O dinheiro como veículo do Mal” Extrato de “

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O dinheiro como veículo do Mal” Extrato de “
Extrato de “A Tragédia do desenvolvimento: um ensaio sobre o pessimismo”,
capítulo 6 de “O Desafio Brasileiro: ensaios sobre Desenvolvimento,
globalização e moeda” São Paulo: Editora 34.
5. O dinheiro como veículo do Mal
Ao longo do século XVIII são encontradas muitas descrições vívidas sobre um
novo fenômeno, então experimentando inusitadas variações: o crédito. Em boa medida
essas metamorfoses do crédito vinham compondo uma inovação que se mostraria das mais
poderosas e revolucionárias da história da humanidade: a moeda fiduciária. Tratava-se de
uma resposta criativa no sentido schumpeteriano a um problema sério: o dinheiro, desde a
sua invenção, ou convenção, manteve um vínculo preciso com algumas dádivas da
Natureza cuja característica mais proeminente era a escassez. Os metais preciosos
assumiram essa função de forma natural, de tal sorte que no limiar da Revolução Industrial,
quando as possibilidades econômicas da Humanidade iam conhecer extremos impensáveis,
ainda tínhamos a oferta global de moeda atrelada aos progressos tecnológicos na
mineração. Apenas por um acidente, o ritmo de crescimento econômico seria coincidente
com o crescimento da “liquidez” proporcionada pela Natureza: uma vez mais, também
neste domínio, o homem precisava libertar-se de limites naturais e pagar algum preço por
isso.
O desenvolvimento da moeda fiduciária, e do sistema financeiro, teve lugar de
forma episódica e irregular a partir de experimentos em vários países diferentes e com os
resultados mais díspares. A inovação parecia ter o condão de libertar incríveis energias e
suas conseqüências pareciam deslumbrantes a alguns de seus introdutores. Um desses, John
Law, talvez tenha proporcionado o mais extraordinário exemplo dos poderes construtivos e
destrutivos da nova invenção. Law publicou em 1705 um livro onde descrevia 24 exemplos
de emissão de notas bancárias para o financiamento de atividades produtivas ou comerciais
nos quais as emissões eram autoliquidáveis e não inflacionárias. Com razão, Schumpeter o
chamou de “precursor da moeda administrada”1. Ao longo do século XIX incontáveis
disputas iam ser travadas em torno da chamada "real bills doctrine”, ou a noção que a
1
Kindleberger (1985, p. 45).
emissão de moeda como contrapartida a “legítimas” letras comerciais, ou transações autoliquidáveis, nada tinha de inflacionária. O tema era parte de discussões maiores sobre o
sistema financeiro e como se construía essa gigantesca pirâmide de promessas de
pagamento cada vez mais distante da conversibilidade em qualquer coisa, cada vez mais
longe da Natureza. Os economistas entendem que este sistema de crédito é um elemento
fundamental nas economias capitalistas modernas; porém, é composto de um conjunto
delicado e complexo de fatores, cuja harmonia repousa sobre a confiança, e portanto a
construção contém fortes elementos de instabilidade inerentes à sua constituição. Durante
os três séculos em que o sistema financeiro vem evoluindo, pode-se dizer que assistimos
uma vasta sucessão de episódios de exuberância financeira, seguidos de pânicos nos quais
lições foram aprendidas sobre como domesticar os enormes poderes libertados pela moeda
fiduciária. O abuso da crédito, a inflação, a catástrofe financeira são temas talvez mais
antigos e recorrentes que o próprio capitalismo. O drama aí envolvido vem se repetindo
com notável precisão há tempos. São extraordinárias as semelhanças entre diferentes
episódios, ocorridos nos mais diversos lugares e épocas: o Banque Royale de John Law, a
South Sea Bubble, ou a falência do nosso primeiro Banco do Brasil em 1830, ou o
Encilhamento em 1891, ou o recente colapso asiático, qualquer um desses episódios
poderia servir como modelo para os outros, como bem atesta o extraordinário inventário de
crises relatadas por Charles Kindleberger, professor do MIT recentemente aposentado, no
seu Manias, panics and crashes. Não há dúvida que existe aí um padrão, método nessa
loucura, como diria o príncipe dinamarquês, que vale à pena destrinchar. A fim de melhor
identificar os mecanismos, bem como a simbologia invocada nesses episódios, convém
buscar um exemplo distante, já depurado pelo mito e decantado em seus aspectos mais
singulares. O episódio, na verdade, é imaginário, e narrado na menos conhecida parte II do
“Fausto” de Goethe, escrita na fase final de sua vida entre 1825 e 1831. Goethe já tinha
testemunhado o episódio de John Law e dos assignats da Revolução Francesa, já tinha sido
ele próprio uma espécie de ministro tesoureiro, e tinha simpatias confessadas com o
movimento saint simoniano, do qual era consumidor constante de suas publicações. Claude
Henri de Rouvray, Conde de Saint Simon, que Marx consagrou como “socialista utópico”,
era um homem de idéias revolucionárias no terreno da moeda e do crédito, não muito
distantes das idéias de Law. Foi a partir das idéias de Saint Simon que foi fundado o Credit
Mobilier que, para alguns historiadores, foi o primeiro banco de investimentos moderno e
um dos principais impulsos para o notável desenvolvimento industrial francês em meados
do século XIX.
