomeadamente, as Conclusões do Conselho sobre os valores e princípios comuns aos sistemas da União Europeia
– JO C 146, de 22.06.2006, pp. 1-3.
9. V. Ibidem; Hervey TK, “If Only It Were So Simple: Public Health Services and EU Law”, in Cremona M, Market Integration
and Public Services in the European Union, (The Collected
Courses of the Academy of European Law), Oxford University Press, Oxford/ New York, 2011, pp. 179 e ss; Idem, “The
European Union and the governance of health care”, op. cit.;
Idem, “The European Union’s governance of health care and
the welfare modernization agenda”, in Regulation & Governance (Special Issue: Health Care and New Governance:
The Quest for Effective Regulation), Volume 2, Issue 1, March 2008, pages 103–120; Idem, “The ‘Right to Health’ in European Union Law”, in Hervey TK, Kenner J (ed.), Economic
and Social Rights under the EU Charter of Fundamental Rights. A Legal Perspective, Hart Publishing, Oxford – Portland
Oregon, 2003, pp. 193-222; McKee M, Mossialos E, Baeten
R (eds.), The Impact of EU Law on Health Care Systems,
P.I.E. - Peter Lang, Bruxelles, 2002.
10. V. Lenaerts K, Droit communautaire et soins de santé: les
grandes lignes de la jurisprudence de la Cour de justice des
Communautés européennes, pdf., s/ed., pp. 1-17 (disponível
on-line em http://www.ose.be /workshop/files/LenaertsFR.
pdf); Lenaerts K, Heremans T, “Contours of a European Social Union in the Case-Law of the European Court of Justice”, in European Constitutional Law Review, Volume 2, Issue
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I, 2006, pp. 101-115; e, entre nós, Cabral P, “As difficult as
finding one´s way in chinatown: O enquadramento jurídicocomunitário da liberdade de acesso a cuidados de saúde
transfronteiriços na União Europeia”, in Revista da Ordem
dos Advogados (on-line), 2004; Idem, “Da livre circulação de
cuidados médicos na União Europeia”, in Direito e Justiça,
Vol. XIV, Tomo 1, 2000; Menezes do Vale L, Racionamento e
Racionalização no acesso à saúde, op. cit.,Volume II, capítulo 2, pp. 85 e ss.
11. Sobre os arestos citados, v., a nossa Anotação ao artigo 35.º
da CDFUE, polic., Coimbra, 2011, pp. 1-44 (ainda inédito e
futuramente integrado na Carta dos Direitos Fundamentais
Anotada, que o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Escola de Direito da Universidade do Minho vem
preparando).
12. V., para todo este ponto, Martins, AMG, “A Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia e os direitos sociais”, in
Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo 2, 2001, pp. 189-230 que
seguimos de muito perto.
13. Cf. JO C 103, de 27.04.1977, p. 1.
14. Carlier J-Y, Schutter O (dir.), La charte des droits fondamentaux de l’Union européenne: son apport à la protection des
droits de l’homme en Europe (hommage à Silvio Marcus Helmons), Bruylant, Bruxelles, 2002; Riquito AL et alii, Carta de
Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra Editora,
Coimbra 2001; di Federico G (ed.), The EU Charter of Fundamental Rights: From Declaration to Binding Instrument,
Dordrecht/Heidelberg/London/ New York, Springer, 2011;
Tettinger PJ, Stern K, Kölner Gemeinschaftskommentar zur
Europäischen Grundrechte-Charta, München, C.H. Beck,
2006; Toth A G, “The Charter of Fundamental Rights of the
European Union”, in Direito e Justiça. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Tomo 1, Vol.
16 (2002), pp. 171-189; Bifulco R, Cartabia M, Celotto A (a
cura di), L’Europa dei diritti: commento alla carta dei diritti
fondamentali dell’Unione Europea, Bologna: Il Mulino, 2001;
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Direitos Fundamentais”, in Cuadernos Europeos de Deusto,
N. 25, 2001, p. 161-188; Vitorino A, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Principia, Cascais, 2002.
15. V. Silva JP, “Os direitos sociais e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, in Direito e Justiça, Vol. XV,
Tomo 2, 2001, pp. 147-163; Martins AMG, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os direitos sociais”, in
Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo 2, 2001, pp. 189-230.
16. V. Duarte ML, “A União Europeia e os Direitos Fundamentais
– Métodos de Protecção”, in Portugal-Brasil Ano 2000, Stvdia
Ivridica, Coimbra Editora, 1999, pp. 27 e ss.
17. V. Silva SZ, Direitos Fundamentais na Arena Global, op. cit.,
pp. 23 e ss (maxime, p. 31).
18. V. Canotilho MR, O Princípio do nível mais elevado de protecção em matéria de direitos fundamentais, polic, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008.
