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A iconografia de Sant’Ana,
entre signos e olhares
Dr. Marcial Maçaneiro
Faculdade Dehoniana
Com uma biografia incerta, mais devida aos textos apócrifos do que à verificação histórica, Sant’Ana foi além do sotaque galileu e da cor palestinense que lhe seriam
originais e tornou-se figura feminina inserida no horizonte da devoção, das reformas
eclesiásticas e dos reveses da sociedade colonial. Após séculos de percurso, ela se
apresenta como tela viva da devoção e das expectativas, receptáculo de olhares e interpretações. Sant’Ana é religiosidade, arte, promessa e registro d’alma.
No presente estudo, recordo o patrocínio de santa Ana para, depois, pousar
três olhares sobre sua iconografia: o olhar devoto – que desvela a “ratio imaginis”
da figura de Sant’Ana; o olhar decifrador – que lê os signos; e o olhar marrano – que
busca as reminiscências judaicas contidas nas representações.
1. O “patrocínio” de Sant’Ana
O patrocínio comporta as realidades das quais Ana é considerada padroeira e
decorre geralmente da vida exemplar dela, por similitude. Sempre que se verificam situações semelhantes àquelas vividas pela personagem Ana, tais situações se colocam
sob o seu patrocínio. Assim, esta mulher graciosa e agraciada (Hanna) se transforma em
padroeira das mães, esposas, donas de casa, avós e educadoras de moças. Ela roga,
junto de Deus, o patrocínio para seus devotos. O latim patrocinium equivale a “intercessão” ou “ajuda” e se liga às palavras patrona, padroeira e patrocinadora.
Esta variedade de patrocínios, por si mesma, já seria um tópico interessante
para a pesquisa histórica. Mas, aqui, prefiro apenas tratar de sua lógica. Em primeira instância, como disse acima, a lógica do patrocínio segue o viés da similitude: a
Ana avó = padroeira das avós; a Ana educadora = padroeira das educadoras, etc.
Em segunda instância, encontramos as variadas situações nas quais os acontecimentos locais conduziram o patrocínio de santa Ana pelo viés dos cenários. Assim,
Ana é padroeira da liberdade comunal na cidade de Florença (Itália), enquanto
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que, em Minas Gerais, é invocada como protetora dos mineradores. Há ainda a
possibilidade de outros patrocínios, pois o trânsito da personagem do mundo mediterrâneo ao ibérico e, posteriormente, ao sul-americano e brasileiro pode ter deslocado sua figura para cenários novos, reelaborando papéis e significados.
Um exemplo é a associação entre Ana e o tesouro ou moeda: parece um corolário do seu patrocínio entre os mineradores, de cujo ouro eram feitas as moedas
mais valiosas. A analogia Ana-tesouro é sugerida pela passagem de Mateus 13,1-9
(parábola do homem que encontra um tesouro escondido num campo; vende tudo
o que possui para adquirir o campo e, nele, o tesouro) que é o Evangelho proclamado na missa de 26 de julho, memória de Ana. Logo santa Ana se tornou padroeira dos moedeiros. Se, de um lado, a figura de Sant’Ana irradia a exemplaridade
da esposa-mãe virtuosa, por outro lado ela recebe significados que os muitos olhares lhe conferem, a cada tempo e lugar, com patrocínios objetivamente evocados e
subjetivamente sentidos.
2. Do patrocínio à iconografia
A iconografia de Sant’Ana é coerente com o seu patrocínio e tem uma tipologia conhecida. Vejamos uma breve caracterização:
Sant’Ana Raiz – mostra Jessé, pai de Davi, deitado ao chão, como que em sono,
de cujo corpo (ventre e costelas) emerge um tronco. Deste provêm ramos com frutos:
Davi, Joaquim, Ana e, por vezes, Maria. A intenção é reproduzir a ascendência davídica de Jesus, conforme anunciado pelo profeta Isaías: “Um ramo sairá do tronco de
Jessé, um rebento brotará das suas raízes” (11,1). É uma alegoria da genealogia messiânica: a figura nos transporta ao futuro, antevendo o salvador como fruto definitivo
da árvore que brota de Jessé, o tronco primordial. Chamada justamente de Árvore de
Jessé, há um tipo cristológico dessa representação, que aponta para o Messias como
foco interpretativo principal, com os demais personagens num nível anterior e teologicamente inferior. Algumas variantes (desde o séc. XII) trazem profetas e reis que
foram ancestrais de Cristo, segundo as genealogias neo-testamentárias do Messias (cf.
Mateus 1,1-17; Lucas 3,23-38). Com o passar do tempo, surgiu um tipo mariológico,
que destaca os avós de Jesus e sua mãe, Maria. “Apesar de restringida pela ContraReforma, a iconografia da Árvore de Jessé ainda inspirou obras em Portugal. No
Brasil, no entanto, ela é muito mais rara”.
Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de. “Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia
de sant’Ana”. In Topoi dez.(2002), p. 232-250. Disponível em < www.ppghis.ifcs.ufrj.br >.
Acesso: 16 mar. 2006.
Por exemplo, a pintura Visão do Carmelo do mestre de Flemalle, hoje no Museu Lázaro
Galdiano, Madrid: Jesus é o fruto mais elevado, que brota de Emerenciana e Sant’Ana Raiz.
MELLO E SOUZA, Maria Beatriz, op. cit., p. 235.
