Profissionais atendem adolescentes ofensores sexuais: da repulsa
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Profissionais atendem adolescentes ofensores sexuais: da repulsa
R E L ATO D E P E S Q U I S A Profissionais atendem adolescentes ofensores sexuais: da repulsa à esperança Professionals attend sexual offender adolescents: from repulse to hope Liana Fortunato Costaa , Adeli Ribeirob, Monique Guerreiro de Mourac Resumo: Trata-se de pesquisa qualitativa sobre avaliação das questões emocionais, metodológicas e de aprendizagem, realizada com profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias. Sujeitos: seis profissionais de Psicologia, duas estudantes de Psicologia e um profissional do Serviço Social. Um questionário aberto foi enviado e respondido por correio eletrônico. Os resultados foram agrupados em 4 zonas de sentido: as reações pessoais, as questões técnicas, o contato direto com o ofensor e sua família e a intervenção em grupo. Os respondentes indicaram um esforço para administrar as próprias emoções e enfrentar as opções técnicas surgidas durante a intervenção em grupo; estar em equipe facilitou o manejo das emoções e dos conflitos; a cumplicidade entre os membros da equipe proporcionou um apoio mútuo. Identificar as emoções e reações dos profissionais frente às situações de violência é fundamental para lidar com esta temática. Palavras-chaves: Adolescente ofensor sexual; Formação profissional; Grupo multifamiliar Abstract: This is a qualitative research about an evaluation of emotional, methodological and learning issues, carried out with professionals who attended a Multifamiliar Group with sexual offender adolescents and their families. The subjects were: six professionals of Psychology, two students of Psychology and one professional of Social Service. An open questionnaire was sent and replied by electronic mail. The results were grouped in 4 sense zones: the personal reactions, the technical matters, the direct contact with the aggressor and his family and the group intervention. The respondents indicated an effort to manage their own emotions and to cope with the technical options arised during the group intervention. To be in a team facilitated the handling of the emotions and the conflicts. The complicity of the members of the team led to a mutual support. To identify the emotions and reactions of the professionals when facing situations of violence is fundamental to cope with this matter. Keywords: Sexual offender adolescent; Professional background; Multifamiliar group a Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura/UnB). * E-mail: [email protected] b Psicóloga; Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico – COMPP - Secretaria de Estado de Saúde e Secretaria de Estado de Educação/ GDF. c Psicóloga da Secretaria de Saúde do Distrito Federal - SES/DF; Mestranda em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Fundação Oswaldo Cruz – (FIOCRUZ/ENSP/IPEA). Sistema de Avaliação: Double Blind Review 58 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 Este texto trata de uma pesquisa qualitativa sobre a caracterização da experiência profissional realizada com profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar (GM) com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias, em um ambulatório público de saúde mental infanto-juvenil. Mais especificamente, os objetivos dessa caracterização foram compreender as emoções vividas pelos trabalhadores que atendem esses adolescentes, conhecer as necessárias aprendizagens que essa experiência exige desses profissionais, e a percepção deles sobre o atendimento às situações de violência numa opção metodológica pelo grupo. Esse tema é conhecido na literatura internacional como “vicarious tramatization” (Kadambi & Truscott, 2003; Moulden & Firestone, 2007; Way, Van Deusen, Martin, Applegate & Jandle, 2004), e define os efeitos emocionais sobre o terapeuta que trabalha permanentemente com conteúdos de crueldade e acabam por trazer dificuldades para a construção de um vínculo de empatia com seu cliente. Nos casos de atendimento a ofensores sexuais, a presença de empatia e a conexão afetiva são aspectos fundamentais. Periódicos internacionais oferecem uma enorme gama de textos sobre o tema da avaliação profissional dos trabalhadores com indivíduos violentos, mas em nosso país essa temática ainda se encontra pouco desenvolvida (Por exemplo: Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi &Truscott, 2006; Scheela, 2001). Encontramos apenas trabalhos referentes às experiências de enfermeiros que atendem autores de violência (por exemplo, Correa, Labronici & Trigueiro, 2009) e as descrições do se passa com cuidadores de vítimas de violência (Machado & Merlo, 2008). Profissionais que atendem situações de violência É quase inexistente a presença de uma literatura nacional que discuta o tema das reações pessoais dos profissionais que atendem adolescentes que cometeram abuso sexual, até porque também quase não existem oferecimentos de intervenções para esta população. No entanto, podemos apontar alguns estudos como o de Correa et al. (2009), que enfocam as emoções e sentimentos de enfermeiros que atendem adultos autores de violência. Esses profissionais são invadidos por sentimentos como angustia, impotência, consciência daslimitações do trabalho, e principalmente questionamentos sobre sua própria subjetividade. Este aspecto é peculiar porque a formação do enfermeiro nãocomporta necessariamente demanda por terapias pessoais, o que já não acontece com os profissionais da Psicologia, que são demandados e treinados a perceberem sua própria subjetividade, às vezes até em demasia. A percepção do outro, que se constitui num veículo para percepção de si mesmo, é a principal ferramenta para dar conta do que se passa na relação entre o agressor e o profissional. Outras características são: sentir-se pouco resolutivo, medo do futuro, impotência por não conseguir controlar o meio ambiente da vítima. O autoconhecimento é fundamental para ajudar a ação profissional. Machado e Merlo (2008) também discutiram os resultados de uma pesquisa com auxiliares de enfermagem sobre o cuidado dispensado aos pacientes vítimas de violência. Os autores apontam o estresse oferecido por uma atividade que se desenvolve em torno da dor do outro, especialmente quando é um paciente internado em hospital e corre risco de morte iminente. O