a função do delírio e a direção do tratamento na psicose

Transcrição

a função do delírio e a direção do tratamento na psicose
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Raquel Coelho Briggs de Albuquerque
UM sujeito mais além da estruturação delirante:
a função do delírio e a direção do tratamento na psicose
Rio de Janeiro
2012
Raquel Coelho Briggs de Albuquerque
UM sujeito mais além da estruturação delirante:
A função do delírio e a direção de tratamento na psicose
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Pesquisa e Clìnica em
Psicanálise.
Orientadora: Prof.a Dra. Doris Luz Rinaldi
Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
A345
Albuquerque, Raquel Coelho Briggs de.
UM sujeito mais além da estruturação delirante : a função do delírio
e a direção de tratamento na psicose / Raquel Coelho Briggs de
Albuquerque. – 2012.
142 f.
Orientadora: Doris Luz Rinaldi.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Psicologia.
1. Delírio – Teses. 2. Paranóia – Teses. 3. Psicoses – Teses.
4. Psicanálise – Teses. I. Rinaldi, Doris Luz. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.
nt
CDU 616.89-008.452
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
________________________________
Assinatura
________________
Data
Raquel Coelho Briggs de Albuquerque
UM sujeito mais além da estruturação delirante:
a função do delírio e a direção do tratamento na psicose
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Pesquisa e Clìnica em
Psicanálise.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Doris Rinaldi (Orientadora)
Institituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Profª. Dra. Sonia Alberti
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof. Drª. Andréa Hortélio Fernandes
Instituto de Psicologia da UFBA
Salvador – BA
Rio de Janeiro
2012
Aos delirantes,
sobretudo àqueles que nos apontam o caminho possível.
Aos seus familiares,
sobretudo àqueles que fazem, do impossível, um possível.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Doris, pela enorme paciência e aposta em meu trabalho. Pelas contribuições
valiosas e leitura atenta.
À Professora Sonia Alberti, pelos questionamentos que repercutem como eco... fazendo
pensar. E pelas importantes contribuições ao longo das aulas.
Aos demais professores do mestrado, pelo desejo de transmissão e, aos colegas, pelas
discussões teóricas e pela companhia na caminhada.
À Andréa Fernandes, pela disponibilidade, pela leitura e contribuições.
Aos amigos psicanalistas, com quem é possível conversar de maneira única.
Ao Renato Pompeu, pela acolhida carinhosa em minha tessitura em torno do delírio.
Ao Rafael, meu companheiro de vida, e também de trabalho, que me apresentou a
psicanálise e me apóia nesta empreitada. A ele, que tem me acompanhado nos invernos e nos
verões da vida, e que se tornou, no tempo do mestrado, meu marido.
À minha família, corda que tece esse tecido e que sem se estampar é suporte de tantos
enlaces. Ao meu pai, Olimpio, que me transmitiu o amor. À minha mãe, Angela, que me
ensinou a não desistir. Ao meu irmão, que não desistiu. À minha irmã, que mesmo longe se
faz presente.
À Regina Cardoso, por me ajudar a aparecer enquanto sujeito.
À Denise Maurano, presente desde o início, antes mesmo de eu saber.
Sei lá... A vida tem sempre razão
Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação
Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, Sei lá
A vida tem sempre razão
A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que anoitecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não
Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão
(Vinicius de Moraes)
RESUMO
ALBUQUERQUE, Raquel Coelho Briggs de. UM sujeito mais além da estruturação
delirante: a função do delírio e a direção de tratamento na psicose. 2012. 142 f. Dissertação
(Mestrado em Psicanálise). – Instituto de Psicologia. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Uma vez que a psicanálise considera o delírio, por um lado, como fenômeno elementar
e, por outro, tentativa de cura, objetiva-se estudar a estrutura delirante, assim como a função
do mesmo para o sujeito psicótico, no sentido de situar a direção de tratamento na clínica da
paranóia – no sentido pré-kraepeliano do termo. Através de revisão bibliográfica e ancorado
em fragmentos de um caso clínico, o presente trabalho se propõe a investigar a estrutura da
psicose e, a partir disso, a direção de tratamento possível ao sujeito que se apresenta, na
clínica, com um delírio já estruturado. Pretende-se examinar, a partir da pesquisa clínica em
psicanálise, os efeitos da estruturação delirante para o sujeito psicótico, tanto no campo
pulsional, quanto no campo do significante e suas relações com a direção de tratamento.
Sendo assim, o presente trabalho objetiva estudar, não o delírio, mas os sujeitos delirantes.
Discutindo-se a noção de delírio desde seus primórdios, observa-se a evolução do termo e sua
relação com a estrutura psicótica, além da importância do estudo evolutivo do delírio para a
compreensão de sua função. Com a obra freudiana, o delírio foi considerado uma tentativa de
cura na medida em que permite uma nova ordenação da realidade ao sujeito - perdido em sua
existência com o desencadeamento da psicose. Com Lacan e a formalização dos conceitos
freudianos, é possível identificar na foraclusão do Nome-do-Pai o mecanismo em torno do
qual gira a problemática da psicose. O Nome-do-Pai, foracluído na constituição do sujeito,
retorna no real, através de uma nomeação delirante, fazendo suplência a essa carência paterna.
O desejo congelado e a identificação a Um nome que não entra na cadeia são conseqüências
dessa nova ordenação de um sujeito que se encontra na posição de objeto frente ao Outro.
Resta saber se é possível ir além do delírio, direcionado pela ética da psicanálise, no sentido,
não de eliminá-lo, mas de tornar possível o esvaziamento do mesmo através de uma
estabilização que se dê para além do sentido.
Palavras-chave: Delírio. Paranóia. Direção de Tratamento. Pai-do-Nome.
RESUMÉ
Une fois que la psychanalyse considère le délire, d’un côté, comme un phénomène
élémentaire et de l’autre, comme une tentative de guérison, Il se doit d´en étudier la structure
délirante, mais aussi sa propre fonction pour le sujet psychotique afin de situer la direction du
traitement en relation à clinique de la paranoïa – et ce, au sens pré-kraepélien du terme. À
travers la révision bibliographique et l’encrage en fragments d’un cas Clinique, ce travail se
propose d’analyser la structure de la psychose et à partir de là, de trouver la direction du
possible traitement pour le sujet se présentant à clinique, victime d’un délire déjà structuré.
L'intention d'examiner, de la recherche clinique en psychanalyse, les effets de structuration
délirant pour le sujet psychotique, tant dans le champ de la pulsion, et dans le champ du
signifiant et de ses relations avec la direction de la cure. Ainsi, ce travail vise à étudier, ne
sont pas lê délire, mais les sujets délirants. . En discutant de la notion de délire depuis ses
fondements, on observe l’évolution du terme et sa relation avec la structure psychotique, audelà de l’importance de l’étude évolutive du délire pour la compréhension de sa fonction.
Comme pour l’oeuvre freudienne, le délire a été considéré comme une tentative de guérison
dans la mesure où cela permet un nouvel ordonnancement de la réalité au sujet perdu dans son
existence avec le déclenchement de la psychose. Comme Lacan et le formalisation des
concepts freudiens, il est possible d’identifier dans la forclusion du Nom-du-Père, le
mécanisme autour duquel gravite la problématique de la psychose. Le Nom-du-Père, forclos
dans la constitution du sujet, retourne au réel, à travers une dénomination délirante, faisant
place à ce manque paternel. Le désire congelé et l’identification à Un Nom n’entrant pas dans
la chaîne, sont les conséquences de ce nouvel ordonnancement d’un sujet qui se retrouve en
position d’objet face à l’autre. Il reste à savoir s’il est possible, en effet, d’aller au-delà du
délire directionné par l’éthique de la psychanalyse, non pas en l’éliminant mais d’en rendre
possible sa réduction par une stabilisation se donnant au delà du sens.
Mots-clés: Délire. Paranoïa. Direccion de la cure. Pére-du-Nom.
ABSTRACT
Since psychoanalysis consider delusion, on the one hand, as an elementary
phenomenon and, on the other hand, as an attempt to cure, this study focuses on the
delusional structure as well as the function of delusion for the psychotic subject in order to
place the direction of paranoia`s treatment. Through literature review and anchored in
fragments of a clinical case, this study aims to investigate the structure of psychosis and, as
appropriate, the direction of possible treatment to the individual who presents at the clinic,
with a delusion already structured. Intends to examine, from the clinical research in
psychoanalysis, the effects of the delusional structuring for the psychotic subject, both in the
field of drive, and in the field of the signifier and its relations with the direction of treatment.
Thus, this paper aims to study, not the delusion, but delusional subjects. Discussing the notion
of delusion since its inception, we observe the evolution of the term and its relationship with
the psychotic structure and the importance of the evolutionary study of delusion in
understanding its function. With Freud's work, the delusion was considered an attempt to cure
as it allows a new sort of reality to the subject - lost in his existence with the onset of
psychosis. With Lacan and the formalization of Freudians concepts, it is possible to identify at
the foreclosure of the Name-of-the-Father the mechanism in which places the problem of
psychosis. The Name-of-the-Father, foreclosed on the constitution of the subject, returns in
the Real by a delusional naming, making this a substitute for the lack of the father. The frozen
desire and the indentification with One name that does not enter in the chain are the
consequences of this new organization in which a subject is in a position of an object against
the Other. Remains the question: Is it possible go beyond the delusion, driven by the ethics of
psychoanalysis, in order not to eliminate it, but to make possible the evacuation of the
delusion through a stabilization that takes place beyond the sense.
Key words: Delusion. Paranoia. Direction of the Treatment. Father-of-the-name.
SUMÁRIO
1
1.1
1.2
1.3
1.4
2
2.1
2.2
2.2.1
2.2.2
2.2.3
2.2.3.
1
2.2.3.
2
2.2.3.
3
2.3
2.3.1
2.3.1.
1
2.3.1.
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2.3.1.
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3.1.2
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3.1.4
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.2.
1
3.2.2.
2
3.2.2.
34
DELÍRIO E REALIDADE PSÍQUICA: UMA INTRODUÇÃO
O DELÍRIO E SUA RELAÇÃO COM A PSICOSE
Um delírio
As origens da noção de psicose
As origens das noções de delírio e de paranóia
Freud: a importância da noção de delírio para a conceituação da psicose
A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI
De volta ao caso clínico
A estruturação do sujeito e a função paterna
A oposição significante e a ordenação da realidade
O laço social e a função paterna
O sujeito e os nãos do pai
O pai Real e a disputa imaginária pelo lugar de objeto
O pai Simbólico e a Lei
O pai Imaginário e o desejo
A recusa ao Pai na psicose
A Psicose como estrutura
A psicose e a carência paterna
A Verwerfung freudiana e a Foraclusão do Nome-do-Pai
Os fenômenos elementares da psicose
O delírio como função
O delírio como suplência
Aimée e o retorno do foracluído
A construção delirante do nome e o congelamento de desejo
A PSICOSE E A DIREÇÃO DE TRATAMENTO
Psicose, Direção de tratamento e transferência
A transferência no caso em questão
A ética da psicanálise e o impossível do objeto
A transferência e a suposição de saber
A psicose, a transferência e o saber
A estruturação delirante e o trabalho do psicótico
O caso, mais uma vez
O psicótico e o trabalho em análise
Aimée: a ‘cura’ do delírio
Gérard Primeau: um esforço de intelecto
Renato Pompeu: além do intelecto
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
10
18
18
20
24
32
47
47
49
49
50
54
55
58
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65
65
65
70
74
78
78
83
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96
96
96
97
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105
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112
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DELÍRIO E REALIDADE PSÍQUICA: UMA INTRODUÇÃO
Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto,
que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade.
(Erasmo, 1509/2005)
O presente trabalho surgiu a partir do interesse pelo estudo da psicose, que se
manifestou ainda cedo no Curso de Graduação em Psicologia, a partir da realização de um
estágio extra-curricular no CAPS da Universidade Federal de Juiz de Fora, que se desdobrou
em um projeto de extensão. Este projeto incluiu, entre outras coisas, visitas aos usuários do
serviço - domiciliares ou hospitalares - e se seguiu de um estágio curricular, no CAPS Casa
Viva e o acompanhamento de entrevistas com pacientes psiquiátricos no Hospital Regional
Dr. João Penido. O interesse pelo tema do delírio psicótico surgiu também nesse momento sendo abordado na monografia de conclusão de curso – e estendendo-se para além dele com a
prática profissional em serviços de saúde mental.
No contato com esses serviços, observou-se que o delírio - apesar da conhecida
indicação freudiana (FREUD, 1911) de que é uma tentativa de cura -, é muitas vezes tratado
unicamente como patologia, seguindo sem escuta, sem uma direção que permita uma
elaboração, um avanço em relação às construções delirantes solitárias desses sujeitos
psicóticos.
Um sujeito em especial, e o que se dizia dele no serviço, me chamou a atenção: “Não
há mais o que fazer por esse sujeito”. Alfredo1 era usuário do CAPS e voltou de uma
internação psiquiátrica extremante desorganizado, após ter sido vítima de um abuso sexual
bastante severo, na própria internação. Várias medicações foram tentadas e Alfredo
continuava absorto em seu mundo, numa errância radical – andava e falava sozinho de um
lado para o outro, agressivo, urinava e defecava onde bem entendesse, sem interação social
alguma.
A medicação, importantíssima no tratamento das psicoses, é imprescindível em certos
momentos, mas, outras vezes, deixa escancarados seus limites. Diversas vezes, em relação à
medicação, “não há mais o que fazer”. É preciso buscar uma saída e a psicanálise tem algo a
oferecer: a partir da oferta de uma escuta que efetivamente leve em conta a fala do sujeito,
1
O desenrolar desse caso - cujo nome aqui apresentado é um nome fictício - foi abordado em uma apresentação
de trabalhado no XI Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, em 2010 - ao longo do curso de
Mestrado - intitulada “Megalomania: amor a si mesmo”
11
pode-se favorecer o trabalho que o mesmo já realiza no sentido de propiciar uma invenção
que circunscreva a sua existência, ainda que de forma delirante.
Foi a partir de uma intervenção pontual, na qual uma única palavra do fragmentado
discurso de Alfredo pôde ser apreendida - “Médico?” “Você queria ser médico?” -, que o
mesmo se nomeou, por algum tempo, médico de almas, o que possibilitou uma importante
organização, a partir da qual ele pôde reinvestir-se de um amor a si e voltar, paulatinamente, a
conversar, a falar de sua filha, a freqüentar as oficinas do CAPS...
Esse fragmento clínico nos aponta a importância da estruturação delirante, como
Lacan (2002) a chama, em especial com seu componente narcísico, na reinserção (possível)
do sujeito no laço social. Nesse caso, ao se posicionar como médico de almas, Alfredo
passou, ao menos, a se comunicar, a interagir com os colegas e profissionais, podendo dizer o
que estava sentindo, o que estava pensando, falar de seus medos, suas vontades...
A partir de questões como essa se delineou o objetivo geral desta pesquisa: examinar
os efeitos da estruturação delirante para o sujeito psicótico, tanto no campo pulsional, quanto
no campo do significante e suas relações com a direção de tratamento.
O delírio coloca em evidência o quão fugidia é a realidade psíquica: uma ficção. O que
é a realidade, afinal? A paranóia nos ensina que a realidade é uma invenção. O saber é uma
invenção. É o que diz Lacan (1973-74/inédito) a propósito de sua (paciente) Aimée, que
possibilita a este psiquiatra francês sua entrada na psicanálise.
Freud concebe o mundo que nós apreendemos, isto é, a realidade psíquica, como
sendo diferente do mundo externo já que este, se fosse apreendido diretamente, se
apresentaria como um excesso de estímulos insuportável vindo do exterior (FREUD,
1925/2006). É através do afastamento e do isolamento desse excesso de estímulos que o
homem vai constituir sua realidade (FREUD, 1920) e constituir-se nela.
Pinçando o termo das Ding do texto freudiano – mais especificamente do Projeto
para uma psicologia científica – Lacan (1997) ressalta o irrepresentável do objeto, de onde é
possível depreender o irrepresentável da realidade que é justamente o Real. Neste seminário, o
autor afirma que “a realidade é precária” (ibidem, p.43), e isso, justamente pela
impossibilidade de acesso ao Real.
O aparelho psíquico constitui-se para afastar o Real insuportável, e não para atingi-lo como poderíamos pensar em uma vertente empirista. Em A perda da realidade na neurose e
na psicose, Freud (2006) nos fala da fantasia e do delírio exatamente como estes anteparos,
que viriam como substituto daquilo de insuportável que se apresenta ao sujeito.
12
Erasmo de Roterdan (2006), em seu Elogio da loucura, escrito no século XVI como
uma crítica à atuação do clero, chama a atenção para o quão sem sentido é a vida, e para a
importância dessa louca e mentirosa realidade que inventamos, em suma, pelo amor próprio
do qual nos investimos ao inserirmo-nos nela. Em seu elogio, falando em primeira pessoa,
como se fosse a própria loucura, ele ilustra esse filtro da fantasia, que atua como um aparato
ante o Real.
Em suma, se pudésseis olhar da Lua [...] pensaríeis ver uma multidão de moscas ou
mosquitos que brigam entre si, lutam, se armam ciladas, se roubam, brincam, dão
cambalhotas, nascem, caem e morrem; e é inacreditável que tumultos, que tragédias,
produzam um tão minúsculo animal destinado a depressa perecer (ROTERDAN, 2006,
p.60).
E qual mulher se entregaria ao homem, se meditasse sobre o grande perigo de por um filho
no mundo e sobre as fadigas de criá-lo? Assim como deveis a vida ao casamento, deveis o
casamento à minha aia Irreflexão. (ROTERDAN, 2006, p.12)
Essa realidade fictícia, essa loucura, como a chama Erasmo, faz-se necessária para que
possamos, enquanto humanos, localizarmo-nos no mundo. A fantasia neurótica evidencia a
importância dessa realidade que, sendo singular é, entretanto, partilhada. “Por que os planetas
não falam?”, perguntou Lacan (1985) em seu segundo seminário publicado. “Porque não têm
boca”, responderam-lhe. É porque estamos inseridos na linguagem, que o desejo do Outro nos
afeta, e que partilhamos, ao menos em parte, uma realidade comum. Inventada, mentirosa,
mas partilhada. É pela palavra, diz-nos Lacan (1997), que o princípio de realidade constitui o
acesso ao campo do inconsciente, campo essencialmente pulsional.
O sujeito delirante também está inserido na linguagem. O delírio, como bem notou
Freud (2006), é constituído de palavras. Entretanto, ele encontra-se excluído do discurso,
evidenciando, num primeiro momento, o quão inapreensível e aterrorizante é o Real e, num
segundo momento, o quão fictícia é a realidade psíquica.
Numa primeira fase do delírio paranóico – no sentido pré-kraepeliano do termo
paranóia -, o sujeito delirante encontra-se sozinho, em um mundo insuportavelmente
ameaçador, no qual não se vê investimento libidinal algum, nem em si mesmo, nem nos
outros. Aqui, o sujeito também não crê em um investimento libidinal direcionado a si. O
sujeito, nesses momentos, não se vê amado pelo Outro e sequer encontra possibilidade de sêlo. Essa fase do delírio evidencia o insuportável do encontro com o Real, assim como o
radicalismo do desamparo humano, no qual, sem o laço de amor, a existência enquanto
humana se torna insustentável.
13
Na segunda fase do delírio – fase megalomaníaca – o sujeito delirante, ainda sozinho,
excluído do laço, constrói um mundo não tão ameaçador, no qual o investimento libidinal em
si mesmo evidencia-se. É espantoso, nessa fase, o quanto o caráter radicalmente fictício da
realidade psíquica fica evidenciado na estruturação delirante. Aqui, o sujeito constrói um laço
com o Outro, sustentando sua existência. Um laço, entretanto, não partilhado, o que o leva, na
maioria dos casos, a uma dificuldade de inserção no laço social. Esse investimento libidinal
em si mesmo, mostra-se importantíssimo na empreitada da tentativa de cura que o paranóico
traça para si.
Assim, se o delírio dá consistência à realidade do sujeito psicótico, o fato desta
construção não ser partilhável pode levar aquele que o ouve, inadvertido da importância do
delírio para o sujeito, a tomá-lo como pura patologia. O furor sanandis ante a produção
delirante pode conduzi-lo a querer eliminar rapidamente isso que ele interpreta, ao menos
num primeiro momento, como uma disfunção. É comum então que, sobretudo a família – mas
não só a família - tente argumentar racionalmente com o sujeito, dizendo que aquilo não é real
ou encaminhando-o prontamente para que sua medicação seja aumentada, sem antes ouvir, o
quê, daquele delírio, possa ser portador de uma verdade.
Freud (1912) nos adverte que o sentimento mais perigoso para um psicanalista no
exercício de sua função é a ambição terapêutica de alcançar efeitos convincentes em relação a
outras pessoas. É preciso que os psicanalistas estejam advertidos da função do delírio para o
sujeito, criando um lugar de escuta para os mesmos, que tecem seu trabalho, tantas vezes,
solitariamente.
Psicanálise e Psiquiatria lidam com doenças mentais que não têm etiologia orgânica
definida. A psiquiatria trabalha com neuroses e psicoses, medicando-as. A psicanálise,
entretanto, trabalha com sujeitos neuróticos e psicóticos, os sujeitos que restam do discurso
psiquiátrico, ouvindo-os. Ela opera, pois, com o resto, objeto que cai, é deixado pelo discurso
médico.
A abordagem médico-psiquiátrica da psicose carrega consigo a noção de delírio como
fenômeno patológico a ser eliminado. Considerando a psicose uma doença de etiologia
orgânica, o discurso médico-psiquiátrico contemporâneo considera o delírio como efeito – e
não causa - da alteração nos níveis de neurotransmissores no cérebro, o que se tenta corrigir
com a medicação desconsiderando a tentativa de estruturação do sujeito, subjacente à louca
realidade que se apresenta. Que a medicação é importante, imprescindível em certos casos, a
psicanálise não desconsidera. Entretanto, é preciso não se resumir a isso.
14
Assim, se a psiquiatria medica os sintomas, sejam eles neuróticos ou psicóticos, a
psicanálise visa o sujeito por trás desses sintomas. Um sujeito que, como Freud (2006) chama
a atenção, muitas vezes tece um trabalho solitário na tentativa da própria cura. O delírio,
tentativa de cura para Freud (2006), é o mesmo a ser eliminado pela psiquiatria. E é por isso
que o presente trabalho objetiva estudar, não os delírios, mas os sujeitos delirantes.
A entrada no mestrado e a participação na pesquisa intitulada A psicanálise no campo
da saúde mental: a clínica como política, orientada pela professora dra. Doris Rinaldi,
possibilitou o acompanhamento da clínica em um serviço de saúde mental, no qual pôde-se
sustentar a importância da escuta do sujeito, orientada por uma ética que não o foraclui.
Na atividade de convivência que acontecia nesse serviço, os pacientes que não
queriam participar das oficinas terapêuticas tinham a oferta da escuta, a partir da presença de
um integrante da pesquisa, de um estagiário ou de um técnico. Foi assim que se deu a escuta
de Sávio2, um sujeito paranóico, que julgava-se muito Sábio. Ele apresentava um delírio
bastante estruturado, que girava em torno de ser o presidente do país. Após relatar diversas
histórias delirantes, falar de sua candidatura à presidência, de seu autodidatismo nas mais
diversas disciplinas e de como governaria o país, pôde dizer, certa vez, como iniciou sua
relação com o saber. Ele, em seu delírio megalomaníaco, tão Sábio, não era tão inteligente
quanto a irmã e, desde a infância, sentia-se bastante cobrado por isso. Esse assunto, até então,
só havia aparecido por uma via delirante, até que pôde falar dele e de sua irmã, uma pessoa de
sucesso, que teria feito várias faculdades e casado com um marido empresário. Do mesmo
modo, outros assuntos, como sua dificuldade no casamento, puderam, ao longo do trabalho,
ser abordados, paulatinamente, por uma via menos delirante, em que ele aparecia como
sujeito mais ativo, numa posição menos objetalizada.
O delírio vem para dar consistência ao irrepresentável. Assim, se o sujeito, por algum
motivo, está com medo de morrer, pode dizer, delirantemente, que seu fim está próximo, que
estão querendo matá-lo, que está com uma determinada doença... As invenções delirantes vêm
para dar consistência ao que acomete o sujeito, como o medo, por exemplo. E precisam ser
ouvidas, ao pé da letra, como diz Lacan (1985).
O delírio porta uma verdade, como Freud irá dizer ao longo de sua obra, e evidenciar
em seu rascunho H, de 1895, e em Construções em Análise, de 1937. Para além do delírio
enquanto um fenômeno descritivo é preciso escutar o quê, do sujeito, aparece nesse
fenômeno.
2
Nome fictício, mas que remete ao saber, tal qual o nome original do paciente, que carrega, em seu nome, um
significante que o representa como alguém muitíssimo inteligente.
15
Assim como Freud (1900) desvenda o sonho enquanto um fenômeno estruturado – o
que até então não era considerado – do mesmo modo ele o faz com o delírio. Se o sonho é a
via régia para o inconsciente, o delírio é o próprio inconsciente, aparecendo a céu aberto, com
suas livres associações. Portanto, não é um aglomerado de palavras sem sentido, tal qual se
pensava, antes de Freud, ser o sonho. Há no delírio uma ordem, uma estrutura, uma função,
ainda que distinta da função de realização de desejo, presente nos sonhos.
Na clínica psicanalítica, o sintoma neurótico é tomado como uma forma torta de
realização do desejo, uma formação de compromisso na qual jaz um conflito subjacente. E
por isso não pode ser simplesmente abolido. O delírio, de modo análogo, é uma tentativa de
reestabelecer uma ordem no campo pulsional, e por esse motivo também não pode ser
meramente eliminado. Entretanto, pode ser escutado.
Em minha experiência com a clínica da psicose, aprendi rapidamente que não é
possível questionar a verdade delirante, mas comecei a me questionar então, como seria
possível, ao ouvir o delírio com base na relação transferencial, tocar no conflito subjacente a
ele. A construção delirante se dá em torno de um real, um “pedaço de real”, sem significação,
o qual é bordejado pela palavra – ainda que não partilhada. Essa tentativa de cura, entretanto,
traz conseqüências tanto para o campo significante quanto para o campo pulsional, podendo
levar o sujeito a uma exclusão do laço social bastante austera. “Não me deixe ficar maluco”,
foi o apelo feito por um sujeito delirante, após relatar seu delírio.
Dessa forma, o presente estudo visa estudar, não apenas o fenômeno delirante, mas os
sujeitos delirantes, na empreitada de buscar uma direção que nos auxilie a secretariá-los em
um trabalho tão solitário como é o dessa construção. Como afirma Freud, o delírio tem uma
função, uma nobre função: tentativa de cura. Dessa forma, entende-se que, na clínica
psicanalítica, a construção delirante não é algo a ser ignorado ou tratado como um simples
fenômeno psicopatológico. Mas, qual a direção de tratamento quando se trata de uma
construção delirante já estabelecida?
Na tentativa, não de responder, mas de bordejar tal questão, o presente trabalho
abordará o delírio em três momentos.
No primeiro capítulo, estudaremos O delírio e sua relação com a psicose, no sentido
de diferenciar o delírio enquanto um fenômeno descritivo, ainda que associado ao termo
psicose, e o delírio enquanto um fenômeno estruturante, próprio à psicose enquanto estrutura
subjetiva. Dessa forma, serão abordados as origens dos termos psicose, delírio e paranóia,
considerando o contexto da psiquiatria de meados do século XVII ao início do século XX,
assim como as origens dos conceitos de psicose e delírio na obra freudiana.
16
No segundo capítulo, A função paterna e a recusa ao pai, aborda-se a questão da
psicose como uma estrutura clínica, ou seja, um modo de funcionamento específico, assim
como a questão do delírio enquanto tentativa de cura.
Com ênfase na obra do psicanalista Jacques Lacan, avança-se no estudo da recusa
radical à castração que ocorre na psicose. Essa é indicada por Freud ao longo de sua obra e
formalizada por Lacan no termo foraclusão. É na constituição do sujeito do desejo que pode
ser localizada a entrada no laço social, assim como a recusa a esse laço - que se traduz na
recusa à função paterna e que constitui o termo essencial em torno do qual gira a estrutura da
psicose. Dessa forma, estudaremos a função paterna para, em seguida, abordarmos a recusa a
essa função e suas conseqüências. É na recusa à lei paterna que se estrutura a psicose e, o
delírio pode surgir justamente em suplência a esta recusa. Como fenômeno elementar da
psicose, ele surge como verdade histórica do sujeito, tal como indicado por Freud (1937),
como retorno daquilo que foi rechaçado, podendo ser estruturado de forma a restabelecer uma
ordem e possibilitar um nome ao sujeito que venha em suplência à falta de significantização
da existência. Para abordar tais questões, nos utilizaremos dos casos Schreber e Aimée, assim
como do estudo lacaniano em torno de Joyce.
No terceiro capítulo, A psicose e a direção de tratamento, volta-se o olhar mais
especificamente para a clínica da psicose. Nesse sentido, inicialmente discute-se a ética da
psicanálise e sua aplicação à psicose, assim como a questão da transferência - fundamental
para qualquer tratamento psicanalítico – e suas peculiaridades nessa clínica. Em seguida,
discute-se o trabalho do psicótico e seu apelo em busca de um saber-fazer com o que lhe
acomete.
Retoma-se Freud e Lacan para abordar as questões da Ética e da transferência, já que a
ética da psicanálise é uma só, independente da estrutura clínica em questão no tratamento,
enquanto a transferência do sujeito para o analista se dá de forma específica em cada
estrutura, exigindo intervenções e manobras também específicas, a partir de um lugar que é o
de secretário, como Lacan (1955-56) nos aponta. Abordamos, finalmente, a demanda de
tratamento na psicose, assim como as possibilidades de entrada do sujeito em um trabalho de
análise, ou seja, um trabalho que o convide a sair da posição de mártir do inconsciente a de
“psicótico trabalhador”, como nos diz Soler (2007). Esse assunto será tratado a partir de
fragmentos da clínica e da literatura, assim como de um relato autobiográfico.
Destacamos a importância da clínica na estruturação da teoria psicanalítica, já que a
psicanálise é essencialmente uma pesquisa clínica, como o próprio Freud (1913/2006) indica
ao estabelecer que a pesquisa em psicanálise deve ocorrer a partir do próprio tratamento – não
17
sendo possível fora dele, já que não há análise sem transferência. Assim, o presente trabalho é
norteado por fragmentos de um caso clínico, que serão apresentados ao longo do texto, em
especial, no início de cada capítulo.
18
1 O DELÍRIO E SUA RELAÇÃO COM A PSICOSE
Ele [o louco] tende a acreditar que tudo que lhe passa pela cabeça
tem existência real, fora dele. [...]
É nisso que consiste a loucura:
em acreditar nas produções do inconsciente.
(POMPEU, 1983, p.22)
1.1 Um delírio
Alberto está na casa dos 30 anos. Aos 18, levou um tiro no pescoço que o deixou com
seqüelas no aparelho fonador e no aparelho respiratório, além de uma grande cicatriz no
pescoço. Ele estava trabalhando quando alguém mandou que chamasse um traficante, em uma
favela próxima. Ele se recusou e o homem atirou nele. Mas essa é a versão que a família
conta. Segundo ele mesmo, a polícia confundiu-o com um traficante, e por isso atiraram nele.
A partir de então, Alberto parece nunca mais ter sido o mesmo - segundo relatos da
família e dele mesmo.
Conheci Alberto anos depois, em um Centro de Atenção Psicossocial, onde ele já era
acompanhado há algum tempo. Em seu prontuário, constava que ele era usuário de drogas, e
havia também, uma única menção a um possível conteúdo delirante, que era também o modo
como ele se definia: ele fazia chover. Inicialmente, quando ele entreva no consultório, para
seu atendimento individual, dizia que precisava de fluoxetina, para melhorar a angústia, e
pedia para eu transmitir isso ao médico. Dizia isso e já ia levantando rumo à porta de saída.
Aos poucos, observando que eu não anotava no prontuário tudo o que ele dizia, Alberto foi
me contando, desordenadamente, sua história:
Ele fazia chover. Era o responsável pelas chuvas do país. Abanando as mãos para o
céu chamava as nuvens, ou as afastava, de acordo com a necessidade de chuva.
Mas o que mais o afligia era o que havia se dado uns oito anos antes - quando, a partir
de uma grande seca, faltou energia elétrica e o país enfrentou um “apagão”. Embora essa
“crise do apagão” tenha realmente ocorrido em 2001 e 2002, com o racionamento
“voluntário” de energia, nosso paciente nos conta sua própria versão: faltou luz e água em
hospitais e escolas e ele começou a receber inúmeros telefonemas de mulheres, “tinha até
mulher casada”, e pedidos, inclusive da TV globo, para que ele interviesse e mandasse chuva.
19
Ameaçaram-no de morte, caso ele não fizesse chover. “Era Albertinho pra cá, Albertinho pra
lá... você tinha que ver como me tratavam bem, até que eu mandei a chuva e todos
desapareceram. Ninguém mais me ligou. Ninguém me agradeceu. Eu não recebi nem um
obrigado.”
E desde então Alberto teria ficado neste impasse: precisava fazer chover para que não
o pegassem. Ele costumava ouvir muitas vozes que diziam, entre outras coisas, que os
malandros iam pegá-lo. Os “malandros” queriam matá-lo, mas as mulheres ficavam de olho
nele. “Mas se eu morrer eles vão ver: nunca mais vai chover”.
Alberto muitas vezes dizia que Deus não queria que ele morresse, afinal, ele estava
vivo até hoje. E contava, também, que um anjo do mal, quando ele tinha um ano de idade,
veio até ele, tentou matá-lo, mas ele foi protegido pela anja boa. Foi aí que ele soube que faria
chover. Outras vezes, Alberto dizia que achava que ia morrer cedo, que tinha medo de morrer
logo.
Enfim, Alberto nos proporciona um belo exemplo de um delírio psicótico e de como
este delírio está intrinsecamente ligado a sua posição em relação ao Outro. O delírio de
Alberto constitui sua história, o localiza no mundo e explica o porquê de ele ser tão visado:
de quererem matá-lo. Além disso, permite a Alberto sair de uma posição passiva em direção a
uma posição ativa: aquele que faz chover. Com tantas funções importantes para este sujeito,
seria suficiente definir este delírio apenas como uma patologia primária, como acontece na
psiquiatria (DALGALARRONDO, 2008)?
Na clínica de Alberto foi possível acompanhar os efeitos que teve sobre ele a sua
construção delirante, uma vez que algumas conquistas, precárias, mas importantes, puderam
ser alcançadas. Uma delas diz respeito a uma espécie de resolução que Roberto criou para o
conflito da chuva: certa vez disse que tinha deixado a chuva por conta de Deus, pois o pastor
da igreja disse para “não passar na frente de Deus”. De outra feita, Roberto disse que agora a
anja P1 o estava ajudando: ela estava tomando conta da chuva. E ele, Santo Alberto, que já
tinha feito bastante coisa em favor do mundo, agora ia aproveitar a vida: comer do bom e do
melhor.
Nos livros de psicopatologia que determinam a direção de tratamento no âmbito da
psiquiatria, estuda-se o delírio como um “juízo patologicamente falso” e acrescenta-se,
frequentemente, as três características definidas por Jaspers, em 1913: a convicção
extraordinária (certeza subjetiva), a impossibilidade de remoção da idéia pela experiência e, o
conteúdo impossível. (DALGALARRONDO, 2008)
20
Poder-se-ia acrescentar que existe a possibilidade de adicionar a esta definição
psicopatológica do delírio, a característica de sistematizado ou não-sistematizado, no intuito
de ajudar na definição de um delírio paranóico/crônico. E que, Alberto, por exemplo,
apresenta um delírio sistematizado. Entretanto, quando se ouve um delírio paranóico, percebese que não é possível colocar tudo “no mesmo saco” e que esta definição descritiva não
transmite a importância e a função que um delírio tem na vida de um sujeito psicótico.
É justamente nesse ponto que a contribuição da psicanálise se mostra preciosa para o
estudo do tema. Como indica Maleval (1998) só o enfoque estrutural pode dar conta com
rigor da especificidade da função do delírio, já que, para quem se orienta por um enfoque
estrutural, parecem existir modos de defesa específicos, aos quais alguns podem recorrer, e
que têm conseqüências específicas. Enquanto o neurótico recorre ao mecanismo de defesa do
recalque e se orienta no gozo através da fantasia e de seus sintomas, o psicótico recorre à
foraclusão - uma forma de negação mais radical que o recalque - e pode orientar-se no mundo
através do delírio – construção análoga, e diversa, da fantasia.
Desta forma, mais que um fenômeno psicopatológico, passível de ocorrer em qualquer
estrutura, o delírio tem uma função específica na estrutura da psicose. E, se nos primeiros
textos freudianos podíamos ver o termo delírio aparecer em inúmeras situações, independente
de ser um caso de neurose ou psicose, ao longo da obra freudiana, o delírio aparecerá, cada
vez mais atrelado à estrutura da psicose. Isso se deve ao fato de os termos delírio e psicose
serem originários da psiquiatria.
Vejamos, pois, como os termos psicose e delírio estendem-se e modificam-se, da
psiquiatria à psicanálise.
1.2 As origens da noção de psicose
.
O termo psicose foi utilizado pela primeira vez em 1845, no Manual de Psicologia
médica, pelo barão Ernest von Feuchtersleben, um médico vienense. Veio substituir o antigo
termo vesânia, que faz referência a alienação mental, isto é, à loucura. É importante ressaltar
que o termo psicose surge, subordinado a um segundo, a saber, neurose. Dito de outra forma,
a psicose surge, no contexto da psiquiatria, para designar uma classe de doenças específicas
dentro da ordem das neuroses. “Para ele [Feuchtersleben] psicose designa doença mental, ao
21
passo que neurose designa as afecções do sistema nervoso, das quais só algumas podem ser
traduzidas em sintomas de uma ‘psicose’.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p.393)
Façamos, brevemente, uma retrospectiva da concepção de neurose, nos reportando aos
séculos XVIII e XIX. O termo neurose foi proposto em 1777, pelo escocês William Cullen e
designava afecções do sistema nervoso não acompanhadas de febre nem imputáveis a lesões
localizadas. Nos primórdios da psiquiatria agrupava-se sob o nome de neurose o que hoje
poderíamos classificar como transtornos psiquiátricos não orgânicos – isto é, conjuntos de
sintomas específicos sem correlato cerebral orgânico. Entretanto, vale destacar que se
apostava na descoberta destes correlatos.
Para se entender melhor o que era designado pelo termo neurose, vejamos a divisão
feita por Pinel, em sua Nosographie philosophique, de 1798, que segundo Maleval (2009) é
muito próxima à descrição de Cullen (criador do termo neurose).
Pinel - assim como outros alienistas da época - considerava a alienação mental uma
doença - no sentido das doenças orgânicas – originada em um distúrbio das funções
intelectuais, isto é, das funções superiores do sistema nervoso. (BERCHERIE, 1989) Por isso,
a alienação mental foi por ele situada na classe das neuroses, que, como vimos, era composta
pelas afecções do sistema nervoso que não eram acompanhadas de inflamações ou lesões
estruturais, nem de febre.
Segundo Becherie (1989), as neuroses eram divididas por Pinel em 2 tipos: afecções
comatosas (abolição da função) e vesânias (perturbação da função). Maleval (2009)
acrescenta ainda quatro classes à divisão de Pinel: os espasmos, que podem ser entendidos
como os ataques de histeria e epilepsia; as afecções comatosas, que corresponderiam à
catalepsia e ao êxtase das afecções comatosas; as anomalias nervosas locais, que remeteriam
aos fenômenos de conversão, sob o gênero de neuralgias, neuroses do órgão da voz, neuroses
oftálmicas, etc.; e finalmente as vesânias, que agrupariam, além da hipocondria, do
sonambulismo e da hidrofobia, os estados de mania, de melancolia, de demência e idiotismo.
O conceito de psicose surge, desta forma, para ocupar o lugar das vesânias,
subordinado às neuroses. Este termo espalha-se sobretudo na literatura psiquiátrica de língua
alemã, no decorrer do século XIX. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
E é no princípio deste mesmo século, o XIX, que ocorreram descobertas muito
importantes para o então campo das psicoses. Em 1822, Bayle descobriu a anatomia
patológica da paralisia geral, a sífilis nervosa. Desde então, tal morbidade passou a ser um
modelo do estudo da loucura - as então chamadas psicoses. Somou-se a isso a descoberta da
22
correlação anátomo-patológica da psicose de korsakoff (alcoólica) e as lesões histológicas
causadas pela demêncida de Alzheimer e Pick.
O termo psicose, desta maneira, começou a se diferenciar das doenças do cérebro ou
dos nervos – como doenças do corpo – mas também daquilo que a tradição filosófica
denominava “doenças da alma”: o erro e o pecado. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). O
termo psicose designa, então, nesta época, uma patologia grave, de sintomas psíquicos, mas
de etiologia orgânica – ainda que esta etiologia não fosse especificada, isto é, fosse apenas
suposta.
Diante dos avanços anátomo-patológicos a neurose tendia a sair do discurso
psiquiátrico, dando lugar às psicoses. Desta forma, o grupo das neuroses foi aos poucos se
restringindo às afecções em que se supunha um mau funcionamento do sistema nervoso
(neurose cardíaca, neurose digestiva, epilepsia, etc.) e esses doentes compunham um grupo de
pacientes que visitava os médicos, sem ser, em geral, enviado para os asilos. Inversamente, o
termo psicose designava os pacientes asilares, objeto de estudo dos alienistas, e que
apresentavam sintomas essencialmente psíquicos, o que não queria dizer, para os autores que
utilizavam estes termos, que a causa das psicoses não residisse no sistema nervoso.
(MALEVAL, 1991)
Portanto, foi a partir das descobertas anatomo-patológicas de doenças como a sífilis
que o estudo das neuroses foi perdendo força para o campo das psicoses. Entretanto, ainda no
século XIX, com a hipnose de Charcot e a psicanálise de Freud, as neuroses ganham um novo
espaço, sendo definitivamente retiradas do campo das doenças de etiologia orgânica.
