a cultura japonesa na tradução de o mestre de go

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a cultura japonesa na tradução de o mestre de go
A CULTURA JAPONESA NA TRADUÇÃO DE O MESTRE
DE GO
Ariel Lara de Oliveira*
Professor: Andrei dos Santos Cunha
RESUMO: O Mestre de Go, de Kawabata Yasunari, é típico da produção do escritor, por seu estilo belo e
poético, e devido à temática, comum em seus romances, de aspectos da cultura japonesa tradicional. Sendo a
cultura japonesa muito diferente da brasileira, esse é um ponto chave na tradução de qualquer obra do autor, e
ainda mais neste caso, pois o go – complexo jogo de tabuleiro cujo objetivo é dominar um território maior do
que o do adversário – é não apenas o tema central como o mecanismo que faz mover a narrativa. O trabalho
visa identificar como a tradutora Meiko Shimon, especialista na obra de Kawabata, ajuda a explicar e traduzir
o go e outros aspectos da cultura japonesa presentes na obra, contribuindo para um entendimento da estética
do escritor. O corpus da pesquisa consiste na tradução brasileira do livro, artigos escritos por Shimon, e uma
entrevista pessoal realizada com a tradutora, abordando os assuntos Kawabata e a tradução deste e de outros
livros do autor. Os procedimentos utilizados serão descritos fazendo-se uso de conceitos da teoria da tradução
de Lawrence Venuti. Entende-se que a abordagem de Shimon para a tradução cultural busca contemplar as
necessidades e expectativas do leitor brasileiro contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Japonesa, Kawabata Yasunari, Tradução.
ABSTRACT: Kawabata Yasunari’s The Master of Go is representative of the author’s work for its beautiful
poetic style and its focus on traditional Japanese culture focused theme, which is usual in many of
Kawabata’s work. As Japanese culture is quite different from Brazilian culture, this becomes a key point in
the task of translating any of the writer’s works, and even more so in the case of The Master of Go, since go –
a complex board game in which the player must dominate a larger territory than the opponent – is not only
the central theme of the book but also the means through which the narrative evolves. This paper aims to
identify how translator Meiko Shimon, an expert in Kawabata’s oeuvre, explains and translates go and other
aspects of Japanese culture in the text, adding to a better understanding of the author’s aesthetics. The corpus
consists of the Brazilian translation of the book, articles written by Shimon and a personal interview with her,
on Kawabata and the translation of this and other novels of his. The analysis will make use of some concepts
proposed by Lawrence Venuti in his works of translation theory. We understand that Shimon’s approach to
cultural translation aims to meet the needs and expectations of the modern Brazilian reader.
KEYWORDS: Japanese Literature, Kawabata Yasunari, Translation.
Chuse an Author as you chuse a Friend:
United by this Sympathetick Bond,
You grow Familiar, Intimate, and Fond;
Your Thoughts, your Words, your Stiles, Your Souls agree,
No longer his Interpreter, but He.
Wentworth Dillon, Essay on translated verse, 1684
Introdução
*
* Jornalista, graduando em Letras, Bacharelado Tradutor Português‐Japonês, UFRGS. Email: <[email protected]>. Conhecido por seu estilo poético e sutil, de uma beleza rica em detalhes e referências,
Kawabata Yasunari (1899-1972) é um dos maiores escritores japoneses da modernidade.
Sua obra busca inspiração em aspectos da literatura e da cultura tradicional japonesas, que
servem como guia estético e foco temático das suas narrativas. Sua prosa, além de
extremamente poética, costuma fazer muitas referências à literatura japonesa, motivo pelo
qual o tradutor Edward Seidensticker afirma que Kawabata é um autor japonês dos mais
difíceis de traduzir (Seidensticker apud Shimon, 2000).
O Mestre de Go, romance seriado em revista em 1951 e publicado em livro em 1954,
é considerado por muitos como uma das obras mais importantes de Kawabata. Embora seja
em muitos aspectos representativo do estilo do escritor, tem uma diferença fundamental em
relação a suas outras obras: é baseado em fatos reais. O autor tinha sido convidado pelo
jornal Mainichi Shinbun a escrever uma série de reportagens sobre a última partida do
mestre de go, Hon’inbô Shûsai, contra o seu desafiante Kitani Minoru, em 1938. Menos de
dois anos depois, com a morte do mestre, Kawabata tem a ideia de transformar suas
reportagens em um romance, alterando alguns nomes e datas das reportagens originais,
explorando mais o ambiente da partida, expandindo personagens. O resultado é uma obra
profunda, com diversos níveis de interpretação e uma narrativa vigorosa e sutil (Shimon,
2000).
Como em outras obras de Kawabata, O Mestre de Go trata de um aspecto tradicional
da cultura japonesa, além de abordar, ao longo da narrativa, diversos outros. Assim, uma
tradução deste livro precisa de uma abordagem cultural, tentando explicar o funcionamento
do complexo jogo de go e as diversas outras referências culturais que Kawabata faz. O
objetivo deste trabalho é identificar como a tradutora da edição brasileira, Meiko Shimon,
apresenta o go e outros aspectos da cultura japonesa, contribuindo para um melhor
entendimento da obra de Kawabata. Como base teórica, serão utilizados trabalhos da
própria tradutora, especialista na obra do autor, e uma entrevista feita com ela sobre
Kawabata e a tradução do livro. A análise será feita utilizando os conceitos de
estrangeirização e domesticação da teoria de tradução de Lawrence Venuti (1999), além de
eventuais comparações com a tradução para o inglês de Edward G. Seidensticker (1996).
