Médicos vítimas da violência no trabalho em unidades de pronto
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Médicos vítimas da violência no trabalho em unidades de pronto
MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO1 Medical doctors victims of violence working at emergency units Éber Assis dos Santos Júnior2, Elizabeth Costa Dias3 RESUMO Esse estudo objetivou estudar a violência no trabalho entre médicos das Unidades de Pronto Atendimento (UPA´s) da Prefeitura de Belo Horizonte. Cento e sessenta e dois médicos (66,9% do total) responderam a um questionário sobre violência no trabalho. Dentre esses, 135 (83,3%) relataram pelo menos um episódio de violência no trabalho nos 12 meses anteriores ao preenchimento do questionário. Os acompanhantes e o próprio paciente foram os perpetradores mais freqüentemente mencionados. A violência no trajeto de ida ou volta das UPA´s foi mais freqüente em uma das unidades (UPA Norte). Mais da metade dos médicos pensou em abandonar o trabalho ou pedir transferência em virtude da violência no trabalho. Medidas preventivas não devem tardar e devem enfocar os profissionais de saúde, o ambiente de trabalho e a comunidade. Estudos que avaliem a situação de outros profissionais de saúde que trabalham nas UPA´s devem ser realizados. PALAVRAS-CHAVE Violência no trabalho, saúde ocupacional, serviços médicos de emergência ABSTRACT The aim of this study was to evaluate violence against medical doctors working at Emergency Units in the city of Belo Horizonte, Brazil. A hundred and sixty two doctors (66,9% of all doctors) answered a questionnaire about workplace violence. Among them, 135 (83,3%) reported at least one episode of workplace violence in the previous 12 months. The companions of patients followed by the patients themselves 1 O artigo condensa os resultados da Dissertação de Mestrado intitulada “Vítimas da violência no trabalho: o retrato da situação dos médicos das Unidades de Pronto Atendimento 24h da Prefeitura de Belo Horizonte”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública - Área de Concentração Saúde e Trabalho, da Universidade Federal de Minas Gerais, defendida em janeiro de 2004. Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (Processo N o 105/03). 2 Mestrado (Faculdade de Medicina da UFMG) Unidade de Pronto Atendimento Norte / Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura de Belo Horizonte - Rua Francisco Bicalho, 1593/301A – Caiçara / Belo Horizonte-MG CEP: 30720-340 - Telefones: 31 91297902 / 31 30750604 Fax: 31 32776790 e-mail: [email protected] 3 Doutorado (Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) Departamento de Medicina Preventiva e Social / Faculdade de Medicina / Universidade Federal de Minas Gerais. CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 705 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS were the more frequently mentioned perpetrators of the workplace violence. Violence in the trajectory – goint to and coming from the Emergency Units – was more frequently in one of the units (the North Emergency Unit). More than half of the doctors had already thought of abandoning the job or asking for being transferred to other Unit, due to the workplace violence. Preventive measures should not be delayed, and must focus on the health professional, the environment and the community. Studies to evaluate the situation among other professionals working in the Emergency Units should be conducted. KEY WORDS Workplace violence, occupational health, emergency units 1. INTRODUÇÃO O texto condensa os resultados de uma pesquisa sobre violência no trabalho de médicos das Unidades de Pronto Atendimento (UPA´s) 24h da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). O interesse pelo tema surgiu da experiência do autor principal, enquanto Diretor Técnico de uma UPA, de lidar com os problemas humanos e administrativos decorrentes da violência no trabalho. A revisão da literatura mostra que não existe uma visão bem estabelecida sobre a violência relacionada ao trabalho, em que pese seu crescimento em âmbito mundial. Apesar de ser reconhecida pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da Organização Mundial de Saúde, sob a rubrica de “causas externas”, a violência