Maleval (1991) sublinha que foi assim que surgiu pela primeira vez o par de opostos
neurose x psicose: a partir de um fundamento etiológico e não de fundamentos clínicos. Isto é,
as neuroses passaram a ser aquelas afecções de etiologia não-orgânica, enquanto as psicoses
possuíam etiologia orgânica.
Berrios (2011) acrescenta que o termo psicose, introduzido por Feuchstersleben, em
1845, carregaria a noção de um concomitante psicológico geral de qualquer mudança
neurológica, o que teria permanecido até o século XIX. Desta forma, teria havido um
interessante processo histórico pelo qual as psicoses – que na origem do termo enfatizavam o
adoecimento mental - passaram, gradualmente, a ser consideradas orgânicas, enquanto as
neuroses cruzaram, na direção oposta, para o pólo psicológico.
Entretanto, como é possível que a psicose - esta doença de etiologia orgânica - tenha
passado, ela também, a fazer parte do campo de estudo da psicanálise? Como é possível que a
psicose tenha sido considerada uma neuropsicose?
23
É a partir da paranóia que acontecem as primeiras reflexões de Freud a respeito da
psicose, que ele considerava uma psiconeurose de defesa, e que se caracteriza por um delírio
crônico, tal qual o de Alberto. Mas, como isso foi possível se, como foi visto até então, as
psicoses eram consideradas patologias de origem orgânica?
Se por um lado as descobertas anátomo-patológicas contribuíram para a descoberta da
etiologia orgânica de certas psicoses, por outro lado, a divisão estabelecida entre os estados de
delirium3 e delírio4 permitiu a divisão das psicoses em orgânicas e funcionais.
Foucault (2005) afirma que o termo delírio foi, no início, fortemente associado à
loucura, sendo delirante um dos nomes dados ao louco - o que tornava o termo delírio um
termo muito vago. Berrios (1996, 2006), no mesmo sentido, afirma que os vocábulos délire
(francês) e Wahn (alemão) eram utilizados tanto para loucura como para delírio. O termo
referia-se também ao que conhecemos hoje como delirium, o delirium orgânico, que era
considerado uma forma de insanidade. Assim, o delírio surge no contexto das loucuras, que
abrangiam um sem número de doenças e transtornos, hoje classificadas nas mais variadas
especialidades médicas.
Berrios (2011) e Maleval (1998) nos falam da confusão original feita entre os estados
delirantes crônicos, isto é, nos quais haveria uma lógica evolutiva comum, e nos estados
delirantes crepusculares, nos quais haveria uma aproximação ao sonho.
O primeiro autor enfatiza a importância da redefinição etiológica e fenomenológica da
categoria do delirium para a transformação do termo insanidade funcional no termo psicose.
Ele destaca a importância do estudo da consciência e, em conseqüência, da turvação da
consciência para o isolamento do delirium que, até então, não poderia ser diferenciado do
delírio. Segundo Berrios (2006), é só a partir da noção dos níveis de consciência - que vão da
vigília ao coma, passando pelo sono – que o delirium pode ser claramente distinguido do
delírio, no qual não há prejuízo da função da consciência.
O segundo autor ressalta a importância do estudo evolutivo do delírio em detrimento
às aproximações descritivas que o aproximavam do sonho. Enquanto o estudo evolutivo
permitiu o avanço do estudo da função do delírio para o sujeito, a aproximação ao sonho se
restringiu ao estudo descritivo, por considerá-lo ausente de uma lógica.
E, se considerarmos que os estados crepusculares ou de turvação da consciência são
muito próximos aos sonhos, nos quais há o rebaixamento do nível de consciência, então,
podemos aproximar a indicação de ambos os autores: a diferenciação entre delirium (próximo
3
Estado de rebaixamento da consciência próximo a um sonho acordado que provoca confusão mental, com
desorientação alo e auto-psíquica, além de alucinações, sobretudo, visuais.
4
Crença inabalável, baseada em juízo patologicamente falso.
24
ao estado do sonho e, portanto, repleto de alucinações, sobretudo, visuais) e delírio (juízo
patologicamente falso) parece ter sido fundamental para o isolamento das psicoses funcionais.
É a partir destas separações – isto é, por um lado, psicoses orgânicas e funcionais e;
por outro, delirium e delírio - que as psicoses (funcionais) parecem passar a ser,
definitivamente, também um campo de estudo da psicanálise. Tal qual a neurose, uma
enfermidade de etiologia psíquica.
Vejamos, portanto, como o avanço da noção de delírio contribuiu para o campo de
estudo das psicoses.
1.3 As origens das noções de delírio e de paranóia
Foucault (2005) apontou a proximidade entre as concepções originais de delírio e
loucura e demonstrou a amplitude do termo, que acarretava que inúmeras doenças fossem
associadas ao que era, então, concebido como delírio. Pode-se observar, no trecho a seguir,
retirado do livro História da Loucura, uma definição de delírio do século XVIII - do
Dictionaire Universal de Médecine, de 1746:
A definição mais simples e mais geral que se pode dar da loucura clássica é exatamente a de
delírio: “Esta palavra deriva de lira, sulco, de modo que deliro significa exatamente afastarse do sulco, do caminho reto da razão.” [JAMES, 1746-1748, apud Foucault, 2005, p.237]
Não se deve estranhar, portanto, quando se vê os nosógrafos do século XVIII classificarem
frequentemente a vertigem entre as loucuras, e, mais raramente, as convulsões histéricas; é
que por trás desta é frequentemente impossível encontrar a unidade de um discurso,
enquanto na vertigem se esboça a afirmação delirante de que o mundo está realmente
girando. (FOUCAULT, 2005, p.237)
Desta forma, pode-se observar que o termo delírio abarca, originalmente, um sem
número de quadros: paranóia, delirium alcoólico, conversões histéricas, e até mesmo
vertigens. E, embora o vocábulo delírio tenha surgido no século XVI, já significando “falsa
opinião ou crença fixa em relação a coisas objetivas” (Maleval, 1998), vale destacar que esta
definição original não diz respeito ao erro de julgamento, como na definição psicopatológica
atual, mas ao erro como desvio da razão – o que pode ser lido não apenas como erro de
julgamento, mas também como erro de percepção, erro de comportamento, etc.
25
Pinel, por exemplo, utilizou, em 1809, o termo délire, para se referir, tanto a um erro
específico de julgamento, quanto à frenite5 (Berrios, 2011). Já Esquirol adotou, em 1814, uma
visão do delírio como uma perturbação perceptual, primariamente: uma pessoa seria delirante
quando suas idéias não estivessem em relação com suas sensações e as alucinações seriam a
causa mais freqüente de delírio.
Mas, se desde a medicina grega do século V a.C. os sintomas mentais e corporais se
combinavam sem maiores problemas (a ausência de febre, por exemplo, foi usada, desde esta
época até o século XIX, para separar as loucuras convencionais ou vesânias - mania, paranóia,
etc - dos estados delirantes secundários à doença física); por outro lado, no século XVII, a
aceitação da separação cartesiana entre as substâncias extensa e pensante acarretou uma
torção conceitual na noção de loucura: a idéia de que doenças mentais poderiam ser
acarretadas por doenças físicas passou a ser um problema. (BERRIOS, 2011). Portanto, no
século XIX, “ou a loucura é uma afecção orgânica de um princípio material, ou é a
perturbação espiritual de uma alma imaterial” (FOUCAULT, 2005, p.213), não sendo
possível a existência de uma perturbação da alma com origem orgânica - como eram até então
considerados os casos de estados delirantes febris.
Segundo Foucault (2005) os estudiosos do século XVIII travam uma grande discussão
em torno da origem da loucura e, em conseqüência, da origem do delírio: “a alma dos loucos é
louca?”
Sob a influencia de Locke, muitos médicos procuravam a origem da loucura numa
perturbação da sensibilidade: se se vêem diabos, ou se ouvem-se vozes, a alma não
tem nada a ver com isso, ela recebe como pode aquilo que os sentidos lhe impõem.
Ao que Sauvages, entre outros, respondia: aquele que vê turvo e vê em dobro não
está louco; mas aquele que, vendo em dobro, acredita que existem dois homens,
está. Perturbação da alma, não do olho; não é porque a janela está em mau estado,
mas porque o morador está doente. Essa é a opinião de Voltaire. (FOUCAULT,
2005, p.212)
Desta forma, e sob a influência de John Locke, que tendia a considerar a loucura como
um erro da sensopercepção, muitos estudiosos procuravam a origem da loucura e, portanto,
dos delírios, numa perturbação da sensibilidade. (Foucault, 1987/2005) Sob a justificativa de
que a alma seria imutável, a doença só poderia ser orgânica. (Berrios, 2006) Havia, assim, no
século XVIII, uma divisão teórica: uns, crendo na imutabilidade da alma, baseavam-se no erro
5
Inflamação do Diafragma que pode gerar quadros de confusão mental e que chegou a ser considerada, na
Grécia Antiga, causa da loucura.
26
da sensopercepção e apostavam na etiologia orgânica da loucura; outros, acreditando que se
tratava de um erro de julgamento, apostavam no adoecimento da alma.
No século XIX, alguns estudiosos da loucura, apostando no erro de julgamento,
começam a tentar circunscrever os delírios segundo um modo de evolução interna que lhes
seria próprio; enquanto outros, considerando a origem do erro na sensopercepção,
consideravam o delírio análogo aos sonhos, acreditando que sua evolução seria tão mutável e
variável como os últimos.
Assim, o delírio ia sendo divido em delirium e delírio: o primeiro, uma “afecção do
corpo” e, o segundo, uma “afecção da alma”.
Berrios (2011) afirma que a “aceitação pela psicologia clássica de uma visão da
consciência como uma função separada levou a psiquiatria a reinterpretar a desorientação e a
confusão de idéias como perturbações dessa nova função.” (BERRIOS, 2011, p.175) Esta
noção teria possibilitado a idéia de perda do controle voluntário sobre as funções intelectuais,
contribuindo, assim, para a diferenciação entre delírio e delirium.
Em seu livro The history of Mental Symptoms, Berrios (2006) enfatiza a importância
da noção psicopatológica de consciência e, consequentemente, de turvação da consciência
(rebaixamento da consciência, em grau leve a moderado) para diferenciar delirium - no qual a
turvação estaria presente – e delírio - no qual não haveria alteração quantitativa ou qualitativa
da consciência. Desta forma, a noção de níveis de consciência - da vigília ao coma, passando
pelo sono -, contribuiu para a aproximação do mecanismo do delirium com o mecanismo dos
sonhos e possibilitou, por outro lado, a diferenciação do delírio, que não afetava o nível da
consciência ou a orientação alopsíquica – isto é, a capacidade de se localizar no tempo e no
espaço.
Por outro lado, Maleval (1998) enfatiza a importância do estudo evolutivo do delírio
para a diferenciação do mecanismo envolvido nos delírios e nos sonhos, já que o primeiro
apresentava uma lógica evolutiva, enquanto o último, não.
Destaca-se que, se inicialmente Freud aproximará o sonho da loucura, como veremos,
não é no sentido já estabelecido da desordem do sonho, uma vez que, para Freud, o sonho é
carregado de uma estrutura: todo sonho porta uma realização de desejo - isto é, o sonho, para
Freud, possui, tal qual o delírio, uma lógica, é estruturado de alguma maneira. Entretanto, ao
longo da obra, diferenciações serão feitas, e ver-se-á, sobretudo a partir do estudo lacaniano,
que o tema do desejo na psicose se distingue radicalmente do desejo na neurose,
diferenciando as formações do inconsciente - como o sonho – dos fenômenos psicóticos –
como o delírio e as alucinações verbais. Voltemos ao estudo evolutivo das loucuras.
27
Guislain (1797-1860), assim como Pinel e Esquirol, considerava as loucuras como
reações psicológicas a um estado de dor moral; a causa da loucura era, para ele, uma causa
moral, embora admitisse uma predisposição hereditária. Uma de suas principais contribuições
diz respeito ao termo delírio:
Sob o nome de delírio, destacou as formas com idéias delirantes primárias das formas em
que o delírio era secundário aos distúrbios afetivos (depressão, ansiedade, exaltação)
assimilando pela primeira vez uma classe de psicoses delirantes que, mais tarde, os alemães
chamariam de paranóia, e que ele distinguiu dos distúrbios afetivos de tipo maníaco e
melancólico. (BERCHERIE, 1989, p.71-72)
Foi Guislain quem influenciou radicalmente Griesinger (1817-1868), o primeiro
psiquiatra considerado organicista. Griesinger foi o autor do primeiro verdadeiro tratado de
psiquiatria - já que a obra de Esquirol e Pinel foi considerada mais uma coleção de verbetes
que um manual de psiquiatria. Ele aproximava sonho e delírio, apesar de ter contribuído para
o estudo evolutivo da loucura e foi também um dos psiquiatras que mais influenciou o estudo
psicanalítico de Freud:
Griesinger sem dúvida influenciou Freud vivamente; de fato o exemplar pertencente a ele
estava ‘cuidadosamente sublinhado a lápis’, em particular ‘ é do mais alto interesse o
acúmulo de notas a lápis nas paginas em que Griesinger apresenta sua teoria do ego e sua
concepção da metamorfose do ego’ no delírio, teses que Freud retomaria muito amplamente.
(BERCHERIE, 1989, p.73)
Apesar de organicista, é através de Griesinger que a revolução pineliana (clínica
psiquiátrica francesa) penetra na Alemanha. A escola alemã conservou sempre tentações
totalizantes e uma tendência a partir de uma interpretação fisiológica do quadro clínico e da
inter-relação dos sintomas, diferente da escola francesa, como o próprio Freud (189294/2006) nos ensina no Prefácio à tradução alemã das Conferências das Terças-feiras, de
Charcot:
Enquanto a descrição dos clínicos é o tema central da nosografia, a tarefa da clínica médica é
averiguar até o fim a forma individual que cada caso assume e a combinação de seus
sintomas. [...]
Essa forma de abordagem [método francês] é, de fato, estranha ao método alemão. Para este,
o quadro clínico e o tipo não desempenham qualquer papel de relevo, e é explicada pela
evolução dos clínicos alemães: uma tendência a fazer uma interpretação fisiológica do estado
clínico e da inter-relação dos sintomas. A observação clínica dos franceses,
indubitavelmente, ganha em auto-suficiência, no sentido de que relega a plano secundário os
critérios relativos à fisiologia. (FREUD, 2006, p.176)
Ao tratar das características gerais da loucura e de suas analogias com certas formas
‘normais’ de experiência, Griesinger descreveu em especial suas afinidades com o sonho e a
28
hipnose. No tocante ao delírio, demarcou seu domínio sob a denominação de Verrücktheit
[perturbação do espírito], distinto da Versinnung [confusão mental] (KAUFFMANN, 1996).
Alguns anos mais tarde Kraepelin adotou essa delimitação, simplesmente substituindo o
termo Verrücktheit por paranóia.
No plano nosológico, podemos observar o progresso representado pelo isolamento do grupo
dos delírios crônicos, já preparado por Guislain. [...] O fato de eles serem considerados
sempre secundários a um episódio agudo certamente representou uma imperfeição [...] e que
Griesinger deveria corrigir mais tarde, ao reconhecer a existência da Verrücktheit primária de
Snell; Baillarger também contestaria a presença constante de uma debilitação intelectual,
prenunciando o debate da década de 1900 entre os alienistas franceses e alemães (Kraepelin)
sobre as formas sistematizadas dos delírios crônicos alucinatórios (BERCHERIE, 1989,
p.77-78)
Bercherie (1989) assinala que foi a partir do estudo evolutivo da loucura que
Griesinger pôde isolar o delírio crônico e apontar um tipo de delírio como fenômeno primário:
Essa foi a primeira aparição de uma fenomenologia das ‘experiências delirantes primárias”
(Jaspers), bem como de uma distinção de camadas estruturais diferentes na massa dos
fenômenos delirantes. [...]
Griesinger apresentou-nos uma nosologia erigida sobre a idéia da evolução das formas
clínicas; foi isso que lhe permitiu isolar os delírios crônicos. [...]
Assim, vemos surgir um novo critério clínico – a evolução – na construção nosológica.
(BERCHERIE, 1989, p.77-78)
Chama à atenção a semelhança que a teoria do eu, de Griesinger, tem em relação à
organização psíquica descrita por Freud (2006) em seu Projeto para uma psicologia
científica. Griesinger concebe a inteligência como uma atividade associativa que teria por
base as representações mentais. Estas últimas, por sua vez, provinham das sensações, e
haveria entre a percepção e a consciência uma multidão de analogias importantes.
Sua noção de eu e de metamorfose do eu, que seria retomada por Freud, sobretudo no
tocante ao delírio, implica a idéia de tendências e representações que lutavam por ocupar o
campo da consciência e por se transformar em atos.
Nessa luta, ganhava a tendência mais forte, mas alianças eram formadas através de
associações entre as tendências formando complexos de ideias cada vez mais solidamente
encadeadas. A natureza desses complexos dependia de sua história e dos acontecimentos
externos com que o eu se deparava. As representações harmoniosas seriam ‘reforçadas’ e
poderiam consumar-se, enquanto as outras seriam recalcadas (o termo é tomado do psicólogo
alemão Herbart, 1776-1841, grande influenciador de Griesinger). Mas o eu, tal qual na
puberdade, poderia sofrer modificações: assim como as mudanças orgânicas da puberdade
29
geravam uma série de novas sensações, acarretando novas associações de ideias; do mesmo
modo modificações orgânicas causadas pela doença cerebral poderiam acarretar modificações
no eu. (BERCHERIE, 1989) No trecho a seguir, Bercherie (1989) descreve como ocorria,
para Griesinger, esta modificação no eu e, como, a partir disso, ele pôde isolar o delírio
sistematizado do delírio crônico, que levaria à demência:
‘A doença cerebral faz nascerem disposições e pendores que se tornam ponto de partida de
emoções’: ela modificava sutilmente o regime de fluxo dos pensamentos, o ‘ritmo’ da
atividade mental, para empregarmos uma formulação moderna, mas também o humor básico
e os diversos sentimentos.
[...]
Esses fenômenos eram inicialmente sentidos pelo eu num obscuro sentimento de angústia, de
dor moral (a frenalgia inicial de Guislain). Ele podia se deixar arrastar ou, ao contrário,
reagir, [...] exaltar-se e ser invadido por um estado de humor inverso. De qualquer maneira,
progressivamente, o novo estado mental dava origem a representações concordantes, a
‘juízos falsos (idéias fixas) que o doente não consegue retificar’
‘os juízos falsos tornam-se parte integrante do eu’ assim metamorfoseado. A luta podia
parar, dissipar-se a tempestade mental e o doente recuperar um pensamento ‘formalmente
exato’, mas as idéias anormais deslizavam para dentro dele como premissas irresistíveis; ‘o
doente já não é, sob nenhum aspecto, o mesmo que era antes; é inteiramente diferente: seu
eu transformou-se num eu novo e falso”. Essa era a loucura sistematizada (Verrücktheit). O
processo podia ser mais destrutivo: podia dissociar o eu em diversas massas pouco coerentes
e contraditórias (discordantes, dir-se-ia mais tarde), fazendo a unidade da pessoa desaparecer
na demência. (BERCHERIE, 1989, p.75, grifo nosso)
A partir disso, o estudo evolutivo das loucuras foi sendo aprimorado, como pode-se
observar com o psiquiatra francês Jean-Pierre Falret (1794-1870) que também contribuiu para
o estudo do delírio. Ele foi um dos primeiros a isolar a “loucura circular” – psicose maníacodepressiva - e o primeiro a dividir o delírio crônico em etapas evolutivas. Segundo ele, o
delírio se desenvolve segundo leis que lhe são próprias e pode ser dividido em três fases: uma
fase de incubação, dominada por um sentimento de angústia e dor moral, além de alucinações
e idéias variadas e vacilantes; uma de sistematização, em que o distúrbio das faculdades
intelectuais e afetivas era encarnado em algumas séries de ideias determinadas e; uma de
cronificação, na qual o delírio, já estereotipado e imutável tornava-se, a partir de então,
incurável.
Assim como Falret; Lasegue, Magnam e Kraepelin também se dedicaram ao estudo
das loucuras através de suas formas evolutivas.
Lasègue (1816-1883) distinguiu duas fases no delírio de perseguição: a primeira, um
mal estar indefinível e, a segunda, uma tentativa de explicar os males sofridos. Ele ainda
diferencia o delirium alcoólico do delírio, aproximando o primeiro dos sonhos.
30
Magnan (1835-1916) retoma a descrição do delírio crônico de Lasègue, dividindo-o,
porém, em quatro períodos: um primeiro período, de incubação e inquietude. Um segundo, de
perseguição e sistematização. Um terceiro período, de grandeza, no qual as idéias de grandeza
apareceriam por dedução lógica e, um quarto período, de demência.
Kraepelin (1883-1913), cuja ampla nosologia6 repousa, em grande parte, sobre a
noção de evolução, distinguiu três grupos fundamentais de psicoses, os quais passarão, pouco
a pouco, a fazer parte do campo de estudos da psicanálise: a paranóia, a loucura maníacodepressiva, que se tornaria a psicose maníaco-depressiva, e a demência precoce - que se
tornaria, com Bleuler, em 1906, a esquizofrenia. A nosologia kraepeliana foi largamente
utilizada por Freud. Destaca-se que Kraepelin adotou a delimitação de Griessinger,
substituindo o termo Verrücktheit por paranóia – o delírio sistematizado dos franceses.
(KAUFMANN, p. 391). Nesse quadro, Kraepelin definiu a paranóia como uma doença de:
‘desenvolvimento insidioso, na dependência de causas internas e segundo uma evolução
contínua, de um sistema delirante, duradouro e inabalável, que se instaura com uma completa
preservação da clareza e da ordem no pensamento, no querer e na ação’ Segundo ele, tratavase de uma doença ‘constitucional’ que repousava em dois mecanismos fundamentais: o
delírio de referência e as ilusões de memória, ambos produtores de diferentes temas de
perseguição, ciúme e grandeza. (ROUDINESCO, 1998, p.572-573)
À paranóia e à demência precoce, acrescentou-se ainda um termo intermediário, a
parafrenia, que designava um delírio crônico, situado entre a demência precoce e a paranóia.
A parafrenia seria acompanhada de enfraquecimento intelectual e não evoluiria para a
demência, mas se aproximaria dela pelas suas construções delirantes ricas e mal
sistematizadas. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Kraepelin cunhou, ainda, o termo
dementia paranoides - forma paranóide da demência precoce – ao lado das já reconhecidas
formas hebefrênica e catatônica da demência precoce.
Assim, enquanto a acepção pré-kraepeliana da paranóia era a de uma entidade clínica
muito ampla, que agrupava a maior parte das formas de delírios crônicos, (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001), Kraepelin divide-a em três grupos, de acordo com a sistematização
delirante: a demência precoce, a parafrenia e a paranóia.
Vale destacar que a distinção entre paranóia e demência precoce feita por Kraepelin
não é apenas descritiva, ou seja, não se restringe à presença/ausência dos sintomas e à
sistematização ou não do delírio. Segundo Roudinesco e Plon (1998), na nosologia
kraepeliana a demência precoce se diferencia da paranóia porque na primeira, a personalidade
6
Em 1883 surgiu o compêndio de psiquiatria de Emil Kraepelin. Em trinta anos ele conheceria oito edições e
iria, de 380 à duas mil e quinhentas páginas. Não haveria uma só edição sem modificações. Mas algumas, são
mais cruciais, por terem sido consagradas pelo uso dos psiquiatras da época. (Laplanche e Pontalis, 2001).
31
corporal do sujeito seria lesada, sendo que o sujeito sofreria da ação de forças estranhas sobre
o organismo; enquanto na segunda, isso não ocorreria. Neste sentido, Kraepelin afirma:
Na paranóia verdadeira observei algumas vezes a idéia de uma influência proveniente de
alimentos envenenados, mas nunca, ao contrário, a concepção de se estar entregue, como um
joguete inerte, à dominação de uma personalidade alheia. (KRAEPELIN, 1988 p.164)
Neste trecho, Kraepelin parece antecipar um dos pontos essenciais ao estudo freudiano
da paranóia, sobretudo com o famoso caso Schreber: a mudança de fase da enfermidade de
Schreber se destaca exatamente nesta diferença: se na primeira fase o sujeito é objeto de uma
invasão e está completamente dominado pelo Outro, tal qual Kraepelin identifica na demência
precoce; na segunda fase, embora o sujeito possa sentir-se perseguido, não há um
assujeitamento completo; o que seria característico da paranóia kraepeliana. E, é através da
construção delirante que Schreber sai desta posição de “joguete inerte”.
Desta forma, observamos que, mesmo apostando na origem orgânica da loucura, o
estudo evolutivo das chamadas ‘doenças mentais’, assim como o estudo da lógica do delírio,
foi essencial para o estudo psicanalítico da paranóia.
Entretanto, mesmo a psiquiatria organicista se dividirá no estudo da psicose,
considerando-a um fenômeno estruturado ou não. O psiquiatra francês Henri Ey (1900-1977),
por exemplo, funda sua clínica sobre os níveis da desestruturação da consciência e não sobre a
investigação de mecanismos psíquicos específicos do delírio, o que o levou a retomar a noção
de delírio como um fenômeno desestruturado: “o delírio não se desenvolve como um cristal
ou como uma semente, e não está condicionado por uma estrutura elementar que o determine”
(EY, 1974, p.522)
São noções tais como as de Heni Ey que foram passando a predominar na psiquiatria,
chegando soberanas aos manuais psiquiátricos e livros de psicopatologia atuais: uma
conceituação descritiva, com a qual chega-se a definição de delírio como juízo
patologicamente falso (DALGALARRONDO, 2008). Frequentemente acrescenta-se à
definição atual de delírio três características descritivas, definidas por Jaspers, em 1913:
convicção extraordinária (certeza subjetiva), impossibilidade de remoção da idéia pela
experiência e, conteúdo impossível. Tais definições, por serem descritivas, e não estruturais,
se mostram bastantes limitadas, uma vez que não permitem avançar na questão da função do
delírio para o sujeito. É assim que Lacan, contemporâneo e amigo de Henri Ey, instala, a
partir da década de 1930, um embate teórico com o mesmo: Lacan aposta, tal qual Freud, na
psicogênese da loucura, enquanto Henri Ey aposta na organogênese da mesma – sem qualquer
estrutura ou influência do psiquismo. (LACAN, 1998)
32
Enfim, a psicanálise freudiana se insere neste contexto, anterior ao embate referido,
com seus primórdios no final do século XIX e seu desenvolvimento no início do século XX.
Apostando na psicogênese herdada da escola francesa, Freud insere, inicialmente, a paranóia
no campo das neuroses, isto é, uma enfermidade que tem suas origens em conflitos psíquicos.
Posteriormente, desenvolve uma teoria que tenta explicar a função do delírio para o sujeito,
assim como o mecanismo estrutural da psicose.
Tentemos destacar, pois, no percurso freudiano, esta empreitada.
1.4 Freud: a importância da noção de delírio para a conceituação da psicose
Ao longo de sua obra, vemos Freud se referir à paranóia, ora como uma neurose, ora
como uma neuropsicose, ora, ainda, como uma psicose, o que pode parecer obscuro ao leitor
desavisado, que carrega consigo a noção dicotômica de neurose e psicose como estruturas
clínicas que não podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo sujeito. Entretanto, vale
destacar que o termo psicose, retirado da psiquiatria, só terá o estatuto de conceito
propriamente psicanalítico em 1924.
A partir do que foi visto nos itens anteriores, pode-se melhor entender que Freud, no
início de seus estudos, considerava a paranóia uma neurose – no sentido de uma enfermidade
de etiologia psíquica. E se, mesmo no início da obra, o autor se refere, por diversas vezes, à
paranóia como uma psicose, é porque esta utilização do termo é puramente descritiva, ou seja,
se refere ao quadro sintomático. No trecho transcrito a seguir, do Rascunho H, de 1895, podese observar isso com bastante clareza. Neste texto, Freud faz referência à paranóia como uma
psicose, mas apenas no início do artigo, quando menciona a opinião da psiquiatria, que
considera a etiologia orgânica das psicoses. Ao longo de todo o manuscrito, Freud defende a
etiologia psíquica da paranóia, enquadrando-a nas defesas neuróticas.
Na psiquiatria, as idéias delirantes situam-se do lado das idéias obsessivas como distúrbios
puramente intelectuais, e a paranóia situa-se ao lado da loucura obsessiva como uma
psicose intelectual. Se as obsessões já foram atribuídas a uma perturbação afetiva e se
encontrou prova de que elas devem sua força a um conflito, então a mesma opinião deve ser
válida para os delírios, e também estes devem ser conseqüência de distúrbios afetivos, e sua
força deve estar radicada num processo patológico. Os psiquiatras aceitam o contrário deste
fato... (FREUD, 1895, p.253-254)
33
Em um trecho de uma carta a Fliess, a carta 61, de 2 de maio de 1897, Freud
classifica, claramente, a paranóia como um tipo de neurose:
Percebo, agora, que todas as três neuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia) mostram
os mesmos elementos (ao mesmo tempo que mostram a mesma etiologia) – ou seja,
fragmentos mnêmicos, impulsos (derivados da lembrança) e ficções protetoras, e percebo
que a irrupção na consciência, a formação de compromissos ( isto é, sintomas), ocorre
nessas neuroses em pontos diferentes. (FREUD, 1897, p.296, v.1)
Também nos artigos Neuropsicoses de defesa, de 1894, e Observações adicionais
sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896, Freud classifica claramente a paranóia como uma
neurose - ou seja, uma defesa psíquica - junto à histeria e à neurose obsessiva. No segundo
texto, contudo, o autor se refere à paranóia como uma “psicose de defesa”. Assim, mesmo
aproximando neurose e psicose, já é patente sua tentativa de diferenciar o mecanismo de
defesa de cada uma delas.
Em ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação incompatível foi
efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda
que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e
bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e
se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento
em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como
“confusão alucinatória”. (FREUD, 1894, p.64, v.III)
Por tempo considerável tenho alimentado a idéia de que também a paranóia [...] é uma
psicose de defesa; isto é, que tal como a histeria e as obsessões, ela provém do recalcamento
de lembranças aflitivas, sendo seus sintomas formalmente determinados pelo conteúdo do
que foi recalcado. Entretanto, a paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de
recalcamento que lhe é peculiar, assim como a histeria efetua o recalque pelo método da
conversão em inervação somática, e a neurose obsessiva, pelo método da substituição.
(FREUD, 1896, p. 174, v. III)
Ao mesmo tempo em que considera a paranóia um mecanismo específico de defesa,
análogo ao da neurose, Freud chama a atenção para a importância que o delírio tem para o
paranóico. É o que pode-se observar no Rascunho H, sobre a paranóia, de 1895:
Ora, sucede que a paranóia crônica, na sua forma clássica, é um modo patológico de defesa,
tal como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória. As pessoas tornam-se
paranóicas diante de coisas que não conseguem tolerar, desde que para isso tenham a
predisposição psíquica característica. (FREUD, 1895, p.253, grifo nosso)
Qual seria a peculiaridade da defesa paranóica? (FREUD, 1895, p.257)
Em todos os casos, a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra
idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus
delírios como a si mesmas) (FREUD, 1895, p.257, grifo nosso)
34
Neste mesmo texto, Freud (1895) nos apresenta um caso de paranóia 7 e faz sua
interpretação a respeito dele. Convém assinalar a busca da especificidade do mecanismo
paranóico, em analogia ao mecanismo neurótico, assim como a antecipação teórica que este
caso parece fazer, no que diz respeito, tanto às alucinações, como ao delírio de perseguição.
Uma senhora procura Freud, e relata que a irmã havia contado a ela sobre uma
tentativa de assédio, após o que caiu em surto paranóico, desenvolvendo delírios de ser
observada e perseguida: “achava que suas vizinhas tinham pena dela por ter sido abandonada
pelo pretenso namorado e por ainda estar esperando que o homem voltasse; estavam sempre a
lhe dizer insinuações dessa natureza, diziam-lhe todo tipo de coisas a respeito do homem, e
assim por diante. Tudo isso, dizia ela [a irmã], era naturalmente inverídico” (FREUD, 1895,
p.255). Freud nos diz que tenta curar a moça da tendência paranóica fazendo-a reviver a cena,
mas que é em vão, uma vez que a moça nega ter vivido acontecimento semelhante e vai-se
embora, ofendida. O autor observa que não há dúvida que se trata de uma defesa, mas de um
tipo diferente:
Provavelmente, na realidade, ela ficava excitada com o que viu e com a lembrança do fato.
Logo, estava-se poupando da censura de ser uma “mulher depravada”. Daí em diante,
passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o tema permanecia
inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes, tratara-se de uma autocensura
interna; agora, era uma recriminação vinda de fora. O julgamento a respeito dela fora
transposto para fora: as pessoas estavam dizendo aquilo que, de outro modo, ela diria a si
mesma. Havia uma vantagem nisso. Ela teria sido obrigada a aceitar o julgamento
proveniente de dentro; já o que vinha do exterior, podia rejeitar. Dessa forma, o julgamento,
a censura, era mantida afastada de seu ego.
Portanto, o propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego,
projetando seu conteúdo no mundo externo. (FREUD, 1895, p.255, grifo nosso)
Portanto, já em 1895, Freud tenta explicar os fenômenos alucinatórios e delirantes
pelo mecanismo de uma defesa mais radical, na qual o fragmento mnêmico é “rechaçado” do
eu, retornando “de fora”. Defesa mais radical, mas que, neste momento, se classifica como
defesa neurótica – em virtude de sua etiologia psíquica.
Freud notou também, ainda no século XIX, que haveria uma “predisposição psíquica”
(FREUD, 1895, p.257) para cada uma das ‘neuroses’. Mas, é só mais tarde na obra freudiana
que a psicose será definida independentemente da neurose, sendo só nos artigos Neurose e
Psicose e Perda da realidade na neurose e na psicose, ambos de 1924, que Freud introduz,
pela primeira vez, a psicose enquanto conceito teórico. Acrescenta-se que isso se dá a partir
da distinção que ele faz entre neurose e psicose, distinção, por sua vez, feita através da noção
7
Ao longo da obra freudiana observa-se o uso do termo paranóia em seu sentido pré-kraepeliano.
35
de perda/substituição da realidade que ocorreria nesta última, isto é, através do delírio – que já
era considerado, desde 1911, com o caso Schreber, uma tentativa de cura paranóica.
Mas, assim como o termo psicose foi utilizado inicialmente de forma descritiva, do
mesmo modo o termo delírio também o foi. É o que será destacado no também famoso texto
Delírios e sonhos na Gradiva de W. Jensen.
Neste ponto, buscar-se-á apreender, por um lado, o momento, já indicado, em que a
psicose passa a constituir um conceito teórico propriamente psicanalítico; e por outro, o
momento em que o delírio passa a ser utilizado, não como um termo descritivo, mas como um
fenômeno relacionado à psicose.
Inicialmente, Freud parece não diferenciar o delírio do delirium, como aponta o trecho
a seguir, retirado de um artigo sobre neurose de angústia, de 1895: “por meio da soma, um
alcoólatra crônico desenvolverá finalmente uma cirrose ou alguma outra doença, ou ainda, por
influência de uma febre, cairá vítima de um delírio.” (FREUD, 1895[1894], p.107, grifo
nosso).
Além disso, neste momento inicial de sua obra, o autor parece apresentar uma visão
onírica da loucura, aproximando a loucura e a psicose dos sonhos. Isso se evidencia, por
exemplo, na parte H, do primeiro capítulo, de A interpretação dos sonhos, no qual o autor
discute “as ligações intrínsecas entre os sonhos e as psicoses, apontando as analogias para o
fato de eles serem essencialmente afins” (FREUD, 1900, p.123) e cita diversos autores que
aproximavam o sonho da doença mental, dentre eles, Wundt, Moreau e Hagen, sendo que este último - “descreve o delírio como uma vida onírica que é induzida não pelo sono, mas
pela doença.” (FREUD, 1900, p.125). Neste capítulo de A Interpretação dos Sonhos, Freud
chega a conjecturar que o estudo dos sonhos poderia contribuir para uma explicação das
psicoses, no sentido de que a elucidação do modo de funcionamento do sonho acarretaria na
elucidação do funcionamento da psicose.
Destaca-se que, se esses autores aproximavam sonho e loucura, não entendiam, tal
como Freud, que o sonho constituía a via régia para o inconsciente. A inovação de Freud é,
justamente, considerar o sonho não como uma desordem, mas como um fenômeno
estruturado. É assim que a aproximação freudiana entre sonho e loucura tem um caráter muito
diferente das aproximações feitas até então.
Entretanto, inicialmente, se o sonho é uma realização de desejo, Freud também
aproximará, como faz em 1907, o delírio de uma realização de desejo. É ao longo da obra
freudiana e com o avanço da teoria que ver-se-á as diferenças estruturais entre estes dois
fenômenos sendo estabelecidas.
36
Desta forma, ao apresentar o estudo analítico Delírios e sonhos na Gradiva de Jansen,
Freud (1907) traz, sob o nome de delírio, a fantasia e os devaneios neuróticos de um jovem.
Fantasia esta, muito próxima de um sonho, inclusive no sentido da representação da
realização de um desejo recalcado. Mas muito próxima também da definição psicopatológica
de delírio, que como disse Freud, chegava a “influenciar suas ações” (p.25), ao ponto de levar
o jovem a, crendo em sua própria criação, viajar uma longa distância até Pompéia, onde
acreditou que poderia encontrar sua Gradiva, uma mulher-fantasma. Vendo uma escultura que
lhe cativava pela forma de pisar da mulher, Norbert cria uma fantasia: nomeia a mulher da
escultura de Gradiva e cria-lhe uma história. Acreditando que ela realmente existe, Norbert
vai em busca desta mulher inventada. É só com o trabalho de delicada escavação, feito por
Zoé, tal qual uma analista, que Norbert é capaz de desvendar sua “fantasia delirante” - como
denomina Freud. Gradiva é remetida, pelo jeito de andar, desde sempre, à Zoe: um amor de
infância, a mulher que ele realmente procurava e que encontrou em Pompéia – embora fossem
quase vizinhos. É só com o trabalho de interpretação, equivocando as falas e apontando,
delicadamente, que ele poderia procurar esta mulher em outro lugar, que Norbert pode se dar
conta de seu desejo recalcado. Portanto, Norbert vai em busca de seu desejo insatisfeito, ainda
que, pelo disfarce, pela metáfora, não saiba o que procura.
Nesse sentido, vemos que Freud, em 1907, utiliza uma definição descritiva do delírio,
o que permite, neste momento da obra, aproximá-lo dos sonhos e da representação do desejo
inconsciente. É assim que, nesse sentido, torna-se possível utilizar o termo delírio para falar
de um caso de neurose.
Em 1911, ao escrever o famoso Caso Schreber, Freud apresenta uma nova concepção
de delírio que o articula estreitamente à estrutura da paranóia. Neste texto ele vincula o
surgimento da paranóia a um desejo homossexual recalcado. Assim, se, por um lado, a noção
de paranóia como defesa de um desejo homossexual continua sendo descritiva, na medida em
que se foca no conteúdo do delírio e não na estrutura do mecanismo; por outro lado, o autor
rompe com a psicopatologia descritiva, na medida em que apresenta o delírio paranóico como
uma tentativa de cura. “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na
realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”. (FREUD, 1911,
p.78)
Portanto, embora a correlação entre paranóia e homossexualidade possa ser discutida 8,
é importante ressaltar que este modo de conceber a origem da paranóia contribuiu em muito
8
Jacques Lacan discutirá essa questão no seminário 3, dedicado às psicoses, no qual retoma o estudo do caso
Schreber. Abordaremos tal seminário no capítulo subseqüente.
37
para o entendimento da posição estrutural que o paranóico ocupa em relação ao Outro. A
proximidade da psicose ao feminino - que Freud apresenta sob a forma de desejo
homossexual, e que Lacan chamará, em 1972, em O Aturdito, de empuxo-à-mulher (LACAN,
2003, p.466) – deve-se ao lugar de objeto que ambos, psicótico e mulher, ocupariam na
relação ao Outro: o psicótico se coloca, num primeiro tempo do delírio, à mercê de um Outro
que pode gozar de seu corpo tal qual goza-se do corpo de uma mulher – num gozo sem lei, no
qual há, ou não, o consentimento do sujeito. Num segundo momento, entretanto, com a
construção delirante de um futuro assintótico que direciona o sujeito megalômano a um lugar
impossível, tal qual o ocupado por Schreber em seu delírio – de Mulher de Deus e mãe de
toda a humanidade. Se o lugar impossível ao homem é o da função paterna, o lugar
impossível à mulher é o de uma mulher-toda, não remetida à castração: “a mulher que falta
aos homens” (LACAN, 1998, p.572), lugar preciso que o megalômano ocupa.
Retornando à obra freudiana, chama à atenção que a posição de objeto do paranóico já
pode ser marcada pela inversão proposicional sugerida por Freud neste mesmo texto –
inversão esta, que ocorreria ao longo do processo de projeção. Nesta inversão, pode-se
observar que o delirante passa de uma posição ativa a uma posição passiva: no delírio de
perseguição, de eu o amo a ele me odeia (persegue); no delírio erotômano, de eu o amo a ela
me ama e, no delírio de ciúmes, de eu o amo a ela o ama. Desta forma, seja objeto de ódio,
objeto de amor ou objeto de traição, no delírio paranóico o sujeito é sempre objeto do Outro.
Freud apresenta uma quarta inversão, a propósito da megalomania: inversão que “rejeita a
proposição como um todo” e que seria equivalente a “eu só amo a mim mesmo” (FREUD,
1911, p.72) . Nesta quarta inversão, o eu continua ocupando uma posição passiva – aquele
que é amado -, mas ocupa também, concomitantemente, uma posição ativa – aquele que ama.
Destaca-se este ponto, uma vez que a megalomania, ou fase de “grandeza”, compõe a terceira
fase do delírio crônico descrito pela psiquiatria do século XIX, assim como a fase de
restabelecimento de Schreber. Tal fato parece apontar para uma tomada de posição do sujeito
ativo, ainda que identificado ao objeto. Voltar-se-á a isso no decorrer deste trabalho.
