“Quando os dias são maus” (Ef 5,16). Leitura

Transcrição

“Quando os dias são maus” (Ef 5,16). Leitura
«“Quando os dias são
maus” (Ef 5,16).
Leitura bíblica
sapiencial da crise»
Luciano Manicardi
Tradução: Rita Veiga
Fundação Betânia
2014
www.fundacao-betania.org
«“Quando os dias são maus” (Ef 5,16).
Leitura bíblica sapiencial da crise»
Luciano Manicardi, monge de Bose
Crise, termo ambivalente
O que queremos dizer quando falamos de crise? O que evoca a palavra “crise”?
Barbara Spinelli escreveu que “a palavra ‘crise’ está entre as mais tentaculares que
existem no vocabulário; mais do que uma palavra, é uma árvore com ramos sem fim” 1.
Cada palavra tem uma história que pode esclarecer-lhe o sentido, tem um passado que
pode fazer luz sobre o uso que dela fazemos hoje. A etimologia do termo “crise” remete
para o grego krísis, juízo, separação, crivo, escolha: uma crise passa pelo crivo, põe à
prova, examina minuciosamente. A noção de crise presente hoje nas ciências humanas
provém da Medicina. Para Hipócrates, a crise é o momento em que a doença se decide:
ou se dá um agravamento e mesmo um desenlace fatal ou há melhoras, recuperação e até
a cura. É, portanto, um momento crucial, de viragem. É certo que é um momento em que
a doença entra numa fase aguda, mas o resultado não é forçosamente negativo. No
decurso de uma doença podem até suceder-se mais crises.
Este conceito médico que fala de crise de um organismo vivo, de um corpo
humano, foi aplicado no âmbito social na época moderna, nos séculos XVII-XVIII, a
partir da compreensão de estarmos associados e de vivermos juntos, como corpo. A polis
é um corpo, a sociedade civil é um organismo vivo que conhece fases de bem-estar e
momentos de definhamento e declínio. Temos aqui uma primeira indicação importante,
seja no plano civil seja no da fé cristã. Falar de crise aplicada a uma sociedade ou a uma
igreja implica a afirmação de que a nossa sociedade é um corpo, não uma empresa, de
que a Igreja é um corpo, não uma máquina. A crise diz-nos algo de muito positivo: somos
um corpo, somos interdependentes, não podemos passar uns sem os outros.
1
Barbara Spinelli, «La crisi come occasione», in La Stampa, domingo, 7 Dezembro 2008.
2
A observação psicológica mostra que o crescimento humano supõe rupturas e
separações, portanto crises: a crise é vital, isto é, essencial para se crescer 2. Ou melhor,
podemos afirmar que a primeira crise, e a mais radical, que cada pessoa vive é o
nascimento: momento mais do que nenhum vital e mais do que nenhum crítico, doloroso,
traumático, perigoso (para aquele que vem ao mundo e para aquela que o dá à luz, sem
contar que o recém-nascido imporá uma reestruturação dos equilíbrios da família inteira).
A crise não é, portanto, um incidente desagradável, mas um momento necessário de
passagem no evoluir de uma pessoa. Assim, como não vem a propósito ter uma visão
puramente negativa, a questão perante a crise é antes de mais escutá-la, acolhê-la, deixarse interpelar, porque ela aparece, sobretudo segundo a Bíblia, como uma palavra a
decifrar. Em segundo lugar, o problema que a crise põe é como geri-la, que uso fazer dela,
ou talvez melhor, como consentir-lhe que actue em nós e sobre nós. Não se trata de fugirlhe ou de afastá-la, mas de elaborá-la. Se é certo que cada crise é uma crise de identidade,
então pode ser colhida e acolhida como apelo a repensar-se a si mesmo, a reestruturar os
seus próprios equilíbrios, a situar-se numa fase inédita da sua própria existência. E isto
vale também para um organismo comunitário: família, sociedade, igreja.
A crise como iniciação
Encarar com um novo olhar a realidade da crise, sem, bem entendido, retirar-lhe
a dramaticidade e sem esquecer que há crises diversas que dizem repeito a planos
diferentes (a economia e a política, a sociologia e a religião, a psicologia e a cultura),
pode ser importante para não perder a oportunidade que ela representa. Bem diz
Christiane Singer, referindo-se a crises existenciais pessoais, no seu ensaio sobre “o bom
uso das crises”: “Ao longo do caminho da minha vida adquiri a certeza de que as crises
acontecem para evitar o pior. Como explicar o que é o pior? O pior é ter atravessado a
vida sem naufrágios, isto é, ter ficado sempre à superfície das coisas, ter dançado no baile
das sombras, perdido na inconsistência, ter patinhado nos pântanos dos ‘diz-se’, das
aparências, dos lugares-comuns, de nunca ter caído, ido ao fundo numa dimensão outra e
profunda de si e das relações. À falta de mestres, na sociedade em que vivemos, são as
crises os grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos, que podem ajudar-nos a
2
Judith Viorst, Distacchi. Gli affetti, le illusioni, i legami e i sogni a cui tutti noi dobbiamo rinunciare per
crescere, Frassinelli, Milão, 1987.