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Santas Mães – com Ana ao fundo (anciã), Maria em seu colo (jovem mãe) e Jesus
(menino) ao colo de Maria. Nesta figuração Maria e Ana se conectam, na linha das
santas mães bíblicas. A Espanha chama esta representação de Sant’Ana Tríplice. Na
Alemanha se diz St. Anna Selbdritt. Na Itália, Santanna Metterza, da contração do
florentino sant’Anna mi è terza ou m’è terza: Jesus é o primeiro, Maria é a segunda,
santa Ana me é terceira (na ordem do patrocínio). São muito apreciadas as pinturas
de Santanna Metterza de Masolino-Masaccio e de Leonardo da Vinci. Em MasolinoMasaccio, silente, estática e hierática. Em Leonardo, mais expressiva, dinâmica e
com toques lúdicos. Há também casos de Santas Mães esculpidas (algumas já no séc.
XIII), resultando numa obra de considerável volume e peculiar jogo de simetrias,
devido à posição dos corpos. Encontram-se ainda variações: Ana e Maria de pé, com
o menino Jesus ao centro; Emerenciana (suposta mãe de santa Ana) antes de Ana,
Maria e Jesus – tipo apreciado pelos carmelitas, cuja tradição ligava Emerenciana à
Ordem do Carmelo. Aliás, na pintura Visão do Carmelo de mestre Flemalle a ascendência de Jesus parte de Emerenciana, prostrada ao chão como prima radix (primeira
raiz). Outro detalhe é a presença do pombo que paira sobre o conjunto dos personagens ou exclusivamente sobre Jesus, quando este se encontra no centro, entre Ana e
Maria. Neste caso, a figura do pombo tem uma denotação cristológica, sinalizando a
identidade messiânica do “Cristo” – em grego, “aquele que é Ungido” (mashiah) pelo
Espírito Santo desde a concepção.
Sant’Ana Guia – representa Ana com Maria, geralmente de pé, sugerindo caminhada. Indica a função pedagógica de Ana e, muitas vezes, os olhares desta e de
sua filha se cruzam. Em alguns casos, Maria leva um livro. Noutros, Ana estende
um pergaminho que se desenrola até as mãos de Maria. Às vezes, no pergaminho
traz a frase Et egredietur virga de radice Jesse (da raiz de Jessé um ramo brotará:
Isaías 11,1). Outras vezes, aparecem os algarismos romanos de I a X, sinalizando o
decálogo (cf. Êxodo 20,1-17). Exemplos dessa representação são recorrentes na
Itália, Portugal, Espanha e Brasil.
Sant’Ana Mestra – de composição mais complexa, há um conjunto sugestivo de
elementos e posições corporais. Geralmente, santa Ana está sentada numa cátedra,
com Maria menina a seu lado ou próxima de seus joelhos, como que seguindo as
lições da mãe. Embora menina, Maria tem traços adultos: um sinal anacrônico de seu
futuro papel de mãe de Jesus ou, talvez, de sua capacidade de aprender a fé e as
virtudes – o que valorizaria a educação. Imagem originária do séc. XIII, o barroco
posterior preservou o livro que Ana oferece a Maria, sugerindo alfabetização, aprendizado, leitura e sabedoria. A cátedra, às vezes em estilo manuelino, lembra o simbolismo bíblico do trono. Em certas variantes, Ana é encimada por um pombo de
dupla denotação: a primeira, indicando que a Escritura que ela ensina foi inspirada
pelo Espírito Santo; a segunda, indicando que a maternidade de Ana é similar - embora não igualável - àquela de Maria, por serem gerações agraciadas (conforme Hanna, graça), ocorridas sob a custódia do Espírito divino. Esta segunda denotação é
Por ex. Sankt Anna Selbdritt do mestre de Frankfurt (1460), Museu do Palatinado, Heidelberg.
Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de, op. cit., p. 241-243.
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perceptível nas muitas imagens da maternidade de Ana e de Maria, ambas representadas sob a pomba do Paráclito. Afinal, seu quase pararelismo é uma herança das
narrativas apócrifas e da idéia bíblica de gerações providenciais, de Jessé até Jesus.
3. Sob o olhar devoto, a “ratio imaginis”
Ainda que Régis Debray classifique certas imagens sacras como imagens-ícone, o sentido estrito de ícone na arte litúrgica está longe de ser aplicado à representação de Sant’Ana Mestra. Neste caso, o olhar é um dos critérios de distinção.
Diante do ícone, o fiel cerra os olhos e inclina a cabeça. Pois antes de “ver” o ícone, o devoto “é visto” por ele: é do ícone que dimana a luz gloriosa do Verbo, em
cujo Corpo se encerra toda a divindade. O ícone goza da luminosidade e da eloqüência do Verbo, convidando o fiel ao silêncio de quem é visto e amado pelo
Divino. Já a imagem sacra ocidental (sobretudo a escultura) não goza da mesma
luminosidade ou eloqüência: é muda, na mudez cromática de sua plasticidade;
não ilumina, mas necessita ser iluminada. Eloqüente, neste caso, é o olhar devoto
que - carregado de sentido - mais vê a imagem, do que é visto por ela. O devoto
circunda a imagem de velas e candeias votivas. Daí a enorme diferença de perspectiva, profundidade e jogo de dimensões que distingue o ícone bizantino e a
escultura sacra ocidental.