A partir do exposto e, sobretudo, da posição de objeto que o paranóico ocupa na
construção delirante, pode-se verificar a diferença entre a fantasia delirante de Norbert personagem de Jansen, que pode ser localizado na posição ativa, de sujeito desejante - e
Schreber, que constrói seu delírio colocando-se numa posição passiva, posição de objeto do
Outro.
Segundo Freud, isso – ocupação do lugar de perseguido, de objeto do Outro - ocorreria
através do mecanismo da projeção, que é aqui definido como próprio à paranóia. Entretanto,
38
no mesmo texto Freud retifica essa afirmação: “foi incorreto dizer que a percepção suprimida
internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos,
que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”. (FREUD, 1911, p.78) Esta noção
será fundamental, como será visto, para a posterior formalização, efetuada por Lacan (2002),
do mecanismo estrutural da psicose, a saber, a foraclusão – formalização da rejeição, isto é,
Verwerfung, freudiana -, assim como para o entendimento da estrutura dos fenômenos
elementares da psicose.
Um outro ponto a ser destacado no texto em questão é o caráter megalomaníaco dos
delírios paranóicos, que Freud justifica por uma fixação no estádio do narcisismo (estádio, no
desenvolvimento libidinal do sujeito, em que ocorre o investimento no próprio eu). Segundo
ele, na paranóia, a libido liberada dos investimentos sociais anteriores vincula-se ao eu e é
utilizada para o engrandecimento deste, o que poderia ser caracterizado como um retorno ao
estádio do narcisismo. Desta forma, as pessoas que não se libertaram completamente desse
estádio estariam expostas ao perigo de que uma parte da libido excepcionalmente intensa não
encontrasse outro escoadouro e desfizesse as sublimações que o indivíduo pudesse ter
alcançado, desembocando na perda da realidade para o paranóico.
Desta maneira, em 1911, Freud retoma sua idéia - concebida nos Três ensaios para
uma teoria da sexualidade – de que é no desenvolvimento libidinal que estaria localizada a
referida “predisposição psíquica” para tal ou qual ‘neurose’. (FREUD, 1905)
O texto que apresenta o caso Schreber, portanto, é inovador em muitos aspectos. Mas
sua principal contribuição para a direção do tratamento na psicose se deve ao reconhecimento
do delírio paranóico como uma tentativa de cura: “A formação delirante, que presumimos ser
o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução” (FREUD, 1911, p.78). No texto, Freud chega a dividir o delírio de Schreber em
duas fases: a primeira, em que ele poderia ser identificado como um joguete inerte do Outro, e
a segunda, megalomaníaca, que designa o delírio como tentativa de cura.
Jorge (2010a) nos chama a atenção que Freud só pôde apreender a estrutura do delírio
– o que fez com o caso Schreber - após terminar um ciclo de estudos versando sobre o lugar
da fantasia no aparelho psíquico: reguladora da relação do sujeito com a realidade. Nesse
momento da obra freudiana, delírio e fantasia ainda não são explicitamente relacionados por
Freud, entretanto, nós veremos que eles serão diretamente colocados em analogia, em 1937.
Voltemos à obra freudiana.
39
Em 1914, no artigo Sobre o narcisismo, Freud retoma a questão da megalomania e do
retorno ao narcisismo. Ao abordar as duas fases pelas quais toda criança passaria ao longo de
seu desenvolvimento libidinal, a saber, o auto-erotismo e o narcisismo (primário), associa a
fixação nestes estádios à esquizofrenia e à paranóia9, respectivamente.
Sendo o auto-erotismo a fase em que o bebê ainda não diferencia seu próprio eu do
mundo externo e, com isso, as pulsões buscam satisfação no próprio corpo, ou melhor, no
próprio órgão, a esquizofrenia, com seus vastos fenômenos de desagregação do eu teria um
funcionamento pulsional próximo ao do estádio do auto-erotismo.
Já o narcisismo, fase posterior ao investimento nos objetos externos, no qual há,
novamente, um investimento em si mesmo – desta vez, com a diferenciação entre eu e mundo
externa já estabelecida - se aproximaria dos fenômenos paranóicos, sobretudo no que diz
respeito à megalomania.
O eu, enquanto representação complexa que o indivíduo faz de si mesmo, não existe
desde o início, ele é desenvolvido. Assim, o ‘narcisismo’ surgiria de uma nova ação psíquica
sobre o ‘auto-erotismo’ (FREUD, 1914/2006):
posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não
pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. As pulsões autoeróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja
adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo.
(FREUD, 1914/2006, p.84, grifo nosso)
Neste momento do desenvolvimento libidinal, como afirma Freud (1914/2006), tudo é
ab-rogado em favor da criança, que é ‘Sua Majestade o Bebê’, aquela que concretizará os
sonhos dourados que os pais jamais realizaram. Ou seja, a criança encarna aqui o ideal dos
pais. Freud (1914/2006, p.99) nos aponta - ainda que não desenvolva - que este é o ponto mais
importante quanto aos distúrbios aos quais o narcisismo original de uma criança estaria
exposto. Afinal, seria só com o Complexo de Castração que essa identificação ao ideal
poderia ser abalada. Neste mesmo texto, embora Freud (1914/2006) não explicite a separação
entre eu ideal e Ideal de eu, podemos, com a ajuda da leitura de Lacan, destacar no texto
freudiano a importância da formação destas instâncias psíquicas para o advento do
mecanismo do recalque. “Para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante do
recalque” (FREUD, 1914/2006, p.100) “O que ele [o indivíduo] projeta diante de si como
9
Aqui, já se observa a influência da classificação de Kraepelin, assim como da nomeação (esquizofrenia) de
Bleuler. Destaca-se, entretanto, que no próprio delírio de Schreber ambas estas fases (esquizofrênica e
paranóica) podem ser identificadas, cada uma em um momento diferente da evolução do delírio.
40
sendo seu ideal [Ideal de eu] é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele
era o seu próprio ideal. [eu ideal]” (FREUD, 1914/2006, p.101)
Se levarmos em consideração que o que diferencia psicoses e neuroses é o mecanismo
de defesa - ou seja, na neurose, recalque e, na psicose, rejeição, ou como sugeriu Lacan,
foraclusão – então a afirmação de Freud (1914/2006), de que a formação de um Ideal de eu
(simbólico) como substituto ao eu ideal (imaginário) perdido da infância seria fator
condicionante para o recalque, nos é muito preciosa. Afinal, o que se vê na proposição
gramatical do megalômano, proposta por Freud em 1911, é exatamente a ausência de um
Ideal (simbólico) que não seja a própria imagem do sujeito: eu só amo a mim mesmo.
Freud (1914/2006, p. 81-82) afirma que a concepção “de um narcisismo primário e
normal” surgiria da tentativa de explicar a psicose (então chamada de parafrenia) – cujas
principais características seriam a megalomania e o desvio de seus interesses do mundo
externo – pela teoria da libido.
E, para pensar na característica megalomaníaca da paranóia, basta pensar no exemplo
tão comum de descrição da paranóia: o sujeito que se diz Napoleão. Do mesmo modo, na
clínica não é raro vermos sujeitos paranóicos que se intitulam pessoas importantes, ou pelo
menos pessoas que julgam importantes (donos de grandes negócios, médicos, Jesus Cristo,
Buda, Deus...), como é o caso de Alberto - aquele que faz chover.
Num momento anterior, quando a castração evidencia-se na vida de um sujeito
psicótico, isto é, quando algo torna evidente que o eu daquele sujeito não corresponde ao
Ideal, então o supereu surge com toda a sua força - não recalcado, mas vindo de fora.
Podemos localizar este momento que é o do desencadeamento psicótico, no caso de Alberto,
na ocasião em que ele levou o tiro no pescoço. Freud (1914/2006) assinala que a medição
entre o eu e o Ideal de eu é feita pela instância crítica do supereu, e nos diz que o fenômeno
psicótico das ‘vozes’ denuncia a existência dessa instância.
Mas, se o famoso Schreber pôde se organizar minimamente e ter seus direitos civis
concedidos de volta, foi graças à sua construção delirante, na qual ele identifica-se à nada
menos que a mulher de Deus, capaz de gerar uma nova humanidade. (FREUD, 1911)
Sem entrar nos detalhes do caso, tão conhecido, do presidente Schreber, destaquemos
a importância de que a identificação de Schreber à mulher de Deus é uma identificação a um
ideal imaginário. É através da assíntota, isto é, a postergação, pelo tempo, do grande
acontecimento prometido, que pode haver uma distância entre Schreber e seu ideal
imaginário: ser a mulher de Deus. Este ideal é, portanto, diferente do Ideal de eu; já que não
41
suporta a falha evidenciada pela instância crítica e, consequentemente, não carrega a
duplicidade de sentido do simbólico, mas sim a encarnação imaginária.
Dessa forma, através do estudo do narcisismo, podemos perceber uma diferença
crucial no desenvolvimento libidinal do sujeito quando, através da substituição do eu ideal
pelo Ideal de eu - momento apontado por Freud como sendo o do Complexo de Castração e
desenvolvido por Lacan como momento da castração simbólica – o mecanismo do recalque se
instaura – e, com ele, a possibilidade da dialética do desejo.
Esta noção parece ser essencial para a compreensão da noção de desejo congelado,
estabelecida por Lacan (1974-75/inédito), pois, não havendo separação, não havendo lacuna
entre o eu e o Ideal de eu, base para a constituição do desejo, não há dialética; e o desejo
acaba por permanecer congelado. Voltaremos a este assunto no segundo capítulo. Por
enquanto, retomemos a obra freudiana.
Em 1915, no texto As pulsões e suas viscissitudes, o autor diferencia as neuroses de
transferência (histeria, neurose obsessiva) das neuroses narcísicas (esquizofrenia, paranóia) a
partir da teoria da libido. Neste momento, ele considera que as neuroses narcísicas seriam
conseqüência de uma fixação no estádio do narcisismo. Portanto, embora haja uma divisão, as
psicoses ainda ocupam um lugar de termo descritivo. Apenas a neurose opera
conceitualmente.
No mesmo ano, no texto O inconsciente, o autor traz uma importante contribuição
para o entendimento do delírio psicótico: ele associa o investimento libidinal da apresentação
da palavra - que não ocorreria no mecanismo do recalque – ao delírio paranóico – chamado
por ele de tentativa de cura, em referência ao texto de 1911. Segundo Freud, em sua tentativa
de cura, na direção de tentar recuperar os objetos perdidos, o esquizofrênico é conduzido a ter
que contentar-se com palavras no lugar de coisas.
“a catexia da apresentação da palavra não faz parte do ato de recalque, mas representa a
primeira das tentativas de recuperação ou de cura que tão manifestamente dominam o quadro
clínico da esquizofrenia. Essas tentativas são dirigidas para a recuperação do objeto perdido,
e pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz ao
objeto através de sua parte verbal, vendo-se então obrigadas a se contentar com palavras em
vez de coisas. [...] Podemos, por outro lado, tentar uma caracterização da modalidade de
pensamento do esquizofrênico dizendo que ele trata as coisas concretas como se fossem
abstratas.” (FREUD, 1915b, p.208)
Em 1916, no artigo Suplemento metapsicológico da teoria dos sonhos, o autor avança
nesta relação do psicótico com a palavra, diferenciando-a dos sonhos. Segundo ele, na
esquizofrenia:
“o que se torna objeto de modificação pelo processo primário são as próprias palavras nas
quais o pensamento pré-consciente foi expresso; nos sonhos, o que está sujeito a essa
42
modificação não são as palavras, mas a apresentação da coisa à qual as palavras foram
levadas de volta. Nos sonhos, há uma regressão topográfica; na esquizofrenia, não. Nos
sonhos existe livre comunicação entre catexias da palavra (Pcs.) e catexias da coisa (Ics.),
enquanto é uma característica da esquizofrenia que essa comunicação seja interrompida.”
(FREUD, 1916[1915], p.235)
Em 1924, no artigo Neurose e Psicose, Freud distingue a neurose da psicose através da
perda da realidade que ocorreria nesta última. Ou seja, é exatamente no ponto de reconstrução
delirante da realidade, após o encontro com uma realidade externa indesejável ao eu, que a
psicose seria distinguida da neurose. Aqui, ele define o delírio como “um remendo no lugar
em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (FREUD,
1924[1923], p.169). E retoma a afirmação de que o delírio seria uma tentativa de cura,
acrescentando que esta tentativa encobriria as manifestações do processo patogênico - isto é, o
conflito com o mundo externo.
A neurose seria o resultado de um conflito entre o eu e o isso, no qual o sujeito
permaneceria fiel ao mundo externo; enquanto a psicose, o resultado de um conflito entre o eu
e o mundo externo, permanecendo fiel ao isso. “O efeito patogênico depende de o ego, numa
tensão conflitual desse tipo, permanecer fiel à sua dependência do mundo externo e tentar
silenciar o id, ou ele se deixar derrotar pelo id e, portanto, ser arrancado da realidade.”
(FREUD, 1924[1923], p.169)
Entretanto, no mesmo ano, no artigo Perda da realidade na neurose e na psicose,
Freud afirma que esta diferença não seria tão simples assim de ser estabelecida, já que a perda
da realidade, assim como o substituto da realidade, existiria em ambas as estruturas.
Uma neurose geralmente se contenta em evitar o fragmento da realidade em
apreço e proteger-se contra entrar em contato com ele. A distinção nítida entre
neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na
neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra
que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela
existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo
externo real na época da introdução do princípio de realidade. [...] É deste mundo
de fantasia que a neurose haure o material para suas novas construções de desejo
[...] [grifo meu]
Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia desempenhe o mesmo papel
na psicose, e de que aí também ele seja o depósito do qual derivam os materiais ou
o padrão para construir a nova realidade. [...] Vemos, assim, que tanto na neurose
quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da
realidade, mas também a um substituto para a realidade. (FREUD, 1924, p.208209, grifos do autor).
E acrescenta, ainda, que, tal qual na neurose, haveria um conflito entre a realidade
substituta e o fragmento de realidade rejeitado.
43
O fato de em tantas formas e casos de psicose as paramnésias, os delírios e as alucinações
que ocorrem, serem de caráter muito aflitivo e estarem ligados a uma geração de ansiedade, é
sem dúvida sinal de que todo o processo de remodelamento é levado a cabo contra forças que
se lhe opõem violentamente. Podemos construir o processo segundo o modelo de uma
neurose com o qual estamos familiarizados. [...] Provavelmente na psicose o fragmento de
realidade rejeitado constantemente se impõe à mente tal como a pulsão recalcada faz na
neurose (FREUD, 1924, p.207).
Neste mesmo artigo, o autor estabelece uma diferença entre estes dois conflitos.
Diferença esta que não se colocaria na segunda etapa (da substituição da realidade), mas na
primeira, isto é, a fase de negação da realidade: “a neurose não repudia a realidade, apenas a
ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”. (FREUD, 1924, p.207)
Em ambos os artigos de 1924, Freud reitera – tal como se observou desde os primeiros
textos - a importância de saber qual seria o mecanismo específico da psicose: “Resta a
considerar a questão de saber qual pode ser o mecanismo, análogo ao recalque, por cujo
intermédio o eu se desliga do mundo externo.” (FREUD, 1924[1923], p.171)
Chamamos a atenção para a importância desta diferenciação, que será retomada por
Lacan: ambas possuem mecanismos de defesa análogos: um mais radical que o outro. Se na
neurose há o recalque, isto é, a fuga da realidade; na psicose, há o repúdio, a rejeição. Este
ponto é essencial para o entendimento posterior do que Lacan formalizará como o mecanismo
de defesa da psicose: a Verwerfung - a foraclusão – e seu retorno, nos fenômenos
elementares.
Neste artigo, Freud observa, ainda, que as diferenças em relação à fuga/repúdio da
realidade (primeira fase) e às formas de substituto da realidade (segunda fase), que pode-se
entender por fantasia/delírio, se devem às diferenças topográficas do conflito – tal qual havia
assinalado no artigo Neurose e Psicose.
A pulsão recalcada é incapaz de conseguir um substituto completo (na neurose) e a
representação da realidade não pode ser remodelada em formas satisfatórias. [...] Na psicose,
ela [a ênfase] incide inteiramente sobre a primeira etapa, que é patológica em si própria e só
pode conduzir à enfermidade. Na neurose, por outro lado, ela recai sobre a segunda etapa,
sobre o fracasso do recalque, ao passo que a primeira etapa pode alcançar êxito. [...] Essas
distinções, e talvez muitas outras também, são resultado da diferença topográfica na
situação inicial do conflito patogênico – ou seja, se nele o eu rendeu-se à sua lealdade
perante o mundo real ou à sua dependência do isso. (FREUD, 1924, p.208)
Portanto, pode-se assinalar o avanço de Freud, ao estabelecer semelhanças e
diferenças na perda e também na reconstrução da realidade na neurose e na psicose. Se no
primeiro artigo de 1924, Freud enfatiza a diferença entre neurose e psicose na segunda fase
(de reconstrução da realidade); no segundo artigo, ele enfatiza a diferença na primeira fase (de
negação da realidade).
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Alberti (1999) salienta que o termo freudiano Versaltung, retirado do texto A perda da
realidade na neurose e na psicose, e traduzido por frustração, diz respeito à demanda de um
pacto que surgiria justamente para escamotear a castração do Outro. É frente a Versaltung que
surgiriam as três possibilidades de negação estruturantes do sujeito: o recalque, no qual a
negação surgiria como promessa a ser mantida como demanda; o desmentido, no qual o
sujeito tentaria a todo custo forçar o Outro a fazer o pacto e; a foraclusão, na qual não haveria
promessa que fosse capaz de sustentar o pacto recusado. Nos dois primeiros casos, a negação
permite o surgimento da fantasia nessa promessa, de alguma forma mantida. No caso da
foraclusão, entretanto, a realidade fica patente para o sujeito, sem o recurso da fantasia, graças
a uma não afirmação originária, como veremos na segunda parte do capítulo. Por ora,
voltemos à constituição do sujeito do desejo.
Em 1937, no artigo Construções em análise¸ Freud parece retomar as diferenças entre
neurose e psicose existentes tanto na fase de negação da realidade quanto na de substituição,
assinalando a relação entre as duas fases: ele faz uma analogia entre a construção neurótica –
fantasística - e a construção psicótica – delirante - e afirma que em ambas haveria uma
tentativa de explicação e de cura, com a diferença de que, na psicose, não seria possível
recuperar o fragmento de experiência perdida, que haveria sido rejeitado e que, portanto, o
delírio portaria um elemento de verdade histórica – aquilo que se torna verdade através do
tempo – inserido no lugar da realidade rejeitada.
não pude resistir à sedução de uma analogia. Os delírios dos pacientes parecem-me ser os
equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico –
tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma
psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo
rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada investigação individual revelar as conexões
íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o do recalque original. Tal como nossa
construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também
o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no
lugar da realidade rejeitada. Dessa maneira, uma proposição que originalmente asseverei
apenas quanto a histeria se aplicaria também aos delírios, a saber, que aqueles que lhes são
sujeitos, estão sofrendo de suas próprias reminiscências. (FREUD, 1937, p.286, grifo nosso)
Se, em Neurose e Psicose Freud fala da construção delirante (segunda fase do
processo patogênico) enquanto diferenciadora da neurose e da psicose e, no mesmo ano, em
Perda da realidade na neurose e na psicose ele pondera tal diferenciação, dizendo que na
neurose também haveria um “mundo de fantasias” e delimitando a diferença na primeira fase,
a da negação da realidade (fuga, na neurose/rejeição, na psicose); em 1937, ele retoma ambas
as fases (de perda da realidade e de reconstrução da mesma), baseando as diferenças da
segunda nas diferenças da primeira e, fazendo, a partir disso uma analogia entre as duas: na
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“tentativa de explicação e de cura” que a análise opera na neurose, ocorre a recuperação do
fragmento de realidade perdido - que havia sido apenas ignorado; enquanto na construção
psicótica - em que o fragmento havia sido negado mais radicalmente, isto é, rejeitado - ocorre
apenas a substituição deste fragmento perdido, sem que ele seja recuperado.
No caso Alberto, o fragmento de experiência perdido não seria recuperado por ele,
sendo o elemento de verdade histórica o “apagão”.
O encontro com a morte vivido por Alberto, isto é, a tentativa de homicídio sofrida,
tentativa de "apagá-lo", corresponde à experiência perdida que - embora tenha desencadeado
o surto - não aparece em suas construções. Vale destacar que, nesta experiência perdida,
Alberto encontrava-se em posição passiva, de objeto.
Já o apagão elétrico - no qual, segundo sua própria explicação, ele passaria a ter sido
visado - pode ser entendido como o elemento de verdade histórica de seu delírio, uma vez que
permite a Roberto inverter esta posição, controlando-a, de certo modo. É só a partir deste
elemento que Roberto pode construir seu delírio e se localizar no mundo enquanto sujeito,
aquele que faz chover: sujeito ativo, que pode, ou não, evitar um novo apagão - apagão aqui,
em ambos os sentidos, já que, fazendo chover, ele evita, por um lado, a falta de água e energia
e, por outro, evita que as pessoas queiram "apagá-lo", isto é, matá-lo.
É neste sentido que se considera a importância do delírio paranóico, junto ao
mecanismo de defesa psicótico, para a formalização da psicose enquanto estrutura clínica e
para a direção do tratamento.
Qual a importância, para a clínica, do elemento de “verdade histórica” que pode
retomar aquilo que foi rechaçado? Este elemento indica algo do sujeito, algo que, por ser
inapreensível, foi recusado. Algo que precisaria ser elaborado, contornado, mas que, por se
tratar de algo insuportável para o sujeito, precisará ser abordado com muito cuidado. Este
ponto será retomado no capítulo seguinte e, sobretudo, no terceiro capítulo, no qual será
abordada a questão da direção do tratamento.
Enfim, a partir do exposto pôde-se observar que, ao longo do estudo freudiano, a
psicose foi, paulatinamente ganhando um lugar ao lado da neurose, e não dentro da mesma –
isto é, a psicose foi se diferenciando da neurose, ainda que em analogia a esta. E, se
inicialmente os termos delírio e psicose eram termos descritivos, utilizados em seu sentido
psiquiátrico, nos últimos textos estes termos são propriamente psicanalíticos: a psicose não é
mais uma neurose e o delírio é uma tentativa de cura própria à psicose.
Observamos, ainda, que desde cedo Freud aborda a psicose em analogia à neurose,
mas sempre tentando diferenciá-la por um mecanismo de defesa particular. Isto é o que
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Jacques Lacan fará: através de um retorno a Freud, ele formaliza as três estruturas clínicas
formuladas por Freud, a saber, psicose, perversão e neurose, cada uma com seu mecanismo de
defesa específico: foraclusão, renegação e recalque, respectivamente. É só a partir desta
conceituação que a psicanálise conta com a possibilidade da formalização de um diagnóstico
propriamente psicanalítico: o diagnóstico estrutural – que não opera descritivamente, mas, a
partir da suposição de uma etiologia psíquica e do mecanismo estrutural específico utilizado
frente à castração.
Veremos, no segundo capítulo, algumas contribuições lacanianas que permitem
avançar no estudo da função do delírio para o sujeito psicótico.
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2 A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI
“eu sou alguém que sofreu graves frustrações,
mas eu não aceito isso, eu não aceito.
Pode-se aceitar ou recusar as frustrações,
eu não aceito, eu recuso.”
(Mademoiselle B., In: Lacan, 1976/1993)
2.1 De volta ao caso clínico
Na psicose o fragmento de realidade que dá origem aos fenômenos elementares é
rechaçado, ou seja, completamente desprezado. Que tipo de recusa é esta que se dá? Até onde
o fragmento de realidade rechaçado é importante para a compreensão da lógica estrutural da
psicose e, em conseqüência, para a direção do tratamento? Qual é a importância deste dado,
que nos diz que é após a tentativa de assassinarem-no que Alberto nunca mais será o mesmo?
A irrupção do Real na psicose surge avassaladora, sem a instauração do sistema
significante-significado para bordejá-la. Não é à toa que o sujeito, aí, seja falado: “Os
malandros vão te matar”, diziam as vozes que Alberto escutava. A experiência, radicalmente
negada, retornava desde fora. Mas, se ele morresse, o mundo estaria perdido: ficaria sem
chuva. É o que ele dizia em tom de ameaça, quando se sentia, ele mesmo, ameaçado – numa
tentativa de bordejar essa irrupção do real.
Como nos traz o caso de paranóia apresentado por Freud (1895) no Rascunho H, o
momento desencadeador da psicose pode ser facilmente relatado pelo próprio paciente, mas
ele mesmo não o reconhece como angustiante ou, menos ainda, como algo que pode se
relacionar ao seu delírio, às suas vozes. E o tema retorna no real.
Não que a morte não seja assustadora para todos. É o desconhecido em questão.
Entretanto, se a morte é algo intrínseco ao ser vivo, que só é vivo porque morre, Alberto
parecia tomar esta questão sempre como culpa do Outro: seja na escolha de Deus, seja na
maldade dos malandros. Sua mãe, por exemplo, já bastante idosa, teria morrido por culpa da
irmã de Alberto, que lhe causava muitas preocupações. Já ele mesmo não se sentia culpado.
Para Alberto a ameaça de morte é algo que retorna a todo instante. Ora Alberto diz que
Deus não o levou ainda porque gosta dele; ora, ele tem medo de que Deus o leve: “vou morrer
novo”. O sentido, entretanto, prevalece. Sua morte nunca poderia ser um acaso, uma
contingência da vida; seria sempre pela vontade do Outro, mas nunca por sua culpa. Certa
vez, por exemplo, encontrou um caroço na região lombar e foi dizer à analista que estava com
câncer. Foi avaliado pelo médico. O caroço – nada mais que um cisto sebáceo – foi retirado e,
apesar das explicações médicas de que aquilo não era um câncer, Alberto agradece à analista
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(que o encaminhou para o médico) e conta para várias pessoas, tempos depois do acontecido,
que foi “salvo de um câncer”. Esse pensamento, que passa pela sua cabeça e toma proporções
de realidade, parece apontar com bastante mestria a estrutura do delírio: ‘não é ele que tem
medo de morrer, é o Outro que o ameaça o tempo todo’.
Com um significativo empuxo-à-morte (num certo período, que compreendia alguns
meses, quebrou um braço, machucou uma perna, pulou de um barranco com uma faca na mão,
gastava toda sua aposentadoria em crack, ficava devendo aos traficantes...), Alberto dizia que
não queria morrer. Mas vivia achando que sua hora estava próxima, que ia morrer novo. E
parecia buscar esse encontro. Nos dias em que chegava nervoso, com medo, ameaçava a
todos: ‘vocês vão ver, Deus vai castigar vocês!’ Em um desses dias dirigindo-se a analista,
disse numa expressão de ódio: ‘Você também, Deus vai de castigar’. Ao silêncio da analista
que permaneceu ali a seu lado, Alberto respondeu: ‘Você não... me desculpe’.
Ao sentir-se ameaçado, Alberto chegava ao CAPS com muito medo, mas muito
nervoso. Brigava com tudo e com todos, ameaçava quem lhe aparecesse na frente. Esse medo,
que diz respeito à ameaça da própria existência, parece convocar o sujeito a uma luta do corpo
a corpo, uma luta em que a sobrevivência está em questão. A perseguição sentida por Alberto,
tal qual a de tantos psicóticos, é perseguição dirigida a seu ser. Intermediada aqui apenas pelo
elemento imaginário das chuvas: ‘querem que eu faça chover’.
Veremos que o sujeito, em sua constituição, necessita passar pela prova do Édipo para
que seu mundo receba uma ordenação simbólica. Que ordem é essa de que se trata no Édipo?
No seminário sobre As psicoses (LACAN, 2002) e também no seminário sobre As formações
do inconsciente (LACAN, 1957-59/1999), Lacan aborda a questão fundamental da
constituição do sujeito do inconsciente com a dialética significante que esta comporta. Neste
desenvolvimento, o pai aparece como um significante primordial, fundando a estrutura
simbólica da realidade.
Sem essa estrutura, a ordem do mundo fica tão prejudicada que, no momento de
irrupção da psicose, o sujeito pode ser invadido por vozes e pensamentos delirantes. De que
se trata, então, nessa recusa à castração? Trata-se da recusa ao pai enquanto função. Recusa
esta essencial para o entendimento da psicose enquanto estrutura, assim como para a direção
do tratamento.
A psicose fica à margem do laço social. Seja na exceção da arte, seja na exceção da
mais estrita exclusão - como indicam as naus dos loucos, que os levavam a vagar sem rumo
(FOUCAULT, 1987/2005). Dessa maneira, é imprescindível, num trabalho que aborde a
loucura, abordar também a entrada no laço social. A Lei simbólica - o acordo, o pacto - é uma
49
função originalmente humana, sem a qual não há vida em sociedade. A Lei simbólica incide
em cada um de nós, assim como aconteceu no advento da sociedade. Para essa regra,
entretanto, há exceções. Estudemos, portanto, a regra, para abordarmos a exceção e, em
conseqüência, o que é possível fazer com ela. Atenhamo-nos à importância da função paterna,
à estrutura que esta comporta e ao modo como ela se insere na constituição subjetiva, para, só
então, estudarmos a estrutura decorrente da recusa a esta função e suas possíveis
conseqüências.
2.2 A estruturação do sujeito e a função paterna
2.2.1 A oposição significante e a ordenação da realidade
A partir de Lacan e seu retorno a Freud, os fenômenos no campo analítico, os
sintomas e as formações do inconsciente podem ser abordados a partir de uma estrutura de
linguagem, o que indica a presença constante da duplicidade inerente ao sistema significantesignificado.
As oposições significantes, oposições simbólicas, artificiais, como o dia e a noite, a
paz e a guerra, o homem e a mulher, o Fort e o Da, são oposições que não existem a priori no
mundo real, mas que nós inventamos para dar uma armação, para organizar, formar eixos e,
com estes, uma estrutura que componha o que chamamos realidade, para que nela possamos
nos localizar e, assim, nos mover através da vida. (LACAN, 2002, p.227)
É com a passagem pelo complexo de Édipo que ocorre a introdução significante
essencial à normalização sexual e às primeiras identificações do sujeito: homem ou mulher.
(LACAN, 2002, p.216). Ou seja, é através do significante que o sujeito pode se reconhecer
como sendo isto ou aquilo (LACAN, 2002, p.205).
Entretanto, existe algo de inassimilável ao significante, algo que diz respeito à
existência do sujeito: porque apareceu e porque desaparecerá são respostas que o significante
seria incapaz de elaborar. E são questões que ligam o sexo à morte, na medida em que
abordam, ambas, a questão da existência.
Assim, na estruturação lacaniana do sujeito, o significante é o pilar essencial para a
estruturação da realidade. E é por ser ‘sem sentido’ que o significante pode, não responder,
mas entrar no lugar da resposta à questão da existência: “o significante é o instrumento com o
qual se exprime o significado desaparecido” (LACAN, 2002, p.252).
50
Segundo o autor, a ordem significante está presente quando existe um sinal que não
remete a um objeto, mas a outro sinal. Desta forma, no caso da impossibilidade de resposta à
questão da existência do ser, não há objeto a ser remetido, não há sentido que possa ser
encontrado, nem mesmo na forma de rastro, pois, mesmo no rastro, o sinal remeteria a um
objeto, ainda que ausente. “Ele [o rastro] é também o sinal de uma ausência. Mas, na medida
em que ele faz parte da linguagem, o significante é um sinal que remete a um outro sinal, que
é como tal estruturado para significar a ausência de um outro sinal, em outros termos, para se
opor a ele num par.” (LACAN, 2002, p.192)
A realidade é, portanto, ordenada pela cadeia significante, sendo que esta é fundada
por um significante primeiro, o significante Nome-do-Pai, um significante que tem estatuto de
Lei, tal qual o significante “não”. Vale lembrar, neste momento, a homofonia que a língua
francesa permite, entre as palavras nome (nom) e não (non).
“O significante é, enquanto tal, um significante que não significa nada. A experiência
o prova – quanto mais o significante nada significa, mais indestrutível ele é.” (LACAN, 2002,
p.212) É assim que a existência do ser, algo sem significação possível, pode ser ordenada pela
dimensão significante, uma dimensão que carrega, em seu umbigo, a dimensão do não-senso.
E é neste umbigo, na fundação desta cadeia, que encontramos o significante Nome-do-Pai,
aquele que podemos escutar como não-do-Pai, e que é, como veremos, proferido pela mãe,
primeira encarnação do Outro.
Essa Lei que provém deste significante, o não, é essencial para a vida em sociedade,
uma vez que organiza e estrutura a realidade – que precisa ser partilhável, ainda que singular.
Neste sentido, é também a partir de um não e de um nome, provenientes de Um pai, que todos
– a sociedade – e cada sujeito se fundam.
2.2.2 O laço social e a função paterna
Em Totem e Tabu, Freud (1913/2006) explicita a importância dessa Lei paterna na
fundação da sociedade a partir do mito darwiniano da horda primeva, no qual o pai primevo,
encarnando o lugar da exceção, seria o possuidor de todas as mulheres do grupo, ou seja, teria
acesso a um gozo irrestrito, enquanto os outros machos do grupo se submeteriam a ele, sendo
privados do acesso às mulheres, ou seja, do acesso ao gozo.
51
Vale destacar que o mito - como Lacan (1969-70/1992) salienta na lição Do mito à
estrutura do seminário O avesso da psicanálise - é aquilo que enuncia o impossível. Dessa
forma, o pai real, tal qual seria o pai da horda – esse que tem acesso ao gozo total - é um pai,
como o próprio real, impossível.
No mito, é a partir da morte do pai da horda – assassinado pelos filhos - que a Lei é
incorporada pelos irmãos, isto é, que o impedimento não será mais tomado como um
impedimento no real, mas como uma Lei simbólica. O acesso ao objeto, que antes era
impedido – pela força bruta de Um pai forte – agora é proibido. A ordenação do gozo se dá,
não mais pela presença do poder absoluto e despótico do pai, mas pela presença de um acordo
simbólico, o de não possuir nenhuma mulher da horda. É, pois, o pai morto – transformado
em pai simbólico - quem consegue fazer valer a lei. E isso graças ao sentimento de culpa
oriundo do assassinato. Culpa que é, vale lembrar, medo da perda do amor do Outro (FREUD,
1930/2006). Como afirma Freud “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo [...] O
que até agora fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios
filhos” (FREUD, 1913/2006, p.146-147)
É só com a morte deste Pai que o temor pode passar a amor; assim como o
impedimento real ao gozo pode passar à proibição, ou seja, uma Lei simbólica. É possível
fazer um paralelo entre esse mito e a passagem ao monoteísmo.
A partir do monoteísmo teria sido possível convergir todos os temores da natureza em
um único Deus, o que transformaria o temor em coragem: “Todos os temores – Eu não tenho
outro temor – são trocados contra o que se chama o temor a Deus, que, por mais coercitivo
que seja, é o contrário de um temor.” (LACAN, 2002, p.302). É desta forma, portanto, que
assim como no mito da horda primeva, toda uma sociedade foi regida por Um Pai todopoderoso, cheio de caprichos e possuidor de um gozo absoluto, mas capaz de salvar o povo de
outros perigos: o Deus temido de Moisés, isto é, o Deus do monoteísmo. (FREUD,
1939/2006)
Esse Deus instaura uma lei que se compõe de dez mandamentos, e que é fundada no
temor daquele que é Todo Poderoso: capaz de ganhar guerras, mas capaz também de enviar
pestes.
Entende-se que o temor a Deus se aproxima da noção do pai na medida em que as leis
do universo seriam regidas por ele. Ou seja, toda a lei passaria por ele, tal qual o Nome-doPai, o pai simbólico que, como veremos, é o significante que “promulga a lei” (LACAN,
1999, p.152). Mas “para haver alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é
52
preciso haver o assassinato do pai. [...] o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto,
isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-pai.” (LACAN, 1999, p.152).
Desta forma, o mito da horda vai definir três tempos essenciais para a fundação do
laço social: o primeiro, aquele em que há um pai todo-poderoso, o pai da horda; o segundo,
aquele em que há o assassinato do pai e o rompimento com seu poder despótico – aqui, o
lugar da exceção se mantém vazio – havendo o retorno do pai morto enquanto deificado e a
instauração da Lei simbólica, uma Lei que é para todos; e o terceiro tempo, em que se instala
o desejo e, com ele, a busca de gozo para além da horda.
É preciso, pois, para que haja a instauração do laço social, que haja o tempo do temor.
Portanto, o temor enquanto significante seria ordenador do discurso, aquele que ata
significante e significado - que Lacan denomina ponto de basta – dando um significado aos
acontecimentos do mundo (LACAN, 2002, p.303). É assim que, para acalmar os ânimos
divinos, faziam-se tantos sacrifícios: havia, pois, um sentido no envio das pestes, das
tempestades ou secas, assim como um sentido para as épocas de fartura... um sentido
essencial para a ordenação do mundo. Dessa forma, a noção de temor ao pai estaria na base
do amor ao pai, noção muito importante, tanto para a constituição subjetiva quanto para a
humanidade, e essencial para o desenvolvimento da ciência moderna. É com a morte de Deus,
na encarnação de seu filho, que surge o advento daquilo que Lacan chama amor ao pai: a
impotência de Deus é revelada ante a morte do filho que é ele próprio.
Lacan (2002, p.78-79) nos diz que, para que se possa relacionar qualquer coisa a
algum fundamento no real, é preciso que haja em relação ao sujeito e ao Outro, uma ordem
que não engane. A noção de que o Real, de que a disposição da matéria no mundo seja a
mesma, ou seja, de que não haja um Deus enganador por trás disso, é o fundamento da
ciência. É o que faz com que um experimento científico, dando errado, o erro seja atribuído a
um problema na teoria, e não ao capricho do Outro, de alguém que engana o cientista. É o que
faz a ciência avançar e que só foi possível a partir do pensamento judaico-cristão, aquele que
permite um avanço do temor ao amor a Deus. Só a partir dessa relação de amor a Deus, a
natureza pôde ser encarada como um mistério a ser decifrado, isto é, sendo regida por uma
ordem simbólica, significante, e não por uma ordem imaginária, repleta de sentido e
significação. (LACAN, 2002)
A relação psicótica com o Outro comportaria a dialética do engano numa “dimensão
transversal” a esta que se faz necessária para o pensamento científico moderno (LACAN,
2002, p.85). E é esse jogo de engano, estabelecido com esse que deveria ser o garante do
Real, que torna possível que o mundo seja transformado em uma ‘fantasmagoria’ na psicose.
53
Assim, no mito e na história, é só com o assassinato de Deus – ou, ao menos, de seu
representante, Cristo – que a culpa dos filhos advém e, com isso, sobrevém tanto o amor ao
pai quanto a Lei – esta, agora, com letra maiúscula, uma vez que os perigos já não são reais, já
não emanam de Deus. Há, portanto, duas mudanças: uma no lugar ocupado pelo líder, que de
temido, passa a amado, e outra, na regulação do gozo, que de absoluto passa a limitado, a
partir da instauração da Lei.
A partir do assassinato de Deus são enfatizados os dois
primeiros mandamentos: amar o pai sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. Leis
estas que ordenam as relações, por um lado, do grupo com o líder e, por outro, dos membros
do grupo entre si, os duplos especulares.
Em Psicologia de grupo e análise do eu, Freud (1921/2006) extrai essas duas relações
principais em um grupo: a primeira seria a relação libidinal desinibida em seu objetivo, que
ocorreria entre os componentes do grupo, e seria uma relação narcísica, na qual um não
poderia se sentir diferente do outro, sobretudo em relação ao líder - se um se sente mais ou
menos amado que o outro, a ordem do grupo pode ser desfeita. Tal relação pode ser traduzida
em “amar o próximo como a si mesmo”.
Já o mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas”, parece sintetizar bem a
segunda relação: a relação libidinal inibida em seu objetivo, que ocorreria entre cada membro
do grupo e seu líder – seja ele uma pessoa ou uma ideia – e seria a relação fundamental para a
manutenção do laço social entre o grupo. Nesta segunda relação, o líder não seria visto como
um outro eu, mas como um Ideal de eu, alguém a ser seguido. (FREUD, 1921/2006)
Sabemos que o amor impõe um freio ao narcisismo, e seria possível demonstrar como,
agindo dessa maneira, ele se tornou um fator de civilização.
O pai primevo da horda não era ainda imortal, como posteriormente veio a ser, pela
deificação. Se morria, tinha de ser substituído; seu lugar era provavelmente tomado por um
filho mais jovem, que até então fora um membro do grupo, como qualquer outro. (FREUD,
1921/2006, p.134-135, grifo nosso)
Desta forma, Freud marca uma diferença fundamental entre a dinâmica da relação
existente entre os filhos e o pai real da horda primeva - que poderia vir a ser qualquer um dos
filhos e, portanto, um semelhante, um outro eu - e a relação com o pai simbólico que,
deificado pelo assassinato, passa a ser insubstituível, inatingível – Ideal. O autor nos aponta
também a importância fundamental desse amor (da relação com o Ideal) como freio ao amor
narcísico (relação especular) na construção e manutenção do laço social.
54
A partir do exposto e lembrando que é exatamente essa a dificuldade maior da psicose,
a saber, a entrada no laço social, chama-se atenção para esta diferença entre o amor narcísico
e o amor ao Ideal, que se fará fundamental para o entendimento da estrutura psicótica.
No primeiro capítulo do presente trabalho, foi visto, com a ajuda da diferenciação
lacaniana entre eu ideal (relação imaginária) e Ideal de eu (relação simbólica), a indicação de
Freud de que, na constituição do sujeito, a formação do Ideal de eu é fundamental para a
estrutura do recalque: “Para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante do
recalque” (FREUD, 1914/2006, p.100). “O que ele [o indivíduo] projeta diante de si como
sendo seu ideal [Ideal de eu] é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele
era o seu próprio ideal [eu ideal].” (FREUD, 1914/2006, p.101) É nesse sentido que Soler
(2007, p.44) nos diz que “Quando o ideal não faz senão encobrir a foraclusão, quando ele não
se instaura sobre o recalque de um desejo, o que ele exclui não deixa de retornar no real.”
