O que é o Anglo-Catolicismo? - Diocese Anglicana Santa Mãe de

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O que é o Anglo-Catolicismo? - Diocese Anglicana Santa Mãe de
Rev. Pe. Rodson Ricardo1
E - mail: [email protected]
A
nglo-católico? Liberal? Evangélico?
A Comunidade da Natividade é uma igreja paroquial fortemente ligada à tradição
católica anglicana. E embora acolhamos contribuições de outras tendências essa
tem sido a que melhor define nossa identidade espiritual. Esta tradição é muitas vezes
descrita como “anglo-católica” (em oposição a católico-romano) ou “Igreja Alta”, termo
pelo qual também é conhecida em outros países. Mas o que significa tudo isso?
Os termos “anglo-católico” e “anglo-catolicismo” descrevem pessoas, crenças e
práticas dentro do anglicanismo que afirmam os aspectos católicos, ao invés dos
protestantes ou liberais/modernistas. Tais diferenças surgiram no decorrer dos séculos e é
parte da história e do patrimônio comum do anglicanismo.
D
iferenças de perspectivas
Dentro do anglicanismo, especialmente na Igreja da Inglaterra e nos Estados
Unidos, vários termos são usados com freqüência – e às vezes de forma
inconsistente - para designar as três principais tendências eclesiológicas anglicana: a “High
Church”, ou “Igreja alta”; a “Low Church”, ou “Igreja baixa” e a “Brow Church” ou “Igreja
larga”.
a) “Igreja Alta” é geralmente usada para descrever aquelas formas de anglicanismo
influenciadas, em maior ou menor medida, pela tradição católica. O Anglocatolicismo é freqüentemente identificado com essa variedade de organização e
espiritualidade;
b) “Igreja Baixa” geralmente se refere aquelas formas de anglicanismo mais
influenciadas pela tradição protestante. Entre elas podemos citar o primado absoluto
das Escrituras, a salvação unicamente pela fé etc. Além disso, as “igrejas baixas”,
embora mantenham o uso do Livro de Oração Comum, preferem formas menos
organizadas de liturgia;
c) “Igreja Larga” é geralmente associada àquelas formas de anglicanismo que, ficando
entre o “alto” e o “baixo”, enfatizam as adequações culturais e o primado da razão
na vida da Igreja.
H
istória da Tradição Católica
Uma das principais características do Anglo-catolicismo é a afirmação da
continuidade essencial do anglicanismo com os primórdios do Cristianismo na
Grã-Bretanha. Neste sentido suas origens encontram-se anterior inclusive a decisão do Papa
Gregório Magno (590-604) de enviar Santo Agostinho de Cantuária (610) e seus monges,
no século VI, para re - evangelizar os anglo-saxões, um processo praticamente concluído no
1
Pároco da Comunidade Anglicana da Natividade- Natal/RN.
1
século VII. Há, portanto, um reconhecimento da influência celta e monástica como parte
importante do que é o anglicanismo. Nesse sentido o anglo - catolicismo nega que o
anglicanismo seja um produto exclusivo da Reforma Protestante do Século XVIII.
Quando a Reforma Protestante eclodiu na Europa, seus efeitos chegaram à
Inglaterra. Por caminhos tortuosos o Rei Henrique VIII (1491-1597) levou a Inglaterra a
um cisma com Roma quando o Papa se recusou a declarar nulo o seu casamento com
Catarina de Aragão. Apesar disso, Henrique manteve-se ortodoxo em teologia e liturgia,
enquanto alguns reformistas (como o Bispo John Hooper) queriam seguir as reformas
radicais de Genebra. Esse é um aspecto importante na história da Reforma Inglesa.
Além disso, todas as reformas foram suspensas, brevemente, durante o reinado da
profundamente católica, Maria I (de 1516 a 1558), filha de Catarina de Aragão (14851536), que retomou a comunhão com Roma, como parte de uma campanha geral para
acabar com a influência das idéias da Reforma na Inglaterra e no País de Gales. Esses
conflitos políticos - religiosos acarretaram grande dor e sofrimento ao povo inglês,
ameaçando inclusive a sobrevivência da Nação.