Em termos estético-teológicos, podemos dizer que a ratio imaginis do ícone é
o splendor gloriae (esplendor da glória divina) na linha da shekiná bíblica assimilada pela teologia da encarnação do Verbo. A proclamação joanina de que “o Verbo
se fez carne e armou entre nós a sua shekiná (tenda, morada)” indica o evento estético da Palavra que assume forma e visibilidade humana (cf. João 1,14). O Deus
inefável faz tenda (shekiná) na carne humana. Por isso Paulo diz que em Cristo
“habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2,9). Jesus Cristo é o retrato divino pintado pelo Espírito Santo na tela da carne, tornando-se “ícone visível do Deus invisível” (Colossenses 1,15). Notemos que este versículo grego
diz exatamente “ícone” (eikon) e não imagem (eidon) ou figura (typos).
Então, qual seria a ratio imaginis das representações sacras ocidentais, como a
imagem de Sant’Ana mestra ou guia? Poderíamos encontrar resposta na arte decorativa ou no argumento da Biblia pauperum, que considerava a representação em
relevo ou vitral a Bíblia dos pobres iletrados. Mas ainda estaríamos na esfera segunda do funcional, enquanto que a ratio imaginis busca a esfera primeira do Sagrado.
Creio que a ratio imaginis das representações visuais – e particularmente da estatuária sacra – seja a memoria promissionum: a memória das promessas. Se o ícone
bizantino é splendor gloriae (esplendor da glória divina) enraizada na manifestação
carnal da shekiná, a escultura sacra ocidental é memoria promissionum (memória
Cf. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 54-60.
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das promessas divinas) enraizada na História da Salvação visivelmente celebrada
nos sacramentos católicos. O ícone nos insere no kairós: o tempo definitivo da
graça, que ilumina o presente com os raios da eternidade. A imagem ocidental, por
sua vez, nos insere no kronos: o tempo fugaz, que atravessamos com fortaleza e
esperança, amparados na promessa do céu futuro. Diante do ícone, o fiel – iluminado pelo esplendor divino – fecha os olhos e se sente participante do tempo da
graça (kairós). Diante da imagem ocidental, o fiel – amparado pela promessa divina
– abre os olhos e acende velas para caminhar sem tropeços, num peregrinar cheio
de reveses (kronos). Ambos buscam o futuro, mas por vias diferentes: o bizantinooriental, parte da glória que transfigura a história; o latino-ocidental, parte da história que se transfigurará futuramente na glória.
Mas, voltemos à imagem de Sant’Ana, sobre a qual o devoto ocidental pousa
seu olhar. Figura que rememora gerações, monumento cromático à Providência
divina que dirige os eventos do kronos (tempo histórico), Sant’Ana é receptáculo do
olhar esperançoso do fiel, cujo presente se vê amparado pela promessa futura do
céu. Essa memória das promessas deu à luz a Sant’Ana ocidental. O constante recurso a Isaías 11,1 o demonstra: o tempo vindouro proclamado pelo profeta não
diz respeito só a Cristo, mas dá sentido a todas as gerações que o antecederam (a
geração pela carne) e também àquelas que nascerão dele pela redenção (a regeneração pela graça).
É este olhar devoto que rompe o mutismo plástico das imagens, carentes de
voz e de luz. Pois sua voz e luz não são outras, senão a voz e a luz do Verbo salvador, que ressoa no coração do fiel. Um decorador vê Sant’Ana como decorador;
um artesão, como artesão; um curador de acervo, como curador de acervo; um liturgista, como liturgista. Somente o devoto a vê com devoção genuína, fazendo-a
falar. É o olhar devoto que nos ajuda a decifrar a ratio imaginis dessa representação, atingindo o ponto de toque entre sua forma (exterior-objetiva) e sua inteligibilidade (interior-subjetiva).
Praticamente todos os devotos que se confiam ao patrocínio de santa Ana estão
vinculados, pelo labor e pela esperança, ao futuro. Tanto o seu futuro pessoal, quanto o citadino. Mães, avós e educadores; mineradores e moedeiros – todos pousam em
Sant’Ana o olhar das promessas vindouras que amparam o presente e rumam para o
futuro. Sant’Ana é atestado mudo e estático desse futuro promissor que Deus provindencia, vencendo os limites de kronos, como a velhice e a esterilidade. Não por
acaso, a devoção à avó de Jesus se ambienta em contextos de esperança e expectativa, de produção e geração, sendo homenageada por quem trabalha e sonha, gera e
educa, sofre e festeja, com olhar no amanhã pessoal, familiar e social. Do séc. XII ao
XVIII a história se viu repleta de arautos do futuro: os cruzados e o sonho de conquistar a Cidade Santa; o gótico de arco quebrado apontando para o céu; as visões de
Elisabete de Schönau e Hildegarda de Bingen; Joaquim de Fiore e a “era do espírito”;
os navegadores e a busca da “Ilha Brazil”; Colombo e sua visão do novo mundo; os
cristãos-novos e a esperança da nova Terra Prometida; os cristãos-velhos e o peregrinar para a Jerusalém Celeste; a espera da volta de Dom Sebastião; Antônio Vieira e o
destino messiânico do Reino de Portugal. Pela devoção, os fiéis esperam ativamente
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o tempo vindouro que se concretiza pelo devir das gerações, pelo trabalho produtivo, pelo comércio e pela educação. O patrocínio de santa Ana o demonstra: mães e
avós = devir de gerações; mineradores e esposas = o trabalho e a produção; moedeiros = comércio e circulação da produção; avós, mães e religiosas = a educação das
moças, futuras mães, esposas e freiras.