passou a chamar a atenção das autoridades de saúde em virtude da mudança do perfil epidemiológico de morbidade e mortalidade, particularmente no Brasil e em outros países das Américas, onde as causas externas assumem o primeiro lugar entre as causas de óbito entre os jovens (Agudelo, 1990; Yunes & Rajs, 1994; Wünsch Filho, 2003). Entre 1992 e 1993, dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) de Atlanta (Estados Unidos) mostram que os homicídios já constituíam a primeira causa de morte no trabalho entre mulheres e a terceira entre homens (Wünsch Filho, 1995). Estudos de Krug et al. (2002a; 2002b) revelam uma taxa de 28,8 mortes/100.000 habitantes devido à violência no mundo, em 2000. Considerando que a morte é o evento mais grave, é possível estimar que, para cada pessoa que morre, inúmeras outras são feridas e sofrem agravos de natureza física, sexual, reprodutiva e mental. Minayo e Souza (1999) afirmam que a atitude da área da saúde diante da violência foi, por muito tempo, a de “contador de eventos, um reparador dos estragos provocados pelos conflitos sociais”. Golding (1996) considera que a violência é um dos mais importantes problemas de Saúde Pública na atualidade, pelas conseqüências sobre as próprias vítimas, o temor que espalha na comunidade e os custos para sua prevenção. 706 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO Sobre a violência relacionada ao trabalho, alguns autores distingüem a violência do trabalho da violência no (ambiente de) trabalho (Machado & Minayo-Gómez, 1994; Ribeiro, 1997; Campos, 2002; Di Martino, 2002). Entretanto, neste estudo, adotou-se o termo “violência no trabalho”, por ser mais utilizado na literatura, abrangendo todos os tipos de episódios de violência que ocorrem na situação de trabalho, considerando-a originada na organização do processo de trabalho. A literatura técnica e científica registra inúmeros estudos de caso e seccionais sobre o tema, manuais de prevenção, diretrizes e protocolos de conduta de trabalhadores, elaborados principalmente nos Estados Unidos e Europa. A Organização Internacional do Trabalho, em parceria com o Conselho Internacional de Enfermagem, a Organização Mundial de Saúde e a agência Internacional de Serviços Públicos (ILO/ICN/WHO/PSI) têm desenvolvido um esforço conjunto no sentido de informar, padronizar conceitos e prevenir a violência no trabalho, especificamente no setor saúde (Di Martino, 2002; ILO/ICN/WHO/PSI, 2002; Cooper & Swanson, 2002). Infelizmente, no Brasil, são ainda poucos os estudos sobre violência no trabalho. Deslandes (2000; 2002) analisou, em uma perspectiva antropológica, a violência e suas vítimas, em dois serviços de emergência de hospitais públicos da cidade do Rio de Janeiro, apresentando relatos de conflitos entre pacientes, familiares e profissionais de saúde, que denominou de “esquenta plantão”. Carneiro (2000) avaliou a violência contra trabalhadores, durante a jornada de trabalho, na Zona Norte da cidade de São Paulo, utilizando como fonte de dados boletins de ocorrência policial. Estudos realizados em Unidades Básicas de Saúde do Distrito Sanitário Noroeste da PBH analisaram a violência contra os profissionais de saúde enquanto um problema para a gerência e a prestação de serviços (Silva et al., 2002; 2003). Campos (2002) aborda a questão da violência no trabalho a partir de uma revisão teórica do tema, distingüindo o que considera violência do trabalho e violência no trabalho. O Sindicato dos Médicos de São Paulo patrocinou uma pesquisa sobre violência no trabalho, entre 650 médicos domiciliados em São Paulo (SP), cujos resultados estão registrados no livro: “Desgaste Físico e Mental do Cotidiano Médico” (Oliveira et al., 2002). Palácios et al. (2003) conduziram um estudo piloto sobre violência no trabalho no setor saúde, na cidade do Rio de Janeiro, dentro do programa conjunto ILO/ICN/WHO/PSI. Entre 1.569 trabalhadores que participaram do estudo, 19,7% eram médicos. Em Minas Gerais, as entidades de classe Associação Médica de Minas Gerais, Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais, Sindicato dos Médicos CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 707 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS de Estado de Minas Gerais