3
entrar na outra dimensão, na profundidade que dá sentido à vida. Na nossa sociedade tudo
concorre para nos afastar do que é importante e central, como se houvesse um sistema de
arames farpados e de proibições para impedir a pessoa de aceder à sua própria
profundidade. […] Numa sociedade em que não são indicadas as vias para entrar na
profundidade, restam somente as crises para se poder derrubar estes muros que nos
cercam. A crise serve, de certo modo, como ariete para arrombar as portas desta fortaleza
em que estamos aprisionados”3.
As crises, portanto, funcionam, para começar, como sintoma, como alarme, que
nos leva a interrogarmo-nos: como é que chegámos a este ponto? Por que razão ficámos
cegos e surdos? Como construímos couraças que nos impediram de nos deixarmos tocar
pela realidade? Porque não agimos antes? Porque não soubemos discernir? Com
frequência, a crise é juízo sobre os egoísmos, sobre a irresponsabilidade, sobre a
inconsciência do nosso agir ou daqueles que nos precederam.
Por conseguinte, as crises funcionam como mestres, desempenham um papel
iniciático numa sociedade em que a iniciação desapareceu. Prossegue C. Singer: “Um
amigo antropólogo referiu-me estas palavras de um africano que lhe disse: ‘Mas, senhor,
nós não temos crises, temos as iniciações’”4. E as iniciações, que são ritualizações das
passagens da existência humana, têm sempre isto em comum, apesar da sua notável
diversidade e criatividade: põem o iniciado em contacto com a morte inculcando-lhe o
antigo princípio de “morre e transforma-te!”. A separação, mesmo que brusca ou
dolorosa, do filho da sua mãe, que segue um período também longo de segregação, de
“estar posto de parte” do iniciado (durante o qual pode mesmo conhecer o sepultamento
simbólico por baixo de ramos e folhas para simbolizar a sua morte), daí receber marcas
sangrentas no corpo (circuncisão, incisões…) e, finalmente, a integração no grupo social
e a passagem a um estádio ulterior da sua própria humanidade, são fases de um processo
de iniciação entre as populações aborígenes da Austrália através das quais um rapaz acede
à idade adulta e se insere na sociedade dos adultos5. A finalidade dos ritos de iniciação é
introduzir o iniciado na plenitude da condição humana: é a iniciação que confere ao
iniciado o seu status humano. E assim, por mais cruentos e espaventosos que possam
parecer estes ritos, “não serão mais cruéis que a ausência dos ritos” 6 que é própria das
Christiane Singer, Du bon usage des crises, Albin Michel, Paris 1996, pp. 41-42.
Idem, ibidem, p. 43.
5
Cf. Mircea Eliade, La nascita mistica. Riti e simboli d’iniziazione, Morcelliana, Bréscia 1988.
6
Christiane Singer, op. cit., p. 43.
3
4
4
nossas sociedades ocidentais. Entre nós falta esta transmissão de saber humano, esta arte
de introdução à vida e às suas fases, faltam trajectórias, faltam instituições e estruturas ao
serviço da aprendizagem da arte de viver, enfim, falta talvez o próprio tecido social que
consinta uma iniciação. Dado que atrás da crise económica há também uma crise ética e
cultural, esta crise das nossas sociedades encontra um aspecto relevante na ausência de
iniciações, na perda de contacto com a realidade e com o humano, que faz, ela sim, que a
educação se torne formação em técnicas, não iniciação ao sentido. Assim se exprimia há
quase 20 anos Pierre Harmel, então ministro da Educação e depois primeiro-ministro
belga: “Apercebemo-nos de que centrámos tudo no económico […] e não o suficiente na
preparação para a vida […] É paradoxal que os valores vitais sejam cada vez mais
reduzidos na Educação”7.
À luz de quanto ficou dito retirar-se-á uma possível grelha de leitura da crise que
a compreende da mesma forma que um rito de passagem. A crise pode assim desempenhar
um importante papel educativo: faz-nos sair do habitual, do tranquilizador e do repetitivo,
obriga-nos a tomar consciência da realidade e a sair das ilusões, obriga-nos a uma leitura
sincera e, se necessário, impiedosa de nós próprios e das ordens sociais, eclesiais,
económicas, éticas que adoptámos. Obriga-nos a repensar a nossa posição no mundo, sem
absolutizar a nossa crise, mas vendo-a ao lado das grandes crises endémicas; fome sede,
pobreza e miséria, doenças, de grande parte dos habitantes do planeta. Trata-se de ver a
crise caracterizada por três elementos, típicos da estrutura iniciática: a separação, o limiar
e a reintegração. Na crise é-se chamado a uma morte, a uma separação de uma fase
precedente a que se estava habituado (separação); vimos assim a encontrar-nos numa
situação inédita sentida como precária, instável, temível (limiar); mas que pode conduzir
a uma reconstrução, a uma nova adaptação, à criação de novos equilíbrios que consintam
uma renovada presença no mundo e na História (reintegração)8.