auxiliar de enfermagem necessita fazer um grande investimento afetivo para cuidar do outro e ainda voltar-se para dar atenção à sua própria dor. O dilema de atender a quem sofre e valorizar o próprio sofrimento é um aspecto inerente a esse profissional, inclusive ao profissional da Psicologia. Com relação à atenção ao profissional que atende ofensores sexuais, vários autores concordam que uma reação empática e calorosa do profissional para com o autor de violência sexual é um fator preponderante para o sucesso do atendimento (Carmel & Friedlander, 2009; Marshall et al., 2005; Oliver, 2007; Way et al., 2004). Por esse motivo, é importante estudar os fatores estressantes que possam impedir a realização dessa qualidade de vínculo terapêutico. Carmel e Friedlander (2009) indicam que os profissionais que possuem mais tempo de experiência, aqueles que têm características pessoais de maior autoconfiança ou ainda aqueles que sentem satisfação com o próprio trabalho, têm melhor percepção dos problemas enfrentados pelos clientes que cometeram violência sexual. Esse resultado não traz diferença no que diz respeito ao sexo do profissional, mulheres e homens relatam dificuldades e estratégias de atendimento, que visem à diminuição dessas dificuldades, de maneira semelhante. É importante assinalar que também vários autores apontam a necessidade de que as pesquisas, nessa área de atenção ao profissional que atende o autor de violência, se voltem para uma abordagem mais qualitativa, no sentido de conhecer quais reações desses profissionais podem interferir na condução do processo terapêutico (Carmel & Friedlander, 2009). Outros autores como Oliver (2007), Marshall et al. (2005) e Way et al. (2004) acrescentam que uma perspectiva qualitativa iria oferecer melhor compreensão darelação e de seus efeitos potencializadores sobre o enfoque terapêutico. Nossa contribuição se alinha nessa direção. 59 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 O Grupo Multifamiliar Os GMs foram conhecidos inicialmente pela denominação de Terapia Familiar Múltipla. As vantagens desta abordagem evidenciam que as famílias se sentem mais à vontade reunidas, quando há maior focalização nas suas interações. Segundo descrição pormenorizada de Laquer (1976/1983), os grupos são abertos, e as famílias vão ingressando ou deixando o grupo conforme necessário; os encontros são semanais com duração de uma hora e meia a duas horas e a coordenação fica a cargo de uma equipe terapêutica com terapeuta, coterapeuta e observadores. O critério para a seleção das famílias pode ser por condições semelhantes de problemas ou a seleção pode ser feita aleatoriamente quanto possível. O principal ganho desta forma de intervenção é quanto à aprendizagem de novas formas de comportamento pela pressão ou aprovação do grupo. Essas mudanças se dão por semelhança e identificação. Por semelhança, quando as famílias presenciam, em outras, seus conflitos, e por identificação, quando pais aprendem com outros pais, mães com outras mães, as soluções já encontradas. As famílias assumem um papel de coterapeutas, na medida em que já alcançaram mudanças, e desse modo funcionam como modelos, criando um foco permanente de excitação, já que sempre existem famílias em estágios diferentes. O Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais No caso do GM para adolescentes agressores sexuais, o critério de seleção das famílias é por semelhança de problemática. O GM que ora descrevemos baseia-se em Costa, Penso e Almeida (2005) e fundamenta-se nos aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária, b) da Terapia Familiar, c) do Sociodrama e, d) da Teoria das Redes Sociais. O GM para adolescentes ofensores sexuais é uma adaptação proposta como intervenção psicossocial que reúne famílias numa modalidade de atendimento “sob obrigação”, a partir de encaminhamento da Justiça e do Conselho Tutelar. Os adolescentes são encaminhados à instituição como parte do cumprimento de medida socioeducativa (artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, 1990). Essa participação “sob obrigação” é manejada por uma opção metodológica pela presença constante da ludicidade que atenua esse aspecto, e pela utilização de técnicas expressivas como desenhos, colagens e dramatizações que facilitam o acompanhamento do processo interventivo para os adolescentes e as famílias. Na atualidade autores do Reino Unido reconhecem que esses adolescentes se beneficiam sobremaneira de programas de atendimento com ênfase nas relações familiares (Hengeller et al., 2009; Marshall, 2001; Zankman & Bonomo, 2004). A opção metodológica do GM caminha nesse sentido. O GM ocorreu em cinco encontros onde foram desenvolvidos os seguintes temas: Proteção: “Eu devo proteger outras crianças, mas ainda preciso de proteção’’; Sexualidade: “É tempo da sexualidade desabrochar”; Abuso sexual é um crime: “O abuso sexual é um crime e uma violência”; Transgeracionalidade: “Precisamos conhecer nossos antepassados” e Projeto de namoro: “Ainda quero namorar muito”. Os adolescentes participantes e suas famílias tiveram como critério de inclusão no grupo: Adolescentes - sexo masculino; 12 a 18 anos; ser cliente do ambulatório ou ser encaminhado por qualquer entidade pertencente à Rede de Proteção da Criança ou do Adolescente; estar com os vínculos familiares preservados; ter denuncia de envolvimento em situações de violência sexual contra crianças; estar ou não em cumprimento de medida socioeducativa (Liberdade Assistida - LA, Prestação de Serviço Comunitário - PSC ou Semi Liberdade); Famílias – familiares residindo na mesma casa, familiares da família extensa como avós, tios, e outros, com envolvimento no problema, bem como vizinhos ou padrinhos também com envolvimento com o problema. Nesse texto, vamos enfocar os profissionais que desenvolvem ações com adolescentes ofensores sexuais, por meio de um recorte sobre a caracterização da experiência profissional que faz parte de uma pesquisa mais ampla sob o nome de “Grupos Multifamiliares com Adolescentes Agressores Sexuais”, e é realizada numa parceria entre o ambulatório já citado e uma universidade pública. Esse texto pretende contribuir como um estudo que descobre uma área ainda bastante desconhecida que enfoca o adolescente ofensor sexual e aqueles profissionais que os atendem. Para melhor atendimento a essa população é necessário se conhecer o que se passa com seus cuidadores (Marshall, 