19. Quanto aos direitos sociais, tendo em vista, respectivamente,
a CEDH, a UE em geral, e a CDFUE, v. Iliopoulos-Strangas
J, “Soziale Grundrechte”, in Merten D, Papier H-J (Hg.), Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa VI/1: Europäische Grundrechte I, Volume 6, CF. Müller, Hüthig Jehle
Rehm, Heidelberg/ München/ Landsberg/ Frechen/ Hamburg,
2010, pp. 299 e ss; Eichenhofer E, “Soziale Rechte”, Ibidem,
pp. 825 e ss e Langenfeld C, “Soziale Grundrechte”, Ibidem,
pp. 1117 e ss; v. ainda Kingreen T, “Soziale Grundrechte”
(§18), in Ehlers D (Hrsg.), Europäische Grundrechte und
Grundfreiheiten, De Gruyter Lehrbuch, 3. Auflage, Walter
de Gruyter, 2009.pp. 640 e ss; Coppola S, “Social Rights in
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Charter of Fundamental Rights”, in Di Federico G, The EU
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Instrument, op.cit., pp. 199-216; Bundesministerium für Arbeit und Sozialordnung, Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Sozialrecht, Akademie der Diözese Rottenburg Stuttgart (Hrsg.), Soziale Grundrechte in der
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2001, pp. 23-57. Relativamente aos direitos sociais nos países europeus, v. Fabre C, “Social Rights in European Constitutions”, in de Búrca G Gráinne, de Witte B (Eds.), Social
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20. Sanjuán T, “Los Derechos Sociales en la Constitución Europea”, in Colóquio Ibérico: Constituição Europeia, Studia Iuridica, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 330.
21. V. a nossa “Anotação ao artigo 35º da CDFUE”, op. cit., pp.
31-44.
22. Hespanha AM, Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um Milénio, 3.ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 2003,
pp. 81 e ss.
23. V. as sugestivas reflexões de Maalouf A, em Um Mundo sem
Regras. Quando as nossas civilizações se esgotam, Difel,
Lisboa, 2009.
CORRESPONDÊNCIA
Luís Menezes do Vale
[email protected]
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Febre de etiologia indeterminada
– encruzilhada de diagnósticos
Manuel Oliveira1, Carla Meireles1, Patrícia Costa2, Margarida Guedes3, Ana Luísa Lobo1.
RESUMO
Introdução: Os principais diagnósticos a considerar numa
febre de etiologia indeterminada incluem as causas infecciosas,
reumatológicas, imunológicas e neoplásicas.
Caso clínico: Apresentamos o caso de uma criança de
quatro anos do sexo masculino, observada por febre, cervicalgia e claudicação da marcha. Detectou-se anemia e marcadores
inflamatórios elevados. No internamento foi-se evidenciando palidez, exantema maculo-papular em pico febril e adenomegalias
cervicais. A avaliação por Cardiologia evidenciou ectasia coronária, tendo iniciado imunoglobulina intravenosa (IGIV) por suspeita de Doença de Kawasaki atípica (DKa). Por persistência da
febre invocou-se o diagnóstico mais provável de Artrite Idiopática
Juvenil sistémica (AIJs).
Discussão: Após a exclusão de outras causas, o diagnóstico diferencial entre DKa e AIJs é difícil pela inespecificidade dos
achados. A suspeita de DKa, justifica a terapêutica com IGIV, mas
a refractariedade a esta não a exclui (10% de casos refractários).
Por outro lado, está descrita a presença de dilatações coronárias
em contexto de quadro inflamatório sistémico, tornando este achado sugestivo mas não patognomónico de Doença de Kawasaki.
Palavras-chave: artrite idiopática juvenil, ectasia coronária, febre.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 54-56
INTRODUÇÃO
Febre de etiologia indeterminada (FEI) define-se, em idade
pediátrica, como uma febre documentada por um profissional de
saúde, sem causa identificada, e que persiste após três semanas de investigação em ambulatório ou uma semana em regime
de internamento. A causa pode ser infecciosa, reumatológica e/
ou imunológica, neoplásica, farmacológica, heredo-familiar, entre outras(1,2). Para o diagnóstico diferencial é importante ter em
conta o padrão da febre e sintomas associados, antecedentes
patológicos, contexto epidemiológico e um exame objectivo pormenorizado, já que os resultados dos exames complementares
podem revelar-se inespecíficos.
__________
1
2
3
S. Pediatria, CH Alto Ave, Guimarães
S. Cardiologia Pediátrica, CH S. João, Porto
S. Pediatria, CH Porto
54
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino e raça caucasiana, quatro
anos de idade, com crescimento e desenvolvimento psicomotor normais, plano de imunizações actualizado e antecedentes
patológicos irrelevantes. História de consanguinidade parental
(pais primos em primeiro grau), sem doenças heredo-familiares
conhecidas. Agregado familiar nuclear (pais e duas irmãs), habitando casa própria em zona urbana, com água canalizada e
saneamento básico.
Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por um quadro de
febre com quatro dias de evolução (picos febris de três em três
horas com temperatura axilar máxima de 40,2ºC), cervicalgia bilateral e coxalgia à esquerda. Foi referido episódio “semelhante”
ocorrido cerca de um mês antes, resolvido ao fim de 48 horas,
num contexto de amigdalite aguda medicada com penicilina.
Negava traumatismos, ingestão de medicamentos ou alimentos
suspeitos, alergias, contacto com pessoas doentes ou animais
e viagens recentes. Ao exame objectivo apresentava limitação
dolorosa da mobilidade do pescoço e marcha com claudicação à
esquerda, sem outras alterações. Os exames realizados detectaram anemia (Hb 9,5 g/dL), microcítica e normocrómica, leucocitose (15900/μL) com neutrofilia (77,9%), plaquetas 349000/μL
e PCR aumentada (131,9 mg/L); análise sumária de urina tipo II
e citoquímica do líquido cefalorraquidiano sem alterações; radiografia pulmonar com discreto infiltrado intersticial bilateral e estudo imagiológico dirigido inconclusivo (radiografia e TAC da coluna cervical e radiografias da bacia, joelhos, tornozelos e pés).
Decidiu-se o internamento para esclarecimento etiológico.