7
Pierre Harmel, in La libre Belgique, 22 Março 1991, p. 2.
O psicanalista junguiano Murray Stein mostrou a fecundidade da aplicação desta estrutura dos ritos de
iniciação à crise de superação da idade do meio: M. Stein, Nel mezzo della vita, Moretti & Vitali, Bérgamo
2004, pp. 34-35. Neste caso, trata-se de separação da atitude “adaptativa” que dominou a primeira parte da
vida do homem (a persona, “máscara”, no sentido junguiano), na qual este procurou afirmar-se a si mesmo
(o seu eu consciente, segundo Jung), descurando outros aspectos psicológicos que se viram assim
removidos (a sombra, sempre segundo Jung). Esta separação, esta perda da identidade precedente, situa o
homem numa condição de limiar (do latim limen, limiar, soleira), que é caracterizada pelo encontro com o
próprio inconsciente, por um sentido de identidade “em suspenso”, por vulnerabilidade, insegurança e
sentido de morte, e que pode levar a desembocar num renascimento. A reintegração é a saída positiva
deste percurso em que uma pessoa cria harmonia entre as polaridades que a habitam, sobretudo entre as
suas partes feminina e masculina, devolve a voz a tudo o que permanecia na sombra na primeira parte da
vida, alcança um pleno desenvolvimento do si mesmo, fazendo o itinerário da individualização (sempre em
8
5
Estas primeiras observações permitem-nos abandonar uma compreensão
unilateralmente negativa da crise e apreendê-la antes como oportunidade.
Crise e Palavra de Deus
Mas, para os cristãos, é necessário um exercício espiritual de discernimento para
apreender que coisa é uma crise em face da Palavra de Deus, do Evangelho, e para ler a
actual crise à luz da fé. Em primeiro lugar, note-se que, pelo testemunho bíblico, a própria
Palavra de Deus põe em crise, põe em discussão, não deixa intacto. A Carta aos Hebreus
diz que a Palavra de Deus é kritikòs (Hb 4,12): ela penetra até à profundidade do nosso
ser e diante dela ficamos nus, despidos. Somos então verdadeiros: reduzidos ao essencial
e o essencial tem sempre a ver com a nossa pobreza e com a nossa verdade. Desde o
jardim do “No princípio” (quando Deus disse a Adão: “Onde estás?”: Gn 3,9), a Palavra
de Deus põe em crise. O crente é aquele que se deixa pôr em crise pela Palavra de Deus,
que por ela se deixa interpelar, interrogar e julgar.
Ora, se olharmos o conjunto da Bíblia, vemos que é típico nela que a crise não
seja fruto de autoconsciência do indivíduo ou de uma comunidade que se sente
desconfortável, nem mesmo é devida à análise de especialistas que avaliam uma situação
como crítica, mas é revelada, compreendida e enfrentada a partir da Palavra de Deus, de
um verbum externum, muitas vezes da palavra profética. A própria Palavra de Deus,
provocando o impacto da vontade de Deus sobre a realidade humana e histórica, traz a
krisin, o juízo, sobre essa situação. E pode acontecer que uma situação que ninguém
percebia como de crise seja sentida como tal pela Palavra de Deus revelada pelo profeta.
A época de Jeroboão II – rei de Israel entre 783 e 743 – ia economicamente florescente e
decerto não era sentida como época de crise, mas nessa mesma altura a profecia de Amós
denunciou a injustiça social que tornava vã a prática cultual e religiosa. Neste caso, “a
crise aparece como desmascaramento”9. A Palavra de Deus vê a realidade de um outro
ângulo, de um ponto de vista diferente do dos homens. O profeta ousa este olhar e sofre
as consequências disso.
linguagem junguiana). Trata-se, na minha proposta, de aplicar este esquema também a nível social e
comunitário.
9
Daniele Garrone, «Categorie interpretative della crisi secondo la Bibbia», in Filosofia e Teologia 2
(2005), p. 276.