Qual seria, então, a relação destas identificações com a questão da promulgação da lei
pelo pai? No mito da horda primeva, é o pai morto, a partir da identificação simbólica, quem
ocupa o lugar de Ideal. Na constituição do sujeito, como advém este pai morto, que promulga
a Lei? Freud nos diz que “Um menino mostrará interesse especial pelo pai [...] Podemos
simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com
uma atitude passiva em relação ao pai [...], pelo contrário, é tipicamente masculina” (FREUD,
1921/2006, p.115) Assim, Freud nos indica que a submissão à Lei é possível na medida em
que a criança toma o pai como Ideal.
Este lugar, portanto, de Ideal, faz-se essencial para a promulgação da Lei, que só pode
ser simbólica a partir do assassinato do pai.
2.2.3 O sujeito e os nãos do pai
Se no mito dos primórdios da civilização é a morte do pai que torna possível sua
passagem de rival a simbólico, o que tornaria possível, no sujeito, que o pai, em sua função
real, se torne um pai simbólico? O que torna possível que, no sujeito, a lei da castração não
permaneça no nível do par recusa-submissão, isto é, no nível da rivalidade, mas seja instituída
no sujeito através dessa promulgação simbólica? O que torna possível a submissão do sujeito
– de bom grado - à Lei da castração, tornando-o assim, através desta submissão, não
subjugado, mas, pelo contrário, ativo em sua passividade?
55
Fernandes (2001) afirma que o brilhantismo de Lacan, desde seu primeiro texto que
aborda a psicanálise, isto é, sua tese de doutorado sobre o caso Aimée, surge exatamente em
sua compreensão freudiana de que a psicologia individual é também uma psicologia social.
A lei que proíbe o incesto é a principal marca das relações simbólicas entre os
humanos. É só a partir dessa proibição que a civilização pode se estabelecer: criando grupos
nos quais o gozo sexual é regulado e, portanto, a luta rivalitária também. Dessa forma, perdese em gozo (campo pulsional), mas se ganha em ordenação (campo significante), ou como diz
Freud (1930/2006), perde-se um quinhão de liberdade em troca de um quinhão de segurança.
Se o mito da horda primeva fala da fundação da civilização, com as leis contra o
parricídio e o incesto, o mito de Édipo traz o tema da estruturação do sujeito, com os desejos
recalcados de matar o pai e de possuir a mãe. Como, entretanto, estes desejos chegam a ser
recalcados é o que o Complexo de Édipo pode elucidar.
Lacan traz, a partir do desdobramento da função paterna nos três registros RealSimbólico-Imaginário, o Édipo em três tempos: o primeiro, aquele da identificação especular;
o segundo, o da promulgação da Lei e; o terceiro, o do estabelecimento do desejo. Esses
tempos aqui serão chamados de três nãos do pai, já que serão abordados pelo viés da
instauração da Lei. A partir disso, portanto, pensaremos a função paterna, assim como as
conseqüências de sua recusa.
2.2.3.1 O pai Real e a disputa imaginária pelo lugar de objeto
Na primeira realidade infantil, a lei que a mãe encarna é uma lei absoluta e de
caprichos, sem ordem. Lacan (1999, p.195) vai dizer que a criança aqui não é constituída
enquanto sujeito, mas enquanto assujeito, uma vez que está assujeitada a esta lei, que só se
pode chamar de ‘lei’ por ‘antecipação’:
a primeira experiência que ele tem de sua relação com o Outro, ele a tem com esse
Outro primeiro que é a sua mãe, na medida em que já a simbolizou. É por já havê-la
simbolizado que ele se dirige à mãe de um modo que, por ser mais ou menos vagido,
nem por isso é menos articulado, porque essa primeira simbolização está ligada às
primeiras articulações, que reconhecemos no Fort-Da. [...]
Nessa medida, a criança, que constituiu sua mãe como sujeito com base na primeira
simbolização, vê-se inteiramente submetida ao que podemos chamar, mas
unicamente por antecipação, de lei. (LACAN,1999, p.194)
A partir da ausência do Outro primordial pode surgir, por um lado, uma primeira
ordenação simbólica dessa lei primária e, por outro, a instauração de um desejo primitivo.
56
O outro (outra coisa) que surge para além da relação dual mãe-criança, instaura uma
ordenação imaginária, ou seja, surge um objeto que é, para além da criança, também objeto de
desejo da mãe. Esse primeiro não, surge velado no impedimento do outro enquanto objeto
(rival) de desejo. Assim, a partir dessa referência, e dessa relação de dependência da criança,
não exatamente com a mãe, mas com seu desejo, pode surgir um desejo primitivo do próprio
sujeito: o desejo de ser desejado, tal qual o é esse objeto imaginário. Destaca-se que, nesse
caso, “É um desejo de desejo. [...] é diferente desejar alguma coisa ou desejar o desejo de um
sujeito.” (LACAN, 1999, p.205).
Neste momento, portanto, que é o primeiro dos tempos edípicos, o pai apareceria de
forma velada, apenas como objeto de desejo da mãe.
O pai aqui ocupa o lugar de outro semelhante, de par do estádio do espelho que
constitui o modelo do registro imaginário do sujeito. O reconhecimento da criança enquanto
eu é correlato da identificação ao outro eu, semelhante, que é objeto de concorrência em
relação ao desejo do Outro. Não é à toa que aqui amor e ódio estão intimamente ligados, tal
qual no neologismo lacaniano henamoration10. (LACAN, 1955-1956/2002) Aqui, pai e
criança concorrem ao desejo da mãe, tal qual dois machos que se identificam como
semelhantes concorrem ao desejo da fêmea.
Eles – pai e criança – podem ser localizados, portanto, no lugar de objeto do desejo
desse Outro primordial, formando a estrutura terciária do Édipo freudiano. Há, entretanto,
nessa relação de semelhança e rivalidade, para além da ordem imaginária que se estabelece a
partir da imagem especular formada, uma ameaça de castração que diz respeito à existência
do próprio sujeito, já que é ele mesmo o objeto imaginário dessa castração, cujo agente será
chamado por Lacan (1999) de ‘pai real’:
AGENTE
Pai Real 11
ATO
Castração (S)
OBJETO
Imaginário/a
Nesse esquema, o Pai Real é o rival, aquele da identificação especular, mas também
da disputa imaginária pelo lugar de objeto, capaz de castrar o sujeito, o que se instala,
portanto, no nível da rivalidade, da agressividade, próprio à paranóia. O objeto imaginário
10
Este neologismo, junção de haine (ódio) e enamoration (enamoramento) pode ser traduzido por enamoródio,
como consta no seminário As psicoses, ou ainda, amódio, como consta no seminário Mais, ainda.
11
Na mesma página em que se encontra o quadro, Lacan explicita que “neste quadro, a castração é um ato
simbólico cujo agente é alguém real, o pai ou a mãe” (LACAN, 1957-58/1998, p.178)
57
aqui é o falo imaginário: o pênis ou a própria criança. A rivalidade ao pai, portanto, está
inserida na ordem real do corpo (LACAN, 1956-57/1995). “De que se trata, no plano da
ameaça de castração? Trata-se da intervenção real do pai no que concerne a uma ameaça
imaginária, R.i, pois é muito raro suceder que ele lhe seja realmente cortado. Ressalto que,
neste quadro, a castração é um ato simbólico” (LACAN, 1999, p.178)
No seminário O avesso da psicanálise, Lacan (1969-70/1992) retoma o termo pai real,
explicitando que “Numa primeira abordagem escorregamos para a fantasia de que o castrador
é o pai.” (Lacan 1969-70/1992, p.131). Aqui, Lacan (1969-70/1992) destaca que: “o pai real,
está estritamente fora de cogitação defini-lo de uma maneira que não seja como agente da
castração.” (Lacan 1969-70/1992, p.135) e nos diz que o termo agente se refere aqui àquele
que é pago para fazer algo, para agenciar uma determinada operação. Não é à toa que o pai,
nesse primeiro tempo, é dito velado, tal qual o agente. Ou seja, o pai real é o agente do
impossível do acesso ao gozo total. Ele é, nesse sentido, o “pai do real” (Lacan 1969-70/1992,
p.130).
Didier-Weill (1997) em seu livro Os três tempos da lei nos diz que nesse primeiro
tempo haveria um supereu arcaico ante o qual o sujeito, siderado, sente-se ante um imperativo
absoluto, ao qual não pode dizer ‘não’, mas tampouco escolhe dizer ‘sim’ – e que está
referido a este desejo de desejo do sujeito em relação ao Outro primordial. Com a entrada do
terceiro surge o temor à castração, ao qual o sujeito seria incapaz até mesmo de pedir socorro,
já que não pode fazer apelo ao recurso do simbólico.
O pai real é, portanto, o agente da castração na medida em que aparece velado no
lugar de objeto de desejo do Outro. Este primeiro momento é correlato da ação identificatória
que podemos reconhecer como a primeira das três identificações freudianas: “forma original
de laço emocional com um objeto” (FREUD, 1921/2006, p.117) que proviria de um desejo
hostil de estar no lugar deste objeto: no caso da menina de “tomar o lugar da mãe” (FREUD,
1921/2006, p.116) e, no caso do menino, de estabelecer esta identificação em relação ao pai,
tendo “o desejo de substituí-lo” (FREUD, 1921/2006, p.115). Esta identificação, que poderia
acontecer “antes que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido feita” (FREUD, 1921/2006,
p.116), teria um caráter “ambivalente desde o início” (FREUD, 1921/2006, p.115) e seria
derivada da fase oral, uma vez que, tal qual a incorporação canibalesca em que o objeto
desejado é aniquilado, esta identificação coloca o outro no lugar daquele que “gostaríamos de
ser” (FREUD, 1921/2006, p.117).
Freud fornece um exemplo fictício de sintoma provindo desta primeira identificação –
vale destacar o fictício, já que aqui, o recalque não foi estabelecido -, no qual uma menina
58
desenvolveria “o mesmo penoso sintoma que sua mãe, a mesma tosse atormentadora, por
exemplo” (FREUD, 1921/2006, p.116). Ele afirma, ainda, que esse sintoma seria decorrente
“do sentimento de culpa, de seu desejo de assumir o lugar da mãe” (FREUD, 1921/2006,
p.116).
Neste primeiro tempo, portanto, a identificação está intimamente ligada à disputa pelo
lugar de objeto na relação de amor com o Outro: objeto de desejo/amor da mãe, ao qual o
sujeito deve sua existência enquanto ser. O outro, aqui, aparece apenas como aquele que
ocupa o lugar de desejado. E é nesse sentido que Lacan (1946) afirma, em seu texto
“Formulações sobre a causalidade psíquica”, que o eu tem uma estrutura parnaóica.
Este primeiro tempo do Édipo corresponde, assim, à forma “mais primitiva e original
do laço emocional” (LACAN, 1946, p.116), aquela que nos remete à dependência do sujeito –
em relação mesmo à sua existência - ao Outro primordial.
Esta via do Complexo de Édipo, a do primeiro tempo, seria, segundo afirma Lacan em
seu seminário dedicado às psicoses, a via delirante, via psicótica em que se vê a função real
do pai na geração aparecer sob uma forma imaginária. (LACAN, 2002, p.242-243). É o que
acontece imaginariamente entre Schreber e Deus – este último encarnando o impossível do
pai de toda a humanidade.
Didier-Weil (1997, p.68) afirma que se o sujeito não chega a conseguir se separar do
olhar siderante deste tempo, então pode-se falar em um olhar medúsico, o que indica não um
supereu arcaico, mas um supereu psicotizante.
2.2.3.2 O pai Simbólico e a Lei
Para que o pai real seja tomado como impossível, e não encarnado imaginariamente
como acontece na psicose, é preciso que ele – o pai, ou seja, o não - seja nomeado, isto é,
desvelado como agente simbólico. Didier-Weil (1997) nos fornece um exemplo clínico
bastante ilustrativo da importância do desvelamento desse olhar em palavra. Ele fala de
Robert, paciente que teria, após um ato falho, recebido um olhar de desaprovação, ao qual,
imóvel, não pôde responder, sentindo-se envergonhado. O interessante é que Robert diz que,
se essa mulher lhe tivesse dirigido a palavra, ainda que uma palavra de desaprovação, ele
poderia ter se defendido, poderia ter lhe pedido desculpas e explicado que enrolou a língua ao
falar, ou coisa parecida. Esse exemplo demonstra a importância do desvelamento do não, a
partir do qual o sujeito pode se defender. Sem esse desvelamento
59
a dor psíquica do sujeito, que vive a experiência do mau-olhado, como aquele, para Robert,
do olhar da mulher, implica numa experiência de despojamento: despojado da palavra, ele é
reduzido a um sentimento de transparência vergonhosa, isto é, de despojamento de sua
imagem especular. (Didier-Weil, 1997, p.72)
Dito de outro modo, para que advenha o segundo tempo do Édipo, é preciso haver o
surgimento de uma Lei simbólica para barrar o gozo do Outro primordial, isto é, uma palavra
- um não - que impeça o acesso irrestrito da mãe à criança e vice-versa: uma Lei que limite o
gozo e, em conseqüência, ordene – simbolicamente - o desejo (materno). Uma palavra,
portanto, que significantize esse olhar.
Aqui a castração seria apreendida pelo sujeito, mas não a sua própria castração: o
sujeito perceberia a mãe como castrada. O pai seria entendido como aquele que priva a mãe
do objeto fálico, isto é, a criança, na medida em que exerce o direito sobre ela. Aqui, tal qual
na lei que proíbe o incesto, a mãe não tem acesso irrestrito ao filho, e nem o filho à mãe.
Assim sendo, o pai é fundado como aquele que outorga a Lei à mãe, “o que significa que a
demanda endereçada ao Outro, caso transmitida como convém, será encaminhada a um
tribunal superior” (1999, p.198). E isso, segundo Lacan (1999) seria apreendido a partir das
relações da mãe, não com o pai, mas com “a palavra do pai – com o pai na medida em que o
que ele diz não é, de modo algum igual a zero” (LACAN, 1999, p.197). O segundo tempo
lógico do Édipo é o tempo do pai enquanto “privador da mãe”, como Lacan (1999, p.198) o
chama12. A mãe está privada do acesso ao filho e, o filho, frustrado pelo não acesso à mãe.
Essa etapa é o que costumamos entender como “a entrada do terceiro”, o que quer dizer que a
criança apreende que a mãe está sujeita a uma Lei que é externa a ela. Aqui, existe um quarto
elemento, para além da mãe, da criança e do falo: o pai é desvelado na figura daquele que
porta a Lei – o que é diferente de encarná-la -, privando a mãe do falo – e em conseqüência,
frustrando a criança do acesso à mãe. Segundo Quinet (2003), este é o momento que
corresponde ao recalque originário, para Freud, e à castração simbólica, para Lacan.
Vale destacar que “a primeira pessoa a ser castrada na dialética intersubjetiva é a mãe.
[...] Se os destinos são diferentes no menino e a na menina, é porque a castração é
inicialmente encontrada no Outro.” (LACAN, 1999, p.361) Assim, a mãe é privada deste
acesso ao filho, seja ele menino ou menina, e a criança passa, no primeiro caso, à ameaça de
castração - vislumbrando o falo - que pode perder - em si mesmo – ou, no segundo caso, à
inveja do pênis - vislumbrando o falo que pode ganhar daquele que é seu detentor, o pai.
12
embora no mesmo seminário, em esquema apresentado anteriormente, o autor tenha designado o ato do pai
simbólico como o da frustração. A frustração, entretanto, é frustração do filho.
60
No segundo tempo do Édipo, a mãe deverá ser colocada no lugar de objeto interditado
– sendo o pai o detentor do direito, um direito que lhe cabe enquanto homem.
AGENTE
Mãe Simbólica13
ATO
Frustração (I)
OBJETO/AMEAÇA
Real (mãe)
O Pai enquanto Simbólico é aquele detentor do direito de acesso ao objeto - aquele,
pois, que promulga as leis, estabelecendo a relação de temor ao pai - o que gera no sujeito a
frustração própria à neurose, de não sentir-se no direito de gozar do objeto (na histeria,
esquivando-se dele e, na neurose obsessiva, postergando seu encontro). “O pai efetivamente
frustra o filho da posse da mãe” (p.178) O temor ao pai, portanto, encontra-se na ordem
simbólica do direito.
Assim, na via neurótica do Édipo, como Lacan (2002) a chama em seu seminário As
Psicoses, a realização imaginária aconteceria através de um exercício simbólico da conduta.
Neste caso, o autor dá o exemplo da Síndrome de couvade14, fenômeno no qual o
acontecimento é imaginário, mas se dá por uma atualização simbólica da conduta.
É só através do reconhecimento da submissão materna à Lei que pode surgir o enigma
do desejo do Outro: ‘o que será que ela quer?’. Esse enigma será significantizado através do
que Lacan chama o Nome-do-Pai. Ele é o que vai metaforizar o lugar de ausência da mãe, ou
seja, é o que vai associar um outro significante ao significante da ausência. É como se o Fort,
isto é, a ausência da mãe, fosse tomada como um enigma: ‘o que será isso com que ela se
ocupa que não sou eu?’ ‘O que será que ela busca?’ e, em resposta à este enigma, surgisse um
primeiro significante, potencialmente carregado de sentido. Lacan (1957-1958/1998) nos
apresenta o esquema a seguir, que representa a constituição da metáfora paterna:
NP
DM
13
DM
x
Nome-do-Pai
A
Falo
Embora encontremos escrito Mãe Simbólica e não Pai Simbólico no esquema, na mesma página do referido
seminário, Lacan se refere ao agente como o Pai Simbólico e à mãe como objeto desta ação: “Nesse ponto, é o
pai como simbólico que intervém numa frustração, ato imaginário concernente a um objeto muito real, que é a
mãe, na medida em que a criança necessita dela” (LACAN, 1957-58/1998, p.178). Dessa forma, entende-se que
o pai aqui, é uma função, já que é a palavra da mãe que indica o pai enquanto seu privador.
14
A Síndrome de couvade ou Gravidez por simpatia é o conjunto de sintomas de gravidez sentidos por um
homem, em geral, quando a companheira está grávida.
61
Acrescenta-se que, no Complexo de Édipo, o pai é essencialmente o pai simbólico,
uma metáfora, “um significante que substitui o primeiro significante introduzido na
simbolização, o significante materno”. (1998, p.180) É através do significante do Nome-doPai (NP) que o desejo da mãe (DM), antes tomado como uma incógnita (x) pode receber
significação.
A dimensão da metáfora não é a da comparação, mas a da condensação, a da
identificação simbólica – que é a identificação a um traço destacado do objeto de desejo - e
depende diretamente da estrutura da cadeia significante. (LACAN, 2002, p.249). A metáfora
só acontece a partir da suposição de que uma dada significação seja o dado que domina, que
comanda o significante. Aqui, “a significação arranca o significante de suas dimensões
lexicais” (LACAN, 2002, p.249). Desta maneira, se é possível dizer a alguém ‘você é uma
rosa’ é porque se acredita que o significante ‘rosa’ pode ser substituído por algum significado
que predomine. A metáfora, pois, relaciona-se intimamente à questão da existência, isto é,
relaciona-se à significação como questão – como enigma.
O Desejo da Mãe, neste momento do Édipo, está referido a um significante, ou seja, o
Outro - agora barrado (A) - não é mais o lugar do significante com significação arbitrária, o
que faz uma barra à cadeia significante: desta forma o Nome-do-Pai toma a função de ponto
de basta entre significante e significado, um ponto no qual o significante, antes arbitrário,
pode ser referenciado a uma significação, entrando na dialética significante-significado. A
metáfora cria um ponto de parada no deslizamento do significado sob o significante.
Lacan (1988) elabora o conceito de ponto de basta a partir do temor ao pai, algo que,
segundo ele, faria convergir todos os perigos, todos os temores do mundo em só um ser:
Deus, o pai. Ele nos diz que, na psicose a falta desse ponto de basta faz com que sejam
possíveis os fenômenos de automatismo, nos quais o sujeito escuta significantes que lhe
deixam perplexos: significantes sem significado. É a falta desse ponto de basta que faz com
que o sujeito não reconheça um discurso pessoal como sendo seu.
Por outro lado, o ponto de basta, além de promover a amarração entre significante e
significado é também o que delimita o gozo, uma vez que o temor a Deus é visto por Lacan
como o significante capaz de fazer convergir todos os perigos do mundo (LACAN, 1988,
p.302).
Enfim, a partir desse momento, a criança apreende um Outro materno castrado
também no sentido da Lei, uma vez que ele é submetido à lógica do desejo.
2.2.3.3 O pai Imaginário e o desejo
62
No mito da horda primeva, com a instauração da Lei surge o acesso ao gozo, ainda
que parcial, mas antes inacessível. Isso é possível a partir da tênue passagem do temor ao pai aquele que instalou a proibição do incesto e, com ela, a interdição ao gozo - ao amor ao pai aquele cujo culto permite aos filhos o acesso ao gozo para além das mulheres da horda. O
gozo que aí surge não é irrestrito, mas possível, limitado, e precisa, para acontecer, que o
sujeito ultrapasse – o que é diferente de quebrar - a barreira da horda. É assim que a busca do
objeto, isto é, a dialética do desejo, teria sido instaurada na humanidade. Tem-se, portanto, a
partir do mito, a estrutura do terceiro tempo do Édipo: a instauração da dialética do desejo a
partir da busca do objeto para além da interdição outorgada.
No seminário sobre As Psicoses, Lacan (2002, p.242) aponta que seria a partir da via
imaginária que a integração simbólica se faria, constituindo aquilo que ele nomeia neste
momento como a via normal do Édipo.
Assim, no terceiro nível, o Pai Imaginário é aquele que priva por um lado, mas abre a
via de acesso ao objeto - que aqui é simbólico - por outro.
Através da identificação simbólica, o pai, de temido, passa a amado, dimensão que
intervém na função terminal do Édipo, aquela que leva à formação do Ideal do eu: “no
momento da saída normatizadora do Édipo, a criança reconhece não ter.” (1998, p.179) O
amor ao pai, portanto, está na ordem daquilo que imaginariamente falta, ou seja, aquilo que se
deseja.
AGENTE
Pai Imaginário
(ideal)
ATO
Privação (R)
OBJETO/AMEAÇA
Simbólico/a (falo)
Segundo Lacan, é o componente de amor ao pai, sempre presente na função edípica, o
responsável pelo término do complexo. “É na medida em que o pai é amado que o sujeito se
identifica com ele, e que encontra a solução terminal do Édipo numa composição do recalque
amnésico com a aquisição, nele mesmo, do termo ideal graças ao qual ele se transforma no
63
pai.” (p.176) No terceiro tempo o sujeito consegue, através do dom, “que lhe seja concedido
ter um pênis para mais tarde”. Ele carrega “o título de posse no bolso”. (p.212).
Sendo o pai o garantidor do acesso ao falo, ele sai definitivamente do lugar de rival
para o lugar de provedor simbólico. É assim que parece se instalar, no sujeito, a lei contra o
parricídio. Já é possível entender que o desejo tem papel fundamental neste terceiro tempo do
Édipo.
O objeto de desejo, falo, já foi entendido, no segundo tempo, como fora do sujeito,
mas agora é, também, algo a que o sujeito possa buscar. A partir da significantização do
desejo do Outro, ocorrida no segundo tempo, surge também a nomeação do objeto de desejo.
O pai se revela como aquele, não exatamente que tem o falo, mas que aponta o acesso
ao falo, e a identificação que aqui ocorre é da ordem de um ideal, o pai é internalizado como
Ideal do eu e o complexo de Édipo declina. (1988). O não que aqui se estabelece, diz respeito
também ao pai, que é um pai desejante.
Para tal, entretanto, vale destacar que é preciso a identificação ao pai simbólico, ao
qual Lacan (1997) se refere como um pai manco, ou seja, um personagem viril, por um lado,
mas não-todo-poderoso, por outro. Desta forma, não se precisa, em definitivo, matar o pai: ele
já é morto enquanto rival. A identificação viril só seria possível a partir do amor ao pai e o
efeito da normalização do desejo “só se produz de modo favorável na medida em que tudo
está em ordem do lado do Nome-do-Pai, isto é, do lado do Deus que não existe. Resulta para
esse pai uma posição singularmente difícil – até certo ponto é um personagem manco.”
(LACAN, 1997, p.222). O pai nesse terceiro tempo é, portanto, um pai faltoso, um pai que
deseja. É dessa forma que Lacan irá afirmar que, para que o pai tenha direito ao amor é
preciso que ele esteja “père-vertidamente orientado, ou seja, que faça de uma mulher objeto
pequeno a que causa seu desejo.” (LACAN, 1974-75/inédito, p.23)
Este pai manco seria alguém a ser seguido e, para tanto, parece ser preciso que esta
privação do objeto materno seja sentida não como uma convocação à luta; mas como um
convite, isto é, como uma invocação a seguir o caminho do pai.
A invocação seria uma forma de apelo ao outro “no sentido de convidar a entrar na via
desse desejo, seja ele qual for, de maneira incondicional” (1999 p.157), e que difere
radicalmente da convocação, do anúncio, da constatação de uma ordem. Nos seminários As
psicoses e As formações do Inconsciente, Lacan (2002, p.342; 1999, p.159) nos diz que a
invocação, em sua forma religiosa original, consistia em uma cerimônia na qual, antes de um
combate, o povo invocava os deuses do inimigo para que estivessem a seu lado.
64
No seminário As formações do inconsciente, Lacan explicita a relação que se coloca
entre o sujeito e o outro quando é: por um lado, invocado - como ocorreria na frase Tu és
aquele me seguirás (na qual o verbo seguirás concorda com o sujeito da frase, o tu), a qual
implica o apelo e, em conseqüência, o sim do sujeito; e, por outro lado, quando é evocado, o
que implica a elisão da sua dimensão de sujeito do desejo:
Quando digo Tu és aquele que me seguirás, há uma coisa que não está no Tu és aquele que
me seguirá, e é a isso que se chama invocação. Quando digo Tu és aquele que me seguirás,
estou invocando você, atribuindo-lhe a função de ser aquele que me seguirá, suscito em você
o sim que diz Estou contigo [je suis à toi], entrego-me a ti, sou aquele que te seguirá. Mas,
quanto digo Tu és aquele que me seguirá, não faço nada parecido, anuncio, constato,
objetivo e até, vez por outra, rechaço. Isso pode querer dizer: Tu és aquele que me seguirá
sempre, e estou farto disso. Da maneira mais comum e mais conseqüente de proferir essa
frase, ela é uma recusa. (LACAN, 1999, p. 157)
Neste último caso (no qual o verbo seguirá concorda com o objeto, isto é, aquele) só
há lugar para o desejo daquele que evoca, desejo este que, por não considerar o desejo do
sujeito, se coloca na dimensão da rivalidade, da disputa pelo gozo. E é o que Lacan indica no
seminário As psicoses, ter ocorrido com Schreber:
Sem dúvida nos faltam no texto os elementos que nos permitiriam examinar mais de perto as
relações de Schreber com o pai [...]. Mas não temos necessidade de mais nada para
compreender que é obrigatoriamente pela relação puramente imaginária que deve passar o
registro do tu no momento em que ele é evocado, chamado pelo Outro, pelo campo do Outro,
através do surgimento de um significante primordial, mas excluído para o sujeito. Esse
significante, nomeei-o na última vez – tu és aquele que é, ou que será, pai. (LACAN, 2002,
p.343)
Entende-se que o termo invocação pode nos auxiliar a entender esse chamado que
ocorre com todo e cada sujeito do desejo: o chamado a reconhecer, no pai, alguém a quem ele
seguirá, e que implica, não a dimensão da identificação narcísica, e, nem mesmo a da
identificação simbólica, mas a da identificação ao desejo, que “deixa inteiramente fora de
consideração qualquer relação de objeto com a pessoa que está sendo copiada” (FREUD,
1921/2006, p.117). E que seria a única identificação passível de colocar o pai no lugar de
Ideal de eu - a partir do par significante pai-filho. Essa identificação seria a única que
possibilitaria uma participação, a identificação ao desejo do Outro. (Granon-Lafont, 1990)
É, portanto, através da identificação ao desejo paterno, que não ocorre sem a
nomeação paterna, que advém a estrutura do sujeito do desejo. Pode-se entender que a
dialética do desejo se forma nos segundo e terceiro tempos do Édipo: se por um lado a
alienação ao desejo do Outro se liga intimamente ao sentido, isto é, à dimensão da
significação; por outro lado, a separação se liga intimamente ao significante, este que é por
natureza desprovido de sentido. E, tal qual significante e significado formam um sistema
65
indissociável, alienação e separação também o formam. Do mesmo modo, outros dois
elementos fundamentais para o entendimento da constituição desta dialética são a metáfora e a
metonímia. A metáfora - dita paterna - se relaciona intimamente com o significado e foi
instituída no segundo tempo, como foi visto; já a metonímia se relaciona ao nome – trata-se
da substituição, de algo que se quer nomear –, se relaciona, pois, intimamente com o objeto e,
portanto, com o desejo. É o que Freud chamou deslocamento e que predomina nas formações
do inconsciente (LACAN, 2002, p.251-252). A metonímia está intimamente relacionada a
este terceiro tempo na medida em que se trata, não da relação do significante com o sentido,
mas da relação do significante com o objeto: é através dos deslocamentos que a dialética do
desejo se constituirá.
Assim, o processo da extração de gozo corresponde à operação da separação, na qual
o desejo do sujeito se separa do desejo do Outro. Essa separação não ocorre de maneira plena,
o sujeito continuará, em parte, alienado, uma vez que o desejo do sujeito se funda no desejo
do Outro e carrega essas marcas consigo. É nesse sentido que Lacan afirma que “o desejo do
Homem é o desejo do Outro” (LACAN, 1959-60/1991, p.162). Isso ocorre porque a operação
da separação se constitui a partir de um ponto de fuga que se estabelece na significação do
desejo do Outro. Isto quer dizer que embora o desejo seja significantizado, continua a existir
um ponto cego, um ponto de não-sentido, um vazio de significação. E é esse vazio que será
preenchido pelo desejo do próprio sujeito. É assim que o traço unário seria “o fundamento, o
núcleo do Ideal do eu”. (LACAN, 1998, p. 242)
Mas isso ocorre na neurose. Na psicose, com a recusa à Lei paterna, a dialética
significante fica prejudicada e esse vazio parece não ocorrer, o que faz a dialética aparecer
desvinculada, ora no pólo significante, com a falta de significação própria aos fenômenos
esquizofrênicos, ora no pólo oposto, com o excesso de sentido, próprio aos fenômenos
paranóicos. É o que será visto a seguir.
2.3 A recusa ao Pai na psicose
2.3.1 A Psicose como estrutura
2.3.1.1 A psicose e a carência paterna
66
No seminário de 1952, dedicado ao estudo do caso Homem dos Lobos, Lacan afirma
que “neste caso, pode-se dizer que o complexo de Édipo ficou inacabado porque o pai é
carente” (LACAN, 1952/inédito,) e que toda a história do sujeito estaria marcada pela busca
de um Pai simbólico, castigador, uma vez que o Homem dos lobos teria fracassado em
simbolizar certas relações humanas. Sendo assim, o que se transmite de pai para filho neste
caso, segundo Lacan, é o patrimônio – a posse - evidenciando, assim, o caráter alienante do
poder encerrado pela riqueza e recobrindo a relação com o pai de forma unicamente narcísica.
O encontro do sujeito com o pai simbólico – aquele que, como foi visto, outorga a Lei
- acarretaria o temor ao mesmo, e isso rechaçaria o pai imaginário da cena primitiva, na qual a
relação é a dois, ou seja, uma relação de dominância e de submissão (LACAN, 1952/inédito).
Entretanto, essa relação do temor ao pai não se instala na psicose, sendo que, na
esquizofrenia, não ocorre sequer o estabelecimento da relação imaginária, a do primeiro
tempo, enquanto, na paranóia, tal relação chega a ser estabelecida, acarretando diferentes
conseqüências para cada uma delas, como será visto adiante. (QUINET, 2003)
O pai, na vertente imaginária, só interessa enquanto objeto do desejo do Outro, que dá
as bases de uma imagem a ser copiada. Entretanto, por estar no mesmo nível do sujeito, por
ser, tal qual ele, objeto de desejo do Outro15, o pai se instala numa dimensão de rivalidade, de
concorrência, tal qual na dialética do senhor e do escravo.
a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, ela é alienada. O sujeito humano
desejante se constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá a sua
unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto do desejo do outro. [...] Ele só
interessa enquanto objeto do desejo do outro. (LACAN, 2002, p.50)
Isso ocorre uma vez que o sujeito não pode se relacionar diretamente com o Outro –
que é um lugar - senão a partir do desejo do Outro - isto é, daquele que ocupa, para o sujeito,
esse lugar –, que é uma referência simbólica, com estatuto de enigma. É por isso que a relação
direta do sujeito se faz a partir das relações imaginárias (eixo a-a’), isto é, com o mundo
empírico, com os outros enquanto semelhantes. São eles que poderão fornecer ao sujeito uma
imagem que venha em resposta a esse enigma.
15
Na citação abaixo, Lacan faz referência ao desejo do outro, com minúscula, entretanto, utilizamos o Outro com
maiúscula uma vez que Lacan explicita no seminário em questão que, na psicose, o Outro está excluído em
relação ao significante, mas não está excluído em relação à lei, pelo contrário, encarna-se absoluto. Tal questão
será abordada mais adiante.
67
A distinção entre o Outro - enquanto não é conhecido - e o outro - que é o eu, fonte de
todo conhecimento - é fundamental. “É nesse afastamento, é no ângulo aberto dessas duas
relações, que toda a dialética do delírio deve ser situada.” (LACAN, 2002, p.51)
Esse alicerce especular e rivalitário no fundamento da constituição do sujeito é
precisamente o que é necessário ser superado para se chegar à neurose. Essa superação ocorre
através da palavra, do acordo, da entrada de um terceiro que é simbólico, que é significante. O
paranóico “está preso na relação imaginária, centro de gravidade do seu eu individual, e no
qual não há palavra.” (LACAN, 2002, p.54)
Desta forma, se a função paterna não é assumida no nível simbólico, isto é, se o
sujeito não se reconhece ali como filho, resta-lhe a identificação à imagem. Esta alienação
especular permite ao sujeito, ao menos por um tempo, localizar-se no mundo, ater-se a um
ponto de enganchamento, que está, no entanto, no plano imaginário, uma vez que não
comporta uma dialética triangular: “A imagem adquire em si mesma e logo de saída a função
sexualizada, sem ter necessidade de nenhum intermediário, de nenhuma identificação com a
mãe ou com quem quer que seja” (LACAN, 2002, p.233)
Da alienação radical que acontece na psicose decorre um aniquilamento do
significante. A partir desse aniquilamento, restarão as muletas imaginárias, isto é,
possibilidades de identificação imaginárias que podem, ao menos por um tempo, servir de
imagem, de cópia, na tentativa de saber o que é preciso fazer para ser homem – ou mulher.
A alienação é aqui radical, ela não está ligada a um significado aniquilante, como um certo
modo de relação rivalitária com o pai, mas com um aniquilamento do significante. Essa
verdadeira despossessão primitiva do significante, será preciso que o sujeito dela se
encarregue e assuma a sua compensação, longamente, na vida, por uma série de
identificações puramente conformistas a personagens que lhe darão o sentimento do que é
preciso fazer para ser um homem?
[...]
O que será que torna subitamente insuficientes as muletas imaginárias que permitiam ao
sujeito compensar a ausência do significante? (LACAN, 2002, p.233)
Enquanto a diferença não aparecer, o sujeito pode utilizar a imagem do outro como
modelo. Entretanto, se a imagem captada é desmedida, se o outro se manifesta na ordem da
potência, sem a existência do pacto pai-filho, o que resta é a relação de rivalidade, de
agressividade e luta. Aqui, pode-se entender que há um lugar e duas pessoas para ocupar este
lugar, o que implica, logicamente, uma disputa.
Diferente do par significante, no qual a diferença entre pai e filho tem seu lugar, aqui a
diferença não pode existir. A alienação, portanto, é uma alienação à imagem, e não a um
significante. A alienação significante – aquela da neurose, que não ocorre sem a separação -
68
permitiria o deslizamento dos significados, suportando a diferença, mas a alienação
imaginária, sem o suporte simbólico, não permite esta dialética.
Não é à toa que o que estaria no cerne da entrada na psicose seria uma situação em que
o sujeito precise ‘tomar a palavra’: “o contrário mesmo de dizer sim, sim, sim à do vizinho”
(LACAN, 2002, p.285). Assim, “o delírio começa a partir do momento em que a iniciativa
vem de um Outro, com um A maiúsculo”. (LACAN, 2002, p.220)
O desencadeamento da psicose, portanto, se relaciona com um curto-circuito da
relação afetiva, um curto-circuito da relação triangular edipiana, o que faz da relação com o
outro, uma relação de puro desejo, uma relação dual, aquela que Freud tratou em termos de
homossexualidade. (LACAN, 2002, p.343) Quando a referência imaginária do outro não é
suficiente, resta, do triângulo edípico, uma realidade tal qual a anterior ao primeiro tempo do
Édipo em que o sujeito, objetalizado, está à mercê do puro desejo desse Outro, um desejo
completamente desordenado.
Segundo Lacan (2002, p.343), “Freud supõe uma homossexualidade latente que
implicaria uma posição feminina – é aí que está o salto.” . Ou seja, isso que Freud chama, no
caso Schreber, posição feminina, diz respeito não à feminilidade - que implica, para além da
passividade, uma atividade (FREUD, 2006, 2006) – mas à passividade do sujeito objetalizado,
tal qual o objeto de estupro ao qual Schreber se identifica na primeira fase do delírio. Seria,
portanto, necessário abordar esta questão na ordem simbólica, para entender que, “não é por
estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar
uma mulher” (1998, p.571).
Entretanto, se o sujeito está fadado a esta posição feminina de objeto, é exatamente
pela recusa radical a uma posição feminina – no sentido da falta -, ou seja, a recusa à
submissão ao pai, recusa à castração que, no surto psicótico, retorna no real.
É por reconhecer a castração no Outro que - no segundo tempo do Édipo - a criança
fica submetida ao pai, isto é, à lei paterna. Mas, ao mesmo tempo, é por reconhecer o
impedimento do acesso da mãe à própria criança, que a primeira fica no lugar de objeto de
desejo e a criança poderá assumir uma posição masculina, ou seja, uma posição ativa, de
sujeito desejante. Assim, é na medida que falta algo, no Outro e, em conseqüência, nela
mesma, que a criança poderá advir enquanto sujeito do desejo.
A recusa ao pai, recusa à castração, ocorre na medida em que o sujeito não estabelece
a diferença pai-filho – que evoca o direito do pai e convida à busca do falo - mas apenas a
semelhança e a rivalidade da posição imaginária de objeto de desejo do Outro.
69
O que será que falta para que o sujeito possa acabar por ter necessidade de construir todo
esse mundo imaginário?
[...]
A constituição do sujeito na alusão imaginária, é este o problema que temos de fazer
avançar. (LACAN, 2002, p.187)
Lacan (2002, p.350) aponta para o fato de que, em Freud, a ideia da defesa contra uma
homossexualidade latente parte da ideia de um narcisismo ameaçado, sendo a megalomania
um mecanismo que responde ao temor narcísico – temor este que é, em última instância, o
temor à castração. Ele acrescenta, ainda, que é só em torno da suposição do falo no pai que se
instala o temor da perda do falo na criança. (LACAN, 2002, p.358). O que falta, portanto, é o
significante que instaura a diferença, o significante do Nome-do-Pai, que frustra o sujeito por
um lado, mas abre o acesso ao desejo por outro.
Vale destacar que isto que Lacan chama aqui temor narcísico ou temor à castração,
não é equivalente ao temor a Deus. Enquanto o temor narcísico se refere ao eu, ao pai
imaginário, o temor a Deus se refere a uma ordenação do mundo, a um pai simbólico.
O temor a Deus, enquanto algo que organiza e concentra os perigos do mundo, não
existe na estruturação psicótica. O Deus de Schreber é um Deus que tem o poder de destruí-lo,
que tem o poder de intervir no mundo, entretanto, não é um Deus que organiza o mundo, que
garante essa ordem. Tanto que é preciso que ele intervenha junto a Deus para reorganizar o
caos mundano, procriando uma nova raça junto a ele. Entretanto, ainda que carente, esse Deus
é poderoso: tem o poder de garantir-lhes a vida ou a morte. Sendo assim, em que tipo de
relação entra essa figura paterna que é a de Deus? Seria esse Deus portador de falo? Haveria
aí, nessa relação, o temor à castração?
Lacan sublinha que “efetivamente jamais se trata de castração em Schreber” (LACAN,
2002, p.351). Mesmo a transformação em mulher, tema central de seu delírio, “não é
absolutamente castração” (LACAN, 2002, p.351). Se “a função do pai é tão exaltada em
Schreber” (LACAN, 2002, p.353), que exige nada menos que Deus para ocupar este lugar,
entretanto, é uma função paterna imaginária. Afinal, como Lacan chama a atenção, na
perspectiva freudiana a função do pai é indissociável do complexo de castração. O terceiro,
nesta perspectiva, carrega um elemento significante irredutível a uma abordagem imaginária.
(LACAN, 2002, p.354)
Desta forma, a megalomania entra, nessa relação, como uma defesa à castração. Não
se trata, portanto, de reconhecer a castração, mas de negá-la radicalmente. Esta relação,
portanto, entre a paranóia e o pai, se coloca no nível imaginário.
70
Pergunta-se, a partir do exposto, como seria a relação de Alberto com esse outro de
seu delírio. Se por um lado o Deus de Alberto é poderoso, podendo tirar-lhe a vida a qualquer
momento, por outro, Alberto precisa auxiliá-lo, vindo não em suplemento, mas em
complemento, em sua função de prover o mundo de águas. Desta forma, o Deus de Alberto
parece também ele estar no nível imaginário, não sendo aquele que outorga a lei, mas aquele
que exerce uma lei de caprichos. Se Alberto se coloca ao lado de Deus nessa relação de
complementaridade, parece-nos ser exatamente em uma relação narcísica que ele se encontra,
em uma relação de paridade e, por conseqüência, de rivalidade.
Desta forma, na psicose, quando se fala em carência paterna, está-se falando em
carência de uma ordem simbólica ordenada pelo Nome-do-Pai. Ordem que foi em algum
momento rejeitada. E é dessa rejeição que se trata a seguir.