2001). Método Contexto A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de saúde mental, Centro de Orientação Médico Psicopedagógico – COMPP, unidade de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais. Esse ambulatório se situa em uma grande capital e atende população 60 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 proveniente de seu entorno. Em nossa realidade brasileira, inexiste estatística apurada sobre o registro de denúncias de abuso sexual contra crianças cometido por adolescentes. Mesmo em países de primeiro mundo, há um reconhecimento de que os registros são falhos. No entanto, Oliver (2007) e Marshall (2001) concordam que 1/3 dos casos de abuso sexual são cometidos por adolescentes. O site da Vara da Infância e da Juventude – VIJ/DF informa dados do CEREVS (Centro de Referência em Violência Sexual) referentes ao ano de 2010 (VIJ, 2010): violência sexual cometido a por irmão – 2,33%; cometida por primo – 5,81%; cometida por tio – 9,30%. Não encontramos números que indiquem a violência cometida por adolescentes. Esse dado seria fundamental para dimensionar adequadamente o fenômeno, pois existem estatísticas para tio, irmão e primo, e esses adolescentes ofensores sexuais, participantes da presente pesquisa, abusaram sexualmente de sobrinhos, irmãs ou irmãos e primos/as. O GM teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas seguintes etapas: agosto – treinamento da equipe e entrevistas com as famílias inscritas no GM; de agosto a dezembro – atendimento e supervisão dos GM com intervalos quinzenais e intercalados com atendimento/supervisão. Os temas desenvolvidos no GM foram propostos em função da experiência das autoras e em complementaridade do oferecimento de GM para vítimas (Costa et al., 2005). Os adolescentes integrantes desse GM tinham entre 14 e 17 anos, com escolaridade entre 5ª série do 1º grau e 3ª série do 2º grau, e renda familiar entre 500 reais e 1500 reais. Participantes Os sujeitos foram os componentes da equipe: 6 profissionais de Psicologia do sexo feminino, 2 estudantes de Psicologia do sexo feminino, 1 profissional do Serviço Social do sexo feminino e 1 profissional do Serviço Social do sexo masculino, no total de 10 participantes. Todos os 10 participantes estiveram presentes em todo o processo do GM, e seu status em relação à instituição está explicitado no quadro 1. Sexo Profissão/ status na instituição Idade (anos) Est. civil Filhos Tempo que atua com vítimas de violência Pós-graduação Tempo de formado Fem Estudante Psicologia/ estagiário 22 solteiro - 2 anos - - Fem Psicóloga da instituição 27 solteiro - 4 anos - 2 anos Fem Psicóloga da instituição 24 solteiro - 1 ano - 6 meses Fem Estudante Psicologia/ estagiário 22 solteiro - 2 anos - - Fem Psicóloga da instituição 50 solteiro - 10 anos Especialização 20 anos Fem Psicóloga supervisora/ academia 61 casado 2 10 anos Doutorado 35 anos Fem Psicóloga da instituição 40 casado 2 2 anos Especialização 16 anos Fem Assistente social da instituição 43 casado 2 8 anos Especialização 16 anos Masc Assistente social, mestrando/ academia 25 casado - 4 anos Graduação em Pedagogia, Aluno de Mestrado em Psicologia 3 anos Fem Psicóloga da instituição 31 casado 3 4 anos - 5 anos Quadro 1 – Informações sobre os participantes 61 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 Instrumento O instrumento constituiu-se em um questionário aberto enviado por correio eletrônico, para ser respondido e devolvido da mesma forma. Os itens constantes deste questionário foram: a) Dados pessoais; Formação; Tempo de atuação com violência; b) Você teve alguma dificuldade na participação do GM em função da presença de um ofensor no grupo? Qual? Por quê?; Como você classifica estas dificuldades: de ordem pessoal, profissional, emocional, etc.?; Ou, ao contrário, você não sentiu dificuldade? Por quê? Neste caso, qual seria o motivo pelo qual foi mais fácil lidar com esta situação; Qual o efeito sobre suas emoções, ao entrar em contato direto com o ofensor no GM?; Qual o efeito sobre seus conhecimentos, ao entrar em contato com o ofensor no GM? ; Qual o impacto sobre sua formação profissional, ao entrar em contato com o ofensor no GM? ; Qual o impacto sobre sua vida pessoal, ao entrar em contato com o ofensor no GM?; Você considera que seus conhecimentos sobre família, violência sexual e a metodologia utilizada foram suficientes para lidar com as consequências da presença do ofensor no GM?; Você sentiu necessidade de aprofundar alguma questão teórica ou metodológica para melhor lidar com a presença do ofensor no GM? ; Como você avalia esta experiência em termos de amadurecimento pessoal e profissional?; Sua visão sobre violência sexual, família, agressor sexual, criança/adolescente abusado mudou no decorrer do contato com o ofensor ? Em que sentido?; Das questões apresentadas pelo ofensor alguma lhe mobilizou mais? Qual? Como? Por que?; Este é um espaço para que você possa colocar alguma informação que ache relevante e que não foi prevista nas questões anteriormente abordadas. Procedimentos Após o término do GM, os questionários foram enviados a todos que participaram do mesmo, pela responsável pela pesquisa, que também foi a pessoa que se encarregou de cobrar e recolher as respostas. Entre o envio e a chegada das respostas passaram-se dez dias. A pesquisa foi inscrita no Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer nº 331/2009. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado antes do envio do questionário. Analise das informações González Rey (2005) propõe uma perspectiva da análise de conteúdo que se apoia na expressão de indicadores, que revelam os fenômenos e são unidades processuais. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação, que não possuem a pretensão de generalização, mas produzem um conhecimento que é contextual, próprio da experiência aqui relatada. Na prática, o procedimento para análise ocorreu da seguinte forma: leitura inicial das respostas; apontamento dos indicadores (falas, expressões); construção de núcleos de sentido (zonas de sentido) comum entre os indicadores apontados; interpretação do conteúdo subjacente dentro desses núcleos. Discussão e Resultados Após uma leitura de todos os questionários devolvidos, a partir da percepção dos indicadores, construímos 4 núcleos de sentido: 1) As reações emocionais e sentimentos dos profissionais frente aos atendimentos; 2) As dificuldades e/ou facilidades do enfoque técnico; 3) O contato com o agressor e sua família e 4) As questões relativas à opção metodológica pelo GM que envolve adolescentes e familiares. Em função de que o conjunto das respostas é composto por alunos e profissionais, achamos relevante que os resultados distingam o que pensam estes dois grupos, no conteúdo desenvolvido em cada núcleo de sentido. Inicialmente vamos comentar sobre o conjunto das características da equipe. São 6 psicólogos, 2 assistentes sociais e 2 estudantes de Psicologia, com idades que variam de 22 a 61 anos. Isto parece representar bem a realidade dos ambulatórios públicos de atendimento a esta população: uma maioria de jovens profissionais, com uma formação que se limita mais à graduação, sendo que neste grupo, são 5 graduados, 3 profissionais com especialização, um com mestrado e um com doutorado. Moulden e Firestone (2007), numa revisão de literatura sobre o tema da reação dos terapeutas ao atendimento de ofensores sexuais, indicam que, na realidade de língua inglesa, estes atendimentos são mais realizados por homens do que por mulheres. E ainda, 53% dos terapeutas de ofensores sexuais têm mestrado e recebem, por ano, cerca de 50 horas de treinamento continuado e supervisão. Em relação aos nossos participantes, a média de experiência no atendimento a situações de violência é de 4.7 anos. Temos no Brasil, uma realidade bem diferente na qual os psicólogos atuantes em contexto clínico são mais do sexo feminino do que masculino. Daí, compreendermos porque a supervisão é mencionada como um aspecto fundamental do 62 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 enfrentamento do estresse, como veremos abaixo. A média de idade dos participantes é de 37,62 anos, o que não podemos considerar como pouca idade. A média de idade das estudantes é 22. Nesse quesito entendemos que as idades estão dentro de uma condição razoável, sendo que dos 10 participantes, 4 são casados o que pode indicar uma possibilidade de maior experiência de vida. Sobre a amplitude das idades, estes autores acima citados (Moulden & Firestone, 2007) indicam que os efeitos sobre as emoções e sentimentos destes terapeutas não fazdiferença em relação à idade. O terapeuta com idade mais elevada pode acabar sofrendo de efeitos cumulativos da experiência do atendimento contínuo a esta população. Por outro lado, Carmel e Friedlander (2009) e Kadambi e Truscott (2003) chamam atenção para o fator maior idade como atenuante dos efeitos estressores sobre o profissional que atende tanto vítimas como perpetradores de violência sexual. Isto também está relacionado à distância de 2 a 35 anos da formatura que este grupo de participantes apresenta. Os autores pesquisados (Carmel & Friedlander, 2009; Firestone & Moulden, 2007; Kadambi & Truscott, 2003, 2009; Way et al., 2004) concordam que não necessariamente uma maior idade habilita o terapeuta a lidar melhor com esses conteúdos, mas sim a sua participação em supervisão, em discussão de casos e contato freqüente com colegas. Principalmente, o que temos a comentar é que, em função do atendimento a agressores sexuais estar ainda em um âmbito precário e incipiente em nosso país, necessitamos percorrer um longo caminho e avaliar melhor quais implicações trazem para estes atendimentos as características de formação e qualificação pessoal e profissional dos terapeutas em nossa realidade. Vamos agora apresentar a discussão construída nas zonas de sentido. Em cada zona de sentido vamos apresentar, logo no início, as falas dos participantes que serviram de base para a construção da discussão. 1) Reações pessoais: emoções e sentimentos Nessa zona de sentido vamos comentar sobre as reações apresentadas pelos participantes com relação aos seus sentimentos, às emoções vividas durante o processo do GM, no atendimento aos adolescentes e às famílias. seriam os abusadores. E ao longo dos encontros, fui tomada pela compaixão”. Profissional, feminino, 24 anos: “nos primeiros encontros do grupo, minhas emoções estavam mais voltadas para a vítima no sentido de pensar no sofrimento que a criança poderia estar enfrentando, a família, os pais. Então, os encontros e as discussões tiveram um efeito de mudança na compreensão que o adolescente também estava em sofrimento e desprotegido de sua família”. Profissional, feminino, 61 anos: “inicialmente sim, sentimento de repulsa. Acho que o sentimento veio por conta de imaginar estar diante de criminosos... As emoções foram de nojo no início, para pena no final e esperança no futuro... Pude restabelecer alegria e esperança com o trabalho com o adolescente”. Profissional, feminino, 50 anos: “eu sempre trabalhei com as vítimas me identificando com o sofrimento delas e rejeitando os agressores...O conhecimento subsidiou a atuação trazendo uma visão técnica científica e apaziguando as emoções”. Profissional, feminino, 43 anos: “empatia, pois já conhecia a maioria”. Profissional, masculino, 25 anos: “minha decisão para participação foi exatamente em razão da presença deles (os adolescentes)...a visão desses agressores como detentores de direitos humanos acima de qualquer entendimento reduzido sobre abuso sexual já me faz ter um controle maior das minhas emoções”. Profissional, feminino, 31 anos: “Inicio raiva ...e depois compaixão, vontade de ajudar, fiquei emocionada ... ao perceber o quanto eles queriam ser ajudados, estavam disponíveis ... evitar fazer julgamentos precipitados”. Profissional, feminino, 43 anos: “precisei estudar mais”. Profissional, feminino, 40 anos: Aluna, feminino, 22 anos: “no início, tive receio em como seria trabalhar com os “acredito sejam mais de ordem emocional, porque sempre adolescentes abusadores, mil hipóteses diagnósticas passaram olhei muito mais para o lado da vítima. Eu estava permeada pelo pela minha cabeça... foi uma forma de defesa, de receio, de preconceito cultural, com um misto de medo, repugnância e outros preconceito ... porque me coloquei no lugar da vítima e não sentimentos de desdém, visto que o público a ser trabalhado 63 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 conseguia vê-los como vítimas, tb, só conseguia vê-los como função dos sentimentos desenvolvidos pelo terapeuta sobre agressores”. o ofensor sexual. Neste caso, a falta de uma relação empática pode significar uma recidiva da agressão sexual, fazer mais uma Chama atenção as reações iniciais que são de revolta, vítima e