6
O testemunho bíblico no seu conjunto, sobretudo no Primeiro Testamento,
apresenta o caminho do povo da aliança como caminho de infidelidade humana a que
responde a fidelidade divina, como caminho marcado por rupturas interpretadas como
juízo de Deus e às quais se segue o convite à conversão e o anúncio do perdão da parte
do Deus misericordioso. Aquilo que é crise para o povo de Deus não pode ser determinado
simplesmente por parâmetros sociológicos ou económicos, mas pela santidade da Palavra
vivificada pelo Espírito. A Bíblia hebraica é em grande parte a história das crises de Israel,
a recolha dos testemunhos da Palavra que, em diversas formas e em diversas épocas, Deus
revelou ao seu povo na História para voltar a chamá-lo e corrigi-lo e dar-lhe a conhecer a
sua própria qualidade de misericordioso e capaz de perdão. A Bíblia como texto fundador
de Israel como povo de Deus é paradoxal, porque afirma que “Israel se funda, como
comunidade religiosa e política, não com base nos seus sucessos, mas partindo das crises
que o verbum externum denunciou”10. Implantada sobre a raiz santa de Israel, a Igreja,
que radica também as próprias Escrituras nas Escrituras de Israel, encontra na Bíblia um
paradigma para se ler na História face a Deus. E para ler-se teologicamente, não apenas
sociologicamente.
Podemos dizer que a Bíblia exprime uma “teologia da crise” 11, não só no sentido
de que, em boa parte, esta se forma naquela época pérsica e helenística que sucedeu à
crise da época do exílio na Babilónia, ao qual reage assumindo também a sua lição, mas
também no sentido de que ela apresenta as várias maneiras como a Palavra de Deus
denuncia a distância entre o povo de Israel e as exigências da Torah, entre o homem e as
instâncias do Evangelho, entre o mundo e o Reino de Deus. E isto é muito mais evidente
desde que Jesus de Nazaré, Palavra definitiva de Deus à humanidade, abriu uma crise
inaugurando o reinar de Deus na sua pessoa. Agora, o cristão tem um critério para decidir
de uma crise e para chamá-la assim: a distância entre o seu próprio agir e pensar e o agir
e pensar de Deus, a distância entre si e as exigências do Evangelho, a distância entre o
que vê no mundo e à sua volta e aquilo a que Deus destina o homem e o mundo. A
distância entre as vontades humanas, muitas vezes submetidas ao lucro e dominadas pelos
interesses pessoais e de grupo, e a vontade de Deus que é vontade de paz, reconhecimento,
fraternidade, solidariedade, justiça universal. Numa palavra, a distância entre a ordem
pessoal, eclesial, histórica e o Reino de Deus, isto é, um mundo em que Deus reine.
10
11
Idem, ibidem, p. 271.
Idem, ibidem, p. 277.
7
A crise hoje à luz da Bíblia
“Os dias são maus”
A Bíblia, tanto na literatura profética (Mq 2,3) como no Novo Testamento (Ef
5,16) fala de dias ou tempos maus para indicar tempos de crise. Escreve o autor da carta
aos Efésios: “Portanto, vede bem como procedeis: não como insensatos, mas como
sensatos, aproveitando o tempo, pois os dias são maus. Por isso mesmo, não vos torneis
néscios, mas tratai de compreender qual é a vontade do Senhor” (Ef 5,15-17). “Os dias
maus” é uma expressão metonímica que se pode explicar assim: nestes tempos, há muita
maldade, há uma presença difusa e arrogante do mal. A maldade exibe-se, já nem se
esconde, vem mesmo invocada nas palavras insensatas dos homens que tornam os dias
maus: são os dias em que dominam pessoas e grupos e lobbies declaradamente arrogantes,
maus e manipuladores. O termo “maus” (poneraì) indica ainda peso, dificuldade,
sofrimento: trata-se de tempos que fazem sofrer os crentes.
Agora, pela carta aos Efésios, não deriva daqui nenhum convite a fugir ou a
descomprometer-se, mas a empenhar-se andando contra a corrente, a empenhar-se
assumindo a forma e a mentalidade de quem resiste, do resistente. Já é tempo de se saber
declinar no hoje a fé como resistência, capacidade de dizer “não” para salvaguardar o
“sim” grande e não negociável ao Evangelho e aos direitos dos pobres. O tempo da crise
é também o tempo da acção responsável dos crentes que vêem os malvados em acção,
sabem dar o nome às obras dos malvados e sabem opor-lhes a sua resistência, isto é, a sua
acção responsável. Na passagem de Efésios figura por três vezes a oposição “não… mas”
(Ef 5,15.17.18) que indica a oposição do cristão à mundanidade, às maneiras da
mundanidade por mais que possam parecer atractivas. Há uma forma de vitória mundana
que, se assumida pela Igreja, se torna uma derrota irreparável. Ai de quem se deixar
impressionar ou intimidar pela loucura do mundo e pela loucura que entra e contagia a
Igreja; antes é necessário um esforço de discernimento para deixar-se guiar por aquilo
que agrada ao Senhor, pelo Evangelho. É necessário acima de tudo vigiar, estar atento,
lúcido, crítico.