Conseqüentemente, quando a rainha Elizabeth I subiu ao trono Inglês, ela procurou
seguir uma “via - média” entre o que ela , que ela teologicamente ortodoxa, imaginou ser o
desejado entre os excessos de “Roma” (catolicismo) e “Genebra” (protestantismo). Assim
nasceu a o “pacto elisabetano” e a promulgação de um único Livro de Oração Comum e de
todas as convicções teológicas na Igreja da Inglaterra e, posteriormente, na Comunhão
Anglicana. Isto marca o nascimento do “ethos anglicano” que foi defendida com
profundidade pelo primeiro teólogo anglicano: Richard Hooker.
Toda a metodologia teológica anglicana se estrutura a partir do tripé de Hooker:
Escritura – Tradição – Razão. O Rev. Richard Hooker viveu entre 1553-1600, em Londres.
Ele foi ordenado na Igreja da Inglaterra e, posteriormente, nomeado pela rainha Elizabeth I
como Mestre do Templo, tornando-o capelão da “Inns of Court”, uma parte fundamental do
sistema de ensino jurídico Inglês. Depois de dez anos ele se mudou para uma paróquia país
perto de Canterbury, onde, nos restantes cinco anos de sua vida, ele conseguiu pôr em
marcha a sua magnum opus “As Leis da Política Eclesiástica”. Esta obra marcou
profundamente o pensamento inglês, influenciado inclusive o surgimento do liberalismo de
John Look (1632-1704) que a cita diversas vezes. A obra de Hooker foi a primeira defesa
sistemática da doutrina da Igreja da Inglaterra após a separação com Roma e por isso ele é
considerado o primeiro grande teólogo anglicano. Até mesmo o Papa Clemente VIII (15361605) ficou impressionado com seu trabalho.
A obra de Hooker é amplamente reconhecida por afirmar que a teologia anglicana é
baseada na “Escritura, Tradição e Razão”, indo tão longe a ponto de criar uma analogia
com um “banquinho de três pernas”. É claro que alguns podem dizer que uma metáfora
melhor seria a tentativa de tentar equilibrar três bolas ao mesmo tempo. O malabarismo é
complicado pelo fato de que, dependendo do teólogo, uma das bolas é geralmente maior do
que os outros. Essa é a origem das correntes anglicanas. Evangélicos valorizam as
Escrituras do que a razão ou a Tradição. Liberais enfatizam a razão e católicos a tradição,
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por entenderem que nela está implícita as Sagradas Escrituras como norma final e o correto
uso da razão.
Há um longo rio católico no anglicanismo que partindo do testemunho do Arcebispo
William Laud (1573-1645), martirizado pela defesa do anglicanismo, passando pela riqueza
das obras do “teólogos Carolinos”2, unindo-se ao “Movimento de Oxford”, deságua nos
movimentos católicos dos dias atuais. Como característica desse movimento a defesa do
caráter apostólico e ortodoxo da Igreja, num processo de ligação ininterrupta com os Doze
Apóstolos.
Assim, em resposta ao Papa Leão XIII (1810-1903), que com a Bula Apostolicae
Curae (1896), declarou inválida a sucessão apostólica anglicana sobre a perspectiva do
Vaticano, os Arcebispos anglicanos de Cantuária e York imitiram uma resposta oficial, a
Saepius Officio, mostrando que existe uma clara sucessão apostólica ininterrupta no
sacerdócio anglicano e que o Episcopado histórico foi mantido nas ilhas britânicas desde os
primeiros dias da Igreja, não tendo sido alterado nem mesmo durante os piores momentos
da revolução protestante.
O
Movimento de Oxford
Como um movimento identificável dentro do Anglicanismo moderno, o Anglo Catolicismo originou-se entre um grupo de presbíteros e professores da
Universidade de Oxford em 1830. Os três líderes mais conhecidos do chamado
“Movimento de Oxford” foram: John Keble (1792-1866) Henry Newman (1801-1890) e
Edward Jonh Pusey (1800-1882).
O movimento começou em 1833 como uma forma de protesto contra a interferência
política do parlamento nos assuntos internos da igreja da Inglaterra. Em 14 de julho de
1843 Keble pregou o famoso sermão “A Apostasia Nacional” na igreja de Santa Maria, a
Virgem, no interior da Universidade de Oxford.
Logo após este acontecimento, Keble, Newman, Pusey, e outros começaram a
publicar a série de panfletos chamados de Tratados para os nossos tempos. Os membros do
movimento tornaram-se assim conhecidos como “os Tractarianos”.