1 Sobre Yasunari Kawabata
Nascido em Osaka em 1899, Kawabata ficou órfão dos dois pais antes dos dois anos
de idade, quando passou a ser criado pela avó, que morreria quatro anos depois. Sua irmã,
quatro anos mais velha, fora criada, após a morte dos pais, pelos tios, e ele só a
reencontrou uma vez antes de sua morte na adolescência. Passou a viver apenas com o avô
cego, até seus treze anos, quando também este morreu. Kawabata, completamente sozinho
com mais essa morte, virou interno no colégio em que então estudava. Como forma de
lidar a morte do avô, escreveu Jûrokusai no nikki (Diário dos meus dezesseis anos),
publicado em 1925. Nesse livro, o texto de Kawabata já apresentava uma excepcional
qualidade artística, com trechos que já anunciam seu posterior estilo modernista. Donald
Keene afirma que é “uma extraordinária evocação das relações entre o menino e o ancião
em seu leito de morte” (KEENE, apud SHIMON, 2000, p. 54), complementando que
Kawabata já expressava, com infalível escolha de detalhes, o amor e o desgosto que a
agonia do avô lhe despertara. Apesar de ser um trabalho extremamente maduro, o autor
sempre afirmou, posteriormente, que encontrou anos mais tarde os originais de quando
tinha 16 anos e os publicou sem qualquer alteração, o que gerou na crítica dúvida e
controvérsia. Sobre a influência dessa infância trágica na obra de Kawabata, diz Shimon:
Os pesquisadores são unânimes em considerar que as experiências de tantas
perdas precoces dos entes familiares trariam marcas psíquicas ao escritor ao
longo de sua vida. (...) Todavia, ele próprio rejeitava tais ideias e preferia
acreditar ter superado todos esses infortúnios, afirmando que havia alcançado
uma maturidade emocional para registrar a morte do avô em seu diário.
(SHIMON, 2000, p. 54)
O gosto pela literatura já existia desde cedo. Aos doze, Kawabata organizou uma
coletânea de dois volumes com poemas em estilo ocidental – hoje perdida. Da época,
restam diversas cartas e outros manuscritos comprovando sua extrema habilidade com a
escrita. É também nessa época que começou a se interessar pela literatura clássica japonesa.
Quando se tornou interno no colégio, após a morte do avô, Kawabata já tinha decidido que
seria escritor, enviando poemas, contos e romances experimentais para jornais e revistas.
Aos dezessete anos já tinha vários de seus contos publicados.
Quando se mudou para Tóquio para cursar literatura inglesa (que depois trocaria por
literatura japonesa) na Universidade Imperial (atual Universidade de Tóquio), teve muito
contato com outros escritores da época, formando um círculo de amigos e influências,
entre eles Kikuchi Kan e Yokomitsu Riichi. Kikuchi era um escritor já consagrado que
tinha um bom radar para novos talentos, encorajando jovens escritores como Yokomitsu e
Kawabata e os encaminhando para a carreira literária. Sob influência do modernismo
ocidental, Kawabata participava ativamente de movimentos literários modernistas no Japão,
fundando, com Yokomitsu, o periódico literário Bungei Jidai (Era da arte literária) e
participando do corpo editorial da mais importante revista de literatura do Japão (tanto
naquela época como hoje), a Bungei Shunjû (Quatro estrações da arte literária) de
Kikuchi. Aos dezoito anos, fez uma viagem pela região de Izu que daria origem, oito anos
mais tarde, ao romance Izu no Odoriko (A Dançarina de Izu). O romance apresenta a
complexa estrutura do teatro clássico japonês, com o narrador no papel do waki do teatro
nô, na função de dar maior brilho ao shite (Keene apud Shimon, 2000). Esse narrador waki
introduzindo um shite é bastante comum em obras posteriores de Kawabata. Foi o processo
de aprimoramento desse romance que, segundo Lewell (apud Shimon, 2000), ajudou
Kawabata a estabelecer seu estilo literário: a temática do amor impossível, a delicada
justaposição de ideias e imagens, a súbita mudança de ambiente.
Em 1968, em sua palestra de recebimento do prêmio Nobel, Utsukushii Nihon to
watashi (O Belo Japão e eu), Kawabata versou sobre sua visão de mundo concebida dentro
da estética tradicional japonesa (como faria ainda em outras palestras sobre o tema até sua
morte). Ele destacava como sendo a essência dessa estética os elementos yuki-tsuki-hana
(neve, lua e flor), e cita o verso
Setsu-getsu-ka no toki, mottomo tomo o omou
Em tempos de neve, de lua e de flores, mais penso nos amigos (SHIMON, 2000,
pg. 11).
Igualando os amigos ao ser humano como um todo, para Kawabata o trinômio neve-luaflor corresponderia, na concepção japonesa, a todo fenômeno natural, incluindo os
sentimentos humanos.