De facto, diz Efésios, o tempo da crise é ocasião para aprender e manifestar a
sabedoria cristã. É tema destes versículos viver com sabedoria. Os dias maus são ocasião
para viver o kairòs, o momento presente, e vivê-lo manifestando a diferença cristã. Que
significa a expressão “aproveitar o tempo” ou, como por vezes é traduzida, “resgatar o
8
tempo”? Antes de mais significa que não temos outro tempo que não este, que este e não
outro é o tempo que nos foi dado para viver a nossa humanidade e a nossa fé. Trata-se,
portanto, de abandonar, de modo resoluto, responsável, a cultura do lamento, sempre
inferior, e mostrar que a maldade dos tempos não tem a última palavra, não lhe
contrapondo uma maldade de sinal contrário, mas uma práxis inspirada na diferença
cristã, no Evangelho, na vontade de Deus. De facto, mesmo nos momentos de crise,
manifesta-se “a vontade do Senhor” (Ef 5,17). Os dois possíveis significados do verbo
grego exagorázesthai, “aproveitar” e “resgatar” podem assim conviver. Trata-se de
aproveitar o hoje, o tempo presente, de aderir ao hoje para viver de modo evangélico
mesmo o momento em que a maldade vinga. E trata-se de resgatar o tempo, dando-lhe
um sentido positivo, acolhendo-o como ocasião de verdade e de discernimento da vontade
de Deus.
O Senhor fala raras vezes
A expressão, retirada de 1Sm 3,1, indica tempos em que não havia homens que
fizessem eco da Palavra de Deus. No episódio de 1Sm 3 (a vocação de Samuel), o
sacerdote Eli mostra que é não só cego, mas também um pouco surdo à Palavra de Deus
e, consequentemente, não dotado de discernimento. “O Senhor, naquele tempo, falava
raras vezes e as visões não eram frequentes” (1Sm 3,1). A raridade das visões indica que
falta quem saiba ver o mundo e os acontecimentos à luz da Palavra de Deus e exprimir
uma leitura de fé daquilo que se está a viver. Naqueles tempos o povo arriscava-se a
morrer por ausência de alimento espiritual: mesmo Amós denuncia o momento em que
no povo de Deus se difunde a fome não de pão, mas de escutar a Palavra de Deus (cf. Am
8,11-12). Os profetas muitas vezes o denunciam e até Jesus há-de salientar que os tempos
de crise são tempos em que o povo está sem pastores (Mc 6,34; cf. Nm 27,17; 1Rs 22,17;
Jdt 11,19). Falta no povo de Deus um guia, e isto é um elemento de grave confusão e
extravio do rebanho. Sim, nas situações de crise, a Bíblia tem a coragem de indicar o mal
interno no povo de Deus, na Igreja, e de não se limitar a responsabilizar situações
externas. E a Bíblia tem a coragem de denunciar a traição dos pastores. Ezequiel
denuncia os pastores que “se apascentam a si mesmos” (Ez 34,8), que se servem do
rebanho em vez de o servir; Miqueias atira-se aos “profetas que desencaminham o povo:
‘Quando têm alguma coisa para mastigar, anunciam a paz. Mas declaram guerra santa
àquele que não lhes põe nada na boca’” (Mq 3,5); Jeremias usa palavras de fogo contra
profetas e sacerdotes que “tratam com negligência as feridas do meu povo, exclamando:
9
‘Paz! Paz!’ Mas não há paz” (Jr 6,14). A simbólica médica, que vimos ser importante
para a noção de crise, que está presente e denuncia aqueles que, para não incomodar a
ordem estabelecida do poder, escondem a verdade e não falam de crise, antes dizem que
não há crise e que vai tudo bem, difundindo um optimismo que é só inconsciência e
irresponsablidade.
Aqui aparece a crise como responsabilidade. Ou seja, a palavra profética é capaz
de dizer que o mal é mal que as coisas vão mal sem adoçar ou banalizar a situação. Mas
a crise é também crise de liderança do povo: crise de credibilidade dos governantes, crise
de capacidade de chefia, também na Igreja. A corrupção dos governantes, as invectivas
contra a sua vida luxuosa (“‘Derrubarei a residência de Inverno e a residência de Verão.
Os palácios de marfim serão destruídos, as grandes casas serão arruinadas’ – oráculo do
Senhor”: Am 3,15), as palavras ferozes e satíricas contra os hábitos dissolutos dos
governantes (“Deitados em leitos de marfim, estendidos indolentemente nos seus divãs,
comem os melhores cordeiros do rebanho […]. Folgam ao som da harpa, e inventam,
como David, instrumentos de música. […] perfumam-se com óleos preciosos, sem se
compadecerem da ruína de José”: Am 6,4-6), são o pão nosso de cada dia dos profetas
chamados a preocupar-se, pelo contrário, com a ruína do povo, com a crise que está a
devastar não só as estruturas sociais, mas também as consciências (cf. ainda: Is 56,1057,2; Jr 23,1; 50,6; Ez 34,1-31; Zc 10,3; 11,5.16.17). O profeta autêntico é precisamente
aquele que sabe ver e denunciar o trágico da existência, na medida em que é exactamente
a recusa de o ver que conduz à catástrofe.
