Política e moral

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Política e moral
Política e moral
O CONCEITO DE POLÍTICA
O significado clássico e moderno de política
Derivado do adjetivo de pôlis (politikós), significando tudo aquilo que se refere à
cidade, e portanto ao cidadão, civil, público e também sociável e social, o termo
"política" foi transmitido por influência da grande obra de Aristóteles, intitulada
Política, que deve ser considerada o primeiro tratado sobre a natureza, as funções, as
divisões do Estado, e sobre as várias formas de governo, predominantemente no
significado de arte ou ciência do governo, isto é, de reflexão, não importa se com
intenções meramente descritivas ou também prescritivas (mas os dois aspectos são de
difícil distinção), sobre as coisas da cidade. Ocorre, assim, desde a origem, uma
transposição de significado do conjunto de coisas qualificadas em um certo modo (ou
seja, com um adjetivo qualificativo como "político") para a forma de saber mais ou
menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas: uma transposição não diferente
daquela que deu origem a termos tais como física, estética, economia, ética e, por
último, cibernética. Durante séculos, o termo "política" foi empregado
predominantemente para indicar obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividade
humana que de algum modo faz referência às coisas do Estado: Politica methodice
digesta, só para dar um célebre exemplo, é o título da obra através da qual Johannes
Althusius (1603) expôs uma teoria da "consociatio publica" (o Estado no sentido
moderno da palavra), compreendendo em seu seio várias formas de "consociatíones"
menores.
Na era moderna, o termo perdeu o seu significado original, tendo sido paulatinamente
substituído por outras expressões tais como "ciência do Estado", "doutrina do Estado",
"ciência política", "filosofia política" etc., para enfim ser habitualmente empregado para
indicar a atividade ou o conjunto de atividades que têm de algum modo, como termo de
referência, a pôiis, isto é, o Estado. Dessa atividade a pólis ora é o sujeito, donde
pertencem à esfera da política atos como o de comandar (ou proibir) algo, com efeitos
vinculantes para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um
domínio exclusivo sobre um determinado território, o de legislar com normas válidas
erga omnes, o de extrair e distribuir recursos de um setor para outro da sociedade e
assim por diante; ora objeto, donde pertencem à esfera da política ações tais como
conquistar, manter, defender, ampliar, reforçar, abater, derrubar o poder estatal etc.
Prova disso é que obras que continuam a tradição do tratado aristotélico recebem por
título, no século XIX, Filosofia do direito (Hegel, 1821) Sistema da ciência do Estado
(Lorenzvon Stein, 1852-56),elementos de ciência política (Mosca, 1896), Doutrina geral
do Estado(Georg Jellínek, 1900). Conserva em parte o significado tradicional a pequena
obra de Croce, Elementi di politica (Elementos de política) [1925], na qual "política"
conserva o significado de reflexão sobre a atividade política, e, portanto, está no lugar
de "elementos de filosofia política". Prova ulterior é aquela que se pode inferir do
costume, que se impôs em todas as línguas mais difundidas, de chamar de história das
doutrinas, ou das idéias políticas, ou também, de modo mais geral, do pensamento
político, a história que, se houvesse permanecido invariado o significado que nos
chegou dos clássicos, deveria ser denominada história da política, por analogia com
outras expressões tais como história da física, ou da estética, ou da ética: costume
também acatado por Croce, o qual, na obra citada, intitula Per la storia della filosofia
della politica [Pela história da filosofia da política] o capítulo dedicado a um breve
excurso histórico das doutrinas políticas modernas.
A tipologia clássica das formas de poder
O conceito de política, entendida como forma de atividade ou práxis humana, está
estreitamente ligado ao conceito de poder. O poder foi definido tradicionalmente como
"consistente nos meios para se obter alguma vantagem" [Hobbes]1 ou, de modo análogo,
como "o conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados" (Russell).2
Sendo um desses meios o domínio sobre outros homens (além do domínio sobre a
natureza), o poder é definido ora como uma relação entre dois sujeitos, na qual um
impõe ao outro a própria vontade, determinando-o seu, malgrado o comportamento: mas
como o domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas meio para se
obter "alguma vantagem", ou, mais exatamente, "os efeitos desejados", de modo não
distinto do domínio sobre a natureza, a definição de poder como tipo de relação entre
sujeitos deve ser integrada à definição do poder como a posse dos meios (dos quais os
dois principais são o domínio sobre os outros homens e o domínio sobre a natureza) que
permitem obter, exatamente, "alguma vantagem", ou os "efeitos desejados". O poder
político pertence à categoria do poder de um homem sobre outro homem (não do poder
do homem sobre a natureza). Esta relação de poder é expressa de mil maneiras, nas
quais se reconhecem expressões típicas da linguagem política: como relação entre
governantes e governados, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos, entre
comando e obediência etc.
Há várias formas de poder do homem sobre o homem: o poder político é apenas uma
delas. Na tradição clássica, que remonta especificamente a Aristóteles, eram
consideradas sobretudo três formas de poder: o poder paterno, o poder despótico e o
poder político. Os critérios de diferenciação foram, nos diferentes períodos, distintos.