4. Sob o olhar decifrador, os “signos”
a) A cadeira ou trono: Na representação das Santas Mães temos uma entronização corporal, com Jesus no colo de Maria e esta no colo de Ana. Neste sentido,
Maria é o trono messiânico de Jesus, como Ana é o trono profético de Maria. A Virgem se assenta nas profecias. O Filho se assenta no trono de Davi, ascendente régio
do messias. A cadeira, por vezes em estilo manuelino na estatuária colonial, é símbolo de posição magistral: abades, juízes, reitores, bispos e mestres ensinam ou sentenciam ex cathedra. A Virgem Maria igualmente, sob o título de Sedes sapientiae
(sede da sabedoria) é representada numa cátedra. Título, porém, de núcleo cristológico: Jesus é a sabedoria divina assentada ou entronizada no seio da Virgem
Maria. O latim sedes significa “cadeira” e originou os termos Sé (português), Sedia
(italiano) e Siège (francês). Evangelistas, doutores e doutoras da Igreja também são
representados “in cathedra” – similarmente à imagem de Ana mestra e Maria sedes
sapientiae. Teólogos e historiadores concordam ao observar certa imitação da figura de Ana em relação a Maria: a santidade de Ana imita a de Maria; a concepção
agraciada de Ana imita a concepção extraordinária de Maria; a Ana sábia e mestra
imita a Virgem Sede-da-sabedoria. Uma é como que o retrato da outra, na linha da
exemplaridade. Isto é visível na imagem de Sant’Ana Mestra, sobre sua cátedra
espaldada, decorada e proeminente, semelhante à figura da Virgem sedes sapientiae presente em estampas, pinturas e inclusive na chancela de prestigiosas universidades católicas, como a Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) ou a Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália) – ambientada na reforma tridentina. Ainda a
respeito do trono, observo que é um emblema messiânico caro ao judaísmo: não
podemos esquecer que Ana é uma figura judaica agraciada por ser fiel à Aliança,
honrando a sua linhagem davídica (segundo alguns) ou levítica (segundo outros). A
cátedra recorda discretamente a promessa do messias régio, que deverá assentar-se
sobre o trono de Davi: “Sentado no trono, com o poder real de Davi, fortalece e
firma esse poder com a prática do direito e da justiça” (Isaías 9,6); “Haverá um dia
em que farei brotar para Davi um rebento justo: ele reinará de verdade e com sabedoria, porá em prática a justiça e o direito” (Jeremias 23,5). Em Lucas, a concepção
de Jesus realiza essa profecia: “o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele
reinará para sempre sobre a descendência de Jacó, e o seu reino não terá fim” (Luca
1,32-33). Ainda hoje, as famílias israelitas reservam um assento para o futuro messias, como se deduz do simbolismo da cadeira de Elias no Rito do Séder (páscoa
judaica) ou na figura do trono vazio presente em alguns templos, como a Sinagoga
Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de, op. cit., p. 237.
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de Carpentras, França, construída no início do séc. XVIII – contemporânea de muitas imagens de Sant’Ana Mestra em Portugal e no Brasil.
b) O livro: Santa Ana é a santa do livro e da instrução das moças. No período
colonial, esta era uma função matriarcal (coincidência ou não, acontece o mesmo
na família judaica tradicional). Os conventos e internatos preparavam a moça para
o casamento e zelavam por sua virgindade. Mas eram as mães que iniciavam as
meninas no aprendizado da religião e das virtudes. Embora as moças aprendessem
a ler e escrever, a fazer as quatro operações aritméticas, a bordar e costurar, a educação religiosa e moral valia mais do que os conhecimentos intelectuais. E isso se
dava preferencialmente no lar, em contraste com a educação dos rapazes, mais
expostos à sociedade. Portanto, o livro que Ana apresenta à filha não indica apenas
educação literária, mas educação religiosa e moral.
c) A inscrição: É curioso examinar a inscrição presente no livro, nas imagens
de Sant’Ana Mestra. As inscrições mais recorrentes são:
Isaías 11,1 – Frase já citada: “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes”.
Salmo 24 – Salmo acróstico, que desfia seus versos a partir das 22 letras do
alfabeto hebraico. Corresponde à situação acadêmica da escola judaica (Yeshivá),
com aplicação ao ensino da oração e dos valores israelitas. As expressões caminho,
vereda, preceito; bondade, direito, retidão; temor divino, piedade e aliança – presentes no texto – evidenciam a força pedagógica deste Salmo.
Salmo 118 – outro salmo alfabético, com 176 versículos bem ordenados. O
texto insiste na excelência dos preceitos judaicos e sua utilidade para a educação
do fiel, incluindo o jovem. Destaca a devoção à Torah, a docilidade à instrução, a
bondade e a fidelidade divinas.
Provérbios 4 – Capítulo da literatura sapiencial que exorta os filhos a receberem docilmente a instrução dos pais. O verbo “escutar” encabeça as exortações,
remetendo ao Shemá Israel – prece máxima e atitude fundamental do fiel israelita:
“Escuta Israel! O Senhor é nosso Deus. O Senhor é único!” (Deuteronômio 6,4).
“Deus” – Simplesmente o Nome: ha-Shem, em hebraico; Deus, em latim. Inscrição complexiva que guarda todo o horizonte religioso das santas mães, de seu
percurso fiel e virtuoso e, como remate final, do filho Jesus. Além da brevidade do
Nome, os personagens é que se tornam uma “escritura viva” de Deus pela sua fé,
esperança e caridade exemplares.