Na crise a palavra profética
A experiência profética mostra, acima de tudo, a essencialidade da palavra
profética que intervém nos momentos críticos para despertar as consciências dos
membros do povo de Deus e lhes revelar o que está acontecer à frente dos seus olhos e
pelo qual eles próprios estão a tornar-se responsáveis. Sim, na crise o crente é chamado a
ser um resistente, alguém que luta na provação, como Job, alguém que deve enfrentar a
oposição dos poderosos e dos sacerdotes da corte, como Jeremias, mas também a
encontrar a coragem da palavra. Sem a palavra profética, sem a palavra que anuncia o
juízo de Deus, não se compreende a crise em todo o seu alcance e, assim, não é superada.
É certo que, na crise, perante as dificuldades, quando os maus prosperam, quando os dias
são maus, a tentação do crente é “falar como eles”, assumir os modos vencedores dos
arrogantes, como acontece com o orante do Salmo 73 que, depois de ter confessado a sua
10
inveja pelos ímpios que prosperam, são ricos, poderosos, têm tudo, afirma: “Se eu
pensasse: ‘Vou falar como eles’, atraiçoaria a geração dos teus filhos” (Sl 73,15). Sim, os
tempos difíceis causam também a crise do crente, que pode ser expressa nestes termos: e
se fosse tudo inútil? Se eu estivesse enganado? Se não valesse a pena? O que ganho eu
com isto? Não é melhor adequar-me e conformar-me ao modo de viver dos vencedores?
O salmista do Sl 73 pondera: “De nada me serve ter um coração puro e conservar
inocentes as minhas mãos!” (v. 13). A crise é uma prova da perseverança, da fidelidade e
da paciência, também no sentido da capacidade de sofrimento, do crente.
E depois a crise requer a coragem da palavra, a parrésia, a franqueza de quem se
expõe, de quem finalmente ousa, de quem não se esconde por trás de demasiada
prudência, mas diz a verdade e, se necessário, grita-a. Gostaria de citar, como exemplo
de palavra corajosa em momentos críticos, o testemunho que Roberto Saviano oferece a
propósito de don Peppino Diana12, homem que ousou a palavra evangélica em situação
de crise verdadeiramente dramática, ou melhor, trágica. Escreve Saviano: “Pensava na
batalha de don Peppino, na prioridade da palavra. Como era na verdade incrivelmente
nova e poderosa a vontade de colocar a palavra no centro de uma luta contra os
mecanismos de poder. Palavras frente a betoneiras e espingardas. E não metaforicamente.
Na realidade. Ali a denunciar, a testemunhar, a existir. A palavra como sua única
armadura: pronunciar-se. Uma palavra que é sentinela, testemunha: verdadeira com a
condição de não desistir mais de apontar. Uma palavra orientada no sentido de que só se
pode eliminá-la matando-a”13. Don Peppino Diana foi morto a 19 de Março (dia do seu
onomástico) de 1994.
Se nos momentos difíceis o medo abre caminho, é necessário sair do medo que
paralisa a acção e silencia as palavras para transformar o medo em virtude fazendo-a
evoluir para responsabilidade. Talvez tenha chegado a altura de reabilitar os profetas da
12
Giuseppe Diana, também conhecido como Peppe Diana ou Peppino Diana (1958-1994), foi um padre e
escritor italiano que foi assassinado pela Camorra, a máfia napolitana, à conta da sua denúncia da acção
da organização criminosa. (N. da T.)
13
Roberto Saviano, Gomorra, Mondadori, Milão 2006, p. 258. Escreve ainda Saviano: “Don Pepino abriu
um caminho na crosta da palavra, extraiu dos buracos da sintaxe aquele poder que a palavra pública,
pronunciada claramente, podia ainda conceder. Não teve a preguiça intelectual de quem crê que a palavra
quase tinha esgotado todos os seus recursos, que apenas consegue preencher os espaços entre um tímpano
e o outro. A palavra como concretização, matéria agregada de átomos para intervir nos mecanismos das
coisas, como argamassa para construir, como ponta de picareta. Don Peppino procurava uma palavra
necessária como um balde de água sobre os olhares turvos. O calar nestas terras não é a banal cumplicidade
silenciosa que se representa de boné na mão e olhar baixo. Tem muito mais a ver com o “não tenho nada a
ver com isso”. A atitude habitual nestes lugares, e não só, uma escolha de fechamento que é o verdadeiro
voto dado ao estado das coisas. A palavra torna-se um grito. Controlado e lançado, alto e bom som, contra
um vidro à prova de bala: com vontade de o estilhaçar” (ibidem, p. 244).