Em Aristóteles, vislumbra-se uma distinção com base no interesse daquele em favor do
qual é exercido o poder: o poder paterno é exercido no interesse dos filhos, o despótico,
no interesse do senhor, o político, no interesse de quem governa e de quem é governado
(contudo, somente nas formas corretas de governo, uma vez que as formas corruptas são
diferenciadas por sua vez exatamente por ser o poder exercido no interesse do
governante). Mas o critério que acabou afinal prevalecendo na tratadística dos
jusnaturalistas foi aquele do fundamento ou do princípio de legitimação (que se
encontra formulado com clareza no capítulo XV do Segundo tratado sobre o governo
civil, de Locke): o fundamento do poder paterno é a natureza, do poder despótico, o
castigo por um delito cometido (a única hipótese neste caso é aquela do prisioneiro de
guerra que perdeu uma guerra injusta), do poder civil, o consenso. A esses três motivos
de justificação do poder correspondem as três expressões clássicas do fundamento da
obrigação: ex natura, ex delicio, ex contractu. Nenhum dos dois critérios, contudo,
permite individuar o caráter específico do poder político. De fato, que o poder político
se caracterize, em comparação com o paterno e o despótico, por se voltar para os
interesses dos governantes e dos governados ou por se fundar sobre o consenso, é um
1
Cf. 1H. HOBBES. Leviatã, cap. X
B. RUSSELL, Power. A New Social Analysis, Allen & Unwin, Londres, 1938 (ed, it.: Il potere. Una
nuova 1161analisi sociale, Feltrinelli, Milão, 1976/4).
2
caráter distintivo não de qualquer governo, mas apenas do bom governo: não é uma
conotação da relação política enquanto tal, mas da relação política correspondente ao
governo como deveria ser. Na verdade, os escritores políticos sempre reconheceram
tanto governos paternalistas quanto governos despóticos, ou seja, governos nos quais a
relação entre soberano e súditos é aproximada ora da relação entre pai e filhos, ora da
relação entre senhor e escravos, os quais não são de fato menos governos do que aqueles
que agem pelo bem público e se fundam sobre o consenso.
A tipologia moderna das formas de poder
Ao objetivo de encontrar o elemento específico do poder político, parece mais
conveniente o critério de classificação das várias formas de poder que se funda sobre os
meios dos quais se serve o sujeito ativo da relação para condicionar o comportamento
do sujeito passivo. Com base neste critério, podem-se distinguir três grandes tipos no
âmbito do conceito latíssimo de poder. Esses tipos são: o poder econômico, o poder
ideológico e o poder político. O primeiro é aquele que se vale da posse de certos bens
necessários, ou assim considerados em uma situação de escassez, para induzir aqueles
que não os possuem a ter uma certa conduta, consistente principalmente na execução de
um certo tipo de trabalho. Na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de
poder por parte daqueles que os possuem em relação àqueles que não os possuem: o
poder do chefe de uma empresa deriva da possibilidade que a posse ou a disponibilidade
dos meios de produção lhe dá de obter a venda da força-trabalho em troca de um salário.
Em geral, qualquer um que possua abundância de bens é capaz de condicionar o
comportamento de quem se encontra em condições de penúria, através da promessa e
atribuição de compensações. O poder ideológico funda-se sobre a influência que as
idéias formuladas de um determinado modo, emitidas em determinadas circunstâncias,
por uma pessoa investida de uma determinada autoridade, difundidas através de
determinados procedimentos, têm sobre a conduta dos consociados: desse tipo de
condicionamento nasce a importância social em cada grupo organizado daqueles que
sabem, dos sapientes, sejam eles os sacerdotes das sociedades arcaicas, sejam eles os
intelectuais ou os cientistas das sociedades evoluídas, porque através deles, e dos
valores que eles difundem, ou dos conhecimentos que eles emanam, cumpre-se o
processo de socialização necessário à coesão e integração do grupo. O poder político,
enfim, funda-se sobre a posse dos instrumentos através dos quais se exerce a força física
(armas de todo tipo e grau): e o poder coativo no sentido mais estrito da palavra. Todas
as três formas de poder instituem e mantêm uma sociedade de desiguais, isto é, dividida
entre ricos e pobres, com base no primeiro, entre sapientes e ignorantes, com base no
segundo, entre fortes e fracos, com base ao terceiro: genericamente, entre superiores e
inferiores.
Enquanto poder cujo meio específico é a força - entenda-se, como veremos adiante, o
uso exclusivo da força -, que é o meio desde sempre mais eficaz para condicionar os
comportamentos, o poder político é em qualquer sociedade de desiguais o poder
supremo, isto é, o poder ao qual todos os outros estão de algum modo subordinados: o
poder coativo de fato é aquele ao qual recorre qualquer grupo social (a classe dominante
de qualquer grupo social), em última instância, ou como extrema ratio, para se defender
dos ataques externos ou para impedir, com a desagregação do grupo, a própria
eliminação. Nas relações entre os membros de um mesmo grupo social, não obstante o
estado de su¬bordinação que a expropriação dos meios de produção cria nos
expro¬priados em relação aos expropriadores, não obstante a adesão passiva aos valores
de grupo por parte da maioria dos destinatários das mensagens ideológicas emitidas pela
classe dominante, apenas o emprego da força física serve, ainda que apenas em casos
extremos, para impedir a insubordinação e a desobediência dos submetidos, como a
experiência histórica prova Com abundantes exemplos. Nas relações entre grupos
sociais distintos, não obstante a importância que possam ter a ameaça ou a execução de
sanções econômicas para induzir o grupo adversário a desistir de um certo
comportamento (nas relações intergrupo tem menos relevância o condicionamento de
natureza ideológica), o instrumento decisivo para impor a própria vontade é o uso da
força, a guerra .