O “Fausto” é um livro difícil, extremamente longo, e repleto de alegorias
mitológicas um tanto difíceis de se alcançar. O “Fausto II”, em particular, já foi descrito
como uma história “que transcende a literatura, e forma uma arte não bem definida, que
poderia ser chamada de delírio, orgia ou sinfonia” (Carpeaux). Admiradores da obra, vez
por outra reúnem-se e levam dois a três dias para encená-la por inteiro. Todavia, o crítico e
escritor italiano Pietro Citati, guiado pela idéia que o “Fausto” confundia-se amiúde com a
vida do próprio Goethe, buscou ali e no “Sofrimento do Jovem Werther”, as narrativas para
compor uma espécie de biografia intelectual de Goethe, misturando biografia e “tradução”
da poesia para a prosa, além de proporcionar as chaves corretas para as alusões mitológicas.
É na prosa de Citati (1990, pp. 233-235) que vamos encontrar uma extraordinária narrativa
sobre a exuberância financeira, episódio central do “Fausto II”:
“Enquanto o imperador conversa com Mefistófeles, o Marechal e o
Tesoureiro correm para anunciar-lhe uma agradável notícia. O império, que
poucas horas antes parecia à beira da falência, foi salvo pelas artes de
Mefistófeles. À noite, durante o Carnaval, o Chanceler e o Tesoureiro fazem
o Imperador assinar uma folha de papel-moeda, a primeira que os olhos
humanos jamais viram. Estava escrito ali: Para conhecimento de quem
desejar. Esta nota vale mil coroas. Como certo penhor, garante-a uma
infinidade de bens enterrados na terra do Imperador. Por ora se provê, a
fim de que o rico tesouro, tão logo seja desenterrado, sirva de
ressarcimento. Na mesma noite, artesãos experientes imprimiram milhares
de notas de dez, trinta, cinqüenta, cem, mil coroas. Rápidas e festivas como
raios de primavera, essas levíssimas folhas de papel espalham-se pelo
Império e difundem onde quer que seja uma agitação de vida e alegria. O
chefe dos exércitos paga o soldo a seus briguentos lansquenetes, que
acorrem todos, vindos das tabernas e dos encontros com as raparigas. O
Marechal da corte livra-se das garras dos usurários (banqueiros). Todas as
cidades do Império despertam de seu sono mortal. Os cidadãos voltam a
farrear nas cantinas ....
Nem o Imperador, nem seu Chanceler, nem o Tesoureiro entendem que,
neste momento, debaixo de seus olhos maravilhados, está acontecendo algo
que mudará para sempre a história dos homens. A partir daquela manhã, o
ouro brilhante como o sol, vermelho como o sangue, ardente como o fogo,
fecundo como o sémen; o ouro, emblema de Apolo, dos príncipes e dos
poetas, dos avaros e alquimistas, deixa de ser o símbolo universal da riqueza,
a balança que mede nossos desejos e nossas necessidades. Uma mísera folha
de papel com a assinatura de um imperador, de um rei, de um ministro ou de
um banqueiro o substitui. Assim, os símbolos e as imagens da riqueza
mudam de aspecto. Quem a difunde não são mais os gnomos das montanhas,
que extraiam como cirurgiões os veios túrgidos dos minerais, mas os
artesãos capazes de multiplicar numa noite milhares de notas de banco...