Talvez por isso, sua obra traga duas das mais clássicas concepções estéticas da
cultura japonesa, o mono no aware e o okashi. A primeira é a emotividade subjetiva
presente, principalmente, na obra de Murasaki Shikibu, Genji Monogatari (O Romance do
Genji), do século X. A segunda é a racionalidade objetiva, presente na obra de Sei
Shônagon, Makurano Sôshi (O Livro de Travesseiro), também do século X. As duas
autoras têm estilos literários bem diferentes e essas duas concepções estéticas são
contrastantes. O okashi consiste em observar o que é interessante ou belo de maneira muito
racional, mas com muita sensibilidade; o mono no aware é o desabrochar da emoção, a
reflexão sobre a elegância, delicadeza, tranqulidade, a beleza fugaz, e é um conceito muito
ligado à ideia de impermanência do budismo (Shimon, 2000). O esforço de Kawabata em
unir essas duas correntes opostas demonstra não só o conhecimento e apreço que ele tinha
em relação à literatura tradicional japonesa, mas também a importância que ele dava às
tradições literárias em sua obra – sem contar uma habilidade literária excepcional.
A obra de Kawabata costuma ser dividida em três etapas: a primeira, mais
modernista e bastante prolífica, abrange o período inicial das produções do escritor até os
trinta e quatro anos; a segunda, conhecida como Yukiguni, por causa de seu romance, País
das Neves, maior obra do período, vai de 1934 até o final da Segunda Guerra; a terceira vai
de 1945 até a morte do autor, em 1972. Esse primeiro período é marcado por uma grande
produção e utilização de variadas técnicas de narrativa, experimentação de cunho
modernista e ideias da corrente shinkankakuha, o neosensorialismo do qual Kawabata era
um defensor apaixonado (Shimon, 2000). Talvez a produção mais importante do período
seja o conjunto de contos Tanagokoro no Shôsetsu (Contos da palma da mão, 2008).
Gênero muito apreciado pelo autor, teve muita influência sobre o resto de sua obra, por
exigir uma forte sensibilidade e uma estruturação muito bem pensada, graças à brevidade
da narrativa. Também são dessa época suas obras de tendência mais ocidental, inspiradas
na leitura de Ulysses, de Joyce, que Kawabata leu traduzido para o japonês por Itô Sei
(2000, p. 56). O fluxo de consciência desenvolvido naturalmente, a livre associação e as
surpreendentes imagens visuais; são todas características que também reapareceriam ao
longo da obra de Kawabata.
O segundo período é marcado por uma queda na produtividade; Kawabata passa a se
focar mais na análise psicológica de seus personagens, trazendo a sensibilidade lírica das
obras clássicas japonesas e a esmerada técnica do shinkankakuha (Shimon, 2000). Nessa
época, Kawabata passa a participar de diversas organizações literárias, como o Bungei
Kondan Kai (Grupo de Debate da Literatura) e o júri do prêmio Akutagawa. Yukiguni, obra
máxima desse período, é marcado por não seguir estruturas de romance ocidentais. Lewell
(apud Shimon, 2000) afirma que Kawabata nunca estabeleceu início, meio e fim em seus
romances, desenvolvendo sempre uma rica textura linear, com capítulos que se relacionam
mas funcionam independentemente, de forma semelhante aos renga (versos encadeados)
da poesia clássica japonesa. Assim, o texto se aproximaria mais de obras clássicas
japonesas como Genji Monogatari e Makura no Sôshi, do que dos romances modernistas
de James Joyce ou Virginia Woolf.
Foi ainda durante a segunda fase que Kawabata foi contratado, em 1938, pela
empresa jornalística Mainichi Shinbun para fazer uma série de reportagens sobre a última
partida oficial do Mestre Shûsai com o desafiante Kitani Minoru. Kawabata já era
conhecido por jogar go muito bem, e já havia feito matérias de outras partidas dos dois
jogadores. Quando, menos de dois anos depois de perder a partida, o mestre morre,
Kawabata se sente impelido a transformar aquelas reportagens em um romance, Meijin (O
Mestre de Go), que, no entanto, demoraria ainda alguns anos para se completar. Durante os
anos da Segunda Guerra, Kawabata ainda dedicou muito do seu tempo ao estudo das obras
clássicas japonesas (que já conhecia e tinha lido anteriormente), mergulhando
especialmente na leitura de Genji Monogatari. Nesse novo estudo, ele percebeu que “a
concepção de vida que transpassa esse romance de mais de dez séculos apresentava-se em
estreita consonância com a sua” (SHIMON, 2000, p. 59).
Essa foi uma percepção importante para a terceira fase criativa do autor. Ao assistir a
reconstrução do Japão no pós-guerra e a forte onda de ocidentalização, Kawabata se voltou
para a alma dos antepassados japoneses, para o mais tradicional da cultura do país, uma
estética da beleza da fragilidade, da fugacidade da impermanência (Shimon, 2000). O
terceiro período de sua obra volta a ser muito produtivo, e Kawabata passa a focar os temas
de seus romances ainda mais na cultura japonesa. Ele lança, entre diversos outros,
Senbazuru (Mil tsurus), falando sobre a cerimônia do chá; Yama no oto (O Som da
Montanha); a versão final de O Mestre de Go; e, mais tarde, já nos anos 60, Koto (Kyoto) e
Utsukushisa to Kanashimi to (Beleza e Tristeza). Quanto a este último, Shimon (2000) traz
a opinião de Ueda Makoto, que afirma que muitas obras de Kawabata poderiam ter esse
título, já que o autor sempre evocava a tristeza da beleza ou buscava a beleza da tristeza.
