AQUILES CORTES GUIMARÃES
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AQUILES CORTES GUIMARÃES
JOSÉ MARIA DOS SANTOS CONFRONTO ENTRE O SEGUNDO REINADO E A REPÚBLICA VELHA A QUESTÃO MILITAR CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO – CDPB 2011 1 SUMÁRIO Biobibliografia O principal legado da obra de José Maria dos Santos TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS A POLÍTICA GERAL DO BRASIL (Primeira Parte) Introdução A OBRA DO SEGUNDO REINADO Capítulo I – O Segundo Reinado em confronto com os períodos de Pedro I e da Regência Capítulo II – A maioridade e a política de conciliação Capítulo III – A Lei dos Círculos Capítulo IV – A situação geral no início da guerra do Paraguai Capítulo V – As reações da batalha de Curupaiti na política interna Capítulo VI – A crise ministerial de 1868 Capítulo VII – A Lei do Ventre Livre Capítulo VIII – A Abolição Capítulo X – O fim do Segundo Reinado A QUESTÃOMILITAR Nota Introdutória – Antonio Paim TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS Capítulo II – Pedra de tropeço Capítulo III – A interferência Hispano-Americana Capítulo IV – A héjira do caudilhismo Texto sobre Quintino Bocaiuva (*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”, distante do objeto da transcrição. 2 BIOBIBLIOGRAFIA José Maria dos Santos (1877/1954) era natural da Paraíba, tendo nascido em sua capital, João Pessoa. Adquiriu sua formação acadêmica na Escola Militar do Rio de Janeiro, considerado estabelecimento de ensino de alto nível, com a singularidade de que nem todos os seus alunos seguiam a carreira militar. Este seria o caso do nosso autor. José Maria dos Santos preferiu a carreira de jornalismo, na qual se destacaria como articulista renomado. Graças a isto, viria a exercer a direção de import6antes periódicos em São Paulo. Na capital paulista, seria, sucessivamente, diretor destas publicações diárias: Jornal da Tarde, Tribuna Paulista e Jornal do Comércio. Em que pese haja ascendido a tais postos de direção nos mencionados órgãos paulistas, manteve assídua colaboração em jornais do Rio de Janeiro. Participou da Conferência de Paz que teve lugar em Versalhes, no ano de 1919, evento que se tornaria marco histórico, tendo em vista que estabeleceria as regras da convivência européia posteriores à Primeira Guerra Mundial. Durante algum tempo, residiu na França, onde tornar se-ia correspondente do jornal carioca Folha da Manhã e colaborador de Le Figaro, um dos principais jornais da capital francesa. José Maria dos Santos ocupa lugar de primeiro plano na historiografia brasileira, entre os autores que, no século XIX, deram continuidade ao trabalho pioneiro dos fundadores. Seu principal livro seria denominado de Política geral do Brasil (1930). Figura na coleção que deu continuidade à Brasiliana, 3 na Editora Itatiaia (Belo Horizonte), chamada de Reconquista do Brasil. Ao Partido Republicano Paulista dedicou estes livros: Os republicanos paulistas e a Abolição (1942) e Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista – Subsídios para a História da República, publicado postumamente, em 1960. É autor também desta obra de teoria política: Os Fundamentos Reais da Liberdade, edição da Athena Editora (São Paulo, 1942). 4 O PRINCIPAL LEGADO DA OBRA DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS José Maria dos Santos ocupa um lugar especial na historiografia brasileira porquanto não apenas se destaca como um dos principais continuadores da obra dos fundadores como o fez de forma original. Essa originalidade prende -se ao fato de que haja efetivado o confronto da experiência liberal do Segundo Reinado com a prática autoritária da República Velha. Esse confronto encontra-se na obra fundamental que nos legou: Política geral do Brasil. Com o seu aparecimento data de 1930, não podia prever que os traços que então destaca preservariam inteira atualidade ao longo da experiência republicana subseqüente. Vejamos, brevemente, como apresenta a questão. Parte da tese de que as desordens morais e econômicas que então assolavam o país começam exatamente com o regime republicano. Veja-se qual o traço essencial que destaca: a seu ver o que a nossa República tem de real e objetivo é o seu sentido autoritário. e prossegue: o que tivemos com a implantação da República não foi uma simples alteração na forma de governo, de monárquico para republicano. Ocorreu de fato “a substituição de um regime de livre consulta, na qual o governo, dependente dos votos do parlamento, não podia entrar em conflito permanente com a opinião pública, por um outro regime intransigente e autoritário, todo baseado na vontade exclusiva do Chefe do Estado.” 5 Com vistas a provar a sua tese, o autor procede a uma caracterização detalhada do Segundo Reinado, confrontando -o com os ciclos anteriores, para concluir que o Brasil em 1889 “era uma grande monarquia liberal representativa deforma parlamentar, organizada no gênero dos Estados Modernos que o historiador inglês H. G. Wells chama de repúblicas coroadas”, tal qual existiam na Inglaterra, na Bélgica e nas monarquias escandinavas. Segue-se a análise do que denomina de “deformação republicana”. A conclusão da obra corresponde a uma erudita síntese da evolução do Ocidente, a fim de tornar patente que o governo representativo de forma parlamentar equivale a um ponto alto nesse processo evolutivo. Estão criticadas, de um ponto de vista liberal, as alternativas propostas pelo positivismo e pelo marxismo, que tanto sucesso, dizemos nós, vieram a alcançar nos círculos republicanos brasileiros. É de assinalar-se a perspicácia com que o autor aproxima o nacionalismo do comunismo. Anteviu também que a ascensão do autoritarismo e do totalitarismo, no primeiro pós-guerra, nada mais significavam que surtos anti-liberais e anti-democráticos. O espírito de sua análise está todo contido nesta afirmativa:: “A idéia de que a guerra, como terrível e ancestral reguladora das relações humanas, viera sacudir o mundo do seu pobre sonho de liberdade, para novamente trazê-lo à justa e inevitável compreensão da força como fundamento único possível da ordem social, não passou de uma transitória perturbação do período militar. O exato sentido da fase atual de evolução dos povos civilizados não pode ser descoberto nem na Rússia da GPU nem na Itália dos “fasci de combattimento”. É nas nações de alta e nobre consciência 6 coletiva que, da imensa voragem da guerra ou das angústias da neutralidade, conseguiram salvar intactos os seus direitos e as suas liberdades, para segura e corajosamente enfrentar os grandes problemas econômicos que a tremenda convulsão devia abrir ao encerrar-se.” Decorridos oitenta anos da publicação de Política geral do Brasil, pelas breves indicações precedentes evidencia-se sua enorme atualidade. Em boa hora a Editora Itatiaia, sediada em Belo Horizonte, a incluiu na Coleção Reconquista do Brasil (2ª série, volume 153), colocando-a, assim, no lugar que de direito lhe cabe na Brasiliana. 7 TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS A POLÍTICA GERAL DO BRASIL (Primeira Parte) Introdução A República de 15 de novembro, com os seus antecedentes de propaganda de idéias subitamente rematada por uma rebelião militar vitoriosa, teve a estranha virtude de alterar por completo o senso político dos brasileiros. A corrente liberal, que fora a característica predominante da nossa evolução histórica desde as reivindicações municipais da época colonial, e que, depois de atravessar atormentada e revolta o primeiro reinado e a Regência, enchera com o seu fluxo bem ordenado todo o período de Pedro II, estacou violentada e surpresa no acidente de 1889. O Governo Provisório, na sua feição de vontade pessoal predominante no meio de conselheiros irresponsáveis e submissos, deu-nos imediatamente uma nova e para nós desconhecida figura da liberdade – a liberdade republicana da Bolívia de Melgarejo ou do Equador de Garcia Moreno, liberdade simples e fácil, que se objetiva apenas nas frases de uma proclamação ou nos compassos de um hino, mas também só deixa de ser cômi ca quando se faz sinistra... A um povo como o nosso, longamente habituado a identificar o poder pessoal como sendo a própria tirania, e que, tenazmente e sob todas as formas, combatera esse poder em Pedro I e no regente Feijó, seu próprio território e, mes mo 8 para além das suas fronteiras, nos ditadores Oribe, Rosas ou Solano Lopez, aquele forte aparelho do governo provisório não podia deixar de parecer estranho e profundamente suspeito. Dado porém o caráter de fulminante ocupação militar da grande surpresa de 15 de Novembro, nenhum protesto eficaz ou simples discussão foi imediatamente possível. Na América pós-colonial, onde a ficção da investidura divina chegou tarde demais para ter crédito, nunca pode o despotismo dispensar os atavios da liberdade. OP esforço principal e constante dos publicistas nesta parte do mundo, tem quase exclusivamente consistido em demonstrar, entre duas violências, quanto o poder pessoal absoluto se coaduna e identifica com a mais perfeita democracia, desde que, transmissível a períodos certos, não possa fundar-se em direitos hereditários. Pouco importa que durante um desses períodos ou no sucessivo decorrer de todos eles, venha a sociedade a sofrer da ignorância, da maldade ou mesmo da parvoice dos seus governantes. O essencial é que todo o filho do Novo Mundo possa julgar-se legalmente habilitado a vir um dia a tiranizar também os seus concidadãos. Neste igualitário princípio é que se concretizam e resumem todos os fundamentos da liberdade americana... O Brasil, pela tradicional evolução das suas instituições políticas anteriores, fora o único país que evitara aquela compreensão especial da democracia. As palavras tinham para nós outros uma significação diversa. Mas, a partir de 1889, na imprensa, nas assembléias e, posteriormente, nas cátedras universitárias, como elemento de consolidação doutrinária, as expressões tão simples e claras que até então soubéramos empregar no trato do direito público, foram sendo substituídas 9 por um calão bárbaro, extraído do “Federalista” de Madison e Jay, e das ingênuas proclamações dos libertadores hispano americanos... A liberdade assumiu também aqui o aspecto local do continente. Fizemo-nos “presidencialistas” por nossa vez, e o sistema do Governo Provisório, todo baseado no poder pessoal do chefe do Estado, entrou para a constituição da República e passou a ser a nossa forma definitiva de governo. Pode-se dizer que, ao abalo dessa escandalosa inversão histórica e doutrinária, a corrente liberal condutora da nossa existência política anterior, iludida e desorientada, refluiu toda para o passado. Tendo de aceitar nos fins do século XIX, como a imagem fiel e mais perfeita da democracia moderna, um governo praticamente moldado no velho Estado-Leviathan de Thomaz Hobbes, nós perdemos imediatamente o senso exato das coisas e o próprio sentido das palavras. A vida social e econômica do Brasil assentou toda sobre um equívoco e, partindo desse erro inicial, o nosso povo, como entidade política, passou a caracterizar-se sobretudo pela mais profunda e absoluta desorientação mental. Seja pelas decisões dos seus governantes, seja pelas reações que estas produzam sobre os sentimentos e os interesses coletivos, os brasileiros são sempre levados a situações diametralmente opostas àquelas que faziam, de início, o objeto de seus cuidados. Assim é em política geral, em economia, em finanças ou em qualquer dos demais ramos da nossa atividade coletiva. Tudo falha, corrompe-se ou se desvirtua, podendo-se neste país contar apenas como certo o ridículo, que natural e constantemente decorre de um tal estado de coisas. Há quem afirme, com a mais notável segurança, que essas deploráveis condições são a conseqüência inevitável da 10 ignorância e do atraso do nosso povo, e mesmo da sua própria índole, que – ao que parece – é má, devido à intervenção de certos elementos raciais ou étnicos, irremediavelmente pejorativos. Outros, de conhecimentos não menos profundos, procuram para os nossos desastres nacionais, já velhos de mais de trinta anos, fatores recentes de ordem externa, como a guerra de 1914, com as suas conseqüências sociais e econômicas sobre certos países da Europa. Não obstante, se reduzirmos as asas da nossa imaginação aos salutares limites do senso comum, para prestarmos atenção apenas aos fatos reais da nossa história política, facilmente nos aperceberemos de que as desordens morais e econômicas de que hoje sofremos, começaram exatamente com o regime da constituição de 24 de fevereiro, constituição essa na qual se fixaram em definitivo as disposições preliminares e a orientação geral do Governo Provisório. Ora, se as constituições políticas têm qualquer ação sobre a vida dos povos que são chamadas a reger, e se a observação honesta dos fatos serve de alguma cousa na formação de um conceito histórico qualquer, força é ter como ponto de partida da nossa situação atual, a lei pela qual trocamos as nossas instituições anteriores. Entretanto, a desordem mental a que atrás nos referimos, tornou-se tão profunda e generalizada que, em face de todas as nossas infelicidades nacionais, a maior preocupação das oposições organizadas em partido, ainda hoje se resume em procurar o melhor meio de manter e reforçar aquela mesma constituição. Os libertadores do Rio Grande do Sul querem-na com algumas alterações superficiais e de pura forma, enquanto os democráticos de São Paulo a desejam 11 retrocedida à pureza do seu texto primitivo. Todos porém, unidos na idéia principal da sua conservação – no que ela tem de real e objetivo que é o seu sentido autoritário – evidentemente se acham de acordo com os círculos governamentais que são, por ofício, os seus defensores obrigatórios. Entre as três correntes, não existe diferença essencial de propósitos. Existem simplesmente os pontos de uma eventual conciliação, sobre uma mesma ordem de interesses... É apenas um tríplice concurso, donde nenhuma modificação séria pode surgir aos negócios deste país. Os brasileiros precisam afinal se convencer de que a marca essencial do acontecimento de 15 de Novembro, a alteração jurídica que no futuro lhe deu sentido real e significação prática, não foi a mudança da designação verbal de monarquia para república, nem a troca de um imperador vitalício e hereditário por um presidente mais ou menos eleito para um certo período. Foi, sim, a substituição de um regime de livre consulta, no qual o governo, dependente dos votos do parlamento, não podia entrar em conflito permanente com a opinião pública, por outro regime intransigente e autoritário, todo baseado na vontade exclusiva do chefe do Estado. É isso, no fundo e apesar de todos os disfarces mais ou menos teóricos, o que unicamente estabelece e consagra a constituição de 24 de fevereiro, não passando as suas excelsas declarações de direitos, de leves e fulgurantes roupagens, atiradas imprudentemente e sem muito jeito sobre um grosseiro arcabouço de ferro. Considerada a nossa revolução republicana sob esse aspecto, que é o seu aspecto verdadeiro e exato, nós nunca nos afastamos tanto da república, como no momento em que a 12 proclamamos e constituímos. Este é o fato significativo e essencial, que devemos fixar bem e ter como base de todas as nossas cogitações, se realmente temos a vontade de encontrar remédio aos males atuais da nossa pátria. 13 PRIMEIRA PARTE A OBRA DO SEGUNDO REINADO CAPITULO I O SEGUNDO REINADO EM CONFRONTO COM OS PERÍODOS DE PEDRO I E DA REGÊNCIA Quem quer conhecer, em toda a sua extensão, os resultados do chamado sistema republicano presidencial no Brasil, deve, antes de tudo, indagar das condições gerais deste país em 1889. O Brasil, nas vésperas da república, era realmente e em todos os seus aspectos políticos, uma grande monarquia liberal representativa de forma parlamentar, organizada no gênero dos estados modernos que o historiador inglês H. G. Wells chama de “repúblicas coroadas”(1), como a Inglaterra e cada um dos países de governo próprio do império britânico, a Bélgica, a Holanda e as monarquias escandinavas. Nós éramos governados por um presidente do conselho, escolhido pelo parlamento, pois, apesar da ativa interferência que a coroa se reservava na formação dos ministérios, nenhum governo novo ousaria apresentar-se aos corpos legislativos, sem ter a prévia certeza da maioria dos votos destes. Pelo sistema das negociações preliminares, entabuladas entre os encarregados da formação de ministérios e os diversos grupos em que se 14 dividia a representação nacional, era de fato o parlamento quem indicava os programas governamentais, A essa regra geral e obrigatória, só podiam fugir os gabinetes nomeados nos momentos de grandes transições políticas, quando o Ch efe de Estado, exercendo as suas funções legais de poder moderador, era levado a dissolver a câmara dos deputados, para uma consulta ampla e profunda à opinião do país por meio de novas eleições gerais. Sob esse regime, conquistado através das lutas sangrentas e constantes, que mantivemos contra as pretensões do poder pessoal durante todo o primeiro reinado e o interregno da Regência, nós chegáramos a ser não somente o primeiro e o “leader‟ incontestável dos povos sul-americanos, como mesmo, sob certos aspectos particulares, a mais séria e bem constituída de todas as nações do Novo Mundo. Havíamos firmado definitivamente a nossa paz interna; estabelecido vitoriosamente, pela diplomacia ou pelas armas, a nossa situação internacional; formado o nosso direito privado sobre bases de uma tão grande elevação moral, que já servia de modelo à organização civil de outros Estados, e colocado as finanças públicas em um tal pé de solidez e seriedade, que o nosso país, com os seus doze milhões de habitantes e nos limites dos seus recursos econômicos da época, gozava de um crédito que honraria qualquer dos maiores povos da terra. Se procurarmos saber qual foi a característica principal e constante do período que realizou todo esse esplêndido trabalho de organização nacional, facilmente nos aperceberemos de que essa característica foi a liberdade. Efetivamente, de um extremo ao outro do reinado de Pedro II, 15 na direção dos negócios públicos predominou sempre a opinião coletiva. Essa linha geral daquela grande época da nossa história logo ressalta, desde que se estabeleça uma comparação, mesmo abreviada, com os dezoito anos que a antecederam até a Independência. Desde 1822 até 1840, o poder pessoal, objetivado na faculdade assumida pelo Chefe de Estado de escolher os ministérios de sua vontade exclusiva, atirando-os em luta permanente contra os corpos legislativos, foi o eixo em torno do qual girou tumultuariamente toda a nossa atormentada existência política. Não foi outra senão a preocupação de salvar o princípio desse poder que no dia 12 de novembro de 1823 levou Pedro I a dissolver violentamente a primeira assembléia constituinte do Império. Os incidentes de caráter nacionalista que se produziram no Rio de Janeiro, a partir da noite de 5 daquele mês, quando dois oficiais de artilharia, de origem portuguesa, espancaram o jornalista David Pamplona Corte-Real, no Largo da Carioca, e que depois se prolongaram até a dissolução do parlamento, foram apenas a gota d´água que fez transbordar o vaso. A verdadeira luta entre a coroa e o parlamento, abriu-se no dia 3 de maio, quando o imperador inaugurando solenemente os trabalhos legislativos, julgou oportuno ministrar alguns conselhos sobre a orientação constitucional, terminados pela frase característica: “Espero que a constituição que f areis mereça a minha imperial aceitação...”(2). Apenas Sua Majestade tinha se retirado, levantam-se entre os deputados os primeiros protestos. O imperador não tinha regras a dar à Constituinte, nem podia estabelecer condições de sua aceitação ao que ela votasse, porque a constituição ia ser um ato soberano da 16 vontade nacional, legitimamente expressada no parlamento. Os irmãos Andrada fazem ouvir palavras de moderação. “A nação”, exclama Antônio Carlos, “elegeu um imperador constitucional, deu-lhe o poder executivo e o declarou chefe hereditário. Nisto não podemos nós bulir”(3). José Bonifácio apóia com veemência esse ponto de vista e adota-se afinal, na resposta à fala do trono, o período do voto de graças, pelo qual uma maioria de quarenta deputados contra vinte, dava a sua confiança ao imperador e ao ministério, sem atender naquelas palavras; Mas, com o ardor dos trabalhadores constituintes, surge a questão de saber como seria promulgada a constituição do Império. O trono esperava como seu o direito de prom ulgála; mas na constituinte levantou-se imediatamente a doutrina da soberania nacional intransmissível. A nação livre se organizava. O imperador só tinha que jurar a constituição, dentro da qual encontraria estabelecidas e prescritas todas as suas atribuições de chefe funcional do Estado. Era o clássico “sine qua non” das altivas Cortes Aragonesas do século XII, que os pares e comuns da Inglaterra, após haverem destituído o rei Jayme II, retomaram em face de Guilherme de Orange e que ficou sendo a base condicional da coroação dos soberanos ingleses. A luta entre Pedro I e a nação caracterizou-se claramente, e quanto rebentam os incidentes do mês de novembro a que atrás nos referimos, foram os próprios Andradas, Antônio Carlos e Martim Francisco, os que com maior veemência trouxeram para o seio do parlamento os ecos do tumulto popular das ruas. O imperador manda avançar as tropas de São Cristóvão e o brigadeiro Morais, de espada à cinta e retinindo as esporas, penetra no recinto da Câmara com o decreto de dissolução, 17 Mas entre Pedro I e o país a sorte estava lançada. Depois de oito anos de guerra civil ininterrupta, durante os quais não foram poupados os serviços dos pelotões de fuzilamento e do carrasco, o primeiro imperador partia fugitivo a bordo de uma fragata inglesa, deixando afinal os brasileiros senhores dos seus destinos. Quando, no dia 7 de abril de 1831, Pedro I entregou o ato da sua abdicação ao major Miguel de Frias, para que este o levasse aos revolucionários do Campo de Sant‟Anna, tacitamente ficou provado que o Brasil jamais poderia viver tranqüilamente sob qualquer governo de forma autoritária e pessoal. O mês anterior se assinalara por uma séria de marchas e contra-marchas entre os dois princípios extremos do autoritarismo e da liberdade política concretizados no processo de escolha dos ministérios. Pedro I, insistindo na afirmação da sua qualidade de imperador constitucional, sempre que a ocasião se lhe oferecia, achava, entretanto, que a nomeação dos ministros era um ato do poder majestático, no qual não cabia a interferência do parlamento. A constituição jurada a 25 de março de 1824 assim o entendia. Mas essa constituição fora uma outorga sua, que não passara sem protestos veementíssimos, como aquele grande e extraordinário voto de frei Joaquim do Amor Divino Caneca, distribuído impresso, por ocasião do juramento daquela carta aos habitantes de Pernambuco. O povo e os seus representantes jamais aceitavam a doutrina imperial sobre a escolha e a permanência dos ministérios. A vida dos sucessivos governos foi, por isso, uma luta permanente como a opinião pública e o parlamento, até que em 20 de3 março de 1831, em face de uma situação francamente revolucionária, o chefe do Estado viu-se levado a 18 aceitar a demissão do ministério do Visconde de Alcântara, para designar um outro no qual, com Bernardo José da Gama, entravam os liberais Carneiro de Campos e Holanda Cavalcanti. Mas, como poderia conter a exaltação popular um governo que dela nascia? No dia 25, aniversário do juramento da constituição, o imperador é ostensivamente mal recebido numa numerosa manifestação aos gritos de “Viva Pedro II!...” Os ministros que nesse momento se achavam ao lado do monarca, limitam-se a convocar a assembléia para uma sessão extraordinária, o que só podia vir dar maior prestígio ao movimento popular, e no dia 5 de abril, Pedro I, abandonando toda prudência, demite o ministério liberal, para organizar um governo nitidamente reacionário, onde o Visconde de Alcântara reaparece ao lado do Marquês de Inhambupe. A agitação popular chega então ao seu cúmulo. No dia seguinte o povo amotina-se no Campo de Sant”Anna e manda dizer ao imperador, pelos seus juízes de paz eleitos, que era necessário despedir aquele gabinete de áulicos, para imediatamente reintegrar no poder o ministério anterior. O imperador peremptoriamente recusa, proferindo então o dilema que constituíra toda a orientação do seu reinado: “Tudo farei para o povo; mas nada pelo povo!”. No dia 7, a operação militar de 12 de novembro de 823 ia recomeçar. Mas, desta vez , ela desenvolvia-se em sentido inverso. As tropas avançariam da cidade para São Cristóvão, cobrindo a marcha do povo amotinado... O governo da Regência, que se seguiu à abdicação forçada de Pedro I, não teve a elevação necessária para encarnar o espírito real e profundo do movimento de 7 de abril. A bem dizer, a Regência tomou da revolução apenas o 19 seu lado estreitamente nacionalista, sem conseguir o imperador de origem estrangeira e afastados os elementos portugueses da sua confiança imediata, os diretores da nova situação julgaram que o principal estava feito. A revolução havia posto o problema político nos seus termos exatos e insofismáveis: - os ministros, isto é, o governo deve depender sempre da confiança pública, expressada nos votos do parlamento. Entretanto, os regentes e os seus ministros, sem compreenderem que a agitação popular donde surgiram carecia de um certo tempo para desaparecer completamente, foram tomados de pânico ante os motins subseqüentes, e rapidamente tenderam para a reação sistemática. O senado vitalício, ainda nomeado por Pedro I, constitui-se em barreira contra a reforma constitucional concebida pela câmara dos deputados. As discussões eternizam-se entre as duas casas do parlamento, e quando, em 1834, é afinal votado o “Ato Adicional” pelas duas câmaras reunidas em constituinte, a única alteração constitucional que integralmente se salvou da redução sistemática a que todas as demais foram submetidas, foi a supressão do Conselho de Estado. Ora, o desaparecimento do Conselho de Estado, sem a concomitante extinção do poder moderador, só podia servir para tornar mais absoluto o exercício pessoal do poder executivo, e quando, no ano seguinte, o padre Diogo Feijó recebeu a alta investidura de regime único, o problema político que continuara insolúvel, reassumiu nitidamente o seu caráter específico. É na sessão legislativa de 1837 que se tem talvez o espetáculo mais impressionante e sugestivo desse indomável esforço do sentimento liberal contra o princípio autoritário. Logo na abertura, no dia 3 de maio, a resposta à fala do trono 20 apresenta-se clara e decisiva. Ela reconhece que a cooperação do parlamento com o poder executivo é a base de uma situação normal no regime representativo. “Mas esta cooperação (textual), a câmara dos deputados faltaria aos seus mais sagrados deveres se a prestasse a uma administração que não goza da confiança nacional”. O deputado Visconde de Abaeté, que defendia o ponto de vista governamental, levanta-se contra aquelas expressões. “Fundando-se nas atribuições dos poder5es políticos, declarados independentes pela constituição, ele entendia que à coroa pertencia a exclusiva e livre nomeação dos ministros, e que a doutrina apregoada pela comissão do voto de graças (comissão que redigia na câmara do império a resposta à fala do trono) tornava a câmara tão onipotente, que os ministros não passariam de seus pupilos”(4). Apesar de defendido assim por um dos mais eloqüentes oradores daquele tempo, o ministério não pôde resistir à maioria da câmara. No dia 16 daquele mês, o regente Feijó, contra a sua vontade e todos os seus esforços, via -se na contingência de assinar a demissão do ministério. Entretanto o regente fora vencido apenas pela repugnância dos ministros em voltarem perante a câmara. Ele achava que o gabinete, desde que tinha a sua confiança pessoal, podia muito bem manter-se, sem embargo da atitude hostil dos deputados, e, ao designar o governo que se seguiu, ele o fez por si, sem querer contar com o modo pelo qual o parlamento o recebesse. Era uma personalidade bem curiosa a desse padre regente do império... Amante da ordem, ele chegava a confundi-la com a sua permanência no poder, dando facilmente em conspirador quanto o apeavam. Sacerdote, ele prezava tanto as suas funções que, para obter a dignidade 21 episcopal, não vacilava em comprometer essa pretensão as relações do Brasil com a Santa Sé, ao mesmo tempo que se insurgia contra a regra da igreja, para o fim pessoal de poder casar-se. O seu caráter, misto de violência brutal e felina sinuosidade, manifesta-se todo na maneira pela qual organiza e joga contra o parlamento aquele gabinete de 16 de maio. O homem que ele escolhe para a empreitada, Manoel Alves Branco, pretende, aplainar as dificuldades que o esperam por meio de um prévio entendimento com a maioria. Mas Feijó se opõe, concordando entretanto, em que o novo ministro declare só aceitar o governo naquelas condições, forçado por motivos de gratidão particular a sua pessoa. Essa declaração, aliada à circunstância d ser Alves Branco um espírito sabidamente liberal, podia ser tomada como esperança de uma atitude governamental menos intransigente. O padre Feijó logo no dia seguinte, destruiu, porém, essas ilusões. “Desejoso de dar uma lição aos deputados, ele faz publicar no “Correio Oficial” a notícia da nomeação dos novos ministros, acompanhada de um artigo no qual se dizia que a perseverar a Câmara nas suas veleidades de influir no governo, o regente a dissolveria, pois o poder executivo era independente do legislativo e não podia sujeitar-se a maiorias de câmaras, que eram várias e caprichosas...”(5). Essa estéril e especiosa discussão de atribuições constitucionais, chegou a assumir aspectos de um cômico irresistível. Nas sessões de 1 e 2 de julho, o almirante Tristão Pio dos Santos, Ministro da Marinha do novo gabinete, convidado por Bernardo de Vasconcelos a explicar à câmara a necessidade de certos recursos militares que reclamava no seu projeto de orçamento, entende de responder apenas o seguinte: 22 “Penso que o poder executivo é poder separado, delegado pela nação, e não tem, pois, obrigação de apresentar ao corpo legislativo senão o resultado das suas medidas.” Era sem dúvida levar muito longe o princípio da independência dos poderes, Bernardo de Vasconcelos responde com irônica vivacidade, terminando pro declarar que não lhe pareciam muito sérias nem aquela situação nem a própria pessoa do ministro. Então Pio dos Santos, exaltado, lança estas palavras realmente pitorescas: “O que se pretende é que o ministro, entrando por aquela porta diga – Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo1! Sua benção meus senhores.(6) É isto o que se pretende. Peço forças, e dizem-me que o governo não merece confiança. E por que? Porque não venho aqui tomar a benção e dizer – meus senhores não querem mais nada?” Compreendese a imensa gargalhada que acolheu este pequeno modelo de eloqüência parlamentar... Com debates desta natureza, nem os orçamentos conseguiam ser votados, e assim se mantiveram, com pequenas e rápidas variantes, as relações do governo com o parlamento, até que, no dia 22 de junho de 1840, os deputados se amotinam na câmara e conduzidos por Antônio Carlos, partem incorporados para o edifício do senado. O povo das ruas, ao vê-los acompanhados dos assistentes das galerias, que também seguem aclamando-os, incorpora-se ao tropel, à medida que vai passando. O senado é invadido e, no recinto das sessões, confundidos senadores e deputados naquela vaga de exaltação, a maioridade de Pedro II é revolucionariamente proclamada, para que o jovem imperador assuma desde logo as suas funções de chefe supremo do Estado. 23 A Regência, até aquele último momento, tenazmente insistira pelo predomínio do poder pessoal nas decisões do governo. Mas o nosso país, durante os nove anos da sua permanência, não teve um só dia de tranqüilidade. As finanças públicas foram apenas uma desoladora continuação da incurável penúria orçamentária do primeiro reinado, e a guerra civil foi o regulador de fato de todas as nossas relações internas. O Rio de Janeiro, com a imprensa perseguida e as prisões cheias, viveu sob o terror de motins sucessivos, e, nas províncias, “as revoltas destacavam-se em datas vinculadas em série: no Ceará (1831-1832), em Pernambuco (1832-1835), no Pará (1835-1837), na Bahia (1837-1838), no Maranhão (18381841) e abrangendo-as, somando-as, a longa agitação no Rio Grande (1835-1845)”(7). A indomável reação do povo brasileiro contra as pretensões do poder pessoa, durante a Regência, foi tão grande, que chegou a extravasar cinco anos para além daquele atormentado período!... NOTAS (1) Crowned republic. Vide A Short History of the World. cap. LXV, pág. 246, Ed. Tauchnitz, Leipzig, 1923. Aliás, a expressão república coroada, já fora empregada muito antes de Wells, especialmente em relação ao Brasil, por Victor Hugo (démocracie couronnée) e William Gladstone (crowned democracy), em artigos na imprensa de Paris e de Londres, quando da segunda visita de Pedro II à Europa. O presidente Rojas Paul, da Venezuela, ao ter notícia da queda da monarquia brasileira, teve, por sua vez, estas significativas palavras, citadas por Oliveira Lima, no frontspício do seu livro “O Império Brasileiro”. Se há acabado la unica republica que existia en America – el Império del Brasil... 24 (2) Fala do trono lida por Pedro I perante a constituinte, em 3 de maio de 1823. (3) Anais da Câmara dos Deputados – 1823. (4) PEREIRA DA SILVA, - História do Brasil de 1831 a 1840. Pág. 226. Garnier Edit. Rio de Janeiro. (5) PEREIRA DA SILVA, op. cit., págs. 219 a 230. (6) Fórmula usual de saudação dos escravos aos senhores. (7) EUCLIDES DA CUNHA – À margem da História, pág. 320 – Porto, Editora Chardron, 1913. CAPITULO II A MAIORIDADE E A POLÍTICA DE CONCILIAÇÃO Nós somos de opinião que a maioridade de Pedro II, proclamada revolucionariamente em 1840, foi um dos fatos mais importantes e decisivos de toda a nossa história política. A circunstância de havermos investido nas funções de chefe supremo do Estado a um adolescente de quinze anos, que pela sua própria idade não podia intervir sensivelmente nos negócios públicos, fez com que a sede habitual do governo se deslocasse do paço e dos conselhos privados para as duas casas do parlamento. Cessou automaticamente a luta entre o poder pessoal do imperante e os representantes do povo, que tendo ocupado todo o reinado de Pedro I e provocado a 25 revolução de 1831, transmitira-se depois à Regência, sob a forma daquela exaustiva e perturbadora discussão acadêmica sobre divisão e independência dos poderes do Estado. Essa é a verdadeira significação histórica da revolução parlamentar da Maioridade. Infelizmente, o velho método de grupar os fatos segundo as épocas, fazendo-os girar em torno de uma individualidade preponderante, para deles extrair apenas o elogio ou a condenação pessoal dessa individualidade, veio prejudicar, nos nossos estudos históricos, o conceito que devíamos formar daquele acontecimento, privando-nos dos claros ensinamentos que ele nos pode oferecer. Basta ler um dos maiores historiadores daquela época, o conselheiro Pereira da Silva. Para ele, a conseqüência principal da M aioridade foi “arrancar o país ao regime fraco das regências eleitas e a exclusiva preponderância parlamentar, restituindo-o à ação imediata do príncipe...”