D
iferentes visões sobre a igreja
A pergunta central feita inicialmente pelo Movimento de Oxford, dizia respeito à
natureza da Igreja. Havia duas formas de pensar a igreja naquela época: como uma
instituição simplesmente humana ou como uma instituição essencialmente espiritual e
invisível.
2. “Teólogos carolinos” é o nome dado a um grupo de influentes teólogos anglicanos, que viveu
durante o reinado de Carlos I e após a Restauração, responsáveis pela “Idade de ouro da teologia
anglicana”. São eles: Lancelot Andrews (1555 - 1626); John Cosin (1594 - 1672); Thomas Ken
(1637 - 1711), Thomas Espadilha (1635 - 1713); Jeremy Taylor (1613-1667); Herbert Thorndike
(1598-1672) e o próprio William Laud.
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A grande realização do Movimento de Oxford deve-se a recuperação de uma
terceira visão, solidamente enraizada nas Escrituras e nos Pais da Igreja, que vê a Igreja
Santa, Católica e Apostólica como uma sociedade divina visível, fundada pelo próprio
Cristo para levar adiante sua missão na terra até o fim dos tempos.
O Tratactarianismo enfatizou que Cristo delegou a autoridade eclesiástica aos seus
apóstolos, e seus sucessores, os bispos. Assim, uma marca essencial da igreja católica é a
presença das três ordens: bispo, presbítero e diácono, em sucessão apostólica. A Igreja
Católica é encontrada, em sua completude, naquelas denominações que historicamente
mantiveram a sucessão apostólica e que professam à fé dos credos e dos grandes concílios
ecumênicos. Por este critério, as três “grandes famílias católicas” são: a anglicana, a
romana e a ortodoxa.
A
restauração da liturgia
Às vezes os visitantes católicos romanos observam como é similar nosso culto ao
deles (na verdade é como o deles se tornou similar ao nosso!). Mas nosso estilo da
adoração não é simplesmente uma imitação das práticas romanas. Ao contrário, a liturgia
anglo - católica tem sua própria história e tradição. De onde, veio e como se formou, então,
essa tradição?
Nossa adoração não foi sempre do jeito que vocês vêem agora. Se você entrasse
numa paróquia da igreja anglicana há dois séculos você encontraria provavelmente apenas
uma Oração Matutina consistindo a liturgia. O oficiante não usaria nenhuma vestimenta
litúrgica à exceção de uma simples batina preta. O ponto alto do culto seria o sermão, que
poderia durar mais de uma hora. O templo da igreja seria “totalmente nu”, sem nenhum
vitral, retratos ou imagens.
Os líderes do movimento de Oxford recuperaram o valor da Liturgia e dos
Sacramentos como verdadeiros meios de graça pela qual os adoradores poderiam
experimentar a beleza da santidade divina e serem trazidos à presença transformadora de
Deus. Os anglo-católicos começaram a antigas formas de adoração, num processo gradual
de redescoberta do estilo de culto existente na igreja pré - reformada, nos períodos
patrístico e medieval.
Paulatinamente foram sendo re-introduzidas as tradições e práticas anteriores a
Reforma: os altares voltaram a ser adornados com cruzes, velas e frontais; os padres
retornaram o uso das casulas e os diáconos da dalmática; a eucaristia passou a ser celebrada
pelo menos aos domingos e, em alguns lugares, todos os dias. O incenso, os sinos
começarão a ser utilizados na abertura dos ofícios; com coros e leigos paramentados
participando do processional, com tocheiros e cruciferários. A água benta e o incenso
voltaram a ter função litúrgica. Os elementos consagrados, reservados para comunhão dos
doentes, passaram a ser guardados em local especial (sacrário ou tabernáculo).
A prática da confissão individual foi restabelecida; as orações pelos mortos e as
invocações aos santos voltaram a serem realizadas durante a adoração pública. A Virgem
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Maria teve sua importância recuperada, purificada dos excessos do catolicismo medieval e
do radicalismo dos reformadores.
C
isões no Movimento Católico
Pelo menos desde a década de 1970, o Anglo - catolicismo tem sido dividido em
dois campos distintos, ao longo de uma linha simbólica, que talvez possa ser
rastreada até o século XIX, com a obra do bispo e teólogo Charles Gore (1853-1932).