interferir sobremaneira na avaliação de eficácia do repulsa, preconceito, condenação, seja porque já se trabalhou próprio terapeuta (Moulden & Firestone, 2007; Marshall et al., com agressores adultos, seja porque se remetem à vítima. Parece 2005). que a experiência anterior pode influenciar o contato com o Dois aspectos são interessantes e apontados como adolescente, no sentido de privilegiar uma ideia preconcebida de facilitadores: o papel da supervisão que auxilia quando indica delinquente. Foucault (1986) diferencia o sujeito delinquente do leituras e estudo, sobre o tema, e assim amplia o conhecimento sujeito infrator. O infrator é definido como aquele que infringiu prévio; e o fato de se gostar de trabalhar com esta população que as normas jurídicas estabelecidas, enquanto que o delinquente cria outra condição para se ver o adolescente de forma distinta é fabricado e submetido ao sistema judiciário que o nomeia, o em relação à vítima. Moulden e Firestone (2007) apontam estigmatiza e o controla. O que os profissionais relatam é que que a supervisão tem um papel cuidador sobre o profissional conseguiram refazer a trajetória de vê-los como delinquentes diminuindo o efeito estressor sobre ele. Do mesmo modo pensam e revê-los como infratores, principalmente como sujeitos de Carmel e Friedlander (2009), Kadambi e Truscott (2003, 2006). direitos, e reconsiderá-los como sujeitos em formação (Machado, Sobre este tópico ainda é importante notar que não há muita 2003). O conhecimento do que se passa com suas emoções, do diferença entre estudantes e profissionais quanto à expressão sofrimento experimentado em face do contato com agressores dos sentimentos e quanto à possibilidade de reformulá-los sexuais é aspecto fundamental para que haja continuidade no e construir a aproximação pessoal com o sujeito agressor. Na investimento afetivo e de expectativas em relação a esse cliente presente discussão, o que pode fazer a diferença é a fala do (Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi & Truscott, 2003; Way et único profissional masculino que diz não ter sentido dificuldade al., 2004). em estar com os sujeitos. Poderíamos pensar em influência de A possibilidade da vinculação afetiva com este adolescente gênero na percepção da avaliação positiva ou negativa? Carmel infrator está ligada a este caminho. Também está presente aí e Friedlander (2009) apontam que as mulheres não diferem a possibilidade de sair do âmbito simplesmente avaliativo e dos homens na possibilidade de fazer um bom vínculo com o recuperar uma trajetória da vida familiar e social do adolescente: agressor sexual, e que também a característica de autoconfiança os adolescentes também são vítimas e também sofrem. É do terapeuta pode significar uma diferença de menor estresse possível sair de uma ideia preconcebida para sentimentos no atendimento. Será esse o caso do assistente social masculino positivos. Carmel e Friedlander (2009) e Kadambi e Truscott que diz “a visão desses agressores como detentores de direitos (2003) enfatizam a presença de um sentimento de compaixão humanos acima de qualquer entendimento reduzido sobre que viabiliza a aproximação do terapeuta com o cliente agressor abuso sexual já me faz ter um controle maior das minhas sexual. Outro aspecto que faz diferença nas reações, ao longo emoções”? do tempo, sobre o estresse dos atendimentos é uma genuína sensação de satisfação com o trabalho executado. Madanes, Keim 2) Questões técnicas: facilidades e dificuldades e Smelser (1997) recomendam o desenvolvimento de algumas habilidades para o atendimento de adolescentes agressores Nessa zona de sentido vamos apresentar como os sexuais: amabilidade, controle das aversões, paciência, visão participantes perceberam os aspectos técnicos do atendimento de aspectos positivos, diminuição da posição crítica e atitude aos adolescentes perpetradores de violência, o que se constituiu acolhedora. O reconhecimentode que a violência não é só do como impasse e como facilitador no processo de contato com o adolescente, mas também da família e do meio ambiente, tema da violência. colabora para esta mudança e auxilia a disponibilidade do profissional para alterar seu ponto de vista. O atendimento Aluna, feminino, 22 anos: terapêutico a ofensores sexuais tem algumas características “... para não serem pegos de surpresa diante de algumas que têm que ser pensadas em particular. A empatia, que é situações, como medo dos agressores”. um sentimento fundamental na vinculação terapêutica, é um aspecto fundamental nesta relação e pode ser dificultada em Aluna, feminino, 22 anos: 64 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 “penso que não senti dificuldade ... esta é uma grande (2009) referem o atendimento às vítimas de violência expõe as oportunidade de crescimento profissional e pessoal”. vulnerabilidades e fragilidades pessoais que são percebidas pelo restante da equipe. Profissional, feminino, 27 anos: O que é interessante notar é que a dificuldade advém não ... pois me sentia incapacitada de lidar com isso não pelo do contato com a dor do agressor, mas sim de uma sensibilidade fator teórico-prático apenas, mas principalmente pelo impacto para a dor da vítima. Os estudos de Kadambi e Truscott (2003) emocional. apontam na direção de que não há muita diferença entre os efeitos estressores de quem trabalha com as vítimas ou com Profissional, feminino, 61 anos: os agressores. Há que haver sempre um espaço de suporte “depois mais fácil à medida que percebi que a violência para ambos os grupos. A supervisão oferece a oportunidade com adolescentes abusadores têm outras implicações que não é das reações que são particulares serem discutidas em grupo, claramente um crime. Consegui recuperar a percepção de que o transformando o contexto em possibilidade. Moulden e adolescente não está pronto, não está formado e ainda precisa ser Firestone (2007) mostram estatísticas que a maioria dos visto como alguém em construção”. terapeutas, que atendem ofensores sexuais, é do sexo masculino e são estes que também atendem adolescentes ofensores Profissional, feminino, 24 anos: sexuais. Já maioria dos terapeutas que atendem as vítimassão “sim, tive dificuldades no trabalho com os adolescentes, mulheres. Estas informações refletem uma realidade americana uma vez que tenho pouca experiência com pessoas dessa fase do ecanadense. Nossa realidade apresenta uma feição inversa, e desenvolvimento... E trabalhar com abusadores sempre mobiliza isto requer que estudos sistematizados e contínuos venham a por causa do aspecto da violência...”