e o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Belo Horizonte têm mostrado preocupação com o problema da violência no trabalho. Relatos de ameaças e agressões a profissionais médicos ou a trabalhadores de unidades de saúde, especialmente da rede pública de serviços de Belo Horizonte, têm sido noticiados e denunciados com freqüência (AMMG, 2002; CREMEMG, 2002; SINMED-MG, 2002a; 2002b; 2002c; 2002d; 2003a; 2003b; SINDIBEL, 2003). Não existe consenso na literatura sobre a definição de violência no trabalho: que episódios devem ser caracterizados como atos violentos, quem são trabalhadores e que abrangência deve ser dada ao ambiente/local de trabalho. Buscou-se retratar a violência no trabalho de médicos das UPA’s 24h da PBH, buscando tipificar os episódios de violência contra os profissionais e oferecer subsídios para que gestores e órgãos representantes da classe médica possam propor, normatizar e exigir cumprimento de condições adequadas de trabalho médico em unidades de atendimento de urgências e emergências médicas. 2. METODOLOGIA Trata-se de um estudo seccional, que buscou conhecer a prevalência de episódios de violência no trabalho entre médicos que trabalham nas UPA´s 24h da PBH, em um período de 12 meses. Foi utilizado um questionário semiestruturado adaptado do American Federation of State, County and Municipal Employees Survey of Violence in the Workplace for Health Care Workers (AFSCME, 1998). A coleta dos dados foi realizada entre janeiro e abril de 2003, nas quatro UPA´s 24h da PBH (UPA Barreiro, UPA Norte, UPA Oeste e UPA Venda Nova). Adotou-se a seguinte definição de violência no trabalho: todas as formas de comportamento agressivo ou abusivo ou mesmo quaisquer atos, posturas e atitudes que possam causar dano físico ou psicológico ou desconforto em suas vítimas ou dano ao patrimônio, praticados por quem quer que seja (cliente/paciente, assaltante, colega de trabalho ou pessoa com a qual o trabalhador mantenha alguma relação que não seja a profissional – cônjuge, amante, irmão, colega etc.), estando o indivíduo (vítima) trabalhando, a serviço do trabalho ou indo para ou voltando do trabalho. A análise estatística foi baseada na caracterização da população investigada e na avaliação de possíveis associações entre os episódios de violência e fatores potencialmente explicativos, utilizando o teste qui-quadrado, o teste exato de Fisher e o teste não-paramétrico de Mann-Whitney. Em todos os testes estatísticos utilizados foi considerado um nível de significância de 5%. Optou-se por avaliar separadamente as ameaças, as agressões físicas, uma lista de comportamentos que denominamos “outros tipos de violência no trabalho” e a violência no trajeto indo para ou voltando da UPA. A análise dos fatores associados aos episódios de violência no trabalho foi feita inicialmente comparando 708 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO cada tipo de violência avaliada pelo questionário (ameaça, agressão física, outros tipos de violência e violência no trajeto) com as variáveis de qualificação dos sujeitos da pesquisa (local de trabalho, especialidade, gênero, vínculo de trabalho etc.). Posteriormente, foram feitas análises comparando a prevalência de violência no trabalho (sofreu algum tipo de violência no trabalho versus não sofreu nenhum tipo de violência no trabalho) com as variáveis de qualificação dos sujeitos da pesquisa. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. 3. RESULTADOS A população estudada era constituída por cerca de 242 médicos. É importante registrar que o número de médicos que trabalham nas quatro UPA’s 24h da PBH não é fixo, em virtude das escalas de trabalho incompletas. Desse total, 162 (66,9%) responderam, de modo voluntário, ao questionário. Dos 162 sujeitos da pesquisa, 83 eram do sexo feminino (51,2%) e a idade média era de 35 (24 a 60) anos. Os médicos que responderam ao questionário possuíam, em média, 10 (0 a 32) anos de formados. A Tabela 1 mostra o tempo de trabalho na UPA de 160 médicos que responderam à pergunta do questionário. Tabela 1 Tempo de trabalho (em anos) na UPA dos médicos que responderam ao questionário, UPA´s 24h da PBH. * Dois profissionais não responderam este item. A distribuição da população por