O Movimento de Oxford tinha sido inspirado em primeiro lugar por uma rejeição do
liberalismo teológico e do latitudinarianismo eclesial em favor da fé tradicional da “Igreja
Católica Indivisa”, definida pelos ensinamentos dos Padres da Igreja e as doutrinas comuns
da história ocidental e oriental igrejas cristãs durante os cinco primeiros séculos.
Até a década de 1970, portanto, a maioria dos anglo-católicos rejeitava os
pressupostos teológicos e políticos dos modernistas, como o racionalismo, a negação dos
milagres bíblicos, o acesso das sagradas ordem às mulheres etc. Além disso, os anglocatólicos, mesmo trabalhando com os pobres e marginalizados, viam com suspeita os
partidos socialistas e revolucionários. Tudo isso mudaria com a publicação dos escritos de
Charles Gore em 1890.
Gore havia sido formado no mais ortodoxo anglo-catolicismo e ela visto como um
dos seus mais brilhantes teólogos. Por isso a publicação, sob sua direção, de uma serie de
ensaios intitulada Lux Mundi deixou anglo-católicos, liberais e protestantes abismados. Na
verdade, Gore fez um verdadeiro esforço para harmonizar a fé cristã com o mundo
moderno, nos seus aspectos científicos, históricos, culturais, políticos e éticos. Para isso,
precisou, no entanto, “relativizar” questões centrais como a Inspiração das escrituras e a
validade dos Pais da Igreja. Dois aspectos merecem destaque: sua cristologia baixa,
centrada na idéia de um radical e irrecuperável “rebaixamento” de Deus em Cristo
(Kesosis) e sua ligação com o movimento socialista. Estava consolidado o surgimento do
que antes era impensável: “um catolicismo liberal”.
A conseqüência disso é que o catolicismo encontra-se dividido: alguns enfatizando
o primeiro termo e outros o segundo. No primeiro caso temos o que chamamos de
“tradicionalista anglo-católico”, formado por aqueles que procuram manter a tradição e a
doutrina anglicana em linha com o da Igreja Indivisa, priorizando a o catolicismo romano e
a ortodoxia oriental. Assim temas como a ordenação de sacerdotisas e bispas ou
homossexuais praticantes são vistos como incompatíveis com a fé católica. Por isso
costumam se aliar com os evangélicos para defender os ensinamentos tradicionais sobre
moralidade e fé. A principal organização anglicana a que se encontram filiados é a
“Seguindo na fé” (Forward in Faith), presente principalmente na Europa e nos Estados
Unidos.
O trabalho de Gore, no entanto, que ostenta a marca do protestantismo liberal, abriu
o caminho para uma forma “alternativa” de anglo-catolicismo. Assim, nos últimos anos,
muitos anglo-católicos aceitaram a ordenação de mulheres ao presbiterato e episcopado, o
uso da “linguagem inclusiva“ nas traduções da Bíblia e da liturgia e atitudes “inclusivas”
em relação à homossexualidade, chegando inclusive a defenderem a ordenação de clérigos
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monogâmicos. Além disso, defendem inexistir uma real diferença entre católicos,
protestantes ou liberais. Esses segmentos geralmente se referem a si mesmos como
“católicos liberais” ou “progressistas”. A principal organização que os representa é o
“afirmando o catolicismo” e a “sociedade para os padres católicos” do atual Arcebispo de
Cantuária, Rowan Willimas.
Há ainda uma terceira vertente, embora insipiente. Trata-se de uma “via média”
entre os dois extremos do catolicismo atual. Seus representantes criticam tanto o
liberalismo quanto o conservadorismo e buscam desenvolver as idéias de um movimento
teológico do catolicismo romano do século XX: a Nouvelle Théologie do padre Henri de
Lubac (1896-1991). O principal representante desse grupo é o teólogo inglês John Milbank.
Os trabalhos de Milbank e outros dentro desta vertente têm sido fundamentais para a
criação de um movimento ecumênico (embora predominantemente anglicano e Católico
Romano), chamado de “Ortodoxia radical” que busca recuperar a relevância do pensamento
cristão na cultura e na sociedade.