. serem estabelecidos, porque não temos nenhum registro dessas proporções em nosso país e nem do que isso traz de significações Profissional, feminino, 31 anos: para o atendimento clínico. As qualidades apontadas por “agora não tive nenhuma dificuldade, acredito que por já Kadambi e Truscott (2003) como desejáveis, capacidade de ter atendido um individualmente. Na ocasião deste atendimento expressar empatia – autoestima alta – capacidade de efetuar individual tive sim dificuldades, receio por não saber quem vinculação, não são necessariamente características ligadas à iria encontrar....as dificuldades anteriormente citadas foram idade ou ao sexo. superadas quando percebi que ele era uma pessoa também em Quando se trata de agressor sexual adolescente, a questão sofrimento, também vitima desta situação”. preventiva é primordial (Oliver, 2007; Sanderson, 2005), por isto é tão importante o atendimento a adolescentes ofensores Profissional, feminino, 43 anos: sexuais. A prevenção é relativa ao próprio adolescente e às “não, pois já trabalhava individualmente com eles e sua crianças, possíveis vítimas. E é interessante porque é também família. Mas quando iniciei nas entrevistas tinha muito receio e este sujeito que, por sua condição de ainda em crescimento, indignação. As supervisões me ajudaram a estar mais segura nos recupera no profissional os sentimentos positivos como atendimentos”. compaixão, para a retomada de uma atitude não defensiva e mais proativa de ajuda. Neste sentido, Oliver (2007) alerta para o Profissional, masculino, 25 anos: possível desconhecimento, por parte do adolescente, do quanto “trabalho com pesquisa sobre agressores sexuais há é errado ou pode causar prejuízo tocar uma criança de forma aproximadamente 4 anos e acredito ter atingido um certo ponto sexualizada. É o reconhecimento da condição não experiente do de segurança emocional e profissional para lidar com o tema, seja adolescente que pode reconduzi-lo ao lugar de direito à proteção direta ou indiretamente”. e orientação do qual este autor enfatiza, e Machado (2003) não abre mão. O que traz dificuldade são os sentimentos paralisantes, De novo, neste item, não há muita diferença entre a como o medo, o receio de entrar em contato com algo que percepção dos alunos e dos profissionais. Talvez, pelo fato de que representa perigo: o agressor sexual. O tema da violência o oferecimento de apoio a agressores sexuais ainda não seja uma mobiliza no sentido de desencadear reações de rejeição pelo ação amplamente sistematizada em nosso contexto psicossocial sujeito agressor e pelo ato cometido. Ou, como Correa et al. jurídico, as reações são bem semelhantes. Os profissionais, 65 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 assim como os alunos, ainda carecem de formação específica e experiência prática para este labor. Como foi dito anteriormente, a média de tempo de trabalho com esse tema é de 4,7 anos. Carmel e Friedlander (2009) concordam que o maior tempo de experiência no trato com agressores sexuais pode significar maior capacidade de lidar com o estresse dos atendimentos. Desse modo vemos como essa lacuna de programas oferecidos a essa população, e por consequência a lacuna de conhecimento sobre os efeitos de maior ou menor experiência do profissional, nos dificulta comentar nossa realidade. 3) As reações ao contato direto com o sujeito ofensor e sua família Nessa zona de sentido vamos apresentar as questões relativas ao contato direto com o ofensor sexual, as contradições presentes na família que comparecem ao GM incluindo um filho ofensor e um filho/a vítima. A ação interventiva sobre adolescente ofensor sexual é um desafio, ainda no momento, pois não temos nem histórico de ações nem descrição de trabalhos dessa natureza. Aluna, feminino, 22 anos: “inicialmente tive insegurança e medo de não dar conta. E pensei até que não me sentiria à vontade ao lado dos meninos...”. Profissional, masculino, 25 anos: “chamou-me atenção o fato de alguns adolescentes mencionarem a figura feminina como cuidadora ou vítima do masculino ... mas me sensibilizou no sentido de reiterar a importância de um profissional homem que ajude, dentre outros aspectos, a ressignificar o lugar o papel masculino”. Profissional, feminino, 31 anos: “... percebi que são todos vitimas e que sofrem pelo ocorrido... Foi muito interessante observar as crianças (irmãos) e vítimas, seu comportamento junto aos meninos e seu sofrimento por ter que estar ali.... a questão da punição imposta pela família, o isolamento... nós erramos mas já tá bom, chega” (referindo-se ao sofrimento imposto pela família). Profissional, feminino, 40 anos: “... pude ver o sofrimento deles, as dificuldades deles, a falta de manejo dos pais, dos familiares... O primeiro impacto é reavaliar a minha forma de realizar a proteção, de estar mais próxima da minha família, de estar com meus filhos, de compartilhar com eles...de ouvi-los...de verbalizar. O segundo é de permitir derrubar os preconceitos... sim, passei a entender a violência como um produto, um resultado e não como apenas um ato “horroroso”. Este conjunto de informações é essencial porque mesmo Aluna, feminino, 22 anos: em outros itens da análise, o contato com a violência e o sujeito “agora, após a participação no grupo, observo-os como agressor foi mencionado com ênfase. Fica clara a perspectiva de parte de um ciclo de múltiplas violências”. rejeição, pelo menos inicial, apontada pelos informantes. Essas falas mostram o quanto é fundamental maior conhecimento Profissional, feminino, 24 anos: sobre o tema “vicarious traumatization”. Mesmo que perspectiva “principalmente pelo fato do adolescente e sua família de rejeição possa ser desconstruída e reconstruída em aceitação estarem em sofrimento e precisarem de ajuda”. e compreensão, é fundamental este reconhecimento porque a vinculação terapêutica depende, em parte, dessa transformação Profissional, feminino, 61 anos: (Madanes et al., 1997; Oliver, 2007; Sanderson, 2005). O que “violência nesse ponto de vida pode não ser definitivo... O proporciona esta mudança é o contato direto com o sofrimento abusador vira vítima tanto quanto a vítima”. da família do agressor e com o sofrimento do agressor em particular. E aí a percepção desse agressor