especialidade médica de trabalho na UPA foi: 40,8% da Clínica Médica, 36,6% da Pediatria, 15,9% da Cirurgia, e 6,7% da Ortopedia. Metade dos profissionais tinha vínculo de trabalho como “estatutário”, 35% como “contrato administrativo” e 15% recebiam por plantões através de Recibo de Pagamento a Autônomo (RPA). Dos 162 médicos que responderam ao questionário, 135 (83,3%) relataram que foram vítimas de algum tipo de violência no trabalho na UPA no último ano que antecedeu a pesquisa. O percentual variou entre as UPA´s e foi maior entre os profissionais da UPA de Venda Nova (91,2%) e menor na UPA Norte (76,8%). CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 709 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS Desses 162, 74 (45,7%) registraram que foram vítimas de ameaças, no exercício das atividades nas UPA´s, nos 12 meses anteriores ao preenchimento do mesmo. Segundo esses médicos, os acompanhantes foram responsáveis pelas ocorrências em 83,8% das vezes, seguidos pelos pacientes em 50,0% das vezes, e pelos próprios colegas de trabalho, em 9,5% das vezes. Três médicos registraram que foram vítimas de agressões físicas, durante as atividades nas UPA´s nos 12 meses anteriores ao preenchimento do questionário. Um desses médicos teve que se afastar do trabalho em decorrência da agressão física de que foi vítima. Dos médicos que relataram agressão física, todos eram trabalhadores da UPA Norte (1,9% em relação ao total de sujeitos da pesquisa e 5,4% em relação aos médicos da UPA Norte que responderam ao questionário). O acompanhante foi citado como agressor em duas dessas três agressões. Ao ser apresentada uma lista de comportamentos classificados como “outros tipos de violência no trabalho”, adaptada de Chappell e Di Martino (1999), apenas 29 médicos (18,0%) relataram não terem sido vítimas daqueles tipos de violência. Dez médicos (6,3%) foram vítimas de violência no trajeto, indo ou voltando do seu trabalho na UPA e, desses, um teve necessidade de afastar-se do seu trabalho em virtude do episódio. Desses dez, seis trabalhavam na UPA Norte. Os episódios descritos referem-se a assaltos ou tentativas de assaltos. Sobre as conseqüências da agressão, entre os médicos que foram vítimas de ameaças no nosso estudo, 36,5% referiram trauma psicológico como conseqüência do ato violento. Para 9,5% dos médicos que foram vítimas de ameaças e 9,8% dos médicos que foram vítimas de “outros tipos de violência no trabalho” no nosso estudo, os colegas de trabalho foram citados como os perpetradores das ameaças. Considerando o instrumento utilizado na nossa pesquisa e o tipo de pergunta constante no mesmo (Nos últimos 12 meses...?), é possível supor um viés de memória. Outro fato que poderia contribuir para subestimar a prevalência dos episódios de violência no trabalho é que 44 (27,2%) dos respondentes ainda não tinham um ano de trabalho nas UPA´s quando responderam ao questionário. Observa-se também o chamado “efeito do trabalhador sadio”, uma vez que alguns dos profissionais que deixaram de trabalhar nas UPA’s o fizeram em decorrência da constância da violência. A Tabela 2 mostra os percentuais de relato de violência no trabalho nos 12 meses anterior à aplicação do questionário e alguns fatores potencialmente explicativos. A especialidade médica ortopedia e o tempo de trabalho na UPA foram significativamente associados com a ocorrência de ameaças. Pôde-se observar que, dentre os médicos ortopedistas das UPA´s Norte e Oeste (apenas estas UPA´s têm plantão de ortopedia), 81,8% relataram que foram vítimas de ameaças exercendo 710 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO atividades na UPA. Esse percentual caiu para 43,3%, quando considerados os médicos que não trabalham como ortopedistas nas UPA´s (p=0,013). Tabela 2 Percentual de relato de violência, por episódios de violência no trabalho, e alguns fatores potencialmente explicativos. * Teste qui-quadrado e Teste exato de Fisher; Teste de Mann-Whitney. Outro achado interessante e previsível foi a diferença observada na ocorrência de ameaças entre os profissionais recém-chegados na UPA (menos de um ano) em relação aos demais. Dos profissionais com menos de um ano na UPA, 27,3% relataram que foram vítimas de ameaças exercendo