Em internamento, a febre evoluiu com dois a três picos diários, de amplitude variável (38,5ºC-40ºC), predomínio vespertino e
nocturno e irritabilidade associada. Manteve apetite conservado,
sem vómitos ou diarreia, diurese normal, ausência de sintomas
respiratórios e melhoria progressiva das queixas álgicas articulares. Foi-se evidenciando palidez muco-cutânea; exantema eritematoso maculo-papular no tronco, fugaz, evidente em pico febril; olhos encovados sem hiperémia conjuntival; lábios secos e
fissurados e eritema da orofaringe, sem exsudados; e gânglios
cervicais palpáveis bilateralmente, com 1 cm de maior diâmetro,
indolores, de consistência elástica, não aderentes e sem sinais
inflamatórios externos. A partir do terceiro dia de internamento
(D7 febre) descreve-se um sopro cardíaco sistólico grau II/VI,
mantendo auscultação pulmonar normal e exame abdominal sem
alterações. Neste dia foi avaliado por Cardiologia Pediátrica, realizando ecocardiograma que não mostrou alterações. A marcha
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
normalizou após D6 internamento (D10 febre), mantendo sempre
normal mobilidade, activa e passiva, e ausência de edema ou outros sinais inflamatórios das articulações da bacia e dos membros
superiores e inferiores. Apresentava, de forma intermitente, posição preferencial da cabeça em rotação lateral direita, com rotação
em bloco da cabeça e do tronco no olhar para a esquerda; sem
recorrência após D13 internamento (D17 febre).
Manteve marcadores inflamatórios elevados, com valor máximo de plaquetas de 652000/uL, ferritina 784,70 ng/mL, VS 108
mm/1ªh e PCR 132,8 mg/L. O estudo em curso foi inconclusivo e
incluiu rastreio infeccioso alargado, marcadores neoplásicos, estudo imunológico, ecocardiograma (D3 internamento), ecografia
abdominal e das ancas e RMN cervical.
Em D13 de internamento (D17 febre), pela possibilidade
de Doença de Kawasaki incompleta ou atípica (DKa), uma nova
avaliação por Cardiologia Pediátrica evidenciou ectasia da artéria coronária esquerda (3 mm) com avaliação electrocardiográfica normal, tendo iniciado Imunoglobulina endovenosa - IGIV
- (2g/kg) e AAS. No entanto a febre persistiu em picos isolados
matinais (39ºC-40ºC), pelo que dois dias depois foi avaliado em
consulta de Reumatologia, invocando-se o diagnóstico mais
provável de apresentação sistémica de Artrite Idiopática Juvenil
(AIJs). Iniciou terapêutica com naproxeno e prednisolona, tendo
alta em D24 internamento, após cinco dias de apirexia sustentada. Nos seis meses de seguimento seguintes apresentou alguns
períodos intermitentes de febre, que cederam após a introdução
de terapêutica com metotrexato, sem outras alterações clínicas,
nomeadamente recaídas articulares ou uveíte. Nas análises de
controlo mantém valores normais de hemoglobina, leucócitos,
plaquetas, VS, PCR, ferritina e transaminases. Avaliações posteriores por Cardiologia (após uma, seis e dezasseis semanas da
primeira avaliação) indicam a persistência da ectasia de 3 mm da
artéria coronária esquerda, com paredes hiperecogénicas, estando medicado com AAS em dose anti-agregante plaquetar.
DISCUSSÃO
Após a exclusão de outras causas de febre prolongada,
pode tornar-se difícil o diagnóstico diferencial entre AIJs e DKa.
Existem aspectos clínicos, laboratoriais e imagiológicos orientadores mas não suficientemente específicos.
A Artrite Idiopática Juvenil é a doença reumatológica mais
comum na infância, representando a forma sistémica cerca de
10% dos casos(3). Esta forma tem um pico de incidência entre
um e seis anos de idade, sem predominância de género. Implica a presença de artrite em uma ou mais articulações, com
febre precedente ou coincidente com pelo menos duas semanas de evolução, documentada como diária, em pelo menos três
dias seguidos, e associada a um ou mais dos seguintes sinais:
exantema eritematoso evanescente, não fixo; adenomegalias
generalizadas, hepatomegalia e/ou esplenomegalia e serosite
(pericardite, pleurite e/ou peritonite). A artrite não é migratória
e não causa dor muito intensa, podendo afectar as articulações
das mãos, punhos, joelhos, ancas, coluna cervical e temporomandibular, geralmente de forma simétrica. É diferente da artrite migratória e assimétrica da febre reumática e da dor óssea
não articular, intensa e nocturna, da leucemia. O padrão febril é
característico, com um ou dois picos diários, súbitos, de grande amplitude (≥ 39ºC), e que rapidamente retorna à linha basal
ou abaixo desta (≤ 37ºC), de predomínio matinal ou vespertino.