(8). Ora, foi precisamente o contrário o que se produziu. O próprio Pedro II desmentiu mais tarde a grade influência pessoal a ele emprestada pelos historiadores no início do seu reinado, afirmando com louvável exatidão que, naquele tempo, as suas maiores preocupações não passavam além dos estudos de Humanidades. Entretanto, a sua ação pessoal direta, sobre o conjunto total dos negócios públicos, tornou-se o ponto de resistência obrigatório de todos os comentadores, tanto dos que empreenderam o seu elogio, como daqueles que lançaram a cavilosa atoarda da sua prepotência, mesmo disfarçada, para o fim de apresentá-lo com o caráter antipático de um déspota. Impelidos por motivos diversos, mas convergentes no processo, todos eles se empenharam em ocultar o mérito principal do nosso grande imperador, que foi 26 sem dúvida o de ter sido entre nós o maior cidadão de sua época. Nesse estreito modo de apreciar a personalidade de Pedro II, os cronistas estão, aliás, de perfeito acordo com o sentimento popular, que nele sempre enxergou a causa evidente e necessária da grande tranqüilidade pública e da alta moral daquele tempo, Mas é preciso considerar os indivíduos, não como fontes de acontecimentos, mas sim como funções mais ou menos importantes do meio social em que vivem. Pedro II não foi o criador do espírito do seu tempo; foi uma conseqüência dele. Separado da família aos seis anos de idade e entregue aos cuidados dos revolucionários de 7 de abril, a sua mentalidade formou-se naturalmente ao influxo das idéias daqueles homens. Há uma circunstância histórica, da qual hoje quase não nos lembramos mais, que, entretanto, não escapou à observação bem educada e arguta do inglês John Armitage, na sua excelente “História do Brasil”. É a de que a revolução brasileira de 1831, foi, espiritualmente, uma repercussão imediata da revolução francesa de 1830, que depusera a Carlos X, o segundo rei da monarquia instaurada em França após a ruína de Napoleão Bonaparte. Vinda depois da imensa agitação revolucionária que sacudira o mundo desde a queda da Bastilha em 1789, até a batalha de Waterloo em 1815, a presença dos Bourbons no trono de França, sobretudo com o sentido que lhe dera a grande concentração reacionária do Congresso de Viena, transformara-se evidentemente numa espécie de testemunho universal e permanente da imprescri tibilidade do direito divino dos reis. A exaustoração de Ca rlos X, seguindo-se ao repúdio total dos princípios do Congresso de Viena por parte da Inglaterra e a célebre declaração do 27 presidente Monroe em 1823, surgira portanto como uma demonstração definitiva e irrevogável de que a humanidade não estava disposta a abandonar as grandes idéias do século XVIII, que haviam produzido a revolução de 1789. Foi naquele acontecimento de incalculável significação moral, que os liberais brasileiros encontraram as últimas energias para vencer as pretensões autoritárias do imperador Pedro I. Os nossos compatriotas daquele tempo, apesar da reação praticada pela Regência, sabiam muito bem em que pensavam, quando se referiam aos princípios da sua revolução de 1831. Esses princípios eram, sem o menos sofisma, as grandes idéias morais nascidas no século XVII com Bacon e Descartes, que, através de Locke, Spinoza, Shaftesbury, Clarke, Leibniz, Montesquieu, Adam Smith, David Hume e Jeremias Bentham, vieram condensar-se, nas vésperas de 1789, no “Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano”, de Condorcet e em todo o prestigioso conjunto da Enciclopédia. Eram bem a liberdade política, expressada na participação permanente e eficaz de todos os homens livres no poder público; isto é, a substituição da obediência, nas relações políticas , pela subordinação raciocinada e consentida. José Bonifácio, o primeiro tutor que os revolucionários de 7 de abril consentiram aos filhos de Pedro I, era um erudito e um sábio, fortemente inclinado à “Enciclopédia”. Num trabalho do Visconde de Cairú, publicado no Rio de Janeiro em 1833, sob o título de “Manual de Política Ortodoxa”, encontram-se transcritos dois exercícios de composição dos pequenos príncipes imperiais, que mostram bem o sentido da educação que lhes foi dada. O primeiro, assinado Pedro II, diz 28 o seguinte: “À proporção que o homem figura mais na Sociedade maior obrigação tem de trabalhar na utilidade de seus associados. É com esta condição que os homens sofrem que um dos seus iguais transponha as balizas da igualdade marcada pela natureza”. No segundo, é a princesa Fona Francisca que desta maneira escreve: “Ninguém pode ser feliz em um governo despótico. O despotismo é contrário aos fins das Sociedades civis e oposto à vontade de Deus, que criou o homem livre para ser feliz”. Aí estão, como se vê, as idéias do “Contrato Social” de Jean Jacques Rousseau, combinadas com o nobre utilitarismo de Jeremias Bentham. Não é provável que aqueles conceitos fossem originais de Pedro II, então de sete ou oito anos apenas, nem de Dona Francisca, que era pou co mais velha. Mas esses dois ditados revelam claramente o mé5todo de preparação cerebral a que os jovens príncipes eram submetidos pelos seus preceptores. Foi nessa atmosfera, nesse ambiente moral intensamente sensibilizado, que se formou o caráter do nosso segundo imperador, e pôde-se dizer com segurança que o “neto de marco Aurélio”, na expressão romântica de Victor Hugo, foi sobretudo um produto mental da filosofia do século XVIII. A verdade é que jamais Pedro II tentou colocar a sua vontade pessoal acima da opinião geral do seu país. No início do seu reinado, não o permitiria a sua tenra idade. Depois, a elevada cultura do seu espírito o foi tornando incompatível com todas as idéias e processos de violência. Ele aprendera que as instituições políticas, como fatores históricos, têm uma missão peculiar e um período determinado, além dos quais não subsistem, senão como acidentes mais ou menos perturbadores. Ele sabia que o poder moderador, concebido na 29 reação autoritária do Congresso de Viena, não passava d e um compromisso precário e insubsistente do velho direito divino com sentimento moderno, não podendo portanto compreender o governo e as suas funções, no mesmo sentido que lhes deram Pedro I e o padre Diogo Antonio Feijó. Entretanto, a visão falsa de Pereira da Silva, que naquele velho conselheiro da coroa bem podia ter sido apenas uma forma de reverencia palaciana, transmitiu-se depois aos cronistas que o sucederam, tornando-se o ponto de partida de todos os comentários feitos ao passado regime. Euclides da Cunha leva esse modo de ver ao extremo de atribuir a escolha de Antonio Carlos para organizar o gabinete de 1840, à simples “gratidão” do imperador aos batedores da sua maioridade inconstitucional...(9). O notável etnógrafo dos jagunços de Canudos, cedendo aos preconceitos da propaganda republicana na qual se viu envolto na sua juventude, evidentemente careceu ali de perspicácia. Antonio Carlos não seria elevado ao poder só pelos impulsos afetivos de um adolescente. O que naturalmente o indicou para aquele posto, foi o prestígio que lhe veio do fato de ter sido ele, entre todos os parlamentares da câmara e do senado, o agente principal e decisivo da Maioridade. Perante o entusiasmo popular daquele momento, que provinha da realização de uma aspiração geral , nenhum outro político poderia disputar-lhe aquela primazia. Ele subiu ao poder porque assim o indicavam a opinião pública e a maioria do parlamento, das quais o governo necessariamente passava a depender. A tendência a personalizar todos os fatos no imperador, acentua-se tanto no “à margem da História”, que chega a descobrir naquele menino de quinze anos uma sinuosidade, 30 digna de um velho príncipe que longamente houvesse manuseado e aceito ao pé da letra a “Educação” de Maquiavel. Efetivamente, ali se encontra que o jovem Pedro II só escolheu um ministério liberal em 24 de julho de 1840, para dar uma momentânea e enganosa satisfação aos que mais se esforçaram pela sua coroação imediata. A sua verdadeira política, aquela que ele no íntimo tinha assentado, sem nada dizer aos seus ministros, só se revela a 23 de março, quando, despedindo aquele gabinete de menos de um ano, ele escolhe para substituí-lo um outro de feição conservadora e francamente autoritária. “A reação monárquica desmascarou -se logo; foi exagerando-se até golpear o Ato Adicional”, diz Euclides da Cunha. A realidade porém, foi muito outra. Antonio Carlos, apesar da sua orientação teoricamente liberal, sempre com tanto brilho sustentada, no governo manifestou-se de uma parcialidade intratável e absoluta. O novo ministério, como arrastado pelo próprio espírito de combatividade dos acontecimentos que o produziram, apenas concedida a anistia pelos crimes políticos do período regencial, que aproveitava sobretudo aos seus correligionários, logo entrou a perseguir os adversários por toda parte onde pudesse atingi -los. Iniciou-se uma derrubada geral nos postos da administração pública. Quatorze presidentes de província foram imediatamente demitidos, passando-se aos juízes de direito, os chefes de polícia e os diretores de serviço de nomeação direta dos ministros da coroa. Em seguida, através dos novos presidentes enviados para as províncias, a derrubada prosseguiu inexorável sobre os empregados menores e subalternos de todos os ramos da organização administrativa, até atingir os próprios juízes de 31 paz eleitos pelo povo, que foram suspensos para não poderem presidir as mesas das próximas eleições legislativas. Graças a esse violento trabalho preparatório, as eleições para a renovação da câmara dos deputados, realizadas a 13 de outubro de 1840, resultaram numa completa vitória para o governo. Mas a reação contra essas processos de brutal exclusivismo, avolumando-se nas queixas dos diretamente prejudicados, rapidamente ganhou a unanimidade dos jornais, indo profundamente alarmar as altas esferas políticas da corte. Não era aquele governo que a nação esperava para encerrar a campanha sangrenta e pertinaz sustentada até ali contra o poder pessoal. A oposição levantou-se de todos os arraiais da política, num desapontado e geral movimento de estranheza, e quando o imperador lançou a sua assinatura sob o decreto de 23 de março de 1841, pelo qual foi demitido o gabinete, apenas obedeceu aos conselhos dos maiores homens do império, que sem distinções de partidos, lhe vieram recomendar aquela medida como indispensável e urgentíssima. Escreveu Euclides da Cunha que a partir daquele momento “desmascarou-se a reação monárquica”. Depende naturalmente do que o autor do “À Margem da História” entendia como reação monárquica. Se o país, com o advento do jovem imperador considerava encerrada a luta contra o poder pessoal e sinceramente esperava a extinção dos últimos movimentos armados que a Regência deixara, não era sem dúvida para que aquele poder se transportasse do chefe supremo do Estado para a pessoa secundária do presidente do conselho. Antonio Carlos, com as suas eleições de fatura administrativa e policial, pretendeu apenas estabelecer em seu 32 proveito um sistema de governo tão violento e unipessoal como o de Pedro I ou o do regente Feijó. Foi esse o motivo real da sua queda e não o desejo de Pedro II de reforçar aos dezesseis anos de idade um poder imperial que de fato ainda não exercia – nem jamais exerceu, no sentido que lhe emprestaram os oradores e cronistas republicanos. É verdade que o gabinete Paranaguá adotou, logo de entrada, toda uma série de medidas que bem podiam ser tidas por draconianas. Mas essas medidas foram livremente discutidas no parlamento, reunido quarenta e um dias após a queda do ministério Antonio Carlos, para a última sessão daquela legislatura, e aceitas com evidente aplauso da opinião geral. O restabelecimento do Conselho de Estado, tido como uma das provas mais convincentes da ação reacionária do novo gabinete, foi um fato que se produziu espontaneamente, quando os homens de maiores responsabilidades morais daquela época acorreram ao paço a solicitar a demissão do ministério da Maioridade. Esse restabelecimento operou-se tacitamente antes de estar empossado o gabinete conservador, e a melhor demon stração do espírito que o determinou é a própria composição do Conselho restaurado. Ao lado de conservadores como Honório Hermeto, Bernardo de Vasconcelos e Araújo Lima, entram os liberais Alves Branco, Lopes Gama e José Joaquim de Lima e Silva, todos acompanhados de homens precisamente estimados pela sua completa ausência de sentimento partidário, como Silva Torres e Dom frei Pedro de Santa Mariana. A câmara, eleita pelo escandaloso processo de compressão de 1840, foi, como era inevitável, dissolvida, ainda em sessão preparatória, a 2 de maio de 1842, tendo o decreto da sua dissolução convocado uma outra para o mês de 33 novembro daquele último ano. Os fatos que determinaram a crise ministerial de 1841, com a conseqüente dissolução do parlamento, não deixam de ter sido bem penosos. Mas é necessário reconhecer que, a partir daquele momento, o governo definitivamente passou a depender da representação parlamentar, Foi na câmara cujo mandato expirava no fim de 1841 que o gabinete Paranaguá, instalado em março dess e ano, encontrou o apoio indispensável à sua enérgica e decidida ação governamental. Não é possível portanto dar com propriedade à política do Marquês de Paranaguá o qualificativo de “reação monárquica”. Essa política, evidentemente baseada no consentimento geral, teve como seu principal objeto a pacificação interna. É precisamente na ação militar necessária à extinção do vasto tumulto revolucionário herdado da Regência, que melhor se revelam as tendências do gabinete de 23 de março de 1841. As operações de guerra, limitando-se a colocar o adversário na impossibilidade de causar dano, transformam-se, sob a generosa e sábia direção do general Barão de Caxias, numa cordial solicitação de entendimento. As forças que em 1842 partiram a dominar a revolta nas províncias de São Paulo e Minas Gerais tomaram o nome de Exército Pacificador, e, ao entrarem vitoriosas na cidade de Mariana, o general manda retirar das ruas o empavesamento festivo com que o esperavam e transformar o “Te Deum!” em ação de graças pelo seu triunfo, em uma missa de “réquiem”, por todos os irmãos brasileiros caídos sob qualquer das duas bandeiras que se defrontaram na peleja. Naturalmente, sempre será possível falar da áspera energia do gabinete Paranaguá. Mas não resta a menor dúvida de que, a partir dele, ficou definitivamente assentado o 34 processo de funcionamento das nossas instituições políticas. Foram os votos do parlamento que passaram a regular a escolha e a duração dos ministérios, e, se até as grandes e memoráveis eleições de 1860, a nossa política manteve sempre uma linha geral acentuadamente conservadora – mesma através de gabinetes liberais – foi porque a grande maioria da nação assim o entendeu por necessário. A opinião pública fora dominada pela sábia preocupação de evitar qualquer aventura capaz de comprometer a ordem pacífica e natural da nossa evolução. Em face de toda uma América Latina convulsa e arruinada, deliberadamente foram respeitadas as ultimas fronteiras da monarquia para a república, porque se reconhecera no império a melhor e mais segura garantia da paz interna e da unidade do país. Procurar as causas de um fato histórico de tão profundas conseqüências como a política do Marquês de Paranaguá, no simples capricho de uma criança, é apenas uma tendência. A verdade é que, vencidas as pretensões ditatoriais da coroa com o movimento parlamentarista da Maioridade e corrigidos os excessos partidários do ministério Antonio Carlos, a vida nacional passou a caracterizar-se por uma espécie de concentração de todas as suas energias, no sentido de resistir ao perigo do desmembramento do Império. Esse perigo do esfacelamento da grande nacionalidade apresentava-se de duas maneiras. De um lado, como extensão ulterior da resistência ao poder pessoal, perdurava ainda a revolta das províncias contra o centro. A atividade revolucionária, tendo perdido o seu ponto objetivo de reação, transbordava tumultuariamente para a negação imediata da monarquia, sem base para a organização eficaz de um novo estado de coisas. De outro 35 lado, Buenos Aires continuava a cultivar com entusiasmo a velha hostilidade castelhana contra a formação de uma grande pátria de origem portuguesa no continente. Vivendo entre si na mais fratricida e exasperada desordem, só numa coisa se acordavam facilmente os antigos colonos espanhóis do rio da Prata: na preocupação de destruir o Império do Brasil... No Rio Grande do Sul aquelas duas formas do nosso grande perigo nacional se conjugavam. Não é possível desconhecer que a causa geral da guerra dos Farrapos tenha sido o descontentamento dos liberais rio-grandenses, em face dos processos autoritários do primeiro reinado, herdados pela Regência. Filiando-se imediatamente às revoluções do Ceará e de Pernambuco, que na sua sucessão cobriram o período de 1831 a 1835 ela coincidia com a violenta reação armada surgida no Pará naquele último ao e que, emendando -se no seu termo com a revolta baiana de 1837 a 1838, dali se mantivera até 1841, na guerra dos Balaios, do Maranhão. Era parte de um movimento generalizado de Norte a Sul, que tinha a sua explicação lógica nas decepções da nossa política interna. Mas logo a partir de 1836, devido à intervenção de elementos estrangeiros vindos do Rio da Prata, a revolução rio-grandense tomou um aspecto diverso, tendendo à separação. Não seria possível estudar os nossos negócios internos durante os dois primeiros decênios do segundo reinado, sem fazer uma referência às relações que nesse período mantivemos com a Confederação Argentina. Desde que, a 13 de dezembro de 1828, fora fuzilado em condições tão dramáticas o presidente Manoel Dorrego, de Buenos Aires, que reconhecera a independência do Uruguai, firmando conosco o tratado de 27 de agosto daquele ano, era lícito supor 36 que as províncias argentinas não nos deixariam tranqüilos por muito tempo. Dorrego, tendo-se desavindo com os seus amigos “federales”, sem obter em câmbio a confiança dos “unitários”, foi vítima sem dúvida das condições políticas internas do seu país. Mas o fato de haver ele promovido um tratado de paz e amizade com o Brasil, não deixou de muito concorrer para o seu martírio. O presidente Bernardino Rivadavia, a quem ele sucedera no poder em 1827, após o rápido governo Vicente López, caíra precisamente por haver enviado o ministro Manoel Garcia a tentar a paz no Rio de Janeiro. Os inimigos de Dorrego certamente não se privaram de ligar aquelas duas circunstâncias para, além de tudo, apresentá-lo como um traidor à causa nacional. Ora, se um desfalecimento no ódio ao Brasil podia ser de tão graves conseqüências, é evidente que a demonstração de uma irredutível e vigilante hostilidade contra nós fosse também um título excelente à estima pública. Assim o entendeu imediatamente o ditador Juan Manuel Rosas. Apenas ele ascende ao governo da província de Buenos Aires, em 1832, logo surge em Porto Alegre o propagandista Manuel Ruedas, que, aproximando-se naturalmente dos círculos da oposição, tem recursos para apossar-se do “Recompilador Liberal”, mantido até ali pelos farrapos como seu órgão. Em 1833, tendo deposto o governador Ramom Belcarce que o substituíra, e estendido o seu poder a todas as províncias, Rosas nos manda o seu amigo Tito Zambicari, conde italiano e pregador da república, seguido em 1834 pelo gênio agitado e intrigante de Dona Anna Monteroso, mulher do general Lavalleja que, em 1827, comandara contra o Marquês de Barbacena, na batalha de Ituzaingó. Em janeiro de 37 1835, afinal, Gregorio Lamas vem, pelos mesmos canais, a porto Alegre... Sobre todo o Brasil continuava a tresloucada política da repressão “a outrance”, instituída pelo padre Feijó, em nome do princípio extremo e absoluto da autoridade, caracterizada no Rio de Janeiro pela incompatibilidade cada vez maior do poder executivo com o parlamento. A revolta só se deixava sufocar num ponto para rebentar mais adiante, e nessa deplorável situação geral, a ação daqueles elementos estrangeiros no Rio Grande, revelava-se de uma terrível eficácia. No mês de maio, o governo provincial alarmado, inicia uma decidida e violenta perseguição aos farrapos. Para fins de destituição e encarceramento, são mandados processar os juízes de paz eleitos pelo povo de Porto Alegre. Todos os oficiais e funcionários conhecidos pelas suas idéias liberais são arbitrariamente demitidos ou afastados. Na “campanha”, aquela insólita atitude da presidência da província imediatamente repercute em toda a sorte de violências pessoais de que sabe ser tão fértil a política partidária do interior, e, sob a impressão desses fatos, a assembléia abre-se a 20 de abril num verdadeiro tumulto. Era nesse ambiente que vinham ecoar as notícias da revolução surgida no Para em janeiro daquele ano, na qual já dois presidentes da província haviam perdido a vida. Ali, como no Rio Grande do Sul, os partidários da reação chamavam-se “caramurus”, e os motivos do descontentamento geral eram idênticos. A sugestão revolucionária uniu portanto os dois extremos do país e utilizando os recursos militares que se lhes ofereciam bem mais fáceis pela fronteira, os liberais rio-grandenses também partiram para a guerra. 38 Nada nos prova que a revolução gaúcha de 1835 envolvesse, no seu início, a idéia de instaurar no Rio Grande do Sul, qualquer sistema político diferente ou destacado do Império. Os seus promotores, a princípio, só falavam no restabelecimento dos processos legais da monarquia, que a reação autoritária esquecera para abolir as liberdades públicas, O farto de homens como Manoel Luiz Osorio, depois o grande general Marquês de Herval, haverem repudiado aquele movimento após a proclamação de Piratini, mostra vem que a república foi uma surpresa e, em grande parte, uma decepção. O recurso extremo da separação, só foi aceito pelos farrapos em outubro de 1836, depois da grande derrota por eles sofrida na Ilha do Fanfa. Não é difícil reconstituir a psicologia dos farrapos no dia seguinte àquela batalha. Estavam destroçados. Os seus mais hábeis chefes militares tinham caído prisioneiros e o melhor das suas armas e munições estava perdido. Como reorganizar, sem novos recursos, um exército do qual, a bem dizer, só restavam feridos, recolhidos por caridade à casa dos moradores, e extraviados pelas coxilhas? Não era provável que o governo de Buenos Aires se mostrasse disposto a manterlhes ainda as suas simpatias, depois de assim desmoralizados; tanto mais que a revolução pretendera, até aí, conservar -se fiel à unidade do Brasil, quando só a separação realmente o interessava. O tom de voz dos agentes argentinos deve mesmo ter mudado muito naquele transe, passando das insinuações amistosas a uma formal propositura de condições., Proclamassem a república, separassem-se do Brasil, e não lhes seriam regateados os meios de resistência. Do contrário, a simples regeneração dos costumes políticos do Império não 39 podia interessar seriamente a Don Juan Manuel. Tornou-se necessário decidirem-se pela submissão imediata ou pela república. Tal foi o caminho pelo qual chegaram os farrapos a Piratini. Desarmados entre ânimo de intransigente repressão do padre Feijó e as solicitações de Buenos Aires, eles inclinaram se para estas, fugindo à tirania regencial pela separação. A república era, afinal de contas, uma vela idéia que, naquele momento de profunda perturbação, lhes parecia de certa forma justificar o sacrifício da grande nacionalidade. Infelizmente para os liberais do Rio Grande, a república que Rosas lhes mandava era apenas a de João Facundo Quiroga, de Bustos ou de Reinafé, cujos remanescentes ele mesmo então liquidava em sua terra, na chacina lôbrega e permanente da Masorca. Tratava-se somente de uma sangrenta alavanca, atirada por cima da fronteira, para deslocar entre si os componentes da grande nação luso-americana. A obra de grande estadista do Marquês de Paranaguá consistiu toda em neutralizar e destruir aqueles germes de dissolução. Iniciada com o gabinete de 23 de março de 1841, essa prudente e severa política foi rigorosamente mantida, através dos diferentes governos conservadores ou liberais que se seguiram, até 1862. A integridade nacional, a conservação do patrimônio material do território e do patrimônio ainda mais caro da língua, dos costumes e das tradições da raça, eis o cuidado maior ao qual foram condicionadas todas as demais preocupações daquele tempo. Essa foi para o povo brasileiro a idéia predominante, até ver o seu país definitivamente consolidado num sistema geral de fronteiras, que nunca mais 40 pôde ser alterado ou mesmo corrigido, num sentido qualquer de restrição. Mas uma tal política, que necessariamente exigia uma forte tensão moral e uma energia inquebrantável, em momento algum do seu transcurso, jamais chegou a objetivar-se na imposição de uma vontade individual preponderante. Ela foi sempre o resultado do sentimento geral, expressado nos votos do parlamento. Foi o nosso grande parlamento do Segundo Reinado, inspirando-se nobremente nos próprios deveres do seu mandato, quem soube encontrar, na consciência pública, toda a força de que então se serviram os nossos homens de governo. A questão da independência dos poderes do Estado, que se mantivera tão especiosa e irritante com Pedro I e a Regência, desapareceu completamente das relações da câmara com o executivo. Ninguém mais pôs em dúvida que fossem os corpos legislativos, como representação imediata do povo, a fonte legítima e constante de toda autoridade pública. O próprio ato de dissolução da câmara irregularmente eleita em 1840, tomou o caráter de uma solene consagração desse princípio essencial. No relatório enviado à coroa no dia primeiro de maio de 1842 para o fim daquela resolução, o ministério, coletivamente, assim se expressava: “A salvação do Estado, tal qual se acha constituído pela constituição e seu ato adicional, exige portanto que a atual câmara dos deputados seja substituída por outra, a quem a liberdade do voto dê o caráter de representante da opinião nacional e a força moral indispensável para firmar entre nós o sistema monárquico constitucional-representativo”. O governo, ao mesmo tempo que desfazia um ajuntamento sem mandato regular, devolvia à 41 câmara a sua função de principal reguladora da vida do Estado, reconhecendo e proclamando que era sobre ela e por ela que se deviam firmar as instituições do Império. No dia 20 de janeiro de 1843 o gabinete Paranaguá é substituído por um outro onde aparece a figura eminente de Honório Hermeto Carneiro Leão. O novo ministério é apresentado à câmara no dia 23, pelo titular da pasta da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, com as palavras seguintes: “Sinto a necessidade que tem o governo de expor com toda a lealdade os seus princípios, afim de que a Câmara possa dar-lhe ou retirar-lhe o seu apoio. O ministério e o país têm necessidade disto; o país tem necessidade de um ministério fortemente organizado, fortemente apoiado pelo corpo legislativo, e não deseja que a Câmara se mostre dúbia por considerações quaisquer. Ela deve manifestar com muita energia o seu pensamento, para que assim possamos ter o governo que, sustentado pelas câmaras, possa promover a felicidade da Nação.” O regente Feijó dizia em 1837 que o poder executivo devia ser independente do legislativo e não sujeitar -se a maioria de câmaras, que eram várias e caprichosas... Pois bem: a partir de 1841, passando aquele poder a depender do parlamento, a política geral e a administração pública, através dos ministérios que se sucedem ao sabor “vário e caprichoso” daquelas maiorias, assumem um espírito de seqüência e eficaz continuidade que jamais haviam conhecido. Em 1844, a situação conservadora cede o lugar a um gabinete onde novamente se divisa o grande perfil liberal de Manoel Alves Branco. Mas a concentração nacional do Marquês de Paranaguá ainda mais se acentua, pela anistia dos antigos 42 revolucionários das províncias do Norte e do Centro, já de todo pacificadas. Generaliza-se então a designação sugestiva de “política de conciliação”, adotada por Honório Hermeto ao iniciar a vida do ministério anterior. O general Barão de Caxias, que Paranaguá mandara a reduzir os farrapos no Rio Grande, apesar de conservador pelas suas idéias, é mantido no seu posto pelo governo liberal. Os clarins do seu exército, a ecoarem pelas cochilhas, haviam despertado o sentimento nacional no extremo Sul. E o governo Alves Branco pôde assim encerrar a guerra dos Farrapos, sem vencedores nem vencidos, num grande movimento de confraternidade brasileira. NOTAS (8) PEREIRA DA SILVA – Op. cit., pág. 345. (9) À Margem da História, pág. 320. CAPÍTULO III A LEI DOS CÍRCULOS Havíamos conseguido a paz interna. Entretanto, a política que vinha realizando aquele esplêndido trabalho de consolidação do país, não pôde ser dada ainda por terminada. A nova câmara, reunida nos primeiros meses de 1845, 43 imediatamente afirma a decisão de prossegui-la. Na sessão de 26 de maio, tendo-se verificado uma alteração no gabinete, pela substituição de dois ministros, o deputado Silva Ferraz, liberal dos mais avançados e intransigentes, pergunta qual era afinal o programa novo que trazia aquele Governo assim modificado. Reportando-se à situação anterior do ministério, responde-lhe o Ministro da Marinha Holanda Cavalcanti: - A política atualmente seguida, suponho que não discrepa da política que então se seguia. - Da inércia? ..., insiste o deputado. - A inércia, na significação vulgar, obtempera o ministro, não é nada. Porém, quando um matemático fala em inércia, é alguma coisa... Uma torrente de apoiados acolhe essa imagem mecânica. Era bem aquilo. A força ova, que alterasse o movimento de simples concentração iniciado em 1841, não viera ainda da opinião pública. Em 2 de maio de 1846, esse gabinete é substituído por um outro, no qual figura ainda Holanda Cavalcanti, na pasta da Fazenda, mas onde não se vê mais o nome de Manoel Alves Branco. A apresentação à câmara é feita pelo Ministro da Justiça, José Joaquim Fernandes Torres: - “Eu estou persuadido de que a política do gabinete de 2 de fevereiro (1844) teve em vista a concórdia entre todos os brasileiros, restabelecer a tranqüilidade púb lica em todo o país, e para conseguir este fim teve sempre em vista os princípios de justiça, a constituição do Estado e a pontual execução da legislação do país. Estando persuadido de que este é o programa do gabinete transacto, e do atual, digo que não tem sofrido alteração ou modificação a política do gabinete.” 44 Pode-se dizer que o único fato realmente novo na política interna do Brasil, entre o fim da guerra dos farrapos e as grandes eleições legislativas de 1860, é a criação do cargo de presidente do conselho de ministros. Até então, a preeminência de uma individualidade maior no seio do gabinete, operava-se de si mesmo, por uma espécie de reconhecimento tácito. Assim fora com Antonio Carlos, com Paranaguá, com Honório Hermeto, o Marquês de Olinda, ou Alves Branco. Mas, ao voltar este último ao poder, em 1847, aparece o decreto de 20 de julho, que cria a figura legal do presidente do conselho. As nossas instituições, pela experiência adquirida, assumiam a sua estrutura. Entretanto, a política geral mantinha-se imutável e constante. Dominava-a sempre a preocupação da unidade do Império, com exclusão de toda iniciativa que nos pudesse desviar desse extremo objetivo. Em 1848, ainda surge uma perturbação da ordem interna, na revolta praieira de Pernambuco. É porém, uma agitação sem raízes profundas, nascida principalmente de erros da política provincial. Os chefes mais notáveis do partido local que a promove, nem bem a compreendem. Liquida-se em algumas correrias cangaceiras pelo sertão, depois de, no Recife, haver trazido a morte do grande tribuno Nunes machado, num infeliz tiroteio de rua. A prova final de resistência da nossa unidade nacional, aquela que nos demonstraria podermos enfim abandonar sem perigo a severa política de 1841, essa prova tinha que os s er oferecida nas fronteiras do Sul. Ela veio das relações da política interna do Uruguai com os estancieiros nossos patrícios, que ali se conservaram após o tratado de 1828. 