atividades na UPA. Esse valor aumentou para quase 50,0%, quando o médico tem mais de um ano de exercício de atividades na UPA (p=0,031). Em relação às agressões físicas, somente o fato de trabalhar na UPA Norte mostrou estar associado a esse tipo de violência no trabalho (p=0,040). Em relação aos “outros tipos de violência no trabalho”, nenhuma das variáveis investigadas mostrou estar associada de forma significativa à sua ocorrência. CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 711 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS Observou-se também que o tempo de trabalho na UPA estava associado à ocorrência de violência no trajeto para ou na volta da UPA. O percentual de profissionais, com mais de 10 anos de trabalho na UPA, que foram vítimas de violência no trajeto, foi de 42,9%, enquanto apenas 4,0% dos profissionais com menos de 10 anos de trabalho na UPA foram vítimas desse tipo de violência (p=0,011). Em relação à prevalência da violência no trabalho, detectou-se na análise estatística um fator associado, relacionado com o vínculo de trabalho na UPA Norte, como pode ser observado na Tabela 3. Tabela 3 Prevalência da violência no trabalho, por UPA, e fator potencialmente explicativo. * Teste qui-quadrado e Teste exato de Fisher; Teste de Mann-Whitney. (1) Apenas as UPA´s Norte e Oeste têm plantão de Ortopedia. Dos médicos que possuíam vínculo empregatício por contrato administrativo com a UPA Norte, 53,3% foram vítimas de algum tipo de violência. Esse percentual aumentou para 87,2%, quando considerados os médicos que possuíam outro tipo de vínculo empregatício (p=0,012). As respostas à última questão do questionário – Você já pensou em abandonar o emprego ou solicitar transferência em virtude de episódios de violência no trabalho em que você esteve envolvido, testemunhou ou tomou conhecimento? – estão registradas na Tabela 4. Observou-se que, em média, mais da metade dos médicos já pensou em abandonar o emprego na UPA ou pedir transferência por causa da violência no trabalho. 712 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO Tabela 4 Número de médicos que pensaram em abandonar o emprego ou pedir transferência em virtude da violência no trabalho, UPA´s 24h da PBH, janeiro a abril de 2003. * Percentual referente àqueles que responderam à questão. 4. Discussão Em virtude da falta de consenso sobre a definição de violência no trabalho, a comparação dos resultados obtidos nesse estudo com observações registradas na literatura fica prejudicada. Assim, não identificamos na literatura referências à prevalência de comportamentos específicos, como os listados na Tabela 1. Os comportamentos que denominamos “outros tipos de violência no trabalho”, juntamente com as ameaças, têm sido englobados sob a denominação de violência psicológica e diferenciados da agressão física. Hobbs e Keane (1996) citaram um inquérito realizado em 1995 com 250 médicos que trabalhavam em hospitais, onde 55% destes já haviam sido ameaçados ou foram vítimas de violência no trabalho. Relataram também dados de um estudo sobre violência no trabalho, realizado em um seminário no Reino Unido, onde 41% dos médicos presentes haviam experimentado agressão física no trabalho, e citaram um estudo realizado com 126 médicos generalistas de Londres, que mostrou que 79% tinham experimentado agressão nos 12 meses anteriores. Arnetz et al. (1998), em pesquisa conduzida em um hospital sueco, onde 357 médicos responderam a um questionário, relataram que 140 foram vítimas de algum episódio de violência nos 12 meses anteriores ao estudo, prevalência encontrada (39,2%) de pouco menos da metade da encontrada no nosso estudo. Fernandes et al. (1999) estudaram a violência no trabalho em uma unidade de atendimento de urgências e emergências médicas de Vancouver (Canadá), que atendia 55.000 pacientes/ano. Dos 163 trabalhadores da unidade, 106 responderam ao questionário e, desses, 90% relataram terem sido ameaçados no último ano, 57% foram vítimas de agressão e 100% testemunharam ameaça ou agressão física no mesmo período. Apesar do desenho do estudo ser semelhante ao nosso, a população é diferenciada, já que englobou todos os trabalhadores da unidade. Nesse mesmo estudo, 68% dos trabalhadores relataram aumento da