O valor de cada moeda era sua própria moeda: o metal mais ou menos
precioso, mais ou menos pesado, comparado com o metal supremo, o ouro.
... Que perfeita balança, que maravilhosa chave universal era o ouro ! ... Em
vez disso, qual o valor das notas de mil, de cinqüenta, e de trinta coroas que
se espalham como raios pela superfície da terra ? Essas notas são apenas,
como diz seu inventor, espectros de papel, fantasmas impressos e assinados
aos quais corresponde um valor falso como os tesouros que Mefistófeles
imagina enterrados no solo do império. Sob o signo do papel moeda, a vida
econômica torna-se assim o local das ilusões e da aparência algo
profundamente parecido com os falsos corcéis alados, com os inúteis
espetáculos de fogo e os lendários palácios submarinos evocados pelas artes
mágicas e verbais de Mefistófeles. Ninguém pode se espantar que os
embusteiros e os mistificadores, os Law, os Cagliostro, os jogadores da
Bolsa, os financistas que constróem e destróem fortunas com a rapidez que
Mefistófeles brinca com as chamas comecem a dirigir, a partir desse
momento, os destinos do mundo.
A economia moderna nasce, pois, nas últimas horas de uma noite de
carnaval, da fantasia de um diabo que procura distrair o tédio de um
imperador sem pensamentos. Que Mefistófeles ame sua nova invenção ...
não há dúvida. Mas seria absurdo acreditar que um diabo múltiplo como
Mefistófeles nos aconselhe alguma política econômica. Como senhor da
ilusões, ele inventa o papel-moeda ... mas continua a nos recomendar que
juntemos o ouro em nossos armários ... Assim, nas primeiras horas da
manhã, quando a mente ainda está cansada das paixões da noite, a
representação do carnaval ... acaba da maneira mais grotesca. Aqueles
símbolos tão profundos deixam em nossas mãos apenas algumas folhas de
papel sem valor: notas de dinheiro mais desacreditadas do que as de Law ou
dos Assignats da Revolução Francesa.”
Esta extraordinária passagem contém inúmeros elementos de grande atualidade.
A invenção do papel moeda, que se reconhece como revolucionária e transformadora no
mais legítimo figurino schumpeteriano, é atribuída ao Demônio, algo que não de todo
estranho à tradição marxista nessa matéria. “A moderna sociedade burguesa - diz Marx no
Manifesto Comunista - uma sociedade que libertou tão formidáveis meios de produção e
troca, é como uma feiticeira incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados pelo
seu feitiço”. A aversão marxista à moeda fiduciária é proporcional a dificuldade de
enquadrá-la num figurino de valor-trabalho. Os marxistas mais interessados pelo tema,
como Hilferding por exemplo, foram quase que invariavelmente defensores ardentes do
padrão-ouro2. Essa mercadoria profana criada pelos homens à revelia da Natureza, e que
não expressa nem corporifica o trabalho humano, posto que seu valor é fictício e artificial,
não pode ser uma criatura de Deus. O desconforto marxista com a moeda fiduciária e suas
ramificações não é difícil de ser entendido3.
Os críticos enxergam nessa passagem uma hostilidade de Goethe á moeda
fiduciária, a despeito de alguns elementos de fascinação, e uma imitação que é feita da
brilhante porém ambígua descrição que Marco Polo faz das instituições monetárias
chinesas, que sua audiência européia não imagina existir, em termos de alquimia: “o
Grande Khan faz pedaços de papel serem gastas como dinheiro ... o Grande Senhor domina
a alquimia perfeitamente”, diz ele4. A “economia moderna” dirigida pelos “mistificadores,
embusteiros e financistas”, e os “espectros de papel” cujo valor é falso como as promessas
de Law, são concebidos numa noite da Carnaval, fazendo a vida econômica tornar-se “um
local de aparências e ilusões”. Toda prosperidade ira se esvair na manhã seguinte, pois é
fictícia e profana. Qualquer semelhança com a linguagem parnasiana-alternativa de alguns
economistas brasileiros, identificados no próximo capítulo, é inteiramente proposital. A
tragédia e suas mistificações vêm se repetindo com inacreditável monotonia. A passagem
descreve o episódio de Law, mas serve para qualquer dos eventos da galeria de
Kindleberger nos quais estava em jogo a passagem da moeda metálica para a moeda
fiduciária, um drama que teve lugar em todo lugar, sempre de forma atabalhoada.