Existem também aqueles anglo-católicos que perderam a pensam que o processo de
liberalização no anglicanismo já foi longe demais e que é incontrolável. Por isso deixaram a
comunhão anglicana embora tenham permanecido fiéis a sua doutrina e liturgia: são os
“anglicanos confessantes”. É o caso da “Comunhão Anglicana Tradicional” – TAC,
presente em quase todo o mundo, inclusive na América Latina e que se encontra num
processo avançado de volta para o Catolicismo Romano.
No Brasil o anglo-catolicismo nunca teve de fato grande expressão. A única
tentativa disso foi feita pelo então Rev.Salomão Feraz, energicamente reprimida pelo
episcopado da época. Os motivos para isso foram o forte víeis protestantes dos primeiros
missionários norte-americanos e a hegemonia do liberalismo desde metade do século XX.
Neste sentido o predomínio dessa vertente acabou impedindo o surgimento de uma tradição
realmente católica no país, gerando um estranho amálgama de protestantismo liberal e
catolicismo da TL.
O
ser católico
Uma questão que vem sido debatida há séculos é qual a natureza precisa do
catolicismo. Esse tema tem sido muito debatido inclusive no interior do anglocatolicismo. De acordo com as Igrejas Ortodoxas Orientais e as Igrejas Orientais
Ortodoxas, Anglo-católicos - juntamente com os Velho-católicos e luteranos episcopais geralmente apelam para o “cânone” (ou regra) de São Vicente de Lerins (445): “Católico é
aquilo que sempre foi crido, por todos, em todos os lugares”.
Embora possam existir diferenças pontuais sobre o caráter do catolicismo os anglocatólicos o compreendem como a determinação positiva da essência mesma do
cristianismo. Nas Palavras do teólogo Karl Adam (1876-1966) o catolicismo é “a afirmação
integral dos valores, a abertura ao mundo no sentido mais englobante e mais nobre, o
casamento da natureza com a graça, da arte com a religião, da ciência com a fé, a fim de
que Deus seja tudo em todos”.
6
Neste sentido uma questão séria para os anglo-católicos é a interpretação e o valor
dos “Trinta e Nove Artigos de Religião”, publicados no século XVII. É verdade que, neste
documento histórico, é feita distinções entre anglicanos e católicos romanos sobre pontos
importantes da doutrina. Não é, portanto de se estranhar que os setores evangélicos o
utilizem como prova do “caráter protestante” da igreja. Duas coisas merecem destaque: em
primeiro lugar não há em nenhum lugar dos Trinta e Nove artigos menção a palavra
“protestante”. Além disso, esse documento não pode ser considerado uma espécie de
“confissão de fé protestante” como foi a luterana e a reformada. Mais tão somente garantir
a unidade espiritual da nação, livrando-a dos radicalismos de Roma (tridentinos) e Genebra
(Puritanos).
Por isso os artigos foram intencionalmente escritos de tal forma a estarem abertos a
uma variedade de interpretações tanto protestantes (arminianos e calvinistas) quanto
católicas. Por tudo isso os anglo-católicos têm defendido as suas práticas e crenças são
coerentes com seu espírito. No entanto, alguns acreditam que devido ao seu “tom áspero”,
eles simplesmente deveriam ser suprimidos como fonte de doutrina, garantindo-lhes apenas
a importância histórica, o que de fato acabou acontecendo na maioria das províncias da
Comunhão Anglicana. É consenso inclusive entre os evangélicos que o “Quadrilátero de
Lamberth” é a melhor síntese da unidade necessária a todas as tendências anglicanas.
O Quadrilátero tem servido de base dogmática para a unidade interna e externa de
nossa Comunhão e afirma quatro crenças essenciais:
(1ª) A importância da Revelação profética. “Cremos que as Sagradas Escrituras
contêm todas as coisas necessárias para a salvação”. Toda nossa doutrina e liturgia estão
baseadas e fundamentadas na Bíblia: Cremos no Primeiro e no Segundo Testamento. Ao
afirmarmos isso destacamos: a) a continuidade de nossa Igreja com a tradição profética
semítica, a supremacia do texto bíblico sobre as autoridades humanas e a negação do
enfoque fundamentalista bíblico;
(2ª) A continuidade Apostólica. “Os Credos Apostólico e Niceno – Escritos no
tempo da igreja indivisa, constituem a confissão normativa da fé católica que preservamos
ainda hoje”. Somos uma igreja histórica, herdeira de uma Tradição de 2000 anos.