freqüência da violência e 60% relataram aumento da intensidade da violência. CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 713 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS Oliveira et al. (2002) relataram que 41,0% de 650 médicos domiciliados em São Paulo (SP) foram vítimas de pelo menos uma ocorrência de violência no local de trabalho, sem especificar o local de trabalho e definir o tempo da ocorrência. Os tipos mais freqüentes de violência foram: ameaça (48,4%), assalto (26,2%), agressão física (14,9%) e outros (10,6%). Entre os tipos de violência de menor ocorrência (“outros”), a agressão verbal foi responsável por 65,5% das ocorrências. Os acompanhantes foram os perpetradores mais freqüentemente citados (81,1%), seguidos dos pacientes (56,8%) e dos colegas de trabalho (9,8%). A violência deixou marcas em 39,0% dos médicos (25,9% com o que os autores chamaram de seqüelas de natureza mental/psicológica; 2,9% com seqüela de natureza física e 10,3% com seqüelas de ambas as naturezas). A não especificação do local de trabalho e a não definição do tempo do estudo dificultaram a comparação com o nosso estudo. Estudos de caso realizados em vários países com trabalhadores da área da saúde, patrocinados pelo programa conjunto ILO/ICN/WHO/PSI, registram a prevalência de pelo menos um episódio de violência física ou psicológica no ano anterior: 75,8% na Bulgária; 67,2% na Austrália; 61,0% na África do Sul; 60,0% em Portugal; 54% na Tailândia; e 46,7% no Brasil. Na análise da violência contra médicos, os seguintes achados foram observados: na Bulgária, 50,0% deles experimentaram agressão verbal no último ano e 40,0% experimentaram assédio moral; na África do Sul, 40,6% relataram agressão verbal; na Austrália, 62,5% relataram agressão verbal, 45,0% relataram ameaças, 17,5% relataram agressão física, 15,0% relataram assédio moral e 5,0% relataram algum outro tipo de violência; em Portugal, 58,0% relataram que foram vítimas de pelo menos um episódio de violência no trabalho e no Brasil, 5,7% relataram agressão física, 45,6% agressão verbal e 14,9% assédio moral (Di Martino, 2002; Palácios et al., 2003). A prevalência global desses estudos também não pôde ser comparada com o nosso, já que a população foi de trabalhadores da saúde. Quando os médicos foram analisados em separado, alguma comparação pôde, em parte, ser realizada com os dados da Austrália (ameaças e agressões físicas), de Portugal (qualquer tipo de violência no trabalho) e do Brasil (agressões). Desse modo, observamos que a prevalência das ameaças a médicos na Austrália foi muito semelhante à do nosso estudo, porém as agressões foram quase dez vezes mais freqüentes no estudo Australiano. A prevalência global da violência no trabalho contra médicos em Portugal foi pouco mais de dois terços da encontrada no nosso estudo e, no Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, a prevalência de agressões foi três vezes maior que a encontrada no nosso estudo. Os acompanhantes, seguidos dos pacientes, foram os perpetradores dos episódios de violência no trabalho mais freqüentemente citados no nosso estudo. 714 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO A metodologia utilizada não nos permitiu inferir o significado desse achado, mas sabemos que uma parte (senão a maioria) dos episódios de violência praticados por acompanhantes e pelos próprios pacientes ocorreram em virtude da insatisfação destes com o atendimento prestado pelas UPA´s 24h da PBH. Não estamos falando da qualidade do atendimento, falamos, principalmente, do acolhimento que os pacientes receberam quando procuraram essas Unidades. Outro achado preocupante foi o fato de que em quase 10,0% dos episódios de ameaças e do que chamamos de outros tipos de violência no trabalho o perpetrador foi um colega de trabalho. O achado do nosso estudo assemelhou-se ao do estudo conduzido por Palácios et al. (2003) na cidade do Rio de Janeiro (RJ), onde 11% dos médicos relataram que a violência foi praticada por colega de trabalho e ao de Oliveira et al. (2002), com médicos domiciliados em São Paulo (SP), já mencionados acima. Essa situação tem sido crescentemente estudada sob a denominação de hostilidade no trabalho, psicoterror, bullying, mobbing ou