45 O insucesso da república de Piratini, não bastara ao tirano Rosas como demonstração de irrevogável unidade do Brasil. Don Juan Manuel havia-se lançado num plano de vasta construção política, no qual a separação do Rio Grande era apenas um detalhe subsidiário. O que ele visava em definitivo, era a reabsorção do Uruguai, do Paraguai e talvez da Bolívia, nas antigas fronteiras do vice-reinado de Buenos Aires, criado pela monarquia espanhola em 1777, para combater a nossa instalação nos planaltos interiores do continente. A hostilidade contra nós decorria necessariamente do próprio sentido d a sua política internacional. Repelindo o tratado de 1828 e ao mesmo tempo ameaçando-nos no Rio Grande do Sul, no Paraná e em mato Grosso, ele automaticamente reabria todas as seculares questões continentais que aquele tratado pretendera resolver. Estaríamos quase em face do remoto espírito colonial do meridiano de Tordesilhas, pois Rosas teria repudiado mesmo o princípio do “uti possidetis”, posteriormente reconhecido pelas cortes de Lisboa e de Madri, como fundamento de domínio sobre as terras do Novo Mundo. É claro que, possuído de tão vertiginosas pretensões, não podia o ditador de Buenos Aires desanimar logo ao primeiro fracasso. A preparação da revolta dos farrapos coincidira com uma ativa e veemente propaganda dos seus projetos, nos meios governamentais de Montevidéu e de Assunção. Os paraguaios o desatenderam, solicitando mesmo contra ele a nossa ajuda. Outro tanto porém, não se deu com o governo uruguaio do general Oribe, que se pôs ao seu serviço. Não vale a pena recordar aqui as terríveis vicissitudes a que, durante nove anos, o Uruguai se viu sujeito, em conseqüência da aliança de Rosas e Oribe. Imagine -se somente 46 a situação em que fiaram os brasileiros ali residentes, com o território da república, exclusão feita apenas da capital, inteiramente ocupado pelos soldados argentinos... Os nossos compatriotas foram logo despojados das suas estâncias, muitos deles perdendo a vida no selvagem tumulto da confiscação. O governo imperial, tratando-se de fatos que se passavam além da fronteira estabelecida em 1828, sentiu-se obrigado a uma atitude de extrema circunspecção. Mas os rio-grandenses não puderam assistir impassíveis ao sacrifício de seus irmãos. Organizaram-se expedições que fossem ao país vizinho libertar os brasileiros, trazendo-os com os seus bens móveis e os seus rebanhos ao território da província. Deram-se correrias e escaramuças na margem direita do rio Uruguai, e o min istro argentino no Rio de Janeiro, Thomaz Guido, comparece à nossa Secretaria do Exterior, para exigir como representante do general Oribe, a cessação daquelas incursões na fronteira uruguaia. Ora, a nossa chancelaria não podia admitir em Thomaz Guido qualidade para falar em nome de Oribe, a quem, aliás, ela nem sequer reconhecia como presidente legal da república uruguaia. O governo estabelecido em Montevidéu, de onde Oribe fora expulso pelos patriotas uruguaios, era, na espécie, o unido a quem poderíamos atender. E, com esta resposta, Thomaz Guido reclama os seus passaportes, retirando -se a Buenos Aires. A par de toda a enorme audácia das suas concepções, não se pode negar ao tirano Rosas uma grande habilidade política. O seu sonho de unificação geral dos países da bacia do Prata sob um governo único, era certamente tão complicado e perigoso que qualquer outro o teria abandonado logo ao 47 primeiro exame. Não era apenas a situação continental das províncias argentinas, em face do Brasil, do Uruguai e do Paraguai, que embaraçava a realização daquele projeto. Eram também as próprias condições internas da confederação, partilhada entre um poderoso grupo de caudilhos, cada qual mais ferozmente imbuído de pretensões à soberania. Antes de vencer a desconfiança sempre alerta dos brasileiros, ele necessariamente tinha que sufocar pela força as ambições dos seus concorrentes internos. Entretanto, Rosas não desanimou. Durante dezessete anos consecutivos, de 1833 a 1850, ele habilmente manobrou entre aquelas duas mortais dificuldades Em 1845, esteve prestes a ser colhido nas próprias armadilhas da sua astúcia. Mas logo desvencilhou-se, com a rude solércia de um gaúcho num rodeio. O caudilhismo regional, que rosas fazia insuflar aos farrapos do Rio Grande, sob o disfarce de propaganda republicana, era evidentemente uma arma de dois gumes. Ele cultivava nas fronteiras uma planta cuja extirpação no solo argentino se tornara, para o seu governo, uma condição de vida ou de morte. Com o tempo, os inconvenientes dessa diametral dualidade de processos não podiam deixar de transbordar os interesses daquele que a praticara. Evidentemente, em 1842, o caudilho uruguaio Fructuoso Rivera e o seu confrade argentino Paz Lopez, reuniam-se com o chefe farrapo Bento Gonçalves, em Paissandu, e os três, juntos em conferência, estabeleciam um plano geral de ação que constituía para Don Juan Manuel uma severa e inquietante surpresa. Simultaneamente, em oposição ao plano de restabelecimento do vice-reinado de Buenos Aires e contra os interesses da unidade do Brasil, eles 48 decidiam bater-se pela formação de um novo Estado que abrangesse o Rio Grande do Sul, o Uruguai e as províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios. Era, para Rosas, a volta do feitiço contra o feiticeiro... O tirano inclinou-se então para o Brasil, autorizando o seu representante no Rio de Janeiro a entender-se com o governo imperial sobre a nova situação da margem esquerda do Rio da Prata. Em janeiro de 1843, o ministro argentino, que já era Thomáz Guido, manda à nossa chancelaria a nota que serviu de base ao tratado de 24 de março no qual ficou combinada uma ação conjunta dos dois governos contra os rebeldes dos dois lados da fronteira. Esse tratado de 1843, consentido pelo gabinete conservador de Honório Hermeto, mereceu da oposiç ão liberal os comentários mais acerbos e veementes. Na sessão da câmara dos deputados de 21 de agosto de 1845, o deputado Gabriel Rodrigues dos Santos ainda dizia: “Antes de tudo, sr. presidente, cumpre ponderar que não pode escapar da acusação de ter sujeito o país à maior das ignomínias, aquele governo que julgou conveniente aliar o monarca brasileiro ao ditador de Buenos Aires, para o fim de pacificar o Brasil...” Certamente, uma aliança, para aquele fim, entre a monarquia parlamentar e o grosseiro despotismo platino, não era nenhum modelo de elegância. Mas é preciso reconhecer que não ficáramos sendo nós os de pior partido naquele ajuste. Tal como fora redigido pelos seus negociadores brasileiros, o tratado de 1843 resumia-se afinal numa espécie de “termo de bem viver”, a ser assinado pelo sinuoso caudilho do Rio da Prata. Por ele, Rosas ratificava o tratado de paz de 1828, aceitando pessoalmente a obrigação de respeitar e garantir a 49 independência do Uruguai, ao mesmo tempo que o nosso governo, como direito de fiscalizar a atividade dos farrapos no território argentino, ficava com os meios de sufocar a guerra civil nas suas bases estratégicas, pois era ali que os revolucionários encontravam todos os seus recursos militares. Mas Rosas não poderia cumprir aquelas disposições, sem renunciar por uma vez a sua velha política continental. Era preciso abandonar os rosistas do Uruguai à sua sorte, oferecendo também aos republicanos rio-grandenses a revoltante impressão de uma felonia. Com o espírito anti brasileiro que o ditador não cessara de alimentar em todo o Rio da Prata, não teriam sido menos comprometedoras para a sua pessoa as reações morais daquele acordo, no interior da Confederação Argentina. Ia-se talvez reacender nas ruas de Buenos Aires a mesma impetuosa indignação que determinara a queda de Rivadavia em 1827, e, dados os ódios que Rosas fizera nascer com os seus processos de governo, era bem possível que depressa o encontrasse, naquele caminho, o antigo pelotão de fuzilamento do general Dorrego... Don Juan Manuel não era homem a insistir num passo perigoso, ainda mesmo que a esse passo conduzissem todas as considerações de probidade internacional. Mais feliz que Rivadavia, ele pôde, sem inconveniente, repudiar o tratado de 1843, dando o negociado por Thomaz Guido como excedente das suas instruções. Aquele tratado talvez tenha servido ao ditador para intimidar os políticos de Corrientes e Entre-Rios. Para os fins da sua grande política continental, Rosas jamais pôde conjugar, de uma forma oportuna e decisiva, as condições por ele criadas no Uruguai, com a perturbação revolucionária do Rio Grande. Não só a isso se opuseram os 50 contra-golpes da política imperial e as circunstâncias internas da Argentina, como também as relações do ditador com as principais potências da Europa, que se mantiveram sempre incertas e oscilantes. Manobrando, irritado e teimoso, entre todos aqueles embaraços, ele teve de assistir impassível, em 1845, à pacificação da nossa grande província do extremo Sul. Mas, em 1850, ou porque julgasse mais sólida a sua situação política interna, ou levado pelo temos de que se fosse o tempo encarregado de queimar assim todos os seus trunfos, fosse por cálculo refletido ou por simples exasperação, a verdade é que Don Juan Manuel resolveu desferir contra nós o seu golpe definitivo. A agitação dos nossos compatriotas da fronteira serviu de oportunidade ao rompimento formal. A chegada do ministro Thomaz Guido a Buenos Aires, de volta do Rio de Janeiro, assinalou-se por uma inacreditável explosão de entusiasmo guerreiro. Parecia que os portenhos, em face do Império do Brasil, haviam chegado a um momento semelhante àquele que conheceram os revolucionários franceses em 1792, quando os imperadores e os reis da Europa coligados se aproximavam da planície de Valmy... Tudo aquilo, porém, concebido e montado pelos familiares da Mazorca, era apenas um estrondoso apelo atirado às províncias argentinas para que todas elas viessem cerrar fileiras em torno do ditador, naquele decisivo e extremo arranco do seu grande sonho continental. Rosas perdera toda medida, proclamando franca e ostentosamente os seus desígnios. Tratava-se simplesmente, como castigo a nós outros, de fazer entrar também o Rio Grande do Sul na projetada recomposição do vice-reinado, e de impor pelas armas a república em todas as demais províncias do Brasil... 51 Dada a escassa população argentina daquela época e os reduzidos meios econômicos de um país que viera da guerra dos caudilhos para a tirania absoluta, não é possível que Rosas pensasse em dominar o Brasil só com os recursos militares da confederação. Ele julgou sem dúvida que os melhores auxiliares estivessem dentro das fronteiras do Império. O reconhecimento habitual da força, como base universal de toda construção moral e política, tem o grave inconveniente de nos privar de senso psicológico. Aquele grande devoto da força, na atitude assumida para conosco em 1850, pretendeu entretanto fazer psicologia. Para ele, a nossa paz interior fora um produto de contenção militar, que necessariamente entraria em crise, desde que as forças imperiais se distraíssem do policiamento interno para atender ao primeiro ataque nas fronteiras. O tirano não se apercebera de que a paz no Rio Grande fora-se tornando mais próxima à medida que a revolução mais se distanciava do sentimento nacional brasileiro. A idéia da república com a separação já fora um início de debandada nas fileiras revolucionárias. O resultado da conferência de Paissandu, com a projetada absorção da província num novo estado castelhano, foi o sinal da volta geral ao seio do império. Os separatistas compreenderam que não havia lugar no continente para uma pequena nação de origem portuguesa. Era preciso ser brasileiro ou ser país anexado, abrindo mão imediatamente da língua, das tradições, dos costumes; de tudo quanto constitui a honra, o encanto e o próprio ser dos povos nacionalmente caracterizados. Ao mesmo tempo que essas graves considerações se elevavam no espírito dos farrapos, o Rio grande do Sul, como as outras províncias do Império, era 52 levado à comparação do ambiente político criado entre nós pela monarquia parlamentar, com a espantosa selvageria da vida hispano-americana. Todos se convenceram de que os sistemas políticos não estão nos apelativos verbais, mas sim na maior ou menos soma de liberdade que possam assegurar. Rosas acreditou que, ao ruidoso apelo das manifestações de Buenos Aires, uma indomável e geral montonera se alastrasse para o Norte, embaraçando e absorvendo todo o poder militar do império, ante a invasão republicana que ele se propunha a conduzir. Mas o Rio Grande do Sul que, numa falsa compreensão das nossas condições internas, foi precisamente o ponto no qual primeiro e com maior veemência se manifestou a reação nacional dos brasileiros contra aquelas pretensões. A chegada de Thomaz Guido a Buenos Aires, com as demonstrações a que deu lugar, verificou-se a 16 de outubro de 1850. Vinte e dois dias depois, a 7 de novembro seguinte, a assembléia provincial de Porto Alegre reunia-se e unanimemente votava uma mensagem ao Imperador, na qual, para a defesa da pátria e da dignidade do Império, eram ofertadas sem restrições nem limites, as vidas e a fortuna de todos os filhos do Rio Grande. Os antigos regimentos de voluntários, que se haviam defrontado nos ásperos dias da guerra civil, rapidamente se recompuseram. O general Caxias, mandado voltar à província para tomar o comando das nossas forças que se organizavam, encontra enfileirados sob a bandeira imperial as antigas glórias do exército farrapo. Lá estavam Bento Gonçalves, Bento Manoel e David Canabarro, todos ao lado do general Barão de Jacuí, que fora o mais intratável e ferrenho dos seus antigos 53 contendores. Era a política de 1841, convertida em poder militar uniforme, face à fronteira. Rosas não se enganara somente quanto à fidelidad e das províncias do Brasil à unidade do império. Ele igualmente iludiu-se sobre a mútua solidariedade dos povos do Prata, perante os perturbadores desígnios da sua política continental. De início, nós podíamos contar apenas com um aliado, que era o governo do Uruguai, sitiado em Montevidéu pelos soldados argentinos às ordens de Oribe. Mas, apenas Caxias começa a dispor as suas tropas para a passagem da fronteira, logo se nos vêm juntar as forças dos caudilhos Urquiza e Virasoro, respectivamente governadores de Entre-Rios e Corrientes. As hostilidades perdem então o caráter de guerra internacional, para tomar o feitio especial de uma grande operação de polícia, contra o maior perturbador da paz no continente. Em setembro de 1851, Oribe rendia-se incondicionalmente. Um mês depois, era levantado o cerco de Montevidéu e a nossa esquadra, vencendo a resistência do general Mansilla no Passo de Tonelero, vai proteger a passagem dos aliados para a margem direita do Paraná. A 24 de dezembro incorporam -se ainda aos nossos soldados da província de Santa Fé, e a 3 de fevereiro de 1852 fere-se a batalha final de Monte Caseros. Rosas, pretendendo separar o Rio Grande do Sul do Império do Brasil, colocara-se na situação do imprudente que metesse a mão entre duas pedras. Esta foi a causa imediata e principal da sua ruína.(10) O fato de se haver completamente modificado a situação política argentina, com um exército brasileiro acampado em Palermo e a nossa esquadra estendida de Montevidéu a Rosário de Santa Fé, foi de um efeito deveras excelente para a nossa 54 posição internacional. Nasceu no Rio da Prata uma nova opinião a nosso respeito. Não só estava morta a temerária veleidade de intervir nos nossos negócios internos, como deixáramos de ser os inimigos inevitáveis e necessários, para merecermos a cordial consideração de um grande vizinho, que nada mais pedia além do mútuo respeito e do fiel cumprimento das obrigações assumidas. Nós havíamos dado uma prova simultânea da solidez da nossa grande construção nacional e do leal desinteresse da nossa política exterior. Certo, na massa geral da população platina, não foi possível apagar subitamente seculares e profundas animosidades, cujas raízes vinham das primeiras instalações de espanhóis e portugueses no continente. Mas o fim da brutal tirania de Rosas, promovido por nós, determinou o predomínio das classes mais cultas da sociedade argentina no governo de Buenos Aires, criando ali uma atmosfera melhor e mais inteligente. O nosso país, pacificado internamente pela interpretação parlamentarista das suas instituições, e considerando-se afinal consolidado na sua situação internacional, pôde então voltar ao ritmo normal da sua evolução política. Durante aqueles doze anos, conservadores e liberais haviam-se confundido com o mesmo esforço de boa vontade. Ressalvado o princípio essencial do mútuo consentimento, pela constante subordinação do poder executivo aos votos do parlamento, todos os demais pontos de doutrina foram voluntariamente afastados, para dominar sobretudo a preocupação da unidade nacional. Desde, porém, que o perigo do desmembramento havia de todo desaparecido, desapareceram também os motivos daquela trégua entre os partidos. Entretanto, as alterações que dali por diante se 55 observam na nossa vida pública não são provocadas por simples decisão pessoal daqueles que poderiam ser considerados como chefes de grupo ou diretores da opinião. Nem mesmo o governo tenta imprimir uma orientação nova à atividade propriamente política do país. Contenta-se apenas em aproveitar a folga que lhe vem da paz interna e da tranqüilidade nas fronteiras, para um grande esforço de construção, no terreno do progresso material. Além da realização de todos os pontos do seu programa, a política inaugurada em 1841 havia criado uma obrigação suplementar. Nenhuma negociação ou entendimento teve sem dúvida lugar para tal fim. Foi apenas a aceitação generosa e espontânea de um dever de honra, que o próprio ambiente moral fizera nascer e aos espíritos mais esclarecidos se apresentava como evidente. Nenhum governo devia explorar as novas condições gerais para romper apressadamente, em proveito dos seus amigos, o equilíbrio partidário mantido até então na política interna. Foi esse o estado de espírito que sugeriu ao gabinete de 6 de setembro de 1835 a reforma eleitoral da “Lei dos Círculos”. Para não impor ao país uma nova orientação política, que fosse apenas o ponto de vista particular dos detentores ocasionais do poder, resolveu-se modificar o processo eleitoral, no sentido de uma consulta cada vez mais ampla a profunda ao sentimento do povo. Até então a escolha de deputados à assembléia geral, segundo o sistema indireto da eleição de dois graus, estabelecido na lei de 19 de agosto de 1846, fizera-se por províncias. O deputado representava a província e não, dentro dela, uma determinada circunscrição 56 eleitoral. Procurou-se ligar mais intimamente a função legislativa ao pensamento inicial do eleitorado. Pela lei de 19 de setembro de 1855, a eleição deixou de ser feita por províncias, para obedecer ao sistema dos círculos de um deputado. As eleições para a legislatura de 1857 a 1860 já se realizaram por esse processo. Entretanto, a composição da nova câmara não parece ter correspondido às esperanças dos mais devotados promotores da reforma. Nenhuma alteração sensível foi observada nas opiniões do parlamento. Era a política de conciliação que novamente voltava numa câmara quase sempre unânime. As queixas contra a lei de 1855 não se fizeram esperar. A reforma fora um ludíbrio. Deslocada a eleição do critério amplo e mais elevado da província para o estreito ambiente dos círculos, a escolha dos deputados passava a obedecer tão-somente à conveniência dos chefes locais, sempre interessados nas boas relações com o governo, pela posse dos pequenos cargos de administração nas suas comarcas. De 1857 a 1859, tudo parecia conduzir ao repúdio definitivo da lei dos círculos, pela volta ao sistema anterior. Mas em 19 de agosto de 1859, com a retirada do gabinete Abaeté de 10 de dezembro de 1858, vem ao poder um ministério que traz como seu chefe, na pessoa do então senador Silva Ferraz, o mais ardente e extremado liberal daquele tempo. Para compreender exatamente o que dali por diante se passou, é necessário prestar ainda atenção a certas circunstâncias anteriores. O autor principal da lei dos círculos, como chefe do gabinete de 6 de setembro de 1853, fora Honório Hermeto, o grande ministro conservador a quem coubera, em 1843, a sucessão governamental do Marquês de 57 Paranaguá. Continuador imediato do programa de 1841, ninguém melhor do que ele avaliava toda a extensão do sacrifício estoicamente aceito pelos liberais na política de conciliação. No momento em que aquela política, graças ao esforço comum, havia produzido todos os seus frutos, era para ele indispensável, mais que a qualquer outro, que a volta dos partidos às suas antigas posições se operasse num ambiente de eqüidade e de mútuo respeito. Na sessão de 25 de julho de 1855, a câmara sentiu-se tomada de surpresa ante a vigorosa determinação com que ele, lançando a questão de confiança, a obrigou sem demora a definir-se entre aquele dever de lealdade e a demissão imediata do gabinete. Honório Hermeto porém faleceu a 3 de setembro de 1856, antes da aplicação prática da sua reforma, e como nessa primeira prova ela automaticamente não produzisse os resultados desejados, os nobres sentimentos que a ditaram, logo foram sendo esquecidos. Muito se argumentava com a deletéria influência dos pequenos interesses locais no funcionamento do novo processo eleitoral. Mas em verdade, o que os elementos de reação mais censuravam na lei de 1855, era a sua muito acentuada orientação liberal. As individualidades médias do parlamento esperavam apenas que aquela lei chegasse às vésperas das novas eleições gerais bastante desmoralizada, para que a sua revogação pura e simples se impusesse como uma necessidade evidente. Felizmente os homens mais diretamente ligados às grandes responsabilidades da política de conciliação, tanto no Conselho de Estado como nas duas câmaras, não tiveram dificuldades em compreender tudo quanto havia de deselegante e mesmo de perigoso naquela deplorável tendência. O 58 ministério de 19 de agosto nasceu claramente da preocupação de contar e sustar tamanho deslize. A princípio ele parece surgir quase sem programa determinado. O discurso com o qual Silva Ferraz o apresenta é todo feito de prestigiosas generalidades, destinadas muito mais a obter as boas graças dos grupos parlamentares para a nova composição, que a revelar o seu exato pensamento. “Saídos do seio da representação nacional, diz Silva Ferraz, conhecemos perfeitamente a nossa responsabilidade e as condições do sistema representativo. Envidaremos, pois, todos os nossos esforços, a fim de podermos manter a necessária harmonia entre o poder executivo e as câmaras legislativas. Nesse intuito, lançaremos mão de todos os meios legítimos para obter a confiança que é essencial a um gabinete parlamentar que sai do seio da representação nacional”. A esta reverência elegante e bem colocada, o presidente do conselho acrescenta apenas uma série de boas intenções, no gênero de “manter as instituições juradas,(11) observar e fazer observar com lealdade a legislação do país, promovendo ao mesmo passo o seu melhoramento e perfeição como a experiência o aconselhar...” Era muito pouco como programa objetivo de administração. Mas para aquela câmara, produto de uma corrente de idéias já passada e que não sabia bem o que ainda fazia ali, era sem dúvida o suficiente. Silva Ferraz obteve a maioria necessária à vida do seu governo. O seu verdadeiro programa, aquele que ele realmente trazia, só se revela porém, quando ele lança o seu projeto de reforma da lei de 1855, propondo o alargamento dos círculos de um para três deputados. De certa forma aquele projeto parecia atender às críticas levantadas contra a lei de Honório Hermeto. O 59 alargamento dos círculos eleitorais traduzia-se afinal numa certa restrição ao poder dos chefes locais, em benefício de um critério mais selecionado e mais alto. A verdade, entretanto, é que Silva Ferraz procurava apenas salvar o princípio liberal da eleição direta, que, mantido em seus primeiros rudimentos, o máximo possível, naquele instante, deveria triunfar completamente muito mais tarde, na grande lei Saraiva de 1881. Quando a reforma, aprovada na câmara dos deputados, entra na ordem do dia do senado, ele põe uma calma e segura franqueza em defendê-la. Um senador lhe pergunta para que alterar a lei dos círculos, se lhe parece tão sábia. Ele responde: “Precisamente para que ela não morra!...” Na primeira casa do parlamento, a discussão, conduzida pelo ministro liberal, já assumira diante dos conservadores um caráter de extremo apelo às solenes obrigações de um fideicomisso. Os conservadores eram implicitamente chamados à compreensão de que o respeito aos princípios do sistema eleitoral de 1855, era para eles um dever de fidelidade à memória de Honório Hermeto. Na câmara alta essa feição do debate ainda mais se acentua. A maioria conservadora recorrera ao expediente parlamentar da obstrução. Resistia-se pela simples inércia. Mas, a um momento dado, o Visconde de Abaeté, com toda a sua autoridade de presidente da assembléia, levanta-se ao lado do chefe do governo. Dados os antecedentes do projeto, ele severamente observa aos seus pares que aquela atitude era indigna de senadores do Império. A discussão é encerrada então rapidamente. Alguns dias depois, a 18 de agosto de 1860, levava Silva Ferraz a segunda lei dos círculos à sanção do Imperador. 60 A ação do gabinete de 10 de agosto de 1859 evitou à evolução política do nosso país, senão um grande desastre, pelo menos uma deplorável e perturbadora suspensão. A câmara de 1855, ao verificar, em 1857, que a primeira eleição procedida segundo a reforma eleitoral de Honório Hermeto redundara numa quase integral renovação do seu mandato, apossou-se da convicção, sem dúvida excessiva e apressada, de que a corrente de opinião por ela representada era ainda e seria por muito tempo, a legítima e insofismável expressão do sentimento brasileiro. Nela estava ali a política de conciliação, a reafirmar-se tão oportuna e necessária como nos dias da pacificação das províncias ou das lutas do Rio da Prata(12). Os deputados porém, não haviam feito entrar nos seus cálculos um elemento de grande significação prática. Era a lentidão com a qual, são sabor dos meios de comunicação daquela época, uma nova corrente de idéias se estabelecia sobre uma vasta extensão territorial como a nossa. O país não havia tido ainda o tempo de reagir convenientemente sob as novas condições criadas pelo encerramento definitivo das questões do Prata. Nos fins de 1855, a nação não se tinha ainda afeito à certeza da sua perfeita segurança. Mas, a partir daquele instante, começa a desenhar-se uma consciência diversa. Nas escolas, na imprensa, nos clubes políticos, nos auditórios da justiça, surgira uma geração nova a ansiar pelo reatamento imediato da nossa ascensão democrática. Entretanto aquele parlamento de fim de época, incapaz de abandonar a estreita prudência de 1841, queria ainda impor ao Brasil uma política, em falta de melhor, exclusivamente voltada para os interesses materiais. A lei eleitoral de 1860, salvando a obra generosa de Honório 61 Hermeto, veio evitar a insistência nesse estreito e insensato ponto de vista. A câmara eleita pelo sistema dos círculos de três deputados, para a legislatura de 1861 a 1864, foi realmente uma síntese luminosa e perfeita da alma brasileira daquele instante. De todas as correntes doutrinárias ali se apresentaram os homens mais brilhantes e expressivos. Joaquim Nabuco, ao examinar no seu grande livro, “Um Estadista do Império”, as conseqüências daquela eleição, exclama: “com ela recomeça a encher a maré democrática”...” A princípio, conservadores e liberais, segundo os caracteres doutrinários com que os partidos passaram da Regência para o segundo reinado, pareciam equilibrar-se no novo parlamento. O gabinete Silva Ferraz demitira-se em fevereiro de 1861, sem esperar a situação parlamentar preparada pela reforma. Na escolha do governo que o substituiu, evidentemente influiu o prognóstico de que a nova câmara, naquelas condições de equilíbrio partidário, ainda continuaria a dispensar o seu apoio aos programas neutros e de pura administração. Seria ainda, como em 1857, um prolongamento da velha câmara cujo mandato expirava, e desta forma todas as probabilidades , por uma simples questão de lógica ou mesmo simpatia, deviam estar do lado de um governo conservador. Foi assim que surgiu o gabinete de 2 de março, presidido pelo Marquês de Caxias. Os conservadores certamente acreditaram galvanizar naquele momento a sua situação política, com o prestígio nacional do novo presidente do conselho, e tudo indica que o Marquês de Caxias aceitou satisfeito essa incumbência. As palavras com que ele apresenta o gabinete ao senado, são sobremodo elucidativas a tal respeito: “Os princípios do 62 gabinete, diz ele, estão bem indicados pelos precedentes das pessoas que dele fazem parte. Os meus colegas e seu somos conhecidos; por isso penso que me posso dispensar de dizer qual o sentido em que dirigimos os negócios da governança”. Nada de reformas. Apenas a observância fiel da constituição e uma rigorosa economia no emprego dos recursos do Estado. Era bem a velha política de conciliação garantida contra acidentes parlamentares, nos seus últimos arrancos, pelo grande nome do pacificador das províncias, tornado ainda mais ilustre com a rápida liquidação militar dos negócios do Prata. Caxias, a par da sua grande capacidade militar, não dispunha desse fino trato das situações, que é o primeiro sinal de um apurado senso político. Sem essa desvantajosa circunstância, é provável que ele não houvesse esperado no governo a inauguração da nova legislatura. Apenas a câmara recém-eleita se reúne para as suas primeiras sessões preparatórias, logo se revelam claramente as novas tendências que a dominam. A esquerda dos conservadores, inclinando-se fortemente para a direita dos liberais, fez surgir o conglomerado intermediário da “Liga Progressista”. O equilíbrio esperado estava roto em favor dos liberais. Não havia como manobrar com o novo grupo como contrapeso, entre as duas agremiações principais. O pensamento dos progressistas, partindo do princípio que as liberdades individuais são a base do sistema representativo, propunha -se imediatamente a revogar a lei do processo criminal de 1841, restringindo as faculdades da polícia em favor da autoridade judiciária. Era para os liberais um programa mínimo, ao passo que para os conservadores se apresentava como uma inovação perigosa e inaceitável. Sob o ponto de vista prático da 63 formação de uma maioria no parlamento, era evidente que a manifestação progressista se resolvia afinal num reforço do partido liberal, pela súbita adição de uma dissidência conservadora. Apesar de toda a confiança depositada pelos conservadores no prestígio pessoal do Marquês de Caxias, o gabinete não pôde resistir ao seu primeiro contato com aquela câmara. No dia 21 de maio de 1862, a comissão do voto de graças submetida à aprovação do plenário a redação da resposta à fala do trono, lida no dia 3, na abertura dos trabalhos parlamentares. O presidente declara aberta a discussão sobre o texto da comissão. Era o governo que primeiro competia pronunciar-se, aceitando, pedindo a modificação ou totalmente recusando a resposta redigida. Mas, antes que o ministério revelasse seu pensamento, levanta-se o deputado Francisco Octaviano e requer o encerramento imediato da discussão. “A oposição prescinde de discutir com os ministros...” explicou ele. E o requerimento foi aprovado. A câmara voltava simplesmente as costas ao governo, e daí a algumas horas, sem encontrar reparação àquele desastre, Caxias entregada ao imperador a demissão coletiva do ministério. Perante a câmara saída da grande reforma eleitoral da segunda Lei dos Círculos, a política de conciliação esvaíra -se como uma sombra do passado. Não há a mínima dúvida de que aquela política representara um formidável esforço de contenção sobre as preferências doutrinárias dos partidos, reduzindo todos eles aos limites de uma disciplina geral, que se tornara indispensável à própria existência da pátria. Mas não se poderia imaginar uma ilusão mais completa, um mais 64 grosseiro erro de psicologia do que atribuir aquele generoso fenômeno social à imposição de qualquer vontade isolada sobre o sentimento coletivo. Pretender que aquela espontânea e impressionante concentração do país sobre si mesmo se tenha operado por uma decisão pessoal do imperador ou de qualquer dos seus ministros, nem mesmo chega a ser um erro: - é apenas uma puerilidade. Foi a própria nação, desde que lhe foi dado manifestar-se de uma forma adequada na representação coletiva das câmaras, quem soube descobrir e aplicar a política mais natural e acertada. A circunstância da orientação geral de 1841 só se haver modificado em virtude de uma profunda renovação dos corpos legislativos, é a melho r e mais segura prova de que o governo, de fato, esteve sempre no parlamento e jamais na vontade pessoal do chefe do Estado. NOTAS (10) Ele mesmo o confessou na noite em Montes Caseros, dizendo ao ministro da Inglaterra, em cuja legação se encontrava hom isiado: - A este pueblo yo lo he montado, le he apretado la cincha, le he clavado las espuelas, há corcoveado; no es él que me há volteado... son los macacos . (Vide Lucio V. Mansilla, Rosas, pág. 133). (11) Esta expressão – instituições jurados – na boca dos liberais que nutriram sempre o íntimo desejo de reformar a constituição de Pedro I, nunca deixava de ter um sabor todo especial... (12) O gabinete de 6 de setembro de 1853, que fez a primeira lei dos círculos, foi substituído pelo gabinete de 4 de mai o de 1857. O Marquês de Olinda, ao apresentar este gabinete Pa nova câmara, como presidente, teve de dizer que o seu programa era “a expressão franca e leal dessa política, que, proclamada do alto do trono e levada à execução, tem conseguido fazer tender os espíritos para a concórdia e moderação...” 65 CAPÍTULO IV A SITUAÇÃO GERAL NO INÍCIO DA GUERRA DO PARAGUAI O progresso político que realizáramos de 1840 a 1862 fora de ordem puramente funcional, Os órgãos essenciais do Estado conservaram-se inalterados, modificando-se apenas as relações que mutuamente os ligavam na prática política e administrativa. Mas a constituição do império continuou a ser a mesma. Apesar do complemento que lhe fora dado em 1834 com o Ato Adicional, posteriormente alterado nas modificações fora do texto de 1842, aquela constituição conservou-se, na sua origem, a mesma carta de direitos outorgada pela vontade soberana do primeiro imperador. Pouco importava que nas suas disposições aparentes ela refletisse o universal movimento de idéias provocado pela revolução francesa de 1789. De maneira alguma teria sido possível a Pedro I esquecer, ao encomendá-la, o formidável fenômeno social cujas seqüências arremessaram em 1807 as baionetas do general Junot sobre a sua pátria de origem, forçando-o a fugir com os seus pais para o Brasil: No decreto de dissolução da constituinte, ele bem dissera que por si mesmo promoveria uma nova constituição, “duplamente mais liberal” que a outra destruída no nascedouro. Mas o liberalismo que Pedro I assim nos prometia duplicado, era o do Congresso de Viena... Admitia-se que os diferentes órgãos do poder público fossem de origem popular, mas com a inevitável condição de, numa esfera mais alta, todos eles se submeterem 66 à autoridade maior da coroa. Sua Majestade, pe,a sabedoria imanente da sua própria natureza real, pairava necessariamente acima de todos os juízes. Essa era para o nosso primeiro imperador a idéia central em torno à qual deviam girar todos os dispositivos da constituição do império. A adaptabilidade daquela “cata” aos costumes políticos do segundo reinado, fora um simples resultado de interpretação. Desde porém, que nela se mantinha o poder moderador, com regulador final das relações do parlamento com o ministério, era evidente que não estava afastada a hipótese de uma eventual superposição da coroa à vontade dos corpos legislativos. A reforma da constituição de 1824, retirando-lhe o caráter de outorga real para transformá-la numa voluntária declaração de direitos, voltou, portanto, a ser o objeto principal das nossas cogitações políticas. Sob o ponto de vista da legislação comum, era urgente revogar a lei do processo criminal de 1841 e livrar os cidadãos do permanente atropelo em que para eles se transformava a obrigatoriedade do serviço na guarda nacional, regulada pelo simples arbítrio dos presidentes de província. Mas a grande questão, aquela para a qual conduziam todos os raciocínios e que estava virtualmente ao fim de todas as discussões, era a da revisão constitucional. A reabertura dos trabalhos parlamentares em 1862, automaticamente repôs o problema político do Brasil nos mesmos termos em que o colocara a dissolução da constituinte de 1823, com a sua conseqüência da “carta” de 1824. Entretanto, aquele problema tão evidente não logrou naquele momento ser aceito com exatidão por todos os elementos adiantados do nosso mundo político. Aqueles que entraram a flutuar entre o partido liberal e o partido 67 conservador com o nome de progressistas entenderam de limitar-se apenas ao ponto subsidiário da legislação ordinária, deixando de lado a questão essencial da revisão., O programa progressista limitava-se afinal a uma nova regulamentação dos dispositivos constitucionais atinentes à liberdade individual, sem em nada alterar a própria constituição do império. Era apenas uma base de aproximação para moderados. É fácil compreender que com aquele programa a liga progressista não passasse de uma organização intermediária e pouco numerosa, que jamais poderia formar um governo e, sobretudo, mantê-lo por algum tempo, sem o apoio de um dos dois grandes corpos partidários que de um lado e de outro a extremavam. O gabinete de 24 de maio, presidido pelo senador Zacarias de Gois, organizou-se na suposição de que a maioria parlamentar do dia 21, que determinara a queda do ministério Caxias, já fosse uma maioria definitiva, indicando a fusão de progressistas e liberais num só partido. Bastou porém, que o novo governo revelasse as suas idéias perante a câmara, para aquela ilusão de todo desaparecer. Os liberais mantinham -se rigorosamente fiéis aos seus princípios. A confusão com homens de outras idéias no momento da crise ministerial fora um ato espontâneo de tática parlamentar, sem nenhuma conseqüência de ordem doutrinária; No dia 28, quatro dias apenas do seu nascimento, o gabinete literalmente se desmanchava. Os liberais deixaram-no morrer ante uma seca e peremptória moção conservadora, aprovada com verificação nominal de votação. Veio então um gabinete presidido pelo Marquês de Olinda. Naquele momento de transição, o velho regente trazia o seu grande prestígio pessoal como um elemento de 68 ponderação e de equilíbrio. Uma rápida frase do discurso com que se apresenta perante a câmara resume todo o seu programa: “Esta solução pede estudo!...” Ele não vinha opor se às reformas. Pedia somente que se tomasse o tempo de estudá-las. Mas, sem conseguir dominar a agitação parlamentar, apesar de todo o seu valimento, ele teve de apelar para novas eleições gerais. A câmara de 1862 foi dissolvida em maio de 1863, fixando-se a reunião extraordinária de uma outra para janeiro de 1864. Não se pode propriamente dizer que o governo tenha sido derrotado nas eleições que formaram a câmara de 1863. O marquês de Olinda, pela situação moral que os seus grandes serviços ao país lhe assinalavam no mundo político, não podia ser naquele momento um agente de competições partidárias. Assumindo o poder depois de duas quedas de gabinete, entre as quais medeara apenas o tempo de uma semana, o seu empenho foi imediatamente o de evitar que tão rápida prosseguisse aquela dança de ministérios. De fato ele o conseguiu durante sete meses. Vendo porém, esgotado o seu prestígio pessoal, preferiu o apelo direto à opinião pública, a entregar o poder a um governo previamente condenado a ruir no seu primeiro contato com o parlamento. Era necessário uma câmara na qual a corrente predominante se acentuasse bastante para garantir um governo estável. Com a reunião da nova câmara em janeiro de 1864 estava virtualmente terminada a missão do gabinete Olinda. O governo ia resultar da proporção mantida por liberais, progressistas e conservadores no novo parlamento. A princípio manifestou-se o receio de que se reproduzisse a instável e perturbadora situação anterior. As três correntes efetivamente 69 pareciam guardar entre si, sob o ponto de vista numérico, as mesmas relações observadas na câmara dissolvida. No intervalo operara-se entretanto uma sensível evolução dos conservadores para a esquerda. Os progressistas haviam consolidado as suas ideais, exclusivamente voltadas à garantia das liberdades individuais, num grande programa escrito, que se iniciava pelo repúdio da revisão constitucional, da eleição direta e da descentralização política. Com ressalva de modificação da lei do processo criminal de 1841 e de outras medidas, liberais como aquela, mas de caráter puramente administrativo, eram, em essência, as próprias idéias conservadoras que eles proclamavam. Os conservadores assim o compreenderam, tanto mais que naquele momento já não pareciam indispensáveis nem mesmo necessárias as antigas disposições policiais do Marquês de Paranaguá. Os dois partidos não se fundiram. Mas para ver quanto mentalmente os aproximou aquele concordante e simultâneo apego à constituição de 1824, basta saber que naquele instante os conservadores adotaram a designação de “partido constitucional”, enquanto os progressistas consentiram em ser chamados de “liberais-conservadores...” Esse ambiente foi propício ao aparecimento de um novo gabinete Zacarias de Góis, Formado no dia 15 de janeiro, no dia 18 o ministério comparecia perante a câmara. Zacarias, solenemente, o apresentava nas seguintes palavras: - “Sr. presidente, há quase dois anos que, encarregado pela coroa da honrosa tarefa de organizar o gabinete de 24 de maio, coube-me expender aqui um programa que então mereceu, e que os acontecimentos ulteriores persuadem que continua a merecer o assentimento do país. Chamado, pois, 70 agora, em conseqüência do desenlace desses acontecimentos, a organizar o gabinete que no dia 15 do corrente sucedeu ao de 30 de maio, venho com os meus colegas declarar à câmara, como nos cumpre, que as normas por que se tem de reger o novo ministério na gerência dos negócios públicos estão em geral designadas no programa aludido... Do mesmo modo que em 1862, hoje entra no plano do governo alterar-se a lei de 3 de dezembro de 1841, no sentido de dar mais garantias à liberdade individual, e separar a polícia judiciária da administrativa; rever-se a legislação sobre a guarda nacional, no intuito particularmente de aliviar o mais possível o ônus do serviço ordinário... Tal é, senhores, o programa do gabinete. Entre o programa do gabinete de 24 de maio de 1862 e o de 15 do corrente há uma diferença, que eu devo assinalar. Em 1862 o ministério aludiu ao concurso de duas opiniões com que contava para levar por diante o seu pensamento político. As duas opiniões políticas, porém, que este salão viu naquela quadra após debates públicos e solenes, aliaram -se, sem quebra de princípios, nem da dignidade de ninguém, formam hoje uma só opinião, um só partido, cujo alvo é promover sinceramente, sem nada alterar na Constituição do Império, a prosperidade do país...”