Essa distinção entre os principais tipos de poder social pode ser novamente encontrada,
embora expressa de diferentes maneiras, na maioria das teorias sociais contemporâneas,
nas quais o sistema social em seu todo aparece direta ou indiretamente articulado em
três subsistemas principais, que são a organização das forças produtivas, a organização
do consenso, a organização da coação. Também a teoria marxiana pode ser interpretada
do seguinte modo: a base real, ou estrutura, compreende o sistema econômico; a
superestrutura, cindindo-se em dois momentos distintos, compreende o sistema
ideológico e o sistema mais propriamente jurídico-político. Gramsci distingue
claramente, na esfera superestrutural, o momento do consenso (que ele chama de
sociedade civil) e o momento do domínio (ao qual denomina sociedade política ou
Estado). Durante séculos os escritores políticos distinguiram o poder espiritual (aquele
que hoje chamaríamos de ideológico) do poder temporal, e sempre interpretaram o
poder temporal como constituído da união do dominium (que hoje chamaríamos de
poder econômico) e do imperium( ao que hoje chamaríamos poder mais propriamente
político). Tanto na dicotomia tradicional (poder espiritual e poder temporal) quanto na
dicotomia marxiana (estrutura e superestrutura) encontramos as três formas de poder,
sempre que se interprete corretamente o segundo termo, em ambos os casos, como
sendo composto de dois momentos. A diferença está no fato de que na teoria tradicional
o momento principal é o ideológico, no sentido de que o poder econômico-político é
concebido como dependente direta ou indiretamente do poder espiritual, enquanto na
teoria marxiana o momento principal é o poder econômico, no sentido de que o poder
ideológico e o poder político refletem mais ou menos imediatamente a estrutura das
relações de produção.
O poder político
Que a possibilidade de recorrer à força seja o elemento que distingue o poder político
das outras formas de poder não significa que o poder político se resuma ao uso da força:
o uso da força é uma condição necessária, mas não suficiente para a existência do poder
político. Nem todo grupo social com condições de usar, até mesmo com certa
continuidade, a força (uma associação de delinqüentes, um bando de piratas, um grupo
subversivo etc.) exerce um poder político. O que caracteriza o poder político é a
exclusividade do uso da força em relação a todos os grupos que agem em um
determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se
desenvolve, em toda sociedade organizada, na direção da monopolização da posse e do
uso dos meios com os quais é possível exercer a coação física. Esse processo de
monopolização caminha pari passu com o processo de criminalização e penalização de
todos os atos de violência que não forem cumpridos por pessoas autorizadas pelos
detentores e beneficiários desse monopólio.
Na hipótese hobbesiana, que está no fundamento da teoria moderna do Estado, a
passagem do estado de natureza para o Estado civil- ou da anarquia para a arquia, do
estado apolítico para o Estado político - ocorre quando os indivíduos renunciam ao
direito de usar cada qual a própria força que os torna iguais no estado de natureza para
depositá-lo nas mãos de uma única pessoa ou de um único corpo que de agora em diante
será o único autorizado a usar a força no interesse deles.
Esta hipótese abstrata adquire profundidade histórica na teoria do Estado de Marx e de
Engels, segundo a qual as instituições políticas em uma sociedade dividida em classes
antagônicas têm por principal função permitir que a classe dominante mantenha o
próprio domínio, objetivo que não pode ser alcançado, dado o antagonismo de classe,
senão mediante a organização sistemática e eficaz da força monopolizada (e é por isso
que cada Estado é, e não pode deixar de ser, uma ditadura). Neste sentido, tornou-se já
clássica a definição de Max Weber: "Por Estado deve-se entender uma empresa
institucional de caráter político na qual - e na medida em que - o aparato administrativo
leva adiante com sucesso uma pretensão de monopólio da coerção física legítima, tendo
em vista a aplicação das disposições”3 Esta definição já se tornou quase lugar-comum
na ciência política contemporânea. Em um dos dois manuais de ciência política mais
conceituados, G. A. Almond e G. B. Powell escrevem: "Concordamos com Max Weber
quanto ao fato de que a força física legítima é o fio condutor da ação do sistema
político, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importância e a sua
coerência como sistema. As autoridades políticas, e apenas elas, têm o direito
predominantemente aceito de usar a coerção e de exigir obediência com base nela (..).
Quando falamos de sistema político, incluímos todas as interações relativas ao uso ou à
ameaça do uso da coerção física legítima".4 A supremacia da força física como
instrumento de poder sobre todas as outras formas de poder (entre as quais as duas
principais, além da força física, são o domínio sobre os bens, que dá lugar ao poder
econômico, e o domínio sobre as idéias, que dá lugar ao poder ideológico) pode ser
demonstrada se considerarmos que, por mais que na maioria dos Estados históricos o
monopólio do poder coativo tenha buscado e encontrado a própria sustentação na
imposição das idéias "(as idéias dominantes", segundo conhecida frase de Marx, "são as
idéias da classe dominante"), dos deuses pátrios à religião civil, do Estado confessional
à religião de Estado, e na concentração e direcionamento das atividades econômicas
principais, há contudo grupos políticos organizados que puderam consentir na
desmonopolização do poder ideológico e do poder econômico (disso é exemplo o
Estado liberal-democrático caracterizado pela liberdade do dissenso, embora dentro de
certos limites, e pela pluralidade dos centros de poder econômico). Mas não há grupo
social organizado que tenha até agora podido consentir na desmonopolização do poder
coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal,
constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da história, no reino sem tempo da
utopia.
3
M. WEBER, Wirtschaft und Gesellschaft, organizado por J. Winckelmann, Mohr, Tübingen, 1976/5,
vol. I, p, 29 (ed. it.: Economia e società, organizado por P. Rossi, Edizioni di Comunità, 2 vols., Milão,
1974/3, nova ed. em 5 vols., vol, I, p. 53).
4
G. A. ALMOND, G. B. POWELL, Comparative Politics. A DevelopmentalApproach, Líttle, Brown,
Boston, 1966 (ed. it.: Politica comparata, iI Mulino, Bolonha, 1970, p. 55. [Existe uma nova edição
modificada: Comparative Politics. System, Process, and Policy, Little, Brown & Co., Boston, 1978 (ed.
it.: Politicacomparata. Sistema, processi e politiche, il Mulino, Bolonha, 1988. A passagem corresponde
àquela citada, em Diversa 1165 Trad., encontra-se na p. 27)].