2.3.1.2 A Verwerfung freudiana e a Foraclusão do Nome-do-Pai
No século XVI, Erasmo de Rotterdam (2005), em seu Elogio da loucura, nos diz que a
loucura surge diante das coisas que o sujeito não suporta enfrentar, tais como a velhice, a
morte, a traição, etc., - e que pode-se condensar no termo castração. Em seu elogio ele vem
dizer que a loucura é o que, muitas vezes, possibilita ao ser humano suportar a vida. Falando
em primeira pessoa, enquanto a própria loucura, diz que é graças a si (ou seja, à loucura) que
as pessoas podem viver sem enxergar suas desgraças e assim serem felizes. E compara a
loucura ao enganar-se, ao pensar-se grande, poderoso, ao não reconhecer o não sentido da
vida.
Enfim, essa mentira sobre o impossível, necessária à vida, e tão bem ilustrada por
Erasmo, pode ser compreendida como o recalque freudiano. Uma mentira em relação à
castração.
Entretanto, se a mentira é a negação de algo, atrás do processo de recalque seria
necessária uma afirmação primordial, ou seja, uma simbolização primordial (a do Outro,
como foi visto) que possibilita a negação e, assim, o reconhecimento da falta, o que torna o
recalque e o retorno do recalcado o direito e o avesso de uma mesma coisa (LACAN, 2002).
Sem esta inscrição, Bejahung primordial, não é possível haver a negação primordial,
Ausstossung. Entretanto, há uma espécie de negação muito mais radical que o recalque. Uma
rejeição cujo retorno aconteceria no Real.
71
A loucura descrita por Erasmo (2005) - embora possa ser a loucura do dia-a-dia, a
loucura da fantasia neurótica - também se aproxima da psicose enquanto paranóia, isto é,
enquanto sentido dado às irrupções de Real que a vida oferece. Para ele, a loucura é o
conhecimento, é o entender o motivo da vida, as regras da física, os mistérios do mundo, isto
é, a loucura é o sentido dado ao não-senso.
Assim, a construção delirante, paranóica, seria o exemplo mais radical da loucura tal
qual a entende Erasmo. Já a psicose em seu momento de desencadeamento, na via dos
fenômenos esquizofrênicos, seria seu avesso. Ela estaria exatamente onde a função da loucura
- como a entende Erasmo - não teria dado conta: as alucinações verbais são um bom exemplo
daquilo de insuportável que, tendo sido rejeitado, retorna no Real.
O retorno dessa rejeição é observado por Freud (1918) no caso do Homem dos lobos,
no momento em que, vivenciando, quando criança, a alucinação de ter o dedo cortado - e não
conseguindo falar sobre sua experiência – o Homem dos Lobos demonstra que, na psicose, a
castração retorna desde fora, no Real. Mas é Lacan quem chama a atenção para este
mecanismo específico:
Ele sentou-se em seguida num banco, ao lado de sua ama, que é justamente a confidente de
suas primeiras experiências, e não teve a coragem de falar com ela sobre isso. Quão
significativa esta suspensão de toda possibilidade de falar – e precisamente com a pessoa a
quem ele falava de tudo. (LACAN, 2002, p.22, grifo nosso)
Na relação simbólica do sujeito pode ocorrer, ali onde ocorreria a Bejahung afirmação primordial da falta - uma Verwerfung – rejeição. Cada uma destas operações
implica diversos destinos.
Bejahung-Ausstossung – isto é, afirmação-expulsão - são termos destacados em Freud,
no artigo Verneinug (1925), e se referem à função do julgamento, a qual é dividida em duas
decisões. A princípio, haveria o juízo de atribuição, ou seja, o juízo daquilo que seria bom (o
que causa prazer) - sendo, em conseqüência, introjetado pelo eu - ou mau (o que causa
desprazer) - sendo expulso do eu. “A partir do ego-prazer inicial” se desenvolveria “a outra
espécie de decisão tomada pela função do julgamento” (FREUD, 2006, p.267) – aquela que
trata da existência, na realidade, daquilo que foi representado, como bom ou mal. O objetivo
primeiro desse teste de realidade seria “reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá”
(FREUD, 2006, p.267).
Vale destacar a afirmativa de Freud de que “é evidente que uma
precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que objetos, que outrora
trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (ibidem, p.268), ou seja, é preciso que a
falta seja reconhecida.
72
No Comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung, feito a pedido de Lacan,
Hyppolite esclarece que para compreender o artigo de Freud seria “preciso considerar a
negação do juízo atributivo e a negação do juízo de existência como estando para-aquém da
negação no momento em que ela aparece em sua função simbólica.” (LACAN, 1998, p.898).
Entende-se que essa negação enquanto função simbólica diz respeito ao recalque. Hyppolite
também enfatiza a prova da representação da realidade na repetição que caracteriza a busca ao
objeto perdido.
Lacan, (2002) propõe, como tradução de Verwerfung, o termo francês forclusion, que
é um termo do direito que equivale em português à prescrição, ou seja, a um acontecimento
que perdeu o prazo para ser reclamado na justiça e que, em francês, também é uma forma de
negação, na qual o sujeito desconsidera um determinado fato completamente. (QUINET,
2003)
O que há de tangível no fenômeno de tudo o que se desenrola na psicose é que se trata da
abordagem pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem.
Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido,
proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser a melhor – a
foraclusão. (LACAN, 2002, p.360)
Dessa maneira, toda apreensão humana da realidade seria correlata da condição
primordial de que o sujeito está na busca do objeto de seu desejo, o qual se presentifica
apenas como ausência, isto é, como falta. O princípio de realidade consiste precisamente em
que o objeto do desejo, perdido miticamente, jamais será reencontrado. O sujeito encontra
apenas um outro objeto, que o satisfaz parcialmente. E nisso se constitui a dialética entre
princípio de prazer e princípio de realidade (LACAN, 2002, p.101-102).
Lacan (1998, p.389) em Resposta ao comentário de Jean Hyppolite chama a atenção
que quando se trata de abolição simbólica – isto é, foraclusão - não se pode dizer que nenhum
juízo de existência tenha sido feito, mas que é como se ele nunca tivesse existido. E afirma
que “a Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto
é, da Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se
enraíza” (LACAN, 1998, p.389).
Por um lado, o sujeito do desejo tenta se guiar através de uma Lei fundamental, que “é
simplesmente uma Lei de simbolização. É o que o Édipo quer dizer” (LACAN, 2002, p.100),
entretanto, por outro lado, pode ser que essa Lei de simbolização não ocorra, que ela seja
rejeitada.
73
Previamente a qualquer simbolização - essa anterioridade não é cronológica, mas lógica – há
uma etapa, as psicoses o demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização não
se faça. Essa etapa primeira precede toda a dialética neurótica que está ligada ao fato de que
a neurose é uma palavra que se articula na medida em que o recalcado e o retorno do
recalcado são uma só e mesma coisa. Assim pode acontecer que alguma coisa de primordial
quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização, e seja, não recalcado, mas rejeitado.
(LACAN, 2002, p.97)
Vimos que o Édipo é o complexo em que o sujeito reconhece as leis que lhe permitem
fazer parte do laço social: a proibição do incesto, esta que, através do significante, desdobra a
fêmea em mãe - aquela que não pode ser objeto de satisfação sexual – e mulher - aquela que
pode; e a proibição do parricídio, que desdobra o macho em pai – aquele que não pode ser
objeto de rivalidade – e homem – aquele que pode.
É o significante primordial, o Nome-do-pai, um significante mítico (2002, p.175) ao
qual o Outro está referido, e que é o único capaz de outorgar a Lei simbólica ao sujeito, que
será rejeitado na psicose.
“De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante
primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o
mecanismo fundamental que suponho na base da paranóia. Trata-se de um processo
primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de
um primeiro corpo de significante.” (LACAN, 2002, p.174)
Portanto, a estrutura psicótica se funda em uma negação radical à função paterna, em
uma recusa ao pai enquanto pai simbólico, aquele que outorga a Lei. E a transmissão dessa
Lei, essa recusa paterna, seria devida àquilo que, em De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose, Lacan (1998) chama, Um-pai: “Basta que esse Um-pai se
situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’, isto é,
eu-objeto ou ideal-realidade, concernido ao sujeito no campo de agressão erotizado que ele
induz.” (LACAN, 1998, p.584).
Didier-Weill (1997, p.143-144) explicita que o Um-pai designaria “uma função
através da qual o pai intervém na transmissão da lei simbólica”. Assim, é preciso que esse
Um-pai se situe em uma relação terceira do par imaginário para transmitir a Lei simbólica,
como convém ao Nome-do-Pai.
O Um-pai seria aquele que torna “transmissível, através do temor, o significante
siderante do Nome-do-Pai.” (DIDIER-WEILL, 1997, p.149) Temor que não é o temor à
castração – temor aos deuses – mas sim o temor a Deus, já que o primeiro transmite o
sentimento de terror, de pânico, enquanto o segundo condensa em si os temores de todo o
mundo.
74
Assim, se é preciso que a mãe faça apelo à palavra do pai, dando-lhe valor, Didier-Weill
(1997) salienta que é necessário também, que este Um-pai esteja presente, diferenciando-se
do pai real e apontando para o Nome-do-Pai. “Que o falo do pai real deva dizer a lei para
simbolizar essa procriação, eis a tarefa do ‘Um-pai’” (DIDIER-WEILL, 1997, p.148).
A necessidade desse Um-pai na transmissão da metáfora paterna seria devida à própria
estrutura do desejo. Da mesma forma que é necessário uma estrutura quaternária para
transmitir um chiste - ou seja, além daquele que fala, daquele que é falado e da palavra falada,
é necessário o Outro para atestar a compreensão do sentido subjacente, isto é, do passo-desentido16 - é necessário também essa mesma estrutura para transmitir a metáfora paterna, ou
seja, o Nome-do-pai. Esse quarto elemento, para além da mãe, da criança e do significante,
seria o Um-pai.
Vejamos, portanto, as conseqüências dessa recusa paterna para a estrutura psicótica e,
em seguida, como o delírio se destaca, não apenas como conseqüência, mas também como
tentativa de cura.
2.3.1.3 Os fenômenos elementares da psicose.
Quando, na neurose, algo não se encaixa na cadeia simbólica estabelecida - porque a
posição em que o sujeito se encontra comporta um sacrifício impossível no plano das
significações - ou seja, quando um conflito psíquico se estabelece, o sujeito recalca este
acontecimento - isto que não se encaixa na cadeia. Mas a cadeia continua a correr, cobrando
sua dívida e assinalando este buraco através do sintoma neurótico. (LACAN, 2002, p.101) Se
este sintoma for tomado como mensagem, o sujeito pode localizar aí seu desejo e, então, ser
“chamado a renascer para saber se quer aquilo que deseja...” (LACAN, 1960/1998, p. 689).
Já no fenômeno psicótico, o acesso ao conflito fica impossibilitado. O que ocorre é o
encontro com uma significação que não se encaixa na cadeia, que não se liga a nada - por não
ter sido simbolizada – e que ameaça a ordem com que foi construída, até então, a realidade.
(LACAN, 2002, p.102)
16
No seminário As formações do inconsciente, mesmo seminário que Lacan apresenta longamente os três tempos
do Édipo, é apresentado um abrangente estudo sobre o chiste, de onde surge o termo pas-de-sense que traz, na
ambigüidade francesa do pas, a própria estrutura do chiste: do não ao passo de sentido. Ou seja, para que um
chiste ocorra, é preciso haver tal qual na metáfora, a crença em um significado subjacente àquele sem sentido
inicial que se apresenta.
75
Por não poder refazer o pacto simbólico entre o próprio sujeito e o Outro, entre a
cadeia e o que há de novo, por não conseguir encaixar essa diferença através da mediação
simbólica, a mediação que ocorre é através da proliferação imaginária.
Segundo Lacan (2002) o ego nunca estaria totalmente só, uma vez que comporta
sempre o eu ideal, uma espécie de gêmeo, reflexo que surge na dialética do narcisismo, e que,
na psicose, fala. O eu ideal, na psicose, comporta uma “fantasia falada”, diferente da fantasia
neurótica - que embora exista e insista através do sintoma, é calada.
Através do fenômeno das alucinações verbais é possível observar a diferença entre o
sujeito que fala concretamente, que sustenta o discurso e o sujeito inconsciente, que aparece
literalmente no discurso alucinatório. O sujeito inconsciente, nas alucinações verbais, aparece
não num além, mas num aquém do outro – uma vez que o outro não está presente, que não há
dialética. Ele aparece, pois, no que Lacan chama de “uma espécie de além interior”. (LACAN,
2002, p.144)
O sujeito normal é este capaz de não levar a sério seu discurso interior – ou pelo
menos a maior parte - como nos diz Lacan (2002, p.144). E esta seria talvez a primeira
diferença a ser estabelecida entre o alienado e os outros. Dessa forma, a relação do sujeito a
esse discurso interior que é o Outro seria o ponto fundamental na distinção entre psicose e
neurose.
Pompeu (1983), um sujeito psicótico, cujo livro sobre a loucura será mais bem
discutido no terceiro capítulo, define tal situação da seguinte forma: “Ele [o louco] tende a
acreditar que tudo que lhe passa pela cabeça tem existência real, fora dele. [...] É nisso que
consiste a loucura: em acreditar nas produções do inconsciente” (POMPEU, 1983, p.22).
Chama-se a atenção, portanto, para o núcleo delirante, um núcleo que pode até parecer
compreensível, ou seja, que pode demonstrar a preservação das faculdades mentais, mas que
tem seu interesse, não nesse fato, mas no fato de ser inacessível a qualquer dialética.
(LACAN, 2002, p.31)
A partir deste ponto, da falta de dialética, paranóia e esquizofrenia se aproximam. Os
fenômenos elementares funcionariam como elementos a partir dos quais seria possível
identificar uma estrutura, tal qual é possível, em biologia, identificar uma espécie ou uma
família de plantas a partir da observação de uma folha e dos elementos específicos existentes
ou não nela.
Elementos aparentes opostos, como a rigidez de uma certeza delirante, em que há uma
significação plena e a labilidade da desestruturação esquizofrênica em que o significante não
remete a significado algum, podem ser aproximados: em ambos os casos, a dialética
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significante-significado não funciona. Veríamos aqui, portanto, o direito e o avesso de uma
mesma moeda, o que vai na mesma direção já apontada por Freud, ao defender o termo
parafrenia, em detrimento à divisão nosológica radical entre esquizofrenia e paranóia.
Como foi visto no primeiro capítulo, com a psiquiatria clássica - anterior à Kraepelin –
identificava-se no estudo evolutivo das psicoses uma unidade entre as fases iniciais da
enfermidade, comumente referida pelos profissionais da área como surto esquizofrênico e as
fases posteriores, em que o delírio é sistematizado, ou seja, a fase paranóica.
Portanto, o que deve chamar a atenção nos fenômenos psicóticos não é a confissão do
sujeito de que ele está ouvindo algo não partilhável, mas a certeza do sujeito de que aquilo de
que se trata – alucinação ou interpretação – lhe concerne. É essa certeza em relação a si
próprio, essa ‘crença nas produções do inconsciente’, que diz respeito aos fenômenos
elementares, sejam aqueles do momento da irrupção da psicose, sejam os de uma crença
delirante sistematizada.
Nesses dois fenômenos tão próprios à psicose, ressalta-se o quanto revelam da
estrutura da linguagem. Se de um lado a alucinação traz a dimensão do enigma, da
perplexidade e do não-senso próprios da dimensão significante; de outro lado, o fenômeno
delirante traz a dimensão oposta, do conhecimento, da resposta, do sentido, próprios à
dimensão do significado.
O enigma principal de todo sujeito diz respeito ao ser: “de onde vim?”, “pra onde
vou?”, “quem sou eu?”. Perguntas às quais a ordenação significante-significado não dão conta
de responder, podendo, no máximo, fazer borda. Na psicose, entretanto, essas questões
parecem retornar: no período do desencadeamento, em caráter de enigma absoluto; e, no
período de sistematização delirante, em caráter de resposta absoluta:
Dois estilos se opõem, dois alcances. De um lado, a escansão, que joga sobre as propriedades
do significante, com a interrogação implícita que ela comporta, e que vai até a coerção. Por
outro lado, o sentido que tem por natureza ocultar-se, acusar-se como algo que se oculta, mas
que se põe ao mesmo tempo como um sentido extremamente pleno cuja fuga aspira o sujeito
em direção ao que seria o cerne do fenômeno delirante, seu umbigo. Vocês sabem que este
último termo, umbigo, é empregado por Freud para designar o ponto em que o sentido do
sonho parece acabar num buraco, um nó, além do qual é verdadeiramente no cerne do ser
que parece se prender o sonho. (LACAN, 2002,p.294)
É dessa forma, entre estes dois pólos, entre o puro significante e o pleno significado,
que os psicóticos constroem sua empreitada: “a função deles é a de compreender algo sobre o
que eles não compreendem nada”. (LACAN, 2002,p.297)
Souza (1999), utilizando o termo fantasia delirante, pinçado do texto freudiano As
fantasias histéricas e sua relação com a realidade, e em clara analogia à fantasia neurótica,
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nos diz que o sujeito psicótico não toma o silêncio do Outro quanto ao sentido da existência
enquanto enigma, mas enquanto uma simples pergunta, que guarda uma resposta consigo.
Esse silêncio é tomado não como enigma, mas como “silêncio maldoso, nocivo, mau”
(SOUZA, 1999, p.81) que guarda uma resposta sem resto, oferecendo ao sujeito uma
significação absoluta ao enigma da existência, o que acaba, em conseqüência, por obturar o
sujeito em sua falta-a-ser.
Na psicose, portanto, não há uma dialética significante-significado, mas uma divisão
radical, na qual o caráter significante daquilo que bordeja a pergunta sobre a existência do ser
foi rejeitado.
É essa relação com o significante que determina a ênfase que vai assumir para o sujeito a
primeira parte da frase, tu és aquele que..., segundo a qual a parte significante terá sido para
ele conquistada, e assumida, ou ao contrário verworfen, rejeitada. (LACAN, 2002, p.318)
Esse significante é o significante “ser pai” (LACAN, 2002, p.319), significante que
nomeia o par pai-filho, estabelecendo uma diferença simbólica naquilo que anteriormente
seria apenas identificação narcísica e, mais que isso, possibilita, tal qual no terceiro tempo do
Édipo, o advento do desejo, desejo de ser, ele também, pai. Sem este significante, nomeador,
a alteridade é “reduzida ao registro único da alteridade absoluta” (LACAN, 2002, p.319), ou
seja, sem este registro do Ideal simbólico, quando algo da diferença se evidencia naquilo que
era apenas semelhança, o pólo do amor narcísico se transforma em seu avesso, o ódio. É,
portanto, em torno desse significante fundamental rejeitado que giram todos os termos do
delírio, isto é, tudo aquilo que tenta dar conta de alguma diferença que se evidencia e que não
encontra seu lugar na ordem imaginária.
Aquilo que é rejeitado no simbólico, retorna no real. E parece retornar a partir daquilo
que Lacan chama evocação, e que concorda não com o sujeito da frase, mas com o objeto: “tu
és aquele que é, ou será, pai.”. Em Schreber, Lacan nos diz que “é obrigatoriamente pela
relação puramente imaginária que deve passar o registro do tu no momento em que ele é
evocado, invocado, chamado pelo campo do Outro, através do surgimento de um significante
primordial, mas excluído para o sujeito.” (LACAN, 2002, p.343)
A questão da existência, da procriação e da morte, está essencialmente ligada ao “ser
pai”: “É preciso um efeito de retorno a fim de que o fato de copular para o homem receba o
sentido que ele tem realmente, mas ao qual nenhum acesso imaginário é possível, o de que a
criança seja tanto dele quanto da mãe.” (LACAN, 2002, p.330) A experiência da couvade17
17
Ver nota p. 15
78
denotaria essa necessidade, de realizar ritualmente “a segunda parte do caminho” (LACAN,
2002, p.330), parte essa que corresponde, não à compreensão de que uma criança é gerada
pela copulação (função do homem), mas a compreensão de que esta criança pertence também
ao pai. A localização do pai enquanto função simbólica, isto é, o Nome-do-Pai, portanto, é o
que permite ao sujeito a possibilidade deste significante que entra no lugar de Ideal, o
significante ser pai, significante que nomeia o sujeito e ao qual Lacan (1973-74/inédito)
chamará, em seminários posteriores, a função Pai-do-Nome, ou seja, aquele que invoca o
sujeito, aquele que o nomeia a ser alguma coisa.
Em ambos os casos – alucinação e delírio - este significante nomeador do sujeito
parece retornar desde fora, entretanto, de formas distintas. A alucinação pode ser localizada,
como foi visto, no pólo da dimensão de puro significante, colocando o sujeito numa posição
de puro objeto. Perplexo ante a falta de significação, o sujeito fica numa posição passiva, sem
ação possível ante o desconhecido. “Tentem imaginar em conseqüência o que pode ser a
aparição de um puro significante.” (LACAN, 2002, p.227)
Já o fenômeno delirante, que se localiza no pólo oposto do par significante-significado
- ou seja, no pólo da significação – possibilita ao sujeito uma posição ativa. Através da
significação delirante, alguma ordem pode ser estabelecida na realidade do sujeito. O delírio,
portanto, se aproxima da alucinação enquanto fenômeno elementar, mas difere dela por ser
também uma tentativa de cura.
2.3.2 O delírio como função
2.3.2.1 O delírio como suplência
Nos anos 1950, Jacques Lacan, retomando Freud e Clérambault, se dedica ao estudo
das psicoses - assim como no estudo do delírio enquanto tentativa de cura - partindo do
predomínio dos fenômenos verbais nas psicoses não oníricas – isto é, funcionais - como Freud
já havia apontado em seu artigo Suplemento metapsicológico da teoria dos sonhos, de 1916.
Freud (2006)já indicara que o delírio é uma tentativa de cura. Lacan, sobretudo em seu
seminário As psicoses, explicita a estrutura do delírio enquanto função. Segundo ele, o
diálogo do delírio seria o único pelo qual o psicótico poderia sustentar em si uma
79
intransitividade do sujeito. “Penso, logo existo, dizemos intransitivamente. [...] Essa é a
dificuldade para o psicótico”. (LACAN, 1999, p. 14)
Desta forma, entende-se que a função do delírio se relaciona à questão da existência
que, como foi visto, na psicose, não é bordejada pelo Ideal simbólico, mas pode ser
“respondida” pela significação delirante, que surge, como Lacan (1953/54-1986, p. 139) nos
indica, sustentada pelo simbólico – ainda que “um simbólico marcado de irreal” - já que é
através das palavras, dos significantes, que as construções delirantes surgem e se sustentam.
Quando o psicótico se encontra em uma posição na qual não há imagem especular a
ser seguida, a falta do Ideal de eu se escancara. Não havendo pares na posição que ele ocupa,
o sujeito fica sem imagem a ser copiada e, não havendo Ideal a ser perseguido, o sujeito fica
sem rumo, vagando pela vida, com seu mundo desmoronado. Aqui, o pólo do puro
significante se evidencia. E é neste desarranjo da ordem que o surto pode ser localizado. Em
Schreber, esse desarranjo se dá quando ele se vê eleito Juiz Presidente, ao mesmo tempo em
que é privado de ser pai. O delírio, pois, tentará reconstituir a ordem anterior, privilegiando o
campo do sentido, ainda que, vale lembrar, sustentado pelo significante.
Jorge (2005) nos indica que o delírio é uma tentativa de restabelecer o plano
fantasístico que não chegou a se instalar devido ao fracasso do recalque originário, tendo a
função de estabelecer uma relação entre princípio de prazer e princípio de realidade. A
fantasia fundamental da neurose – constituída a partir do Édipo – protege o sujeito do
encontro com o real da pulsão de morte. E o delírio surgiria como tentativa de fazer suplência
à não-instauração da fantasia.
No momento do surto psicótico, evidencia-se a pulsão de morte sem contenção, ou
seja, um gozo desgovernado, sem Lei, como se pode constatar na obra do próprio Schreber
que, no capítulo sobre a Onipotência divina e livre-arbítrio humano de suas Memórias de um
doente dos nervos, nos diz que, a partir de suas experiências, pôde concluir que quando a obra
da criação terminou Deus retirou-se para longe e abandonou o mundo às suas próprias custas,
às custas de suas próprias leis, realizando um ou outro milagre apenas.
Nas vivências psicóticas, os dois pólos da dialética significante ficam em evidência: na
vivência esquizofrênica, o sujeito fica à deriva, preso à estrutura do puro significante, aquele
que não remete a significação alguma; na vivência paranóica, diferentemente da errância
esquizofrênica, o sentido da existência não surge a partir de um significante, passível de
infinitas significações, mas retorna desde fora, a partir de um significante cristalizado,
impondo um sentido unívoco para a vida deste sujeito. (LACAN, 1973-74/inédito) É após o
encontro com algo de inassimilável, ou seja, um encontro com o Real, que o delírio virá com
80
sua função: fazer frente a essa falta de significantização. Ele virá, portanto, em suplência à
metáfora paterna, aquela que significantiza a existência.
Assim, por constituir o sujeito, ainda que precariamente, Lacan (1998, p.584)
denomina – em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose - a
construção paranóica de “metáfora delirante”. “Assim como todo discurso, o delírio deve ser
julgado em primeiro lugar como um campo de significação que organizou um certo
significante” (LACAN, 2002, p.141).
A metáfora delirante viria em suplência à ausência da metáfora paterna – fundadora do
sujeito do desejo, sujeito do inconsciente. A primeira compensaria, a seu modo, a falta da
última; mas não sem conseqüências. Entende-se que o delírio viria, não para significantizar a
questão do ser, mas para significá-la: “ali onde faltava o falo vem uma significação de
suplência” (SOLER, 2007, p.201). A evolução da psicose nos indica estes dois pólos opostos
que o sujeito pode se colocar: do significante puro ao significado cristalizado.
A partir da estrutura do delírio de Schreber é possível perceber que, se na fase de
irrupção da psicose o sujeito fica objetalizado ante o Outro, no momento da estabilização há
um sistema que liga o eu do sujeito ao outro imaginário - que, aqui, será esse Deus que
enganava o sujeito, que não o compreendia – e que passa, com a estruturação 18 delirante, a ser
remetido a uma ordem superior.
Lacan (2002) nos adverte que embora seja o mecanismo imaginário que dê forma à
alienação psicótica, não é ele o responsável por sua dinâmica. Seria na relação do sujeito ao
Outro que a dinâmica delirante poderia ser abordada (LACAN, 2002, p.170). Como fica,
portanto, na paranóia, a relação entre o sujeito e o Outro, uma vez que a ordem que as
regularizaria, ou seja, a função paterna, não comparece?
No campo da neurose, Deus está morto, ou seja, colocado no lugar de uma Lei
universalizada pelo significante, isto é, uma Lei que não é déspota, mas cuja ordem mantém
uma estrutura perene. Por outro lado, na dimensão psicótica, não há, ao menos a princípio,
uma ordem que se estabeleça acima da vontade, acima do gozo. A metáfora delirante surge
exatamente em suplência a tal questão, como será visto a seguir.
Desse modo, inicialmente, o Deus de Schreber - muito diferente do Deus monoteísta
do temor a Deus - não reúne em si os perigos do mundo, não rege as leis do universo – aliás,
Schreber sequer sabe se os “corpos cósmicos” teriam ou não sido criados por Deus. (Schreber,
2002, p.198). Na irrupção da psicose não há, portanto, entre esse Outro que, tantas vezes é
18
Utilizamos aqui a palavra estruturação já que Lacan nos diz que o delírio não acontece por dedução e nem tão
pouco por construção, mas que ele será estruturado (ibidem, p.65 e p.248).
81
encarnado por Deus, e a humanidade, a relação do temor a Deus ou, muito menos, a relação
de amor a Deus. Pelo contrário, o que há nessa fase da psicose paranóica é uma relação de
rivalidade, na qual um ameaça a existência do outro.
Se pensarmos nas interpretações delirantes, sobretudo as de caráter persecutório, é
possível entender que, não só nas alucinações verbais, mas também na interpretação delirante,
aquilo que é dito, é dito pelo outro: o outro da rivalidade. É assim que na interpretação
delirante a dimensão da rivalidade está em voga a todo instante. O uso de um simples óculos
escuros, por exemplo, pode ser interpretado como a significação do desejo de um outro de
matar o sujeito em questão. Dessa forma, na psicose, o Outro está excluído do significante,
mas não da lei, a qual ele encarna, absoluto.
Esta exclusão no nível do Outro é exatamente o que implicaria a desorganização
significante própria ao surto psicótico e a qual a estruturação delirante virá em suplência:
Suponho que o sujeito reage à ausência do significante pela afirmação tanto mais reforçada
por um outro que, como tal, é essencialmente enigmático. O Outro, com um A maiúsculo, eu
lhes disse que ele estava excluído, enquanto detentor do significante. Por isso ele é tanto
mais potentemente afirmado, entre ele e o sujeito, no nível do outro com minúscula, do
imaginário. (LACAN, 2002, p.221)
O buraco no nível do Outro se identifica na falta do significante que constitui a relação
do sujeito com a realidade, ou seja, o Nome-do-Pai, aquele que outorga a Lei. Não havendo
tal significante, o sujeito precisa se estabelecer nisso que Lacan chama da dimensão
imaginária da lei e que nos parece, em Schreber, estar relacionada ao que ele próprio
denomina a “Ordem do Mundo”. Lacan nos indica (2002, p.248) que a ordem do universo
tem, para Schreber, uma “noção fundamental na estruturação de seu delírio.” (LACAN, 2002,
p.248). Esta ordem estaria indo bem até a tentativa de assassinato de sua alma, mas seria
restabelecida num segundo momento, com a construção delirante de ser a mulher de Deus
com o objetivo de procriar uma nova raça.
É importante destacar que, à “ordem do mundo”, até mesmo Deus estaria referenciado,
o que nos denota seu estatuto de lei. Entretanto, como nos aponta Lacan (ibidem), uma lei
imaginária. O estatuto imaginário desta lei pode ser observado no trecho a seguir, em que
Schreber a descreve. Chama-se a atenção para a posição especular – rivalitária – em que Deus
se encontra, sendo colocado como semelhante aos homens. Atenta-se também para a lei que
rege o mundo, a Ordem do Mundo, que estaria, em Schreber, acima da disputa rivalitária, mas
sempre referenciada à significação e não ao significante, tal qual ocorre no temor a Deus:
82
Que o próprio Deus fosse cúmplice do plano que visava o assassinato de minha alma e o
abandono do meu corpo como prostituta feminina, é um pensamento que só muito mais tarde
se impôs a mim.
[...]
O plano [...] foi inspirado por aquele instinto de conservação que em Deus é tão natural
quanto em qualquer outro ser vivo – um instinto de conservação que [...] de fato deveria em
certos casos compelir Deus a visar a aniquilação não apenas de indivíduos, mas também de
corpos celestes inteiros. [...] De resto, em todo o domínio do mundo criado ninguém
considerará imoral – sem que isso entre em contradição com a Ordem do Mundo – o fato de
que o mais forte domine o mais fraco, o povo de civilização superior expulse de seus
territórios os de cultura inferior, o gato coma o rato, a aranha mate a mosca etc. O conceito
de moralidade existe exclusivamente no interior da Ordem do Mundo, isto é, do vínculo
natural que liga Deus com a humanidade; uma vez quebrada a Ordem do Mundo, resta
apenas uma questão de poder, na qual quem decide é o direito do mais forte. No meu caso,
o atentatório do ponto de vista moral consistia no fato de que o próprio Deus se colocasse
fora da Ordem do Mundo, válida também para Ele. [...] A Ordem do Mundo conserva toda a
sua grandeza e sublimidade à medida que, num caso tão contrário às regras, nega até o
próprio Deus os meios de poder adequados para atingir um objetivo que a contradiga.
Fracassaram todas as tentativas de cometer assassinato de alma, de emasculação para fins
contrários à Ordem do Mundo (isto é, para satisfação do desejo sexual de um ser humano).
(SCHREBER, 2006, p.70, grifo nosso)
Em nota, Schreber acrescenta que a emasculação para um outro fim será concebível,
sendo, em suas próprias palavras, a “provável solução do conflito” (SCHREBER, 2006, p.70).
Dessa forma, a construção delirante de Schreber parece submeter Deus a uma ordem, a
uma lei, acima dele, e uma lei reguladora do gozo sexual. Qual seria, porém, a diferença
estrutural entre esta lei e a Lei proibidora do incesto – que também é reguladora do gozo
sexual?
Na “Ordem do Mundo” schrebiana não se pode identificar uma lei universal, que
ordene o gozo – tanto em relação ao sexo quanto em relação à morte - entre os sujeitos,
estabelecendo quando isso seria possível e quando não seria. Aqui, o que torna possível ou
não esse gozo não é uma ordem significante - uma ordem simbólica, estrutural, universal mas um significado - um sentido. Deus pode utilizar-se de Schreber, desde que em prol de um
sentido, que nesse caso é o sentido assintótico da procriação de uma nova raça. Assim, tal
qual na metáfora da rosa, em que um sentido subjacente aparece, do mesmo modo, no delírio,
surge o retorno de um sentido – este, entretanto, retorna desde fora, localizado no Outro,
como será visto a seguir.
Sem esse significante paterno, essa problemática retorna no Real: no tema do sexo ou
em seu avesso, isto é, a morte; ambos, no final das contas, em referência ao enigma da
existência. A partir dessa carência paterna resta ao sujeito a tentativa de estruturação de uma
ordem delirante.
Souza (1999) chama a atenção que a estruturação delirante dá consistência tanto ao
Outro quanto ao sujeito, respondendo por um lado o enigma da existência mas deixando, por
outro lado, o sujeito carente de sua falta-a-ser, carente de inconsciente.
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Vimos a importância que a estruturação delirante exerce sobre a organização da
realidade para o sujeito, o que nos esclarece o porquê de o psicótico amar seu delírio como a
ele mesmo. É através dessa significação do ser, e não significantização, que o psicótico pode
organizar sua realidade. Uma realidade, no entanto, não partilhável. Essa ordenação, por se
fixar no sentido, e apesar de sua importância, traz conseqüências tanto para o campo do gozo
quanto para o campo do significante.
2.3.2.2 Aimée e o retorno do foracluído
Em A paranóia: Marguerite ou a Aimée de Lacan, Jean Allouch (1997) revisita o
caso Aimée (LACAN, 1932) a partir de um saber formalizado posteriormente pelo próprio
Jacques Lacan. Com a estrutura da foraclusão e a noção dos fenômenos elementares como
retorno do foracluído, Allouch nos apresenta uma segunda versão da tese, versão latente na
própria apresentação do caso, que traz, em Aimée, o empuxo ao assassinato do filho localizado, entretanto, pela paciente, no Outro do delírio. A partir deste caso é possível
apreender que é no Outro, e não no sujeito, que se localiza o saber delirante. A lei imaginária
do delírio retorna, pois, desde fora, na premente ameaça externa.
Em uma família de camponeses, uma mãe perde sua filha, a pequena Marguerite,
queimada na lareira da casa. Após um aborto, nasce outra menina, a quem esta mãe, Jeane
Pantaine, dá o mesmo nome da menina falecida. Com este nome, já se pode antever, cunha-se
uma marca na história, marca esta que carrega o estatuto de uma missão: substituir
Marguerite, a irmã morta. Essa história, portanto, se inicia antes mesmo da existência de
Marguerite Pantaine, aquela que viria a ser Marguerite Anzieu ao se casar, e que, mais tarde,
seria chamada por Lacan, Aimée - tal qual é nomeada a personagem de um romance da
própria paciente. (ROUDINESCO, 2008)
Marguerite, que será paciente de Lacan, terá seu sistema delirante girando em torno
da ameaça de assassinato de seu filho, assim como das acusações a ela dirigidas, por ter seu
jardim secreto revelado.
O primeiro surto de Marguerite ocorre em decorrência de sua primeira gravidez, da
qual nasce uma criança morta. Com a chegada do segundo filho, retornam as ideias delirantes.
Seu delírio de perseguição era, ao menos aparentemente, voltado para seu filho, já que era ele
o ameaçado de morte. Entretanto, Marguerite indica claramente que, se ameaçavam a seu
filho, era por sua culpa.
84
Interpretações delirantes “surgem da leitura dos jornais, dos cartazes, das fotos expostas. ‘As
alusões, os equívocos no jornal fortaleceram-me em minha opinião’, escreve a doente. Um
dia (ela precisa o ano e o mês), a doente lê no jornal Le Journal que seu filho ia ser morto
‘porque sua mãe era caluniadora’, era ‘vil’ e que se ‘vingariam dela’.”
[...]
“Eu temia muito pela vida de meu filho, escreve a doente; se não lhe acontecesse algum
infortúnio agora, seria mais tarde, por minha causa, eu seria uma mãe criminosa.” (LACAN,
1987, p.160)
Assim, embora a perseguição ocorra em torno de seu filho é, desde o início, ela
mesma o objeto alvo deste Outro indeterminado que a condena – num julgamento, diga-se de
passagem, em que a misericórdia não aparece sequer como tangência.
Que falta seria essa? Desde a sintomatologia pré-psicótica até os sintomas
propriamente psicóticos - ou seja, neste caso, interpretações claramente delirantes e sensação
persecutória - o problema abordado é o mesmo: a figura do poeta porta os traços do desejo,
enquanto a da mulher, os traços da puta. É a questão da sexualidade que estaria o tempo todo
em jogo. (ALLOUCH, 1997, p.252)
O sistema delirante de Marguerite culmina em uma passagem ao ato na qual ela
atinge, com uma facada, a mão de uma atriz famosa e vai presa. Após 20 dias deste ataque,
Marguerite apresenta uma mudança de quadro a partir da qual foi considerada “curada”, já
que reconheceria em si mesma os delírios como tais. Segundo a tese de Lacan (1987), estes 20
dias seriam o tempo necessário para Aimée realizar que, atingindo a atriz, atingiu a si mesma,
seu espelho, e assim foi punida. Os diversos temas do delírio de Aimée se originariam no
sentimento de culpa por suas próprias condutas anteriores; assim como as figuras que
encarnavam os perseguidores representariam o ideal de eu da paciente, exteriorizado.
Allouch (1997) nos diz que essa seria a versão manifesta do caso, versão que mais
tarde será questionada pelo próprio Lacan, sobretudo no que diz respeito ao diagnóstico, o
qual ele próprio considerará ‘bizarro’ (LACAN, 1976, p. 9-10). Entretanto, segundo Allouch
é possível desdobrar na própria tese de Lacan, e ancorado no vasto estudo histórico realizado
pelo autor, uma outra versão. Na tese, a irmã mais velha de Aimée é considerada seu duplo
especular por ser boa mãe, esposa ideal, ou seja, tudo que ela almejaria ser, sem, no entanto,
conseguir. Seria essa irmã a verdadeira perseguidora, ainda que não declarada. A atriz
também é considerada seu duplo, entrando na série dos perseguidores. Entretanto, observa-se
que essa atriz está em uma outra vertente, a da mulher depravada. A atriz parece ser, não seu
ideal, mas aquilo exatamente que Aimée não gostaria de ser acusada de ser, aquilo que
considera estranho à ela mesma, embora evidencie, em suas acusações, ser familiar. Parece
85
haver, aqui, portanto, uma identificação que, estando foracluída, retorna no real, como um
saber que pertence ao Outro.
Huguete ex-Duflos, atriz atacada, representava as peças de Pierre Benoit, um
romancista acusado por Marguerite de revelar, através de seus escritos, a conduta anterior de
Marguerite. Diversos jornais da época teriam revelado que um dos maiores receios da
paciente era o de que seu marido, René Anzieu, a reconhecesse nos romances. Seu marido
leria nas entrelinhas do romance ‘suas confissões e suas vergonhas’. Do mesmo modo,
“Marguerite teria deixado Melun ‘para escapar ao escândalo provocado em torno de sua
pessoa pelo sr. Pierre Benoit.’ (ALLOUCH, 1997, p.167). Marguerite “sente-se ultrajada com
o fato de que ele divulgue uma certa verdade que ela reconhece como sua” (ALLOUCH,
1997, p.167).
O tema da reivindicação - que surge inicialmente com a tentativa de publicar seus
romances em resposta a Pierre Benoit e, posteriormente, com a passagem ao ato – visa pôr um
fim às afirmações caluniosas de que sua conduta é objeto. O tema da reivindicação evidencia
uma perseguição da qual Marguerite, como mulher, é objeto diretamente visado. “A
reivindicação desloca metonimicamente a perseguição da criança para a mãe, e revela, assim,
que esta não pode ter sido mãe sem ter sido mulher.” (ALLOUCH, 1997, p.316)
Ao ler os romances deste autor, Marguerite parece se reconhecer na personagem
devido a certa aventura amorosa com a qual teria se envolvido, anterior ao marido, aquela
com o poetastro. Entretanto, ao se identificar a tal personagem, se confunde com ela, numa
identificação que não é a do traço, ou a do Ideal, mas a da imagem. Imagem assustadora, por
sinal. Assim, Marguerite culpa não a si mesma pelas atitudes cometidas, mas o Outro, por
saber sobre essa verdade e por denunciá-la. É o Outro quem sabe, e um saber repleto de gozo.
A paranóia, portanto, também identifica “o gozo no lugar do Outro como tal” (LACAN, 2003,
p.221).
Aimée parece não suportar ver em si própria uma imagem que é diferente daquela
formada por seu ideal. E tenta, a todo custo, fazer com que ninguém o saiba. Ninguém – nem
ela mesma - saiba disso que a atriz expunha: que ela era sexuada. É o que Aimée denomina
seu ‘jardim secreto’ e que vem à tona com aquilo que Allouch (1997) chama ‘declaração de
sexo’ – algo que diz respeito ao seu reconhecimento, pelos outros, como mulher, uma mulher
sexuada – e que está intimamente relacionado à gravidez: conseqüência última do encontro de
um homem com uma mulher.