Por meio de sua presidência do P.E.N. Club, Kawabata entra em contato com diversos
autores estrangeiros e se empenha na divulgação da literatura japonesa internacionalmente.
De 1968, quando ganha o prêmio Nobel de literatura, até seu suicídio em 1972, Kawabata
passa a escrever menos. Segundo Shimon (2012), “isso demonstra que ele sentia algum
tipo de pressão pelo fato de ter sido agraciado. Mas o fato de ele ser um ganhador do
prêmio Nobel justificou a tradução de sua obra para diversas línguas”.
2 Sobre Meiko Shimon
A tradutora da versão brasileira de O Mestre de Go, Meiko Shimon, foi professora
assistente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no Instituto de Letras,
junto ao setor de japonês, desde 1990 até sua aposentadoria em 2005. A partir de 1999 foi
coordenadora do setor, e desde 2006 é colaboradora convidada. Filiada ao Kawabata
Bungaku Kenkyûkai, o centro de pesquisas literárias de Kawabata, a pesquisadora também
teve experiências de ensino e estudo no Japão, em 2002, junto à Seikei Daigaku e ao
Taiheiyô Center.
Shimon primeiro começou a traduzir quando, dando aula na UFRGS, sentia muita
falta de material didático de literatura japonesa. Passou a traduzir ela mesma contos de
autores trabalhados em aula para auxiliar com o conteúdo. Seu primeiro trabalho de
tradução publicado foi Contos Contemporâneos Japoneses¸ uma coletânea de 1994. Ela
afirma (2012) que já conhecia Kawabata, mas a tradução de contos de diversos autores
acabou levando-a ao autor de uma forma mais acadêmica. Não mais apenas leitora, ela era
tradutora e pesquisadora da obra do escritor. A sua dissertação de mestrado foi feita sobre
os Contos da Palma da Mão, com as traduções da própria Shimon. A pesquisa foi lançada
em livro em 2000, Concepção Estética de Kawabata Yasunari em Tanagokoro no Shôsetsu,
e é até hoje o único livro publicado no Brasil sobre Kawabata.
Logo após a publicação da pesquisa, Shimon foi convidada pela editora Estação
Liberdade para traduzir Nemureru Bijô (A Casa das Belas Adormecidas, 2004), sua
primeira tradução de um romance de Kawabata. Desde então, já traduziu, para a mesma
editora, diversas outras obras do autor, como Kyoto (2006), Contos da Palma da Mão
(2008), O Som da Montanha (2009), O Lago (2010), e o último lançado, em novembro de
2011, O Mestre de Go.
3 O Mestre de Go
Como já foi dito, Kawabata foi convidado pelo jornal Mainichi Shinbun para cobrir a
partida de despedida do Mestre Shûsai, em 1938. Houve uma competição entre outros
profissionais do mundo do go para se decidir quem teria o direito e a honra de enfrentar o
grande mestre, que na época já contava com 64 anos. O ganhador foi Kitani Minoru, que
tinha sido aluno do mestre quando iniciante. A partida entre os dois se estenderia por
diversos encontros, durante quase seis meses. No entanto, as condições de saúde do mestre
obrigaram a organização a fazer uma pausa no meio desses encontros e a partida só seria
retomada, em um ritmo mais lento, algumas semanas depois, com o mestre se sentindo
melhor, mas ainda debilitado. A partida, cheia de regras adicionais e combinações
específicas para o evento, terminaria com a vitória, por cinco pontos, de Kitani.
O go é um jogo de tabuleiro em que peças brancas e pretas competem por espaço,
tentando encurralar umas às outras, invadindo e controlando território. Aparentemente em
suas regras básicas, o jogo apresenta uma infinita complexidade em sua execução e exige
atenção e muita reflexão. Por ser um conhecedor de go, Kawabata inseriu em seu romance
diversos termos específicos do jogo. Como o andamento da partida é o que faz a narrativa
evoluir, o conhecimento de go dá ainda uma terceira percepção da narrativa, embora não
seja necessário para o entendimento do romance, já que Kawabata explora aspectos que
vão muito além do jogo, apenas articulados através dele.
A série de reportagens que Kawabata fez sobre a partida eram não apenas notícias
dos resultados de cada encontro – para isso havia outros repórteres. Como explica Shimon
(2012) “de Kawabata, era esperado que ele escrevesse tratando de um universo muito mais
amplo do que o factual da notícia, crônicas-reportagem com liberdade, aprofundamento de
personagens, reações, ambientes”. Kawabata, conhecido por sua habilidade no jogo,
conseguia explorar cada sessão de forma que o go fosse um pano de fundo para o que
estava acontecendo ao seu redor. Menos de dois anos depois, com a morte do mestre, veio
ao autor a ideia de transformar aqueles bem trabalhados textos em um romance, uma
última homenagem ao velho mestre (considerado o último dos grandes mestres de go).
Como já dito, os romances de Kawabata não obedecem à estrutura tradicional de romance,
com início, meio e fim, o que facilitou muito essa adaptação.