Algumas características habitualmente atribuídas ao poder político - e que o diferenciam
de qualquer outra forma de poder - são conseqüência direta da monopolização da força
no âmbito de um determinado território em relação a um determinado grupo social. São
elas: a exclusividade, a universalidade e a inclusividade. Por exclusividade entende-se a
tendência que os detentores do poder político manifestam de não permitir, no seu
âmbito de domínio, a formação de grupos armados independentes, e de subjugar, ou
desbaratar, aqueles que forem se formando, além de manter sob vigilância as
infiltrações, as ingerências ou as agressões de grupos políticos externos. Esta
característica distingue o grupo político organizado da "societas" de "latrones" (o
"latrocinium" do qual falava santo Agostinho). Por universalidade entende-se a
capacidade que têm os detentores do poder político, e apenas eles, de tomar decisões
legítimas e efetivamente operantes para toda a comunidade com relação à distribuição e
destinação dos recursos (não apenas econômicos). Por inclusividade entende-se a
possibilidade de intervir imperativamente em cada possível esfera de atividade dos
membros do grupo, encaminhando-os para um fim desejado ou distraindo-os de um fim
não-desejado através do instrumento da ordem jurídica, isto é, de um conjunto de
normas primárias voltadas para os membros do grupo e de normas secundárias voltadas
para os funcionários especializados, autorizados a intervir no caso de violação das
primeiras. Isto não significa que o poder político não imponha limites a si mesmo. Mas
são limites que variam de uma formação política para outra: um Estado teocrático
estende o próprio poder à esfera religiosa, enquanto um Estado laico se rende diante
dela; assim também, um Estado coletivista estende o próprio poder à esfera econômica,
enquanto o Estado liberal clássico dela se afasta. O Estado oniinclusivo, isto é, o Estado
para o qual nenhuma esfera de atividade humana permanece estranha, é o Estado
totalitário, e é, em sua natureza de caso-limite, a sublimação da política, a politização
integral das relações sociais.
O fim da política
Uma vez individuado o elemento específico da política no meio do qual se serve,
perdem força as tradicionais definições teleológicas, que tentam definir a política
mediante o fim ou os fins que ela persegue. Com relação ao fim da política, a única
coisa que se pode dizer é que, se o poder político é, exatamente em razão do monopólio
da força, o poder supremo em um determinado grupo social, os fins que vierem a ser
perseguidos por obra dos políticos são os fins considerados segundo as circunstâncias
preeminentes para um dado grupo social (ou para a classe dominante daquele grupo
social): para dar alguns exemplos, em tempos de lutas sociais e civis, a unidade do
Estado, a concórdia, a paz, a ordem pública etc.; em tempos de paz interna e externa, o
bem-estar, a prosperidade ou até mesmo a potência; em tempos de opressão por parte de
um governo despótico, a conquista dos direitos civis e políticos; em tempos de
dependência de uma potência estrangeira, a independência nacional. Isso significa que
não há fins da política para sempre estabelecidos, e muito menos um fim que
compreenda todos os outros e possa ser considerado o fim da política: os fins da política
são tantos quantas forem as metas a que um grupo organizado se propõe, segundo os
tempos e as circunstâncias. Esta insistência no meio mais do que no fim corresponde de
resto à communis opinio dos teóricos do Estado, os quais excluem o fim dos chamados
elementos constitutivos do Estado. Recorramos uma vez mais a Max Weber: "Não é
possível definir um grupo político - e tampouco o Estado - indicando o objetivo do seu
agir de grupo. Não há objetivo que grupos políticos não tenham alguma vez proposto
(...) Pode-se, portanto, definir o caráter político de um grupo social somente mediante o
meio (...), que não é próprio exclusivamente dele, mas é em cada caso específico, e
indispensável para a sua essência: o uso da força".5
Essa remoção do juízo teleológico não impede contudo que se possa falar, com
correção, pelo menos de um fim mínimo da política: a ordem pública nas relações
internas e a defesa da integridade nacional nas relações de um Estado com os outros
Estados. Esse fim é mínimo, porque é a conditio sine qua non para a realização de todos
os outros fins, sendo portanto com eles compatível. Mesmo o partido que deseja a
desordem, deseja a desordem não como objetivo final, mas como momento obrigatório
para transformar a ordem existente e criar uma nova ordem. Além do mais, é lícito falar
da ordem como fim mínimo da política porque ela é, ou deveria ser, o resultado direto
da organização do poder coativo, porque, em outras palavras, esse fim (a ordem) forma
um todo com o meio (o monopólio da força): em uma sociedade complexa, fundada
sobre a divisão do trabalho, sobre a estratificação de segmentos e classes, em alguns
casos também sobre a sobreposição de populações e raças distintas, somente o recurso
em última instância à força impede a desagregação do grupo, o retorno, como diriam os
antigos, ao estado de natureza. Tanto é verdade que o dia em que fosse possível uma
ordem espontânea, como imaginaram várias escolas econômicas e políticas, dos
fisiocratas aos anarquistas, ou aos próprios Marx e Engels, na fase do comunismo
plenamente realizado, não mais haveria, propriamente falando, política.