I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X – Algarismos romanos de 1 a 10, remetendo ao
decálogo de Êxodo 20,17. Neste caso, os algarismos resumem as cláusulas da Aliança selada entre Deus e a humanidade no primeiro Israel, depois consumada por Jesus, no novo Israel. Não importa tanto a grafia dos algarismos, mas a realidade à qual
eles remetem: a Aliança, registrada nas Escrituras e transmitida pela educação.
Cf. Idem, p. 242.
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Magnificat anima mea Dominum – “Minh’alma engrandece o Senhor”, em
algumas representações, exclamação do louvor de Maria em Lucas 1,46.
d) O pombo: Figura presente, sobretudo na pintura, como dissemos acima.
Denota a geração abençoada de Maria e de Jesus, ao homenagear a maternidade
de Ana e Maria como dom (embora em graus diversos, pois somente Jesus é o Verbo humanado). Denota também a origem divina da sabedoria contida no livro (as
Escrituras judaicas) com o qual Maria é educada por Ana. Quando pousa sobre o
menino figurado entre as santas mães, o pombo representa a origem divina e a
unção messiânica de Jesus. Na base dessa representação está a passagem sinótica
do batismo de Jesus nas águas do rio Jordão, quando o céu se abriu, Deus Pai se
pronunciou e o Espírito Santo manifestou-se na figura de um pombo, que vem e
pousa sobre o Ungido de Deus (cf. Mateus 3,16; Marcos 1,10; Lucas 3,22).
e) Mão e dedos: Embora mais evidente nos ícones bizantinos, a mão com dedos delicados, às vezes longos, é um signo importante no cânon estético da Bíblia.
Por que? Porque indica as habilidades artesanais do oleiro, do tecelão e do escriba
– cuja caligrafia é considerada arte sagrada, dada a importância da letra como registro escrito da Palavra divina em hebraico. Sobre o simbolismo dos dedos na Bíblia, indico alguns textos: Êxodo 31,18; Salmo 8,4; Lucas 11,20; 2Coríntios 3,3.
Nesses textos, os dedos e a habilidade digital significam o Espírito Santo com seu
agir preciso e delicado nos corações e na inteira História da Salvação: ele é Digitus
paternae dexterae. No que se refere aos artistas que retratam Sant’Ana, precisaríamos investigar seu nível de familiaridade com o simbolismo bíblico em geral e o
grau de intenção no uso desse signo. Apesar disso, em muitas representações temos
a figura expressiva da mão, com dedos delicados ou em posição emblemática. É o
caso da Santanna Metterza de Masolino e Masaccio – atualmente na Galleria degli
Uffizi (Florença). Ana encontra-se guarnecida por anjos que estendem um manto
de damasco, ao fundo. Com rosto sereno e hierático, volta os olhos para o menino
Jesus e sobre ele pousa sua mão esquerda, sem, contudo, tocá-lo. A imagem sugere
bênção, mais que proteção, com os dedos estendidos. Não é difícil associar a mão
benedicente de Ana com a figura do pombo que paira sobre o menino em outras
representações. Além disso, Masolino abre um significativo espaço para a mão de
Ana, em face da Virgem e sobre a cabeça do bambin Gesù. Trata-se de uma posição de honra que destaca a mão e os dedos, além de valorizar a presença de santa
Ana. Há um resquício de gótico no quadro, pois Masolino era cultor desse estilo.
As cores são puras e os rostos têm perfil definido. Há corpos volumétricos de humanidade viva e pensativa, e a luz se concentra na madonna com o menino – conjunto executado por Masaccio. Quem acha que eu esteja supervalorizando o signo
da mão e dedos emblemáticos, recorde o lugar da bênção no protocolo familiar
mediterrâneo e ibérico e perceba, para espanto do admirador, a ausência intencional das mãos de Ana na versão de Leonardo da Vinci – hoje no Museu do Louvre
(Paris). Ele literalmente esconde as mãos benedicenti de Ana, para concentrar a
“Dedo da destra do Pai”: como diz o hino Veni Creator, síntese poética de pneumatologia
bíblico-patrística, composto por Rábano Mauro no séc. IX e cantado até os dias de hoje.
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atenção nos rostos sorridentes e focar o olhar do admirador na anatomia (sobretudo
da Virgem), cujo semblante esfumado colhe a luz com grande expressividade. Leonardo prefere destacar a simetria dos olhares, compondo uma linha em triângulo no
conjunto da pintura: uma composição em pirâmide, preenchida pelos corpos. E no
lugar dos dedos ou do pombo que paira (símbolos do Espírito Santo) ele propõe o
ambiente amplo e arejado de uma paisagem natural, ao fundo. Não há resquícios de
gótico. Longe de Donatello, Masolino e Masaccio, Leonardo joga luz nos semblantes
sorridentes e substitui o Espírito de Deus pelo espírito da Natureza. A meu ver, Leonardo ensaiou – com sucesso formal e cromático – uma versão mais lúdica e menos
sacra da Metterza. Além de não haver anjos nem auréolas ao redor das cabeças, Leonardo preteriu os signos sagrados comuns ao cânon estético da Bíblia, como o
pombo, os dedos delicados e a mão benedicente de Ana. É uma versão renascentista
e, em certa medida, secularizada da Sant’Anna Metterza venerada até então.