11
desgraça, ou melhor, aqueles que sabem ler os riscos de um estilo de vida, de uma
economia, de uma política, de uma relação com o ambiente, que podem conduzir a
desastres para as gerações futuras e para o mundo, além de agravar a diferença já existente
entre países ricos e países pobres. Pelo menos, o profeta que avisa dos riscos dos nossos
comportamentos actuais pode contar com o facto de que aos homens, pela sua natureza,
não basta saber para crer. Todos sabemos que havemos de morrer, mas normalmente
comportamo-nos como se fôssemos imortais: “Ninguém acredita na própria morte”,
escreve lapidarmente Freud14. Não acreditamos nas catástrofes ambientais senão quando
acontecem, não acreditamos na nossa morte senão quando a sentimos próxima.
Ao mesmo tempo, a palavra profética no tempo da crise não é apenas uma palavra
de denúncia e que anuncia desgraça, mas a que mostra um futuro e acredita nele e o torna
possível. Jonas, anunciando, contra a sua própria vontade, a desgraça a Nínive, ajudou à
conversão e à mudança do futuro já traçado pela cidade pagã. Eis a palavra que é precisa
hoje: uma palavra que vê a crise e os motivos de medo, mas que faz evoluir o medo para
esperança e confiança. Há que desenvolver e exercitar a capacidade da imaginação:
apresentar alternativas, criar horizontes, imaginar possíveis. Não esqueçamos que “a
Bíblia é um livro que imagina a verdade”15, muito mais do que a expressa em afirmações
dogmáticas e abstractas. Esta palavra simultaneamente lúcida e portadora de esperança,
desencantada e aberta ao futuro, crítica e vital, que vê o real e imagina o futuro, é a palavra
paradoxal que pode fazer eco hoje da palavra paradoxal que é o Evangelho: aquele
Evangelho que é paradoxo do princípio ao fim, uma vez que anuncia que os últimos serão
os primeiros, que os aflitos são felizes, que a morte será vencida.
A conversão
Esta palavra profética faz apelo à liberdade do homem e põe em acção a sua
capacidade de mudança e de metamorfose. Esta palavra dá voz à crise reclamando
conversão ao homem, indicando-lhe que chegou o momento de uma mudança de vida, de
uma reviravolta. Isto é constante nos profetas, pense-se em particular em Jeremias, mas
14
Sigmund Freud, Considerazioni attuali sulla guerra e sulla morte, Edizioni Studio Tesi, Pordenone 1991,
pp. 29-30: “Se nos ouvirmos, estávamos obviamente prontos a defender que a morte é a saída necessária
de toda a existência […] que a morte é um facto natural, inegável e inevitável. Na realidade, porém,
comportamo-nos por norma como se as coisas fossem completamente diferentes. Mostrámos uma clara
tendência para pôr de parte a morte, para eliminá-la da vida. Procurámos abafar-lhe a voz […] No fundo,
ninguém acredita na própria morte, ou, o que vem a dar no mesmo, cada um de nós está inconscientemente
convencido da sua própria imortalidade.”
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“Introduzione”, in Le immagini bibliche. Simboli, figure retoriche e temi letterari della Bibbia (ed. L.
Ryken, J. C. Wilhoit, T. Longman III), San Paolo, Cinisello Balsamo (Milão) 2006, p. XXI.
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isto é central mesmo na pregação de Jesus de Nazaré. A crise que é recebida como apelo
a reencontrar a verdade de si próprio diante de Deus. “Convertei-vos, filhos rebeldes”,
diz Deus, segundo Jeremias, “e Eu vos curarei da vossa rebeldia” (Jr 3,22): a crise
encontrará uma saída positiva com a conversão, ou seja, com a reorientação concreta por
cada um do seu próprio caminho existencial. E conversão significa pôr-se sob a alçada do
Evangelho e das suas exigências radicais e regressar ao existencial evangélico: deste
modo, a crise, por meio do seu crivo e do seu juízo, pode orientar-nos para o essencial. O
essencial expresso claramente por Jeremias: “Se te queres converter, Israel, volta para
mim” (Jr 4,1).