Mefistófeles bem simboliza as dúvidas sobre a “legitimidade”, ou sobre a
moralidade dessa moeda papel, valor de troca sem valor intrínseco, a moeda simbólica,
representativa e subjetiva, substituindo a verdadeira dádiva da natureza, dispensando,
assim, qualquer lastro, qualquer conexão com as entranhas da Terra ou correspondência
com o mundo concreto. A passagem acima, vista do lado positivo, oferece um
extraordinariamente claro arquétipo para o desenvolvimento capitalista, especialmente no
que toca às questões financeiras. O crédito é uma alavanca de enorme potencial criativo,
2
Sobre o conservadorismo monetário de Hilferding, veja-se Darity & Horn (1985).
Algumas das passagens mais reveladoras desse desconforto podem ser encontradas nas interpretações de
Marx utilizadas nos primeiros anos da União Soviética para eliminar da economia capitalista essa instituição
profana e imoral. Seguiu-se uma das mais virulentas hiperinflações da história da humanidade, vale dizer,
uma das maiores catástrofes monetárias que se tem notícia.
4
Cf. Shell (1982, p. 99).
3
que cria mas não pode ser dissociada do Mal, conforme assinala Berman, que aponta
também algumas implicações relevantes para o Brasil:
“Mefistófeles explica que sua função é personificar o lado sombrio, não só da criatividade
mas da própria divindade ... Pode ser Fausto tão ingênuo a ponto de acreditar que Deus
realmente criou o mundo a partir do nada ? Com efeito, nada provém do nada; é apenas
função de tudo aquilo que você chama pecado, destruição, mal que pode ocorrer qualquer
criação ... Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo
siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora – e,
certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro – deve ser destruído, a fim de consolidar
o caminho para mais criação. Essa é a dialética que o homem moderno deve aprender (pp.
48-9) ... Goethe sintetiza essas idéias e deposita suas esperanças naquilo que chamarei de
Modelo Fáustico de Desenvolvimento. Tal modelo confere prioridade absoluta aos
gigantescos projetos de energia e transporte em escala internacional. Seu objetivo é ... o
desenvolvimento a longo prazo das forças produtivas ... Com isso criará uma nova síntese
histórica entre poder público e poder privado, simbolizada na união de Mefistófeles, o pirata
e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Fausto, o administrador
público, que concebe e dirige o trabalho como um todo.” (p. 73) O Mefisto goethiano, com
seu oportunismo, sua exaltação do egoísmo e infinita falta de escrúpulo, ajusta-se com
perfeição a certo tipo de empresário capitalista (p. 71)”
O modelo “fáustico” é schumpeteriano como os outros, apenas é mais
elaborada a segregação entre construção e destruição, mais clara a ambigüidade envolvida
nos poderes miraculosos da moeda papel. A moeda fiduciária sem lastro, e toda a plêiade
de promessas de pagamento, e a imensa e crescente variedade de instrumentos financeiros
que as representam, são forças que precisam ser domesticados através de “regulação”, ou
por um “acordo fáustico”, pelo qual abandona-se em definitivo a “natureza”, ou a “alma”,
para se desfrutar de os benefícios da inovação, ao preço de se tolerar, ou mesmo irmanar-se
com as Forças do Mal. Os governos seriam, evidentemente, os primeiros a tentar dominar
esses poderes. Reservam para si o monopólio de emissão da moeda fiduciária, do qual
abusam com espantosa freqüência, embriagando-se com as receitas de senhoriagem e
provocando inflação a fim de construir o desenvolvimento. Sufocam os bancos, que pela
sua própria natureza são também criadores de moeda fiduciária, tentando usurpar-lhes por
inteiro ou em parte esse poder através de mecanismos que Ronald McKinnon denominou
de “repressão financeira”. Ou procuram, com os bancos estatizados, utilizar a criação de
crédito como substituto para o gasto público, desenvolvimentista ou armamentista, sem
maiores limites a partir do capital dessas instituições. São as “finanças industrializantes”
um termo inventado por empresários inflacionistas brasileiros para designar o (ab)uso do
crédito em linhas semelhantes às que levaram diversos países asiáticos a crises bancárias de
grandes proporções, ou às que produziram o desastre dos bancos estaduais no Brasil5. De
um jeito, ou de outro, os soberanos sempre se fascinaram e invariavelmente se excederam
no uso dos poderes inerentes à moeda fiduciária. Apenas muitos anos à frente, no pósguerra, o avanço da independência dos bancos centrais na maior parte dos países
desenvolvidos viria a estabelecer obstáculos objetivos ao mau uso da moeda. A redução da
inflação, todavia, seria um fenômeno para as duas últimas décadas do século XX.
