Danças, lindas, na cidade

Transcrição

Danças, lindas, na cidade
PÚBLICO, QUA 13 JUN 2012 | CULTURA | 31
ANNE VAN AERSCHOT
Brad Mehldau,
um piano afinado
para o presente
Música
Gonçalo Frota
O pianista norte-americano
inicia hoje, em Faro,
uma pequena série
de três concertos
a solo em Portugal
Danças, lindas, na cidade
Crítica de Dança
En Atendant
mmmmm
Anne Teresa de Keersmaeker
LISBOA Culturgest/Alkantara Festival
5 de Junho, sala cheia
Cesena
mmmmm
Anne Teresa de Keersmaeker
e Björn Schmelzer
LISBOA CCB/Alkantara Festival,
8 de Junho, sala cheia
A divindade às vezes sentida na natureza humana é difícil de explicar.
Keersmaeker, porém, mostra como
a dança pode ter essa faculdade, que
volta a evidenciar-se em beleza nestas criações com a música polifónica
do século XIV.
En Atendant (2010) decorre na
expectativa da morte e revisita a
enfermidade que se abateu sobre a
Idade Média. Do flautista que abre
o espectáculo com um ininterrupto
sopro esperamos o fim iminente do
seu fôlego; é um prelúdio simbólico
para uma peça muito bonita, com
um elenco notável.
Impõe-se um formalismo que
define em rigor a velocidade, direcção, desenho e distribuição do movimento pelo grupo corporal e a sua
tendência espacial: linhas paralelas
ao proscénio, como caminhos inevitáveis, onde círculos e diagonais
são efémeras emancipações. A coreografia reflecte uma estrutura de
composição musical, perceptível
até nos silêncios, como denota o requinte da marcha ritmada, decisiva
num bailarino e contagiada a todo
o grupo.
Da forma exímia emerge uma
qualidade expressionista e significante. Ela aparece nas arquitecturas
móveis de corpos que se agarram e
se apoiam — evocações de pinturas
trágicas de povos desfazendo-se em
sofrimento comum; acentua-se nas
relações tensas entre os intérpretes,
que acusam conflito social; e por meditações isoladas onde despontam
dramas pessoais. A peça, sem narrativa, leva o colectivo à extinção,
acabando com um espírito revoltado contra o destino que, obstinado,
eleva com saltos para o céu o seu
corpo nu e só.
Cesena (2011) é o acordar da noite
para o dia e carrega, não figurativamente, a disputa de soberania religiosa da França sobre a Itália que
originou, em 1377, um massacre na
cidade homónima. Colaborando com
Schmelzer, aqui Keersmaeker fundiu
admiravelmente a companhia Rosas
e o coro Graindelavoix.
Na penumbra um homem grita um
canto repetidamente. Por trás avança
um grupo, com andar síncrono e poderoso, cantando de mãos dadas; é
uma imagem de resistência e coesão,
que, mais tarde, comandará outras
esculturas corporais unificadoras que
transpõem grandes distâncias no palco despido. Numa escuridão quase
total, a pele de pessoas que correm,
saltam e deslizam enérgica e sensualmente traça desenhos incompletos.
Esta ocultação demorada e inquie-
tante anuncia uma amplitude e profundidade muito interessantes, transmitidas pela deslocação horizontal
da voz, que faz imaginar a dança.
A luz aumentará, trazendo outras
conquistas, como, por exemplo, um
magnífico solo masculino, cercado
por frases de maiorias que o espelham ou contrapõem. A comunidade, revelada, expande-se também na
vertical, galgando pelo reflexo da sua
força terrena e descentralizadora o
espaço aéreo e infinito.
En Atendant e Cesena partilham
vários aspectos: intérpretes catalisadores de transformações; belos
movimentos das massas; trios, duetos ou solos virtuosos; sobreposição
de objectividade e subjectividade;
figurinos escuros; vocabulários ricos
mas específicos; e pausas absolutas
que suspendem a intensidade contínua. Lindas, na sua exposição tão
intangível quanto edificante, estas
obras distintas juntam-se na perfeição; uma, mais bidimensional, cria
um corpo cheio de música; outra,
mais tridimensional, compõe uma
música cheia de corpo.
Os agentes culturais que viabilizaram a ocasião deram ao público um
excelente díptico que elogia o poder
construtivo das artes do corpo e é
inspirador; tentemos nós agraciar a
marcha quotidiana e reparar mais
nas vidas anónimas que formam connosco uma sociedade.
Amanhã e quinta-feira, Cesena
“acordará” Guimarães 2012 — Capital
Europeia da Cultura, uma experiência a não perder, na Caixa Negra da
Fábrica ASA, às 19h.
Paula Varanda
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AS OS
Cesena é o acordar da noite para o dia
Não haverá na actualidade outro pianista mais importante na linha sucessória de Keith Jarrett. O que não
é coisa pouca. Jarrett será a maior
referência do piano jazz em actividade e construiu a sua carreira numa
alternância entre o trio clássico (com
contrabaixo e bateria) e o piano solo.
De forma semelhante, Mehldau iniciou a sua longa série The Art of the
Trio em 1997 — primeiro com Larry
Grenadier e Jorge Rossy, agora com
Grenadier e Jeff Ballard — e foi com
esta formação que se notabilizou
e lançou o seu último registo, Ode.
Em Portugal, no entanto, a sua minidigressão será a solo: hoje no Teatro
das Figuras, em Faro; amanhã no Teatro Avenida, em Castelo Branco; e
sexta-feira, no CCB, em Lisboa.
Parte da sua popularidade e da
facilidade de galgar fronteiras entre
públicos deve-se a um percurso que,
partindo do jazz, de uma linguagem
de lirismo complexa assente em riquíssimos recursos de improvisação,
consegue atrair canções pop/rock e
integrá-las nesse contexto.
Tudo terá começado com os tempos em que Mehldau viveu em Los
Angeles e frequentou o bar Largo,
poiso para muitos dos singer/songwriters da terra e onde conheceu o produtor Jon Brion (conhecido pelo seu
trabalho com Aimee Mann ou Fiona
Apple). Foi aí que contactou com a
música de Nick Drake e Radiohead,
numa altura em que a audição obsessiva de discos de jazz o levara à saturação, começando então a construir
um reportório capaz de juntar The
Beatles, Paul Simon ou Soundgarden
às suas criações e às de Coltrane ou
Jelly Roll Morton. De certa forma, e
comparando novamente com Jarrett,
se este insistiu num trio dedicado aos
standards, Mehldau pegou nesse legado, mas dedicou-se a cartografar
e adicionar novos standards.
Esta via, pouco comum até então,
abriu as portas para que hoje o jazz
não rejeite o cancioneiro pop-rock e
o visite frequentemente. A versatilidade de Mehldau permitiu-lhe ainda
cruzar-se com o universo da música
clássica, ao gravar com a soprano Renée Fleming (Love Sublime) e com a
mezzo-soprano Anne Sofie von Otter (Love Songs). A solo, de resto, diz
pensar em cada actuação como se de
uma sinfonia com vários andamentos
ou de uma sonata se tratasse. Depois,
a liberdade conduz-lhe a narrativa.
Habitualmente, metade das ideias
com que sobe a palco vão sendo eliminadas pelos caminhos que o piano
dita na altura. Só nunca sabe quais.