O romance se apresenta como uma série de capítulos-conto, fechados em si mas
também se relacionando com os outros. Sem ordem cronológica, a narrativa consegue
seguir o andamento da partida enquanto trata de acontecimentos distantes temporalmente,
surgidos da livre associação do personagem-narrador, o repórter Kawabata. As reportagens
são pouco alteradas (apenas alguns nomes e datas). Kawabata muda o nome do repórter e
de alguns personagens, inclusive o desafiante Kitani, que se chama Otaké, e as datas dos
encontros da partida, e acrescenta os trechos que tratam da morte do mestre, que não
estavam nas reportagens originais.
É tida como uma das obras mais importantes do autor, que a reconhecia como seu
romance mais autêntico. Embora tenha diversas características em comum com o resto da
obra de Kawabata, como a estética japonesa, a temática de um aspecto tradicional da
cultura japonesa, uma estrutura narrativa não tradicional (SHIMON, 2012), O Mestre de
Go apresenta algumas diferenças essenciais. Para Shimon, “[O Mestre de Go] é diferente
de toda a produção dele [Kawabata] pois é menos ficcional. Os personagens são baseados
em pessoas reais. (...) É diferente de um romance todo criado” (2012). Outra característica
própria do livro são os diversos níveis de interpretação: a partida de go é mais do que um
simples jogo – é um embate emocional e simbólico entre os dois personagens. Através da
partida, vemos, não só o conflito do mestre com o desafiante, mas o de um homem velho
contra um jovem, do Japão tradicional contra o Japão moderno, da arte contra a ciência.
4 Estrangeirização e domesticação
Em seu livro The Translator’s Invisibility, Lawrence Venuti (1999) traz algumas
teorias de tradução, explorando algumas técnicas e conceitos. Ele fala de duas tendências
de tradução, uma de domesticação e outra de estrangeirização. A sua definição de tradução
é um “processo pelo qual a cadeia de significantes que constitui o texto na língua-fonte é
substituída por uma cadeia de significantes na língua-alvo” (VENUTI, 1999, p. 17). Além
disso, ele defende que a tradução é não só a substituição de diferenças linguísticas entre um
texto estrangeiro e um inteligível na língua-alvo, mas também a substituição de diferenças
culturais, que nunca podem ser totalmente apagadas. Logo, julgar uma tradução por
quesitos quase matemáticos de erro e exatidão é inútil, pois nunca haverá uma equivalência
semântica. Venuti não reconhece os conceitos de fidelidade e liberdade em questão de
tradução, pois toda tradução é uma violência etnocêntrica (1999).
Venuti fala do teórico alemão Schleiermacher, que, em 1813, trouxe, em uma
palestra, os conceitos de domesticação e estrangeirização (embora não tenha dado nome a
eles, sua palestra abordava as duas tendências e suas consequências). Para ele, “ou o
tradutor deixa o autor em paz, tanto quanto possível, e leva o leitor até o autor; ou deixa o
leitor em paz, tanto quanto possível, e leva o autor até o leitor” (SCHLEIERMACHER
apud VENUTI, 1999, p. 19). Venuti resume a questão afirmando que a domesticação é
uma redução etnocêntrica do texto estrangeiro e da cultura original para se adequar aos
valores culturais da língua-alvo, enquanto que a estrangeirização é uma pressão
etnodesviante do texto estrangeiro, que registra as diferenças culturais entre as duas línguas,
levando o leitor à cultura fonte – criticando a primeira e defendendo a segunda.
Assim, a domesticação consiste na técnica de tradução que demonstra fluência,
naturalidade, sem muitas peculiaridades linguísticas ou estilísticas. Uma tradução
domesticada dá a ilusão de ser o original, anulando diferenças culturais, apagando a
cultura-fonte com a cultura-alvo. É uma maneira de traduzir fazendo com que o tradutor
fique invisível. Já a estrangeirização rejeita a fluência e causa um estranhamento no texto
da língua alvo, através de uma fidelidade abusiva à língua e à cultura original. A tradução
se torna visível, e mais que isso, palpável, por preservar diferenças culturais, exigindo um
esforço de adaptação cultural por parte do leitor. Diz Venuti sobre a técnica: “no empenho
de fazer correto na cultura de partida, esse método deve fazer errado na cultura de chegada,
desviando-se o suficiente das normas nativas para apresentar uma experiência de leitura
estranha” (VENUTI, 1999, p. 20).
Em sua tradução de O Mestre de Go, Meiko Shimon utiliza métodos de tradução
estrangeirizadores em diversos casos. O estranhamento aparece, por exemplo, da tradução
literal de expressões japonesas que, em um contexto cultural brasileiro, não soam como
idiomáticas – sem qualquer explicação em nota de rodapés. Aparecem, ao longo do livro,
como seria de se esperar em um contexto cultural japonês, diversas expressões de respeito.