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O escândalo, aos olhos de Marguerite, está ligado em particular ao fato de que a puta parece
exercer sem remorsos nem vergonha a sua sexualidade. [...] Ora, tais sentimentos não
cessarão de habitar Marguerite, mesmo nos momentos mais agudos de seu delírio. Eles
ocorrem desde que é revelada a sua intimidade, mesmo se acontece de ser René, a quem no
entanto ela faz confissões, quem, lendo por sobre seus ombros os escritos de Pierre Benoit,
sabe reconhecer ali o jardim secreto de Marguerite, as ‘incessantes alusões à sua vida
privada’. René permanece ‘o remorso em pessoa’ – notarão onde encontramos uma
confirmação de que seu lugar não é o de um perseguidor. Essa vergonha e esses remorsos
mereceriam ser sublinhados, pois fazem disparidade entre a imagem ideal que Marguerite
tem de si mesma e a imagem da atriz; esta, certamente, representa aquela, mas sob a
condição de enucleá-la dessa característica de ser fêmea sem vergonha (ALLOUCH, 1997,
p.279)
É desta forma que Allouch (1997) nos indica que duas interpretações do caso são
apresentadas na tese. A primeira, manifesta, entenderia a sintomatologia psicótica de
Marguerite como a realização de uma tendência autopunitiva, enquanto a segunda centraria o
núcleo delirante de Marguerite na “pulsão de assassinato do filho”, como será visto a seguir.
(ALLOUCH, 1997, p.119) “Aqui já se entrevê que o delírio é posto em tensão por dois
vetores contrários: realizar o ato (manifestá-lo é parte disso) / não realizar o ato”
(ALLOUCH, 1997, p. 118-119). O ato, aqui, vale esclarecer, é o ato assassino, aquele que
tentaria revogar a declaração de sexo feita a partir da gravidez. Assim, o conflito não surge
conscientemente, nem mesmo retorna em forma de sintoma, mas retorna desde fora, na
realidade, com a ameaça premente em relação à criança.
Como simulacro de ato sexual, essa passagem ao ato será para ela o único ato sexual vivido
sem vergonha, sem marca de vulgaridade, o único em que ela teria consentido, e que não
será, de sua parte, o objeto de uma condenação ética. Mesmo mais tarde, quando falando
com Lacan, sobrevêm a vergonha e o sentimento do ridículo a propósito de certas ideias
delirantes então evocadas, esses sentimentos jamais se irão referir ao atentado, apenas à
erotomania e às ideias de grandeza. (ALLOUCH, 1997, p.334, grifo nosso)
A erotomania, assim como as ideias de grandeza, pareceriam, então, vir em
contraponto ao delírio de perseguição, ou seja, no sentido de garantir a não realização do ato.
Por outro lado, o delírio de reivindicação - o qual dá origem ao ato de publicar seus romances
assim como ao atentado à atriz – já indica a mesma direção do vetor persecutório - isto é, a de
realização do ato - ainda que a reivindicação - diferente da pura perseguição - marque a
importante diferença de retirar o sujeito do lugar de pura passividade. O ato de revogar a
declaração de sexo consegue, pois, ser deslocado do filho para a mãe. Mas essa declaração
continua sem poder existir, ao que sobrevêm, por vezes, as ideias persecutórias em relação ao
filho. É assim que, apesar da “cura” de Aimée, algo de sua sintomatologia psicótica
permanece juntamente a seu longo período de internação.
A sexualidade, para a psicanálise, trata sobretudo da “confissão do sujeito como
afetado por um sexo” (ALLOUCH, 1997, p.336), já que é a diferença sexual que insere o
87
sujeito no Complexo de Édipo, complexo normatizador do gozo na sociedade. Assim, para ser
homem ou mulher, é preciso passar pelo dizer, o que não necessariamente ocorre por palavras,
mas pode ocorrer também através do ato. A relação sexual é uma dessas formas de ato.
Entretanto, a publicação desse ato não é suportada por Marguerite. “Marguerite nunca pôde
(exceto, talvez, com seu poetastro) superar essa vulgaridade do ato sexual a que sua passagem
ao ato tenta pôr um termo.” (ALLOUCH, 1997, p.334).
Allouch (1997) nos indica que essa impossibilidade estaria atrelada ao conflito entre o
desejo de ter um filho e a responsabilidade por sua morte – tal qual aconteceu a Jeanne
Pantaine, cuja culpa pelo acidente, também retornava desde fora, em forma persecutória
(Jeanne Pantaine foi considerada paranóica através de relatos da família). Assim, a
possibilidade de sua mãe ser responsável pela morte de sua irmã parece ser rechaçada,
retornando desde fora, na acusação de si própria. O ato, pois, pretende defendê-la de tal
acusação, dizendo, em sua face significante, aquilo que não foi possível ser dito em palavras –
embora não se possa dizer que ela não tenha tentado: Marguerite bem que tentou publicar seus
romances, os quais tinham um estatuto de réplica àqueles escritos por Pierre Benoit.
O atentado à Huguete ex-Duflos, parece afirmar, pois, em ato, Marguerite, não como
mulher, mas como mãe, apaziguando de alguma forma aquilo de que ela se sentia acusada
anteriormente, ou seja, de ser uma mãe “vil”, “criminosa” (1987, p.160). É assim, protegendo
seu filho, que Marguerite afirma, em ato, o contrário daquilo de que se sente acusada pelo
Outro: de ser uma mãe criminosa.
Uma outra indicação da importância da representação materna para Marguerite seria a
observação de Lacan a seguir: “Nos períodos em que ela reencontra seu papel materno, onde
sua surménage19 habitual é interrompida, as crenças delirantes se reduzem ao estado de
simples ideias obsidiantes20.” (1987, p.236).
Para Allouch (1997), a queda do delírio corresponderia à realização do ato, enquanto o
delírio apareceria como reação de fuga ante o ato agressivo, ou seja, do lado do vetor
contrário. O delírio
diferente do sonho, não precisa de interpretação, já que é, ele mesmo, uma interpretação. O
delírio não seria a expressão da tendência à autopunição, como notara Lacan no fechamento
do caso, mas alguns de seus temas revelariam, sem mascarar, a pulsão de assassinato na mãe.
Além dessa função de expressão, o delírio provocaria um comportamento de fuga diante da
criança, isto é, diante do ato assassino: ele seria, então, ao mesmo tempo, o lugar de
expressão da pulsão mortífera e o modo segundo o qual ela é mantida à distância de sua
realização. (ALLOUCH, 1997, p.118)
19
20
Estafa, excesso de trabalho.
Obsedantes, preocupação excessiva; ideias obsessivas.
88
Vemos, portanto, que - como notou Freud em 1937 – o delírio porta um elemento de
verdade histórica e que entra no lugar do fragmento de realidade rechaçada. Esse elemento,
que é uma forma de saber, embora inventado, não é qualquer elemento. Lacan, já em 1932,
indica que as identificações feitas ao longo da estruturação delirante, ainda que sejam
“racionalmente ilusórias, nem por isso estão menos em uma relação constante com um
complexo ou um conflito, de natureza ético-sexual, e gerador do delírio. [...] As concepções
delirantes têm sempre um certo valor de realidade.” (LACAN, 1987, p.299-300). Dessa
forma, o delírio portaria consigo uma verdade.
Bem diferente da obscuridade simbólica dos sonhos, ela [a evidência da significação do
delírio] faz com que se diga que ‘no delírio o inconsciente se exprime diretamente no
consciente’. Notamos as dificuldades especiais que resultam disso na psicanálise dos
delírios. Pode-se dizer que, contrariamente aos sonhos, que devem ser interpretados, o
delírio é por si mesmo uma atividade interpretativa do inconsciente. (LACAN, 1987, p.297)
É assim que a premência do assassinato do filho remete, por um lado, e de forma
alusiva, à morte da primeira Marguerite, com todo gozo que poderia estar aí implicado;
enquanto, por outro lado, o vetor contrário, que tenta repelir o ato, remete à questão da
declaração de sexo, num claro repúdio a esse gozo. Um conflito ‘ético-sexual que retorna no
real.
Freud (1987) em sua carta a Lacan, chama a atenção para o conflito existente nas
formações do inconsciente de caráter autopunitivas: o formador do sonho, ou, no caso, do ato,
não seria um desejo inconsciente, ou seja, um desejo do sujeito, mas um desejo punitivo do
supereu. O supereu, entretanto, sendo ainda arcaico, retorna no real.
Por sentir-se puta, Aimée fica interditada pelo Outro, de ser mãe. Por sua falta, vão
tirar-lhe o direito de ser mãe. Assim, na paranóia, é o Outro quem encarna o impedimento ao
gozo, e no Real.
O significante puta atribui significado a uma determinada forma de gozo, um gozo
proibido. E é o que ‘acusavam’ Marguerite de ser. O significante mãe, de um modo análogo,
atribui outro significado a determinada forma de gozo, desta vez, entretanto, melhor aceita no
laço social, e é como ela luta para ser reconhecida. A partir de determinados significantes que
ordenam o gozo, surge a atribuição de saber sobre o mesmo. É assim que surgiria a fantasia
neurótica e, em conseqüência, os sintomas. Na paranóia, entretanto, o conflito psíquico
decorrente dessa atribuição de saber sobre o gozo aparece a céu aberto: não há um sujeito que
se divide, mas um eu e um Outro.
89
Nesse sentido, vale destacar que em Les non dupes errent21, Lacan (1973-74/inédito),
ao comentar o caso Aimée, associa à paranóia a invenção de saber sobre a relação sexual.
Todos inventamos um troço para tampar o buraco no Real. Onde não há relação
sexual, isso faz ‘troumatisme’. Inventa-se. Certamente, inventa-se o que se pode.
(LACAN, 1973-74/inédito)
Assim, como nos aponta Jorge (2005), enquanto o neurótico inventa sua fantasia, o
paranóico inventa um sentido delirante. Afinal, se não há a relação sexual, a relação natural,
como Lacan a chama, é preciso o sentido para substituir o que falta. “Não que o sentido reflita
o sexual, mas que ele é aí suplente”. (1973-74/inédito, XV/p.7) Portanto, Lacan aproxima o
gozo fálico do sentido, do saber enquanto invenção, que viria em suplência à inexistência da
relação sexual.
Em sua posição de objeto, o psicótico assemelha-se à mulher, mas não enquanto
objeto-causa, ou seja, objeto causa de desejo (SOLER, 1998). Num primeiro momento – o do
surto - o psicótico pode ser assemelhado – tal qual Schreber o faz - à mulher enquanto objeto
de gozo, representada mesmo pela prostituta ou, talvez, pelo objeto do estupro. Neste
momento o psicótico está como que assujeitado ao gozo do Outro, seja pela invasão
alucinatória, seja pela perseguição delirante. Num segundo momento, se ele faz uma
estruturação delirante, surge uma ordem para reger esse gozo e, sendo assim, o psicótico sai
desse lugar de dejeto – puro objeto de gozo – para alcançar o lugar de um objeto almejado.
Entretanto, tanto na fase pré-psicótica quanto após uma estabilização, o apontamento
pelo outro – e por si mesmo – de uma falha nesta imagem, acarreta conseqüências
desastrosas: o sujeito sente-se ameaçado em sua própria existência, como atestam os inúmeros
sintomas esquizofrênicos, assim como a ameaça persecutória dos delírios paranóicos.
No caso Aimée, por exemplo, pode-se notar com certa clareza a relação de Marguerite
com o Outro que a acusa em sua falta. A atribuição de culpa a ela não ocorre por si mesma,
mas pelo Outro. Acusação esta, a qual ela nega mais uma vez, devolvendo a culpa ao Outro.
Lacan nos diz em sua tese, em relação ao laudo de uma internação anterior de Marguerite, que
“ela acreditava que zombavam dela, que era insultada, que lhe reprovavam a conduta”
(LACAN, 1987, p.151); que a julgavam: “‘Julgam-me muito frequentemente de modo
diferente do que eu sou’” (LACAN, 1987, p.151); mas que havia coisas das quais parecia
realmente se sentir culpada: “Há também coisas muito vis e remotas sobre mim que são
verdadeiras, verdadeiras, verdadeiras, mas a planície está a favor do vento.” (LACAN, 1987,
21
O título original deste seminário Les non dupes errent,, cuja tradução seria Os não tolos erram, guarda uma
homofonia à Les non du pére (Os nomes do pai).
90
p.151). Do mesmo modo, há um trecho em que a localização da culpa em si própria fica
patente:
‘Por que, perguntaram-lhe pela centésima vez, em nossa presença, você acredita que seu
filho está ameaçado?’ Impulsivamente ela responde: ‘Para me castigar’ ‘Mas de quê?’ Aqui
ela hesita: ‘Porque eu não cumpria minha missão...’ Mas logo depois: ‘Porque meus inimigos
se sentiam ameaçados por minha missão’
[...]
Muitas das interpretações delirantes da doente, como já assinalamos de passagem, não
exprimem mais do que seus escrúpulos éticos: faz-se alusão às menores faltas de sua
conduta. (LACAN, 1987, p.253)
A culpa, estruturalmente, está intimamente associada ao assassinato do pai,
correspondente maior da entrada da Lei. Mas, sem essa Lei simbólica que regulamenta o
gozo, essa culpa parece retornar no real, como uma ameaça externa, não internalizada – ao
contrário do que seria o supereu, ou seja, uma instância internalizada. “Essa rejeição da culpa
é uma recusa em admitir no simbólico os significantes que constituam vestígios da implicação
do sujeito. [...] a culpa foracluída lhe retorna do exterior, sob a forma de censuras que os
outros supostamente lhe dirigem.” (SOLER, 2007, p.58)
Tal qual o Outro é absoluto na psicose, o eu, na paranóia, também parece ser. Como
foi visto anteriormente, Outro e outro se confundem nessa estrutura. É assim que o eixo das
relações objetais, a-a’, formador da imagem do eu, parece se atualizar na imagem do Outro,
não barrado, não castrado.
É assim que Aimée é acusada pelo Outro, e não por ela mesma, como poderia
acontecer na neurose. E é exatamente isso que evidencia sua psicose: que este saber sobre si
mesmo, esta auto-acusação, não apareça como um saber que não se sabe, mas em seu avesso,
como um saber: sabe-se, e é real. É um saber que se impõe no real, desde fora, sem dialética.
Entretanto, esse saber parece poder ser apaziguado em momentos de calmaria, em que uma
estabilidade imaginária prevalece, como atesta a fala do filho de Marguerite, Didier Anzieu
(1986, p.16 apud ALLOUCH, 1997, p.74):
Nossos encontros se tornavam cada vez mais satisfatórios para ela e para mim – salvo
quando sua desconfiança persecutória a retomava. [...] Aprendi a compreendê-la, a acalmála, a ajudá-la permanentemente a restabelecer um equilíbrio instável. Eu servia a ela de laço
seguro com uma realidade que, sem isso, era temível e vacilante para ela.
A partir da análise do caso Aimée, pode-se observar com certa clareza a estrutura de
saber que está presente na psicose: em Aimée, como na psicose, o saber se impõe. A relação
com o Outro, por ser absoluto, não permite a dialética desejante, em que o sujeito se incluiria,
ele também, como faltante. Na fase persecutória da paranóia, portanto, o gozo se localiza no
91
Outro, absoluto, e o sujeito faz-se objeto desse gozo. Na fase megalomaníaca, entretanto, o
próprio sujeito encarna o lugar de exceção, ainda que em referência a um Outro absoluto. Sem
a falta como motor do desejo, a dialética fica excluída e a existência do sujeito fica
referenciada a Um significante absoluto, como ver-se-á a seguir.
2.3.2.3 A construção delirante do nome e o congelamento de desejo
Em 1975, no seminário O Sinthoma, ao comentar a reedição de sua tese Da psicose
paranóica em suas relações com a personalidade, Lacan dirá que "Se por muito tempo resisti
que ela fosse novamente publicada foi simplesmente porque a psicose paranóica e a
personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa."
(LACAN, 2007, p.52.)
Entende-se que a afirmação transcrita acima diz respeito à fixidez relacionada ao
conceito de personalidade. Vejamos, portanto, que fixidez seria esta, que levaria Lacan a
afirmar que a paranóia é a própria personalidade.
Em seu seminário “A Identificação”, o autor (LACAN,2003) nos traz a letra associada
à noção de um, que ele problematiza a partir do conceito freudiano de traço unário e compara
a uma pegada apagada na areia: inscrita, mas apagada. A letra, nesse sentido, estaria associada
ao um da unicidade. Tal qual cada significante que, na cadeia, é um, é único, a letra assim o
seria.
se devemos considerar que o inconsciente é esse lugar do sujeito onde isso fala, por nos
aproximarmos desse ponto onde podemos dizer alguma coisa, à revelia do sujeito, está
profundamente remanejada pelos efeitos da retroação do significante, implicados na fala. É
que na medida – e pela menor de suas palavras – em que o sujeito fala, que tudo o que ele
pode sempre fazer, uma vez mais, é nomear-se sem o saber, sem saber por qual nome
(LACAN, 2003, p.102-103.)
O toro, objeto topológico utilizado por Lacan (1999), pode ser empregado para
auxiliar no entendimento desta questão: o sujeito neurótico, na medida em que traça as voltas
da demanda (1), não reconhece a volta do desejo (2), a volta que o direciona sem que ele
perceba, ou seja, esse nome que o nomeia sem que ele saiba.
92
Foi visto a importância que a segunda identificação freudiana, a identificação ao traço
(significante), tem para a constituição do sujeito do desejo: uma identificação que
significantiza a questão do ser a partir da identificação simbólica do sujeito ao objeto.
Na psicose, entretanto, não ocorre a substituição do ideal imaginário pelo Ideal
simbólico, permanecendo como ideal do sujeito a imagem do próprio eu (eu ideal). Portanto,
a identificação que ocorre não é a identificação ao traço do objeto, ao um da unicidade, que
carrega consigo a diferença, mas sim a narcísica, da imagem totalizante.
Ramalho (2007) nos diz que é comum que as construções delirantes se reportem ao
tema das origens, e questiona que talvez isso não ocorra por acaso, mas porque o delírio surge
exatamente como tentativa de responder à questão “quem sou eu?”.
Desta maneira, entende-se que na paranóia, o Nome-próprio não está associado ao um
da unicidade, como propõe Lacan para a neurose, mas ao um da totalidade. Na paranóia, o
nome próprio não entraria na cadeia como um nome comum. Veja-se o desenvolvimento de
Lacan a esse respeito a partir do seminário XXI, “Les non-dupes errent” (Os não tolos
erram), que carrega em seu título uma homofonia a les noms du père (Os nomes do pai).
Neste seminário, na lição X, de 19 de março de 1974, Lacan afirma que Freud, em
Psicologia das Massas e Análise do Eu teria associado o amor à identificação e acrescenta
que o amor tem a ver com aquilo que ele isolou do título de Nome do Pai. Prossegue dizendo
que
a perda disso que se suportaria da dimensão do amor a esse nome do pai se substitui uma
função que não é senão aquela do nomear-a. Ser nomeado de qualquer coisa, de alguma
coisa, eis o que coloca numa ordem que se encontra efetivamente em se substituir ao nome
do pai. (1973-74/inédito, lição X, de 19 de março de 1974)
“Ser nomeado a alguma coisa, eis o que, para nós, acontece preferir – quero dizer
efetivamente preferir, passar para frente – o que há (está) aí do nome do pai. [...] O desejo do
Outro designa à sua criança esse projeto que se exprime pelo nomear-à.” (1973-74/inédito,
lição X, de 19 de março de 1974).
E associa, logo em seguida, essa função específica do nome ao mecanismo da psicose,
ou seja, à Werverfung freudiana:
93
É muito estranho que aí, o social tome uma prevalência de nó, e que, literalmente, faz a
trama de tantas existências, é que ele detém esse poder de nomear-a, a tal ponto que depois
de tudo, se restitui aí uma ordem, uma ordem que é de ferro. O que é que este traço designa
como retorno do nome do pai no Real, enquanto precisamente: que o nome do pai é
werworfan, forcluído, rejeitado, e que a esse título ele designa esta forclusão da qual eu disse
que ela é o princípio mesmo da loucura, será que esse nomear-a não é o signo mesmo de uma
degenerescência catastrófica? (1973-74/inédito, lição X, de 19 de março de 1974)
No mesmo seminário, Lacan utiliza um exemplo que parece explicitar essa situação do
nome como retorno do foracluído:
Há alguém que me definiu dizendo que eu era alguém que acreditava que era Lacan. Era a
maneira pela qual eu havia, eu mesmo, definido Napoleão, mas [...] no fim de sua vida ele
estava louco, não é? Porque crer em seu próprio nome, enfim... é a própria definição disso.
(1973-74/inédito, lição XIV, de 23 de maio de 1974)
Entende-se que quando ele se refere à loucura em relação à foraclusão deste traço ele
estaria falando de uma fase esquizofrênica; e ao falar dessa crença no nome, de Napoleão, ele
estaria falando da loucura em sua vertente paranóica, em uma segunda fase que, na tentativa
de cura, tenta ordenar aquilo que retorna do foracluído.
Afinal, se pensarmos que na paranóia há um “congelamento de desejo” 22, como Lacan
(1974-75/inédito) se refere no seminário seguinte, RSI, e que o delírio vem, tal qual o
fenômeno elementar, desde fora, então haveria esse nome... como retorno do foracluído,
fixado, congelado - como atesta a crença paranóica do exemplo de Napoleão. Aqui, o nome
próprio poderia ser associado ao um da totalidade, e não ao um da unicidade, como ocorre na
neurose.
No seminário 23, O Sinthoma, realizado dois anos depois de Les non dupes errent,
Lacan (2007) afirma que “é na medida em que o Nome-do-pai é também o Pai do Nome que
tudo se sustenta” (LACAN, 2007, p. 23). E desenvolve essa noção a partir do estudo de Joyce.
Joyce é um escritor irlandês, ao qual Lacan dedica este seminário. Ele não analisou
Joyce, no entanto, conheceu sua obra literária e algo de sua biografia. A partir disso, o autor
questiona se Joyce é louco, dizendo que o desejo de Joyce de ser artista se coloca
imperiosamente como um chamado e que isso só poderia ser uma compensação pela
foraclusão do Nome-do-Pai. (LACAN, 2007, p.86).
Lacan afirma que o desejo do escritor, de ser um artista tão importante, alguém que
fosse assunto de todos, pelo máximo de tempo possível, designaria o fato de que seu pai
jamais teria sido um pai para ele (ibidem, p.86). E que nesse desejo poderíamos ver a
compensação de uma demissão paterna, sendo que o nome próprio faria aí uma função muito
22
Na lição de 8 de abril de 1975, do seminário RSI, Lacan afirma que “A paranóia é a voz que sonoriza, é o
olhar que se faz prevalente, é um caso de congelamento de desejo.”
94
específica, já que Joyce, desde o começo “quis ser alguém cujo nome, muito precisamente o
nome, sobrevivesse como nunca” (LACAN, 2007, p.161).
Lacan acrescenta, ainda, que o uso do nome próprio seguido de um outro nome - o
sobrenome - designa a entrada do nome próprio no âmbito do nome comum, ou seja, no
âmbito da cadeia significante, mas que, em Joyce, o nome que ele se dá, carrega alguma coisa
de estranho (LACAN, 2007, p.86-87)
Joyce tem um sintoma que parte do fato de que seu pai era carente, radicalmente carente –
ele só fala disso. Centrei a coisa em torno do nome próprio, e pensei que – façam o que
quiserem desse pensamento - ao se pretender um nome, Joyce fez a compensação da
carência paterna. (LACAN, 2007, p.91, grifo nosso)
A partir do exposto, entende-se que Joyce toma esse nome próprio não como um nome
comum, mas como uma encarnação de quem ele é. Assim como no exemplo em que Lacan
afirma que Napoleão era alguém que acreditava que era Napoleão.
Portanto, entendemos este nome criado, como um significante que, apreendido no
Outro – tesouro dos significantes – dá significado ao Desejo do Outro – e nomeia o sujeito,
nomeia-o a alguma coisa. Assim, se Schreber é nomeado a mulher de Deus, nomeado a ser a
mãe de uma nova humanidade; Joyce é nomeado artista, aquele que levará o nome da família
ao reconhecimento: “Joyce, através de sua arte não apenas faz sua família subsistir, como vai
torná-la, se podemos dizer assim, ilustre. [...] É a missão que Joyce se dá.” (LACAN, 2007,
p.23). E “o impressionante é que ele promoveu seu nome antes mesmo de haver promovido
sua obra.” (SOLER, 2007, p.206), o que nos indica o aspecto de imposição que havia nesse
saber.
Assim sendo, pergunta-se se este não seria um mecanismo próprio à psicose, aquele da
“Verhaltung23” – referido por Lacan (1985) em sua tese de doutorado sobre o caso Aimèe – e
traduzido por Quinet (2006) como “retenção significante”. Mecanismo este que, com seu
próprio nome, aponta para as conseqüências dessa estruturação para a dialética do desejo:
uma estruturação na qual se trata da retenção do significante.
No seminário RSI, Lacan afirma a existência de um Nome-do-Pai que não é privilégio
do simbólico (LACAN, 1974-75/inédito), isto é, que é inscrito imaginariamente, como vimos
acontecer através da construção delirante: “afinal não é só o Simbólico que tem o privilégio
desses Nomes do Pai, não obrigatoriamente está no buraco do Simbólico conjunta a
23
O termo Verhaltung é tomado emprestado por Lacan de Kretschmer, e traduzido como repressão, ainda que
com a indicação, em referência ao termo, de que “Essa repressão nada mais é do que a exacerbação da função da
retenção dos complexos ideo-afetivos na consciência” (LACAN, 1932/1985, p.83) [grifo do próprio autor].
95
nominação. Indicarei isso ano que vem.” (LACAN, 1974-75/inédito, lição de 15 de abril de
1975, p.65, grifo nosso)
Temos assim que na psicose a escrita do nome, como possibilidade de favorecer laço
social funciona como inscrição do Nome-do-Pai, ou melhor, como sua suplência, na vertente
assinalada por Lacan, de Pai-do-Nome, enodando os registros do Real, Simbólico e
Imaginário. Sendo o pai-do-nome aquele que interessa à realidade psíquica, através dele algo
nesta realidade pode se manter. Entretanto, tal conformação não permite ao sujeito o acesso à
dialética do desejo, à entrada do nome próprio no nome comum, ou seja, o apagamento do
primeiro e seu retorno, em metáfora, na cadeia significante.
É nesse sentido, por essa limitação, que Schreber, apesar de ter podido viver anos
estabilizado - após a escrita e publicação de suas memórias - acabou morrendo em um
hospital psiquiátrico. Diferente de Joyce, Schreber não pôde sustentar, ao menos não até sua
morte, o nome que se deu.
Neste ponto, questiona-se se esta nomeação, que vem como um chamado ao sujeito
psicótico, seria da ordem da invocação, tal qual foi visto no segundo tempo do Édipo, ou se
seria da ordem da evocação, um chamado que não implica a identificação ao desejo.
Soler (1998) nos diz que a posição de John Joyce, foi a de fazer seu filho, James
Joyce, um substituto para si próprio, o que estaria evidenciado na biografia do escritor, tanto
no fato de que John esperava que James, o irmão mais velho, cuidasse dos mais novos, quanto
no fato de que a família depositava neste filho as esperanças de salvação, após a falência
financeira do pai.
ele [Joyce] recebeu esta mensagem de ter que fazer suplência à missão do pai. Talvez ele
tivesse podido tomá-la de outra forma, mas é fato que ele foi chamado a este lugar vazio.
Que ele se o tenha recusado, disso não podemos duvidar, mas ele de qualquer modo inventou
uma versão para seu uso. (SOLER, 1998, p.118)
Esse substituto paterno é aquilo a que, afinal, todo sujeito precisa ser nomeado: ser um
pai, isto é, ser alguém para alguma coisa, ou, de outra forma, um homem para uma mulher.
Entretanto, a ideia de que este nome esteja associado a um sentido cristalizado, - ao qual, ao
menor sinal de fracasso, o sujeito se sente perseguido e subjugado - nos aponta para um
imperativo que parece ser da ordem de uma evocação – e não de uma invocação -, um
imperativo que não é calado, não é internalizado, como a cobrança neurótica, mas uma
cobrança que exclui o sujeito, que vem de fora. “Talvez ele tivesse podido tomá-la de outra
forma” (idem), diz Soler. Talvez ele tivesse podido tomá-la não como ordem absoluta, mas
como pedido, afinal, um pedido pode ser negado, uma ordem não. E, talvez, assim, pudesse
96
não precisar recusá-la, ou seja, foracluí-la. Lembra-se, ainda, que esta recusa diz respeito ao
próprio ser.
De qualquer forma, a seu modo, com sua literatura, Joyce parece ter cumprido esta
missão que lhe veio como imperativo, que retornou desde fora: ser artista – ser ilustre, ser Um
pai.
97
3 A PSICOSE E A DIREÇÃO DE TRATAMENTO
A clínica psicanalítica deve nos ajudar a relativizar a experiência freudiana.
É uma elucubração de Freud.
Tenho colaborado, o que não é razão para manter-me aí.
É preciso darmo-nos conta de que a Psicanálise não é uma ciência,
não é uma ciência exata.
(LACAN, 1977/1992)
3.1 Psicose, Direção de tratamento e transferência
3.1.1 A transferência no caso em questão
Quando Alberto contou, pela primeira vez, sobre o “apagão”, perguntou algumas
vezes ao longo do relato se eu já sabia daquilo que ele estava contando. Como dissera todas as
vezes que não, por fim Alberto exclama: “Você está por fora, hein!?”. Ao que confirmei: “É,
estou por fora.”
Longe de uma destituição de saber que impedisse a transferência, este diálogo parece
ter sido importante para estabelecer o lugar de secretário que o analista ocupa: aquele que
nada sabe do delírio, mas está disposto a ouvir.
Mas, sem a aposta de saber na analista – própria à psicose, como será visto -, o que
será que possibilitou a manutenção do laço de tratamento?
Ao longo dos atendimentos, Alberto, inúmeras vezes, disse que eu era importante para
ele, que me preocupava com ele. Logo nas primeiras semanas em que me encontrava
trabalhando no Serviço de Saúde Mental que Alberto era atendido, havia um passeio
programado; mas era preciso levar a identidade para poder viajar com a equipe. O passeio
seria no dia seguinte e Alberto não levara o documento. Então, a analista, apostando no
sujeito, perguntou se ele queria ir (foi ele mesmo quem contou sobre o passeio), se ele achava
que seria importante. Após ouvir que Alberto gostaria de ir, a analista o liberou para buscar a
identidade ante os protestos do porteiro e de alguns outros funcionários, que disseram que ele
iria usar droga e não voltaria (o serviço funcionava em regime fechado, de internação-dia).
Entregando-lhe o valor de uma passagem de ônibus, para que voltasse a tempo, a analista se
colocou no lugar de faltosa, dizendo que estava confiando nele e que era importante que ele
voltasse, já que ela trabalhava ali há pouco e se ele voltasse drogado ou não voltasse, isso
poderia causar problemas para ela enquanto profissional. Deste lugar, a analista pôde fazer
uma aposta inicial no sujeito em questão.
98
Alberto voltou com o documento; acordou cedo no dia seguinte (nesta época morava
sozinho) para não perder o carro que sairia cedo e foi. Muito tempo depois, Alberto ainda
lembrava deste passeio: “você confiou em mim aquele dia, né?!”
Nesse fragmento, o paciente é colocado em uma posição ativa, já que tem a escolha de
ir ou não ao passeio, enquanto a analista fica em uma situação de passividade – não sem
atividade – já que, apesar de possibilitar a ida ao passeio, deixa claro que a ida do paciente
dependerá dele, se colocando, junto a ele, sob uma Lei maior, o que responsabiliza ambos
pelos seus atos.
A partir desse fragmento, entende-se que um laço foi formado entre o paciente e a
analista, ou seja, a transferência começava a se esboçar. Entretanto, esse laço transferencial
foi marcado por um não-saber da analista, desde o início do tratamento, em relação ao delírio
do sujeito. Entende-se que foi exatamente por ser colocada do lado de fora dessa trama que foi
possível ouvir o paciente sem entrar na série delirante. Entretanto, sendo a transferência uma
aposta de saber, como foi possível que um laço de tratamento se formasse?
A posição ocupada pelo analista na transferência, como veremos, é a mesma, já que a
ética da psicanálise é uma só. Ou seja, o analista ocupa, na transferência – seja qual for a
estrutura do sujeito – o lugar de suporte do objeto a. Mas, como isso se dá no caso da psicose?
Em que lugar o analista é colocado quando há um laço possível?
3.1.2 A ética da psicanálise e o impossível do objeto
Quando se fala de ética, remete-se prontamente a valores, ou seja, a certas condutas
consideradas, universalmente, no âmbito do bem e do mal. É nesse sentido que Kant (apud
LACAN, 1997) estabelece uma direção universal para a ação moral humana. Ele sugere como
definição da ação moral a seguinte proposição: “Faz de tal modo que a máxima de tua ação
possa ser tomada como uma máxima universal”. (KANT apud LACAN, 1997, p.98)
Entretanto, Lacan (KANT apud LACAN, 1997) nos chama a atenção que, se a
máxima da ética é essa, poderíamos, então, aplicá-la a Sade. Ele nos diz que a obra do famoso
marquês destaca os critérios Kantianos da ética para justificar as posições do que se pode
chamar de antimoral e que, se tomarmo-na racionalmente, torna-se possível conceber o
mundo sadista dentro dos parâmetros kantianos da Ética (KANT apud LACAN, 1997, p.100):
99
Tomemos como máxima universal o direito de gozar de outrem como instrumento de nosso
prazer. [...] Se é eliminado da moral todo elemento de sentimento, [...] o mundo sadista é
concebível [...] como uma das efetivações possíveis do mundo governado por uma ética
radical, pela ética kantiana. (KANT apud LACAN, 1997, p.100-101).
Tal comparação nos coloca uma questão, tanto na proposição kantiana, quanto na
noção de bem e de mal. A partir disso, podemos pensar que se o homem não é bom por
natureza, se há uma maldade inerente, como nos propõe Freud (2006) em O mal estar na
civilização, ou mesmo se pensarmos nas perversões descritas por ele em Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (2006), então seria difícil pensar em uma máxima universal, isto é, algo
que, sendo bom para mim, é bom para o outro.
Ao descrever as perversões sexuais, Freud (1930/2006) conclui que hábitos simples e
cotidianos podem ser considerados perversos, tal qual o beijo, por não haver, neste ato,
finalidade outra que não o prazer. Dessa maneira, Freud nos diz que a sexualidade humana é
polimorfa e que “é impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte de
perversões algo que é universalmente humano e originário”. (Freud, 2006, p.180)
Assim, com uma plasticidade pulsional tão grande, como seria possível propor um
bem universal? Lacan nos traz com ironia o exemplo de São Martinho, que sendo altruísta,
partilha seu manto com um mendigo, considerando saber o que esse último precisa e
ignorando o que ele – o mendigo – poderia desejar.
Enquanto se trata do bem, não há problema – o nosso e o do outro são feitos do mesmo
pano. São Martinho partilha seu manto, e disso se fez uma longa história [...] Certamente
tocamos aí num termo primitivo, a necessidade que deve ser satisfeita, pois o mendigo está
nu. Mas, talvez, para além de precisar vestir-se, mendigava ele outra coisa, que São
Martinho o matasse, ou que trepasse com ele. É uma questão muito diferente a de saber o
que significa num encontro a resposta, não da beneficência, mas do amor. (LACAN, 1997,
p.228)
Dessa maneira, como considerar uma determinada conduta universalmente adequada?
Enquanto a experiência moral estabelece uma direção universal para o homem,
engendrando um ideal de conduta, a psicanálise busca uma verdade particular: “O Wunsch
não tem o caráter de uma lei universal, mas, pelo contrário, da lei mais particular.”(LACAN,
1997, p.35)
Assim, a ética da psicanálise colocaria o desejo no centro da ação humana, diferente
da moral, que teria no horizonte, um bem a atingir. Lacan afirma que a ética “consiste
essencialmente num juízo sobre nossa ação”. E acrescenta que “Se há uma ética da psicanálise
é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo que se
100
coloca como medida de nossa ação – ou simplesmente pretende isso” (LACAN, 1997, p.374).
E a medida de nossa ação, na perspectiva analítica, é o desejo.
Rinaldi (1996), em seu estudo sobre a ética da psicanálise, nos diz que Freud, embora
não tenha teorizado sobre a ética, fala vastamente, em sua obra, da questão da moral, tecendo
formulações que vão desde a origem desta, passando pelas articulações com o desejo e
chegando até a constatação da existência de um conflito de base entre as exigências pulsionais
e as restrições impostas pela moral.
Assim, embora Freud não fale conceitualmente de ética, seria possível falar de uma
ética freudiana a partir da hipótese do inconsciente, uma ética da psicanálise, como ressalta
Lacan (1997):
A psicanálise procede por um retorno ao sentido da ação. Eis o que justifica, por si só, que
estejamos na dimensão moral. A hipótese freudiana do inconsciente supõe que a ação do
homem, seja ele são ou doente, seja ela normal ou mórbida, tem um sentido escondido para
o qual se pode dirigir. (LACAN, 1997, p.374)
É o que podemos observar no texto freudiano sobre o sentido dos sintomas: o sintoma
neurótico transmite uma mensagem, um sentido, ao qual há uma fantasia subjacente, e porta
um desejo inconsciente conflitante com uma censura moral. No trecho a seguir, Freud
exemplifica essa divisão subjetiva apreendida dos rituais obsessivos de uma paciente:
o que se verificou não foi o resultado de uma única fantasia, mas de diversas, embora
tivessem um ponto nodal em alguma parte, e, ademais, que as regras estabelecidas pelo
ritual reproduziam os desejos sexuais da paciente, num ponto positivamente, e noutro,
negativamente - em parte representavam esses desejos e em parte derivavam de defesa
contra os mesmos. (FREUD, 1917, p.276)
Dessa forma, em seu retorno a Freud, Lacan (1997) formaliza a estrutura do desejo,
sobre a qual se embasa a ética da psicanálise: por trás de toda ação humana haveria um
sentido escondido. Assim sendo, a ética da psicanálise é a ética do desejo. E o analista se
insere na relação com o analisante, não visando o bem, mas o desejo - e o desejo do
analisante.
Vale lembrar, entretanto, que quando se fala em uma ética do desejo, não se trata de
satisfazer o desejo a qualquer custo, mas, pelo contrário, de poder escolher , ou não, aquilo
que se deseja. Dessa forma, em análise, “O sujeito é chamado a renascer para saber se quer
aquilo que deseja...” (LACAN, 1998, p. 689)
Uma vez que a pulsão, própria ao humano e diferente do instinto, não tem objeto
definido nem tampouco atinge uma satisfação plena, a infelicidade pode ser considerada
101
inerente ao humano - como Freud (2006) desenvolve no texto O mal-estar na civilização.
Sendo o objeto mais-de-gozar - este que ofereceria satisfação plena - inexistente, não há
objeto a alcançar. Ou seja, não se pode ser culpado pela infelicidade, pelo gozo-a-mais que
ficou em defasagem, mas sim por ter cedido do desejo, por ter cedido dessa busca rumo ao
impossível, na qual se procura alcançar o possível.
Jorge (2010c), salienta que o que a análise visa é justamente esvaziar o sujeito do
desejo dos sentidos que carrega consigo, apontando para o real. E acrescenta que a prática
psicanalítica propõe-se ao despertar, que é, em última instância, o despertar do sentido –
essencial à constituição do sujeito, mas que deve ser ultrapassado, para que o mesmo possa
acolher o que a vida lhe trouxer – sem ficar amarrado ao que ele espera da mesma.
Portanto, a ética da psicanálise vai no sentido de levar o sujeito da impotência carregada de sentido - à impossibilidade, já que o objeto é inacessível por definição
(QUINET, 2006). Se, por um lado, é preciso apontar para o impossível do objeto, por outro
lado, a direção de tratamento é dada a partir de uma hipótese diagnóstica. Afinal, na psicose, é
o próprio sujeito quem ocupa o lugar de objeto, o que pode acarretar com que uma
intervenção inadvertida desemboque em um surto, levando o sujeito à inexistência, ao lugar
de dejeto junto ao Outro.
Dessa forma, a ética da psicanálise orienta uma prática posta em ato a partir das
estruturas clínicas. Afinal, cada sujeito, neurótico, psicótico ou perverso, se situa ante a falta
de uma determinada maneira.
Em seu ofício, para que possa trabalhar direcionado pela ética do desejo, é preciso
que o analista localize em que lugar está sendo colocado pelo analisando. Afinal, será do lugar
que ele se encontra, para o analisando, que ele poderá intervir na própria transferência, ou
seja, no tratamento. Assim, “por mais que a ética da psicanálise, ou o que o analista vise com
sua ação aponte na mesma direção, independente de sua hipótese diagnóstica, as estratégias
para sua intervenção variam”. (MAURANO, 2006, p.24)
A transferência, como veremos a seguir, é o motor do processo analítico, sem a qual
não seria concebível tratamento possível. Na psicose, sem a instalação da dialética desejante,
a transferência surge com suas peculiaridades. Vejamos, pois, como se estabelece um
tratamento analítico, enfatizando o dispositivo da transferência para, então, retomar a questão
pelo viés da psicose. Enfatizaremos a clínica da paranóia, já que o presente trabalho se centra
em torno da questão do delírio.
102
3.1.3 A transferência e a suposição de saber
É no texto Estudos sobre a histeria, que Freud (2006, p.313) utiliza pela primeira vez
o termo transferência, ao tratar do que ele então chama ‘obstáculos’ ao tratamento e que se
refeririam à transferências,
para a figura do médico, de representações aflitivas que
emergiriam do conteúdo da análise. Freud relata inclusive um exemplo, no qual é a partir da
transferência de um desejo inconsciente (de ser beijada por um homem)para o médico e, em
seguida, a elaboração do mesmo, que teria podido surgir uma lembrança patogênica.
Mas é no texto Fragmentos da análise de um caso de histeria, o consagrado caso
Dora (FREUD, 2006) – primeiro caso tratado por Freud exclusivamente pelo método da
associação livre - que o termo transferência ganha o estatuto de conceito, na medida em que
articula as formações do inconsciente à relação paciente-analista:
O que são as transferências? São reedições, reproduções de moções e fantasias que, durante o
avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica
(própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra
maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo passado,
mas como um vínculo atual com a pessoa do médico (FREUD, 2006, p. 111).
Assim, pode-se entender que a transferência é, para a psicanálise, a reedição de
representações inconscientes na relação analista-analisando. E é por isso mesmo que a
transferência é, por um lado, a mola mestra do tratamento – o que permite ao analista operar
em análise – e, por outro, a resistência – aquilo que tenta repetir-se. “A transferência,
destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais poderosa
aliada quando se consegue detectá-la a cada surgimento e traduzi-la para o paciente”
(FREUD, 2006, p.112).