(13) Referindo-se a duas opiniões que naquele instante se reuniam “num só partido”, o presidente do conselho anunciava certamente a fusão final dos liberais na liga progressista. A aliança eventual e passageira da sessão da câmara de 21 de maio de 1862, ali tornava-se definitiva, para garantir ao gabinete uma maioria duradoura e eficaz. Mas Zacarias enganava-se. Com o seu programa de inalterabilidade da constituição, muito mais próximo estava ele dos 71 conservadores, dos “constitucionais”, a quem não solicitava, que daqueles cuja aliança almejava até aquele ponto de iludir se. Entre “liberais-conservadores” e “constitucionais” não houve nenhum ensaio de entendimento direto. A identidade de idéias encarregou-se porém, de estabelecer entre eles uma invisível ligação, que, para o governo, se transformava, mesmo a contragosto, numa inevitável garantia de estabilidade. Não era propriamente na câmara, onde eram reduzidos os elementos nitidamente conservadores, que naquele fenômeno se operava. Era do senado e do conselho de Estado que ele vinha reagir sobre a conduta ainda incerta e flutuante dos deputados. A decisão individual valia muito pouco em tudo aquilo. Havia uma espécie de ambiente moral em evolução, que insensivelmente ia preparando os acontecimentos. A fusão liberal-progressista, apesar de combinada entre os chefes dos dois grupos, na prática revelava-se impossível. Ao mesmo tempo o governo, em manter-se, ia sentindo a influência desdenhosa e distante, mas irrecusavelmente providencial dos conservadores. Debalde o conselheiro Nabuco procurava da tribuna do senado ativar aquela fusão, defendendo, com o programa progressista, a preferência das liberdades individuais sobre as liberdades políticas. À sua clara e incisiva dialética ele juntava a citação de Laboulaye: “As liberdades políticas são as garantias das liberdades individuais. Todas são necessárias, mas o caráter do novo partido liberal, é ter enfim compreendido que as liberdades políticas não são nada por si mesmas; são formas vazias e enganadoras, se não há por trás delas esses direitos individuais, que são o fundo e a substância da liberdade”. O conceito era justo e certamente de uma grande beleza. Mas dele mesmo os liberais brasileiros eram 72 forçados a deduzir que, para querer uma coisa no tempo, isto é, para querê-la como um fato prolongado e constante, é indispensável querer simultaneamente as suas garantias necessárias. Nabuco, em 1862, ao ver os partidos emergirem, mesclados e indecisos, da política de conciliação, dissera -lhes com absoluta propriedade: “Legitimai-vos pelas idéias; só as idéias podem gerar o antagonismo, só o antagonismo mantém os partidos...” Foi esse o conselho seu que foi ouvido. A esquerda liberal, restabelecendo a sua filiação com os revolucionários do primeiro reinado e da Regência, imediatamente caracterizou-se no grupo dos “liberais históricos”, em torno à clara e nítida bandeira da revisão constitucional. É conveniente prestar uma grande atenção a esse evoluir de “nuances” partidárias. É a própria vida das idéias que aí observamos. O desconhecimento desse dado psicológico fundamental, ou a incapacidade de com ele jogar na análise social do segundo reinado, tem conduzido os escritores atuais a conclusões de uma clamorosa superficialidade. Sem restituir esse elemento moral constante à sua função exata, nós seríamos fatalmente levados a considerar apenas o aspecto material dos acontecimentos, tudo explicando por simples interesses pessoais ou paixões imediatas. Muitos dos cronistas posteriores a 1889 assim têm procedido. Mas eles não têm feito mais que estabelecer uma lamentável confusão, pela tendenciosa projeção da moral da sua época sobre homem e coisas de um outro tempo... Quando hoje cotejamos a feição doutrinária do gabinete de 15 de janeiro com os esforços por ele empregados no sentido de uma aliança com os liberais extremados, 73 imediatamente recebemos a sensação de uma profunda incoerência. Zacarias de Góis, a pensar, em suma, com os conservadores, pre5endia apesar disso basear no partido adverso a sua política parlamentar. Esse contrasenso não era entretanto tão irredutível quando nos possa à primeira vista apresentar-se. O que separava Zacarias da intrépida e vigorosa falange dos liberais históricos, eram simples diferenças de processo. No terreno dos princípios, jamais ninguém foi no Brasil mais liberal, mais segura e conscientemente liberal do que ele. Conquanto entrasse na vida parlamentar em 1850 ao lado dos conservadores – o que não admira, dado o ambiente especial da política de conciliação – a sua estréia na câmara dos deputados foi uma prova de convicções tão poderosa e frisante, que, na sua esplêndida clareza, chegou a alterar definitivamente a posição teórica da coroa no nosso conceito do Estado. Nos papéis oficiais e nos discursos do parlamento, até então fora atribuída ao imperador a designação de “soberano”. Mas, dando a comissão do voto de graças esse apelativo ao Chefe de Estado na resposta à fala do trono de 1850, Zacarias de Góis impugnou imediatamente a qualificação, dizendo que, no Brasil, de acordo com a letra da constituição, soberana era a nação e não o imperador que dela era apenas o delegado. Desse momento em diante, nunca mais entre nós alguém falou de “soberano”, referindo-se ao imperante.(14) Para quem saiba dar às palavras o seu exato valor, no direito público, esse fato não pode deixar de assumir uma grande significação. Não seria possível negar de boa fé os sentimentos liberais de Zacarias de Góis. O que se dava, é que o professor de Direito Natural da antiga faculdade de Olinda, era uma forte organização de jurista e homem de Estado, em 74 quem a preocupação lógica constantemente sujeitava todas as idéias e pensamentos a um programa uniforme, rigorosamente objetivo. O anacronismo que consistiria em pensar na cúpula de um monumento, antes de lhe cuidar dos alicerces, parecia lhe sem dúvida uma heresia, não sendo portanto de estranhar que a sua repugnância em aderir desde logo ao programa dos liberais históricos se apoiasse em algum sólido e respeitável motivo de ordem. Qual seria entretanto esse motivo? Que obstáculo para Zacarias se interpunha entre as idéias progressistas e a plataforma dos liberais históricos? Foi essa a revelação que ele não pôde ou não quis fazer. Neste ponto, por ora, seja-nos lícito supor apenas que talvez ele a houvesse feito no decorrer de 1864, ou, o mais tardar, na fala do trono de 1865, se as graves complicações que de novo surgiram nas fronteiras do Sul, não lhe viessem perturbar e tolher toda ação eficaz na política interna. A situação do Rio da Prata, depois da queda de Rosas, não se manteve infelizmente na calma que seria de desejar para a nossa perfeita tranqüilidade internacional. Na República Argentina instalara-se, é certo, um governo culto e nobremente inspirado. A ascensão do presidente Bartolomeu Mitre, como conseqüência da sua vitória sobre Urquiza na batalha de Pavon, havia realmente iniciado a era do grande progresso argentino. No Uruguai, porém, as coisas se passavam de maneira diversa. Ali, a guerra dos caudilhos se mantivera, O poder, arrebatado de mão em mão, continuava a ser o prêmio de sangrentos torneios de cavalaria. O governo imperial, constantemente incomodado nas suas fronteiras, via ainda, com um sobressalto bem compreensível, que os uruguaios não sabiam pensar nos seus negócios internos, sem colocá-los em 75 função dos seus sentimentos para com os Estados vizinhos. Ser “colorado”, em Montevidéu, era ser amigo dos governos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, desejando a manutenção da República Oriental nos limites do tratado de 1828, como ser “blanco” era inclinar-se para a irrequieta e rude gauchada de Corrientes e Entre-Rios, estendendo a mão, através dela, ao ditador Solano Lopez, do Paraguai. Para admitir, como depois se tem pretendido, que o governo do Brasil pudesse conservar-se indiferente àquela tumultuosa e confusa situação, é necessário certamente considerar a nossa política exterior daquele tempo pelo prisma da mais cândida e delirante ideologia. Da viabilidade da nação uruguaia dependia a paz na América do Sul, e para nos prender à sorte daquele país vinham-se juntar aos interesses mais imediatos da nossa defesa externa, as obrigações que solenemente assumíramos em três sucessivos tratados internacionais. O governo imperial não só era forçado a uma incansável vigilância diplomática na bacia do Prata, como não podia afastar de si a hipótese de uma nova intervenção militar, segundo os fatos ali se apresentassem. Naquele ano de 1864, estando os “blancos” no poder com o presidente Aguirre, a luta deles com os “colorados” chefiados pelo general Venâncio Flores, assumira um caráter de extrema gravidade internacional. Os uruguaios encontravam-se positivamente naquela especial situação dos povos que, segundo Maquiavel e Montesquieu, estando a ferver internamente, não estão longe de escaldar os seus vizinhos. A guerra civil ameaçava estender-se às fronteiras do Brasil e da Argentina, atraindo para sua área de ignição a considerável massa militar do exército paraguaio. Do nosso lado, aquela ameaça já se 76 concretizara mesmo em várias incursões feitas pela gente de Aguirre no município de Jaguarão, com sérios prejuízos, não só para a propriedade privada, como para a segurança pessoal dos habitantes. O governo imperial viu-se no dever de intervir, tanto por aquelas razões de ordem moral, como principalmente para obter a devida reparação daqueles agravos. O gabinete Zacarias de Góis, começando por fazer cobrir a fronteira de Jaguarão por uma força ao mando do general Barão de São Gabriel, mandou em missão especial a Montevidéu o conselheiro José Antônio Saraiva. A missão não era fácil. Tratava-se de obter satisfações no presente e garantias para o futuro, de um governo que, primeiro, não tinha para conosco a mínima boa vontade, e, segundo, não sabia até quando valeriam as suas decisões, dado que a revolução já ocupava a maior parte do território da República. O nosso enviado especial ia ser arrastado a discutir a própria situação política interna do presidente Aguirre. O governo argentino mandou então o seu secretário do exterior, Rufino de Elizalde, juntar se ao conselheiro Saraiva em Montevidéu, acompanhado pelos bons ofícios do ministro Thornton, representante da Inglaterra em Buenos Aires. Dessa tríplice intervenção, resultou, com certa facilidade, um protocolo no qual Aguirre e Florez se acordavam em pôr termo à guerra civil, reorganizando-se o governo uruguaio para nele entrarem simultaneamente “blancos” e “colorados”. Mas, por trás do presidente Aguirre, elevava-se, lá de Assunção, a figura torva e misteriosa do ditador Solano Lopez. Os “blancos”, avisados de que o exército paraguaio se aprestava a marchar em seu favor, brutalmente repudiaram o protocolo já firmado. Só restou ao conselheiro Saraiva retirar-se a Buenos Aires, precipitando 77 todas as nossas reclamações num severo e vigoroso “ultimatum”. Estes fatos são de conhecimento corrente, para qualquer pessoa medianamente versada em História sul-americana. Em torno deles, porém, tem-se levantado depois de 1889 uma tão intrincada e tendenciosa rede de interpretações, que não nos seria possível examinar a influência que tiveram na nossa vida daquele tempo, sem deles tentar previamente uma recapitulação simples e clara. O desfecho que teve a missão Saraiva não podia deixar de traduzir-se, para o gabinete de 15 de janeiro, num insucesso evidente. As condições da política interna agravaram-se de tal maneira, que, no dia 31 de agosto, o ministério era substituído por um outro sob a presidência do conselheiro Furtado. O nov o gabinete apresentava-se ao parlamento com uma plataforma rigorosamente progressista. Era a mesma limitação das reformas desejadas ao estrito campo da legislação ordinária, com menção especial da lei de 1841 e dos pesados regulamentos da guarda nacional. Mas, se a segurança doutrinária de Zacarias de Góis o permitia manter-se independente do partido conservador, apesar de, na política prática, dele aproximar-se pela moderação do seu programa imediato, o mesmo não se deu com o novo presidente do conselho. Furtado, aceitando o “minimum” das idéias progressistas, sem a íntima polícia de uma firme reserva mental para o futuro, facilmente confundiu-se com os constitucionais, criando uma situação falsa que a ninguém podia convir. Não digamos que ele estivesse na obrigação de sistematicamente afastar do seu governo o concurso dos conservadores, sobretudo nas funções públicas especializadas. 78 É porém, curial que esse concurso jamais poderia operar eficazmente, se não fosse em condições de ressalvar todas as susceptibilidades, evitando qualquer mal-entendido. O desenvolvimento da missão do Prata, confiada pelo governo anterior ao conselheiro Saraiva, era o que primeiro solicitava os cuidados do gabinete. Saraiva, com a demissão de Zacarias, considerava-se desautorizado. Era indispensável substitui-lo. O governo dirigiu imediatamente as suas vistas para um conservador, o conselheiro Silva Paranhos, depois o grande Visconde do Rio Branco. A escolha era excelente. Não resta porém, a menor dúvida de que o conselheiro Furtad o não soube estabelecer entre si e o novo enviado extraordinário, o ambiente de mútua e inalterável confiança que a ambos conviria numa empresa tão difícil e delicada. Paranhos, ao chegar ao Rio da Prata, encontrou-se diante de uma situação de fato que em muitos pontos aberrava de todas as regras do direito das gentes. Em frente a Montevidéu estacionava uma esquadra brasileira ao mando do almirante Marquês de Tamandaré. Apenas o governo de Aguirre recusou -se a aceitar os termos do “ultimatum” apresentado pelo conselheiro Saraiva, a nossa esquadra entrou logo a mover-se de concerto com as forças do general Florez, ao mesmo tempo que o Barão de São Gabriel levantava o seu acampamento de Jaguarão, invadindo também por sua vez o território da república. Toda esta atividade militar plenamente justificava-se, dado o ponto a que haviam chegado as nossas relações com o governo de Montevidéu, agravadas ainda naquele instante pela intervenção formal do ditador paraguaio, a nos ameaçar, intratável e sobranceiro, de um imediato rompimento de hostilidades. Não havia realmente tempo a perder. Era urgente liquidar o nosso 79 diferendo com o Uruguai, antes que pudesse estabelecer -se a conjugação militar de Aguirre com Solano Lopez. Mas as indispensáveis formalidades jurídicas não haviam sido observadas. Tamandaré chegara a decretar o bloqueio do porto de Montevidéu, por um simples aviso às delegações estrangeiras ali acreditadas, sem mesmo esperar que a guerra estivesse oficialmente declarada. A vigorosa atividade dos nossos chefes militares, determinando a queda de Paissandu e a junção do exército partido de Jaguarão com as tropas do general Flores, era, sob o ponto de vista estratégico, providencial e necessária. Os “blancos”, sitiados em Montevidéu, viram-se privados das suas comunicações habituais, e portanto isolados do Paraguai. Mas a situação geral tornara-se absurda e tanto mais incômoda quanto o governo de Buenos Aires se dissolidarizara do governo imperial, declarando a sua completa neutralidade naquela fase nova do conflito. Os primeiros esforços de Paranhos consistiriam em repor as coisas nos seus devidos lugares. Depois, afastando os brasileiros dos postos avançados, para, diretamente, deixar apenas uruguaios em face de uruguaios, ele agiu com tamanha habilidade que, de parte interessada, tornou-se árbitro na contenda. Montevidéu capitulou sem ser investida, e os “blancos” entregaram o governo ao general Florez que, nosso aliado, previamente reconhecera toda a justiça das reclamações brasileiras. Considere-se que tudo isto se passava quando Solano Lopez já invadira a nossa província de Mato Grosso e tomava as últimas disposições para ameaçar nos na fronteira do Rio Grande do Sul, e compreende-se todo o grande serviço prestado pelo conselheiro Silva Paranhos ao seu país. 80 É claro entretanto que o novo enviado extraordinário não podia alterara tão completamente a política uruguaia dos nossos chefes militares, sem mais ou menos entrar com eles em conflito. A substituição do fuzil e do canhão pelas notas diplomáticas, pareceu ao Almirante Tamandaré uma estranha maneira de compreender a dignidade do império, perante um inimigo que havia violado criminosamente a nossa fronteira e zombado de nós, repudiando um acordo no qual fôramos parte. Silva Paranhos viu-se nas maiores dificuldades para evitar que Montevidéu fosse bombardeada, num dia em que a bordo do navio capitânea chegou a notícia de que a nossa bandeira fora naquela cidade arrastada pela lama das ruas, num tropel vociferador contra o Brasil. Os “blancos”, cansados pelo bloqueio e já assustados com as conseqüências internacionais da guerra civil, começavam a fraquear. Tamandaré não se apercebia de que os amigos pessoais de Aguirre, praticando aquele desatino, que aliás nunca foi bem apurado, procuravam tão-somente prejudicar a ação do nosso representante diplomático, levando-nos à prática de um ato violento e irrefletido, que brutalmente ofendesse, sem distinção de partidos, a todos os uruguaios, simultaneamente levantando contra nós a indignação dos povos neutros. “Só um soldado pode bem compreender o que seja uma ofensa à bandeira...”, teria dito o velho e bravo marinheiro. Essa frase, trazida ao Rio de Janeiro, exaltou profundamente o ânimo popular contra os responsáveis diretos pela nossa política no Prata. Sabe-se quanto, em todo o mundo, as massas populares são sensíveis a frases como aquela, mesmo que não sejam autênticas... Levando-se porém, em conta a circunstância de ser o Almirante Tamandaré filiado ao partido liberal, logo se 81 vê quanto as preferências partidárias podiam naquele caso ter reagido sobre os sentimentos do povo. O governo não soube, como era seu dever indeclinável, cobrir a responsabilidade do seu representante do Rio da Prata. Ante a irritação das ruas, os membros do gabinete tardiamente se lembraram de que, no fundo, eram liberais e não conservadores. O conselheiro Silva Paranhos, depois de ter seus esforços coroados pela capitulação incruenta de Montevidéu e a integral reparação de todos os agravos recebidos, viu-se, sem explicações, destituído do seu cargo e tão ostensivamente repudiado pelo governo, que na sua volta à capital do império, a população julgou-se no dever de apedrejá-lo!... A mesma inconseqüente facilidade com a qual o gabinete de 31 de agosto escolheu a Silva Paranhos para substituto de Saraiva na missão do Prata, levou-o a ver no general Marquês de Caxias o seu homem, assim que lhe chegaram informações oficiais dos primeiros atos de guerra praticados contra nós pelo governo do Paraguai. O Marquês de Caxias, tanto pelas suas ligações com a velha política do Marquês de Paranaguá, como por haver sofrido, na presidência do gabinete conservador de 2 de maio de 1861, o sensacional repúdio da câmara de 1862, tornara-se, por um natural movimento de desagravo, o alvo de atenções especiais por parte dos seus correligionários. As relações de estranhos com o antigo pacificador das províncias, tornara-se politicamente um ponto muito sensível, na epiderme dos constitucionais. Essas delicadas circunstancias não impediram entretanto o gabinete do conselheiro Furtado de mandar procurá-lo sem mais cautelas. Na sua ausência de cor política exata e definida, o governo não podia compreender toda a significação dos seus 82 gestos, nem prever as reações de ordem partidária que provocariam. Os liberais históricos e os conservadores, perfeitamente seguros dos respectivos pontos de vista, não estavam, porém, na mesma situação mental do gabinete progressista. Caxias, muito bem disposto no primeiro instante a aceitar o comando do exército em operações, logo depois faz saber ao governo que a confiança militar oferecida, só podia ser aceita, desdobrada em confiança política. Era sobre a guarda nacional que se deviam organizar as forças para a campanha, e a guarda nacional dependia dos presidentes de província. Logo, a presidência da província do Rio Grande do Sul, teatro principal das operações, era indispensável ao comandantechefe... O marechal Henrique de Beaurepaire Rohan, ministro da guerra, que fora o emissário do gabinete junto ao marquês achou natural e aceitou como justo aquele ponto de vista. Mas, quando a exigência, que afinal se reduzia a substituir um presidente da confiança dos liberais por um político adversário, chegou ao conhecimento dos líderes do parlamento, a repulsa foi tão imediata e peremptória que o ministro da guerra, desautorizado, entregou o seu pedido de demissão. Depois de preencher com o general Visconde de Camamu a vaga deixada pelo marechal Rohan no gabinete, o conselheiro Furtado ainda abalou-se a uma última tentativa junto ao Marquês de Caxias. A resposta onde o aguardava era porém, a menos conciliatória. Caxias, além do mais, recusava se a servir sob as ordens do Visconde de Camamu, notoriamente seu inimigo do conselho fez então ver que se tratava de uma ordem do governo a um oficial general do 83 exército. A ordem não podia ser recusada sem evidente indisciplina. O marquês obtemperou-lhe imperturbável, que estava às ordens do governo, como soldado, mas, sendo também senador do império, o governo não podia dele dispor livremente, sem permissão da alta câmara à qual estava incorporado...(15) O conselheiro Furtado talvez tenha aceito essa doutrina da neutralização da obediência militar pelas imunidades parlamentares. Mas o gabinete estava desacreditado. Em m aio de 1865, apenas reaberto o parlamento, ele viu-se forçado à demissão coletiva. Para o partido progressista, os ensaios de colaboração direta com o partido conservador, tentados pelo gabinete Furtado, foram apenas um desastre. A insuficiência do programa progressista, como base de uma situação governamental perdurável e mesmo digna, tornou-se evidente, ficando os moderados, de um e outro lado, na rigorosa necessidade de se definirem. A grande maioria liberal da câmara dos deputados, trazida na legislatura 1864-66, mais que até ali se mantivera nos limites de uma tolerância quase inexplicável, afirmou-se então poderosamente. Em face da influência retardatária e cautelosa da velha maioria conservadora do senado e do conselho de Estado, os homens novos, que as eleições pelo sistema dos círculos de 1860 mandara à vida pública, haviam afinal tomado conhecimento do seu valor exato. O programa dos liberais históricos tivera afinal o seu momento. Entretanto, a situação internacional, com o ataque dos paraguaios a Mato Grosso e o seu avanço sobre a margem esquerda do rio Paraná, tornara-se bastante grave para não 84 deixar tempo a outros cuidados. Não era possível, naquelas condições, pensar num gabinete tendo a reforma constitucional com seu programa imediato. Mas os liberais estavam firmemente decididos a não se deixaram desorientar pelas dificuldades externas. O mais que eles podiam admitir, era a preferência das medidas militares, na ordem administrativa, sem contudo prejudicar ou interromper a nova ordem política geral. A ameaça exterior, despertando o entusiasmo patriótico, vinha apenas multiplicar a exaltação liberal na política interna. Foi nesse ambiente especial que surgiu um novo ministério presidido pelo marquês de Olinda. A volta do velho estadista do primeiro reinado e da Regência mostrava bem que se tratava de um governo de circunstância, formado sob a premente preocupação da defesa externa. Mas o antigo regente, caráter sisudo e imperturbável, fortemente dosado de senso prático, não foi procurar apoio nem inspirações nos conservadores, tentando acordos impossíveis naquele momento. Perante a sólida maioria liberal da câmara temporária, ele resolve com ela colaborar sem reservas nem compromissos, escolhendo francamente no seio dela ou nos elementos que lhe eram mais caros, os componentes do seu governo. Foi o brilhante gabinete liberal de 12 de maio de 1865, o ministério das águias, como a admiração popular o apelidou, no qual apareceu o grande ministro Silva Ferraz, da Lei dos círculos de 1860, acompanhado de Nabuco de Araújo, de José Antônio Saraiva e de Silveira Lobo. naquele meio tempo, a nossa situação internacional tinha-se modificado sensivelmente. O gabinete Furtado, depois de haver substituído no Rio da Prata o liberal Saraiva pelo conservador Silva Paranhos, para demitir este pela forma já 85 descrita, havia voltado aos liberais, enviando para ali o deputado Francisco Otaviano. A República Argentina continuara na sua neutralidade, prolongando-a do nosso conflito militar com o governo de Aguirre à guerra com o Paraguai. Apesar da sua grande sagacidade política, o presidente Mitre parecia acreditar seriamente que Solano Lopez, partindo em armas de Assunção, apenas pretendia demonstrar o seu devotamento à soberania das repúblicas sul americanas, contra o nosso imperialismo. Lopez, entretanto, bem pouco tinha a faze com a independência do Uruguai. O que ele sonhava e a cujo fim de antemão consagrara todo o sangue dos seus patrícios, era com a extensão dos seus domínios até o mar, pela margem esquerda do Paraná até o estuário do Prata, em detrimento imediato dos seus dois vizinhos castelhanos. A luta com o Brasil, apesar de prometer grandes compensações territoriais em mato Grosso, era afinal um esforço de resultados indiretos, pois ele bem sabia que, sem previamente nos vencer, jamais dilataria as fronteira s do seu país. O seu grande objetivo eram as costas uruguaias do oceano, através das províncias argentinas de Corrienes e Entre-Rios. A traiçoeira brutalidade com a qual o ditador paraguaio mandou aprisionar duas canhoneiras argentinas no rio Paraná, no dia 13 de abril, fazendo ocupar no dia seguinte a cidade de Corrientes, veio abrir os olhos ao presidente. Em meio à grande exaltação nacional provocada em Buenos Aires por aqueles atos de pirataria, Francisco Otaviano não encontrou mais dificuldades em prender a Confederação Argentina à sorte do Brasil na guerra contra Solano Lopez. As duas nações, como o Uruguai sob o novo governo Venancio Florez, firmaram então o tratado da “Tríplice-Aliança”. As 86 nossas condições estratégicas para com o Paraguai estavam assim completamente alteradas. O nosso primeiro plano de campanha, esboçado pelo Marquês de Caxias ao marechal Rohan, quando do convite para o comando em chefe, previa a formação de três exércitos, dos quais, um, marcharia de São Paulo em socorro da província de Mato Grosso, outro, partindo do Rio Grande do Sul e ganhando o vale do Iguassu, passaria para o território paraguaio mais ou menos na confluência daquele rio com o Paraná,(16) enquanto o último, finalmente, se conservaria de observação, mesmo na província do Rio Grande do Sul. É claro que esse plano primitivo, levando em conta a neutralidade argentina, ao mesmo tempo que respondia ao ataque paraguaio, procurava, com aquele exército de observação, por-nos ao abrigo de qualquer surpresa nas fronteiras do rio Uruguai. Nós não tínhamos certamente a duvidar da neutralidade de Buenos Aires. Mas, na luta de um terceiro com os guaranis de Assunção, não havia fiar nos gaúchos de Corrientes e Entre-Rios. Era uma situação deveras confusa e duvidosa, que a imperícia de Lopez, não sabendo respeitar, pelo menos “si et in quantum”, aquela neutralidade, veio esclarecer rapidamente, oferecendo-nos toda segurança na grande via de comunicações do Prata e deixando-nos a liberdade dos nossos movimentos nas duas províncias argentinas. Nestas ovas condições, o gabinete de 12 de maio tomou em mãos os negócios do império, com a especial determinação de promover rapidamente a guerra, para chegar o mais depressa possível ao seu termo. Naquele instante da nossa vida política e partidária, a agressão paraguaia transformava-se para os liberais numa diversão extremamente incômoda, em 87 cujo encerramento imediato eles punham o máximo interesse. Vinte e nove dias após a instalação do novo ministério, o almirante Barroso destrói completamente a esquadra paraguaia em Riachuelo. Os aliados estavam com o domínio absoluto das comunicações fluviais até as ribanceiras do país inimigo. Em terra, os paraguaios começam também a conhecer os seus primeiros revezes. Já em Mato Grosso, a subida do rio Paraguai até a foz do São Lourenço tinha-lhes custado inúmeras vidas. A invasão, dirigida por Barrios e Resquin, ali confessara-se impotente, a solicitar reforços de Assunção. Na margem esquerda do Prata, em jataí, Pedro Duarte e aniquilado pelas forças argentino-uruguaias de Paunero e Venancio Florez, sem conseguir juntar-se a Estigarribia, que, flanqueado de perto pelos brasileiros, vem deixar-se sitiar em Uruguaiana. O gabinete liberal, no Rio de Janeiro, parecia realizar o milagre da multiplicação dos recursos militares. Adquiriam-se vasos de guerra no exterior e fundavam-se estaleiros para a construção de outros aqui mesmo. Fabricávamos armas, munições e equipamento de toda sorte, como se houvéssemos descoberto dentro de nossas fronteiras uma capacidade industrial até então insuspeitada, fornecendo ainda aos nossos aliados os meios pecuniários de também de armarem. Pela costa, desde a embocadura do Amazonas, os mais rápidos navios a vapor se sucediam carregados de tropas, em direção ao Prata. A guerra não podia durar muito... Tudo aquilo porém, os liberais o faziam sem de maneira alguma recorrer à experiência dos líderes conservadores. Quando, no mês de julho, com o cerco da coluna Estigarribia em Uruguaiana, o imperador resolveu transportar-se ao teatro das operações, o Marquês de Caxias também seguiu no 88 numeroso estado-maior de Sua Majestade. O ministro Silva Ferraz que, tendo no gabinete guardado a Pasta da Guerra, era quem, junto a Pedro II, tudo dispunha e ordenava, jamais consentiu em solicitar do velho general o mínimo alvitre sobre as cosias da campanha. Caxias conhecia a região das operações em todos os seus detalhes. A cidade sitiada fora fundada por ele. Afinal, a 18 de setembro, Estigarribia entrega-se com armas e bagagens, e logo depois começa o avanço dos aliados sobre o rio Paraná, em cuja margem direta se detivera, lento e indeciso, o grosso da invasão paraguaia. O que mais admira nos primeiros episódios da guerra de 1864, é a absoluta incapacidade de manobra do grande exército de Lopez. Aquela imponente máquina militar, montada longamente, desde Carlos Antonio Lopez, ao calor de tão vastas ambições, apenas se mostrava pelas fronteiras inimigas, para logo desaparecer fugidia e cautelosa por trás dos juncos da Lagoa Pires. As mas profundas incursões tentadas pelo estado-maior paraguaio não passaram de operações subsidiárias, à procura de resultados mais políticos que propriamente militares. A marcha de Estigarribia e Pedro Darte não visava diretamente o Brasil nem procurava um encontro sério com as forças aliadas. Tentava apenas uma espécie de demonstração sobre Montevidéu, onde Lopez supunha que a aproximação dos seus soldados, exaltando o sentimento partidário dos “blancos”, determinasse a queda imediata dos “colorados”. A invasão de Corrientes ob edeceu a propósitos mais ou menos idênticos. A expedição do general Robles destinava-se somente a cobrir a formação de um exército corrientino, que operasse contra o governo de Buenos 89 Aires, sob o comando de Virasoro. Tudo leva a crer que também sobre a província de Entre-Rios existissem projetos do mesmogênero. O general Urquiza dispunha ali de forças então consideradas as melhores da Confederação Argentina. Ele solicitara mesmo a honra de com elas formar a vanguarda dos aliados. Mas os fatos subseqüentes vieram demonstrar que alguma grave surpresa esperava certamente a Tríplice-Aliança, se de fato, entre os seus exércitos e os