São expressões corriqueiras em uma cultura que preza o respeito e a hierarquia. Por
exemplo, quando Otaké, o desafiante, encontra o mestre após desembarcar do trem,
cumprimenta-o com a seguinte frase: “Peço-lhe que tenha a bondade de que continue
sendo generoso comigo” (KAWABATA, 2011, p. 74). Uma frase perfeitamente normal
em seu contexto original, mas que parece exagerada em um contexto ocidental, causando
forte estranhamento no leitor. De fato, a tradução para o inglês de Edward Seidensticker,
muito mais domesticadora do que a brasileira, não traduz essa fala do personagem,
trazendo apenas na narração “Otaké went to make his formal greetings to the Master”
(KAWABATA, 1996, p. 59), anulando qualquer choque cultural com essa escolha. No
mesmo trecho, o mestre convida dois personagens para uma partida de shôgi. Os
personagens não aceitam o convite, e o mestre se vira em seguida na direção de Otaké para
convidá-lo, dizendo: “Então, senhor Otake” (2011, p. 75). Em japonês, é uma forma
perfeitamente natural de se fazer um convite, mas em português não parece nada normal,
causando o mesmo estranhamento cultural típico do método de estrangeirização. Essa
escolha de Shimon é novamente evitada por Seidensticker, que exclui também essa fala de
sua tradução. Em inglês, lê-se apenas “he [o mestre] turned to Otaké instead” (1996, p.
59).
Há outros exemplos dessa linguagem respeitosa japonesa aparecendo muito
claramente na tradução de Shimon. Quando o mesmo Otaké, pensando em abandonar a
partida, procura o repórter-narrador e diz, desculpando-se: “Agradeço ao senhor por ter
me dispensado tantas atenções por todo esse tempo” (KAWABATA, 2011, p. 172),
percebemos algo nada familiar: por que um competidor iria se desculpar a um repórter em
termos tão formais? Shimon mantém o estranhamento causado pela expressão para lembrar
o leitor da distância existente entre um contexto cultural japonês e o nosso. Essa mesma
expressão aparece relativamente suavizada na tradução de Seidensticker: “You have been a
great help over the months” (KAWABATA, 1996, p. 143). Igualmente quando o mestre
apresenta suas desculpas a Otaké por interromper uma partida muito cedo por causa da
doença, Shimon traduz “Perdoe-me por causar tantos contratempos” (2011, p. 119),
enquanto Seidensticker traz apenas “I’m sorry” (1996, p. 96).
Além disso, Shimon utiliza diversos termos no original japonês – que são raros na
tradução domesticadora de Seidensticker – explicando-os em notas de rodapé. É uma
estratégia de distanciamento, tentando imergir o leitor em uma atmosfera cultural diferente
da dele. Termos relacionados ao vestuário japonês, como hakama, hifu, haori (referência
ao número de página na tabela 1); à arquitetura japonesa, como fusuma, amado, tokonoma;
natureza do Japão, como urajiro, natsumikari, hiyodori; culinária japonesa, como oshiruko,
koori-shiratama, mushizushi; unidades de medida japonesas, como kan, shaku, cho; além
de outros termos gerais da cultura japonesa, como shôgi, beiju, kogarashi são utilizados em
fonte itálica ao longo de todo o romance com uma explicação em nota de rodapé, e sem
nota nenhuma se citados uma segunda vez. Ao todo, essas categorias correspondem a mais
de um terço das 105 notas do livro (um número bastante elevado, se compararmos com as
48 totais da tradução de Seidensticker, que não são no rodapé, mas no fim do livro, onde
perdem importância; e ainda ao número médio de notas de rodapé em traduções comerciais
brasileiras).
Termo
Página
Nota
Termo
Página
Nota
Hakama
46
36
Fusuma
48
41
Hifu
28
24
Amado
32
27
Haori
52
47
Tokonoma
45
34
Urajiro
18
16
Oshiruko
14
14
Natsumikari
158
85
Koori-shiratama
85
58
Hiyodori
180
93
Mushizushi
203
100
Kan
22
18
Shôgi
11
10
Shaku
29
25
Beiju
115
72
Cho
79
55
Kogarashi
183
96
Tabela 1 – Alguns termos da cultura japonesa que aparecem em notas de rodapé
Há outros que termos Shimon utiliza no original sem notas de rodapé, como sukiyaki,
yukata ou shakuhachi, e ela explica que “tem algumas coisas em relação à cultura japonesa
que acho que não preciso mais explicar hoje em dia”. Isso é uma possibilidade que ela não
tinha na época das primeiras traduções, pois tanto a forma de se pensar a tradução mudou,
como alguns termos da cultura japonesa se tornaram mais conhecidos (Shimon, 2012).
Isoladamente, todos esses termos não teriam tanta importância, e o leitor sequer talvez os
notasse; mas em seu conjunto, essa enxurrada de nomes diferentes serve para acentuar
esses focos de diferença entre a cultura fonte e a cultura alvo, e tirar o leitor brasileiro de
sua zona de conforto, jogando-o no meio de uma cultura estranha e diferente.
Mas Shimon não utiliza apenas técnicas de estrangeirização; em diversos trechos do
livro aparece a tradução domesticadora, suavizando o choque da tendência oposta. Nesses,
o processo é o contrário: a expressão é traduzida para ficar mais familiar para um brasileiro,
também explicada na nota de rodapé, onde algumas vezes o original é transcrito em
japonês. É o caso de Diário de Tóquio (Tokyo Nichinichi Shibun), do Sutra do Lótus
(Hokkekyo), da caligrafia “a vida é um fragmento da paisagem” (Shogai ippen sansui) e da
expressão “um delinquente que está passando (toorima). Esses termos aproximam a cultura
fonte da cultura alvo, tornando-se familiares para o leitor. A tradutora traz trocadilhos (p.