Quem considerar as tradicionais definições teleológicas de política não tardará a
perceber que algumas delas não são definições descritivas, mas sim prescritivas, no
sentido de que não definem o que é concretamente e normalmente a política, mas
indicam como deveria ser a política para ser uma boa política; outras diferem apenas em
palavras (as palavras da linguagem filosófica são com freqüência intencionalmente
obscuras) da definição aqui oferecida. Toda a história da filosofia política transborda de
definições prescritivas, a começar por aquela de Aristóteles: como é sabido, Aristóteles
afirma que o fim da política não é o viver, mas o viver bem (Política, 1278b). Mas em
que consiste a vida boa? Como distingui-la da má? E se uma classe política tiraniza os
seus súditos condenando-os a uma vida desgraçada e infeliz, não está por acaso fazendo
política, e o poder que exerce por acaso não é um poder político? O mesmo Aristóteles
distingue as formas puras de governo das formas corruptas (e antes dele Platão, e depois
dele muitos outros escritores políticos ao longo de vinte séculos): embora aquilo que
diferencia as formas corruptas das puras seja que naquelas a vida não é boa, nem
Aristóteles nem todos os escritores que depois dele vieram jamais lhes negaram o
caráter de constituições políticas. Não nos iludam outras teorias tradicionais que
atribuem à política outros fins além da ordem, como o bem comum (o próprio
Aristóteles e depois dele o aristotelismo medieval) ou a justiça (Platão): um conceito
como o de bem comum, caso queiramos libertá-lo da sua extrema generalidade, através
da qual pode significar tudo e nada, e queiramos indicar-lhe um significado plausível,
não pode designar senão aquele bem que todos os membros de um grupo têm em
comum, bem este que outro não é senão a convivência ordenada, em uma palavra, a
ordem; quanto à justiça em sentido platônico, se a entendemos, uma vez dissipadas
todas as névoas retóricas, como o princípio com base no qual é bom que cada um faça
5
M. WEBER, Wirtschaft und Gesellschaft cit., vol. L, pp. 29-30 Cedo it.: 1974 e 1980, vol. 1, pp. 53-54).
aquilo que dele se espera no âmbito da sociedade como um todo (República, 433a),
justiça e ordem são a mesma coisa. Outras noções de fim, como felicidade, liberdade,
igualdade, são demasiado controversas, e também elas interpretáveis das maneiras mais
díspares para que delas se possam extrair indicações úteis para individuar o fim
específico da política.
Outro modo de escapar às dificuldades de uma definição teleológica de política é
definindo-a como aquela forma de poder que outro fim não tem além do próprio poder
(donde poder é ao mesmo tempo meio e fim, ou, como se costuma dizer, fim em si
mesmo). "O caráter político da ação humana - escreve Mario Albertini - emerge quando
o poder se torna um fim, é buscado em certo sentido por si mesmo, e constitui o objeto
de uma atividade específica",6 diferente do que ocorre com o médico que exerce o
próprio poder sobre o doente para curá-lo, ou do rapaz que impõe o seu jogo aos colegas
não pelo prazer de exercer um poder, mas pelo prazer de jogar. Pode-se objetar a esse
modo de definir política dizendo que ele não define tanto uma forma específica de
poder, mas um modo específico de exercê-lo, e portanto se aplica igualmente bem a
qualquer forma de poder (seja ele o poder econômico, ou o poder ideológico, e assim
por diante). O poder pelo poder é a forma degenerada do exercício de qualquer forma de
poder, que pode ter por sujeito tanto quem exerce aquele poder de amplas dimensões
que é o poder político quanto quem exerce um pequeno poder, como pode ser o poder
de um pai de família, ou de um chefe de seção que supervisiona uma dúzia de operários.
A razão pela qual pode parecer que o poder como fim em si mesmo seja característico
da política (mas seria mais exato dizer de um certo homem político, o homem político
maquiavélico) está no fato de não existir um fim tão específico da política tal como, ao
contrário, existe um fim específico do poder que o médico exerce sobre o doente, ou do
rapaz que impõe um jogo aos seus colegas. Se o fim da política (e não do homem
político maquiavélico) fosse realmente o poder pelo poder, a política não serviria para
nada. Provavelmente a definição da política como poder pelo poder deriva da confusão
entre o conceito de poder e o conceito de potência: não há dúvida de que entre os fins da
política também esteja aquele da potência do Estado (quando se leva em consideração a
relação do próprio Estado com outros Estados). Mas uma coisa é uma política de
potência, outra coisa é o poder pelo poder. E, além disso, a potência nada mais é que um
dos fins possíveis da política, um fim que apenas alguns Estados podem razoavelmente
perseguir.
A política como relação amigo-inimigo
Entre as mais conhecidas e discutidas definições de política devemos considerar aquela
de Carl Schmitt (retomada e ampliada por Julien Freund), segundo a qual a esfera da
política coincide com a esfera da relação amigo-inimigo. Com base a nessa definição, o
campo de origem e de aplicação da política seria o antagonismo, e a sua função
consistiria na atividade de agregar e defender os amigos e de desagregar e combater os
inimigos. Para reforçar a sua definição, fundada sobre uma oposição fundamental
(amigo-inimigo), Schmitt compara-a às definições de moral, de arte etc. fundadas,
também elas, sobre oposições fundamentais, tais como bom-mau, belo-feio etc. ''A
específica distinção política, à qual é possível reconduzir as ações e os motivos
políticos, é a distinção entre amigo e inimigo (...). Uma vez que não é derivável de
outros critérios, ela corresponde, para a política, aos critérios relativamente autônomos
6
M. ALBERTINI, "La política", in La política ed altri saggi, Gíuffre, Milão, 1963, p. 9.
das outras oposições: bom e mau para a moral, belo e feio para a estética, e assim por
diante" 7
Drasticamente, Freund expressase nos seguintes termos: "enquanto houver política, ela
dividirá a coletividade em amigos e inimigos"8. E comenta: "Quanto mais uma oposição
se desenvolve em direção à distinção amigo-inimigo, mais se torna política. A
característica do Estado é suprimir no interior do seu âmbito de competência a divisão
dos seus membros ou grupos internos em amigos e inimigos, com o objetivo de não
tolerar senão as simples rivalidades agonísticas ou as lutas dos partidos, e reservar ao
governo o direito de designar o inimigo externo. (...) Fica portanto claro que a oposição
amigo-inimigo é politicamente fundamental".9
Não obstante a pretensão de valer como definição global do fenômeno político, a
definição de Schmitt considera a política segundo uma perspectiva unilateral, ainda que
importante, que é aquela do particular tipo de conflito que por sua vez distinguiria a
esfera das ações políticas. Em outras palavras, Schmitt e Freund parecem estar de
acordo quanto aos seguintes pontos: a política tem a ver com a conflituosidade humana;
há vários tipos de conflitos, sobretudo conflitos agonísticos e conflitos antagonísticos: a
política cobre o campo em que se desenvolvem conflitos antagonísticos. Que seja esta a
perspectiva a partir da qual se posicionam os autores citados, parece não haver dúvida.