paraguaios, se houvesse metido o permeio de tal vanguarda. Prejudicada a fase inicial dos planos de Lopez sobre a margem esquerda do Prata, pela fulminante ação naval de Riachuelo, combinada com a vigorosa atividade desenvolvida pela guarda nacional portenha às ordens do general Paunero, as belas tropas entre -rianas desertaram quase por encanto, sumindo-se pelos matagais da província, como um bando de gazelas assustadas. Urquiza teria pensado apenas na sua revanche de Pavon... Eram desta espécie as combinações estratégicas do potentado de Assunção. Por todo o Rio da Prata ele esperava ter quem por ele se batesse, de maneira a restar ao seu caro e poderoso exército, como simples ação de retaguarda, uma irresistível e final tomada de posse. Diante de tais e tão cômodas esperanças do ditador, compreende-se a princípio e de certa forma a exígua intrepidez dos seus movimentos, nos primeiros dias da guerra. Quando, porém, as etapas preliminares do seu programa entram todaa a fracassar umas após outras, já não se pode mais entendê -lo. Lopez, em agosto de 1865, já dispunha de 60 mil homens em armas, dos quais 30 mil, trazendo sessenta bocas de f ogo, seguiram o general Robles a Corrientes, enquanto 10 mil outros acampavam na Tranquera de Loreto, em frente à 90 Candelaria,. Com tais elementos, não só imediatamente disponíveis mas, na sua maior parte, já trazidos aos pontos de partida para um avanço decisivo, como explicar que não se tenha ele movido ao sacrifício de Pedro Duarte, em Jataí, nem tentado socorrer a Estigarribia, cercado durante quarenta e quatro dias dentro de Uruguaiana. Não é provável que só tarde demais houvessem aqueles revezes chegado ao seu conhecimento. Na milongada guarani, que, de parceria com mercantis e aventureiros de toda espécie logo se acercou dos acampamentos aliados, ele tinha um dedicado e incontável corpo de observadores, que, em falta de melhor, não se teria certamente privado de informá-lo. Como compreender tanta passividade, quando o inimigo, reunindo tropas improvisadas e quase sem preparo, energicamente tomada a iniciativa? É que o déspota de Assunção nunca foi, como ele mesmo se supôs e ainda pretendem os seus panegiristas atuais, um grande chefe militar, ao serviço de nenhum ideal político apreciável. Ele foi apenas o joguete mais ou menos consciente de um trágico anacronismo, que tendo chegado a ser deveras impressionante pelo número de vidas que sacrificou, não po dia entretanto passar de um episódio acidental e passageiro na história dos povos americanos. O Paraguai, que o ditador Carlos Antônio Lopez, ao falecer em 1862, deixara a seu filho Francisco Solano, era pouco mais ou talvez menos que uma vasta “Redução Jesuíta”, onde alguns políticos espertos, mas certamente grosseiros e sem elevação, se haviam substituído aos padres da Companhia. A pesada disciplina de feição monástica, na qual os dignos religiosos haviam dominado a massa autóctone, tendo perdido na vida nacional o seu sentido teocrático, transformara-se, em 91 proveito dos ditadores de Assunção, no mais completo e absoluto fanatismo pessoal. Com a prática mais ou menos fiel das formas aparentes ou simplesmente visuais do ritual católico, a colonização jesuíta só conseguira legar à República do Paraguai o uso das armas de fogo e um certo adiantamento na cultura do solo. No mais, aquele país se conservara uma nação de “índios”, não só indiferente, para seu uso, a tudo quanto viesse do mundo exterior, como mesmo reprovando com profundo ódio todo o interesse das nações do litoral pelas idéias morais e políticas da civilização européia. Foi ness ancestral e instintiva oposição da alma selvícola, consolidada na intolerância religiosa, ao espírito adventício da Europ a moderna, que os Lopez encontraram as bases morais e psicológicas do seu poder militar. As simpatias que despertou nos meios indígenas de Corrientes e Entre-Rios a política internacional de Francisco Solano, confusamente fundada naquelas origens e delas descendente, mostram bem a natureza real da guerra de 1864, com toda a ingênua inconseqüência dos seus aspectos político-estratégicos, misturada à sua torva ferocidade. Os gaúchos entre si se aconselhavam a tomar partido pelos paraguaios, por aqueles que falavam “a sua” língua, “o guarani”, traindo a comunhão política argentina, à qual se achavam legalmente incorporados, mas cujo sentido não podiam ainda compreender. É fácil de ver tudo quanto havia de paradoxal e absurdo num programa de transformações internacionais, que, partindo daqueles fundamentos, pretendia regular dali por diante a existência dos povos mais cultos do continente. Lopez, supondo-se o árbitro das relações do Brasil com as repúblicas do Prata, era apenas o agente fatal de uma instintiva e confusa 92 revolta de índios. A sua grande significação internacional reduzia-se, em última análise, a uma miragem do horizonte de pântanos e florestas da sua terra, que não poderia jamais projetar-se muito para além da entrada soturna e verde das Três Bocas. Ora, não teria sido possível escapar aos estadistas do Rio de Janeiro e de Buenos Aires o verdadeiro caráter das pretensões paraguaias, nem a absoluta inviabilidade de um tão vasto plano político e militar, concebido no ambiente mental daquele país. A vitória final, apesar do sangrento e pesado esforço que exigiria, logo se lhes apresentou como rápida e indubitável. De fato, em outubro de 1865, já os planos de Lopez estavam inteiramente fracassados. Sem o grande incêndio revolucionário que devia cobrir a sua marcha triunfal sobre o oceano, ele nada mais viu de interessante na margem esquerda do Paraná. O seu exército repassou o rio, deixando -se abordar apenas em rápidos combates de retaguarda, como assustado simplesmente de se haver tão longe aventurado... O governo liberal do Rio de Janeiro tinha todos os motivos para sentir-se satisfeito com o trabalho realizado até ali. Desarmados no início da guerra, nós chegávamos às barrancas do Paraná com um exército de 31 batalhões de infantaria, 11 regimentos de cavalaria e 42 bocas de fogo, enquanto um outro em formação se estendia de Uruguaiana a São Borja. Esses exércitos eram comandados pelos generais Osório e Porto Alegre, ambos liberais pela sua filiação partidária, como liberal era também o Marquês de Tamandar é, comandante em chefe da nossa esquadra de operações. O gabinete de 12 de maio, no seu esplêndido esforço de 93 organização militar, pudera dispensar completamente o concurso político dos conservadores. Guardadas as proporções dos respectivos recursos econômicos e demográficos, não foram menos brilhantes os resultados da mobilização argentina. O general Mitre, a quem o tratado de aliança, pela sua especial situação de chefe de Estado, reservara, em primeiro lugar, o comando geral dos aliados,(17) trouxera ao nosso lado as duas colunas dos generais Paunero e Gely y Obes, mandando ainda para a frente a cavalaria de Hornos e Caceres, que formaram a vanguarda do exército, com o contingente uruguaio do general Venâncio Flores. Não é difícil imaginar as grandes esperanças que a situação militar fazia nascer nos meios liberais do Brasil. A terminação imediata da guerra ia ser a obra do partido. Eram os liberais que haviam armado o país e promovido a tríplice aliança, preparando e dispondo aquelas excelentes condições estratégicas. Se o Marquês de Olinda, no discurso de apresentação do gabinete fizera passar a defesa militar imediata à frente das reformas políticas, aqueles que tinham essas reformas como seu programa, iam poder, dentro em breve, promover-lhes a realização final, cercados do imenso prestígio da vitória. A guerra do Paraguai, ao invés de retardar, viria assim dar segurança e maior velocidade à nossa ascensão democrática. Infelizmente, a partir do momento em que o território argentino ficou livre dos invasores paraguaios, começaram a surgir para os aliados as primeiras dificuldades. da sua chegada às barracas do Paraná, seis meses levaram as nossas tropas para se decidirem a transpor o rio e penetrar no 94 território inimigo. É verdade que a passagem da margem esquerda para a margem direito do grande rio fronteiro, fora uma esplêndida manobra, que deve ter compensado brilhantemente o prejuízo moral daquela demora. Em quarenta e oito horas o ditador viu-se privado de todas as posições diante de Corrientes, e seis dias depois era forçado a abandonar o campo entrincheirado de Tuiuti, incendiando, na precipitação da fuga, os seus depósitos de víveres. mas os aliados, uma vez instalados na margem direita, novamente quedaram-se inativos, deixando aos paraguaios a liberdade de organizarem o seu contra-ataque de grande estilo no dia 24 de maio, no qual, envolvendo as nossas linhas pelo flanco esquerdo, pretenderam precipitá-las, à direita, nos pantanais do Estero Bellaço. Uma tão grande lentidão da nossa parte, em face do interesse político que o gabinete do Rio de Janeiro ligava a uma terminação rápida da guerra, tinha necessariamente de produzir uma certa desinteligência entre os generais brasileiros e o presidente Mitre. Eram os nossos de opinião que se devia, sem demora, prosseguir na marcha para a frente. Até ali, não haviam os paraguaios conseguido resistir-nos eficazmente, uma só vez, em campo aberto. Era portanto de toda conveniência arremessá-los batidos sobre Humaitá, antes que eles tivessem o tempo de neutralizar a sua evidente inferioridade tática por meio de grandes trabalhos de fortificação. Efetivamente, o formidável sistema de trincheiras que os aliados encontraram depois em sua frente, levantado em grande parte após a nossa chegada a Tuiuti, parece, até cert o ponto, ter dado razão àquele raciocínio. entretanto, para sermos justos, deveremos sempre convir em que o general 95 Mitre era forçado a ver as coisas por um prisma um pouco diverso do adotado pelos nossos oficiais. Ele sem dúvida estava certo de que, taticamente, o avanço imediato jamais poderia resultar num desastre irreparável. Na hipótese de um insucesso, bastaria uma retirada em boa ordem sobre o rio, para deter a possível reação paraguaia no limite de ação das baterias da esquadra. Mas ele precisava pensar antes de tudo na repercussão que uma retirada em face do inimigo pudesse produzir no interior da República Argentina. O presidente, como já vimos, não podia confiar em grande parte da população que lhe ficara à retaguarda. Logo da passagem do Paraná, o seu primeiro cuidado consistira em transportar para o Itapiru todos os víveres e munições acumulados naquele instante em Corrientes, colocando-os sob a guarda imediata do exército. Sem aquela medida, que ao primeiro exame poderia parecer um detalhe protelatório, os aliados, numa noite de revolta na outra margem, bem podiam ter visto o horizonte iluminar-se ao clarão dos seus depósitos incendiados. O abandono do território argentino pelos invasores paraguaios foi logo seguido de uma ativa propaganda pela paz em separado. Uma vez que Corrientes e Entre-Rios estavam livres da invasão, dizia-se que, para a Argentina, haviam completamente cessado os motivos da guerra, não passando todo esforço militar subseqüente de um imprudente concurso para o final predomínio do Brasil imperial sobre os seus vizinhos republicanos. Perante um tal estado de espírito, era natural que o general em chefe sentisse a necessidade de uma grande circunspecção nos seus movimentos. Qualquer insucesso poderia transformar-se num argumento em favor dos seus 96 opositores internos, só lhe sendo portanto lícito atacar tendo firmemente em suas mãos todos os elementos da vitória. Nestas condições, o ataque unilateral, levado de Sula Norte, tal como o desejavam os brasileiros, parecia-lhe uma imprudência. Era melhor esperar que o exército do Barão de Porto Alegre, já então na fronteira de Itapuã, estivesse em condições de, simultaneamente com aquele ataque, invadir também o Paraguai na direção de Leste a Oeste, para colocar o inimigo entre duas ameaças, obrigando-o a dividir as suas forças. Essa doutrina, entretanto, não logrou ser adotada. O Barão de Porto Alegre foi mandado descer o rio Paraná. Optou-se em conselho de guerra pelo avanço unilateral, não já sobre as posições imediatamente fronteiras e Tuiuti, mas acompanhando a margem esquerda do rio Paraguai. Foi no desenvolvimento deste último plano que encontramos o sangrento revés de Curupaiti. A miragem paraguaia, restringindo-se ao seu ambiente próprio, parecia singularmente adensar-se... Pouco nos importa hoje a velha querela de saber quais teriam sido os resultados do ataque de Curupaiti, se o general Mitre o houvesse autorizado mais cedo, ou se o general Polidoro, que ficara no acampamento de Tuiuti, o fizesse em tempo secundado com uma demonstração eficaz sobre as linhas de Rojas. Isso, tecnicamente, talvez ainda possa ocupar às escolas de estado-maior, se o desenvolvimento ulterior da campanha, com a áspera resistência paraguaia nas três posições sucessivas de Humaitá, Lomas Valentinas e Peribebui, não bastar à indagação. A nós, o que nos interessa assinalar aqui, é que logo se verificaram todas as eventualidades temidas pelo presidente Mitre. Os aliados, 97 apesar de haverem perdido 3.500 homens junto às trincheiras de Curupaiti, dali se retiraram sem nada sofrer na volta às posições de partida. Mas a revolução rebentou na República Argentina, envolvendo rapidamente Jujui, San Juan, Mendoza, Córdoba e San Luís. O caudilhismo regional ressuscitara como nos belos tempos de Juan Facundo Quiroga, aos gritos de Viva Urquiza!, Paz com o Paraguai!, enquanto os “blancos” em Montevidéu retomavam a sua antiga e perigosa atividade... Para salvar a civilização no rio da Prata, guardando a retaguarda à Tríplice-Aliança, Mitre teve de voltar do teatro da guerra a Buenos Aires, expedindo antes em sua frente o general Paunero com a flor e a maior parte das tropas argentinas. Flores também viu-se forçado, pelas condições internas do seu país, a partir de Tuiuti com a sua cavalaria, indo, menos feliz que o seu colega portenho, encontrar a morte em Montevidéu, numa inglória e lamentável emboscada de rua!... NOTAS (13) Os normandos são nossos. (14) O próprio Zacarias recordou esse fato na sessão do Senado de 30 de agosto de 1870, respondendo a Paulino de Sousa. (15) Estas informações sobre os preliminares da organização do exercido do Paraguai, são dadas pelo próprio Caxias, num discurso feito na sessão do senado, de 15 de julho de 1870. (16) É interessante observar que este exército deveria tomar o mesmo caminho empregado elo capitão Luís Carlos Prestes, quando partiu de Santo Ângelo, em 1925, para juntar-se às forças revolucionárias do general Isidoro Lopes, na Foz do Iguaçu. Prestes invadiu precisamente 98 por ali o território paraguaio, infletindo, logo em seguida, a Leste, no seu espantoso raid pelo interior do Brasil. (17) O parlamento do Rio de Janeiro não se mostrara disposto a permitir ao imperador do Brasil a passagem da fronteira. Sua Majestade, depois de receber a rendição de Estigarribia, voltara de Urugua iana. CAPÍTULO V AS REAÇÕES DA BATALHA DE CURUPAITI NA POLÍTICA INTERNA O revés de Curupaiti veio aumentar consideravelmente as responsabilidades do Brasil no prosseguimento da guerra. Até então, o concurso militar dos dois principais aliados, a Argentina e o nosso país, completara-se na proporção de, mais ou menos, 1 para 4. Essa era a mútua situação das duas potências, contando-se a nosso favor a força naval, que praticamente éramos os únicos a possuir. A República Argentina deu, porém, em Curupaiti, o máximo do seu esforço. Dali por diante, obrigada a empregar a quase totalidade das suas tropas no combate à rebelião interna, ela teve que reduzir os seus efetivos no Paraguai a uma simples representação. Assim dizendo, ao pretendemos de maneira alguma reduzir a significação dos argentinos na Tríplice Aliança. O concurso do governo de Buenos Aires, se diminuiu no terreno imediatamente tático, cada vez se revelou mais precioso sob o ponto de vista estratégico e político. Sem ele, nós teríamos perdido a liberdade das nossas comunicações 99 pelo rio da Prata, e talvez não tivéssemos podido resistir eficazmente à formidável pressão que se levantou na maioria das capitais americanas em prol de uma paz imediata e de evidente vantagem para o ditador do Paraguai. Foi mesmo a partir daquele momento que melhor conhecemos e apreciamos a irrepreensível lealdade, a alta nobreza moral desse grande homem de bem que foi o presidente Mitre. Era claro, entretanto, que tínhamos de aceitar o peso militar da guerra quase por completo. Tornou-se necessário adaptar as nossas forças à nova situação, não só engrossando-as convenientemente, como nelas introduzindo diversas modificações, entre as quais era a do comando a mais urgente e delicada. Até a batalha de Curupaiti, não houve, propriamente, nas forças brasileiras do Paraguai, um comando geral que lhes centralizasse os serviços e as submetesse a uma orientação uniforme.(18) A coordenação das disposições estritamente militares, fazia-se através do comando em chefe aliado, entregue, como sabemos, ao general Mitre. Os nossos dois corpos de exército só iam articular-se, em última análise, na Junta de Guerra, presidida pelo chefe argentino, gozando de uma independência ainda maior a nossa esquadra, que dependia exclusivamente do almirante Tamandaré. Em princípio, tudo devia ser decidido de comum acordo, sob a alta orientação do general em chefe. Mas os inconvenientes daquele sistema, que já se tinham revelado anteriormente, tornaram-se absolutamente incompatíveis com a segurança do exército, a partir do momento em que vieram recair sobre nós, moral e materialmente, todas as responsabilidades da guerra. Foi necessário organizar um comando em chefe brasileiro, que reunisse sob a sua autoridade, todos os nossos elementos terrestres e navais, para eventualmente englobar, como depois se deu, a totalidade das forças aliadas. 100 Tal foi a situação em face da qual se encontrou o gabinete do Marquês de Olinda, à medida que foram sendo conhecidas as conseqüências da batalha de Curupaiti. Entre os seus correligionários do exército, o governo liberal dispunha de alguns generais de grande bravura e de valor tático indiscutível. Porto Alegre fora mesmo o chefe das forças brasileiras que da fronteira do Rio Grande, obedecendo à orientação geral do Marquês de Caxias, seguiram até Monte Caseros, na campanha contra o tirano Rosas. Osório, já bem conhecido por feitos anteriores, havia dado toda a medida da sua brilhante e impetuosa coragem, sendo o primeiro a desembarcar com as suas divisões no Passo da Pátria e fazendo-se logo depois a alma heróica da resistência do grande contra-ataque paraguaio de 24 de maio. Em nenhum deles era porém, reconhecida a larga visão estratégica e o forte senso administrativo, indispensáveis a quem tem de manter grandes massas militares em boa ordem, e movê-las com segurança e eficácia num vasto teatro de operações. Para isso, nós só tínhamos, no consenso geral, um único homem. E esse homem era o Marquês de Caxias... Essa circunstância revela imediatamente as terríveis dificuldades em que se viu o gabinete de 12 de maio. O Marquês de Olinda, pessoalmente, não era político a deixar-se embaraçar em incompatibilidades partidárias. Ele sabia, nas ocasiões oportunas, colocar os interesses gerais acima dos partidos. Por duas vezes presidente do conselho no período de 1841 a 1860, ele tinha a escola da “política de conciliação”, não lhe podendo parecer inaceitável nem antipática a idéia de chamar Caxias à atividade do exército em 1866. Os seus colegas do gabinete não estavam porém, na mesma situação. Silva Ferraz era o mesmo ministro da Guerra que com tão calculada indiferença tratara o general no cerco de Uruguaiana. Nabuco de Araújo, Saraiva e Silveira Lobo, imediatamente ligados a 101 Silveira da Mota, Teófilo Otoni e Francisco Otaviano, eram no ministério a direta representação do liberalismo histórico. Como conciliar tudo aquilo? O gabinete sentiu-se na impossibilidade de dar ao problema do comando em chefe a única solução tida como recomendável. A demissão coletiva tornou-se portanto necessária. Não foi a reorganização das forças em campanha o motivo declarado da demissão. No Senado, pela palavra do presidente do conselho, e na Câmara, pelo órgão do ministro da Fazenda, a retirada do gabinete foi explicada pela profunda desinteligência surgida entre este ministro e o da Agricultura, sobre a reforma do Banco do Brasil. Efetivamente, a questão financeira, dado o progressivo aviltamento do meio circulante, tornara-se naquele momento de uma grande acuidade. Mas essa questão era conexa com a da defesa externa, sendo evidente, apesar do que havia de real naquelas declarações, que as finanças, pelo menos imediatamente, passavam em segundo plano. Não é possível recusar que o Marquês de Caxias, pela sua dupla qualidade de grande cabo de guerra e prestigioso chefe conservador, tornara-se no momento a chave da situação ministerial. Não confundamos entretanto as coisas. Não se tratava, naquelas dificuldades, de um desses casos de interferência do exército na política, a que se dá comumente o nome de militarismo. Caxias era considerado individualmente, na sua capacidade técnica pessoal, e não como representante de uma certa classe. Afastado do serviço ativo do exército pela função senatorial, a significação coletiva do marquês na política, era a de membro do partido conservador, e jamais a de parte integrante do exército. O exército, a classe militar, nada tinha a ver em tudo aquilo. Era uma questão política, entre políticos, girando em torno de um determinado indivíduo, e não em torno da coletividade militar, ou do exército. Bem fixado este ponto, 102 que é essencial, como veremos mais adiante, convenhamos em que qualquer passo no sentido de convidar o Marquês de Caxias para o comando em chefe, necessariamente assumira o aspecto de uma transação com o seu partido. Para nomeá-lo, sem abrir luta com a maioria liberal da câmara e sem violência para os seus correligionários, seria necessário um governo de concentração nacional. Dada porém, a irredutibilidade de ânimo dos dois partidos opostos, as combinações naquele sentido iam fracassando logo no esboço. Foi nestas especiais circunstâncias que Zacarias de Góis voltou ao poder, formando o gabinete de 3 de agosto de 1866. A sua posição em face dos conservadores, como progressista egresso daquele partido em 1862, não era em nada melhor nem mais simpática que a dos liberais no gênero Teófilo Otoni ou Silveira Lobo. Se era possível argumentar, para fins conciliatórios, com a moderação das suas idéias, em compensação persistia sempre na mente dos conservadores a irritante lembrança da sua deserção, enquanto, do lado dos liberais, um novo ministério progressista só servia para imediatamente recordar os qüiproquós partidários do gabinete Furtado. Talvez ninguém se encontrasse, na alta política da corte, em condições menos favoráveis para assumir o governo e enfrentar com eficácia o árduo problema perante o qual cedera o gabinete Olinda. Entretanto, o novo gabinete Zacarias precisou apenas de três meses para surpreender todas aquelas incompatibilidades partidárias, conquistando o Marquês de Caxias e expedindo-o rapidamente ao Paraguai. Cabem aqui, por necessárias, algumas considerações sobre o exato papel do poder moderador na escolha dos ministérios, tal como ficou sendo compreendido no segundo reinado, a partir da 103 espontânea recomposição do Conselho de Estado em 1841. A constituição de 1824, no art. 142, combinado com o parágrafo 6º do art. 101, estabelecia a nomeação e demissão dos ministros com a única função do poder moderador que podia ser livremente exercida pela coroa, sem audiência do Conselho de Estado. A revolução de 1831, vinda em conseqüência da nossa vigorosa e tenaz resistência ao poder pessoal, não só deixou de eliminar do nosso direito público aquele princípio, como lhe deu ainda maior força e maior extensão. Efetivamente, a abolição pura e simples do Conselho de Estado, consignada no Ato Adicional, não fez mais de que estender a todas as demais atribuições do poder moderador o caráter pessoal e arbitrário que ele já revelava naquele ponto.(19) Graças à cega e teimosa reação autoritária, inaugurada logo nos primeiros dias da Regência sob a inspiração principal do padre Feijó, o movimento liberal de 7 de abril fracassou lamentavelmente numa espécie de fusão do poder moderador com o poder executivo, que só vinha tornar mais seguro e incontrastável o exercício do poder pessoal, fosse que este poder estivesse com o Chefe de Estado ou simplesmente com o primeiroministro, como se deu no gabinete Antônio Carlos. Com a reunião de um grupo de homens notáveis no paço imperial, no dia 23 de março de 1841, para o fim de obter do imperador a demissão de Antônio Carlos como medida de salvação pública, o Conselho de Estado inopinada e instantaneamente se recompôs, agindo exatamente sobre aquele ponto que, com formal exclusão, lhe era vedado na letra constitucional, antes da reforma. A lei de 23 de novembro, que tornou legal e definitivo aquele restabelecimento ocasional do Conselho de Estado, não podia mais ressuscitar a restrição do art. 142. O Conselho de Estado não somente reentrou na posse de todas as suas antigas atribuições, como especialmente adquiriu mais a de 104 pronunciar-se sobre a escolha e a demissão dos ministérios, que antes não tinha. O caráter de evidente e providencial utilidade, com o qual aquele complemento funcional do poder moderador ressurgiu em 1841, já é bastante para fazer ver a profunda e decisiva influência que depois lhe coube em todo o segundo reinado. Quando um novo chefe de gabinete, apresentando-se ao parlamento, afirmava, como era de costume, que em tal dia e em tais circunstâncias, fora chamado por Sua Majestade para formar o ministério ali presente, estava sem dúvida a dizer uma verdade. Era realmente o imperador, que, fazendo vir a São Cristóvão o político em evidência, pessoalmente o convidava a organizar o novo governo. Mas a escolha daquele nome para aquela missão, não fora inspiração única e pessoal de Pedro II. Era obra do Conselho de Estado. Eram os conselheiros da coroa, alguns, orientadores prestigiosos de grupos parlamentares, e todos homens de grande prestígio social, que apontavam o estadista, a seu ver, reunindo na ocasião as mais favoráveis condições para o governo. O Conselho de Estado, como o senado ou a câmara temporária, compunha-se indistintamente de representantes de todas as opiniões. Entretanto, os seus membros, fossem reunidos em conferência sob a presidência do imperador, fossem consultados cada um de per si por Sua Majestade, nunca deixavam de dar aos seus alvitres um profundo caráter de retidão, inspirando-se muito mais nos interesses gerais que na conveniência imediata dos seus partidos. É claro que, de tal forma, o fato de inclinar-se do lado de um determinado político, para a formação de um novo ministério, automaticamente significava para o conselho opinante um certo compromisso de apoio no parlamento. Ele tacitamente oferecia ao gabinete um projeto todo o seu valimento nos meios parlamentares a que estivesse ligado, fosse que esse valimento se expressasse em 105 completa solidariedade política, quando se tratasse de um correligionário, fosse que tomasse apenas a feição de uma discreta e tolerante expectativa. Repitamos que a existência de um gabinete dependia sempre e constantemente da confiança da câmara temporária. Era no ambiente extremamente sensível e vibrátil daquela casa do parlamento que tudo afinal se decidia, perante ela unindo rápida e fragorosamente muitas vezes as combinações mais cautelosas e bem estudadas, como se deu com Caxias e o próprio Zacarias, nas duas crises ministeriais de 21 e 28 de maio de 1862. Mas seria impossível ignorar a grande influência do Conselho de Estado, desde que as iniciativas de organização ministerial partiam de deliberações em consulta com os seus membros. Negá-lo, seria negar a existência do próprio poder moderador. Zacarias de Góis talvez tenha sido quem maior surpresa recebeu com a escolha do seu nome para o governo em 1866. Ninguém melhor do que ele podia conhecer e medir as complexas e dificílimas condições políticas daquele momento, nem a menor dúvida podia existir no seu espírito sobre os sentimentos reinantes entre liberais históricos e conservadores. Convidado pelo imperador, ele viu logo das suas primeiras démarches junto aos grupos parlamentares da câmara, que lhe seria impossível manter-se no poder, mesmo por alguns dias, sem aceitar a política da esquerda liberal praticada no gabinete Olinda. Era a mesma situação insolúvel, diante da qual não resistira a lúcida e calma tenacidade do velho regente, que lhe era oferecida. Ele voltou a São Cristóvão para declinar da honra de formar o gabinete. O imperador, porém, insistiu, impelindo-o certamente a consultar as figuras principais do Conselho de Estado, sem atender muito ao partido a que qualquer delas pudesse pertencer. No meio circunspecto e muito mais tolerante dos conselheiros da coroa, era bem outra a visão das coisas. Sentindo-se 106 encorajado indistintamente por homens de tão grandes responsabilidades e de sentimentos tão diversos como Euzébio de Queiroz, São Vicente, Abaeté, Olinda ou Nabuco de Araújo, Zacarias pôde modificar as suas primeiras impressões. É indispensável admitir que um compromisso tácito ou formal se tenha estabelecido entre o novo presidente do conselho e a alta política da corte, expressada no Conselho de Estado e nos elementos mais ponderosos do senado, para o fim de dominar e vencer toda e qualquer resistência à nomeação de Caxias para o Paraguai. É isso o que parece claramente revelar-se no discurso de apresentação do gabinete, proferido perante o senado, na sessão de 4 de agosto. O ministro Silva Ferraz, que ocupava a Pasta da Guerra no gabinete Olinda, passara no mesmo posto para a nova organização ministerial. Zacarias, explicando essa ligação do seu governo com o ministério demissionário e relatando as relutâncias que teve de vencer, da parte de Silva Ferraz, para obtê-la, conclui com esta frase: - o senado avalia bem quais são as razões que me impeliram a dar aquele passo... A presença do operoso autor da Lei dos círculos de 1860 no gabinete, era evidentemente uma garantia de fidelidade à política da esquerda liberal. Mas o presidente do conselho, ao dizer aquelas palavras não se esquecia – e certamente o recordava aos senadores – que a câmara dos deputados, cuja maioria exaltadamente liberal o impelira de dar aquele passo, terminava naquele ano o seu mandato. Estava-se a 4 de agosto. No dia 16 de setembro encerravam-se os trabalhos parlamentares. No dia 9 de outubro, o chefe do governo tranqüilamente mandava o seu ministro da Justiça, o visconde de Paranaguá, oferecera Caxias o comando em chefe do nosso exército no Paraguai. Ao reunir Zacarias o gabinete para darlhe ciência do que fizera, com o anúncio da aceitação da oferta e da iminente nomeação do general, o ministro da Guerra disse apenas: 107 “Faça-se a nomeação, mas eu me retiro...”(20) No dia seguinte, vinte e quatro dias somente do encerramento das câmaras, estava firmado o decreto de nomeação do general em chefe. Zacarias de Góis empregara em tudo aquilo uma fulminante e desenvolta habilidade. Os liberais da esquerda foram vítimas, sem dúvida, de uma áspera surpresa. mas o presidente do conselho, não somente havia dado ao exército o chefe que o livraria dos embaraços de Curupaiti, como havia ao mesmo tempo amarrado solidamente os conservadores à sorte do seu governo, com eles dividindo as responsabilidades morais na conduta da guerra. O seu golpe talvez mereça a increpação de astúcia. Mas, para julgá-lo com propriedade, é indispensável considerar a nossa situação em face do inimigo exterior, agravada ainda mais pelas grandes responsabilidades que nos advinham perante os nossos próprios aliados. É necessário avaliar bem as dificuldades que se opunham ao gabinete e o alto fim nacional que ele visava. Naquelas sibilinas explicações fornecidas ao senado, no dia 4 de agosto, sobre a conservação de Silva Ferraz na pasta da Guerra, repetidas – com tendência certamente diversa – à câmara dos deputados, no dia 6, Zacarias tocou sem dúvida, entre a reserva e a franqueza, a linha que deve marcar o limite extremo do sucesso e do fracasso, em transes parlamentares daquela natureza. As discussões da apresentação do gabinete giraram na câmara em torno à questão financeira. Mas, as simples expressões da moção com a qual o deputado Franco de Almeida pretendeu responder ao discurso do primeiro-ministro, mostram bem o acirrado ânimo partidário que as dominou: - “Sendo para sentir que a organização do gabinete não „correspondeu às exigências da situação‟, requeiro que se passe à ordem do dia. Procedia a votação nominal, numa profunda exaltação, foi apenas pela fugaz maioria de três votos que o ministério escapou à queda imediata...” 108 Muito menor trabalho teve Zacarias de Góis em reduzir os escrúpulos pessoais do marquês de Caxias. Deste lado, as condições tinham mudado. Não se tratava mais de uma organização de forças no território nacional, para cujo êxito a autoridade civil pudesse a qualquer título ser reclamada. O comando transporta-se ao país inimigo. Além disso – e sobretudo – o revés de Curupaiti colocara o marquês, intimamente, numa situação deveras delicada. A opinião pública reclamava naquele momento o seu concurso militar, e se esse fato era sumamente agradável ao seu amor próprio de soldado, só desvantagens lhe poderia trazer a divulgação de que esse concurso ele o recusara no ano anterior, por motivos de ordem puramente partidária. Zacarias de Góis era bom psicólogo, sabendo empregar a palavra justa, no momento exato: “Se vossa excelência manifesta o pensamento de não poder servir com o gabinete atual, os ministros estão prontos a retirar-se”. Era um nobre e tocante desprendimento que literalmente fazia transbordar a emoção do velho general. Veio a sua linda frase: “A minha espada não tem partidos!...” Os escritores brasileiros que se têm ocupado da guerra do Paraguai, nas suas relações com a nossa política interna, são em geral de uma extrema severidade, tanto para com a resistência dos liberais à nomeação de Caxias para o comando do exército, como no concernente à força pela qual Zacarias dominou e venceu essa mesma resistência. No primeiro caso, afirma-se ainda hoje que os liberais colocaram as mesquinhas conveniências do seu partido acima do interesse primordial da defesa externa. No segundo, pretende-se que Zacarias de Góis traiu, pela ambição do poder, os seus correligionários do partido liberal. Desde, porém, que não se escolha previamente um dos dois pontos de vista que esses alvitres opostos representam, para considerar os fatos de um modo mais 109 imparcial e elevado, logo se verá que nenhum deles é justo nem acertado. Os liberais jamais se opuseram à ida do Marquês de Caxias para o Paraguai. O que eles não aceitavam era uma volta à “política de conciliação” naquele momento, sob o pretexto das necessidades militares. O nosso país em 1864 já se sentia bastante coeso e forte dentro das suas fronteiras, para resistir vitoriosamente à pressão diplomática ou militar de qualquer dos seus vizinhos do continente, sem alterar sensivelmente nas condições da sua vida interior. A campanha contra Lozano Lopez jamais nos produziu as apreensões que tivemos com a Argentina de Rosas ou de Rivadaria, e, apesar dos consideráveis recursos de ataque longamente acumulados pelo ditador, nunca nos passou pela mente que o futuro da nossa pátria pudesse seriamente depender da gente de Assunção. A agressão paraguaia, dadas as suas ligações com a política interna do Uruguai e as simpatias que encontrou na população guarani de Corrientes e Entre-Rios, causou muito maiores sobressaltos aos nossos aliados que a nós outros, que a recebemos calmos e de todo confiantes na nossa sólida estrutura nacional. O Brasil, de qualquer forma venceria a guerra. Não se pode portanto compreender que o partido liberal desertasse do poder ao primeiro alarme, falhando por simples pusilanimidade à sua missão política, e traindo a solene confiança com que o país se pronunciara pelas suas idéias, em duas grandes eleições sucessivas. É preciso não exagerar a significação de certas opiniões da época, no gênero das que se encontram na “Vida do Duque de Caxias”, de Monsenhor Pinto de Campos,(21) e no “O Governo e o povo do Brasil na guerra do Paraguai”, de Menenio Agripa.