5. Sob o olhar marrano, a “cena iniciática”
Quero ressaltar o quanto a figura de Sant’Ana tem registrado a memória e manutenção da Aliança do povo israelita. Mesmo com uma devoção desenvolvida após a
vinda de Cristo, sua imagem é a da mulher fiel à Aliança dos ancestrais, que aguarda
o advento do messias e dele participa de modo direto, pois nela se cumprem as antigas profecias bíblicas. Pergunto-me se isso teria repercutido no cenário colonial,
marcado pelo messianismo lusitano e a presença dos cristãos-novos. Afinal, o substrato cultural de Sant’Ana preserva elementos judaicos: o nome Hanna (graça), a
afirmação das estirpes levítica ou davídica do casal, as referências à Galiléia e a BetLehem, a função matriarcal da educação moral e religiosa, o apelo explícito à profecia de Isaías e, sobretudo, a participação na geração do messias Jesus, nascido da filha Mariam (o texto apócrifo cita esta forma aramaica do nome Maria). O que a
imagem de Sant’Ana Mestra nos revela, se considerada sob o olhar marrano?
Em primeiro lugar, o olhar marrano reconhece na imagem a cena insólita do
que seria um bar-mitzva feminino (a rigor, um bat-mitzva). Pois a presença de uma
mestra, em posição de ensino, oferecendo o livro a uma mulher (adolescente ou
jovem) não só recorda a educação familiar, mas compõe o cenário celebrativo do
bar-mitzva, prescrito aos meninos israelitas quando completados doze anos de idade. No caso de um cenário judaico (como se supõe para Ana e Maria, aliás, Hanna
e Mariam) o que sugere o deslocamento da educação doméstica à celebração sinagogal? Justamente a presença do livro, cuja preciosidade o faz raro nas casas e,
conforme as regras, quase inacessível às meninas. O livro seria a própria Lei (Torah)
ou pelo menos uma das outras duas partes da Bíblia hebraica, os Profetas (Nebiim)
ou os Escritos sapienciais (Ketuvim). A estatuária barroca indica justamente os três
casos: o livro seria a Lei (indicada pelo decálogo), os Profetas (passagem de Isaías
11,1) ou os Escritos (citação de Provérbios e Salmos). Se o olhar devoto luso-brasileiro vê na cena a educação religiosa e moral das moças no lar, o olhar marrano
reconhecerá, sobretudo na presença do livro, os sinais de uma iniciação à Aliança
mediante o conhecimento das Escrituras.
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No bar-mitzva (“filho do mandamento”) os meninos celebram a maioridade legal
e mostram possuir o conhecimento positivo das Escrituras, cujo centro é a observância
dos mandamentos (mitzvot). A cena em que Jesus, ao doze anos, discorre sobre a Lei
entre os doutores do Templo sugere um bar-mitzva de sucesso, no caso de um adolescente pobre e galileu. Mas as meninas eram excluídas dessa cerimônia, em decorrência
da norma que as dispensa do conhecimento positivo da Torah. Assim, elas seguiam as
leis judaicas referentes ao seu gênero e estado (solteira ou casada, mão ou estéril), observando apenas alguns dos 613 mandamentos expostos no Talmud e na Mishná. Com
esta dispensa legal, as mulheres tinham mais disponibilidade para os afazeres conjugais
e domésticos10. Considerado isto, uma iniciação sinagogal no conhecimento da Lei
para a jovem Mariam está fora de questão11. Portanto, a cena iniciática de Sant’Ana
Mestra registra o valor crescente que a educação das moças adquiriu nos países ibéricos e, posteriormente, na colônia Brasil. Ou será que algum cristão-novo, psicologicamente familiarizado com sua herança judaica, nos teria deixado sinais de um bar-mitzva na escultura, numa manifestação velada de amor à Aliança? – Nesta direção, a
estatuária barroca de Sant’Ana Mestra apresenta três detalhes interessantes:
a) O texto de Provérbios 4 (indicado no livro) é um k’tub (escrito judaico) que
transcreve a filosofia de educação desenvolvida pelos mestres rabínicos ao longo
de séculos, prevendo situações em que a família israelita fosse habitar fora de Israel – como é o caso dos exilados e cristãos-novos. Os rabinos diziam: “Abençoado
é o filho que estudou a Torah com o pai, e abençoado é o pai que instruiu o filho”.
E ainda: “Treina uma criança no caminho que ela deve seguir; e quando ela envelhecer, não se afastará dele”12. Esta filosofia apela à responsabilidade dos pais e seu
estabelecimento nas comunidades judaicas ocorreu em 450 a.C., após o exílio
babilônico, quando o livro de Provérbios tomou sua forma definitiva. A mesma
exortação reaparece nas imagens de Sant’Ana Mestra que remetem ao capítulo 4
de Provérbios – livro apreciado pela educação judaica.
b) Maria está de pé, na posição típica do discípulo durante o bar-mitzva. Pois
quando o discípulo estuda na yeshivá (escola) ele fica sentado. Mas quando adquire
maioridade legal e proclama os versos da Escritura na sinagoga, ele o faz de pé. A
postura indica disposição para seguir o Caminho da Vida, que é o caminho dos mandamentos prescritos na Torah. É certo que, no Quarto Evangelho, João diz que Maria
estava “de pé” diante da cruz, em sinal de fé e fortaleza (cf. João 19,25). Mas o cenário da paixão é outro, bem distante do cenário da instrução representado nas imagens
de Sant’Ana Mestra. Em todo caso, Maria que lê ou aprende de pé as Escrituras coincide com a postura do estudante em bar-mitzva.
Segundo Adin Steinsaltz esta “distinção entre os sexos baseia-se numa divisão funcional
de tarefas, que são vistas como de orientação diferente, mas iguais em valor” (O Talmud
essencial. Rio de Janeiro: A. Koogan, 1989, p. 199).