como uma vítima Profissional, feminino, 27 anos: passa a prevalecer, seja pelas dificuldades sociofamiliares, seja “alguns adolescentes tiveram só a punição e falta de apoio pela punição que a família já decretou a ele através de ações, que de suas famílias. E alguns familiares ainda têm dificuldades em são também muito violentas. É como se o adolescente saísse do perceber que os adolescentes também precisam ser protegidos e lugar de “lobo mau da família” para uma situação de igualdade que as mudanças têm que fazer parte de todo o sistema familiar”. de vitimização e sofrimento em relação ao restante dos membros da família. Scheela (2001) comenta que os terapeutas Profissional, feminino, 50 anos: apontam, no início de sua experiência profissional com esse “para minha vida pessoal foi surpreendente o crescimento. Eu tema, uma condição semelhante de rejeição ao trabalho, de tinha uma visão unilateral e preconceituosa”. apreensão quanto ao contato com o agressor, e de sentirem 66 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 muitas interferências em sua vida pessoal em decorrência dos atendimentos. Porém, esses aspectos são transformados em expectativa e disponibilidade à medida que eles compreendem a complexidade dos atendimentos e resgatam a dimensão humana dos sujeitos. Neste sentido, amplia-se a visão do sofrimento de todos com as mudanças nos relacionamentos nos subsistemas, irmãoirmão, mãe-adolescente, pai/padrasto-adolescente. A família, como um todo, passa por uma circunstância desestruturante, assim como acontece com as famílias das vítimas. O adolescente pratica uma violência que o atinge de volta. Este aspecto é relevante, pois aponta que o adolescente agressor sexual permanece sozinho, afastado de suas relações familiares e isto contraria o que coloca Oliver (2007), que enfatiza a importância do adolescente ter com quem compartilhar e conversar sobre suas fantasias sexuais. Este ponto corrobora a importância da relação próxima do profissional com o adolescente. Marshall et al. (2005) percebem como promissor o atendimento ao agressor sexual por meio de uma ação compreensiva, empática e de proximidade afetiva. Ainda outra particularidade diz respeito à reação do único respondente masculino, que disse que ficou impressionado com a crença já arraigada no adolescente de que a figura feminina é quem cuida e é também a vítima do homem. Estudiosos do gênero (Saffioti, 2002; Segato, 2010) argumentam sobre o poder social da construção dessa dependência feminina em relação ao masculino. Mas, parece que o profissional está apontando uma concepção contraditória a esta posição, na qual o homem depende da mulher e ao mesmo tempo é seu algoz. Moulden e Firestone (2007) apontam que não há diferença significativa do surgimento de estresse profissional em terapeutas masculinos ou femininos. O que pode ser importante e representar uma agravante, é a observação de que um terapeuta masculino, ao atender ofensores sexuais, pode desenvolver uma culpa coletiva, resultado de identificação de gênero, que poderá ter consequências sobre sua conduta sexual na vida privada. Ou, ainda, como Scheela (2001) aponta, que os terapeutas masculinos de ofensores sexuais acabam por desenvolver um cuidado maior em suas interações sociais com crianças incluindo preocupação com toques e intimidades. Parece não haver diferença entre as percepções de alunos e de profissionais no que tange aos sentimentos e preocupações pelo atendimento a esse público. Kadambi e Truscott (2003), Way et al. (2004), Carmel e Friedlander (2009) apresentam uma série de comportamentos que são vistos como danosos para o profissional e que são relativos aos efeitos dos atendimentos clínicos realizados pelos profissionais que entram em contato com histórias com conteúdo de crueldade. Esse aspecto não parece variar em função de maior ou menor idade. Todos os profissionais estão sujeitos a essas consequências. No entanto, Scheela (2001), ao fazer uma pesquisa qualitativa sobre esse tema, encontrou uma configuração mais ampla do que somente efeitos danosos. Com o passar dos anos os profissionais também apreendem melhor a complexidade dos comportamentos agressivos sexuais e isso os ajuda a mudarem uma postura de rejeição e sofrimento ante essas histórias. 4) OGM para adolescentes ofensores sexuais: possibilidade de intervenção Nessa zona de sentido apresentamos as reações da equipe diante de uma proposta de atendimento grupal para uma problemática dessa natureza, e a condição de atendimento que se dá a partir do adolescente ser visto em família. Aluna, feminino, 22 anos: “apesar de estar no oitavo semestre eu obtive poucas informações sobre esse tipo de trabalho”. Aluna, feminino, 22 anos: “O vínculo entre mãe e filho abusador... na maioria das famílias há um movimento de exclusão e isolamento desse adolescente... vistos como bandidos e marginais”. Profissional, feminino, 61 anos: “Pensar um trabalho interessante, com técnicas e estratégias lúdicas para adolescente”. Profissional, feminino, 27 anos: Reforço a questão da equipe, da importância das relações que criamos como grupo, de apoio, de compartilhar de aprendizado e experiências...” Profissional, feminino, 50 anos: Vejo o adolescente como alguém ainda em formação e alguns fatores familiares como a inversão de papeis, onde o adolescente fica responsável pelo cuidado dos irmãos menores propiciam o surgimento de situações que ele não sabe bem como lidar. O dormir junto com a irmãzinha, até mesmo para protegê-la de um medo noturno, traz proximidade física...” Profissional, masculino, 25 anos: 67 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 “... Meus conhecimentos sobre família, violências e metodologia estão em crescimento... Ainda preciso de melhor conhecimento de manejo de grupos” (técnicas e instrumentais práticos). Profissional, feminino, 31 anos: “Adotamos uma postura leve e descontraída com os adolescentes o que possibilitou entrar em contato com a temática sem inibir, acusar ou marginalizar. ...Neste sentido a metodologia utilizada foi fundamental, visto que permitiu aos mesmos se expressar e serem ouvidos...” Profissional, feminino, 40 anos: “... Eles conseguiram...me fazer pensar na constante construção do saber que vivemos e que quando achamos que sabemos muito, descobrimos que não sabemos é nada, que precisamos estar mais neutros dentro do grupo. Neutros de teorias e aptos a vivenciar o grupo...” Este