(22) Essas opiniões, mais recentemente, têm servido de ponto de apoio a numerosas crônicas e conferências e mesmo a trabalhos de maior importância, como a “História da Guerra do Paraguai”, do 110 general Bernardino Bormann. Mas elas, ontem como hoje, outra coisa não representam senão a eterna vaidade do espírito autoritário. Se culpa havia na ausência de Caxias do Paraguai, ela decerto não seria imputável aos liberais, que logo foram oferecer ao general aquele posto, e sim aos conservadores, que pretenderam transformar a sua nomeação em máquina ara arrombar as portas do poder, expulsando de surpresa os que ali se achavam pela vontade expressa da nação. Quanto a supor que Zacarias de Góis de entendimento com o Conselho de Estado, tenha sido realmente falso aos seus correligionários liberais, no gabinete de 3 de agosto, a injustiça não é menor. O provimento do comando em chefe do exército pelo Marquês de Caxias, era uma medida com o mesmo empenho desejada por liberais e conservadores, cada um e per si e todos eles em conjunto lamentando sinceramente que a ela se opusessem os mútiplos prejuízos do nosso meio partidário. Apesar da intensidade com a qual esses prejuízos atuaram na queda do gabinete Furtado e influíram depois nas disposições militares do gabinete Olinda, para este o sentimento geral, sem dele isentar-se nem mesmo o ministro Silva Ferraz. Concordando imediatamente com a nomeação proposta pelo presidente do Conselho e retirando-se logo em seguida, Silva Ferraz não fez mais do que tomas a si pessoalmente as responsabilidades das suas antigas relações com o general Caxias, para deixar uma mais completa liberdade de ação, não somente aos seus correligionários do novo gabinete, como a todo o partido liberal. Ele francamente sacrificou-se. Não se deve insistir muito na circunstância de Zacarias de Góis haver em tudo aquilo procedido muito mais por surpresa que mediante uma larga consulta preliminar. O que se deve ver é que, assim fazendo, ele correspondia de fato ao sentimento coletivo, realizando eficazmente uma medida que o país 111 inteiro reclamava. Não há a mínima prova de que Zacarias tenha, em momento algum das suas negociações com os membros do Conselho de Estado e com o novo chefe do exército, posto jamais em jogo o termo ou a permanência da situação liberal. Mesmo quando oferecia ao general a retirada do gabinete em troca dos seus serviços militares ao país, o ministro de forma alguma pretendia dizer que o partido liberal se deixaria substituir no poder pelos conservadores. Ele mesmo explicou o seu exato pensamento ao próprio Marquês de Caxias, no senado, em julho de 1870, afirmando-lhe que ao lhe fazer aquela oferta – “não queria de certo dizer que lhe entregaria o poder. Eu posso dispor de mim, e retirar-me quando me parecer, assim como os meus colegas, mas não sei quem me sucederá”. Se a nomeação do Marquês de Caxias para o Paraguai, pela forma porque foi feita, houvesse realmente significado uma orientação governamental contrária às idéias liberais, o gabinete de 3 de agosto não teria sobrevivido ao seu primeiro contato com a câmara nova em maio de 1867. Perante a forte maioria liberal que se reproduziu na seguinte legislatura, nada teria podido, naquelas condições, evitar a queda do ministério. Mas Zacarias de Góis não teve força apenas para manter-se no poder, resolvendo, sempre com igual segurança e propriedade, o problema total da nossa defesa externa. Ele a teve ainda para organizar o partido liberal sobre bases inéditas, concretizando o melhor e mais solidamente o seu programa e descobrindo afinal a orientação clara e objetiva que até então nos faltara na nossa nova política geral. Na reabertura dos trabalhos legislativos, sobretudo no início de uma nova legislatura, era na discussão da resposta à fala do trono que se conhecia a exata posição do gabinete em face do parlamento. A fala do trono, começando por uma recapitulação geral dos negócios anteriores e da situação do país perante as potências 112 estrangeiras, terminava sempre pro uma espécie de rápido programa governamental. O imperador chamava a atenção dos representantes do país para uns tantos assuntos que lhe pareciam urgentes e de maior interesse naquele instante. Era, de uma forma concisa, a ordem dos trabalhos para aquele ano, tal como a compreendiam os membros do gabinete. Da impressão causada por aquelas proposições dependia a sorte do ministério. Se a câmara não as entendia por adequadas, a discussão imediatamente assumia o caráter de uma severa e veemente tomada de contas, ao fim da qual encontrava-se o voto formal de desconfiança. A fala do trono de 1867 era curta e de uma grande simplicidade. Da guerra, dizia-se apenas que ela continuava. O Peru e outros vizinhos menores tinham querido intervir para a abertura de negociações de paz. Os Estados Unidos, por sua vez, também graciosamente se ofereceram. Tudo tinha sido recusado. Porém, nada de detalhes. Nenhuma referência à reorganização dos exércitos, nem às nossas novas responsabilidades na TrípliceAliança. O governo francamente evitava aqueles pontos. Havia a menção de um acontecimento de grande significação moral e econômica. O Império abrira o rio Amazonas ao comércio marítimo internacional. Mas, ao fim, na recomendação de algumas reformas administrativas de já velho conhecimento, vinha qualquer coisa de inédito e formidável. O governo, em ato público e solene, falava pela primeira vez no fim da escravidão... Nós não temos elementos para precisar hoje, com exatidão, desde quando viera o abolicionismo de Zacarias de Góis. É esta uma indagação extremamente interessante, que talvez possa ainda ser feita numa consulta mais ampla e detalhada da imprensa da época, ou no exame da correspondência pessoal do grande ministro, se por acaso dela restar, entre os seus descendentes atuais, alguma coisa. Tudo leva entretanto a crer, dado o rigoroso e perfeito equilíbrio do seu 113 espírito, em confronto com a orientação geral do gabinete de 3 de agosto, que o problema do cativeiro, ainda insolúvel, foi, de fato, o largo e profundo valo que o impediu de chegar imediatamente ao programa dos liberais históricos. Mas o que não se pode pôr em dúvida, o que é seguro e evidente, é que na fala do trono de 1867 ele atingir afinal a sua grande política, aquele que ele não conseguira fixar na incerta e tumultuosa existência de quatro dias do seu gabinete de 1862, que talvez calara por prudência no governo de 1864, e da qual nada pudera ainda dizer, ao apagar das luzes da legislatura anterior, perante aquela câmara que o recebia inquieta, com a exígua e desconfiada maioria de três votos. O grande presidente do ministério de 3 de agosto, foi efetivamente o primeiro estadista brasileiro que teve a coragem de, no governo, atribuir ao trabalho livre, em oposição ao trabalho escravo, toda a profunda e universal significação que ele tinha e devia ter no problema geral da nossa ascensão moral e econômica. Não poderia certamente parecer legítimo àquele cérebro todo feito de exatidão e clareza, que o nosso país avançasse definitivamente para os processos mais adiantados da grande democracia moderna, guardando na sua organização social uma instituição diretamente copiada da Antigüidade clássica, e que o deputado João Maurício Wanderley, no seu malogrado projeto de lei de 1854, ainda pretendia apenas aproximar da fórmula feudal, prendendo o escravo à província como o servo à gleba da Idade Média.(23) Era por ali que deviam começar todas as nossas reformas políticas. Bastava considerar aquelas reformas em todo o seu valor social e econômico, para logo compreender quanto todas elas dependiam da extinção do elemento servil e só por ela podiam ser eficazmente iniciadas. A preocupação de elevar a liberdade política às suas extremas e mais belas expressões modernas, conservando ao lado a negação absoluta e ancestral da liberdade do homem, era de 114 fato um contrasenso, que por si mesmo se condenava. Não era praticamente possível, de outro lado, reformar a milícia existente, introduzindo no sistema da nossa defesa externa um processo eqüitativo de recrutamento, quando os moços em idade militar ainda se dividiam em livres e escravos. O mesmo fatal empecilho se levantava no terreno econômico e financeiro. Não há questão neste terreno que não se prenda, mais ou menos imediatamente, a uma alternativa de consumo e produção,. As reformas que aí se façam jamais serão válidas e pertinentes se não alterarem os termos daquela relação, modificando-a sensivelmente. A situação financeira, com representação numérica do estado econômico, só podia portanto melhorar pelo desenvolvimento da nossa produção agrícola. Era indispensável que a produção aumentasse continuamente, segundo as nossas progressivas necessidades de grande nação em crescimento. Seria preciso multiplicar a mão-de-obra dentro das nossas fronteiras, o que não se podia obter pelo simples crescimento vegetativo da população escrava, dadas as tristes condições da vida nas senzalas. Impunha-se imperiosamente o apelo à imigração estrangeira. Mas o trabalho escravo, por motivos morais e econômicos bem fáceis de compreender, repele irresistivelmente o concurso do trabalho livre. A abolição tinha que ser, portanto e a todos os títulos, a base inicial e necessária de todas as reformas. Nenhum dos grandes espíritos do nosso antigo regime deixou de, mais ou menos ativamente, preocupar-se com o problema da abolição. Ainda não atingíramos mesmo a nossa independência política, e já Moniz Barreto oferecia a Dom João VI uma memória sobre a extinção do tráfico africano e a completa eliminação do trabalho escravo no Brasil. José Bonifácio, em 1823, tinha pronta uma representação à primeira constituinte do império, na qual, inspirado no intenso e claro humanismo da filosofia do século XVIII, 115 que formava o fundo constante das suas idéias, ele propunha a suspensão do tráfico e o fim do cativeiro. A constituinte foi violentamente dissolvida por Pedro I, e o trabalho de José Bonifácio só pôde vir à publicidade em Paris, em 1852. Até 1867, passando pela lei Euzébio de Queiroz de 1850 sobre o tráfico interoceânico, que foi mais um produto da ação exterior da Inglaterra que outra coisa não nos faltaram manifestações em prol da liberdade dos negros. O Marquês de São Vicente, ministro da justiça do gabinete Olinda, chegou mesmo a submeter à apreciação do imperador alguns projetos de abolição lenta e gradual por ele estudados. Isto porém passou-se, sem maiores conseqüências, no discreto silêncio de um salão de São Cristóvão. Pode-se dizer que todas essas manifestações, apesar de muito louváveis e profundamente sinceras, não passaram afinal de tentativas isoladas e pessoais. Muito mais significativa foi sem dúvida a resposta mandada dar pelo imperador a uma sociedade francesa de emancipação, que lhe escrevera em prol da libertação dos escravos. Sua Majestade mandou dizer que o governo brasileiro, assim que o permitissem as circunstâncias criadas pela guerra, consideraria a abolição como um objeto de importância primordial. Pedro II foi realmente um dos maiores defensores da liberdade – certamente o primeiro e o mais ardente de todos eles – segundo o afirmou Joaquim Nabuco. Mas é preciso não esquecer a obrigação de reserva e constante imparcialidade a que o Chefe de Estado se sujeitava perante os interesses em luta. A resposta à carta da sociedade francesa é de 22 de agosto de 1866. Ora, desde o dia 3 daquele mês, estava no poder o gabinete Zacarias. Aquela resposta, que tanto consultava os nobres sentimentos pessoais de Sua Majestade, foi, sem a mínima dúvida, resolvida em conselho de ministros. Assim foi, nem doutra forma a teria consentido o próprio imperador. 116 O primeiro que, com as responsabilidades do homem de governo, encarou francamente o problema da abolição, aceitando-o como base de programa governamental e de ação política geral, foi, de fato, o grande ministro Zacarias de Góis. Foi ele quem soube oferecer às aspirações liberais aquele ponto de apoio objetivo e determinado, fazendo logo surgir a plêiade decidida e corajosa dos radicais, que, mesmo sem o declarar e talvez sem o pensarem, entraram a formar a vanguarda franco-atiradora da sua política. O presidente do gabinete de 3 de agosto não podia entretanto iludir-se sobre as dificuldades que se opunham aos seus projetos. Fora das cidades do litoral e de certas zonas pastoris do Sul e do Nordeste, a vida do Brasil estava nota nas grandes plantações de cana-de-açúcar, de café e de algodão, servidas pelo braço escravo. Ali estavam os ricos e poderosos interesses que no parlamento se manifestavam pela palavra superior e decuriona dos líderes conservadores... Mas o ministro também se apercebia de que naquele instante se ia formando toda uma série de condições favoráveis às suas idéias. É sabido que em toda parte e a todo o tempo as grandes massas militares foram sempre recrutadas no meio numeroso e paciente dos trabalhadores do solo. O trabalhador do solo, no Brasil, era quase totalmente o escravo. Não admira portanto que os negros figurassem em grande proporção nas fileiras do nosso exército do Paraguai. Esta circunstância, ligando, muitas vezes com especial destaque, os homens de cor aos episódios mais emocionantes da guerra, vinha aumentar fortemente a sensação de injustiça que já se prendia à idéia do cativeiro, nos grandes centros urbanos do litoral. Junte-se a esse poderoso elemento afetivo o exemplo dos Estados Unidos, a quem a libertação completa da escravatura, com tanto esforço obtida numa áspera guerra de quatro anos, cobria de imensa glória naquela época, e compreende-se que o ambiente moral não 117 deixasse de ser propício. Do ponto de vista imediatamente político ou partidário, se a situação do gabinete não era perfeitamente clara, também não era má. Os conservadores, com a ida do Marquês de Caxias para o Paraguai, tinham ficado sujeitos a uma grande circunspecção nas suas atitudes para com o governo. Do lado dos liberais moderados ou progressistas, muitos havia certamente cujos interesses pessoais as idéias do ministro profundamente ameaçavam. Estes, porém, eram no mínimo obrigados a pautar as suas manifestações na discreta conduta dos conservadores, enquanto os mais adiantados, os liberais históricos e os radicais sobretudo, recebiam as novas bases de programa com a intensa e maravilhosa alegria de quem, ao fim de muita luta e sofrimento, vê afinal o caminho direito abrir-se em sua frente. Zacarias de Góis cercou de todas as cautelas a revelação da sua grande política. A fala do trono de 1867 apenas sugere: “O elemento servil no Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, promovendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa primeira indústria – a agricultura – sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação”. Foi porém o bastante. Tato do lado dos que imediatamente formaram na corrente abolicionista, como daquele que se opuseram, ninguém mais teve dúvidas. Todos compreenderam que naquelas tão discretas expressões estava apenas o anúncio do próximo fim da escravidão. Apesar de todas as conveniências a que se sentiam presos, os conservadores da extrema direita ainda tentaram reagir. A comissão de redação da resposta à fala do trono dizia, de volta, ao imperador: “A câmara dos deputados associa-se à idéia de oportuna e prudentemente considerar a questão servil no Império, como requerem a nossa civilização e verdadeiros interesses...” O 118 deputado Gavião Peixoto pretendeu emendar essa fórmula de adesão, de maneira a transformá-la numa censura. O governo opôs-se. O projeto de resposta à fala do trono redigido pela comissão foi aprovado. Estava aceita pela câmara a orientação política geral de Zacarias de Góis. NOTAS (18) Pelo art. III do tratado da Tríplice Aliança ficara estabelecido que o general Osório seria o comandante geral das forças brasileiras, obedecendo ao comando em chefe aliado, entregue ao general Mitre. Osório, entretanto, jamais exerceu de fato o comando geral dos dois corpos do exército que formavam o total das nossas forças, n o início da campanha. Na passagem do Paraná, como nas lutas que se seguiram até a batalha de 24 de maio, só figurou, da nossa parte, o 1º corpo, do seu comando direito. O 2º corpo, sob as ordens do general Porto Alegre, ainda estava em formação, na fronteira de São Borja. Quando o 2º corpo desceu para o Passo da Pátria, já Osório, com parte de doente, tinha -se retirado ao Brasil, donde só voltou no ano seguinte, à testa do 3º corpo, para colocar-se sob o comando geral do Marquês de Caxias. O general Porto Alegre, ao chegar ao Passo da Pátria, seguiu atacar Curuzu, onde ficou, separado do 1º corpo, então às ordens do general Polidoro, por uma grande distância e tendo de permeio a autoridade do general Mitre. De uma maneira sólida e eficaz, as nossas forças só tiveram realmente um comando geral com a chegada do Marquês de Caxias. (19) Convém ler o nosso grande publicista J. A. Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente), no seu Direito Público Brasileiro, Cap. V, Do Conselho de Estado; seção 1ª, pág. 285. – Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve & Cia., Rio de Janeiro, 1857. (20) O gabinete deu provas de compreender bem o sacrifício imposto a Silva Ferraz com aquela política. O ex-ministro da guerra, ao voltar do governo para a sua cadeira no senado, viu -se logo incluído n Conselho de Estado e promovido à dignidade de Barão de Uruguaiana. Mas o incidente o abalou tão profundamente que a sua saúde, já alterada, não pode resistir. Apesar de ainda relativamente moço, ele faleceu alguns meses depois. 119 (21) Vida do grande cidadão brasileiro Luís Alves de Lima e Silva, barão, conde, marques, duque de Caxias, desde o seu nascimento em 1803 até 1878, pelo padre Joaquim Pinto de Campos, prelado doméstico da Sua Santidade, deputado à Assembléia Geral pela Província de Perna mbuco, etc. – Lisboa, Imprensa Nacional, 1878. (22) É um eloqüente e apaixonado panfleto, publicado em 1868, no qual todos os contratempos da guerra não afinal atribuídos ao fato dos liberais não terem sabido abandonar o poder... (23) O deputado J. M; Wanderley, depois senador e Barão de Cotegipe, que tanto se opôs à abolição em 1888, apresentou à câmara em 1854 um projeto de lei que proibia o comércio de escravos de província a província. Esse projeto, de certa forma, criava no Brasil o vínculo do trabalhador rural ao solo, vínculo este que foi, como é sabido, o característico essencial da servagem medieval. CAPÍTULO VI A CRISE MINISTERIAL DE 1868 Antes da reabertura do parlamento, já o governo designara, no dia 11 de abril, uma comissão presidida pelo próprio chefe do gabinete e composta de Saraiva e Torres Homem, para estudar os meios práticos e o encaminhamento legal da abolição. Era portanto claro que, para o ministério, a oportunidade de trazer de novo aquele assunto perante a câmara, estava apenas no encerramento das hostilidades no Paraguai. Bastaria talvez uma vitória decisiva sobre o inimigo 120 para que aquela oportunidade se considerasse realizada, entrando imediatamente a abolição no seu período de execução prática. Infelizmente, a situação conseqüente à batalha de Curupaiti, terrivelmente agravada pelo aparecimento do cholera-morbus nos acampamentos, não permitiu ao Marquês de Caxias inaugurar o seu comando no Paraguai com qualquer ação imediata de grande efeito. Foi necessário, antes de mais nada, cuidar da saúde do exército e esperar os grandes reforços em homens e em material que as novas condições exigiam. Mas, no mês de julho, tendo o exército reorganizado e acrescido de mais um grupo de divisões trazido do Rio Grande do Sul pelo general Osório, o nosso comandante-chefe sentiuse em condições de tomar a ofensiva. Cabem aqui alguns dados sobre as condições estratégicas que o Marquês de Caxias foi encontrar no teatro das operações. Para facilidade de compreensão, admitamos que, a vol d’oiseau, os rios Paraná e Paraguai, vindo juntar-se na sua confluência nas Três Bocas, formem, entre os portos de Itapiru, na margem direita do primeiro, e Taii, na margem esquerda do segundo, um grande arco, de uns quarenta quilômetros de corda. Era ao longo desse arco que se elevavam as fortalezas paraguaias. Como desembarque no Passo da Pátria e a ocupação do Itapiru, seguida da tomada de Curuzu, ao lado do Curupaiti, nós havíamos iniciado a conquista daquele arco, avançando pelo seu ramo Sul. Detidos pela corajosa e tenaz resistência apraguaia em Curupaiti, nós ficáramos entretanto senhores do Paraná, em toda a sua extensão, e do Paraguai, até as proximidades dessa última posição. Lopez, das suas fortalezas restantes, sabiamente conjugadas num largo sistema de obras exteriores, dentro do 121 qual se abrigava todo o seu exército, ficou a dominar todo o interior para o Norte, tendo livres os seus transportes rio acima até Mato Grosso, e podendo comunicar-se ainda com as fronteiras do Peru e da Bolívia. Tal foi a mútua situação estratégica dos beligerantes, desde a batalha de Curupaiti, até aquele mês de julho de 1867, quando o general Caxias resolveu reencetar a marcha para a frente. O nosso comandante-em-chefe, abandonando definitivamente o ataque frontal de Curupaiti, fracassado em setembro do ano anterior, decidiu-se a operar imediatamente em toda a extensão da corda Itapiru-Taii, ameaçando a fundo e de uma vez todos os pontos da defesa paraguaia. No dia 21, com uma forte coluna cuja vantagem é entregue ao general Osório, ele contorna as linhas de Rojas, fronteiras ao acampamento de Tuiuti, e avança deliberadamente para o Norte, varando uma região de pântanos e florestas, tida até então como intransitável para um exército. A 31 é atingida e tomada Tuiú-Cué, São Solano cai no dia seguinte, e, através de uma áspera série de escaramuças e combates, nos quais os destacamentos inimigos tentam em vão sustar a sua marcha, ele ocupa Taii, a 2 de agosto, privando o comando paraguaio das suas últimas comunicações pelo rio. Seguiu-se a consolidação da nova linha e a preparação da parte naval daquela manobra. A missão reservada à esquadra naquele plano geral de envolvimento do inimigo, exigiu porém um longo e penoso trabalho preliminar. Tendo a passagem de alguns navios a montante de Curupaiti ocasionado a perda do couraçado Rio de Janeiro, além de avarias graves em alguns outros, ficou patente a necessidade de uma base para a esquadra, acima daquela fortaleza, servida 122 por uma linha de comunicações terrestres que escapasse ao raio de ação dos fortes inimigos. Construiu-se então, na margem direita, entre Curupaiti e Humaitá, o Porto Elisiário, ligado à base primitiva das Três Bocas por uma via férrea. Só quando estes trabalhos ficaram prontos foi possível prosseguir na ação naval. Mas, nos primeiros dias de fevereiro de 1868, a esquadra punha-se toda em movimento, atacando vigorosamente as posições paraguaias ao longo da margem esquerda, para forçar, no dia 19, a passagem de Humaitá e estabelecer em Taii a sua ligação terminal com as forças de terra. Lopez tentou então reagir contra aquela vexatória situação, mandando repetidos e furiosos ataques às nossas posições. Todos porém foram inúteis. Com as suas linhas enfraquecidas pela exagerada distensão a que teve de submeter os seus efetivos naquela enorme frente de combate, o comando paraguaio ficou à mercê da primeira concentração de forças que o Marquês de Caxias, inteiramente senhor da manobra, entendesse ordenar, no ponto que melhor lhe conviesse. Essa eventualidade não tardou muito em chegar. No dia 21 de março, o general Argolo desarticula as defesas paraguaias, tomando de assalto as trincheiras de Sauce, e Lopez é forçado a abandonar em tumulto o seu quartel -general do Passo Pocu, onde instantes depois surge o general Mena Barreto, com a nossa terceira divisão de cavalaria. Foi uma incursão rápida e fulminante. À direita e à esquerda da coluna assaltante, o inimigo, com os seus flancos abertos, bei batendo em retirada sobre Humaitá. As posições do Ângulo e de Passo Espinilo são evacuadas, enquanto a famosa guarnição de Curupaiti, que tão vigorosamente nos detivera em setembro de 1866, foge célere pela margem do rio, sem dar um tiro... 123 A queda de Sauce, com a conseqüente invasão do vasto campo fortificado, do qual aquela bateria era um dos principais elementos, teve para a defesa paraguaia o efeito de um desmoronamento. Lopez encontrou-se com todo o seu exército amontoado na área interior de Humaitá, só lhe restando, como futuro próximo, render-se, sair de qualquer forma para tentar ainda a guerra de movimento, ou morrer dentro da sua última fortaleza. Mas, em qualquer destas hipóteses, o comando aliado podia bem considerar o fim da guerra como muito próximo. No espírito do ministro Zacarias de Góis, o contentamento de todas estas notícias, foi-se rapidamente transformando numa firme, numa intrépida, numa generosa e esplêndida decisão: - a de promover sem mais delongas a abolição total do cativeiro. Dificilmente se poderá avaliar hoje o efeito que teve sobre a opinião pública das grandes cidades brasileiras a idéia abolicionista, lançada na fala do trono de 1867. Houve como que um levantamento geral da alma urbana contra a imensa tristeza da vida humana nas fazendas e nos engenhos. Foi como se vibrasse de um extremo ao outro do litoral um profundo e ininterrupto grito de piedade. O Brasil francamente tocara o limiar de um novo e grande período da sua evolução histórica. É possível que Zacarias, ao lançar tão cautelosamente o princípio da abolição, não pensasse ir muito além de uma libertação parcial, que melhor dispusesse as coisas para o futuro. Não só não havia iludis-se com a inevitável resistência dos interesses escravistas, como, do lado das operações de guerra, nada se dera ainda, em maio de 1867, em condições de assegurar imediatamente ao gabinete uma grande liberdade de 124 ação na política interna. Dada porém a formidável repercussão obtida pela fala do trono, o governo foi naturalmente cedendo àquela impetuosa e inesperada reação das suas próprias idéias. O seu projeto inicial de abolição foi rapidamente evoluindo para um ponto que não lhe era dado ainda fixar com exatidão, mas que só podia concretizar-se racionalmente na extinção completa do cativeiro. A oportunidade para a ação decisiva naquele sentido, cada vez mais identificou-se, na mesma ardente esperança, com a vitória final das nossas armas no Paraguai. Mas esta, as comunicações do comando -em-chefe em princípios de 1868, já prometiam para, de um instante a outro, no assalto e conseqüente tomada de Humaitá. O governo não via mais nenhum motivo para ocular o seu pensamento e a sua intrépida decisão. A nova fala do trono, lida na reabertura dos trabalhos parlamentares em 9 de maio daquele último ano, já não se disfarça em frases vagas e tateantes; ela diz claramente: “O elemento servil tem sido objeto de assíduo estudo, e oportunamente submeterá o governo à vossa sabedoria e conveniente proposta.” Os deputados responderam: - “A câmara aguarda cheia de confiança a oportunidade em que tem se der apresentado ao seu exame a conveniente pr oposta sobre o elemento servil, objeto de assíduo estudo do governo.” As emendas apresentadas a esta redação, e que o gabinete mesmo recusou por excessivas ou desnecessárias, foram todas na intenção de torná-la ainda mais incisiva e pressurosa. A escravidão aproximava-se evidentemente do seu termo. Apesar de continuamente solicitado no eterno sentido da perfeição, o mundo moral, como o mundo sensível, equilibra-se todo num vasto e inapreensível sistema de reações. O momento do triunfo do Marquês de Caxias no 125 Paraguai, não fora previsto como a oportunidade ideal para uma vitoriosa mutação da nossa política interna, apenas pelo chefe do gabinete. A extrema direita dos conservadores também assim o compreendera do seu ponto de vista especial. A discreção que ela mais ou menos mantivera até ali perante os atos do ministério, de maneira alguma significara uma passiva aceitação das idéias liberais. Tratava-se apenas de não criar embaraços ao Marquês de Caxias, provocando um prematuro enfraquecimento do governo que obtivera elevá-lo ao comando-em-chefe e se associara a sua ação militar. Mas, se os conservadores assim condescendiam com as necessidades da defesa externa, não lhes era possível entretanto admitir que as vitórias do seu grande correligionário nos campos de batalha, viessem a ser transformadas pelo governo liberal em fontes de prestígio, para subverter a ordem social e econômica estabelecida no interior. O trabalho anti-abolicionista começou logo, com uma resposta imediata e quase automática à fala do trono de 1867. Abafado na câmara com a recusa da emenda Gavião Peixoto e afastado por circunspecta contenção dos meios senatoriais, esse trabalho alastrou-se pelo interior das províncias, numa exaltada e vigorosa arregimentação de todos os interesses diretamente ligados à cultura do solo e à exploração da mão-de-obra escrava. É fácil imaginar os meios de que dispunham os barões fazendeiros e senhores de engenho para reavivar nos grandes centros comerciais o sentimento conservador entorpecido pela campanha abolicionista. Eles se dirigiam aos seus clientes, aos seus banqueiros, aos seus comissários e correspondentes, aos seus advogados e jornalistas, falando portanto aos interesses mais íntima e solidariamente ligados à prosperidade das suas 126 lavouras. Os elementos mais consideráveis do mundo econômico, os detentores principais da riqueza, tanto no interior como no litoral, ativamente se congregaram. A idéia de arrebatar ao gabinete liberal os louros do Paraguai, combinou-se assim na reação do interesse ferido com a terrível obsessão da inveja partidária. Nos seus aspectos gerais, a campanha conservadora contra a abolição tomou a forma regular de um movimento de idéias. Sem recusar o que havia de humano na libertação dos cativos, argumentava-se entretanto com a fundamental significação do direito de propriedade, apontando-se ao mesmo tempo os desastrosos efeitos que a medida produziria em toda a vida econômica e na própria organização social do império. Só aqueles que nada tinham a perder, diziam os escravagistas, podiam lançar-se de ânimo ligeiro e por simples idealismo numa tão insensata e perigosa aventura... Por tal caminho, tinha-se a impressão de que o partido conservador, exercendo uma legítima atividade, apenas se preparava a reconquistar a câmara nas próximas eleições gerais. Dada porém a precipitação com que os fatos se foram dispondo em bem dos projetos do gabinete, os conservadores mais exaltados e, digamos mesmo, de menor escrúpulo, logo se decidiram a empregas processos mais rápidos e expeditos, ainda que muito menos elegantes. O primeiro esforço para a abertura de uma crise capaz de provocar a queda do gabinete de 3 de agosto, assumiu realmente um caráter de espantosa inferioridade. Como a triunfal “marcha de flanco”, executada pelo general Caxias, de 21 de julho a 2 de agosto de 1867, desse a justa impressão de haver o nosso exército firmado definitivamente a sua supremacia sobre o inimigo, em certos 127 meios políticos da corte estabeleceu-se a crença de que a nova situação militar já eximia os conservadores de toda a reserva por eles mantida até ali na política interna. Era claro, para aqueles meios, que os motivos de tanta condescendência haviam cessado, assim como evidente lhes parecia que, por simples e automática reversão, a vida do gabinete passara a depender da permanência de Caxias no Paraguai. Começou então uma insidiosa urdidura no sentido de incompatibilizar o presidente do Conselho com o general em chefe. Em cartas particulares foi-se mandando dizer ao Marquês de Caxias que o gabinete liberal, dominado pelas suas estreitas preocupações partidárias, já não sabia corresponder à esplêndida generosidade da sua colaboração militar. Zacarias de Góis jamais deixava passar sem resposta qualquer censura ao comando do exército, desde que partisse ela de pessoa autorizada e merecedora de réplica. A sua palavra incisiva e vigorosa, levantava-se no parlamento à primeira manifestação de dúvida ou desalento, confundindo os impacientes, reanimando os tímidos, fazendo cair vencidas as ultimas animosidades. Entretanto, tudo quanto de mal informado ou injusto pudesse divulgar a imprensa do Brasil ou mesmo do estrangeiro, logo era expedido ao Paraguai, como prova irretorquível da desleal indiferença do governo para com o chefe das forças em operações. Esse lamentável trabalho, dados os antecedentes da nossa vida política e partidária, não podia deixar de produzir os seus efeitos. Tocado pela dolorosa suspeita de que o gabinete já não lhe dispensava a perfeita e inteira confiança do princípio, o Marquês de Caxias, no dia 4 de fevereiro de 1868, enviava do acampamento de Tuiu-Cuê o 128 seu pedido de demissão, sob o pretexto de um mau estado de saúde. Colhido pela desconcertante surpresa daquela resolução, Zacarias de Góis só pensou em manter-se coerente com a atitude que tivera ao convidar o marquês para o comando do exército. A retirada do gabinete fora então oferecida a Caxias como condição, se ele quisesse, da sua partida para o Paraguai. Como ele pretendia exonerar-se naquele momento, o governo, para dissuadi-lo e conservá-lo no seu posto, renovava e fazia efetivo o antigo oferecimento. Mas o Conselho de Estado, reunido para conhecer o incidente, peremptoriamente opôs -se a que o governo assim se retirasse, só para atender às susceptibilidades do general às suas ordens. O gabinet e foi instantemente solicitado a manter-se no poder. Dezessete dias após ter partido de Tuiu-Cué o pedido de demissão do Marquês de Caxias, isto é, a 21 de fevereiro, o gabinete expedia a sua resposta, na qual se lia: “... o governo imperial deliberou não aceitar o pedido de V.Exa., confiando do seu zelo e dedicação pelo serviço público, que continuará no seu posto de honra”. Felizmente o general em chefe, que procurara apenas uma reafirmação formal e indubitável de confiança, submeteu-se sem replicar à solução, para trinta dias depois cobrir-se de glória no esplêndido golpe estratégico de 21 de março. É preciso compreender, entretanto, que se o Conselho de Estado, que já andava seriamente alarmado com a política abolicionista de Zacarias de Góis, se opôs com tão rápida e enérgica decisão à queda do gabinete naquele instante, foi apenas por uma questão de forma. Não lhe pareceram dignos os processos empregados na preparação da crise, nem podia 129 ele ter por legítimos, nem mesmo toleráveis, os motivos invocados para a demissão do ministério, tais como no momento se apresentaram. Dadas, porém, as tendências partidárias da maioria dos seus membros e a sua própria natureza institucional ele não podia ser de forma alguma indiferente à profunda agitação provocada pelas disposições redentoras do gabinete. Os conselheiros da coroa sentiram -se desde o primeiro instante no dever, senão de sustar, pelo menos de encaminhar a corrente abolicionista por vias mais contornantes e demoradas. O indispensável para eles era apenas que a ocasião regular se apresentasse. Tudo indicava que o projeto de lei de abolição não encontrasse dificuldades no seu encaminhamento regimental na câmara temporária, desde que o governo resolvesse a sobre ele apresentar a “conveniente proposta” prometid a. Só do senado era possível esperar um trabalho mais detido e menos entusiasta, que, retardando a vaga abolicionista e dando -lhe sem dúvida outra forma, afastasse as ameaças à ordem pública por ela trazidas e já visíveis no horizonte. Acontecia porém, que, mesmo na câmara alta, a situação de Zacarias não estava longe de poder ser tida por excelente. As últimas eleições senatoriais haviam sido quase todas favoráveis ao Partido Liberal, muito pouco faltando a que as forças dos dois partidos ali se equilibrassem.