Inicialmente as crianças podem apresentar um «ar doente» em
pico febril, não se verificando este padrão quotidiano da febre. O
exantema, presente em 90% dos casos, é eritematoso, macular
ou maculo-papular, frequentemente descrito como rosa-salmão;
mas que facilmente passa despercebido já que é evanescente
ou transitório, com tendência a aparecer em pico febril; migratório; com uma distribuição linear no tronco e face interna dos
braços e coxas, deste modo poupando as zonas expostas. A
hipersensibilidade cutânea ao trauma superficial levando à recorrência do exantema é sugestiva (fenómeno de Koebner). O
exantema pode também recorrer com o calor, por exemplo, um
banho quente. Salienta-se que a clínica sistémica pode preceder
a artrite em semanas ou meses. Os achados laboratoriais são
inespecíficos (anemia, leucocitose com neutrofilia, trombocitose
- valores normais ou baixos de plaquetas devem orientar para
outro diagnóstico -, elevação da VS, PCR e ferritina sérica). Anticorpos anti-nuclear (ANA) positivos encontram-se em 5-10% das
crianças e o factor reumatóide (FR) é geralmente negativo. (2,3)
A DKa, ao contrário da AIJ, é mais comum em crianças
pequenas do que em crianças mais velhas. Caracteriza-se pela
presença de febre com duração igual ou superior a cinco dias,
associada a dois a três achados clássicos da Doença de Kawasaki(4,5). Poliartralgias, com ou sem sinais de artrite, podem
ocorrer na fase aguda. Em adição, dados laboratoriais devem
apontar para um quadro inflamatório sistémico (VS ≥ 40 mm/h
e PCR ≥ 30 mg/L), associados a outros achados complementares como anemia, leucócitos > 15000/μL, plaquetas > 450000/μL
após sete dias de doença, TGP aumentada, albumina ≤ 3 g/dL e
piúria estéril com > 10 leucócitos/campo. A suspeita de Dka deve
conduzir a uma avaliação por Cardiologia. O ecocardiograma é
essencial para avaliar a morfologia das artérias coronárias - presença de ectasias ou aneurismas, número, localização, forma
(saculares, fusiformes) e tamanho (pequenos <5mm e gigantes
>8 mm), de sinais indirectos de arterite (hiperecogenecidade perivascular), e de trombos intravasculares –, função do ventrículo
esquerdo, presença de insuficiência valvular mitral ou aórtica,
dilatação da origem da aorta e sinais de pericardite com derrame
pericárdico. Definem-se aneurismas coronários (AC), segundo a
classificação utilizada pelo Ministério Japonês da Saúde, quando
o diâmetro interno (DI) de um segmento coronário é 1,5 vezes
superior ao DI do segmento coronário adjacente, quando é visível irregularidade do lúmen vascular(4,5) ou quando o DI coronário
é >3 mm nas crianças com <5 anos ou >4 mm nas crianças ≥5
anos de idade(4-7). Segundo a American Heart Association (AHA),
a sensibilidade diagnóstica pode ser aumentada usando-se
como referência as curvas dos valores normais do diâmetro das
artérias coronárias em relação com a área de superfície corporal,
considerando que existe dilatação de um vaso se o seu diâmetro
apresenta um SDS ≥ 2,5 em relação à média(4,5).
Neste doente, pela persistência da clínica e inespecificidade
dos exames auxiliares de diagnóstico, foi necessário colocar a hi-
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
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revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
pótese de DKa e pedir avaliação por Cardiologia. Esta não é uma
forma atenuada de Doença de Kawasaki (DK) e tem o mesmo
risco de originar o aparecimento de AC (15-25% dos casos não
tratados), constituindo a causa mais importante de cardiopatia adquirida nos países desenvolvidos(4-6). O tratamento com IGIV nos
primeiros dez dias diminui a incidência de AC para cerca de 2%.
Embora os aneurismas raramente se formem antes deste período, alguma evidência de arterite pode estar presente numa fase
aguda e conduzir à suspeita de DKa. No entanto este não é um
achado 100% específico para DK, não devendo excluir outras condições. Estão descritos casos de dilatação transitória das artérias
coronárias em doentes com AIJs(8). Estará associado ao aumento
dos níveis circulantes de citoquinas pró-inflamatórias, especialmente a interleucina 6, que conduz a um estado de inflamação
vascular sistémica. (8) Assim, em casos como o descrito, em que
se identificou ectasia coronária (DI da artéria coronária esquerda
com um SDS> 2,5 para a superfície corporal do doente de 0,7 m2)
e mesmo com 10% de casos estimados de DK refractários à IGIV;
uma febre que não cede, ou a persistência ou reaparecimento dos
sinais de artrite (tipicamente auto-limitada na DK) devem alertar
para a possibilidade de AIJs(1,8).
O diagnóstico diferencial entre Dka e AIJs é difícil; a presença de dilatação coronária na avaliação ecocardiográfica inicial não
excluiu o diagnóstico de AIJs, que deve ser colocado quando existe persistência de artrite e refractariedade à terapêutica com IGIV.
FEVER OF UNKNOWN ORIGIN – A DIFFICULT DIAGNOSTIC
PROBLEM
ABSTRACT
Background: The most common causes of fever of unknown origin are infectious diseases, rheumatologic or immunologic diseases, and malignancies.
Case report: The case of a four years old male child with
fever, neck pain and limping gait is presented. He was anemic
and had elevated inflammatory markers. He developed gradual
pallor, maculopapular rash appearing with fever peaks, and cervical lymphadenopathy. Echocardiographic documentation of coronary artery ectasia, lead to intravenous immunoglobulin (IVIG)
therapy for suspected atypical Kawasaki disease (aKD). The
most probable diagnosis of systemic-onset Juvenile Idiopathic
Arthritis (sJIA) was made after fever maintenance.
Discussion: It is difficult to differentiate between aKD and
sJIA because there are no specific findings. The suspicion of aKD
should lead to IVIG therapy, but failure to respond is not an exclusion criterion (10% of patients are refractory cases). Systemic inflammatory disorders, like sJIA, may be associated with coronary
artery dilation. This finding supports a diagnosis of aKD but is not
specific for the condition.