assédio moral (termo que tem sido mais freqüentemente utilizado na língua portuguesa). O assédio moral é apenas uma faceta da violência no trabalho, muitas vezes oculta ou velada. Pode acarretar graves conseqüências para a saúde das vítimas e gerar altos custos para os empregadores (Quine, 1999; 2002; Cusak, 2000; ILO/ICN/WHO/PSI, 2002). Di Martino (2002) afirma que existe uma dificuldade em estabelecer um perfil dos perpetradores de violência no trabalho no setor saúde e chama a atenção para os riscos de qualquer generalização. Os pacientes e os colegas de trabalho foram os principais perpetradores dos episódios, nos estudos de caso realizados pelo programa conjunto ILO/ICN/WHO/PSI, observando-se diferenças dependendo do país e do tipo de violência. Mais de um terço dos médicos das UPA´s que foram vítimas de ameaças afirmaram algum tipo de trauma psicológico como conseqüência do ato violento. A literatura registra que as possíveis conseqüências da violência no trabalho dependem da intensidade ou gravidade com que é percebida, da freqüência e da vulnerabilidade individual da vítima. Quadros como insônia, medo, ansiedade, depressão, agorafobia, reação aguda ao estresse, estado de estresse pós-traumático, baixa na produtividade e insatisfação com o trabalho têm sido citados como conseqüência dos episódios de violência no trabalho (Hobbs & Keane, 1996; Quine, 1999; Hofeldt, 2001; Oliveira et al., 2002). Como já discutido acima, em relação às agressões físicas, os achados do nosso estudo, felizmente, não acompanham o observado na literatura estrangeira. Hobbs (1991) relatou que 63% de 1.093 médicos de família de Londres experimentaram abuso ou violência nos 12 meses anteriores à realização do estudo, 3,0% sofrendo pequenas lesões e 0,5% sofrendo lesões graves. CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 715 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS A análise dos dados dos National Crime Victimization Surveys dos EUA, de 1992 a 1996, mostrou que os médicos tiveram uma média anual de cerca de 10.000 ocorrências de violência não fatal no trabalho, perfazendo um taxa de 15,7/1.000 médicos (Warchol, 1998). Apesar de Wilkinson (2001) afirmar que a maioria das agressões sofridas por profissionais de saúde não tem maior gravidade, há relatos de mortes de profissionais de saúde e de médicos que sofreram violência no trabalho. Goodman et al. (1994) relataram que 26 médicos foram vítimas de assassinatos relacionados com o trabalho, na década de 80 do século passado nos EUA. A ocorrência mais freqüente de agressões a médicos na UPA Norte pode ser explicada, em parte, pela localização da unidade, nas proximidades de uma favela onde se observa o comércio de drogas e assaltos à luz do dia, confirmando registros da literatura (Beato Filho et al., 2001). Em relação aos fatores estatisticamente associados com a ocorrência dos episódios de violência no trabalho, não encontramos na literatura referências à especialidade médica ortopedia como especialidade com maior risco de ameaças ou de qualquer outro tipo de violência no trabalho, como observado no nosso estudo. Nosso estudo também mostrou, e era esperado, que os médicos que trabalhavam há menos de um ano na UPA foram menos ameaçados que os que trabalhavam há mais de um ano. O tempo de trabalho na UPA também pode ser o fator que explica a maior prevalência da violência no trabalho na UPA Norte entre estatutários, que são profissionais com maior estabilidade no emprego. Os outros vínculos (contrato administrativo e RPA) são temporários e permanecem, às vezes, apenas alguns meses no emprego. Em relação à pergunta do questionário sobre abandono do emprego ou solicitação de transferência em virtude da violência no trabalho, apenas no estudo de Fernandes et al. (1999) há um questionamento parecido, onde 38% dos trabalhadores consideraram a possibilidade de abandonar o trabalho na área da saúde em decorrência da violência. Essa porcentagem é próxima à encontrada na UPA Barreiro (37,0%), porém inferior à média no nosso estudo (50,9%). Sabendo que as escalas de trabalho médico das UPA´s 24h da PBH são, freqüentemente, incompletas, é possível supor que a violência no trabalho seja um dos fatores contribuintes, causando grandes transtornos para a gestão e para a prestação de serviços de saúde. 