(24) Junte-se a essas condições numéricas o poder de sugestão de uma bancada onde figuravam as inteligências mais prestigiosas daquele tempo, e ver -se-á quanto seria possível a Zacarias de Góis, mesmo entre os senadores, dominar a votação no momento decisivo. Uma circunstância entretanto sobreviera que vinha pôs entre as mãos dos conselheiros de Estado os meios de agir 130 sobre o ambiente parlamentar, criando o incidente inicial de uma nova situação. O Partido Liberal, com a morte de Dom Manoel de Assis Mascarenhas, senador pela Província do Rio Grande do Norte, havia perdido na segunda câmara um dos seus elementos mais fiéis e devotados. D. Manoel fora mesmo a prestimosa individualidade em torno a qual giraram anteriormente quase todos os esforços no sentido de fundir progressistas e liberais num só partido. Fora em sua residência que se realizaram todas as reuniões e conferências para aquele fim; ali fora redigido, por Nabuco, Dias Vieira e Zacarias de Góis, o programa progressista lido por Silveira da Mot a, no senado, em 1864.(25) A conservação da cadeira vaga pelo seu desaparecimento era uma necessidade, uma condição prática e moral de prestígio e de sucesso, para a política liberal e para o governo.(26) Pois foi aquele o ponto que se ofereceu ao espírito conservador do Conselho de Estado, para pôr em cheque o gabinete de 3 de agosto e conter a vaga montante do abolicionismo. A eleição para o preenchimento da vaga de D. Manoel de Assis Mascarenhas no senado tomou imediatamente a feição de um prejulgamento das idéias do gabinete sobre o elemento servil. Liberais e conservadores tomaram logo posições extremas, tendo sido necessárias medidas militares de caráter extraordinário, para manter a ordem pública na província. O eleitorado foi sensivelmente favorável aos liberais. Os votos mais numerosos recaíram sobre o candidato Amaro Bezerra Cavalcanti, que o gabinete preferia. Mas, ao chegar à corte a lista tríplice, sobre a qual se produzira a votação geral, o Conselho de Estado pronunciou-se pela escolha de Sales Torres Homem, dela o nome que menor 131 número de sufrágios conseguira. Zacarias de Góis tinha as mais sólidas razões para impugnar a preferência do Conselho de Estado. A inclusão de Torres Homem na lista de candidatos não obedecera à certas prescrições legais indispensáveis, como depois o reconheceu o próprio senado, invalidando a eleição no reconhecimento de poderes. Mas, além disso, Sales Torres Homem, pondo a sua esplêndida inteligência ao serviço das idéias conservadoras, após ter surgido no mundo polític o com a verdadeira explosão liberal do seu “Libelo do Povo”(27), tornava-se profundamente antipático aos homens adiantados. Podia-se dizer que o Partido Liberal lhe reservava os mesmos sentimentos que o Partido Conservador nutria pelo chefe do gabinete, pois, inversamente, ambos haviam evoluído de um partido para o outro, causando nos dois campos e cada um de per si igual irritação. É preciso notar ainda que, escolhendo a Sales Torres Homem, que com José Antônio Saraiva fizera parte da primeira comissão de estudos do problema da escravidão, o Conselho de Estado de certa forma parecia indicar ao gabinete até onde lhe seria permitido levar as suas disposições libertadoras.. O projeto daquela comissão, como depois foi revelado, limitava-se de fato à redenção dos nascituros, quando um horizonte muito mais amplo já via o governo abrir-se em sua frente. Zacarias de Góis correu ao paço, a fazer ver ao imperador a impossibilidade legal e a irritante e perturbadora significação política daquela escola. Era indispensável repudiá-la. Pedro II, entretanto, não concordou. Zacarias insistiu, e, insistindo, automaticamente pôs em questão todo o processo funcional e das próprias bases do poder moderador. O que ele pedia, era apenas que Sua Majestade, relegando os 132 pareceres do Conselho de Estado à sua função meramente consultiva, negasse-lhes força decisória, para mandar lavrar a carta senatorial pelo Rio Grande do Norte em favor, não de Torres Homem, mas sim do candidato mais votado. Ao modo de ver do primeiro ministro opunham-se no entanto alguns poderosos embargos. A escolha do poder moderador nas listas senatoriais sufragadas pelos eleitores, de maneira alguma estava sujeita ao critério da maior votação. A preferência do nome de Torres Homem era tão lícita como a de qualquer dos outros dois, não se opondo a ela nem mesmo a argüição de inelegibilidade legal do candidato, pois essa era, segundo o art. 21 da constituição de 1824, matéria da exclusiva competência do senado, ao conhecer da validade do pleito. O caráter facultativo das consultas ao Conselho de Estado, no qual parecia apoiar-se o chefe do gabinete para negar força obrigatória à escolha do novo senador, era um ponto de doutrina que os nossos publicistas do segundo reinado aceitavam apenas em princípio, como uma espéci e de reverência mental à coroa, mas sempre destituído de toda e qualquer significação no terreno praticamente legal. Não há na lei de 28 de setembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de Estado, nem no seu regulamento, expedido em 5 de fevereiro de 1842, nenhuma disposição que autorizasse o imperador a desprezar os pareceres do Conselho, para resolver a seu arbítrio os assuntos consultados. O regulamento dizia no seu art. 13: “As conferências do Conselho de Estado terão lugar nos paços imperiais, e quando o imperador houver por bem convocá-lo”. Logo adiante, no art. 16, ele insistia ainda em submeter as manifestações do conselho à iniciativa do imperador ordenar”. Está muito bem. Pode-se supor que, se o 133 Conselho de Estado só se reunia e os conselheiros só falavam quando assim o entendia o imperador, bastava a este deixar de convocar o Conselho ou, mesmo convocando-o, conservar mudos os conselheiros, para ficar com o direito de por si só resolver qualquer assunto. Mas, veja-se a lei, razão e causa daquele regulamento. No parágrafo 1º do seu art. 7, ela estabelece que o imperador deve ouvir o Conselho de Estado “em todas as ocasiões em que se propuser a exercer qualquer das atribuições do poder moderador”. Ora, os nove parágrafos em que o art. 101 da constituição do império capitulada as atribuições do poder moderador, a escolha de senadores era, pela própria disposição ordinal daqueles parágrafos, a primeira de todas elas. Como poderia então Pedro II resolver sobre a eleição senatorial do Rio Grande do Norte, sem audiência do Conselho de Estado, e como poderia ele ainda, depois de ouvi lo, desprezar a sua escolha, para expedir o título de senador a Amaro Bezerra e não a Sales Torres Homem. A lei não declarava explicitamente que os pareceres do Conselho de Estado necessariamente obrigassem o imperador. Mas ela, indicando, de uma forma bem determinada e categórica, os casos em que a obtenção daqueles pareceres tornava-se indispensável, também não dizia que o imperador pudesse desprezá-los na sua decisão final. O próprio espírito no qual o Conselho de Estado espontaneamente se recompôs em 1841, estaria a demonstrar a força e a natureza real daqueles pareceres, se a Pedro II não bastasse a praxe constante e invariável dos vinte e sete anos do seu reinado. O imperador não podia deixar de compreender que aquilo que lhe vinha propor o chefe do gabinete, era apenas um golpe de Estado... 134 Ninguém poderá supor que Zacarias de Góis, hábil político e notável professor de Direito, ignorasse o exato sentido da medida que reclamava. Por sua vez membro do Conselho de Estado ele vivia no completo segredo das relações daquele organismo com a coroa, não podendo portanto iludir se sobre o grave precedente que pretendia estabelecer. O que se dava realmente, é que, naquele momento, ele compreendera a impossibilidade prática de separar a questão do elemento servil do problema constitucional contido no programa dos liberais históricos. Não era fácil trabalhar eficazmente num campo sem tocar fortemente as raias do outro. A ocasião porém, não se apresentava propícia a uma reabertura ostensiva do debate constitucional. Ele portanto quis daquela forma contornar a dificuldade, por uma nova interpretação do poder moderador. Voltar-se-ia ao espírito do Ato Adicional, anulando o papel político do Conselho de Estado, sem restabelecer os conflitos de poderes da época da Regência, pois dada a evolução operada em 1840 até ali, já ninguém punha em dúvida a completa supremacia do parlamento sobre as outras partes do nosso sistema político e constitucional. Em condições diversas, muito mais lógicas e favoráveis, era a ressurreição da política de Antônio Carlos... Zacarias, sustentando a sua tese, qualificava os conselheiros de Estado que se lhe opunham, de “verdadeiros autores do governo pessoal, porque há”, dizia ele, “governo pessoal, sempre que afasta-se dos atos da realeza uma justa interferência dos ministros e sua conseqüente responsabilidade”.(28) Pedro II não podia porém, concorrer pessoalmente para aquela espécie de revolução tácita. Seria abandonar a norma geral de conduta que aceitara perante os grandes estadistas dos primeiros anos 135 do seu reinado, e que a prática até ali se encarregara de mostrar como a mais digna e acertada. Ele deixaria de ser o regulador moral das funções do Estado, para tomar partido entre dois interesses sociais em luta. Fosse um desses interesses o mais nobre e respeitável, o mais santo, aquele cujo triunfo se voltassem todos os seus votos, lícito nem prudente lhe seria entretanto impô-lo daquela forma,sobretudo com o país ainda a braços com uma guerra externa, e, exatamente por via daqueles interesses, a dois passos da guerra civil. Pedro II, que, com carinhosa solicitude, acompanhava os esforços do seu ministro em prol da redenção dos cativos, deve tê-lo instantemente solicitado a não sacrificar a marcha da abolição ao seu ponto de vista na eleição senatorial do Rio Grande do Norte.(29) Mas Zacarias de Góis se apercebia muito bem de que, fosse qual fosse a sua atitude no caso Torres Homem, ela já em nada alteraria o fato essencial daquela formal resistência do Conselho de Estado à sua política. A marcha da abolição estava, naquele fato, de si mesma comprometida. A democracia brasileira, com tudo quanto a ela se prendesse, seria sempre assim precária e vacilante, enquanto o poder moderador, com o seu indefectível complemento funcional do Conselho de Estado, pudesse semear de escolhos imprevistos o caminho do gabinete. Eram os liberais históricos, na sua velha intransigência, os que afinal tinham razão, e, sentindo-se humilhado e moralmente diminuído, ele preferiu que, perante o país e perante o futuro, cada um guardasse naquela crise as suas responsabilidades. E no dia 14 de agosto, o imperador convocava o Conselho de Estado para consultá-lo sobre a demissão coletiva do ministério. 136 É bem possível que os conselheiros da coroa não esperassem uma solução tão radical do seu conflito com o gabinete, pois, do ponto de vista da administração geral, nada naquele momento aconselharia uma mudança de situação. Eles apenas se opunham a que o governo fosse longe demais nos seus projetos de abolição. Desde porém, que Zacarias de Góis assim o entendia, já não podiam eles descobrir grandes inconvenientes na sua retirada. A formidável cabala fazendeira e reacionária desencadeada nos meios capitalistas e comerciais das grandes cidades, já havia produzido os seus efeitos. Ali mesmo, no Conselho, estava o sr. Visconde de Itaboraí, que, senador pela Província do Rio de Janeiro e intimamente ligado aos agricultores fluminenses, muito poderia informar a ta l respeito. Era só entregar-lhe o governo... O novo gabinete formou-se assim sob a presidência do mais eminente e mais legítimo representante da reação conservadora e antiabolicionista. É preciso não nos esquecermos de que o eleitorado daquele tempo, recrutado segundo o critério de um mínimo e renda líquida, não podia deixar de ser extremamente sensível a uma propaganda que, propondo-se a defender o direito de propriedade, falava sobretudo às classes abastadas e aos que delas imediatamente dependiam. Basta saber que o alistamento eleitoral, em escala de valor econômico descendente, parava nos guarda-livros e primeiros caixeiros das casas comerciais, para ter-se uma idéia dos múltiplos e vários meios de sugestão de uma tal propaganda, sobre a massa geral daquele eleitorado. Não são portanto de admirar as conseqüências que teve a veemente e impetuosa moção de desconfiança, com a qual a câmara liberal recebeu o gabinete Itaboraí, logo à sua 137 apresentação no dia 17.(30) Aceito o desafio para um novo apelo à opinião do eleitorado, que aquela moção necessariamente significava, e procedida à nova eleição geral, o governo conservador encontrava-se na reabertura do parlamento, a 11 de maio de 1869, em face de uma câmara triunfalmente correligionária. Os agricultores haviam convencido nas urnas. Estava pedida a evidente e grande oportunidade para a eliminação rápida e total do cativeiro, na qual para nós se combinaram as reações sociais da guerra do Paraguai com a libertação dos escravos nos Estados Unidos. NOTAS (24) Referindo-se a essa circunstância, dizia a Opinião Liberal, em 1868: Agora que pouco faltava a um partido contrário (ao conservadorismo) passar o Rubicon da 2ª Câmara... (25) Vide Américo Brasiliense, Os programas dos Partidos e o Segundo Império, Partido Progressista, pág. 14. Edic. Jorge Seckler, São Paulo, 1878. (26) É preciso notar que a vaga deixada por D. Manoel não era a única existente na câmara alta. Havia várias outras. O Partido Liberal naquele momento esteve realmente a dois passos de comp letar a sua excelente situação parlamentar com uma indiscutível maioria no senado. (27) Panfleto terrivelmente antidinástico, publicado em 1848, sob o pseudônimo de Timandro. (28) Vide a sua brochura Questões Políticas, pág. 4 – Tipografia da “Reforma”, Rio de Janeiro, 1872. (29) Realmente o imperador só muito a contragosto concordou com a retirada do gabinete. Zacarias teve de repetir três dias seguidos o seu pedido de demissão, para que ele se resolvesse a comunicá -lo ao Conselho de Estado. 138 (30) O moção apresentada pelo deputado paulista José Bonifácio (o moço) era do teor seguinte: “A câmara viu com profundo pesar e geral surpresa o estranho aparecimento do atual gabinete, gerado fora do seu seio e simbolizando uma nova política, sem que uma questão parlamentar tivesse provocado a queda do seu antecessor. Amiga sincera do sistema representativo e da monarquia constitucional, a câmara lamenta este fato singular, não tem e não pode ter confiança no governo.” CAPÍTULO VII A LEI DO VENTRE LIVRE Apesar de traduzir-se numa suspensão, ou antes numa demora do progresso humano no Brasil, a queda do gabinete Zacarias de Góis não deixou de ser um fato de política normal, perfeitamente lógico no conjunto das circunstâncias que o produziram. Com o tempo, veio, porém, a formar-se sobre esse acontecimento uma tão complicada e confusa teia de prejuízos mentais, que até hoje ele ainda a muitos se apresenta com a feição de um profundo e angustioso problema histórico. Elevaram-se duas escolas. Segundo a primeira, surgida imediatamente com a natural reação liberal contra o gabinete Itaboraí, o ministério de 3 de agosto teria sido vítima de um surto violento e inesperado da vontade pessoal de Pedro II, que tendo sido a reguladora de fato de toda a nossa existência política no segundo reinado, a si mesma se satisfazia naquele instante, insistindo, teimosa, na escolha de Torres Homem para o senado. A outra, morta naquela época no nascedouro, mas ressuscitada depois do pronunciamento militar de 15 de 139 novembro, pretende que Zacarias de Góis foi apenas sacrificado aos brios do general Caxias, que, pedindo a sua demissão do comando do exército, tacitamente impôs a retirada do gabinete como condição obrigatória de sua permanência naquele posto. De acordo com esta última versão, a crise ministerial de 1868 teria sido o primeiro arranco do irresistível e fatal militarismo, que explodiu afinal na proclamação da república, em 1889. São duas opiniões que decorrem, não do acontecimento a que, propriamente, se referem, mas de disposiçõe s mentais e conceitos surgidos posteriormente. Os que aceitam a queda de Zacarias como uma exclusiva e brutal manifestação do poder pessoal do imperador, procuram apoiar essa hipótese nos ataques, a partir daquele momento, lançados à coroa pelos liberais, a quem a crise ministerial fizera entrar em extremada e violenta oposição. Efetivamente, o poder pessoal, o inevitável predomínio individual do chefe do Estado, voltou a fazer objeto de todas as críticas e comentários, quase com a mesma intensidade da época de Pedro I e da Regência. Falava-se todos os dias de despotismo, de opressão, de maquiavelismo corruptor, com uma clara e bela veemência, que, para ser intrépida e corajosa, só faltava corresponder exatamente à realidade dos fatos... Mas, para não cairmos hoje em lamentáveis confusões, é indispensável compreendermos o verdadeiro espírito daquelas purgatórias e o exato fim por elas visado. Ninguém fazia a Pedro II a injustiça de supô-lo realmente um tirano, ainda mesmo que amável e disfarçado, como alguns mais insistentes o pretenderam. O que se procurava ferir era o poder moderador, isto é, o elemento 140 central de coordenação dos diferentes órgãos do Estado, elemento esse que tinha no príncipe a sua alta e solene representação visual. A proposição de Zacarias de Góis sobre os conselheiros da coroa, qualificando-os de “autores do poder pessoal” e mostrando como esse poder existia nascente nas mãos deles, deve ser hoje para nós de um grande valor instrutivo. Os homens daquele tempo davam às coisas uma significação que os políticos atuais já não conhecem. Senhores de uma cultura profunda e sempre renovada, que as exigências do seu meio político e social tornavam indispensável, quando eles falavam de uma instituição ou de um fenômeno político qualquer, logo e naturalmente os identificavam pelos seus tipos clássicos. Bem sabemos quanto eles se inspiravam na vida constitucional dos ingleses e como procuravam, pelo estudo, fixar a espécie, o caráter histórico e jurídico dos problemas de que se ocupavam. O que eles temiam, era que no Brasil, por meio de uma tonificante evolução do Conselho de Estado, viesse a instalar-se qualquer coisa no gênero daquele governo dos “amigos do rei”, característico da época de Jorge III da Inglaterra, que consistia num grupo de áulicos, emboscado nos bastidores do trono, a manejar, contra a opinião pública e o parlamento, o irresistível espantalho da prerrogativa real.(31) Era esse o sistema que eles não queriam e a cujo aparecimento se opuseram vigorosamente. Nele consistia aquele misterioso e célebre “reposteiro”, ao qual tanto e com tão irônica insistência se referiam nos seus discursos parlamentares. Era enfim a velha e perigosa ficção da “prerrogativa”, que se tornara necessário repelir e pôr fora do alcance daqueles “autores do governo pessoal”, ainda 141 mesmo descobrindo nesse esforço a pessoa legalmente inviolável do imperador. Mas, não nos esqueçamos de que o nosso Conselho de Estado não era uma organização parasitária e extra-legal como o foi o círculo palaciano de Lord Bute, na velha corte de St. James, nem percamos de vista que Pedro II jamais revelou a educação e os impulsos de Jorge III, o único rei da casa de Hanover que ainda pretendeu restaurar na Inglaterra os métodos anti-parlamentares, pelos quais perdeu a vida Carlos I e foi expulso Jayme II, no tempo dos Stuarts. Tratava-se de uma campanha essencialmente teórica, visando mais uma probabilidade ou uma tendência d que um fato real existente. É portanto indispensável saber ler certos trabalhos, no gênero da “História Política Contemporânea”(32), do conselheiro Tito Franco, e não aceitar incauto proposições como a célebre “sorites”(33) do conselheiro Nabuco. O que se nota em Tito Franco, com a sua criação do “Imperialismo”, é sobretudo o desapontamento dos progressistas do conselheiro Furtado, pro não terem conseguido, no gabinete de 31 de agosto de 1864, conciliar as resistências dos liberais históricos com as susceptibilidades do partido Conservador. Para compreender tudo aquilo e interpretar a fragmentária citação e discursos parlamentares, que constitui a maior parte do livro, é necessário, por um conveniente esforço mental, nos transportarmos às idéias e às lutas partidárias daquele tempo, guardando muito mais das intenções que das palavras. A sorites do conselheiro Nabuco, com pretensões a oferecer uma síntese pitoresca da nossa vida constitucional, constava mais ou menos do seguinte: - O imperador nomeia o ministério, o ministério faz a eleição, a eleição forma a câmara, a câmara 142 apóia o ministério, que obedece ao imperador. É uma frase de espírito, sem dúvida excelente como recurso de oratória parlamentar, mas destituída certamente de toda significação prática efetiva. Nabuco de Araújo, senador, ex -ministro e conselheiro de Estado, devia estar, no fundo, tão certo da exatidão desse jogo de palavras, como o seu contemporâneo José Antônio Saraiva, que, tendo ocupado os mesmos postos na monarquia, afirmava depois da república, jamais haver encontrado, em toda a sua carreira, o poder pessoal de Pedro II. O poder pessoal não foi para a oposição liberal, como o não fora anteriormente para os conservadores, uma convicção: - foi apenas uma decisão. Deliberou-se tomar aquela fórmula abstrata como base teórica de reação política e partidária, e os que se propõem ainda hoje a demonstrar a predominante e capital influência daquele poder no segundo reinado, como o sr. Oliveira Viana no seu “O ocaso do Império”(34), o fazem simplesmente para lisonjear o nosso sistema político atual, repelindo as tradições liberais do Brasil e o próprio mérito da democracia. A tese de que a crise ministerial de 1868 tenha vindo em conseqüência da tácita imposição militar contida no pedido de demissão do Marquês de Caxias, imediatamente pressupõe a hipótese de que, se o gabinete Zacarias ainda se conservou no poder, de fevereiro a julho daquele ano, foi apenas à espera de uma saída mais plausível e menos desairosa, do que aquela de um mandato de expulsão intimado ao governo pelo comando do exército. O primeiro ministro, para salvar as aparências, teria assim combinado com o imperador e o Conselho de Estado, guardar a posição ainda por algum tempo, apesar de exautorado e virtualmente demitido. É preciso convir que, para 143 o rijo caráter de Zacarias de Góis, teria sido o mais espantoso e terrível dos sacrifícios... Não se pode entretanto recusar que essa tenha sido no momento a impressão de certos elementos liberais. Nos pesados ataques de que foi alvo o Marquês de Caxias no senado, após a queda do gabinete, principalmente por parte de Silveira Lobo, Teófilo Ottoni e Francisco Otaviano, esse modo de sentir parece realmente não deixar dúvidas. Mas o próprio Caxias encarregou-se depois de demonstrar tudo aquilo como falso e sem o menos fundamento, repelindo com energia a injúria que naquela versão se continha contra a sua honra de soldado, constantemente fiel aos seus deveres de disciplina. Efetivamente, na sessão da câmara alta de 15 de julho de 1870, ele, já de volta do Paraguai, elevado à extrema dignidade de duque e reintegrado nas suas funções parlamentares, teve ocasião de provocar sobre aquele ponto uma explicação tão ampla e completa, que se viram todos os que o atacaram por tal suspeita, na rigorosa obrigação de publicamente se desculparem. Não podemos fugir à tentação de transcrever aqui o trecho do seu discurso, no qual ele explicou os motivos de consciência que o levaram ao pedido de demissão em fevereiro de 1868, e o modo pelo qual o incidente foi por si considerado como findo. Disse o antigo general em chefe: “Julguei que o ministério, tendo-me confiado o comando de nossas forças no Paraguai, exigindo de mim com instância o aceitar essa comissão, sentia vexar-me em exonerar-me dela, mas que, entretanto, desejara ver-se livre de mim por motivos que de todo ignorava, mas que nem por isso deixariam de existir para ele. Nesta persuasão (note-se que já estava doente), dirigi uma carta particular ao sr. ministro da 144 guerra, em que fazia minhas queixas por essas pequenas coisas que me fizeram desconfiar e pedia a exoneração do comando. Dizia ou comigo: se o ministro não está contente, me demite; mas se estou enganado, se ele está satisfeito com os meus serviços, recusa a demissão e então continuares a cumprir meu dever enquanto minhas forças o permitirem ........... .................. ............................................................................................... “O ministro recusou a demissão pedida; recebi explicações que me satisfizeram completamente e continuei a cumprir meu dever com a mesma dedicação e lealdade”. Depois de contar assim toda a história do seu pedido de demissão do comando do exército, o Duque de Caxias afirmou: “O ministério de 3 de agosto deixou o poder a 16 de julho, por motivos que eu inteiramente ignorava”. O seu discurso foi tão claro, tão emocionante na sua generosa e profunda sinc eridade, que, quanto ele o terminou, o senado estava quase todo de pé. Francisco Otaviano foi o primeiro a dar o sinal dos estrepitosos aplausos que cobriram as suas derradeiras palavras, e Silveira Lobo, num belo gesto de lealdade que bem dizia do seu caráter franco e impetuoso, a ele se dirigiu, começando por esta simples expressão: - Perdôe-me! ... Zacarias de Góis não podia deixar de ser por diversas vezes interpelado no correr da oração do ex-comandante do exército. Caxias, fazendo notar que, antes da crise ministerial, nunca ministro algum (textuais) lhe fizera os elogios que recebera do nobre ex-presidente do gabinete de 3 de agosto, estranhou que, depois de julho de 1868, ele também se tivesse posto ao lado dos que, sem motivo, tanto o atacaram. Zacarias, tendo imediatamente procurado responder em apartes, na sessão do seguinte dia 18, dedicou todo um grande discurso ao 145 esclarecimento das dúvidas reveladas pelo duque a tal respeito. Se, depois de abandonar o poder, ele por vezes criticara acerbamente a orientação do nosso comando em chefe no Paraguai, não o fizera por atribuir-lhe responsabilidades na queda do seu governo, Fora isto apenas devido ao modo pelo qual, a partir da batalha de Lomas Valentinas, o comandante em-chefe e o próprio governo entraram a considerar a guerra como terminada. Efetivamente, depois dos sucessivos triunfos de Itororó, Avaí, Piquiciri, Lomas Valentinas e Angostura, nos dias 6, 11, 21, 27 e 30 de dezembro de 1868, nos quais foi virtualmente anulada a sorrateira manobra empregada por Solano Lopez escapando de Humaitá pela ponta do Chaco com a maior parte das suas forças, o general Caxias, já instalado na capital de Assunção, fez publicar a ordem do dia 14 de janeiro de 1869, na qual a nossa vitória era dada por definitiva e a guerra por encerrada. No dia 3 de fevereiro seguinte o gabinete Itaboraí por sua vez fazia aparecer no “Diário Oficial” uma comunicação em que se lia: “O sr. Marquês de Caxias, considerando finda a guerra e achando-se adoentado, havia pedido a sua demissão e aguardava a decisão do governo imperial, quando, no dia 17, estando a ouvir missa na matriz de Assunção, foi acometido de um ataque de cabeça, que podia ter sérias conseqüências, mas que, felizmente, cedeu aos imediatos socorros da medicina”. Era evidente que o governo conservador estava a dispor as coisas para uma próxima abertura de negociações de paz. Entretanto, o ditador paraguaio, terrivelmente destroçado nos laranjais de Lomas Valentinas, ainda conseguira fugir, para ir tentar uma última reorganização de forças em cerro Leon. Ora, o tratado da 146 Tríplice Aliança, negociado em Buenos Aires pelo liberal Francisco Otaviano, ainda no governo Furtado, estabelecia que o Brasil, o Uruguai e a Argentina só se ocupariam da paz, conjuntamente, quando o governo de Lopez não existisse mais. Lopez ainda se mantinha em armas no território do Paraguai. Zacarias de Góis e o Partido Liberal não podiam portanto se conformar com aquele modo de considerar o fim da guerra. Ele parecia prematuro e incorreto, e os liberais tinham tanto mais motivos de se alarmarem, quanto os conservadores nunca esconderam a sua antipatia à política da guerra por eles praticada. O próprio Visconde de Itaboraí, no início das hostilidades, dera entrevistas de imprensa francamente favoráveis a uma paz imediata, e o tratado de aliança merecera dele e dos seus correligionários as mais ásperas censuras, como as que ainda hoje se podem ler na “Vida do Duque de Caxias”, de monsenhor Pinto de Campos, onde a cláusula de um comando único, confiado em primeiro lugar ao presidente Mitre, foi considerada como uma manobra inferior, destinada apenas a afastar Caxias da direção das forças brasileiras., Explicava-se perfeitamente a atitude dos senadores liberais, em face da ordem do dia de 14 de janeiro, e tanta razão tinham eles de se oporem àquele ponto de vista, que o ministério conservador acabou abandonando o seu apressado pacifismo, para observar fielmente o tratado de aliança e prosseguir na guerra até o seu termo previsto e necessário. De Zacarias de Góis – sem dúvida o principal interessado – não se poderá dizer que tenha pretendido atirar a Caxias as culpas da crise na qual o seu gabinete sossobrou. Não lhe teria sido possível com tanta segurança explicar, só pelos motivos que acabamos de ver, as referências 147 desvantajosas que fez ao general no correr de 1869, se realmente guardasse contra ele aquela mágoa. Mas há ainda um documento que só por si bastaria para completamente inutilizar a hipótese do militarismo de 1868. É uma carta escrita por Zacarias de Góis ao comandante das forças em operações, em 4 de março daquele ano,(35) quando já estava de todo encerrado o incidente do pedido de demissão do general, na qual se encontram estas sugestivas expressões: “E, pois que aludo à lealdade que folgo de reconhec er em V. Exa., permita-me que aproveite o ensejo para dizer-lhe que a mesma lealdade tem constantemente observado e continuará a observar o governo para com V. Exa. Sei que inexatas apreciações de uma parte da imprensa da Corte e cartas particulares de pessoas que não conheciam a fundo as coisas, abalaram em V. Exa. a persuasão de que continuasse inalterável a confiança que determinou, em outubro de 1866, a nomeação de V. Exa. para comandar as forças brasileiras em operações contra o governo do Paraguai”. “E felizmente um engano .............................................. ............................................................................................. .. “Essa inteira confiança V. Exa teve-a ao partir, teve-a enquanto circunstância extraordinária, imprevistas, retardaram os golpes decisivos contra o inimigo, como tem-na hoje, que tudo conspira a fazer acreditar que se aproxima o termo da guerra sob a direção de V. Exa.” “Falo assim porque tenho consciência de que, estudados os fatos e reconhecidas as intenções para com V. Exa. é igual à lealdade de V. Exa. para com o governo, não tendo jamais variado a confiança que nos fez escolher a V. Exa. para tão importante comissão”. 148 Quem poderá suporque Zacarias de Góis houvesse escrito tais coisas ao general Caxias, depois de haver, num deprimente conchavo, aceitado sacrificar-lhe a existência e a honra do seu governo? Nabuco, tratando do grande presidente do gabinete de 3 de agosto, dele nos deixou, como um raro e feliz modelo de representação literária, este alto e poderoso perfil: “Não havia nele traço de sentimentalismo; nenhuma afeição, nenhuma fraqueza, nenhuma condescendência íntima projetava a sua sombra sobre os fatos, as palavras, o pensamento mesmo do político. A sua posição lembrava um navio de guerra, com os portalós fechados, o convés limpo, os fogos acesos, a equipagem a postos, solidário, inabordável, pronto para a ação”. Quem admitirá que este homem, o caráter que aí se fotografa, tenha jamais descido àquela subalterna e maculante transação? A crise ministerial de 1868 não teve realmente nenhuma relação efetiva com o incidente do pedido de demissão do marquês de Caxias, incidente este aberto e de todo encerrado cinco meses antes da data em que ela se produziu. Se dúvidas a tal respeito existiram naquele tempo, elas foram inteira e completamente destruídas nas sessões do senado de 15, 17 e 18 de julho de 1870, delas nada mais restando senão o generoso caráter de exame geral de consciência daquelas explicações a que deram ensejo. Não nos pertu rbemos com o fato de cronistas como o sr. Batista Pereira(36) ainda hoje pretenderam ressuscitar aquelas dúvidas. Eles procedem por extensão retrospectiva da impressão que lhes causa o predomínio dos militares nos primeiros anos da república, tornando-se apenas vítimas de uma espécie de miragem dessa 149 especial visão política hispano-americana, que ficou sendo também a nossa, a partir de 1889... Tem-se tentado fazer um certo cabedal de prova com a circunstância de haver dito Zacarias, num dos seus artigos da “Reforma”, em 1869, que estava escrito que a espada vitoriosa nos campos do Paraguai traria no interior o triunfo do seu partido. Porém, quem diz “estava escrito”, refere-se ao destino, à fatalidade, a seja lá o que for, mas certamente não procura estabelecer uma responsabilidade pessoal determinada Zacarias de Góis, sem a mínima dúvida, recordava a luta que se abriu em torno do poder, logo que este foi sendo cercado pelas condições evidentemente vantajosas e por certo invejáveis, de uma situação militar vitoriosa. Daí porém, a dizer, que “foi a espada de Caxias que apontou a Zacarias a escada pela qual se desce do poder”, como o faz o sr. Batista Pereira, vai apenas a distância que medeia entre uma simples figura de retórica e um fato real existente. É possível que o Marquês de Caxias, ao endereçar ao ministro da Guerra em fevereiro de 1868 a carta d seu pedido de demissão, o fizesse por ter ficado deveras convencido de já por demais haver sacrificado aos liberais o seu partido e a sua própria dignidade de grande chefe conservador. Mas, se ele mesmo solenemente negou àquele seu gesto todo e qualquer caráter de reação política e partidária, se os seus contemporâneos mais interessados no incidente, num tocante movimento geral de sinceridade que constituiu um dos instantes mais belos do nosso velho parlamento do império, aceitaram as suas explicações e sem reserva as aplaudiram, porque insistir ainda hoje numa suposição antipática e deprimente, em favor da qual nenhum elemento novo de prova se apresentou?