Consideramos-nos uma parte importante da Igreja de Cristo, mas não a sua totalidade;
(3ª) A realidade da graça divina. “A Igreja Anglicana professa o Batismo e a
Eucaristia como legítimos sacramentos diretamente ordenados por Cristo, sendo eles sinais
eficazes da graça e da boa vontade de Deus para conosco.” A Igreja Anglicana é uma igreja
sacramental. Os sacramentos são sinais externos e visíveis de uma graça divina interna e
espiritual. Os sacramentos expressam nossa crença na natureza sacramental do universo e
da vida, significando que Deus está presente e atuante na criação em todos os seus aspectos.
Para nós Cristo é o maior dos sacramentos. Há dois sacramentos principais: o Santo
Batismo e a Santa Eucaristia e outros cinco, chamados também de sacramentos menores ou
ritos sacramentais (Crisma, Ordem, Matrimônio Reconciliação e Unção dos Enfermos) que
testemunham a presença divina em nossas vidas;
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(4ª) A necessidade de uma comunidade de fé. “Professamos que a autoridade
transmitida por Cristo aos apóstolos e por esses aos seus sucessores (incluindo nossos
bispos) é, ao mesmo tempo, garantia e expressão da universalidade e apostolicidade da
Igreja”. Para nós a fé não é uma atitude egoísta e solitária. A fé cristã se fundamenta no
amor ao próximo e na vida em comunidade. Toda comunidade precisa de líderes. Nossos
líderes são os bispos. Na Tradição Anglicana a autoridade é descrita como um círculo, onde
o poder flui de fora para dentro. Nosso líder mundial é o 105º Arcebispo de Cantuária, sua
Graça Rowan Williams, mas ele não tem autoridade legal fora de sua Província. Ele serve
como guia espiritual e símbolo da unidade, e, embora, entendamos que seja necessário a
existência de um primado universal, ele não é “nosso Papa”. Além disso, naa nossa tradição
os leigos também têm participação em todos os níveis das igrejas anglicanas: eles escolhem
seus bispos e padres e participam do dia a dia de suas comunidades. As mulheres também
participam do ministério da igreja, podendo serem inclusive ordenadas ao diaconato na
maioria das províncias.
Há um conceito importante para compreender o anglicanismo: inclusividade. Por
exemplo, a questão da confissão sacramental particular. Embora os sacerdotes anglocatólicos incentivem e pratiquem esses atos em suas comunidades, como fazem seus irmãos
romanos e ortodoxos, não tornam isso um elemento central de sua doutrina, preferindo
seguir o aforismo clássico anglicano: “todos podem, alguns devem, ninguém é obrigado”.
Um aspecto central, porém é a crença na natureza sacramental do sacerdócio, no
caráter sacrificial da Missa e a presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados da
Eucaristia. Para os anglo-católicos é eucaristia é o coração da vida cristã.
Muitos anglo-católicos também incentivam a vida monástica e o celibato sacerdotal.
A maioria dos anglo-católicos também encoraja a devoção à Virgem Maria, Especialmente
sob o título de Nossa Senhora de Walsingham, por entender que esse é um elemento
constitutivo da tradição católica. Há, porém formas variações de intensidade e estilos entre
eles.
O mesmo deve ser tido com relação às práticas eucarísticas e paramentos. Se é
verdade que todo anglo-católico utiliza paramentos e utensílios na celebração eucarística
(casula, capa, velas, crucifixo, turíbulo etc.) a forma e a intensidade varia conforme a
comunidade. Alguns celebram na forma moderna do Livro de Oração Comum (1979),
outros preferem a versão clássica de 1928 e alguns a antiga forma Tridentina, ou mesmo o
“Rito de Sarum”, base de toda liturgia anglicana.