Keywords: juvenile idiopathic arthritis, coronary ectasia,
fever.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 54-56
56
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
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CORRESPONDÊNCIA
Manuel António Novais Oliveira
e-mail: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Caso dermatológico
Ana Oliveira1, Madalena Sanches1, Manuela Selores1
Criança de cinco anos, sexo feminino, sem antecedentes
patológicos de relevo e com plano nacional de vacinação actualizado. Enviada à consulta de Dermatologia por lesões cutâneas
assintomáticas localizadas à face e membros, com cerca de uma
semana de evolução. Os pais referiam história de infecção respiratória alta, provavelmente virusal, cerca de uma semana antes
do aparecimento das lesões.
Ao exame objectivo observavam-se múltiplas pápulas eritematosas, arredondadas, de superfície lisa ou crostosa, infracentimétricas, dispersas de forma simétrica pelas regiões malares e
face extensora dos membros. A criança encontrava-se apirética
e com bom estado geral.
Figura 1
Figura 2
Qual o seu diagnóstico?
__________
1
S. Dermatologia, H Santo António, CH Porto
caso dermatológico
dermatology case
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ano 2012, vol XXI, n.º 1
DIAGNÓSTICO
O aparecimento de lesões cutâneas eritemato-papulosas,
monomórficas, distribuídas de forma simétrica pela face e regiões acrais após sintomas de infecção das vias aéreas superiores
é característico do Síndrome de Gianotti-Crosti.
COMENTÁRIOS
O síndrome de Gianotti-Crosti (SGC) ou acrodermatite papulosa da infância é uma doença rara e autolimitada que atinge,
sobretudo, crianças dos dois aos seis anos, independentemente
do género. Cerca de 90% dos doentes tem menos de quatro
anos. Em 1970, Gianotti e Crosti associaram-na à infecção pelo
vírus da hepatite B. Posteriormente foram observadas erupções
cutâneas idênticas ao SGC, em associação com outros agentes infecciosos, principalmente virais, nomeadamente o vírus de
Epstein-Barr, o vírus coxsackie do tipo B e o herpes vírus do tipo
6 e vacinas. Pensa-se que traduza uma reacção de hipersensibilidade a antigénios víricos ou bacterianos. A sua baixa frequência
na idade adulta parece dever-se à aquisição de imunidade para
estes antigénios na infância.
O curso da SGC é benigno e autolimitado, surgindo de forma súbita e resolvendo num período que varia de duas a oito
semanas. Não estão descritas recorrências. As lesões cutâneas
caracterizam-se por múltiplas pápulas eritematosas, não descamativas, por vezes associadas a vesiculação e a crostas sero-hemáticas, podendo coalescer em placas, distribuídas simetricamente pela face, nádegas e face extensora dos membros. O
tronco raramente é afectado. As lesões são em geral assintomáticas, sendo excepcionalmente pruriginosas. Por vezes há pródromos sugestivos de infecção respiratória alta. O estado geral
mantém-se inalterado ou ocorrem sintomas tais como mal-estar,
febre, náuseas e vómitos. Pode associar-se a hepatoesplenomegalia, linfadenopatia e a um quadro de hepatite aguda anictérica.
Uma linfocitose, eventualmente com presença de linfócitos atípicos no sangue periférico, pode ainda ser observada.
O diagnóstico é clínico, embora por vezes possa ser necessário recorrer à biopsia cutânea para exclusão de outros diag-
58
caso dermatológico
dermatology case
nósticos diferenciais, uma vez que os achados histopatológicos
do SGC são inespecíficos, traduzindo-se por espongiose focal,
acantose paraqueratótica e infiltração linfohistiocítica perivascular na derme superior. Em geral, não é necessário realizar exames laboratoriais, nomeadamente em crianças vacinadas para o
vírus da hepatite B.
Uma vez que se trata de uma doença benigna e auto-limitada
não é necessário qualquer tratamento. Se as lesões forem pruriginosas pode realizar-se um curso curto de anti-histamínico oral.
Uma vez que o período infeccioso termina quando o exantema
se inicia, não há necessidade de evicção escolar.
ABSTRACT
Gianotti-Crosti syndrome (GCS) is a disease characterized
by a symmetrical erythematopapulous, acral-based eruption. It
affects mainly children under four years of age. In most cases a
relationship with a viral infection or a vaccine can be established.
The course of GCS is benign and self-limited, the manifestations
disappearing within two to eight weeks, with no recurrence.
We report the case of a five year-old girl who developed a
Gianotti-Crosti Syndrome after an upper respiratory infection.
Keywords: Gianotti-Crosti syndrome, papular acrodermatitis of childhood.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 57-58
BIBLIOGRAFIA
1. Harper J, Oranje A, Prose NS. Textbook of Pediatric Dermatology. Oxford, United Kingdom: Wiley-Blackwell, 2010.
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2008.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Caso estomatológico
José M. S. Amorim1
AMSL, sexo masculino, de 10 anos de idade foi enviado à
consulta externa de Estomatologia da Unidade Pediátrica Maria
Pia devido “ter dentes a mais no maxilar superior”. De acordo
com informação prestada pela mãe, a criança fez erupção de
dois dentes “bicudos” após a esfoliação dos decíduos e depois
nasceram os dentes definitivos.
Ao exame objetivo apresentava dois dentes supranumerários em forma de cone, em posição central maxilar. Os dentes
incisivos centrais e laterais superiores encontravam-se em po-
sição distal e rodados pela falta de espaço decorrente dos dois
dentes supranumerários (Figura 1).