11
Com o desenvolvimento do Judaísmo Reformista no século XX, algumas sinagogas passaram a admitir meninas para o bat-mitzva (“filha do mandamento”). Apesar disso, tal prática
não é consensual no mundo judaico.
12
Ditos rabínicos apud AUSUBEL, Nathan. Conhecimento judaico, vol. II. Rio de Janeiro: A.
Koogan, 1989, p. 709-710.
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538 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
c) O dedo indicador sobre o livro não é um gesto corriqueiro, mas expressão do
aprendizado e aplicação às lições contidas na Escritura Sagrada. Em qualquer idioma,
a iniciação à prática da leitura sempre exige cuidado e atenção. É interessante notar
que, no método de leitura das escolas israelitas (yeshivot) e sinagogas (bet-midrash) os
dedos eram úteis para que os olhos não perdessem o rumo das letras, já que a escrita
hebraica é um código complexo do ponto de vista gráfico e gramatical. Nas celebrações, o dedo indicador poderia ser envolto no “manto de orações” (talit) a fim de seguir
as letras sem macular os rolos em pergaminho das Escrituras Sagradas. Por necessidade
de exatidão na leitura e pela preciosidade dos pergaminhos, a sinagoga criou um instrumento auxiliar para os leitores da Torah: uma varinha, em madeira ou metal, com
cerca de 20 cm, cuja extremidade termina na forma de uma pequena mão com o dedo
indicador estendido. Este bastonete se chama exatamente yad – dedo, em hebraico. O
yad é encontrado nas escolas e sinagogas. É interessante notar que algumas imagens de
Sant’Ana Mestra mostram a pequena Maria em ato de leitura, com o dedo indicador
seguindo a inscrição. Em Santa Catarina, uma imagem portuguesa de Sant’Ana Mestra
do séc. XVIII, dourada e cromada, apresenta Maria lendo o livro: sua mão direita tem o
indicador estendido na direção do texto, sem, contudo, tocá-lo. A posição é idêntica
ao yad das sinagogas. Além disso, o observador atento percebe um efeito de luz todo
particular: a sombra projetada no livro desenha um perfeito yad sobre suas páginas
abertas13. Algo muito sugestivo, se considerarmos o fato de que este tipo de imagem era
esculpido para ser visto e interpretado pelos fiéis, com o propósito de instrução e edificação espiritual14. Outra imagem, em Minas Gerais, é bastante expressiva. Trata-se de
pequenina Sant’Ana Mestra para oratório, também do séc. XVIII, guardada em Diamantina: o escultor optou por uma representação nada simples, com Maria à esquerda
de Sant’Ana, numa posição quase desconfortável, de maneira que Ana possa guiar o
braço direito da menina – novamente com o dedo indicador estendido – para conduzir
sua leitura. Observando o ato na perspectiva das personagens, vê-se claramente o yad
que toca o livro, garantindo exatidão e aprendizado. O indicador estendido da pequena Maria configura um perfeito yad, regido pela mão educadora de Ana15.
Considerações finais:
a) Exemplaridade feminina – O primado da mulher nas representações de
Sant’Ana é inegável. Testemunha a vigência do feminino no universo patriarcal
judaico-cristão. O fato de Joaquim e José estarem em segundo plano ou ausentes
na maioria das pinturas e esculturas, exalta ainda mais a exemplaridade da mulher
virtuosa. Exemplaridade firmemente alicerçada em mulheres bíblicas, como Sara
(mãe de Jacó), Ana (mãe de Samuel), Isabel (mãe de João Batista) e Maria (mãe de
Sant’Ana Mestra (autor anônimo), Museu Histórico Municipal de Urussanga, SC.
Como acontece com certas simbologias doutrinais e alegorias de instrução moral, figuradas para serem “lidas” pelo olhar devoto. Cf. ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e análise.
Rio de Janeiro: Perspectiva, 1997, p. 181.
15
Sant’Ana Mestra (autor anônimo), Museu do Diamante (n. 165 do Inventário), Diamantina, MG.
13
14
Marcial Maçaneiro - 539
Jesus). O aparecimento de Emerenciana em algumas representações particulares é
instigante: na mencionada pintura Visão do Carmelo (de Flemalle) ela ocupa o lugar tradicionalmente atribuído a Jessé, na qualidade de prima radix (primeira raiz)
e altera, deste modo, o referencial masculino da Sant’Ana Raiz. Vê-se, portanto, a
força arquetípica e mística da santidade matriarcal. O Concílio de Trento aplicouse à correção de perspectivas que a soteriologia (sempre cristocêntrica) exige no
pensar, celebrar e expor a fé – sobretudo ao considerar o culto das relíquias, dos
santos e de suas imagens16. Contudo, isto não apaga os séculos de hermenêutica
patrística e inclusive medieval, que consolidou as “santas mães” bíblicas como
prefigurações da Nova Aliança e da própria Igreja Cristã17.