De toda maneira, prevalece a noção de que há algo inerente mau na exuberância
financeira, que invoca ressentimentos profundamente enraizados no inconsciente do
sistema capitalista, onde residiria a memória dos inúmeros pânicos e catástrofes financeiras
que o capitalismo experimentou. Fascinante, todavia, é a inovação financeira, que parece
recompor continuamente a capacidade de o sistema reproduzir a mesma problemática,
recriando a mesma tragédia. A moeda fiduciária abriu efetivamente a velha Caixa de
Pandora, que parece reeditar, por toda a eternidade, as mesmas velhas maldições.
A passagem a seguir, extraída de artigo recente do Senador e economista Lauro
Campos, do Partido dos Trabalhadores, faz, sem mais delongas, a devida conexão para a
problemática brasileira.
“Para fazer frente às despesas crescentes, o governo capitalista acabou sendo
obrigado a arquivar a relíquia bárbara, o ouro e a prata, e adotou o papelmoeda sem lastro algum, e assim se tornou permanente a prática que era
excepcional ... as emissões de dinheiro sem lastro, descoladas do trabalho
produtivo de ouro. ... O valor fictício se afirma, também, nas ações das
empresas. Essa possibilidade de deslocamento da realidade em direção ao
imaginário se fez sentir, por exemplo, em 1929 ... A sobreacumulação de
capital ... está na base do êxodo do dinheiro em direção às Bolsas. Esse
dinheiro fictício e não estatal ... só poderá se alimentar de si mesmo, isto é,
não há possibilidade de o excedente do trabalho humano poder oferecer juros
para o gigante se reproduzir. Nesse sentido, o trabalho humano se tornou
desprezível, a atividade humana real não é capaz de se ligar ao mundo
imaginário, fantástico, irreal, para sustentá-lo. ... Como dominar o dinheiro
fictício, como reacomodar, na realidade acanhada a que se reduziu o mundo
do trabalho, o fantástico produto das contradições fundamentais do
capitalismo ?” 6
5
Veja-se Coutinho (1996) para um enunciado do conceito.
6
Extratos do artigo “Juros Malditos” publicado na Gazeta Mercantil de 23.12.1997.
A moeda fiduciária inconversível, valor fictício e circunstância
excepcional, se torna dominante e seu controle, ou descontrole, se torna a tarefa primeira
dos governos. Os valores dos ativos, do capital das empresas, parecem também penetrar no
mundo irreal da especulação desligada da Natureza e do mundo do trabalho. E a falsidade
denunciada não poderá perdurar, posto que imoral, e necessariamente deverá ruir. Quando
os governos, e seus respectivos bancos centrais, engajam-se explicitamente na “defesa da
moeda”, ou em “políticas ortodoxas”, operam afirmativamente no imaginário e no
inconsciente dos chamados agentes econômicos: trata-se de assegurar que as autoridades
não vão abusar dos poderes a elas delegados, e que têm sob controle as forças do Mal. Do
lado da oposição, o ataque se organiza no mesmo terreno simbólico: o governo se
“subordina ao capital fictício e especulativo”, adota a disciplina mas sem o necessitar,
obedecendo aos desígnios do “capital volátil” que nos rouba a soberania e a identidade, e
impede o verdadeiro florescimento do desenvolvimento, o esplendor da mágica de
Mefistófeles. Desde de Goethe esse embate se repete. Não devemos esperar que ele se
resolva no futuro.