Para Schmitt: ''A oposição política é a mais intensa e extrema de todas, e qualquer outra
oposição concreta é tanto mais política quanto mais se aproxima do ponto extremo,
aquele do agrupamento com base nos conceitos amigo-inimigo”10 Para Freund:
"Qualquer divergência de interesses (...) pode a qualquer momento transformar-se em
rivalidade ou em conflito, e esse conflito, a partir do momento em que assume o aspecto
de uma prova de força entre os grupos que representam esses interesses, vale dizer, a
partir do momento que se afirma como luta de potência, torna-se político".11 Como
podemos verificar nas passagens citadas, ao definir a política com base na dicotomia
amigo-inimigo, esses autores têm em mente que existem conflitos entre os homens e
entre os grupos sociais, e que entre estes conflitos há alguns distintos de todos os outros
devido à sua particular intensidade; a estes dão o nome de conflitos políticos. Contudo,
tão logo se compreende no que consiste essa particular intensidade, e portanto no que a
relação amigo¬inimigo se distingue de todas as outras relações conflitantes de não
equivalente intensidade, percebe-se que o elemento distintivo está no fato de que são
conflitos que não podem ser resolvidos em última instância senão com a força, ou pelo
menos, que justificam, por parte dos contendentes, o uso da força para pôr fim à
contenda. O conflito por excelência a partir do qual tanto Schmitt quanto Freund
extrapolaram suas respectivas definições de política é a guerra, cujo conceito
compreende tanto a guerra externa quanto a guerra interna: ora, se uma coisa é certa, é
que a guerra é aquela espécie de conflito que se caracteriza eminentemente pelo uso da
força. Mas se isso é verdade, a definição de política em termos de amigo-inimigo não é
em absoluto incompatível com aquela, dada anteriormente, que faz referência ao
7
C. SCHMITT, Der Begrifj des Politischen, Ouncker und Humblot, München- Leipzig, 1932 (ed. it.: Il
concetto di "político", in 10., Le categorie dei "político", organizado por G. Miglio e P. Schíera, il
Mulino, Bolonha, 1972, reimp., 1998, p. 108).
8
J. FREUNO, Lessence du politique, Sirey, Paris, 1965, p. 448.
9
J. FREUNO, llessence du politique cit., .445.
10
C. SCHMITT, Der Begriff des Politischen cít., p. 112.
11
J. FREUND, llessence du politique, cit., p. 479.
monopólio da força. Não apenas não é incompatível, como dela é uma especificação, e
portanto, em última análise, uma confirmação. Exatamente porque o poder político é
distinto do instrumento do qual se serve para alcançar os próprios fins, e esse
instrumento é a força física, ele é aquele poder ao qual se apela para solucionar os
conflitos cuja não-solução teria como efeito a desagregação do Estado ou da ordem
internacional, sendo estes exatamente os conflitos nos quais, postando-se os
contendentes um diante do outro, a víta mea é a mors tua.
O político e o social
Contrariamente à tradição clássica segundo a qual a esfera da política, entendida como
esfera de tudo aquilo que concerne à vida da pólis, inclui todo tipo de relações sociais,
de modo que o "político" passa a coincidir com o "social", o tratamento que aqui se fez
da categoria da política é certamente redutor: resumir, como se afirmou, a categoria da
política à atividade que tem direta ou indiretamente relação com a organização do poder
coativo significa restringir o âmbito do "político" em relação ao "social", recusar a plena
coincidência do primeiro com o segundo. Essa redução tem uma razão histórica bem
precisa. De um lado, o cristianismo subtraiu da esfera da política o domínio sobre a vida
religiosa, dando origem à oposição entre poder espiritual e poder temporal, que era
ignorada no mundo antigo. De outro, o nascimento da economia mercantil burguesa
subtraiu da esfera da política o domínio sobre as relações econômicas, dando origem à
oposição (para nos expressar com a terminologia hegeliana, herdada por Marx, e
transformada, por fim, em uso comum) entre sociedade civil e sociedade política, entre
esfera privada, ou do burguês, e esfera pública, ou do cidadão, que era, também ela,
ignorada no mundo antigo. Enquanto a filosofia política clássica está alicerçada sobre o
estudo da estrutura da pólís e das suas várias formas históricas ou ideais, a filosofia
política pós-clássica caracteriza-se pela contínua tentativa de uma delimitação daquilo
que é político (o reino de César) em relação àquilo que não é político (seja ele o reino de
Deus ou o reino das riquezas),12 por uma contínua reflexão sobre aquilo que diferencia a
esfera da política da esfera da não-política, o Estado do não-Estado, onde por esfera da
não-política ou do não-Estado entende-se, dependendo das circunstâncias, ora a
sociedade religiosa (a ecclesia contraposta à civitas), ora a sociedade natural (o mercado
como lugar em que os indivíduos se encontram, independentemente de qualquer
imposição, em oposição à ordem coativa do Estado). O tema fundamental da filosofia
política moderna é o tema das fronteiras, ora mais recuadas, ora mais avançadas,
segundo os vários autores e as várias escolas, do Estado como organização da esfera
política, seja em relação à sociedade religiosa, seja em relação à sociedade civil (no
sentido de sociedade burguesa ou dos privados).