Boa higiene oral e sem cáries.
Realizou ortopantomografia que não revelou dentes inclusos.
Face ao descrito:
Qual o seu diagnóstico?
Qual a sua atitude?
Figura 1
__________
1
Serviço de Estomatologia Hospital Maria Pia / CH Porto
caso estomatológico
oral pathology case
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COMENTÁRIOS
A situação clínica acima exposta refere-se a um caso de
dentes supranumerários, com coroa em forma de cone, vulgarmente designados por mesiodens.
O mesiodens é o dente supranumerário mais comum na
arcada dentária, situado na linha média da maxila, entre os incisivos centrais superiores.
A etiologia dos dentes inclusos ainda não é consensual:
- Teoria da dicotomia: proliferação da lâmina dentária permanente ou decídua, de forma anómala;
- Associados a distúrbios do desenvolvimento (Síndrome
de Gardner, disostose cleidocraniana e fissuras lábio palatinas) e hereditariedade.
Os dentes supranumerários são mais frequentes na dentição permanente, sendo a maxila o osso mais atingido e nesta a
pré-maxila (90% dos casos que surgem na maxila). A incidência
na maxila/mandibula é de 10:1.
O sexo masculino é mais atingido que o feminino, sendo a
proporção de 2:1.
O aparecimento de dentes supranumerários pode levar ao
aparecimento de alterações da oclusão: apinhamento dentário
(dentes tortos), impactação de dentes permanentes (não erupção), atraso na erupção ou erupção ectópica, rotação dentária,
diastemas, desenvolvimento de lesões quísticas, reabsorção
dos dentes adjacentes. Todas estas potenciais complicações
implicam que o diagnóstico de dente supranumerário deva ser
precoce, para que o tratamento seja realizado o mais precocemente possível.
60
caso estomatológico
oral pathology case
O diagnóstico de dente supranumerário incluso é feito com
a realização de uma ortopantomografia.
O tratamento destas situações passa pela exérese dos
dentes supranumerários e realização posterior de ortodontia.
Neste caso, foi realizada a extração dos 2 dentes supranumerários, ficando um diastema de cerca de 8 mm que vai ser encerrado com a realização de ortodontia fixa, bem como alinhados
e colocados na respetiva posição os 4 incisivos superiores.
ABSTRACT
A ten year-old boy was sent to the query Paediatric Dentistry
for the presence of two supernumerary teeth was performed,
orthodontic treatment will be performed in the correct time to the
occlusion.
Keywords: supernumerary tooth, early diagnosis,
panoramic radiography, excision, orthodontics.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 59-60
BIBLIOGRAFIA
Leache EB, Odontopediatria, Masson, 2003; pág. 60-8.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Caso hematológico
Teresa São Simão1, Miguel Salgado2, Emília Costa3, José Barbot3
Criança de dois anos que após quatro dias do aparecimento de um exantema compatível com Varicela recorre ao Serviço
de Urgência (SU) por um quadro de equimoses, petéquias, epistáxis e vómitos hemáticos com 24h de evolução. O exame objectivo revelava um bom estado geral, palidez da pele e mucosas,
equimoses e petéquias dispersas.
Figura 1 – Em D11 reticulocitose a emergir mas uma
concentração de hemoglobina dos reticulócitos equilibrada
__________
1
2
3
S. Pediatria, CH Alto Ave, Guimarães
S. Pediatria, ULS Alto Minho, Viana do Castelo
U. Hematologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
Quais as hipóteses de diagnóstico?
Que exames complementares solicitava?
Figura 2 – Em D15 verifica-se diminuição da concentração da Hb dos resticulócitos
Figura 3 – Em D26. Após introdução da terapêutica
com ferro regista-se uma evolução favorável e uma
recuperação da concentração da hemoglobina dos
reticulócitos
caso hematológico
hematology case
61
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
DIAGNÓSTICO
O hemograma revelava uma trombocitopenia (plaquetas
17000/mm3) e uma anemia (Hb 8,7 g/dl) normocítica normocrómica sem reticulocitose e RDW normal. A gravidade do quadro
hemorrágico e o facto de a PTI estar documentada de forma
consistente como complicação da Varicela 1,2,3, esteve na base
do recurso à terapêutica com IgG ev (1g/kg em toma única).
No entanto, a presença de uma bicitopenia, colocava o receio
de diagnósticos alternativos, eventualmente mais graves, facto
que esteve na base de um estudo analítico exaustivo (estudo
da coagulação, Prova de Coombs, Marcadores víricos, estudo
imunológico e estudo ecográfico – todos estes sem alterações)
que incluiu Mielograma (Aspirado medular - “normocelular, com
presença de todas as linhagens incluindo megacariócitos “) mesmo antes da avaliação da resposta terapêutica. Os três dias seguintes vieram, no entanto, dissipar estes receios. A contagem
de plaquetas (Tabela 1) subiu e emergiu uma reticulocitose. O
conteúdo de Hb dos reticulócitos (CHr-27pg) que em D11 era
sobreponível ao conteúdo de Hb médio (CHm-26,2pg) sofre um
decréscimo em D15 (CHr-23,3pg). Este achado foi interpretado
como o início duma eritropoiese ferripriva resultado de perda hemorrágica que, por sua vez, teria resultado da trombocitopenia.
Que tratamento?
A introdução precoce da terapêutica com ferro resolveu de
forma rápida este problema conforme pode ser documentado
pelo valor do CHr de D26 (CHr-32,7pg). Os histogramas das figuras 1, 2 e 3 elucidam a evolução clínica desta entidade que se
revelou benigna.