Dessa forma, a transferência não se apresenta somente no tratamento analítico, pois,
como diz Freud, “o tratamento analítico não cria a transferência, mas simplesmente a revela,
como a tantas outras coisas ocultas na vida anímica.” (FREUD, 2006, p.112). É o seu manejo
que lhe confere especificidade nesse campo, elevando-a ao estatuto de conceito fundamental
em psicanálise. A psicanálise é, portanto, uma clínica que, diferente das demais, opera na
transferência.
É neste caminho que Freud (2006) aborda, em A dinâmica da transferência, este
conceito por suas duas vertentes, ou seja, motor do tratamento e resistência ao mesmo. A
transferência é aqui tomada como a atualização, na relação médico-paciente, de um “clichê
103
estereotípico” (FREUD, 2006, p. 111) que seria “constantemente repetido” (FREUD, 2006,
p.111) ao longo da vida erótica do sujeito. Daí a importância de o analista manejar a
transferência de modo a permitir que o processo analítico se dê.
Em 1915, Freud retoma o tema da transferência no texto Observações sobre o amor
transferencial, abordando, mais uma vez, a transferência por suas duas faces: motor e
resistência ao tratamento. Desta vez, entretanto, não enfatiza a questão do deslocamento - isto
é, da repetição na atualização da relação analista-analisando - mas no sentimento de afeto que
se faz necessário, por um lado, ao tratamento, mas que pode culminar em seu fim, por outro
lado, se fica exacerbado. Freud é claro ao dizer que a demanda de amor feita pelo paciente,
não pode ser respondida, seja negativamente, seja positivamente, isto é, o analista “tem de
tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável
para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição”
(FREUD, 2006, p.183).
Lacan (1992), em seu seminário dedicado ao tema, destaca, tal qual Freud em seus
dois textos que recebem no título a palavra transferência, duas vertentes para se abordá-la, a
saber, repetição e amor, articulando-as.
A repetição, articulada ao tema do amor, trataria da repetição dessa demanda do
objeto, que se traduziria em uma demanda de amor. Aqui, portanto, a demanda é de um amor
narcísico, isto é, uma promessa de completude: “é à questão formulada ao Outro, quanto ao
que ele pode nos dar e ao que tem para nos responder, que se liga o amor como tal.”
(LACAN, 1992, p.172)
O amor se constituiria no mais-além dessa demanda, que pode ser desdobrada em dois
apelos: o de ter (aquilo que o Outro ‘pode nos dar’) e o de saber (o que ele ‘tem para nos
responder’). A demanda de ter parece dizer respeito ao objeto do desejo, que pode ser
localizado no campo pulsional, já que “o que está em questão no desejo, é um objeto, não um
sujeito” (FREUD, 2006, p.172); enquanto a de saber, diretamente ligada ao campo
significante, diria respeito ao Sujeito suposto Saber, saber suposto sobre o objeto, isto é, saber
suposto sobre o desejo.
No seminário A transferência, Lacan parece se debruçar mais amplamente sobre essa
primeira questão, abordando a segunda – isto é, o que o analista teria “para nos responder” mais detalhadamente três anos depois - no seminário Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise – e, com isso, deslocando o analista do lugar de Outro na transferência, para o
lugar de Sujeito suposto Saber.
104
Ambas as questões - a do objeto e a do saber - são impossíveis de ser respondidas,
promessas impossíveis de serem cumpridas, já que o estancamento da falta (seja no campo
pulsional, seja no campo significante) corresponderia ao estancamento do sujeito, que é
sujeito do desejo.
É importante destacar, portanto, essas duas formas de demanda que se constituem na
transferência, das quais apenas a segunda seria peculiar ao tratamento analítico. A demanda
de amor é aquela que solicita, no Outro, o objeto de desejo para estancar sua falta. Tal
demanda pode ser identificada na ‘demanda de cura’, um pedido de ajuda que não distingue o
analista da série de mestres, tais como o amante, o médico, o padre, o pai de santo, etc. É
apenas a segunda demanda, ou seja, aquela que demanda um saber sobre o objeto - o que já é
diferente de demandar o objeto em si – que é dirigida ao analista enquanto tal. Aqui, o analista
é deslocado do lugar de Outro e colocado no lugar de Sujeito suposto Saber, como Lacan
(1998) o designa.
Lacan (1992) nos indica que “não existe coincidência entre o que é o analista para o
analisando no início da análise, e aquilo que a análise da transferência nos permitirá desvelar
quanto ao que está implicado, [...], no fato de que um sujeito se engaje nessa aventura”
(Lacan, 1992, p.319). Assim, entende-se que é só a partir da análise da transferência enquanto
repetição, e da não-resposta do analista à demanda de amor – enquanto demanda de objeto -,
que poderá surgir a demanda de análise: uma demanda de saber sobre o seu desejo e sobre seu
gozo. Portanto, seria preciso passar da demanda de cura – na qual haveria o estancamento da
falta - para a demanda de tratamento – na qual a falta é tomada pelo seu avesso, o desejo.
Essa demanda de saber, ou seja, de tratamento, pode ser traduzida no investimento do
analista enquanto Sujeito Suposto Saber. Assim, quando se trata de análise propriamente, isto
é, quando se lida com o sujeito neurótico da fantasia – aquele em que o Outro é barrado - esse
localiza, no analista, um significante qualquer, a partir do qual lhe supõe saber. “Não que o
sujeito pense que o analista sabe especificamente sobre ele, mas sim que há um saber em sua
experiência, em seu sintoma” (MAURANO, 2006, p.26) É importante destacar, portanto, que
essa aposta de saber não é em relação ao sujeito em sua singularidade, mas à estrutura de seu
adoecimento. O matema da transferência (LACAN, 2003) nos indica tal situação:
105
O significante qualquer (Sq) é fabricado pelo próprio analisante e é o que o
direcionará a este ou aquele analista (QUINET, 2007). É este significante que conduz a cadeia
e que será deslocado, condensado... ou seja, dialetizado, possibilitando, assim, o trabalho de
análise. O saber, portanto, se localiza no Outro, mas ele é apenas suposto. O analista, então,
poderá retornar, a partir da análise na transferência, e de sua posição de suporte do objeto a,
esse endereçamento ao inconsciente, isto é, ao próprio sujeito.
Assim sendo, é importante destacar a diferença entre a demanda de amor, que ocorre
na transferência e que diz respeito ao amor narcísico, aquele da completude; e o amor de
transferência, que diz respeito à posição do analista, aquela que remete ao vazio da falta-aser. Esse amor, motor da transferência analítica, Lacan o designa como “dar o que não se tem”
e implica o “domínio do não-saber” (1992, p.345).
Vejamos, por um lado, que amor é esse ao qual Lacan se refere e, em seguida, de que
se trata esse “domínio do não saber”.
Lacan (1992) afirma que o amor de transferência diz respeito ao fundamento do amor
cristão, o qual ele ilustra pela parábola bíblica da viúva pobre, que oferece aquilo que não
tem: ela deposita centavos em resposta à demanda de dinheiro feita no templo.
Nesse sentido, o analista enquanto função se colocaria na posição de suporte do objeto
a (LACAN, 1998). Entende-se, contudo, que é preciso destacar essa posição de objeto, que
não pode ser a do objeto em sua vertente imaginária, aquela que carrega consigo a promessa
de estancar a falta; e nem tampouco na vertente do objeto real, que escancara o vazio de
significação, levando o sujeito a uma experiência de pura angústia. Se o analista se coloca
como objeto, é importante destacar que é como objeto causa, ou seja, objeto que porta o vazio
da falta de significação, de onde advém o desejo. Soler (1998) nos indica que, diferente do
objeto-que-falta, o analista deve se colocar no lugar de objeto-falta, ou seja, não o objeto do
desejo ou da satisfação, mas o objeto que, por não estar ali, causa o desejo. O desejo do
analista enquanto função, portanto, é o desejo no lugar de objeto (LACAN, 1998).
Assim, Rinaldi (2006) destaca que “para que um analista ocupe o lugar de sujeito
suposto saber na transferência sem se investir dele, é preciso que esteja em vigor o desejo do
analista.”, e que “se o sujeito suposto saber, enquanto instauração da transferência constitui o
ponto de partida da análise, é o desejo do analista que regula o seu desenvolvimento e a saída
da análise” (RINALDI, 2006/inédito)
106
Em relação à posição do analista implicando o “domínio de não-saber”, como visto
acima, vale destacar aquilo que o próprio Lacan nos adverte, na Proposição de 9 de outubro
de 1967 - a qual aborda o tema da transferência-: que o analista não pode, “de modo algum, se
dar por satisfeito com saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de saber”
(LACAN, 2003, p.254) Entende-se a partir disso que se o analista nada sabe sobre o sujeito, é
preciso, entretanto, que ele saiba sobre a estrutura de funcionamento desse sujeito, assim
como sobre a impossibilidade do objeto, para que possa remeter o analisante a tal
impossibilidade.
Portanto, o que interessa à análise, é a demanda de decifração do sintoma que, no
fundo, é decifração do desejo e, portanto, pode ser transmutada em demanda de saber – sobre
o desejo do Outro. Na psicose, entretanto, como foi visto no capítulo anterior, não há uma
demanda de decifração, mas uma demanda de sustentação da existência. Não há, tampouco,
demanda de saber, já que ele se faz absoluto. Vejamos, pois, como se dá a transferência nessa
estrutura e, a partir disso, quais seriam as intervenções e manobras possíveis.
3.1.4 A psicose, a transferência e o saber
O sujeito, em sua estrutura clínica, ocupa lugares singulares tanto em relação ao amor
quanto em relação ao saber, o que acarreta modificações para a relação transferencial e exige
mudanças também singulares nas intervenções e manobras transferenciais. Afinal, se a análise
só é possível na transferência, como foi visto, é importante saber em que lugar o analista é
colocado para, daí, poder intervir (MAURANO, 2006).
Viu-se, no segundo capítulo, que o paranóico, por não se instalar na dialética desejante
fica preso à imagem fálica do eu ideal, ocupando por excelência uma posição de objeto. A
rigor, na psicose, não há um sujeito do desejo, mas um assujeito, isto é, um sujeito a ser
desejado. Não há um sujeito que busque o objeto de amor, mas um que busque ser o objeto de
amor. Essa posição de investimento libidinal narcísico, ou seja, de investimento no próprio
sujeito enquanto objeto acarreta a inegável dificuldade psicótica em fazer laço social e é o que
levou Freud (1914/2006, 1915/2006, 1916-17/2006) a afirmar que não há transferência na
psicose. Entretanto, o próprio autor indica, em seu mais minucioso estudo sobre a psicose, o
caso Schreber, a transferência ali estabelecida entre Schreber e Flechsig (FREUD, 2006). Essa
transferência, entretanto, a princípio positiva – em seu primeiro surto Schreber se vê grato à
107
Flechsig pelo tratamento - depois retorna de forma persecutória. Há, de qualquer forma, neste
caso, a indicação de que é possível falar de transferência na psicose, ainda que não do mesmo
modo que na neurose.
É só com Lacan em seu retorno a Freud, com a formalização de diversos conceitos
preciosos à psicanálise, que se difundiu a ideia da possibilidade de uma transferência na
psicose. No já citado seminário dedicado aos conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan
(1992, p.139, grifo nosso), tomando a noção freudiana de transferência como repetição,
afirma:
a transferência não é a atualização da ilusão que nos levaria a essa identificação alienante que
constitui qualquer conformização, ainda que a um modelo ideal, de que o analista, em caso
algum, poderia ser suporte - a transferência é a atualização da realidade do inconsciente
Na lição seguinte o autor desenvolve este aforismo, de que a transferência é a
atualização da realidade do insconsciente, explicitando que a realidade do inconsciente é a
realidade sexual – uma realidade, destaca ele, insustentável. Essa realidade insustentável
parece ser aquilo que Lacan desenvolverá amplamente em seminários posteriores, ao dizer
que a relação sexual não existe, isto é, não existe a relação de complementaridade tão
almejada pelo sujeito neurótico e designada nos mitos antigos pelo encontro do outro sexo
enquanto metade perdida.
Quanto à estrutura da psicose, foi visto que ela traz o inconsciente a céu aberto, e o
paranóico ocupa, nesta que é a realidade sexual, exatamente essa posição insustentável, ou
seja, de objeto todo-fálico. Figura sem representação significante possível, ou seja, sem
entrada possível na cadeia significante-significado, embora nomeável, como atestam os
delirantes.
Entende-se, portanto, que a transferência enquanto atualização do inconsciente, na
psicose, é também a atualização da realidade sexual, ou seja, do impossível dessa realidade. A
partir disso, é preciso averiguar em que lugar o analista pode ser colocado pelo sujeito, assim
como de que lugar é possível, na psicose, uma demanda de tratamento e, a partir disso, quais
seriam as principais intervenções e manobras transferenciais.
Foram destacadas duas questões principais na transferência – repetição e demanda – às
quais se atrelam a demanda de amor e das quais se desenrola a questão do saber. Analisemos,
portanto, em que lugar se coloca o psicótico, tanto em relação ao amor, quanto em relação ao
saber.
108
Viu-se que a partir do binômio presença-ausência o pequeno sujeito simboliza o Outro
- a partir do que, ocorre a identificação imaginária -, mas é só no segundo tempo do Édipo que
essa ausência será significantizada e remetida, num terceiro tempo, ao desejo. Sem que isso
ocorra, a ausência/falta do Outro fica estancada na identificação imaginária ao eu ideal, como
ocorre na paranóia e, quando, em algum momento da vida, esse sujeito localiza uma diferença
entre sua imagem e aquilo que constitui seu eu ideal, a ausência do Outro retorna na ameaça
avassaladora da perda de amor e o sujeito se sente ameaçado em sua própria existência, em
seu próprio ser. Aqui, o sujeito sente-se recusado pelo Outro em sua oferta de amor, restandolhe o lugar de objeto de gozo, dejeto da realidade do Outro. Na primeira fase da paranóia,
portanto, o sujeito parece localizar-se nesse lugar de objeto-dejeto; enquanto na erotomania tão próxima à megalomania paranóica - o sujeito parece se encontrar no lugar de ideal
imaginário, objeto de amor pelo qual o Outro se encontra apaixonado.
A culpa enquanto sentimento primitivo está intimamente relacionada à ameaça da
perda do amor, o que pode ser associado àquilo que Lacan (1999) denomina desejo primitivo
e que é descrito por ele como desejo de desejo, ou seja, um desejo de ser desejado pelo Outro
– aquele que configura a primeira realidade Edípica.
Assim, em vez de sujeito do desejo, o sujeito encontra-se em lugar de objeto, e a
recusa do Outro não diz respeito a dar ou não o objeto – como acontece na neurose -, mas a
aceitar ou não o próprio sujeito enquanto objeto de desejo. A demanda de amor, portanto,
poderíamos caracterizá-la como ‘oferta de amor’, ou seja, oferta de si mesmo. A diferença
radical, dessa forma, é que para o paranóico, tanto a demanda quanto o desejo se referem ao
objeto que é ele mesmo.
Nesse sentido, Kaufmanner (1999, p.97-98), em A clínica das psicoses, nos lembra
que “O psicótico, como diz Lacan, tem o objeto à sua disposição, no real, e por isso não o
demanda, pois quem o pede ao Outro, é porque acredita que o objeto está no Outro, no lugar
vazio do Outro, no simbólico. O psicótico é, portanto, o próprio a.”
Do mesmo modo, o psicótico ocupa uma posição de objeto em relação ao saber: a
psicose é por excelência o lugar daquele que porta o saber (um saber que vem do Outro), um
saber que chega até o sujeito sem dialética, objetalizando-o. Seja na vertente esquizofrênica
da falta de sentido, seja na totalidade de sentido apresentada na paranóia, o sujeito ocupa, ali,
a posição de objeto desse saber.
Na psicose, não é o sujeito quem porta o saber inconsciente, introjetado pelos
significantes de sua identificação simbólica; mas é o Outro quem porta esse saber, absoluto
em sua falta de falta. Por não haver falta no nível do Outro, não há desejo, mas puro gozo.
109
Kaufmanner (1999, p. 99) nos diz que “O psicótico não se apresenta como doente, mas sim
como vítima real de um gozo, de um Outro estranho a qualquer sentido de seu ser, de um
gozo sem mediação, da pulsão fora do inconsciente.”
Sendo assim, diversos autores nos advertem, a partir da clínica, que essa relação de
aposta de saber no analista não pode se estabelecer, ao preço de o analista ser instalado no
lugar ou de perseguidor ou de dupla da erotomania - lugar ameaçador de Outro que sabe, sem
falta.
Quando se trata de psicose, portanto, essa transferência - em que se localiza o saber do
lado do analista - pode ser um elemento desencadeador, tal qual ocorreu com a transferência
de Schreber para com Flechsig. Por localizar o gozo no Outro, a transferência para o psicótico
“é a paranóia desencadeada.” (SOLER, 2007, p.21). Nesses casos, “o Outro sabe, e o sujeito
crê, crê nele – diferença capital com a neurose” (SOLER, 2008, p.9). Aqui, o significante da
transferência, por não ser dialetizável, pode portar o gozo mortífero de um significante
cristalizado. Diferença que acarreta com que o analista encarne, na psicose, o lugar daquele
que sabe especificamente sobre o sujeito, lugar de perseguidor – em que o sujeito fica como
objeto de gozo -, ou o lugar da erotomania mortífera – em que o sujeito fica como objeto de
amor, mas um amor avassalador.
Essa estrutura de saber pode ser colocada em evidência através do chamado ‘delírio de
suposição’. Nesse delírio, o sujeito crê saber que o Outro sabe, tal como pode ser observado
no caso Aimée, mas com a diferença de uma radicalidade: aqui o sujeito não tem sequer a
“necessidade de saber, de inventar aquilo que o Outro sabe” (ALLOUCH, 1997, p.440). O
Outro sabe e ponto.
Assim, sendo o Outro, e não o sujeito, quem sabe, o psicótico fica no lugar de
testemunha: ele testemunha, como Lacan (2002) nos indica, o saber que vem do Outro.
O psicótico é mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu sentido, que é o de
testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto. O neurótico também é uma testemunha da
existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto que é preciso decifrar. O
psicótico, no sentido em que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece
fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o
sentido do que ele testemunha, e de partilhá-lo no discurso dos outros (LACAN, 2002,
p.153).
É comum pensar-se que o sujeito paranóico é aquele que sabe tudo, em torno de quem
tudo gira – sobretudo em casos de delírios megalomaníacos. Entretanto, Lacan (2002, p.157)
indica a descrição dessa diferença no texto do próprio Schreber, o qual está transcrito a seguir:
110
tudo o que acontece se refere a mim. Ao escrever essa frase, estou plenamente consciente de
que as pessoas logo pensarão em uma imaginação doentia da minha parte, pois sei bem que
justamente a tendência a referir tudo o que acontece a si mesmo, relacionando-o com a
própria pessoa, é um fenômeno que acontece com freqüência em doentes mentais. Mas na
realidade, no meu caso, passa-se o contrário. Desde que Deus entrou em uma conexão
nervosa exclusiva comigo, eu me tornei para deus, num certo sentido, o homem, ou o único
homem em torno do qual tudo gira... (SCHREBER, 2006, p.205)
Dessa forma, o analista não pode, em absoluto, ocupar, para o sujeito, o lugar daquele
que sabe, pois esse saber seria absoluto, objetalizando o sujeito. Resta, assim, ao analista, o
lugar de não saber, apresentando um vazio ao qual o sujeito possa depositar seu testemunho
(SOLER, 2008, p.10). Ao falar da transferência na esquizofrenia, Alberti (1999) refere-se a
uma inversão: se na neurose o sujeito chegaria à analise com uma pergunta sobre o seu
sintoma, na psicose ele chega “com uma resposta sobre o seu gozo” (ALBERTI, 1999, p.128),
o que acarreta a necessidade de intervir ativamente com um não ante a tentativa de realização
do gozo.
Aqui, tal qual na neurose, o analista supõe saber ao sujeito, o que gera, entretanto, uma
inversão na relação da transferência: se por um lado é o Outro quem sabe, por outro lado é o
psicótico quem porta esse saber. Colocando-se fora dessa relação sujeito-Outro, como aquele
que não sabe – ou seja, que é secretário -, o analista opera uma inversão na transferência: é
ele, o analista, quem supõe o saber ao psicótico, o que leva diversos autores a afirmarem que é
o analista quem transfere para com o psicótico. A respeito dessa inversão, Allouch (1997), por
exemplo, afirma que o psicótico se coloca nessa relação “posando transferencialmente”
(ALLOUCH, 1997, p.447), enquanto Soler (2007) a situa em termos da oferta de amor: se
inicialmente o neurótico oferece ao analista sua falta; na psicose, é o analista quem faz a
oferta de amor dando o que não tem. (SOLER, 2007, p.145). Oferta de amor que parece
designar, tal qual propõe Allouch, o significante da transferência de Lacan para com sua
Aimée (amada) (ALOUCH, 1997).
Temos, a partir daqui, dois pontos importantes a comentar. O primeiro deles diz
respeito à eleição do analista pelo psicótico, e o segundo, acerca da função do analista.
Quanto à escolha do sujeito psicótico em relação a esse que é, para ele, alguém a quem
ele se oferece como objeto, é importante destacar que, se afinal o psicótico posa
transferencialmente, ele não posa para qualquer um, mas para um, de alguma forma, eleito.
Um exemplo: certa vez uma colega de trabalho precisou se ausentar do consultório por
algum tempo – estava no final de uma gravidez difícil - e, entendendo que uma determinada
paciente estava vivendo uma crise que necessitava de cuidados e de alguém mais disponível
no momento, pediu que essa paciente me procurasse. Maria, psicótica, era negra, entre 20 e 30
111
anos, alta e bastante robusta. A mesma me procurou pessoalmente, mas, parecendo confusa,
apenas falou que estava sendo atendida pela sua analista e, naquele momento, não ficou claro
o que ela estava querendo ao ir ali. Tempos depois a colega analista conta que Maria, ao
retornar desse encaminhamento lhe disse: “Olha, eu procurei ela sim, mas não marquei não...
ela é tão miudinha, tão pequenininha... ela não ia me agüentar!”
Um significante talvez, tomado ao pé da letra, já que Maria sabia de sua agressividade.
Na primeira consulta com a referida colega precisou ser contida fisicamente pela irmã. Ela
parecia saber o que queria desse tratamento: ser contida. E eu, segundo ela, não ia agüentar.
Parece haver nesse bem humorado fragmento clínico - com ar de chiste, mas levado a sério
pela paciente – um endereçamento e uma demanda. Demanda de contê-la, mas que poderia,
talvez, virar demanda de tratamento. Assim, se não é um significante qualquer (Sq) que
encaminha essa demanda, parece que há uma imagem (qualquer) que a encaminha: a imagem
promovida pelo significado eleito. Nesse caso, a de alguém que pudesse agüentá-la.
Esse exemplo parece ilustrar bem tanto a posição do sujeito psicótico, que ali se
oferece ao Outro como objeto, para que algo seja feito por ele; quanto a questão da escolha
desse Outro, que não é qualquer um.
Quando essa escolha acontece, entretanto, é importante destacar a função do analista
nessa relação, que não pode encarnar o lugar desse Outro, mas pelo contrário, o lugar que sua
ética lhe confere, ou seja, de objeto-falta. Assim, o analista oferece ao psicótico aquilo que ele
não tem, secretariando-o nessa busca.
Alberti (1999) evidencia a importância dessa oferta que não pode se dar no real, para
que o sujeito possa se utilizar de alguns dos significantes do analista e, com eles, fazer suporte
à sua realidade.
Se o analista transfere para com o psicótico, não é, todavia, para ocupar a posição de
analisando, mas a de secretário do alienado, como nos indica Lacan (2002): “não só nos
passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta – o que até
aqui foi considerado como coisa a ser evitada.” (LACAN, 2002, p.235). Nesse sentido,
Allouch (1997, p.445) comenta a posição de secretário de Lacan para com sua Aimée:
O fato de o alienado estar essencialmente em posição de testemunha convoca o alienista a
realizar essa função de secretário que vimos ter sido efetivamente a de Lacan com
Marguerite. [...] se trata de um fazer, como tal ativo: não somente registrar o que a
testemunha nos relata daquilo que lhe vem do Outro, mas tomar seu testemunho ‘ao pé da
letra’
Entende-se que, tal qual quando se testemunha um crime, o sujeito psicótico fica como
objeto da cena - mas não exatamente a outra cena. Se o inconsciente é a outra cena, como diz
112
Freud (2006) em A interpretação dos sonhos, na psicose ele está a céu aberto, em primeiro
plano. O sujeito psicótico é o objeto dessa cena, tal qual o é a testemunha de um crime.
Assim, entende-se que o único lugar que resta ao analista, no sentido de possibilitar uma
relação transferencial, seria o de se colocar no lugar de secretário: aquele que registra a cena,
e o faz de forma ativa. É preciso, pois, ao analista, oferecer ao sujeito psicótico aquilo que não
tem – deixando claro que não tem – mas secretariando-o nessa busca.
Soler (2008) nos indica três posições específicas do analista que possibilitam que a
manobra transferencial que transforma a demanda de cura em demanda de tratamento possa
acontecer. A primeira delas seria o silêncio, o qual colocaria o analista como um outro Outro,
isto é, diferente daquele que é absoluto. A segunda seria a orientação do gozo,
correspondendo a dizer não a situações em que o sujeito se colocaria como objeto, dizendo
sim àquelas em que ele se coloque como sujeito ativo, se utilizando mesmo da sugestão, como
ela diz expressamente. A terceira, seria intervir proferindo uma função de limite ao gozo do
Outro. Nesse sentido, a autora nos indica que certa vez conteve uma grave crise de pânico
suicida com a intervenção: “Ele [o Outro] não tem direito” (SOLER, 2008, p.11).
Do mesmo modo, Zenoni (2000, p.22) indica a necessidade dessa mesma manobra:
“A manobra consiste em não presentificar a vontade do Outro, mas em presentificar um Outro
que é ele mesmo submetido a uma lei.” . Dessa forma, é preciso tomar cuidado para não
encarnar a lei, mas mostrar-se submetido a ela: o analista não deve proibir o sujeito, mas deve
atestar que é proibido que façam isso ou aquilo... “A regra que rege a vida coletiva é uma
regra que se aplica inicialmente ao Outro”. (ZENONI, 2000, p.23). O autor acrescenta, ainda,
a importância da instituição nessa manobra, uma vez que as instituições possibilitam que um
sujeito possa ser acolhido (socialmente) sem ser obrigado a se tratar o que, em contrapartida,
lhe dá a possibilidade de escolher se tratar.
É nesse mesmo sentido que Soler (2007) parece afirmar que, na direção do tratamento
seria preciso, primeiro, “atravessar a fronteira entre a doença propriamente dita e as tentativas
de solução, entre o psicótico que é ‘mártir do inconsciente’, como diz Lacan, e o psicótico
eventualmente trabalhador.” (SOLER, 2007, p.186)
113
3.2 A estruturação delirante e o trabalho do psicótico
3.2.1 O caso, mais uma vez
A clínica psicanalítica e, em especial a clínica da psicose, parece nos convidar a todo
instante ao questionamento, ao avanço no estudo, ao encontro com o Real, o qual
respondemos com uma tentativa, não de estancá-lo, mas de bordejá-lo com o simbólico.
A verdade psíquica é mediadora de toda relação do sujeito com o mundo, o que chama
a atenção para a singularidade da clínica psicanalítica (FIGUEIREDO et al., 2001), que fica
ainda mais escancarada no delírio psicótico, no qual a realidade, sempre única ao sujeito, é a
tal ponto singular que se localiza excluída do discurso, impossibilitada de ser partilhada no
laço social.
Elia (2000), em seu texto Clínica e Pesquisa em Psicanálise, ancorado no
ensinamento freudiano, destaca que a pesquisa em psicanálise é, essencialmente, uma
pesquisa clínica. Não apenas a psicanálise ocorre em um espaço terapêutico – o consultório, o
serviço de saúde mental, etc. - mas seu “campo de pesquisa” é o próprio inconsciente, ou
melhor dizendo, o sujeito do inconsciente.
Esse sujeito não pode ser eleito pelo analista. Em psicanálise, não é possível escolher
os sujeitos da pesquisa – amostragem - de forma aleatória, e nem mesmo estabelecer uma
população específica de pesquisa, como ocorre, em geral, nas pesquisas em ciências humanas.
Entende-se, pois, que o estudo teórico orientado pela clínica faz-se fundamental na pesquisa
em psicanálise, como o próprio Freud (1913/2006) indica ao estabelecer que a pesquisa em
psicanálise deve ocorrer a partir do próprio tratamento. Isso acontece devido à singularidade
da transferência, sem a qual não há intervenção possível (NOGUEIRA, 2004).
Sauret (2003), ao abordar o tema da pesquisa em psicanálise, nos diz que essa pode
acontecer de diversas formas: sendo apenas orientada pelo saber psicanalítico; visando a
responder a questões colocadas pela psicanálise; visando a construir uma teoria a partir da
doutrina e da experiência; visando ampliar o campo da experiência analítica ou, ainda; como
parece ser o caso nesse momento, visando a responder a questões colocadas à psicanálise.
Ao longo da escuta de Alberto, alguns fragmentos clínicos chamaram a atenção. Estas
ocasiões se impuseram como questão, uma vez que apontaram para a complexidade do tema
do saber na psicose, assim como da crença nas produções do inconsciente e dos efeitos que
114
advêm pelo laço que se estabelece. Esses fragmentos aqui apontados são ocasiões em que a
certeza delirante, descrita desde os principais manuais clássicos até as mais modernas
classificações psiquiátricas, se mostra, aparentemente, colocada em xeque. Longe de contestar
a crença no inconsciente, ou seja, a estrutura do saber na psicose, essas questões permitem
abordá-la de uma forma mais complexa do que, aparentemente, muitas vezes, ela denota ser.
Certo dia, em uma reunião de bom dia24 no pátio interno do serviço, um paciente
alcoolista crônico perguntou para a analista – que conduzia a reunião – o porquê de, por
vezes, ter visto vultos e ouvido vozes dizendo que ele ia morrer. Neste momento, Alberto
interrompe o outro e diz num olhar de admiração: “você também ouve vozes? Eu também
ouço!”. A analista retorna a questão para o grupo que, atento e em silêncio, questiona
diretamente a analista. Nesse momento, a analista faz uma intervenção na qual aponta que as
vozes talvez tivessem a ver com a pessoa, com o sentimento de medo que ela pudesse ter, por
exemplo.
No atendimento seguinte com Alberto, essas vozes tornaram-se tema da conversa e a
analista pôde retomar a intervenção, desta vez individualmente, indicando que as vozes que
Alberto escutava talvez dissessem respeito a ele próprio. Esse assunto ficou em suspenso por
algum tempo, até que, certo dia, ao perguntar como ele estava e se as vozes o estavam
incomodando muito, Alberto disse: “Já tem muito tempo que eu não ouço elas. Desde o dia
que eu saí procurando... andei a cidade inteira, eu andei a noite inteira, e não achei nada. Será
que elas vêm da minha cabeça? Mas agora acabou. Não ouço elas não. Acho que é por causa
do remédio.”
Este fato chama a atenção para a relação do sujeito com os fenômenos psicóticos e,
sobretudo, com o encontro deste sujeito com algo que, na verdade, é ele mesmo. Embora o
paciente tenha, nesta data, atribuído a melhora à medicação (a prescrição dele era a mesma há
anos) este fato, além de outras coisas, levou Alberto a parar de beber: ele dizia que, toda vez
que bebia, essas vozes pioravam, e um dia, percebeu que quando bebia ficava “muito louco” e
passou a dizer que não podia beber. E, de fato, parou de beber.
Enfim, esse questionamento a respeito das vozes, assim como o remetimento das
mesmas ao sujeito – lembrando que já havia ali, uma relação transferencial, levou a um efeito
inusitado: Alberto foi procurar essas vozes, e concluiu que, de alguma forma, elas vinham
dele. De certo modo, isso o implicou nessa dinâmica, já que passou a observar que quando
24
Reunião diária, no início do dia, sem tema pré-definido, em que um técnico de referência passa algumas
notícias do serviço, localiza os pacientes no tempo e no espaço rapidamente, convida os usuários a se
apresentarem aos pacientes recém-chegados, quando é o caso e, sobretudo, dá voz aos pacientes: seja para falar
deles, para fazer reclamações quanto ao serviço, tirar dúvidas, fazer convites, dar sugestões de trabalho, enfim,
para conversarem entre si.
115
bebia ele fazia coisas que não fazia sem a bebida, que caía, se machucava, ficava com medo,
brigava muito, enfim, ficava ‘muito louco’, como dizia. Por fim, a partir do acontecido, houve
alguma implicação de Alberto com sua loucura, e ele mesmo criou algo que ele podia fazer
para se ajudar, saindo de uma posição de completo objeto dessa loucura e passando a uma
posição um pouco mais ativa.
De outra feita, Alberto disse, em um atendimento individual, que gostaria de poder
cortar o cabelo, mas que não o cortava ou fazia a barba havia oito anos (desde o apagão) e
explicou que não podia fazê-lo porque o cabelo lhe dava força para fazer chover. Alberto
disse que aquele cabelo o incomodava, mas que não podia cortá-lo. A analista intervém
perguntando se era só o cabelo que podia lhe dar essa força, e dizendo que devia haver algo
que pudesse substituí-la. Ele, convicto, disse que não.
Na semana seguinte, contudo, Alberto cortou o cabelo e fez a barba no próprio CAPS,
onde o serviço era oferecido semanalmente. Ele não ficou calado quanto ao assunto: num
alegre entusiasmo apontou para a analista, assim como para diversos profissionais do CAPS,
que tinha cortado seu cabelo, perguntando se havia ficado bom. Desde então, nosso sujeito
Alberto passou a fazer a barba e a cortar o cabelo, sem nunca se queixar da tal força que o
cabelo lhe fornecia. Mais uma vez, portanto, há uma passagem, ainda que muito pontual, de
uma posição de objeto a sujeito em que, apesar de não haver elaboração aparente do
acontecido, o conflito relacionado ao cabelo se dissolve.
Um terceiro fragmento, menos pontual, construído ao longo de um certo tempo,
também chama a atenção: diz respeito a uma espécie de resolução que Alberto criou para o
conflito da chuva. Certa vez disse que tinha deixado a chuva por conta de Deus, pois o pastor
da igreja disse para “não passar na frente de Deus”. Em outra ocasião, disse que agora a anja
P1 o estava ajudando: ela estava tomando conta da chuva. E ele, Santo Alberto - como por
vezes se apresentava - que já tinha feito bastante coisa em favor do mundo, agora ia aproveitar
a vida: comer do bom e do melhor.
Esses três fragmentos apontam para a complexidade da questão do saber na psicose.
Uma convicção que, ante o laço transferencial, parece conseguir ser, de alguma forma,
abordada. A partir do exposto discute-se a complexa relação do sujeito psicótico com seus
fenômenos que, em regra, excluem o sujeito, imputando ao Outro toda a responsabilidade,
todo o saber; todo o gozo, mas, em não tão raras exceções, permite, de algum modo, um saber
sobre esses fenômenos enquanto tais e, até mesmo, em alguns casos, certa apropriação do
saber em si, tornando possível ao sujeito psicótico fazer algo com esses fenômenos que o
116
invadem - o que indica o surgimento de um certo savoir-faire, ainda que pontual, como será
visto adiante.
3.2.2 O psicótico e o trabalho em análise
A fronteira mencionada por Soler (2007) entre o ‘psicótico mártir do inconsciente’ e o
‘psicótico trabalhador’ nos remete àquela existente no trabalho analítico com a neurose,
fronteira que separa as entrevistas preliminares da entrada em análise e que precisa ser
atravessada para que o sujeito se aproprie do seu sintoma caracterizando o momento em que a
simples queixa ou pedido de cura se configura em demanda de análise propriamente.
Desse modo, se o sintoma é uma expressão torta do desejo – ou seja, uma formação de
compromisso que indica o conflito psíquico como um todo - os fenômenos elementares
designam o conflito expressamente. Se o sujeito neurótico repete um determinado modo de
gozo na transferência, a ser interpretado pelo analista, já que os sintomas neuróticos portam
um saber a ser decifrado; nos fenômenos elementares, trata-se de tomá-los ao pé da letra.
Assim, por exemplo, se o sujeito paranóico é dito pelo Outro ‘puta’, esta já é, em última
instância, a imagem que designa a defasagem entre seu eu e seu ideal imaginário. Se, por
outro lado, ele se nomeia “mulher de Deus”, então esta é a imagem delirante, inventada, de
seu eu (ideal).
Na psicose, trata-se de um tratamento possível - como nos indica Lacan (195758a/1998) – no qual a demanda de tratamento é muito particular, pois o desarranjo na
economia psíquica pode levar a um pedido de ajuda – seja pelo próprio paciente, seja por
algum familiar -, sem, entretanto levar o sujeito à análise.
É possível que esse sujeito a partir desse advento, procure ou não ajuda, procure ou
não o tratamento. E se procura, é possível, ainda, que ele procure, ou não, um analista,
dependendo tanto do tipo de ajuda que ele julga necessitar, quanto do tipo de saber que ele
atribui ao Outro. É possível, por exemplo, que o psicótico - ou sua família – procure a religião
devido às vozes que o paciente está escutando ou, mesmo, por não estar “falando coisa com
coisa”, e por acreditar que o sujeito possa estar sofrendo uma possessão (seja de um espírito,
seja de um demônio, conforme a religião); é possível, também, que o paranóico, injustiçado,
procure a Justiça para defendê-lo; o que não os leva, nem em um caso nem em outro, ao
psicanalista.
117
Afinal, para que um sujeito procure um analista, é preciso haver um pedido
direcionado a ele, ou seja, uma aposta de que aquele profissional tenha algo a lhe oferecer.
Para tanto, é necessário que haja alguma forma de saber investida nesse profissional, ou na
instituição em que ele atua. Caso contrário, seria melhor procurar um pai de santo, um pastor,
a polícia, a Justiça... ou sabe-se lá o quê. É preciso que haja de alguma maneira, o saber de
que existe algo acontecendo com o sujeito e que isso que lhe acomete diz respeito, de algum
modo, por mais enigmática que seja, à esfera psíquica, emocional, ou até mesmo, que
acontece algo em ‘sua cabeça’, que ele tem uma “doença dos nervos”... Enfim, algo que
aconteça no próprio sujeito, e que, assim, possa ser direcionado ao analista – ou a um serviço
de saúde mental ou a um profissional psi (psicólogo, psiquiatra, psicanalista...).
Assim, se o sujeito chega a um serviço de saúde mental ou ao médico, o que também é
muito comum devido a forte associação histórica entre doença mental e psiquiatria
(RINALDI; BURSTYN, 2008) pode ser que a análise se ofereça a ele como caminho na
tentativa de cura.
Entretanto, na psicose, essa primeira demanda - que é uma demanda de cura - em geral
é feita por um terceiro: alguém da família, um conhecido, do seu trabalho, da sua escola, etc.
Assim, a própria demanda de cura do sujeito pode demorar muito a aparecer, necessitando,
portanto, ser construída junto ao profissional que o acolhe (RINALDI; BURSTYN, 2008).
Com Alberto, por exemplo, a demanda de ajuda foi direcionada a um serviço de saúde
mental e partiu da família. Quando a analista chegou ao serviço, para substituir um outro
profissional, já se podia notar, em Alberto, um esboço de demanda de tratamento, já que ele
pedia para aumentar sua fluoxetina (medicação antidepressiva), pois se sentia muito
angustiado.
Embora a demanda fosse endereçada ao médico, a analista prontificava-se a ouvi-lo,
querendo saber de que se tratava, criando um espaço que, para além do espaço de técnica de
referência - secretariando o sujeito nas necessidades do dia-a-dia do serviço - era também um
espaço de escuta. E assim, tal qual nos indica Lacan (1998) em A direção do tratamento, com
a oferta, foi criada a demanda.
As palavras de Lacan, a seguir, se referem ao paciente das entrevistas preliminares.
Entretanto, bem poderiam ser usadas em relação a Alberto: “sua demanda se manifesta no
campo de uma demanda implícita [...] de ser curado [...] Sua demanda atual sequer é dele,
pois, afinal, fui eu que lhe fiz a oferta de falar.” (LACAN, 1998, p.623).
Já havia, assim, antes da oferta da escuta, um esboço, senão de demanda de
tratamento, ao menos de demanda de cura, ainda que direcionada ao saber do médico
118
psiquiatra, da qual o técnico de referência anterior se fazia mediador. Além disso, no caso
Alberto, se a demanda não partiu dele, foi de certa forma sustentada por ele, já que cobrava a
regularidade de seus atendimentos, assim como uma justificativa para as ausências da
analista, quando elas se davam, indicando que ali havia um laço.
Nesse caso, a demanda de ajuda parece ter sido iniciada pela família, a partir da qual o
sujeito pôde ele mesmo sustentar uma demanda própria de tratamento e, só então, uma
demanda referida à psicanálise, indicando uma saída, se não total, ao menos parcial, da
posição de ‘mártir do inconsciente’ para a de ‘psicótico trabalhador’, como chamou Soler
(2007).
Foi visto que na psicose, em que há inicialmente, não a demanda, mas a oferta de
amor, é preciso se colocar no lugar de um outro Outro, orientado por uma Lei maior, como
nos indicaram Soler (2008) e Zenoni (2000).
Para avançar nessa questão do atravessamento do psicótico “mártir do inconsciente”
ao psicótico “trabalhador”, ou seja, da demanda de cura ao trabalho de análise, retomamos
brevemente o caso Aimée acrescido da discussão de outros dois textos: Uma psicose
lacaniana, caso apresentado por Lacan, e Memórias da loucura, livro escrito por um
‘analisante’ psicótico.
3.2.2.1 Aimée: a ‘cura’ do delírio
No caso Aimée, após o atentado contra a atriz Huguete Ex-Duflos, a paciente
recupera, de certa forma, seu juízo, e é considerada, pelos profissionais da época, curada:
“nossa doente, que há algum tempo sofre incessantemente iguais desmentidos dos fatos, retira
suas imputações e fica profundamente inquieta com seu próprio estado” (LACAN, 1987,
p.214).