item trata das reações frente ao atendimento grupal dos adolescentes e suas famílias, no qual as interações são privilegiadas. Parece quase comum a todos a queixa sobre a necessidade de aquisição de habilidades para atendimento em grupo. Tanto os alunos como os profissionais apontam que se sentem em prejuízo quanto ao manejo de atendimentos grupais. Isto se repete com relação também ao conhecimento específico sobre o tema do abuso sexual. Penso, Costa, Ribeiro, Almeida e Oliveira (2008) criticam o oferecimento de disciplinas clínicas no Curso de Psicologia que se voltam mais para os atendimentos individuais, com pouca consideração pela realidade prática, que indica para o fato de que os trabalhos nos contextos de saúde ou de assistência social atendem demandas excessivas, e não podem se organizar para atendimentos prioritariamente individuais. Parece que esta crítica reflete ainda uma menor preocupação do profissional com alguns anos de formado que não buscou até então um aprimoramento em intervenções grupais. Deste conjunto de pesquisados, apenas uma psicóloga tinha formação para clínica grupal. No entanto, todos responderam sobre a efetividade da intervenção grupal e sobre o quanto a observação das interações familiares afetou positivamente a compreensão deles sobre o adolescente. Ficou patente o quanto o GM proporcionou o conhecimento mais aprofundado sobre a relação entre a mãe e o filho adolescente. Assinalamos que a intervenção grupal requer desenvolvimento de habilidades técnicas para o manejo grupal, em uma abordagem lúdica e dinâmica, pontos importantes para um trabalho com adolescentes. O atendimento em grupo permitiu a responsabilização do ato violento sem abrir mão de uma perspectiva lúdica, necessária para estimular o sujeito alvo da intervenção, e criar um contexto facilitador para o cumprimento da demanda. Dos adolescentes presentes, vários estavam cumprindo medida socioeducativa em regime aberto, decretada pelo juiz. Os programas para essa clientela, desenvolvidos em países como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia oferecem formação continuada anual para seus profissionais. Esta zona de sentido aponta, diferentemente, as falhas na formação profissional das várias especialidades aqui enfocadas. Trata-se de reconhecer e criticar que as deficiências na formação profissional vão além do não conhecimento sobre atendimento em grupo, mas alcançam limites em relação às temáticas de violência, de execução de políticas públicas e de atendimento aos perpetradores de violência. Ainda cabe acrescentar um aspecto enfatizado por Moulden e Firestone (2007) que é a inclusão na formação profissional de aspectos preventivos e educativos sobre os efeitos danosos na subjetividade dos terapeutas em decorrência do atendimento a esta população de agressores sexuais. Sabemos que ainda temos muito poucas iniciativas de atendimento a este público, e aventamos a hipótese de que se as formações específicas incluíssem estes aspectos talvez mais profissionais se encorajassem nessa empreitada. Considerações Finais Esse texto buscou apresentar aspectos da caracterização da experiência de profissionais e estudantes de Psicologia e Serviço Social sobre atendimento grupal familiar a adolescentes ofensores sexuais. Não há em nosso país outras experiências publicadas o que torna nossa discussão limitada, podemos apenas tecer comentários frente a outras experiências da literatura internacional. Além disso, essa literatura identifica trabalhos a partir de escalas e instrumentos fechados com tratamento estatístico, o que facilita a observação de índices. Desse modo, essas avaliações do desempenho e/ou de necessidades e/ou de formação profissional oferecem maior condição de visualização e indicação de ações de apoio e capacitação a esses profissionais. Moulden e Firestone (2007) defendem que os profissionais que atendem ofensores sexuais devem ter suas reações estudadas diferentemente de outras categorias profissionais de cuidado, em função de um maior desenvolvimento de efeitos traumáticos nesse grupo, por conta do alto impacto sobre suas emoções e do risco de surgimento de traumas a partir da escuta repetida de 68 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69 histórias traumatizantes. Conhecer e identificar as emoções e reações dos profissionais frente às situações de violência é fundamental para lidar com esta temática. Para Marshall et al. (2005), as habilidades dos terapeutas representam um importante papel no tratamento destes ofensores, uma vez que estes últimos tentam evitar a responsabilidade de seus atos e/ou minimizam os prejuízos aos ofendidos. Os terapeutas têm função ativa no tratamento, sendo que suas características e estilo terapêutico contribuem para a eficácia no processo terapêutico, ao proporcionar ambientes facilitadores de expressão de sentimentos e seus significados. Scheela (2001) enfatiza o valor da pesquisa qualitativa que poderá elucidar melhor as particularidades desses efeitos traumáticos porque as aprendizagens e ganhos, no trabalho com essa população, também existem. Por isto, queremos enfatizar a contribuição deste texto na ampliação de como os profissionais e estudantes se sentem com o atendimento a esta temática e esta população, e que possa ainda mostrar a necessidade de implantação de políticas de capacitação continuada para esses profissionais. Ademais, queremos também enfatizar o Grupo Multifamiliar como uma metodologia adequada também para este tipo de clientela, em função da construção de um ambiente lúdico e grupal, o que facilita as interações e se vale dos próprios sujeitos como coautores da intervenção, como Zankman e Bonomo (2004), Henggeler et al. (2009) e Marshall (2001) indicam. Referências Carmel, M. J. S., & Friedlander, M. L. (2009). The relation of secondary traumatization to therapists’ perceptions of the working alliance with clients who commit sexual abuse. Journal of Counseling Psychology, 56(3), 461-467. Correa, M. E. C., Labronici, L. M., & Trigueiro, T. H. (2009). Sentir-se impotente: um sentimento expresso por cuidadores de vítimas de violência sexual. Revista Latino-americana de Enfermagem,17(3). Recuperado em www. urp.usp.br/rlae. Acessado em 20 Janeiro 2010. Costa, L. F., Penso, M. A., & Almeida, T. (2005). O Grupo Multifamiliar: um método de intervenção em situações de abuso sexual infantil. 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