Após cinco meses a criança está sem anemia e com contagem de plaquetas normal (Tabela 1).
COMENTÁRIOS
A presença de uma anemia em associação com uma trombocitopenia não inviabiliza à partida o diagnóstico de PTI já que
uma hemorragia importante pode estar na origem da anemia.
Esta hemorragia pode inclusivamente despoletar um défice agu-
D5
D7
D11
D15
D26
Após 5
meses
8,7
7,3
8,3
9,5
10,5
12,7
Reticulócitos
47450
71300
196500
148700
184800
67600
RDW
13,5 %
14%
17%
16%
18,5%
15,3%
Plaquetas
19000
50000
48000
39000
44000
370000
Hb
Tabela 1
62
caso hematológico
hematology case
do de ferro susceptível de prejudicar a recuperação da anemia
e protelar a caracterização da situação na sua globalidade. Dois
dias após a introdução da Imunoglobulina endovenosa (D7) é
documentada resposta terapêutica, com posterior normalização
progressiva da trombocitopenia. A sequência de histogramas
permitiu em D15 esclarecer a etiologia da anemia concomitante
e medicá-la de forma atempada. O esclarecimento do quadro hematológico na sua globalidade (anemia e trombocitopenia) não
foi no entanto suficientemente célere para evitar a realização de
aspirado de medula óssea (D6). A opção por este procedimento
resultou do receio de que a bicitopenia tivesse como causa subjacente uma patologia de origem medular.
Este caso clínico permite reflectir sobre a atitude clínica perante
um caso que, à partida parecia óbvio mas que se tornou complexo
a partir do momento em que foram evocados os diagnósticos
diferenciais de uma bicitopenia.
IDIOPATHIC THROMBOCYTOPENIC PURPURA
– A DIAGNOSIS IS NOT ALWAYS CLEAR ...
ABSTRACT
The immune thrombocytopenic purpura (ITP) is a controversial disease. The generality of the literature argues that a historical objective clinical examination and a blood count with careful
observation of the peripheral blood smear is sufficient for diagnosis. Some cases contradict this belief.
Keywords: Immune thrombocytopenic purpura, varicella,
cytopenia.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 61-62
BIBLIOGRAFIA
1. Yenicesu I, Yetgin S, Ozyürek E, Aslan D. Virus associated
immune thrombocitopenic purpura in childhood. Pediatr Hematol Oncol 2002; 19: 433-7.
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in children with varicella-associated acute immune thrombocytopenic purpura (ITP). Br J Haematol 1996; 95: 145-52.
3. Arvin AM. Varicella-Zoster Virus. In: Long SS, Pickering LK,
Prober CG, editors. Principles and Practice of Pediatric Infectious diseases. 3 rd ed. Philadelphia: Saunders Elsevier;
2008: chap 205.
CORRESPONDÊNCIA
Teresa São Simão
E-mail: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
Genes, crianças e pediatras
Esmeralda Martins1, Teresa Oliveira1, Anabela Bandeira1
CASO CLÍNICO
Segunda filha de um casal não consanguíneo sem história
de doenças heredo familiares. Gestação vigiada sem intercorrências, parto eutócico hospitalar às 39 semanas. A somatometria ao nascimento foi: peso 3100 gr (P 50), comprimento 49 cm
(P 50) e perímetro cefálico 34 cm (P 50). O período neonatal
decorreu sem intercorrências.
Entre os um e quatro meses de idade o crescimento é rápido com passagem do percentil do comprimento de P 50 para P
90 como se pode ver na Figura 1, passando para um P superior a
95 após o ano de idade. O peso mantém-se no P50 e o perímetro
cefálico no P 75.
Figura 1 - Crescimento estaturoponderal
O desenvolvimento psicomotor era normal para a idade.
Após iniciar a escolaridade, aos seis anos de idade, é notada diminuição da acuidade visual tendo sido encaminhada para
observação por oftalmologia onde foi detetada uma luxação bilateral e inferior do cristalino (Figura 2).
Na primeira consulta é de salientar a estatura superior ao
P 95 com diminuição da razão entre os segmentos superior e
inferior.
Qual o seu diagnóstico?
Figura 2 - Luxação inferior do cristalino
__________
1
U. Doenças Metabólicas, H Maria Pia, CH Porto
genes, crianças e pediatras
genes, children and paediatricians
63
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 1
DISCUSSÃO
A homocistinúria clássica é causada pelo défice em cistationina β sintetase, enzima cujo cofactor é a piridoxina e que permite a conversão da homocisteína em cistationina. O gene CBS,
que codifica esta doença autossómica recessiva, está localizado
no braço longo do cromossoma 21. A frequência da homocistinúria clássica é variável, sendo a incidência estimada de 1/200.000
na nossa população.
É uma doença com início insidioso e envolvimento progressivo dos órgãos alvo nomeadamente olho (luxação do cristalino,
miopia e glaucoma), esqueleto (membros longos, estatura alta
e aracnodactilia que conferem aos doentes um fenótipo marfanoide), sistema vascular (tromboembolismo) e sistema nervoso
central (atraso cognitivo e acidentes vasculares cerebrais). Ao
nascimento a criança é normal, podendo a doença manifestar-se
em qualquer idade desde a primeira infância á idade adulta. Embora em algumas crianças possa ser já evidente algum atraso
de desenvolvimento psicomotor, o diagnóstico é efectuado geralmente após os dois anos de idade pelo envolvimento ocular, sendo com frequência o ofalmologista a alertar para o diagnóstico ao
detectar a luxação do cristalino, que é evidente em 80% dos casos antes dos 10 anos de idade. A osteoporose está presente em
praticamente todos os doentes, após a primeira infância levando
a fracturas e escoliose. As alterações vasculares, caracterizadas
por arteriosclerose prematura e complicações tromboembólicas
das veias e artérias, são evidentes em 50% dos doentes antes
dos 30 anos de idade condicionando o prognóstico desta doença
pela sua elevada morbilidade e mortalidade. O atraso mental que
é relativamente frequente (60 % dos casos), raramente é grave.