As principais características de uma espiritualidade “Elevada” (High-Church)
1. Uma visão elevada da adoração de Deus. O Anglo-Catolicismo sempre
enfatizou o a importância da reverência, do temor e do sentido de mistério diante do
Sagrado, perante o qual até mesmo os anjos do céu cobrem seu rosto;
2. Uma visão elevada da criação. Ao mesmo tempo, nós nos deleitamo-nos na
beleza da criação divina. A visão anglo-católica do mundo é altamente sacramental, vendo
os sinais da presença e da santidade de Deus em tudo que ele fez. Na adoração, nós
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recolhemos o que há de melhor na criação: arte, arquitetura, música, poesia, incenso, flores
e cores etc;
3. Uma visão elevada da encarnação. Nossa salvação começou quando Cristo fez
morada no ventre da Virgem Maria. Cremos que Deus tornou-se realmente humano, a fim
de que, por meio dEle, a humanidade pudesse tornar-se divina;
4. Uma visão elevada do sofrimento. O Anglo-Catolicismo olha não somente a
encarnação de Cristo, mas também a sua paixão. A imagem de Jesus na cruz nos lembra da
profundidade e do horror do pecado humano, e do alto preço que Deus pagou pela nossa
redenção. A espiritualidade anglo-católica envolve um continuo processo de mudança do
“pecado” à “santidade’, do “mundo” para “Deus”. Para os anglo-católicos o sacramento da
penitência é um recurso indispensável nesse processo;
5. Uma visão elevada da Igreja. Nós escolhemos compartilhar a vida do Cristo,
morto e ressurreto. Esse processo começa com nossa incorporação em seu corpo com o
batismo e continua durante toda nossa existência. Assim, nós não consideramos a Igreja
Católica (Universal) nem como uma instituição de origem simplesmente humana, nem
como uma associação voluntária e invisível de crentes individuais, mas como um mistério
maravilhoso, um organismo supernatural, cuja vida flui entre seus membros através de sua
cabeça, Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo.
6. Uma visão elevada da comunhão dos santos. A Igreja, além disso, consiste não
somente de todos os cristãos vivos na terra (a Igreja militante), mas também naqueles fiéis
que continuam a crescer no conhecimento e no amor do Deus, e nos santos no céu, que já
alcançaram o término de sua jornada (a Igreja triunfante). Nós temos a comunhão com
todos os que vivem em Cristo. No interior dessa comunidade destaca-se a figura da BemAventurada Virgem Maria, mãe do Senhor e da Igreja. O Anglo-Catolicismo afirma
também a legitimidade de orarmos pelos mortos, e de pedir aos santos no céu que nos
ajudem com suas orações.
7. Uma visão elevada dos sacramentos. Nós acreditamos que Jesus Cristo nos
comunica realmente e verdadeiramente sua vida, presença, e graça por meio dos sete
sacramentos. Dois desses são destacados. O Santo Batismo estabelece nossa identidade
uma vez por todas, como crianças de Deus e herdeiros do Reino do céu (embora esteja em
nós a liberdade para escolhermos aceitar ou repudiar essa herança). E a Santa Eucaristia,
onde Cristo tornar-se realmente presente no santíssimo sacramento do seu Corpo e Sangue.
A adoração eucarística é assim um componente integral da espiritualidade e da devoção
anglo-católica.
8. Uma visão elevada das Sagradas Ordens. Desde os dias do movimento de
Oxford, o anglo-catolicismo afirmou que o tríplice ministério dos bispos, dos presbíteros e
dos diáconos em sucessão apostólica é um presente de Deus. A validez de nossos
sacramentos e a plena pertença à Igreja Santa, Católica e Apostólica depende da
manutenção deste dom divino. Por essa razão, as inovações que ameaçam a autenticidade
de nossas ordens apostólicas devem ser resistidas a todo custo.
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9. Uma visão elevada de Anglicanismo. Nós afirmamos que as igrejas anglicanas
são verdadeiramente parte da Santa Igreja Católica de Cristo. A vocação profética do
Anglo-Catolicismo consistiu precisamente em testemunhar a catolicidade do Anglicanismo.
C
onclusão
Mas nem tudo é harmonia e tranqüilidade. Novos desafios se colocam aos
anglo-católicos do século XXI: a necessidade de redescobrir o ardor
missionário, de dar respostas a problemas contemporâneos como à crise de valores éticos e
racionais, particularmente quando isso envolve temas polêmicos como a ordenação de
sacerdotisas e bispas e o homossexualismo. Cabe-nos aceitar esses desafios na certeza que
as Palavras de Cristo são, caminho, verdade e vida: “As portas do inferno não prevaleceram
sobre ela”.
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