Inversão de papéis

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Inversão de papéis
Publicado no Jornal Cidade Viva em Outubro de 2008
INVERSÃO DE PAPÉIS
Quase todos querem ser pais. Pelo menos, quase todos o acabam por ser e, quando não o são,
é quase sempre por condicionalismos fisiológicos, genéticos ou de saúde em geral.
Com isto, torna-se importante pensar o que será ser “pai”, entendido para ambos os
progenitores.
Por definição, um pai é alguém que tem filhos. Compreende-se que este conceito reduz o
papel parental à condição biológica. Pai é também aquele que desempenha um papel parental,
ou seja, cuidador, ao longo da vida de alguém, ou seja, dar tudo o que um pai dá, menos os
genes.
Poderemos, porém, pensar se aqueles que se tornam pais o querem ser de facto, isto porque
sê-lo implicaria cuidar de alguém, e não o contrário.
Coloca-se a pergunta: para que servem os filhos? E ouvimos respostas diversas, nem sempre
assumidas pelos próprios com facilidade, não só perante os outros, mas também perante si
mesmos.
Os filhos são precisos para se conseguir uma integração no convencionalismo exigido pela
sociedade. São os conceitos de igualdade comparativa e de estatuto social que imperam.
Imaginemos agora alguém que, pela vida fora, se sentiu permanentemente inferiorizado e
incapaz de definir a sua utilidade para o mundo. Ter um filho é como sair a sorte grande, pela
possibilidade de provar todas as suas capacidades enquanto pessoa. É o pai que parece que
cuida demais. Enquanto pequeno, o filho recebe todas as atenções e cuidados de forma
exemplar, e tudo parece ajustado. Começando a crescer e a procurar naturalmente a sua
individualidade e autonomia, estas serão negadas pelo pai, que se demonstra rejeitado ou tido
como um inútil, pois a representação de si incidia unicamente na função parental e em nada
individual. Ao invés de um equilíbrio no investimento em si e na função parental, este pai só
consegue gostar de si se o filho se deixar cuidar por ele, porque somente assim prova a si
próprio que é capaz de fazer algo bem, ou seja, que tem potencialidades enquanto pessoa.
Outro exemplo é o pai que sente a vida vazia. Na prática, não tendo um filho para cuidar, não
tem nada para fazer ou, no caso de se sentir insatisfeito nas relações que estabeleça, a
ausência do filho implica solidão e tristeza, pelo que o filho é eleito como o cuidador afectivo.
Naturalmente, o filho perderá direitos de convívio com os amigos ou namorados, porque os
sentimentos do pai serão inferidos como os mais importantes de todos.
E, como as razões para se ter filhos são muitas, temos ainda aqueles que, enquanto pais,
repõem a justiça face às suas vivências do passado. Tendo crescido perante pais autoritários,
agressivos e castradores, agora podem assumir a posição de poder perante alguém pelo que,
estranhamente, impõem aos filhos igual sofrimento àquele que sentiram quando eram filhos
de alguém. Parecem depositar o alívio na consciência de que, assim, não serão os únicos a
viver tais experiências.
Dito isto, poderíamos ainda acrescentar os casos em que se aumenta o número de filhos para
se ver crescer um subsídio estatal qualquer, ou para que estes sirvam de mão-de-obra e
sustento financeiro da família.
Em conclusão, os filhos cuidam e narcisam os pais, suprimem-lhes necessidades afectivas que
não lhes pertencem, entre tantas outras funções. Não deveria ser ao contrário? Não estarão os
pais centrados no que necessitam, negligenciando as necessidades dos filhos? Não estarão
invertidos os papéis?...
Paula Barbosa
Psicóloga Clínica
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