23), letras de música (p. 83), provérbios (p. 90) e ambiguidades vocabulares (p. 96) no
corpo do texto, deixando as explicações, às vezes vindas com a expressão original, para as
notas de rodapé, além de traduzir para o português nomes de livros e jogos no corpo do
texto, explicando-os também nas notas, ao invés de usar os nomes originais, que nada
significariam. Alguns nomes de lugares, como Jigokudani (p. 127) e Tennozan (p. 152),
aparecem no corpo do texto no original, sem fonte itálica, mas também são explicados, e
traduzidos se necessário, no rodapé, para mostrar que, apesar de serem apenas nomes, tem
alguma significação maior.
Shimon também mantém e explica em nota de rodapé diversas referências a
escritores (Shofu Muramatsu), artistas (como Ogata Kôrin), jogadores de go (Jun’ichi
Karigane), entre outros, além de referências históricas do Japão, como a Guerra SinoJaponesa de 1937 ou nomes de períodos (como a era Meiji, a era Showa). A importância
que as notas têm para Shimon revela uma tendência domesticadora – deixar todos esses
termos sem explicação seria reforçar a distância entre as duas culturas, comprometendo, ao
mesmo tempo, o entendimento do romance. Um exemplo da precisão da tradutora em suas
explicações nas notas é o trecho da página 86, em que o narrador comenta que Otaké
levantava tanto para ir ao banheiro durante uma partida que era motivo de piada; conta que
uma revista de go afirmou, à época, que jogador caminhava tanto entre o tabuleiro e o
banheiro que daria para “ir até a estação de Mishima, na rota Tokaido” (KAWABATA,
2011, p. 86). No rodapé, Shimon explica: “Na rota Tokaido, estrada que liga Edo (atual
Tóquio) a Kyoto, havia 53 estações de paragens dos viajantes. Mishima ficava a cerca de
113 km do ponto de partida, na Nihonbashi, em Tóquio” (2011, p. 86). Essa explicação,
embora de pouca relevância para o enredo, pois sem ela entendemos a hipérbole feita pela
revista, ajuda a aproximar o leitor do contexto da partida.
Por ser um jogo extremamente complexo, apesar das regras aparentemente simples, o
go se utiliza de diversos termos muito específicos. Shimon explica que, para traduzir os
termos técnicos relativos ao jogo, ela consultou membros da Associação Brasileira de Go e
diversos livros na Associação e na Fundação Japão de São Paulo (Shimon, 2012). Ela
conta ainda que pesquisou em diversos sites de go na internet e confessa que a leitura de
um mangá, Hikaru no Go, ajudou muito no entendimento do jogo. O resultado de todo esse
estudo é que as notas explicando os nomes das jogadas e posições são muito precisas,
facilitando a leitura para quem não sabe jogar go e tornando a experiência de leitura mais
realista para quem sabe. Para esses termos, a tradutora mescla as tendências
estrangeirizadora e domesticadora de maneira ainda mais marcante. Por isso, e pela
importância que o jogo tem para o andamento da narrativa, a tradução dos termos
específicos de go deve ser tratada separadamente das analisadas acima.
Alguns termos relativos ao go aparecem traduzidos de forma domesticadora,
buscando uma familiaridade com a experiência do leitor brasileiro, mas são termos como
nome de escolas e associações, que não pertencem à forma ou às regras do jogo, e
aparecem em fonte sem itálico. Todos os outros termos, que, por terem mais relação com o
jogo, são mais essenciais para o entendimento do romance, aparecem traduzidos ou
domesticados ou estrangeirizados; de uma forma ou de outra, têm explicação em nota de
rodapé. Os termos, em sua maioria, são transcritos, mantidos no original com fonte itálica
(atari, fuseki, yose), seguindo a estrangeirização que marca grande parte da tradução de
Shimon, mas alguns outros são traduzidos literalmente (“saltar”, “nadar”, “espiar”), de
maneira domesticadora (referências ao número de página na tabela 2). Independente de
como cada termo aparece, há sempre uma explicação nas notas de rodapé para cada um
deles. Sejam posições no tabuleiro ou nomes de jogadas, a explicação é curta e precisa. Por
serem muitos termos (22, mais de um quinto das notas do livro) e aparecerem muitas vezes
(a cada repetição, não há uma nova nota, nem referência à nota onde o termo é explicado),
se torna difícil para um leigo entender o andamento da partida, estratégia que pode também
ser considerada como um tipo de distanciamento estrangeirizador.
Termo
Página
Nota
Termo
Página
Nota
Atari
23
20
Saltar
64
51
Fuseki
47
38
Nadar
64
51
Yose
64
52
Espiar
40
32
Tabela 2 – Alguns termos de go, no original ou traduzidos, que aparecem em notas de rodapé
Como que para suavizar essa impressão, o livro tem 12 diagramas, mostrando as
etapas do jogo a cada encontro da partida, que contabilizou 237 jogadas. Como já foi dito,
é a partida que faz a narrativa avançar, unindo em sua cronologia os capítulos-conto. Cada
capítulo é fechado em si só e não tem uma relação cronológica com o anterior ou posterior.