5. CONCLUSÕES E SUGESTÕES Sintetizando as observações, 162 médicos que trabalhavam nas UPA´s 24h da PBH, no período de janeiro a abril de 2003, responderam ao questionário 716 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 MÉDICOS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA NO TRABALHO EM UNIDADES DE PRONTO ATENDIMENTO utilizado nessa pesquisa e, desses, 135 (83,3%) relataram pelo menos um episódio de violência no trabalho nos 12 meses anteriores ao momento de resposta ao questionário. As variáveis: local de trabalho, especialidade de trabalho na UPA, vínculo de trabalho e tempo de trabalho na UPA foram, em algumas análises estatísticas, consideradas fatores potencialmente explicativos (estatisticamente significantes) para a ocorrência dos episódios de violência no trabalho. Não houve diferença estatisticamente significativa em relação a gênero, idade e tempo de formado. As agressões físicas relatadas foram de pequena gravidade e, quantitativamente, não acompanham os índices registrados na literatura. É importante destacar que a ocorrência de incidentes e acidentes leves guarda uma relação direta com os acidentes graves e fatais. Assim, os achados desse estudo reafirmam a importância da prevenção antes que uma tragédia ocorra. Os acompanhantes, seguidos pelos pacientes, foram os perpetradores dos episódios de violência no trabalho mais freqüentemente citados. A metodologia utilizada no estudo não permite inferir o significado desse achado, mas os resultados indicam que a maioria dos episódios de violência praticados por acompanhantes e pelos próprios pacientes ocorrem em virtude da insatisfação destes com o atendimento prestado pelas UPA´s 24h da PBH, principalmente do acolhimento que os pacientes recebem quando procuram essas Unidades. Outro achado preocupante e que deve merecer atenção dos gestores da PBH é o de que em quase 10% dos episódios de ameaças e do que denominamos “outros tipos de violência no trabalho” o perpetrador foi um colega de trabalho. Medidas preventivas (que não são simples e nem podem ser pontuais) não devem tardar. Essas medidas devem considerar o profissional de saúde, o processo de trabalho e a comunidade como um todo. Iniciativas como o acolhimento efetivo e resolutivo dos pacientes, uma triagem com classificação de risco e a humanização do atendimento podem ter grande impacto na diminuição dos episódios de violência no trabalho. Outra conclusão desse estudo é a necessidade de avaliar a situação dos outros profissionais que trabalham nas UPA´s da PBH, particularmente dos profissionais que estão na linha de frente do atendimento (porteiros, vigilantes, seguranças, recepcionistas, auxiliares de enfermagem e enfermeiros). Em tese, esses trabalhadores estão mais expostos do que médico, geralmente “protegido” dentro do consultório ou em outro setor da UPA, enquanto ocorre tumulto na recepção e/ou sala de espera das Unidades. Mas, para uma mudança real do quadro de violência que assola a sociedade, são necessárias mudanças mais profundas na sociedade, que incluam o respeito, a dignidade e a presença da ternura humana. CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE J A N E I R O , 13 (3): 705 - 722, 2005 – 717 ÉBER ASSIS DOS SANTOS JÚNIOR, ELIZABETH COSTA DIAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUDELO, S. F. La violência: um problema de salud publica que se agrava em la región. Boletín Epidemiológico da Organizacion Panamericana de la Salud. Washington, DC, v. 10, n. 2, p. 1 - 7, 1990. AFSCME. American Federation of State, County and Municipal Employees. Survey of violence in the workplace for health care workers (Appendix D). In: _______. Preventing workplace violence. Washington, DC: AFSCME, 1998. Disponível em: <http://www.afscme.org/health/violad.htm>. Acesso em: 10 jan. 2005. ARNETZ, J. E.; ARNETZ, B. B.; SÖDERMAN, E. Violence toward health care workers. Prevalence and incidence at a large, regional hospital in Sweden. American Association of Occupational Health Nurses Journal. NJ: Thorofare, v. 46, n. 3, p. 107 - 114, Mar. 1998. AMMG. Associação Médica de Minas Gerais. Medicina exige profissão de fé. 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