Entretanto, apesar de considerada ‘curada’, ou seja, de ter considerado suas ideias
delirantes como insanidades, Aimée permanece ainda longos anos – cerca de dez hospitalizada. Primeiro em Sainte-Anne - onde foi acompanhada por Lacan por um ano e
meio, diariamente – depois em Ville-Evrárd - de onde requisitou sua saída em 1941, a qual foi
concedida apenas em meados de 1943. (ROUDINESCO, 2008) Assim, apesar de ser
considerada curada, Aimée levou a vida de uma doente crônica: “não parece que ninguém, no
hospital de Sainte-Anne, tenha jamais considerado que Marguerite, julgada curada, pudesse
119
sair deste centro psiquiátrico para onde a conduziu sua passagem ao ato” (ALLOUCH, 1997,
p.55)
Essa longa permanência no hospital psiquiátrico, em contraponto a um diagnóstico
de cura, traz duas questões importantes. Por um lado, em 1938 foi considerado que a paciente
havia retificado suas ideias delirantes anteriores, reconhecendo-as como invenção de sua
própria mente:
Certificado de quinzena assinado pelo dr. Mignot em 14-04-1938: ‘Apresenta-se e comportase normalmente, retifica nas suas afirmações seu delírio antigo e declara que perdeu a razão
durante todo um período de sua existência.’ (ALLOUCH, 1997, p.147)
Por outro lado, seu filho afirma que volta e meia “sua desconfiança persecutória a
retomava” (DIDIER ANZIEU, 1986, p.16 apud ALLOUCH, 1997, p.74), demonstrando que,
apesar da elaboração que se deu sobre o próprio delírio, algo de uma estrutura permanecia:
um saber se impunha. Nesse caso, o empuxo ao assassinato do filho, ou seja, um saber no
Outro, imposto desde fora, de que suas atitudes poderiam gerar o assassinato de seu filho.
A partir de então, já se pode antever que o delírio, em certos momentos de
tranqüilidade, pôde ser deixado de lado, enquanto em outros, invadia a paciente. Aimée,
contudo, não se apropria desse saber sobre o delírio, que parece ser mais a conseqüência de
uma certa estabilização, do que sua causa. Afinal, a estrutura do delírio parece permanecer:
Mesmo mais tarde, quando falando com Lacan, sobrevêm a vergonha e o sentimento do
ridículo a propósito de certas ideias delirantes então evocadas, esses sentimentos jamais se
irão referir ao atentado, apenas à erotomania e às ideias de grandeza. (ALLOUCH, 1997,
p.334, grifo nosso)
Dessa forma, com Aimée, observa-se a possibilidade de um rearranjo que permita
certa renúncia ao delírio, sobretudo, o delírio megalomaníaco. O delírio persecutório fica a tal
ponto mantido que é só com a morte de sua mãe que a paciente pode solicitar sua saída do
hospital. Indicação bastante pertinente para pensar o atrelamento delirante entre Aimée e sua
mãe, assim como entre maternidade (declaração de sexo) e pulsão de assassinato.
A estrutura delirante, portanto, permanece; ainda que possa, em certos momentos,
ser apaziguada em sua formação. O delírio, por conseguinte, vem para reorganizar uma
estrutura imaginária. A direção do tratamento, entretanto, sendo a de apontar o real da
impossibilidade, talvez possa esvaziar o imaginário que comporta tal estrutura, como nos
indica a “cura” de Aimée.
120
3.2.2.2 Gérard Primeau: um esforço de intelecto
“Tenho esperança, a esperança de encontrar meu poder de julgamento novamente, meu poder
de diálogo, o poder de controlar a minha personalidade.” (LACAN, 1975, p.16)
Gerard Primeau (cujo nome verdadeiro não se sabe), é um paciente entrevistado por
Lacan na década de 1970 que, tal qual Aimée, apresenta delírios paranóicos e, num momento
posterior, reavalia, de certa forma, suas principais afirmações delirantes de grandeza. É o que
nos chama especial atenção em “Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques
Lacan”:
Eu queria livrar a França do facismo (LACAN, 1975, p.14)
Quando me levaram para a clínica em M., estava delirante. Intelectualmente, estava ouvindo
vozes, que me indagavam sobre a França fascista. [...] Pensava que os fascistas haviam
tomado o poder, que haviam tomado, pela força, o centro de comunicações de rádio e
televisão. Utilizando os pensamentos, fiz com que Jean-Claude Bourret e Jean Ristat se
matassem, estrangulando-se. Naquela época, estava também obcecado pela fraternidade.
Estava respondendo com símbolos matemáticos. Tinha a impressão de que eles estavam
fazendo perguntas. Era necessário que respondesse, para salvar a França do fascismo. Eles
me fizeram perguntas e as respostas que lhes dei foram muito sinceras; eram séries
matemáticas ou símbolos poéticos. Não posso me lembrar. Foi por isso que disseram que era
delirante. (LACAN, 1975, p.16)
Na entrevista em questão, o paciente fala a Lacan e ao público presente sobre sua
vivência psicótica. O texto, em todo impressionante, nos chama a atenção em especial pela
capacidade com que o paciente descreve, separadamente, seu mundo de delírios e seu mundo
de realidade; ainda que, apesar dessa mestria, o primeiro continue afetando o segundo,
rigorosamente: “Sou consciente desse mundo separado, mas não estou certo de estar
consciente de que esse mundo é separado” (LACAN, 1975, p.7).
Gérard Primeau acredita ser telepata emissor, uma vez que as pessoas à sua volta
saberiam o que ele estaria pensando - o que lhe causa grande sofrimento. Atenta-se para a
expressão que ele próprio usa, ao relatar essa invasão:
Não serei capaz de viver em sociedade, enquanto essa telepatia existir. As pessoas ouvem
meus pensamentos, não serei capaz de trabalhar, não é possível. [...] o fato de o meu jardim
secreto ser percebido por certas pessoas, que meus pensamentos e reflexões sejam... [...]
Como você pode ter uma atividade profissional, se algumas das pessoas à sua volta
percebem a sua reflexão e sofrem assim como que um curto-circuito? Mesmo se a gente vive
de maneira absolutamente correta, há coisas... (LACAN, 1975, p.15, grifo nosso)
Aqui, a expressão jardim secreto25 é a mesma utilizada por Aimée para falar daquilo
que a fez passar ao ato - que sabiam de suas faltas - e, mais uma vez, também com Gerárd
25
Essa expressão pode ser descrita como aquilo que é “o mais íntimo de sua personalidade” (CNRTL, 2009.)
121
Primeau, remete à questão da culpa, da falha, da falta: “mesmo se a gente vive de maneira
absolutamente correta, há coisas...” (LACAN, 1975, p.15). De fato, é impossível viver de
maneira absolutamente correta – seja qual for o ideal utilizado como referência – e, na
psicose, quando a disparidade entre essas imagens é desvelada, a culpa retorna no real, numa
instância que se assemelha mais a um júri acusador e que, aqui, é tão impiedoso que
impossibilita o paciente de viver em sociedade. Há, pois, um controle ‘externo’ rigoroso a tal
ponto, que impede o sujeito de viver.
Vimos que a ética da psicanálise aponta para o impossível do desejo, em
contraposição à neurose que toma essa impossibilidade como impotência, levando ao
sentimento de culpa. Na paranóia, de modo distinto, a culpa se refere não à impossibilidade de
acesso ao objeto, mas à não correspondência entre o eu e sua imagem ideal, acarretando a
ameaça da perda de amor - amor que é, aqui, sustentáculo do contorno imaginário do sujeito.
Como foi visto, o eu na paranóia, por não ser referenciado a uma significação fálica, depende
diretamente dessa imagem em espelho para significar sua existência. Perdendo o amor do
Outro, ele cai como dejeto.
Dessa forma, orientado pela ética da psicanálise, o analista pode apontar ao psicótico a
direção da impossibilidade de ser um eu ideal, objeto perfeito. Mas, como foi visto nas
manobras transferenciais indicadas por Soler (2008) e Zenoni (2000), essa impossibilidade
precisa ser apontada no Outro, e não no sujeito. Dessa forma, pensando a clínica, uma
intervenção possível a esse sujeito - que fala de sua impotência em fazer tudo de forma
correta -, poderia ser a de atestar, não sua impotência, mas a impossibilidade, de qualquer um,
de agir sempre de forma correta. Poderia, ainda, ser indicado ao sujeito - como Soler (2008)
nos adverte - que o Outro não tem o direito de cobrar isso.
Contudo, o que se chama a atenção neste ponto do trabalho, para além da direção do
tratamento, é o endereçamento de saber que o próprio sujeito faz: “É isto puro fruto da minha
imaginação, ou eles realmente me ouviram? Eram ambos telepatas receptores, ou é pura
imaginação, uma criação?” (LACAN, 1975, p.14) Evidencia-se, nesta fala, o esforço
intelectual do paciente para recobrar seu juízo, chegando mesmo a dirigir a um outro o saber
sobre seu padecimento. O que indica, talvez, uma demanda de cura.
Nesse relato em relação aos fenômenos que vivencia, Gérard Primeau parece, mais
que questionar, conseguir distinguir aquilo que é realidade daquilo que é delirante,
descrevendo, inclusive, a função desse delírio. Em suas próprias palavras, haveria dois
mundos, ‘o real’ e ‘o imaginário’, sendo que nesse último, ele ocuparia um lugar de exceção:
122
O sonho, o mundo construído pela imaginação, onde encontro o centro de eu mesmo, não
tem nada a ver com o mundo real, porque, no meu mundo imaginário, no mundo que crio
para eu mesmo com a minha fala, estou no centro. Tendo a criar uma espécie de miniteatro,
onde seria, ao mesmo tempo, o criador e o diretor, enquanto, no mundo real, minha única
função é... (LACAN, 1975, p.7)
A partir do texto não é possível saber qual é esta única função que lhe seria cabida no
‘mundo real’. Entretanto, pode-se entender, a partir do trecho como um todo que, em seu
‘mundo imaginário’ ele ocupa um lugar de exceção, sendo ao mesmo tempo o criador e o
diretor, comparado a nada menos que Deus, o Um da totalidade, sem limites em seu círculo,
tal qual um ‘conjunto infinito’; enquanto em seu ‘mundo real’ ele seria apenas... Apenas um,
podemos concluir - o um da unicidade, aquele que é só mais um:
o Geai Rare é do mundo imaginário. O Gérard Primeau é o do mundo comumente chamado
de real, enquanto que, no mundo imaginário, sou Geai Rare Prime Au. Talvez seja meu
nome Prime, que é o primeiro, aquele que codifica, que tem força. [...]
Sou o centro solitário, uma espécie de Deus, de semi-deus de um círculo solitário, porque
este mundo é emparedado por dentro e não posso fazê-lo passar para a realidade do dia-a-dia.
(LACAN, 1975, p.7)
O termo ‘círculo solitário’ parece condensar isso que é seu ‘mundo imaginativo’. Um
mundo só seu, onde ele reina soberano. Em contrapartida, esse mundo só seu parece invadir o
‘mundo real’, já que ele é um ‘telepata emissor’ e, assim, suas reflexões mais íntimas tornamse declaradas. Paradoxo fundamental: se, por um lado, as ideias delirantes não são partilháveis
e o sujeito aponta isso com o uso do significante solitário, por outro, sua vida íntima é
partilhada além da conta, escancarada, num universo sem limites. Fica claro, portanto, que
este círculo solitário, que o paciente designa ser sem fronteiras, é ele mesmo. Não é à toa que,
ele próprio, localiza na falta de fronteiras – que aqui, podemos entender como a fronteira
simbólica entre o eu e o Outro – o centro de sua questão:
O fato de falar desses círculos solitários e de viver sem fronteiras não implica contradição.
[...] Estou num certo círculo solitário, porque estou fora da realidade. É por isso que falo de
um círculo solitário. Mas isto não evita que eu viva num nível imaginativo, sem fronteiras. É
precisamente porque não tenho fronteiras que tenho a tendência a explodir um pouco, a
viver sem fronteiras, e, se não se tem fronteiras para dar um basta nisto, não se pode mais
lutar. Não há mais luta. (LACAN, 1975, p.12, grifo nosso)
em relação ao círculo solitário, vivo sem fronteiras. Porém, em relação ao real, vivo com
limites, se somente por causa do corpo (LACAN, 1975, p.13)
Na fala de Primeau, vê-se quase que um apelo a esse limite, para além do corpo. Um
limite que seria, como foi assinalado acima, o limite do sujeito enquanto tal, da
impossibilidade de ser, tal qual em seu mundo imaginário, um semi-Deus, um eu ideal.
É, portanto, pela falta de internalização de uma fronteira interna, ou seja, pela falta do
advento da Lei simbólica, que a lei aparece exteriorizada, desde fora, no real. O único limite
123
que o assegura, portanto, é o do corpo, o de uma fronteira imaginária. Dessa forma, apesar de
toda sua elaboração sobre seus delírios e da capacidade de distinguir intelectualmente seu
mundo imaginário de seu mundo real, ainda assim, ambos se confundem a ponto de o
paciente não conseguir viver em sociedade. Se Primeau separa intelectualmente tais mundos,
ele não pôde, entretanto, utilizar-se dessa separação – não, ao menos, até o dia em que foi
realizada essa entrevista, quando Lacan (1975) chama a atenção para a gravidade do caso,
sobre o qual ele não deposita esperanças.
Em Memórias da loucura, livro autobiográfico de Renato Pompeu, a ideia do delírio
como um mundo imaginário sem limites também aparece. Pompeu (1983), entretanto, parece
avançar nesta questão, já que consegue, de alguma forma, apropriar-se desse saber.
3.2.2.3 Renato Pompeu: além do intelecto
Pompeu26 (1983) retrata, em Memórias da loucura, sua experiência enquanto
psicótico. O autor relata sua forma de pensar a loucura, privilegiando a questão do delírio,
com o qual aprendeu a lidar, ainda que em momentos de crise tais verdades se imponham.
Pompeu reconhece sua loucura desde a infância, falando tanto de seus pensamentos,
que já se demonstrariam delirantes, quanto de sua dificuldade em lidar com os significantes da
cadeia: esses que, diferente do signo, não representam algo para alguém. “O pensamento que
me ensinavam na escola não me dava nenhuma segurança contra mudanças. A mesma atitude
minha gerava ora aplausos, ora repreensões, ora beijos e ora palmadas.” (POMPEU, 1983,
p.16).
Quanto aos pensamentos delirantes, relata tê-los desde que se entende por gente. Um
deles seria a ideia, aos 7 anos, de que havia uma conspiração de mulheres contra ele, com o
objetivo de lhe tapar os buracos do corpo “com cimento ou metal líquido fervente”.
(POMPEU, 1983, p.15).
Em contrapartida a tais irrupções do real, Pompeu indica ter encontrado um
“equilíbrio patológico” – algo que nos remete à estabilização imaginária da pré-psicose – em
coisas que ele considerou estáveis, como as canções que tocavam no rádio, o itinerário dos
bondes e o texto. Tais coisas eram, para ele, marcas fixas, pontos de retorno ao qual podia se
26
Renato Pompeu é um consagrado jornalista e escritor paulista. Dos 22 livros que tem publicados, entre romances
e biografias, há um deles que é dedicado aos loucos e que trata de suas próprias vivências com a psicose: “Memórias da
Loucura”.
124
ancorar. O texto, entretanto, ocupou papel especial, já que tornou parte de sua profissão: uma
profissão já consagrada em sua família.
Foi assim, tentando ser fiel ao texto, e a uma única verdade, que Pompeu parece ter-se
enveredado pelos caminhos da vida como jornalista. Um jornalista, entretanto, que não se
arriscava no mundo, pois o texto escrito que chegava dos colegas parecia funcionar como
garante da realidade: “Eu não me atrevia a fazer entrevistas e ser repórter porque não tinha
certeza de não misturar coisas imaginárias com as coisas realmente vistas e ouvidas.”
(POMPEU, 1983, p.17) Essa situação, de compromisso com a verdade, propiciou-lhe
capacidade e reconhecimento bastante significativos em seu meio: “Minha loucura de me
apegar ao texto escrito como única verdade possível (o que me fazia nem mesmo aproveitar
direito o texto escrito, como agora sei fazer) foi aproveitada para eu me tornar um profissional
extremamente eficiente.” (POMPEU, 1983, p.29)
“Mas sem dúvida era um equilíbrio patológico.” (POMPEU, 1983, p.30). Ou, dito de
outro modo, uma estrutura que se mantinha apoiada em uma via imaginária. Em algum
momento as identificações imaginárias, estas que se prendem à imagem de um ideal, não
foram suficientes para assegurar a realidade. Sem imagem a ser, e por falta de uma metáfora
que lhe viesse em socorro, o sujeito fica como que à deriva, objetalizado. A falta aí é tomada
como falha, mas não do sujeito, e a culpa retorna desde fora como ameaça inexplicável: todos
os jornalistas de seu trabalho mantinham práticas homossexuais passivas em relação a seus
superiores, e o superior-chefe, em relação ao presidente dos EUA.
Usando apenas os textos escritos pelos repórteres ou material de arquivo, na verdade a
responsabilidade pela veracidade das informações não era minha – e sim de outras pessoas.
Eu tinha um respeito fiel pela verdade, mas na verdade era a verdade dos outros que eu
divulgava – e aprendi depois que esses outros não diziam a verdade tal como a descobriram,
mas já a adulteravam em função da linha estabelecida pelas publicações.
[...] fui com o tempo percebendo que, se eu não mentia, na verdade omitia grande parte da
verdade como jornalista. O equilíbrio patológico rompeu-se: eu percebi que aquelas
omissões eram uma loucura, aceita por todos os meus colegas sem maiores revoltas a não ser
pelos corredores, mesas de bar e conversas no Sindicato. Por isso alucinei que eram todos
veados a fim de dar a quem lhes mandasse ceder o rabo. (POMPEU, 1983, p.30)
O que nos chama a atenção neste caso é, não a irrupção da psicose em si, mas o modo
de falar da mesma, pelo próprio sujeito, que nos diz com propriedade, e a sua maneira, que
tais produções inconscientes eram representações da situação, vividas, entretanto, num plano
diferente daquele do pensamento – o simbólico - ou seja, vividas no real:
Ora, aqueles pensamentos eram verdadeiros apenas no plano simbólico, que é o plano do
inconsciente. As fantasias do inconsciente não representam uma realidade externa ao
pensamento – elas simplesmente simbolizam essa realidade.
125
Por que pensei que meus colegas eram feras? Porque infelizmente, na nossa sociedade
capitalista, o jornalista não cumpre seu papel social de informar as pessoas de modo que elas
possam orientar-se no mundo que as cerca. (POMPEU, 1983, p.25)
Se passei a pensar que todos os meus colegas eram veados, isso se deve à extrema
subserviência exigida (e aceita) pelos jornalistas.
[...]
Minha loucura consistiu não em ter pensamentos – mas em acreditar que eles eram reflexos
reais de acontecimentos reais que ocorriam efetivamente fora do meu pensamento.
(POMPEU, 1983, p.26)
Pompeu relata sua loucura no passado, mas sabe, de alguma forma, de sua estrutura.
Ainda hoje ele toma remédios para conter as vozes que, sem a medicação, o invadem e afirma
a existência constante dos delírios em seu pensamento (POMPEU, 2011). Mas, longe de
atribuir tal situação a uma simples doença, apropria-se, a seu modo, desse saber, e encontra
um lugar partilhável para seus pensamentos: “Aprendi que as pessoas se chocam com os
delírios verbais e não suportam conversar com um delirante, mas adoram ler delírios escritos,
ver cenas delirantes nos filmes ou na televisão, ver peças de teatro delirantes.” (POMPEU,
1983, p.12)
Vê-se, a partir do exposto, que não se trata, em psicanálise, de tratar a estrutura.
Trata-se de estabelecer seu modo de funcionamento, para fazer o que, a partir do sujeito, for
possível. Vale destacar que Pompeu mantém um trabalho de análise, ao qual atribui a
importância da desconstrução dessas verdades delirantes (POMPEU, 2011).
Em Pompeu, assim como em Primeau, parece haver um endereçamento de saber ao
psicanalista. Se o endereçamento de Primeau é apenas indicado, Pompeu (1983) nos relata a
importância dos profissionais (psicanalistas e psiquiatras) para seu tratamento e relata como
questionou, pela primeira vez, a veracidade de suas próprias crenças delirantes (POMPEU,
2011).
Pompeu (1983) nos chama a atenção, em seu livro, para a importância do convívio
com outros pacientes, fundamental, segundo ele, para o questionamento e aprendizado de sua
própria loucura. Foi, entretanto, a partir da leitura de seu próprio prontuário, onde constava a
referência de suas ideias como delirantes, que ele questionou, pela primeira vez, seus delírios
enquanto tais (POMPEU, 2011). Longe de desencadear uma transferência persecutória, tal
situação o levou a questionar sua própria posição, passando de ‘mártir do inconsciente’ a
‘psicótico trabalhador’.
Para concluir, e retomando os três casos apresentados a partir da literatura (Aimée,
Primeau e Pompeu), observa-se, por um lado, um certo saber sobre o delírio e, por outro, uma
estrutura que permanece para além desse saber. Com Aimée, a exigência de ser boa mãe se
impõe, e a ameaça ao filho retorna de quando em vez; já com Primeau, evidencia-se uma
126
exigência radical que se impõe no sentido de uma ação ‘correta’, a ponto de ser impossível ele
viver em sociedade. Em ambos, a revelação pública de seus jardins secretos é avassaladora,
apontando para uma vigilância radical de suas condutas. Com Pompeu, de modo semelhante,
vê-se que a exigência do cumprimento daquilo que se faz ‘correto’, rumo a verdade do
jornalismo, é bastante impositiva. E quando essa imagem não corresponde ao ideal, surge a
invasão delirante27.
Com Alberto, de modo semelhante, quando as coisas vão bem, o sujeito chega
mesmo a abandonar a exigência de fazer chover que lhe é imposta pelo delírio; entretanto,
quando algo vai mal, essa exigência retorna, desde fora, no Outro.
Entende-se, portanto, que a castração, ou seja, a defasagem entre a imagem do eu e a
imagem do ideal é sentida como falha e o sujeito sente-se diretamente ameaçado. Desse
modo, a direção de tratamento precisaria apontar rumo ao impossível desse ideal, barrando a
exigência vociferante do Outro.
Entende-se que, é só a partir dessa manobra na transferência que seria possível
ocorrer uma passagem da demanda de cura à demanda de saber-fazer com aquilo que lhe
acomete.
27
A última internação de Pompeu ocorreu em 2000, portanto após a publicação do livro, quando teve
dificuldades na Revista em que trabalhava, entendendo que não queriam atender a seus telefonemas e
construindo um delírio persecutório, envolvendo a operadora de telefone, em torno disso. (Pompeu, 2011)
127
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O amor nada mais é que uma significação, e vemos precisamente
como Dante encarna essa significação. O desejo, este sim, tem
um sentido, mas o amor - tal como já demonstrei no meu
Seminário sobre a Ética, ou seja, tal como o amor cortês o
suporta – o amor é vazio.
(LACAN, lição de 15 de março de 1977)
O presente estudo abordou o tema do delírio e sua função para o sujeito psicótico.
Viu-se, por um lado, a importância que o mesmo tem para o sujeito, dando um contorno ao
vazio de sua existência e, por outro, a importância do manejo clínico da transferência ao
escutar-se um sujeito delirante.
A estruturação delirante - como Lacan (2002) a chama – tem função importante para o
sujeito, trazendo implicações tanto para o campo pulsional quanto para o campo significante.
Freud já abordava essa questão desde cedo, em seu Rascunho H, de 1895, apontando a
importância do delírio para o eu, ao dizer que o sujeito delirante ama seu delírio como a si
mesmo. Em Sobre o Narcisismo, Freud (1915) elabora teoricamente essa importância ao
associar o delírio – em particular a segunda fase do delírio, ou seja, a megalomaníaca - ao
investimento libidinal do sujeito no próprio eu.
Em O Inconsciente, Freud (2006) avança no mesmo sentido, dizendo que o delirante
faz um investimento libidinal em palavras por não podê-lo fazer em coisas. E em 1924, após
dizer que o conflito psíquico na psicose se localiza entre o eu e o mundo externo, Freud
salienta que esse conflito também pode existir na neurose, entretanto, na psicose, a realidade é
não apenas ignorada, mas substituída. Tal afirmação enfatiza o que ele havia indicado antes,
isto é, que o delirante, não podendo investir em coisas, investe em palavras. Palavras essas
que constituirão aquilo que, em 1937, Freud considerará o análogo da fantasia neurótica para
a psicose, isto é, o delírio.
As primeiras elaborações freudianas acima destacadas enfatizam as repercussões do
delírio no campo pulsional, enquanto as mais tardias enfatizam as repercussões no campo
significante, campo ordenador do gozo.
Lacan (1986), em seu primeiro seminário publicado, nos lembra novamente que o
delírio é feito de palavras e enfatiza, em 1955-56, no seminário dedicado às psicoses, a
importância do delírio em uma ordenação do campo significante e, como conseqüência, uma
ordenação do campo pulsional. Com a noção de metáfora delirante - em analogia à metáfora
paterna - viu-se que o psicótico pode localizar sua existência no mundo, estabelecendo um
sentido para a mesma e barrando, com essa significação, o gozo localizado no Outro.
128
Com o escancaramento delirante dos jardins secretos de Aimée e de Gerard-Primeau,
viu-se a amplitude do caráter superegóico na paranóia em relação a uma exigência de
perfeição que retorna desde fora e que tem um caráter de impossível.
Foi visto que o delírio corresponde ao retorno do foracluído - deste impossível - na
paranóia, relacionando-se, como Allouch (1997) explicita no caso Aimée, a uma exigência de
correspondência do eu do sujeito ao eu ideal, que é também da ordem do impossível.
Dessa forma, a ética da psicanálise parece direcionar a clínica da psicose exatamente
no sentido de, cuidadosamente, apontar para esse impossível, não do sujeito - como nos
indicam Soler (2008) e Zenoni (2000) - mas o impossível do Outro: impossível da
completude.
Com uma escuta direcionada por essa ética, o sujeito delirante pode vir a situar-se
melhor em sua estrutura, inventando um fazer que o leve a uma posição mais ativa, mais
próxima do desejo, indo mais além do delírio, como foi visto com Pompeu e no caso Alberto.
Entende-se que são as decorrências da construção delirante em termos de organização
do mundo e de organização do próprio eu – e não o delírio em si - que possibilitam ao sujeito
uma reinserção no laço social, indo mais além do delírio.
A partir do exposto, foi visto que não é possível eliminar o delírio na paranóia, embora
seja possível ao sujeito deixar alguns elementos de lado. Essa espécie de renúncia a certos
elementos do delírio, longe de ser considerada uma remissão sintomática, parece indicar que,
ali, através do delírio, algo pôde ser operado.
É por uma certa estabilização de Alberto a partir de sua estruturação delirante e por
um caminho que se segue a ela que lhe são possíveis movimentos em direção à inserção no
laço, seja no simples fato de cortar o cabelo, o que lhe permite, inevitavelmente, uma
aceitação maior no laço social; seja na partilha da responsabilidade delirante com a anja P1,
lhe permitindo ter uma vida mais simples, mais comum, com menos exigências por parte do
Outro e, ao mesmo tempo, sendo menos visado pelo Outro em relação à morte – em relação à
inexistência.
Através de uma leitura continuista da obra lacaniana, entende-se que não é possível ir
mais além do delírio sem, contudo, servir-se dele. Entende-se, pois, o delírio, não como um
fenômeno psicopatológico passível de ocorrer em qualquer estrutura, mas como uma
construção própria à psicose, como um fenômeno estrutural.
A aposta da psicanálise, nesse sentido, diz respeito não ao chamado de um sujeito que
não possa responder, mas à criação de condições que possibilitem essa tentativa de o sujeito
se situar no mundo (TENÓRIO, 2001, p.124). Adverte-se que não se trata aqui da pretensão
129
de “neurotizar” o sujeito, mas da possibilidade de fazê-lo advir em uma posição mais ativa
frente ao Outro. E o delírio, tentativa de cura, como disse Freud (2006), indica essa direção.
Muito longe de esgotar o tema do delírio na clínica da psicose, o presente trabalho nos
abre novas questões de estudo. Duas em especial: a primeira diz respeito à questão da
nomeação delirante como suplência; a segunda, não sem relação com a primeira, diz respeito
à abordagem do delirante na clínica. Vejamos como se insere a primeira questão.
No seminário dedicado a Joyce, Lacan (2007) se refere a este artista como desabonado
do inconsciente e nos chama a atenção para o paradoxo que pode existir entre o inconsciente a
céu aberto da psicose e a inserção, do psicótico, na linguagem: “É estranho que se possa
também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente com a linguagem”
(LACAN, 2007, p.162).
O psicótico está inserido na linguagem, como nos mostram os delírios que, como
Freud (1915b) nos chama a atenção e Lacan reitera (1986), são feitos de palavras. Entretanto,
o psicótico não pode ser dito, a rigor, sujeito do inconsciente, já que não há recalcamento.
Ao contrário do sujeito cartesiano, que se caracteriza pelo ancoramento no ser, o
sujeito do inconsciente constitui-se na inserção do objeto da falta, sendo o sujeito do engano,
aquele que se interroga, no campo da linguagem, sobre a existência de seu “eu”, carregando
consigo a falta de significação. O objeto a, sustentáculo da fantasia, seria aquilo que vem para
ajudar a sustentar a nomeação desfalecente do desejo, essa que designaria a abolição do
sujeito enquanto tal (KAUFMANN, 1996, p.503). Assim, seria impossível ao sujeito do
desejo nomear seu desejo (LACAN, 1992). Chama-se a atenção para tal afirmação e
questiona-se: na estruturação do delírio psicótico, não seria exatamente essa nomeação do
desejo que adviria? Vejamos como isso pode ser pensado.
No seminário O objeto da psicanálise, na lição de 15 de dezembro de 1965, Lacan
afirma, em relação ao sujeito do inconsciente, que “o nome do sujeito é este: falta o um para
designá-lo”. Porge (1996) acrescenta que o objeto a e o nome próprio teriam a função de
forjar uma sutura para esse sujeito, preenchendo a função desse um.
Em um sentido próximo, Vivès (2009) fala de um ponto surdo para designar o sujeito
do desejo, constituído na falta. Para tal, ele baseia-se na noção de ponto cego, que é um ponto
estrutural da visão.
O ponto cego é necessário à visão do olho, mas não se faz cego para nós, no dia a dia,
graças ao outro olho que temos, que completa a visão de uma cena, já que se localiza em um
ângulo diverso. Assim, cada olho carrega consigo seu ponto cego, o qual é compensado pelo
outro.
130
Na falta do Outro olho (tampando um olho, por exemplo), poder-se-ia esperar,
portanto, que o ponto cego aparecesse como uma falha na visão. Entretanto, este ponto
também não se apresenta completamente cego. Aí surge uma imagem, que vem em suplência
ao vazio da falta de representação da imagem naquele ponto. O cérebro cria, a partir das
informações existentes, uma nova imagem, que não deixa, no ponto cego, um vazio.
(Blumenfeld, 2002)
É o que pode ser observado no exercício a seguir:
:
INSTRUÇÕES:
Para ambos as figuras, aproxime sua face do papel (cerca de 15cm), cubra o olho direito e fixe o olhar na cruz.
Afaste devagar o rosto do papel. Em um determinado ponto, você verá que, no primeiro caso, o círculo desaparece
em sua visão periférica e, no segundo, também em sua visão periférica, a linha descontínua passa a ser contínua.
Continue afastando o rosto do papel e voltará a ver a imagem como ela é.
Esse exercício demonstra não só a existência do ponto cego, mas também que o “buraco” do ponto cego é
preenchido pelo cérebro. (Blumenfeld, 2002, p.429)
Na constituição do sujeito do desejo, haveria, segundo Vivés (2009), um ponto surdo,
o qual não seria estruturado na psicose. Esse ponto surdo, em analogia ao ponto cego,
constituiria a estrutura do desejo, correspondendo ao recalque originário. É, portanto, no
ponto surdo daquilo que se constitui a demanda do Outro, ou seja, o enigma do desejo do
Outro, que advém o sujeito, suplenciando esse ponto surdo com sua fantasia. Assim, como
assinala Vivès, surge o sujeito, de invocado, à invocante.
Entende-se que a fantasia fundamental não viria para significar esse furo,
tamponando-o, como ocorre no exercício do ponto cego. A importância da invocação,
portanto, diria respeito exatamente a esse ponto surdo, sem o qual não adviria o vazio, ao qual
o sujeito poderá, num segundo momento, tentar preencher. Assinalamos o “tentar”, uma vez
131
que o vazio é estrutural, tal qual um vaso que pode ser “preenchido” com flores, o que não
implica a inexistência do buraco sem o qual o vaso não seria vaso.
Já na paranóia, o delírio surge como uma significação para esse furo, o que confere a
impossibilidade de se falar, com o devido rigor, de um sujeito do inconsciente na paranóia.
Ainda que esse sujeito se invista narcisicamente com seu delírio, ele poderia apenas ser
localizado naquilo que Lacan (1999) denomina assujeito, um sujeito assujeitado ao desejo do
Outro. Tal posição, de um sujeito localizado na posição de objeto, traz possibilidades de
pensar a questão da nomeação do desejo na psicose, por um lado, e a impossibilidade dessa
nomeação, por outro.
Zenoni (2007) nos chama à atenção que nos primeiros seminários de Lacan, a função
do pai foi associada à lei como aplicação da disciplina, enquanto em seminários mais
avançados, ela foi largamente associada ao amor, e isso, na mesma época em que a função da
nomeação, ou seja, aquela do “Pai-do-Nome” é abordada.
No segundo capítulo deste trabalho, vimos que ainda nos primeiros seminários, ao
abordar a função paterna, Lacan (1999) já apontava a invocação como importante para o
advento do sujeito, o que ocorreria a partir desse convite a seguir o caminho do pai, um
convite à identificação, não ao pai, ou ao significante paterno, mas ao desejo do pai. Vimos
também, que Schreber teria sido evocado, sendo colocado no lugar de objeto da frase (tu és
aquele que é), “através do surgimento de um significante primordial, mas excluído para o
sujeito.” (LACAN, 2002, p.343)
Em momentos posteriores da obra, Lacan aborda a função paterna, acrescentando o
viés da nomeação - que nos parece guardar estreita relação com o par evocação-invocação.
No seminário Les non dupes errent (1973-74), o autor fala da importante função do
“nomear-a”, retomando-a no seminário seguinte, RSI, pela denominação Pai-do-Nome, a qual
ele dirá em O Sinthoma, ser aquela sobre a qual “tudo se sustenta” (LACAN, 2007, p. 23).
Nesses mesmos seminários, Lacan também indica essa função, da nomeação paterna,
feita através de uma via delirante. Em RSI, é abordada a questão do congelamento do desejo
própria à paranóia que nos parece articular-se com a questão da fixação a Um significante –
como foi visto no segundo capítulo -, indicada um ano antes, no seminário Les non dupes
errent, com a definição da loucura como a crença no próprio nome - e retomada um ano mais
tarde, em O sinthoma, com a indicação de que o nome que Joyce se deu - sendo ele pai de seu
próprio nome - o de Artista, não era um nome comum, um nome que entrasse na cadeia, mas
um nome que fez a “compensação de sua carência paterna” (LACAN, 2007, p.91).
132
No mesmo seminário (O Sinthoma), podemos localizar mais uma referência
importante à paranóia, que nos parece ir ao encontro da questão da fixação significante e do
congelamento de desejo. Essa referência diz respeito ao caso Aimée, ao dizer que a paranóia é
a própria personalidade. E nos remete ao termo Verhaltung, utilizado por Lacan (1932) em
sua tese de doutorado e traduzido por Quinet (2006) como ‘retenção significante’.
Como foi visto no segundo capítulo dessa dissertação, a nomeação paterna e a
invocação relacionam-se entre si, na medida em que a invocação nomeia o sujeito a alguma
coisa. Destaca-se, entretanto, que se a invocação direciona-se ao sujeito, a evocação
direciona-se ao objeto, como foi explicitado por Lacan (1955-56) no desenvolvimento das
frases “Tu és aquele que me seguirás” e “Tu é aquele que me seguirá”. Desse modo, a missão
delirante parece denotar exatamente o retorno daquilo que foi foracluído pelo sujeito, o
retorno dessa nomeação tomada pelo sujeito em forma de evocação.
Essa relação, entretanto, necessita ser melhor estudada, no sentido de estabelecer a
função dessa nomeação delirante em relação à possibilidade de o sujeito ocupar uma posição
mais ativa, ainda que na posição de objeto, assim como a possibilidade de apontar ao
impossível dessa nomeação. É uma questão que permanece em aberto, ao mesmo tempo em
que abre a segunda questão anteriormente mencionada: como é possível abordar o delírio na
clínica?
A flexibilização da verdade delirante que se impõe ao sujeito parece apontar para o
impossível da significação da existência, na medida em que o delírio surge justamente em
suplência à falta de significantização da mesma. Vimos que, em determinados momentos, é
possível ao sujeito um certo desinvestimento em torno desse delírio que se impõe como
missão, como sentido, vivendo para além dele e aparecendo, ainda que pontualmente, como
sujeito do desejo, numa entrada no laço social – laço de amor.
Vimos que na tentativa de compensar a carência do Nome do Pai, a construção
delirante identifica imaginariamente o objeto fálico no próprio sujeito. Diferente de uma
mulher - que se refere ao um da unicidade, e que se oferece ao Outro enquanto objeto-falta - o
paranóico se refere ao Um da totalidade e se oferece a si mesmo enquanto objeto – de um
modo mais passivo, no caso da perseguição – o que nos remete ao objeto de gozo -, ou mais
ativo, no caso da megalomania – nos remetendo ao objeto de desejo. Entretanto, por
identificar-se ao objeto que falta ao Outro, sem manter o enigma de seu desejo, o
megalômano corre o risco de desaparecer enquanto assujeito nesta relação, retornando à
posição de objeto de gozo da paranóia persecutória, tal qual aconteceu com Schreber ao final
133
de sua vida, ou como acontecia com Aimée, que por diversas vezes retomava a ideia
paranóica em relação ao filho.
Viu-se que o sujeito psicótico se coloca na transferência no lugar de objeto, fazendo-se
oferta ao Outro. A hipótese de estudo que aqui se abre é a de que, na medida em que o
analista faz semblante de objeto-causa, não aceitando essa oferta - seja no indicativo do
silêncio, seja no apontamento da lei a que está submetido – talvez seja possível ao paranóico,
direcionado ao real da impossibilidade, não assumir esse lugar, que é vazio, mas orientar-se
por ele. A noção de objeto-causa, a ser aprofundada, guarda relação, como foi visto no
terceiro capítulo, ao amor de transferência, aquele que remete ao vazio da falta-a-ser e que
associa-se com o dom de dar o que não se tem.
Esta forma de amor, Lacan (1985) a indica em seu seminário 20, Mais, ainda, como
aquela que vem em suplência à inexistência da relação sexual e parece desenvolver esse
aforismo no seminário seguinte, Les non dupes errent, ao retomar essa relação de amor, que
ele enfatiza ser simbólica, como aquilo que é capaz de suportar o gozo, e que é o que tornaria
possível o esvaziamento do amor sexual na viagem – viagem, aqui, em referência à vida, e
sexual, em referência ao sentido, como ele explicita ao longo do seminário. Jorge (2010b), no
mesmo sentido, nos aponta em seu texto intitulado Amor e morte a possibilidade do amor
como aquilo que vem em suplência também à inexistência, ou seja, ao impossível da
existência, abordando a função do amor frente ao encontro com a morte.
Se a relação sexual é impossível, é na medida em que não existe objeto (fálico) que
complete o sujeito (faltoso). Uma mulher, por ser ela também sujeito do desejo, não pode ser
toda-fálica, sendo impossível à mesma ocupar o lugar de objeto fálico. Cabe a ela, portanto,
para fazer suplência à inexistência da relação sexual, o lugar de objeto de amor, este que
guarda relação com o objeto-falta.
O paranóico, que tanto se assemelha à mulher - por ocupar, em relação ao Outro, a
posição de objeto -, com sua megalomania, parece encarnar exatamente o lugar impossível de
A mulher. Seria possível, entretanto, ao paranóico, guiado pela ética da psicanálise, o lugar de
objeto de amor? Qual seria a relação desse amor a que Lacan se refere com o objeto-falta?
Será que é possível, ao sujeito paranóico, um certo atravessamento de seu delírio
subjacente – este que vem em suplência à falta de significantização da existência – em
conseqüência à entrada no laço de amor, este que vem em suplência à inexistência?
Dias (2006) nos diz que Lacan, na década de 1950 define o termo sintoma como
metáfora, como uma formação do inconsciente, suscetível de ser decifrado, enquanto na
década de 1970, ele falará do sinthoma, escrito com th, e irá defini-lo como uma letra de gozo,
134
gozo fixo, que não pode ser decifrado. E é de ambos os termos que Lacan nos falará em seu
seminário 23, identificando Joyce, enquanto nome, ao sintoma, mas elevando seu sintoma à
categoria de sinthoma, uma vez que através de sua escrita ele pode mais que dar significação
ao seu ser enquanto sujeito, mas fazer-se um sujeito do enigma, único, singular e transmissor
do resto de gozo que lhe resta, sem significação. (LACAN, 2007)
Perguntamo-nos se este ‘pedaço de real’ que Joyce aborda com sua escrita – essa que
transforma “letra em lixo” (LACAN, 2007, p.162) não apontaria para um gozo Outro que não
o do sentido, para um gozo que não pode senão se meio dizer, um gozo que aponta na mesma
direção da ética da psicanálise?
Nesse mesmo seminário, Lacan nos indica que “a psicanálise, ao ser bem sucedida,
prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos prescindir sobretudo com a
condição de nos servirmos dele” (LACAN, 2007, p.132). Será que é possível prescindir desse
Nome inventado delirantemente, ainda que com a condição de nos servirmos dele?
São questões que surgem a partir dessa pesquisa ancorada na clínica psicanalítica e
que permanecem, por ora, em aberto.
135
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