Exemplar também sob esse aspecto é a teoria política de Hobbes, que se articula em
torno de três conceitos fundamentais, constituindo as três partes nas quais se divide a
matéria do De cive. Essas três partes são assim denominadas: libertas, potestas, religio.
O problema fundamental do Estado, e portanto da política, é para Hobbes o problema
das relações entre a potestas, simbolizada pelo grande Leviatâ, de um lado, e a libertas e
a religio, de outro: a libertas indica o espaço das relações naturais, no qual se
desenvolve a atividade econômica dos indivíduos, estimulada pela incessante disputa
pela posse dos bens materiais, o estado de natureza (interpretado recentemente como a
prefiguração da sociedade de mercado); a religio indica o espaço reservado à formação
12
No original, "sia questo il regno di Dio o quello di Mammona". (N. T.)
e expansão da vida espiritual, cuja concretização histórica se dá com a instituição da
Igreja, isto é, de uma sociedade que por sua natureza é distinta da sociedade política e
não pode ser com ela confundida. Com relação a essa dupla delimitação de fronteiras do
território da política, emergem na filosofia política moderna dois tipos ideais de Estado:
o Estado absolutista e o Estado liberal, o primeiro tende a ampliar, o segundo a
restringir a própria ingerência no que concerne à sociedade econômica e à sociedade
religiosa. Na filosofia política do século XIX, o processo de emancipação da sociedade
em relação ao Estado está tão adiantado que pela primeira vez, a partir de inúmeros
pontos de vista, é imaginado o completo desaparecimento, em um futuro mais ou menos
distante, do Estado, e conseqüentemente a absorção do político no social, ou o fim da
política. De acordo com o que foi dito até aqui sobre o significado restritivo de política
(restritivo com relação ao conceito mais amplo de "social"), fim da política significa
exatamente o fim de uma sociedade para cuja coesão sejam necessárias relações de
poder político, isto é, relações de domínio fundadas em última instância no uso da força.
Fim da política não significa, bem entendido, fim de qualquer forma de organização
social. Significa pura e simplesmente fim daquela forma de organização social que se
sustenta no uso exclusivo do poder coativo.
Política e moral
Ao problema da relação entre política e não-política associa-se um dos problemas
fundamentais da filosofia política, o problema da relação entre política e moral. A
política e a moral têm em comum o domínio sobre o qual se estendem, que é o domínio
da ação ou da práxis humana. Considera-se que diferem entre si com base no diferente
princípio ou critério de justificação e de avaliação das respectivas ações, tendo por
conseqüência que aquilo que é obrigatório em moral nem sempre é obrigatório na
política, e aquilo que é lícito na política nem sempre é lícito na moral; ou que podem
existir ações morais que são impolíticas (ou apolíticas) e ações políticas que são imorais
( ou amorais). A descoberta da distinção, que é atribuída, correta ou incorretamente. a
Maquiavel, daí o nome de maquiavelismo a toda teoria da política que sustente e
defenda a separação entre política e moral, é com freqüência tratada como problema da
autonomia da política. O problema avança pari passu com a formação do Estado
moderno e com a sua gradual emancipação da Igreja, chegando, nos casos extremos,
inclusive à subordinação da Igreja ao Estado e, conseqüentemente, à supremacia absoluta da política. Na verdade, aquilo que chamamos de autonomia da política nada
mais é que o reconhecimento de que o critério com base no qual se considera boa ou má
uma ação política (e não nos esqueçamos de que por ação política se entende, de acordo
com o que foi dito até aqui, uma ação que tenha por sujeito ou objeto apólis) é distinto
do critério com base no qual se considera boa ou má uma ação moral. Enquanto o
critério com base no qual se julga uma ação moralmente boa ou má é o respeito a uma
norma cujo comando é considerado categórico, independente do resultado da ação
("faça o que deve ser feito e aconteça o que tiver de acontecer"), o critério com base no
qual se julga uma ação politicamente boa ou má é pura e simplesmente o resultado
("faça o que deve ser feito para que aconteça aquilo que você quer que aconteça"). Os
dois critérios são incomparáveis. Essa incomparabilidade expressa-se mediante a
afirmação de que em política vale a máxima "o fim justifica os meios": máxima que
encontrou em Maquiavel uma das suas mais fortes expressões: "(...) e nas ações de
todos os homens, e máxime dos príncipes, onde não há juízo ao qual reclamar, olha-se o
fim. Faça portanto um príncipe de modo a vencer e manter o Estado: e os meios serão
sempre julgados honrosos, e por todos louvados" (O príncipe, XVIII). Ao contrário, na
moral, a máxima maquiavélica não vale, já que uma ação para ser julgada moralmente
boa deve ser cumprida com nenhum outro fim além daquele de cumprir o próprio dever.