Os marcadores bioquímicos que orientam o diagnóstico
são um aumento da homocistina e metionina com níveis reduzidos de cistina e cistationina no perfil de aminoácidos séricos
e urinários. Este diagnóstico deverá ser confirmado pelo doseamento da enzima cistationina β sintetase em fibroblastos ou pelo
estudo molecular. Estão descritas mais de 130 mutações nesta doença. Estas mutações determinam a resposta à piridoxina
sendo a evolução mais favorável nos casos que respondem a
esta vitamina. Na Península Ibérica predominam as mutações
não respondedoras, principalmente a T191M frequente no norte
de Portugal.
O objectivo do tratamento é reduzir os níveis de homocisteína total para níveis o mais próximo possível do normal. Cerca de
50% dos doentes respondem total ou parcialmente, à administração de doses suprafisiológicas de piridoxina. Nos casos em que
64
genes, crianças e pediatras
genes, children and paediatricians
não há resposta ou que a resposta é parcial o tratamento passa
por uma dieta hipoproteica e pela administração de betaína (fármaco que cria uma via alternativa para eliminar a homocisteína).
A suplementação com ácido fólico e vitamina B12 é também necessária.
Apenas um tratamento precoce iniciado nas primeiras semanas de vida permite uma evolução totalmente normal a longo
prazo, justificando a inclusão desta doença no rastreio neonatal.
Em Portugal, o rastreio sistemático da homocistinúria é feito desde 2005.
O aconselhamento genético deve ser efectuado a estas famílias e o diagnóstico pré natal é possível pelo estudo enzimático ou pelo estudo molecular em amniócitos ou nas vilosidades
coriónicas.
ABSTRACT
Homocystinuria is an autosomal recessive disease due
to cystathionine-synthase deficiency, with the gene CBS being
located in chromosome 21. In its typical presentation the eye,
skeleton, central nervous system, and vascular system are all
involved. The patient is normal at birth and in non-treated patients
tall stature and ectopia lentis may be the first symptoms, as in the
case we present.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 63-64
BIBLIOGRAFIA
1. Couce ML, Fraga JM. Homocistinuria y alteraciones del metabolismo de folate e vitamina B12. In: P. Sanjurjo, A. Baldellou,
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Berghe G, Walter JH editors. Inborn metabolic diseases:
diagnosis and treatment. 5th ed. Berlin Heidelberg: Springer
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3. Linha Rara. Disponível em: http://www.linharara.pt/index.
php?option=com_content&view=article&id=104&Itemid=26
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forma: Introdução, Objectivos, Desenvolvimento e Conclusões. Relativamente
aos casos clínicos, não deve exceder 150 palavras e deve ser estruturado em
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constar uma lista de três a dez palavras-chave, em Português e Inglês, por
ordem alfabética, que servirão de base à indexação do artigo. Os termos devem
estar em concordância com o Medical Subject Headings (MeSH).
Texto: O texto poderá ser apresentado em português, inglês, francês ou
espanhol. Os artigos originais devem ser elaborados com a seguinte organização:
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estudados e discutidos e conter uma breve introdução, a descrição do(s) caso(s)
e uma discussão sucinta que incluirá uma conclusão sumária. As abreviaturas utilizadas devem ser objecto de especificação anterior. Não se aceitam abreviaturas
nos títulos dos trabalhos. Os parâmetros ou valores medidos devem ser expressos em unidades internacionais (SI units, The SI for the Health Professions, WHO,
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Bibliografia: As referências devem ser classificadas e numeradas por
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Medicus), ano, volume e páginas. Ex.: Haque KN, Zaidi MH SK,et al.
Intravenous Immunoglobulin for prevention of sepsis in preterm and low
birth weight infants. Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65.
b) Capítulos em livros: nome(s) e iniciais do(s) autor(es) do capítulo ou da
contribuição. Nome e iniciais dos autores médicos, título do livro, cidade
e nome da casa editora, ano de publicação, primeira e última páginas do
capítulo. Ex.: Phillips SJ, Whisnant JP. Hypertension and stroke. In: Laragh JH, Brenner BM, editors. Hypertension: pathophysiology, diagnosis,
and management. 2nd ed. New York: Raven Press; 1995. p. 465-78.
c) Livros: Nome(s) e iniciais do(s) autor(es). Título do livro. Número da edição. Cidade e nome da casa editora, ano de publicação e número de
página. Ex.: Berne E. Principles of Group Treatment. New York: Oxford
University Press, 1966:26.
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66
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Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65
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SJ, Whisnant JP. Hypertension and stroke. In: Laragh JH, Brenner BM,
editors. Hypertension: pathophysiology, diagnosis, and management. 2nd
ed. New York: Raven Press; 1995. p. 465-78.
c) Books: Name(s) and initials of the author(s). Title of the book. City and
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Group Treatment. New York: Oxford University Press, 1966:26.
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