Em seu fluxo de pensamento, o narrador, motivado por alguma lembrança, nos fala de
eventos muito anteriores e muito posteriores à partida, interrompendo o andamento da que
seria considerado o principal em uma narrativa ocidental – o da partida. Assim, vemos
fatos que acontecem durante a partida, tanto mais para o início como para o final, ou antes
e depois dela, juntos em um mesmo capítulo.
A inserção dos diagramas (aparecendo, ainda por cima, em ordem cronológica), nos
ajuda, portanto, a visualizar a partida como um todo e cada etapa individualmente,
facilitando o entendimento do texto. Eles possibilitam procurar no tabuleiro os termos
utilizados para cada jogada e entender, junto com a explicação de Shimon, o que significa
cada um. Além disso, entender melhor a partida é, pela natureza da relação que Kawabata
constrói do jogo com a narrativa, entender melhor o romance. Shimon explica que o
original tem apenas dois diagramas: um do primeiro encontro e um da partida finalizada.
Para um japonês, que tem em geral mais vivência com o go que um brasileiro, isso é o
suficiente; mas para o público ocidental, esse tipo de ajuda visual é necessário. A
relevância do uso de imagens para a explicação de aspectos culturais já foi abordada por
Shimon quando da sua tradução de outro romance de Kawabata, Kyoto:
(...) sendo texto literário, tudo deve ser descrito em palavras e fazer com que o
leitor consiga formar uma imagem plausível daquilo que foi apresentado. Nesses
momentos, penso se não seria possível introduzir ilustrações em textos literários
como costuma ocorrer nas publicações japonesas e, também, em textos técnicos
no Brasil, pois isso facilitaria imensamente os trabalhos de tradutores, bem como
a compreensão dos leitores (SHIMON, 2006, pg. 104).
Essa facilitação para o leitor pode ser considerada como uma forma de domesticação
na tradução, e Shimon demonstra dar importância a isso. No entanto, houve uma falha por
parte da editora no processo de inserção desses diagramas no texto final. Shimon conta que
avisou a editora para utilizar, nos diagramas, a numeração japonesa, que é a mesma
utilizada pela Associação Japonesa e pela Brasileira de Go. A numeração que saiu
impressa na versão final do livro (na primeira edição, pelo menos) é a estadunidense, e foi
tirada da tradução francesa (Shimon, 2012). A numeração japonesa consiste nas linhas
horizontais e verticais do tabuleiro numeradas de 1 a 19 de cima para baixo e da esquerda
para a direita; a maneira estadunidense, que se tornou a forma internacional, organiza as
linhas verticais por ordem alfabética, de A a S, da esquerda para a direita, e as linhas
horizontais de 1 a 19 de baixo para cima. Assim, a explicação de jogadas em algumas notas,
escritas por Shimon, aparecem com a contagem japonesa, e, ao procurarmos tal jogada no
diagrama, não nos achamos, pois as coordenadas são diferentes. Apesar disso, os
diagramas têm as jogadas numeradas, o que possibilita procurar por este número, ao invés
de utilizar as coordenadas.
7 Considerações finais
Meiko Shimon traz uma abordagem muito positiva para a tradução de Kawabata.
Seja por entender a estética e temática das obras do autor, seja por ter nele um objeto de
pesquisa, seja por ter traduzido outros livros dele, seja por ter com ele o que Venuti chama
de simpatico (Venuti, 1999, pg. 274, em italiano no original), uma apreciação e
identificação com um autor a ser traduzido (ou ainda uma soma disso tudo), as escolhas de
tradução de Shimon são sempre muito positivas para o entendimento da obra. A
comparação com a tradução de Seidensticker deixa claro o porquê da opinião da tradutora
sobre tradutores estadunidenses: “Americanos têm mania de simplificar as coisas.
Substituem termos, ou deixam sem explicar, ou explicam rápido no corpo do texto,
exatamente para evitar notas. Simplificam principalmente, como se o leitor não quisesse
saber das notas” (SHIMON, 2012). Com seu conhecimento de cultura japonesa e seu
esforço que transparece no texto, Meiko faz uma tradução que não subestima o leitor e
valoriza a cultura japonesa, misturando, para isso, elementos de estrangeirização e
domesticação. O resultado é um texto que faz o leitor mergulhar no mundo da cultura
japonesa, que é o mundo de Kawabata. Essa abordagem da tradução cultural une os pontos
positivos de cada estilo de tradução, levando em conta as necessidades e expectativas do
leitor brasileiro contemporâneo.
REFERÊNCIAS
KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.
KAWABATA, Yasunari. The Master of Go. Nova York: Vintage Internation, 1996.
SHIMON, Meiko. Tradução de Kyoto: um exercício de reflexão sobre a cultura japonesa.
In: Anais do XVII ENPULLCJ – IV CIEJB: SP, 2006, pgs. 103-110).
SHIMON, Meiko. Concepção estética de Kawabata Yasunari em Tanagokoro no Shosetsu:
contos que cabem na palma da mão. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
SHIMON, Meiko. Entrevista concedida a Ariel Oliveira e Andrei Cunha. Realizada dia 10
de fevereiro de 2012.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: a history of translation. Londres:
Routledge, 1999.

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