b) Educação às virtudes – Sem restringir-se à educação acadêmica ou escolar,
a imaginária de Sant’Ana Guia e, mais ainda, Sant’Ana Mestra, registra a importância que a educação religiosa e moral das moças atingiu na sociedade, especialmente dos séc. XVI a XVIII. A função pedagógica da mãe no lar se reflete claramente nas
representações, inspirada nas narrativas bíblicas e construída pela Moral das Virtudes, tão preciosa ao cristianismo ocidental. A Moral das Virtudes é uma evolução
da Teologia da Graça: ela mapeia o desenvolvimento das virtudes teologais (fé,
esperança, caridade) e cardeais (prudência, justiça, fortaleza, equilíbrio) na vida do
fiel. É minuciosamente tratada na Academia teológica e se traduz nos sermões, na
orientação espiritual e na instrução religiosa com todos os seus meios edificantes,
incluída a imaginária sacra. Assim, a figura de Sant’Ana como mulher virtuosa encontra base teórica na Moral das Virtudes e adquire plasticidade nas representações artísticas.
c) Dialética entre o verbo e a carne – O olhar atento localiza uma dialética
entre o verbo e a carne, especialmente na representação das Santas Mães e Sant’Ana
Mestra. O verbo procede do pai e denota o masculino. A carne procede da mãe e
denota o feminino. O verbo fala, instrui, narra, poetiza e cria realidades ao se pronunciar. Na doutrina cristã, é tipicamente Palavra do Pai. A carne, por sua vez,
engendra, forma, confere plasticidade, visibiliza e gera ao ser fecundada. Na doutrina cristã, é tipicamente atributo materno. Do lado do verbo temos Jesus Cristo, o
Verbo divino por excelência. Do lado da carne temos as mães Ana, Isabel e particularmente Maria, que dá corpo ao Verbo. Assim, as representações mantêm uma
extraordinária coerência com a afirmação joanina: “A palavra se fez carne” (João
1,14). Na imaginária que analisamos, a carne é representada pelas mães, com particular destaque para Maria, corolário místico e artístico da devoção a santa Ana. Já
o verbo é representado por Jesus menino (no caso das Santas Mães) ou pelo livro
(no caso de Sant’Ana Mestra). A figura do menino Jesus comunica o Verbo encarnado de modo explícito: ele é o “bendito fruto do ventre” de Maria, oferecido por
ela ao olhar devoto (cf. Lucas 1,42 e Gálatas 4,4). O livro, por sua vez, o comunica
de modo implícito: pois a palavra divina que as Sagradas Escrituras registram se faz
Cf. CONCÍLIO DE TRENTO, Sessão 25, de 4 de dezembro de 1563.
É o caso de Agostinho, que interpreta Ana (mãe de Samuel) como símbolo prefigurativo da
Igreja Cristã: Cidade de Deus, livro 17, capítulo 4.
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pessoa viva em Jesus, o Verbo encarnado. Nos dois casos – oferta de Jesus menino
ou das Escrituras, pelas mãos de Ana e Maria – a carne torna presente o verbo.
Assim, se perpetua a dinâmica da encarnação que, no cristianismo, é a norma estético-doutrinal da arte sacra, na linha de Colossenses1,15: “Ele (o Verbo encarnado) é o ícone visível do Deus Invisível”18.
d) A visão de futuro – A visão de futuro (ou o futuro como visão) é o horizonte
vislumbrado pelo olhar devoto ante as representações de Sant’Ana. No caso analisado, as pessoas que se confiam ao patrocínio de Sant’Ana convergem, cada qual
por caminhos próprios, ao amanhã pacífico, feliz e promissor: avós e mães; esposas
e educadoras; mineradores e moedeiros; cidadãos livres (no caso de Florença). E
não poderia ser diferente: acaso uma imagem, símbolo ou emblema que não remeta a um horizonte de esperança seria suportável ao olhar devoto, imerso nos limites
do tempo e do espaço? Penso que não. Sobretudo nos quadros do catolicismo mediterrâneo e ibérico, onde até o Crucificado irradia a esperança longínqua de assumir em si as dores humanas para trazer-lhes, de algum modo, redenção. Que o
observador apressado não se engane: a devoção ocidental à Paixão não termina na
corrupção da carne, mas é passagem dolorosa para a sua redenção: no kronos, redenção ainda esperada pelo fiel sofredor; no kairós, já realizada em Cristo, que nos
aguarda na eternidade feliz. Em parte, a falta de conhecimento sobre escatologia
limita a análise de qualquer perito que se dedique ao fenômeno religioso e seus
registros artísticos e cultuais. E isso se complica ainda mais, quando nos deparamos
com os messianismos entranhados na cultura brasileira em geral, e barroca em
particular. O devoto de Sant’Ana a olha padecente, mas esperançoso quanto ao
futuro que dá sentido à sua prole, ao seu trabalho e à sua prece. O amanhã invade
seu presente na forma de esperança devota. É esta esperança que dá voz e luz ao
mutismo da imagem sacra ocidental: eis porque os devotos a olham tanto, se comovem diante dela e lhe acendem velas.
e) Substrato judaico – Há um substrato judaico admissível nas representações
de Sant’Ana, enquanto componente histórico e simbólico que o cristianismo herdou do judaísmo e reelaborou, sem destruir. Porém, os indícios que indiquei ao
analisar detalhes pedem ulteriores verificações. Estudar o substrato judaico-messiânico da devoção a Sant’Ana, vista pelos marranos que esperavam prosperar em
terras brasileiras, é sugestão que partilho com os historiadores.
A encarnação do Verbo é norma doutrinal e estética da arte sacra, sobretudo do ícone,
como lemos em P. Evdokimov, H. U. von Balthasar, S. Dianich e I. Rupnik. Cf. “Ratio imaginis: expérience théologique, expérience artistique”. In Vivens homo Jan-Jun(2001) – Simpósio internacional “Experiência teológica & experiência artística” (Firenze, 16-28/09/2000).
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