Uma das mais convincentes interpretações desta oposição é a distinção weberiana entre
a ética da convicção e a ética da responsabilidade: "(...) há uma diferença
incomensurável entre o agir segundo a máxima da ética da convicção, a qual em termos
religiosos soa: 'O cristão age como um justo e remete o êxito às mãos de Deus', e o agir
segundo a máxima da ética da responsabilidade, segundo a qual é preciso responder
pelas conseqüências (previsíveis) das próprias ações".13
O universo da moral e o universo da política movem-se dentro do âmbito de dois
sistemas éticos distintos, aliás, opostos. Mais que de imoralidade da política ou de
impoliticidade da moral, deveríamos mais corretamente falar de dois universos éticos
que se movem segundo princípios distintos de acordo com as distintas situações nas
quais os homens se encontram ao agir. Desses dois universos éticos são representantes
dois personagens distintos que agem no mundo em caminhos quase sempre destinados a
não se encontrar: de um lado, o homem de fé, o profeta, o pedagogo, o sábio que olha a
cidade celeste; de outro lado, o homem de Estado, o condottiero dos homens, o criador
da cidade terrena. O que conta para o primeiro é a pureza das intenções e a coerência
entre ação e intenção; para o segundo, a certeza e a fecundidade do resultado. A
chamada imoralidade da política resume-se, olhando bem, a uma moral distinta daquela
do dever pelo dever: é a moral pela qual se deve fazer tudo aquilo que está em nosso
poder para realizar 'o objetivo ao qual nos propusemos, porque sabemos desde o início
que seremos julgados com base no sucesso. A ela correspondem dois conceitos de
virtude, aquela clássica, em que "virtude" significa disposição para o bem moral (em
oposição ao útil), e aquela maquiavélica, em que virtude é a capacidade do príncipe
forte e prudente que, usando ao mesmo tempo da "raposa" e do "leão", é bem-sucedido
em seu intento de manter e reforçar o próprio domínio.
A política como ética do grupo
Quem não quiser se render à constatação da incomensurabilidade dessas duas éticas e
quiser tentar entender a razão pela qual aquilo que se justifica em um certo contexto não
se justifica em outro, deve se perguntar então onde reside a diferença entre esses dois
contextos. A resposta é a seguinte: o critério da ética da convicção é comumente
empregado para julgar ações individuais, enquanto o critério da ética da
responsabilidade é comumente empregado para julgar ações de grupo, ou ao menos
cumpridas por um indivíduo em nome ou por conta do próprio grupo, seja ele o povo,
ou a nação, ou a Igreja, ou a classe, ou o partido etc. Em outros termos, pode-se dizer
que à diferença entre moral e política, ou entre ética da convicção e ética da
responsabilida¬de, corresponde também a diferença entre ética individual e ética de
grupo. A proposição inicial, segundo a qual aquilo que é obrigatório na moral nem
sempre é considerado obrigatório na política, pode ser traduzida nesta outra fórmula:
aquilo que é obrigatório para o indivíduo nem sempre é obrigatório para o grupo ao qual
esse indivíduo pertence. Pensemos na profunda diferença no juízo que filósofos,
teólogos, moralistas apresentam em relação à violência secundo se trate de um ato de
13
M. WEBER, Politik ais Beruj, in Gesammelte Politische Schriften, organizado por J. Winckelmann,
Mohr, Tübingen, 1971/3 Cedo it. de A. Giolitti, in Illavoro intellectuale come professione, "Nue",
Einaudi, Turim, 1966, nova ed. 1977, p. 109).
violência cumprido por um indivíduo isolado, ou pelo grupo social ao qual o mesmo
indivíduo pertence; em outras palavras, segundo se trate de violência pessoal,
geralmente, salvo casos excepcionais, condenada, ou de violência das instituições,
geralmente, salvo casos excepcionais, justificada. Essa diferença encontra sua
explicação na consideração de que no caso da violência individual, quase nunca se pode
recorrer ao critério de justificação da extrema ratio (exceto no caso da legítima defesa),
enquanto nas relações entre grupos o recurso à justificação da violência como extrema
ratio é habitual. Ora, a razão pela qual a violência individual não é justificada está
precisamente no fato de que ela é, por assim dizer, protegida pela violência coletiva,
tanto que é cada vez mais raro, no limite do impossível, um caso em que o indivíduo
isolado encontre-se na situação de precisar recorrer à violência como extrema ratio. Se
isto é verdade, disso decorre uma importante conseqüência: a injustificação da violência
individual repousa em última instância no fato de que é aceita, porque justificada, a
violência coletiva. Em outras palavras, a violência individual não é necessária porque
basta a violência coletiva: a moral pode assim se permitir ser severa com a violência
individual porque repousa sobre a aceitação de uma convivência que se sustenta sobre a
prática contínua da violência coletiva.
A oposição entre moral e política desse modo entendida, como oposição entre ética
individual e ética de grupo, serve também para fornecer uma ilustração e uma
explicação da secular disputa em torno da "razão de Estado". Por "razão de Estado"
entende-se aquele conjunto de princípios e máximas com base nas quais' ações que não
seriam justificadas se cumpridas por um indivíduo isolado não são apenas justificadas
mas em alguns casos de fato exaltadas e glorificadas se cumpridas pelo príncipe, ou por
qualquer pessoa que exerça o poder em nome do Estado. Que o Estado tenha razões que
o indivíduo não tem ou não pode fazer valer é um outro modo de colocar em evidência a
diferença entre política e moral, uma vez que essa diferença refere-se ao distinto critério
com base no qual são julgadas como boas ou más as ações nos dois diferentes âmbitos.
A afirmação de que a política é a razão do Estado encontra uma perfeita
correspondência na afirmação de que a moral é a razão do indivíduo. São duas razões
que quase nunca coincidem: antes, da sua oposição alimenta-se a secular história do
conflito entre moral e política. O que talvez seja necessário ainda acrescentar é que a
razão de Estado nada mais é que um aspecto da ética de grupo, ainda que o mais
clamoroso, sendo o Estado a coletividade no seu mais alto grau de expressão e potência.
Mas cada vez que um grupo social age em sua própria defesa contra outro grupo, apelase a uma ética distinta daquela geralmente válida para os indivíduos, a uma ética
portanto que responde à mesma lógica da razão de Estado. Assim, ao lado da razão de
Estado, a história nos acena, de acordo com os tempos e os lugares, ora uma razão de
partido, ora uma razão de classe ou de nação, que representam, sob outro nome, mas
com a mesma força e com as mesmas conseqüências, o princípio da autonomia da
política, entendida como autonomia dos princípios e das regras de ação que valem para
o grupo como totalidade em relação às regras que valem para o indivíduo no grupo.