Mas é preciso dizer também que hoje esta conversão não pode esgotar-se num
sentimento do coração, mas deve tornar-se testemunho, prática, mudança do estilo de
vida. A diferença cristã deve manifestar-se em comunidades alternativas, nas quais se
vivam valores fortes e contracorrente: solidariedade, serviço, perdão, paciência, espera
dos tempos do outro. E deve, mais do que nunca, tornar-se forma de vida inspirada na
sobriedade e na solidariedade. Trata-se de passar daquela cultura conscientemente
antiascética e consumista típica do Ocidente para uma cultura ascética e inspirada na
sobriedade, na capacidade de escolha perene do essencial, sobretudo capacidade de
considerar o outro e sobretudo o mais pequeno e necessitado. A crise pode deste modo
ser positivamente elaborada e tornar-se factor de mudança evangélica da comunidade
cristã. De resto, este é o caminho que vem anunciado nas sete mensagens às igrejas do
Apocalipse (Ap 2-3): um caminho em que cada igreja é posta em crise por Cristo
ressuscitado que se apresenta e fala a cada igreja esprimindo um juízo sobre ela e um
convite à conversão. E fazer este caminho exige o reconhecimento dos próprios pecados,
encontrar a misericórdia do Senhor e fazer a experiência do seu perdão, vendo assim
renovada a própria vocação. Estas categorias – juízo, perdão, vocação – enunciam a crise
ao nível bíblico. E isto leva-nos a perguntarmo-nos como último passo do nosso itinerário:
a crise é um fim ou um início?
Crise: fim ou início?
Ligada como está à Palavra de Deus, ao verbum externum que a revela, a crise,
biblicamente, prende-se com o chamamento que vem de Deus, portanto, com o início da
história que o Senhor quer fazer com o homem, mas está também presente em cada
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obstáculo e em cada vertente desta história na qual é dos “fins” que podem brotar
mudanças, renovações e tranformações. A vocação de Pedro, segundo Lucas (Lc 5,1-11),
é uma crise em que Pedro faz confiança na palavra (“porque Tu o dizes, lançarei as redes”:
Lc 5,5) do Senhor (“Senhor”: Lc 5,8) e, no momento da maior proximidade e
compreensão de quem era para ele Jesus de Nazaré, é revelada a sua distância de Jesus
(“Afasta-te de mim”: Lc 5,8) e o seu ser pecador (“sou um homem pecador”: Lc 5,8). A
vocação é início e crise. É início porque é crise. Mais adiante no Evangelho e no seu
seguimento pessoal de Jesus, Pedro põe em crise a sua vocação, põe em dúvida a crise
inicial e originadora. Ele renega por três vezes Jesus, e então, anota Lucas, “o Senhor”
(Lc 22,61) olhou-o e ele recordou-se das palavras que o Senhor lhe tinha dito (cf. Lc
22,61), e Pedro reconhece a sua distância do Senhor (“vindo para fora”: Lc 22,62) e o seu
ser pecador (“chorou amargamente”: Lc 22,62). A crise da vocação torna-se ocasião de
renovação do chamamento inicial. Enquanto é início, a crise é fim, e enquanto é fim, a
crise é início.
Claude Monnier desenvolveu grosso modo esta ideia afirmando que a crise é um
ciclo que se desenrola através desta fases: crise, reorganização, consolidação,
estabilidade, mineralização, crise. Expliquemos: a crise, que é ruptura e desordem, faz
nascer alguma coisa de novo, boa ou má que seja. Este novum estabiliza-se,
consequentemente chega a endurecer, a mineralizar-se até que já não consegue aguentar
adaptações às exigências sempre em mudança dos tempos. Quando a tensão entre estas
exigências e a ordem mineralizada se torna demasiado grande, dá-se a fractura, a crise, e
o ciclo recomeça. Escreve Claude Monnier: “Esta concatenação verifica-se tanto na
geologia do planeta como na história dos povos, das instituições, das empresas e, por fim,
das nossas vidas individuais”16.
Conclusão
“Não desperdicem as crises”, poderia ser a recomendação que nasce da nossa
exposição. Perante todas as crises, o risco que corremos facilmente é negar ou remover,
ou fugir e evadir-se, ou empenhar-se em tapar a brecha, ou em mudar apenas à superfície
e não a substância, o fundo das coisas, ou em tentar consertar aquilo que já não tem
conserto. O risco é que se combatam batalhas de retaguarda por medo. Mas decerto, à luz
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Claude Monnier, “Ne gaspillez pas les crises”, in Le Temps stratégique, Fevereiro 1991, p. 7.
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do que foi dito pode-se ousar também um olhar diferente sobre a crise. A crise é ocasião
de inteligência (o homem que não tem alguma crise não está capaz de julgar nada” 17) e
de acções responsáveis. A crise solicita e espera a nossa responsabilidade. Cabe-nos a nós
a resposta. Nisto a crise julga-nos. Ou seja, como conclui no seu lúcido artigo Barbara
Spinelli: “Crise é submeter-se ao juízo, ao processo. Está na hora de o processo
começar”18.
CARITAS AMBROSIANA
“LA CARITAS AL TEMPO DELLA CRISI”
Convegno diocesano delle Caritas decanali
Triuggio – Villa Sacro Cuore
12 settembre 2009
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18
Johann Heinrich Zedler no Universal Lexicon de 1737, citado por Barbara Spinelli, art.cit.
Barbara Spinelli, art. cit.
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