(37) 150 Com toda segurança pode-se afirmar ser tão falso haver sido Zacarias de Góis sacrificado aos brios militares do Marquês de Caxias, quando é inexato ter ele caído por uma imposição pessoal do imperador Pedro II. A verdadeira causa da crise ministerial de 1868 foi a reação conservadora contra a idéia da abolição, disfarçada na escolha de Sales Tooores Homem ara o senado. O deputado Teixeira Junior, ao pretender reabrir a questão abolicionista perante a câmara, em julho de 1870, deixou esclarecido esse fato com perfeita e absoluta evidência, na forma pela qual justificou aquela sua iniciativa. Já não se tratava de considerações “de meritis” sobre o problema do cativeiro, mas sim dos meios de remediar à profunda e perigosa agitação lançada no espírito público, com os projetos do governo anterior. Dizia o representante da província do Rio de Janeiro: “A inserção da questão do elemento servil na fala do trono trouxe para o Brasil grande calamidade, porque a idéia da emancipação foi por diante, sendo que ministros e representantes da nação, pobres e abastados, todas as classes, em suma, apossaram-se dela”. Apontando o grande mal que a reação conservadora, no desfecho da crise ministerial, já não conseguira prevenir, o deputado fluminense deixava bem patentes as razões p elas quais fora Zacarias de Góis afastado do poder. Dias depois, sendo as suas palavras, ainda com ares de censura, repetidas num discurso do senado, Francisco Otaviano retorquiu com veemência: - Mas é o elogio do gabinete”... Então o expresidente do Conselho, na sua imperturbável e constante serenidade obtemperou: “O ministério de 3 de agosto, quando aventou a idéia da emancipação do elemento servil na fala do trono, estudava a matéria; continuou a estudá-la, e, quando 151 saiu, tinha o projeto pronto para ser apresentado às câmaras, logo que cessasse a guerra”. Foi para evitar aquela marcha tão rápida da abolição que o Conselho de Estado resolveu combater a situação dos liberais na câmara alta, arrebatando-lhe a cadeira de D. Manoel de Assis Mascarenhas, como início de uma política nitidamente conservadora, no preenchimento das outras vagas ali existentes. Daí a retirada do gabinete, a dissolução da câmara dos deputados e a vitória dos conservadores nas conseqüentes eleições gerais, com resultado natural da fu riosa propaganda desenvolvida pelos agricultores, nos meios capitalistas e comerciais urbanos, desde maio de 1867: Mas, se a grande lavoura, ao favor do alistamento eleitoral de critério econômico, conseguiu por um momento levantar o conjunto dos interesses materiais contra a abolição imediata, não lhe foi possível entretanto modificar a nova consciência moral da nação, como também ressalta daquele trecho do deputado Teixeira Junior. A câmara conservadora, como produto eleitoral, representava apenas o terro r de uma ruína geral do snegócios. Os meios agrários haviam procedido sobretudo por intimidação, vaticinando a suspensão imediata da produção agrícola, como conseqüência do abandono dos engenhos e das fazendas pelos escravos, a acarretar o desmoronamento do câmbio monetário, a falência geral do comércio e a desvalorização completa da propriedade. O exemplo da emancipação nos Estados Unidos era habilmente retomado, não nos seus aspectos finais, mas nos seus efeitos intermediários de guerra civil e desmembramento nacional. Prometia-se uma violenta revolta da propriedade rural contra aquele esbulho dos seus direitos. Seria a desordem, o incêndio 152 e o massacre no interior, a prenunciar a ruína total e a fome nas grandes cidades. Seria o fim do império... Foi port anto no pânico dessas emoções provocadas que se fizeram as novas eleições gerais. A chapa conservadora fora sufragada ao simples apertar dos cordões da bolsa. Dentro, porém, de alguns meses, a grande opinião coletiva e popular tinha, com mais calma, reagido. Tornou-se indispensável e necessário satisfazê-la de qualquer forma. A corrente democrática, naquele atropelo, não deixou de ressentir-se de algumas defecções. Diversos políticos, os ais ronceiros da “nuance” progressista destacada do velho partido conservador, dela se afastaram, no empenho de acautelar os seus interesses de senhores rurais e proprietários de escravos. Estes porém, não fizeram falta. A sua ausência foi muito mais uma depuração do que um desfalque. O belo movimento de solidariedade de princípios, provocado em torno do gabinete demissionário no último dia da câmara de 1868, pela palavra elegante e sugestiva do deputado José Bonifácio, não resultou numa manifestação puramente platônica, e como tal não se perdeu. O ano de 1869, graças à propaganda liberal, marcou realmente o início de um dos períodos mais ativos e brilhantes de toda a nossa história política. Os primeiros esforços tentados pelos progressistas isentos da eiva escravista e os liberais históricos no sentido de uma reação prática partidária contra a violenta compressão conservadora da crise de 1868, determinaram a publicação do manifesto de 4 de maio de 1869, sob o qual pela primeira vez, se confundiram intimamente os nomes principais daqueles dois grandes ramos do Partido Liberal. Ao lado de Zacarias de Góis e Nabuco de Araujo, a estrema-esquerda liberal, representada 153 por Francisco Otaviano e Teófilo Ottoni, fazia-se dosar pela cautelosa moderação do Conselheiro Furtado e do Visconde de Paranaguá. Faltavam porém, Silveira da Mota e Silveira Lobo... O manifesto liberal de 1869 era um documento longo, sabiamente argumentado. Era uma ampla e correta dissertação doutrinária de feitio acadêmico, muito de molde a satisfazer o círculo ilustre do Clube da Reforma,(38) mas destituído da veemência e do desprezo de conseqüências, que seriam necessários a uma verdadeira proclamação de combate. Como programa de ação política, era de uma evidente exigüidade. Estava perfeitamente de acordo comas grandes responsabilidades políticas e sociais dos homens que o firmavam, mas não conseguiu despertar a forte e numerosa concentração partidária, que seria indispensável opor aos conservadores vitoriosos. O documento político que devia fazer vibrar com profunda e larga intensidade a alma popular naquele momento, era outro. Foi o manifesto radical, lançado nos primeiros dias do mês de novembro, com o novo jornal de propaganda democrática, “O Correio Nacional”. Os fundadores do “Correio Nacional” e autores desse manifesto, foram Francisco Rangel Pestana e Henrique Limpo de Abreu, dois jovens jornalistas liberais, que, desde 1865, tinham-se feito na imprensa do Rio de Janeiro os mais avançados propagandistas dos princípios democráticos. Rangel Pestana, advogado de formatura recente, era discípulo e companheiro de escritório do grande chefe liberal Joaquim Saldanha Marinho, que se constituíra em defensor incansável e extremado da liberdade dos africanos aqui introduzidos, de contrabando, após a proibição do tráfico interoceânico de 154 1850. Limpo de Abreu formara a sua mentalidade política ao lado do seu pai, o visconde de Abaeté, que, ministro já em 1835, viera desde a época da Regência a prestar à nossa evolução social o concurso da sua calma e constante atividade de parlamentar e homem de Estado. Em 1865, aqueles dois jovens democratas haviam fundado, com José Luis Monteiro de Sousa, “A Opinião Liberal”, um outro jornal que reuniu em sua redação os espíritos mais audazes daquela geração, como Teófiloe Christiano Ottoni, José Maria do Amaral, Liberato Barroso, Sousa Pitanga, Godoy e Vasconcelos e Felício dos Santos. A “Opinião Liberal”, apesar de ter entrado em oposição aos cautelosos métodos do progressismo, admitidos por Zacarias de Góis até 1866, no fundo, nunca deixou de mais ou menos inspirar-se nas idéias precisas e exatas do grande chefe do gabinete de 3 de agosto. Quando, porém, a fala do trono de 1868 lançou definitivamente a questão do elemento servil, como base de programa governamental, os seus redatores logo secundaram com entusiasmo a orientação do gabinete, publicando o primeiro manifesto radical, onde as idéias práticas da abolição já apreciam coordenadas nos princípios gerais da antiga plataforma liberal. Em torno à “Opinião Liberal” fundou-se então o esforçado núcleo de propaganda política que tomou o nome de Clube Radical. Dada porém, a verdadeira depuração das correntes liberais operada pela idéia abolicionista, Rangel Pestana e Limpo de Abreu partiram do seu antigo centro de atividade, onde se haviam introduzido elementos evidentemente suspeitos como Martinho Campos, para irem fincar a sua tenda muito mais adiante, nas últimas vanguardas do liberalismo. 155 O manifesto radical de 1869 teve a extrema felicidade de condensar numa síntese clara e absolutamente completa tudo quanto de aspirações liberais pudesse conter a consciência brasileira daquela época. A sua parte propriamente programa, continha-se toda em dezesseis artigos. Desses artigos, os doze primeiros, dispostos em quatro negações as quais se opunham oito afirmações nítidas e exatas, eram tudo, eram a solução de todos os nossos problemas sociais e econômicos, ou, pelo menos, a chave de todos eles. No entanto, em nenhum deles poderiam ser contadas mais de seis palavras! Tomemos o trecho final da introdução, onde se resumia toda a explanação histórica e doutrinária contida nos períodos anteriores para dá-lo aqui como preâmbulo explicativo àqueles doze artigos: - “Emancipemos: - o indivíduo, garantindo-lhe a liberdade de culto, de associação, de voto, de ensino e de indústria; - o município, reconhecendo-lhe o direito de eleger a sua polícia, de prover as suas necessidades peculiares, de fazer aplicação de suas rendas e de criá-las nos limites de sua autonomia; - a província, libertando-a da ação esterilizadora e tardia do centro, respeitando-lhe a vida própria, garantindo-lhe o pleno uso e gozo de todas as franquezas com a eleição de seus presidentes, de sorte que elas administrem-se por si sem outras restrições além das estritamente reclamadas pela união e interesse geral. Trabalhando por esse “desideratum” propugnemos pelas seguintes reformas: ABOLINDO: O poder moderador; A guarda nacional; O Conselho de Estado; O elemento servil. 156 ESTATUINDO: Ensino livre; Polícia eletiva; Liberdade de associação e de culto; Sufrágio direto e generalizado; Separação da judicatura da polícia; Senado temporário e eletivo; Derrogação de toda jurisdição administrativa; Eletividade dos presidentes de província”. Se temos bem em mente a recapitulação da nossa história política feita até aqui, imediatamente nos apercebemos de que este rápido programa continha em súmula fiel e perfeita todas as reivindicações pelas quais se bateram os liberais brasileiros desde a primeira constituinte de 1823, que armaram o braço aos republicanos de Pernambuco em 1824, em nome das quais agiram os revolucionários de 1831, e que tendo vigorosamente clamado nas lutas do período da Regência, até a guerra dos Farrapos, ali se apresentavam completadas em todos os seus aspectos morais e econômicos pela indispensável e necessária extinção do cativeiro. Pense-se no que de exato significava a supressão do poder moderador com o seu Conselho de Estado, a transformação do senado de câmara, de senhores com direitos vitalícios, numa assembléia temporária, livre e diretamente eleita pelo povo, considere-se no sentido democrático e federativo que daria à organização geral do império o reforço efetivo e prático da vida municipal e o direito das províncias elegerem os seus governos – e compreenda-se que a constituição de Pedro I ali não seria apenas reformada: seria uma nova constituição, inteiramente depurada do seu velho caráter de outorga real,para apresentar se claramente como a expressão voluntária e consciente de um povo, de fato e de direito, soberano. Seria a república... 157 O antigo núcleo da “Opinião Liberal”, escoimando-se dos elementos atemorizados pela idéia da abolição imediata e acrescido de um grande número de jovens inteligências que então surgiram, veio muito mais numeroso reconstruir-se em torno do programa do “Correio nacional”. Apareceram Lafayete Pereira, Silveira Martins, Aristides Lobo, Salvador de Mendonça, Flávio Farnese. Em São Paulo iniciou a sua publicação “O Radical Paulistano”, com Luís Gama, Bernardino Pamplona. Américo Brasiliense, Américo de Campos, Glicério e Jorge de Miranda, enquanto da velha Faculdade de Direito saía o concurso dos estudantes, trazendo à propaganda liberal e abolicionista a pena preciosa e florida de Rui Barbosa e o irresistível encanto da lira de Castro Alves. Mas não foi apenas nos meios intelectuais e escolares que se exerceu a larga e dominadora influência do programa radical. Ela alastrou-se por todas as classes da população urbana, não lhes sendo insensíveis nem mesmo os graves e circunspectos signatários do manifesto de 4 de maio. É fácil de compreender que, senadores e quase todos membros do Conselho de Estado, não podiam estes propor a subversão de uma das corporações de que faziam parte e a anulação completa da outra, com a mesma facilidade com que o fizeram Rangel Pestana e Limpo de Abreu. Basta, porém, considerar nos incidentes da queda do gabinete de 3 de agosto, no que eles se entenderam com a eleição senatorial de Torres Homem e a correspondente ação do Conselho de Estado, para logo ver se que os líderes liberais e progressistas, afirma também tinham de considerar aqueles dois pontos do programa radical como legítimos e necessários. Teófilo Ottoni chegou mesmo a ser tido como chefe ostensivo dos radicais. Nabuco não lhes 158 dissimulava as suas simpatias e foram notadas as íntimas relações que na época se estabeleceram entre Zacarias de Góis e Rangel Pestana. A manifestação radical tinha afinal conseguido que a propaganda democrática deixasse de parcelar-se em dois programas distintos e de obtenção sucessiva – o primeiro adstrito apenas a medidas de caráter administrativo e à emancipação dos escravos, e o segundo contido nas liberdades políticas dos antigos históricos – para fundir-se num esforço único, tendendo à realização uniforme e simultânea de todas aquelas aspirações, tomadas como partes integrantes e inseparáveis de um só corpo de doutrina. A democracia brasileira adotara a visão geral solidária, que surpreendera a Zacarias de Góis nas angústias da crise ministerial. Ela enfim concebera o seu plano ou a sua forma ideal definitiva. O manifesto de 4 de maio não obteve, como já vimos, reunir sob uma mesma e única disciplina partidária, a totalidade dos elementos contrários ao partido conservador. Do ponto de vista administrativo, para fins de estatística e cabala eleitoral, não foi possível estabelecer a concentração de todos os liberais dentro de um só quadro diretor. Mas essa reunião dos espíritos adiantados, que aquele documento não chegou a provocar no terreno estritamente partidário, o programa radical a conseguiu com muito mais segurança e eficiência no amplo e claro domínio das idéias. A política liberal, sustentada de um extremo ao outro do país, em numerosos jornais, em panfletos, em conferências, em múltiplas organizações locais de grande atividade, tornou-se, sem necessidade de boletins diretores ou de ordens de serviço, tão poderosa e imperativa, que os conservadores só se mantiveram no poder dali por diante com 159 a tácita condição de obedecê-la. A organização constitucional do país, servida pelo sistema eleitoral que já examinamos, facilitou ao partido conservador a posse do poder. Ele teve porém de aceitar contínua e progressivamente as idéias dos seus adversários, nos últimos limites que, ao seu apego às coisas estabelecidas, ainda permitiu a estrita manutenção da ordem pública. O Conselho de Estado, pelos diferentes elementos partidários da sua composição, formava uma entidade coletiva por demais bem equilibrada, para não compreender a perigosa inutilidade de uma resistência intransigente e absoluta ao princípio da abolição, em face da poderosa corrente em favor desse princípio despertada pelo governo Zacarias de Góis. Os conselheiros da coroa quiseram demorar, é certo, mas não podia entrar nas suas deliberações a pretensão de indefinidamente sustar o movimento emancipador. Ao próprio gabinete Itaboraí foi sugerida a conveniência de uma manifestação qualquer que não deixasse entender a questão como fechada.(39) Esse conselho de prudência não pôde ser atendido no auge da reação antiabolicionista que fora precisamente a origem daquele governo. Desde porém que o deputado Teixeira Junior, por um gesto de inteligente e corajosa renúncia, veio denunciar do parlamento a verdadeira temeridade da resistência, os chefes conservadores foram bem forçados a se renderem ao ponto de vista do Conselho de Estado. O Visconde de Itaboraí eclipsou-se, para dar lugar a um novo ministério evidentemente conservador-abolicionista, pois trazia, sob a presidência bem característica do Marquês de São Vicente, a colaboração moderada e esclarecida de João Alfredo e Sales Torres Homem. Esse governo não pôde ainda 160 nada obter. Mas, em março de 1871, o conselheiro Silva Paranhos, de volta do Paraguai, cercado do grande prestígio de haver promovido a liquidação diplomática da guerra e elevado à dignidade de Visconde do Rio Branco, chega por sua vez ao poder.(40) A câmara estava fechada. Quando porém reabriu -se o parlamento, no dia 3 de maio seguinte, revelou-se na fala do trono o programa do ministério. O novo gabinete conservador propunha-se a trazer as liberdades individuais reclamadas desde 1862 pelos progressistas, e a retomar o problema do elemento servil, no ponto em que o entregara à comissão de estudos nomeada pelo gabinete liberal de Zacarias de Góis. Os deputados compreenderam logo que o governo, com clara determinação, os vinha colocar entre os interesses da grande lavoura e os impulsos da opinião geral do país. Repelir aquele programa ministerial, significava imediatamente aceitar a grande prova de novas eleições gerais... Ora, o eleitorado, profundamente trabalhado pelo elemento moral da propaganda democrática e abolicionista, já não acreditava muito nas profecias comas quais, dois anos antes, o intimidavam. Seria talvez a queda do partido conservador e a entrega de tudo à decisão precipitada e imprevisível de um novo governo de liberais. As responsabilidades eram muito grandes e o futuro por demais incerto... A resposta à fala do trono, em termos que a pudesse aceitar o ministério, só saiu, acerba e emperrada, no dia primeiro do mês seguinte. Dali por diante, as sessões se precipitaram num verdadeiro tumulto de consciências. Os deputados, sob a direção sagaz e atropelante de João Mendes de Almeida, pareciam votar assediados pela nação. Mas. ao chegar o mês de setembro, o Visconde do Rio Branco, depois 161 de obter a reforma do processo criminal de 1841. Arrebatava daquela câmara, eleita pela reação escravocrata, a Lei do Ventre Livre! Tem-se pretendido sustentar que Zacarias de Góis opôs se, no Senado, à passagem da grande lei do Visconde do Rio Branco. Não é verdade. Quando o projeto chegou aprovado pela camada dos deputados, Zacarias de Góis logo declarou que o votaria. Não podia entretanto eximir-se de criticá-lo, para fazer ver que ele apenas representava, como aliás lhe pareciam todas as outras reformas do gabinete, uma solução falha e simplesmente protelatória. Realmente, isentando da condição servil os filhos de mulher escrava nascidos dali por diante, mas deixando-se até os vinte e um anos sob a tutoria dos senhores, com a obrigação de prestarem serviços, a lei necessariamente admitia a permanência da escravidão no Brasil, ainda por duas gerações. Como o grande chefe liberal no seu discurso se referisse ao parecer da comissão de estudos que nomeara, o Visconde do Rio Branco lhe perguntou: “V. Exa. aceita o parecer da comissão?” A pergunta não teve resposta. Era precisamente aquele parecer que ali estava sendo convertido em lei. Mas a muito tempo que Zacarias de Góis fora levado a tê-lo por insuficiente. A medida justa a ser adotada, deveria ir muito além do que conseguira prever aquele trabalho. A nação, disse Zacarias, reclamava ansiosa “reformas profundas e radicais”, e o partido conservador vinha trazer apenas sombras de reformas...(41) Quando o senador Sales Torres Homem proferiu o seu grande discurso de encaminhamento final da votação, a câmara alta, sem que o orador talvez o suspeitasse, recebeu dos seus lábios a visão exata da grande oportunidade que se perdera. 162 Arrebatado na sonora torrente da sua própria eloqüência, Torres Homem pôs em tão claro e poderoso relevo a absoluta incompatibilidade de qualquer forma ou modalidade da escravidão com o sentimento nacional brasileiro daquele instante, que no recinto vibrou com profundo e maravilhado espanto esta exclamação: “Mas isto é a abolição imediata!...” Zacarias de Góis deve ter pensado consigo mesmo: bem poderia ter sido, certamente o teria sido, se a reação dos senhores de escravos, determinando a crise ministerial de 1868, não houvesse trazido os conservadores ao poder. Assim pensou ele desde que conheceu o projeto de lei concebido pelo gabinete conservador – e nós não sabemos qual será a alma adamantina e inquebrantável que sinceramente o possa censurar por haver, nos seus discursos, revelado, com um pouco de amargura, este pensar. A lenda da oposição formal de Zacarias de Góis à lei do ventre livre, faz parte desse tecido de inexatidões, através do qual nos procuram fazer ver os homens e as coisas do segundo reinado. De fato, seria impossível a um método de exposição histórica que se destina a justificar por confusão de defeito s do nosso regime político atual, deixar ver em toda a sua grandeza um dos mais belos e impressionantes perfis daquele tempo. É necessário diminuir as suas proporções, porque assim se terá quebrado a harmonia do quadro geral da sua época, para tudo reduzir à visão falsa e sem grandes perspectivas, que se torna indispensável a uma perfeita conformação mental com o presidencialismo. Quem não pode exalçar o objeto dos seus cuidados, trata naturalmente de anular por nivelamento os pontos de referência, para que se lhe não observe a exigüidade. 163 Estas são as tendências que, mesmo insensivelmente, levam os nossos cronistas republicanos a negar a Zacarias de Góis uma grande consciência política, apesar dele ter sido o estadista de visão objetiva e profunda, sob cujo programa governamental vieram condensar-se, em 1867, todas as nossas velhas aspirações liberais, para formar, através do programa radical de 1869, a poderosa corrente de opinião que, mesmo nos governos conservadores, devia conduzir a política geral do Brasil, até os últimos dias da monarquia. “Vê-se que faltava a Zacarias a mentalidade de um estadista”, diz por exemplo o sr. Oliveira Viana.(42) E esse conceito fácil e displicente, parece tão natural, tanto agrada e se ajusta à mentalidade corrente, que o sr. João Pandiá Calógeras, antigo parlamentar e ex ministro o adota em conferência pública, repetindo com particular veemência: “Personagem de segunda plana... cabo eleitoral... nunca seria e nunca foi homem de Estado”.(43) Uma tal rudeza de expressões, na boca de alguém com as responsabilidades políticas e intelectuais do sr. Pandiá Calógeras, em se tratando de um dos vultos mais nobres e respeitáveis da nossa história, é deveras surpreendente. Mas não nos espantemos em demasia – porque há circunstâncias de ordem moral, que de todo inutilizam os nossos políticos atuais, para qualquer juízo exato sobre os grandes homens da monarquia. NOTAS (31) Vide a História Constitucional da Inglaterra, de T. Erskine May, vol. I, cap. I. Jorge III foi mesmo considerado como o modelo da reação autoritária nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros do século 164 XIX. Assim ele aparece nos “Ensaios sobre o governo popular”, de Summer Maine, nos “Estudos de Direito Constitucional”, de Boutmy, e nas “Fontes da Constituição dos Estados Unidos”, de Stevens. (32) O Conselheiro Francisco José Furtado – Biografia e estudo de História Política Contemporânea, pelo Conselheiro Tito Franco de Almeida – E. de H. Laemmert, editores, Rio de Janeiro, 1867. (33) Sorites, genitivo sorita. Segundo Constâncio, “Argumento que contém muitas proposições acumuladas umas sobre as outras”. (34) Vide a edição da Comp. Melhoramentos de São Paulo. (35) Correspondência trocada entre a presidência do Conselho e o comando brasileiro no Paraguai, sobre um oferecimento de fundos feito diretamente ali pelo banqueiro Mauá, em dezembro de 1867, para pagamento dos soldos do exército e da esquadra, Mauá que estava em más relações com o gabinete liberal, pretendia dar assim uma lição a Zacarias de Góis, suprindo com a sua capacidade financeira os defeitos que dizia existirem na nossa pagadoria militar em Buenos Aires. Caxias recusou, afirmando que o governo jamais deixara faltar coisa alguma às tropas de seu comando, e fazendo sentir a Mauá quanto o seu oferec imento, pelo canal que emprestara, tinha de desusado e incorreto. (36) Vide A queda de Zacarias, do sr. Batista Pereira, do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, de 30 de outubro de 1927. (37) Os últimos defensores atuais da tese do militarismo de 1868, mesmo sem o dizerem, muito se inspiraram nas Reminiscências, do Visconde de Taunay, publicadas depois da república e reeditadas ultimamente pela Companhia Melhoramentos de São Paulo. É preciso notar, porém, que o fino romancista da Inocência e brilhante cronista militar da Retirada da Laguna, não se revela nas Reminiscências um historiador, com as qualidades de análise sempre indispensáveis ao exercício eficaz desta função. No seu livro, o que se nota, sobretudo, é a perene mágoa que lhe causou o golpe de 15 de Novembro, pelo caráter de injustiça que nele descobriu o seu grande afeto pelo velho imperador. Ali falaram mais os sentimentos afetivos do que a pesquisa histórica. Aliás, Taunay, gentilhomem da corte e antigo membro do estado -maior do Marechal Conde d‟Eu, não esconde as suas preferências pelo poder pessoal, como verdadeira e indefectível expressão do Estado, exagerando, naturalmente, 165 por essa velha tendência do seu espírito, a ação direta de Pedro II sobre os negócios do seu tempo. Os fatos, confuso s e mal relacionados, são ali apresentados muito mais como o autor desejaria que eles fossem do que realmente como se deram. (38) O Clube da Reforma foi o centro no qual se congregaram os vultos maiores do Partido Liberal, após a crise ministerial de 1868 . Dali partiu o jornal A Reforma no qual escreveram Zacarias, Nabuco, Paranaguá e quase todos eles. (39) Zacarias de Góis, nas Questões Políticas, cap. I, chega mesmo a dizer que o ministério de Itaboraí, como o que se lhe seguiu do Marquês de São Vicente, tinha o encargo de resolver de alguma forma o problema do elemento servil. (40) O fato de Paranhos, que tão mal tratado foi pelos progressistas à volta da sua primeira missão no Prata, ter sido encarregado de representar novamente o governo imperial no final da longa questão que começou no Uruguai, com a revolta de Florez e terminou no Paraguai, com a morte de Solano Lopez, também é lembrado como uma prova do poder pessoal de Pedro II. Dizem os que sustentam a tese desse poder no segundo reinado, que o imperador quis daquela forma reparar a injustiça praticada pelo gabinete Furtado em 1865. É preciso não esquecer, porém, que Pedro II jamais dispôs das comissões oficiais para distribui -las como vantagens ou favores individuais a quem quer que fosse, como h oje se dá com os presidentes da República. Rio Branco voltou ao Prata devido à excelência do seu trabalho na primeira missão, depois publicamente reconhecida, combinada com a circunstância de encontrar -se o seu partido no poder ao fim da guerra. Foi um caso de interesse político geral, e não um incidente de conveniência individual ou de amabilidade pessoal do chefe de Estado. (41) Vide Questões Políticas, já cit., cap. I. (42) O Ocaso do Império, pág. 18. (43) Conferência proferida perante o Instituto Hi stórico e Geográfico de São Paulo, a 6 de setembro de 1928, publicada em dois ou três números seguidos do Estado de São Paulo daquela época, e reproduzida em parte na revista A Defesa Nacional, do Rio de Janeiro, nº 178, do mês de outubro. 166 CAPÍTULO VIII A ABOLIÇÃO No estudo que aqui vamos conduzindo, o que principalmente nos interessa é o sentido geral dos acontecimentos, tomados no seu conjunto, segundo as épocas, e não as considerações de detalhe, que mais particularmente se liguem a um certo fato ou a uma pessoa determinada. Se nos demoramos um pouco mais na crise ministerial de 1868, ensaiando ao mesmo tempo uma restauração do perfil histórico de Zacarias de Góis, foi por uma necessidade de exatidão, à qual imediatamente veio prender-se um natural e espontâneo sentimento de justiça. Era um esforço indispensável, a não termos de aceitar como um enigma abstruso e desgracioso, também por nossa vez, um dos trechos mais interessantes da nossa história política. Mas, trazendo à sua justa evidência a ação inicial de Zacarias de Góis no movimento emancipador, não foi nossa intenção separas os homens públicos do segundo reinado em abolicionistas e escravocratas, como se os atribuíssemos, respectivamente e sem remédio, aos dois princípios opostos e absolutos do bem e do mal. Praticamente seria ocioso, sem oferecer o mínimo interesse de ordem moral. O que nos importa conhecer no seu conjunto, é a forma pela qual a sociedade brasileira se comportou em face do problema do cativeiro, e as conseqüências que daí vieram a nossa evolução política geral. 167 Não deixa de impressionar a quem por alto examina a história dos povos americanos, a circunstância do brasileiro ter sido o último a banir do seu território a imensa tristeza da escravidão. Entretanto, se aqueles que por tal atraso ainda nos condenam, observarem que o Brasil não herdou, do velho regime colonial do trabalho, nem o feroz preconceito de raças dos Estados Unidos, nem o sistema de castas que ainda hoje aflige em grande parte a vida hispano-americana, talvez não encontrem grandes dificuldades em rever a tal respeito as suas idéias. O nosso processo foi certamente o que melhor se adaptava às nossas condições sociais, se não lhe bastar o evidente caráter de ter sido o mais racional e o mais humano. Seria preciso saber, antes de mais nada, se ao Brasil teria sido possível imitar as nações do continente, que fizeram da abolição uma subseqüência mais ou menos imediata da independência política. Com a calma e a isenção de ânimo que só o tempo sabe trazer aos juízos humanos, seria necessário estabelecer isto com exatidão, para vermos depois se realmente poderíamos haver conseguido uma emancipação anterior, ou mesmo contemporânea, da dos Estados Unidos. Em relação ao grave e doloroso problema da escravidão, os povos do Novo Mundo, ao se separarem das metrópoles respectivas, viram-se, pela própria força das suas condições sociais e econômicas, colocadas em dois grupos distintos e bem caracterizados. De um lado estavamos países como a Colômbia, a Venezuela, o Peru ou as províncias argentinas, que, sem trabalho agrícola solidamente organizado e ainda incipientes nos seus aspectos econômicos, não encontraram dificuldade em libertar o número de escravos relativamente 168 reduzido que possuíam. Não havia grandes e profundos interesses materiais, a se oporem a essa obra de dignificação nacional, de maneira que a abolição do cativeiro pôde, nesses países, decorrer da própria noção da liberdade civil, obtida com a independência do território. De outro lado, porém, estavam as nações que, sobre a base de uma numerosa mão-deobra escrava, já haviam na independência atingido um considerável desenvolvimento agrícola e comercial, como era o caso do Brasil e dos Estados Unidos. É fácil de compreender que os mesmos motivos de ordem econômica que facilitaram a abolição nos países do primeiro grupo, dela fizessem, nos do segundo, uma questão espinhosa e extremamente irritante. Aí a extinção imediata do cativeiro ameaçava de frente os interesses locais mais poderosos e bem organizados. Nos Estados Unidos, entretanto, encontraram-se certas condições de natureza geográfica e, principalmente, geológica, que não só foram desde o início colocando aquela questão em termos mais vantajosos, como depois lhe trouxeram uma rápida e violenta solução definitiva, como vamos ver. Enquanto os estados do Sul, magnificamente dispostos para as culturas tropicais e com toda a sua riqueza nas grandes plantações servidas pelo trabalho dos negros, tornavam -se o centro mais forte e irredutível do escravismo, nos estados do Norte, de clima diverso e mais propício às culturas européias, a influência de colonos livres foi assentando a economia geral sobre interesses mais humanos e elevados. As considerações morais – apesar de não excluírem a hostilidade étnica – aí prevaleceram. O resultado destas predisposições do Norte foi que, em 1817, já existiam oito Estados onde, ou a escravidão 169 havia sido de todo extinta, ou os mais sérios embaraços e restrições lhe haviam sido criados. Assim deviam manter-se as coisas até 1861. Mas, nesse meio tempo, o aparecimento de grandes jazidas de ferro e carvão de pedra no território da União, justo quando no mundo se revelava a grande metalurgia moderna, determinou a formação de um poderoso concurso de interesses industriais, que, por sua própria natureza, tinham de entrar em luta com o velho regime de trabalho das plantações. Ninguém que se tenha, mesmo ligeiramente, ocupado com assuntos de História e Sociologia, ignora a profunda e poderosa influência que ao acidentes geológicos, de grandes conseqüências industriais, sempre tiveram na evolução das sociedades humanas. Descoberta a utilização em grande escala de um determinado minério, está mudado o cenário do mudo em favor dos povos que o possuem. As minas de cobre da Espanha, unidas às minas de estanho das Ilhas Britânicas e dos montes da Bohemia, fizeram da Europa, dez séculos antes da nossa primeira era histórica, um vasto império do bronze, sob essas luguras, cujos perfis já nem nos recorda a arqueologia, mas cuja língua ainda hoje falamos, na nomenclatura dos rios, das florestas e das montanhas, entre as costas portuguesas do Atlântico e o Vale do Danúbio. O caldeamento do ferro deu depois aos celtas, com a primitiva posse das minas de Styria, da Carniola e da Coríntia, o domínio completo de toda a metade ocidental do mundo antigo. “Regiões pobres até então, e de importância secundária, populações conservadas obscuras, tomaram subitamente a preponderância, pelo simples fato de possuírem o ferro.”(44) Reconhecida essa constante influência da composição geológica do solo sobre os aspectos sociais dos povos, não os 170 admiremos de que simples condições mineralógicas tenham podido, nos Estados Unidos, decidir mais cedo da sorte do cativeiro. No momento em que a combinação da hulha com o minério de ferro nos altos fornos, logo seguida da máquina a vapor, vinha tão poderosamente transformar a economia do mundo, os norte-americanos não podiam fugir à necessidade de adaptar o seu regime geral do trabalho ás maravilhosas condições técnico-industriais que as suas minas lhe ofereciam. A mão-de-obra escrava, limitada à sua evolução puramente vegetativa pela abolição do tráfico transoceânico, podia bastar aos plantadores do Sul. Mas não poderia ser jamais suficiente aos industriais do Norte. Estes anteviam a imensa prosperidade que brotaria daquele solo maravilhosamente dotado, ao contato de uma poderosa corrente de trabalhadores europeus. Não há porém como assegurar uma numerosa imigração livre par um país em cujos limites ainda existe a escravidão, ou mesmo coisa que com ela se pareça. Os hábitos e as atitudes do senhor dos escravos tornam o próprio ambiente ultrajante. Foi necessário portanto limpar a América ime diatamente do cativeiro, formando-se assim o irresistível concurso de interesses industriais, no qual a política abolicionista do presidente Abrahão Lincoln pôde encontrar apoio moral e recursos militares, para vencer o egoísmo rotineiro e desumano dos “Cotton Staes”. Foram essas condições naturais e econômicas, a reagirem poderosamente sobre o meio social americano, que determinaram a guerra de secessão e abolição precipitada e total dos escravos nos Estados Unidos. No Brasil, entretanto, nada disto se verificou. De um extremo ao outro do nosso território, com exceção apenas das 171 regiões pastoris que não careciam de mão-de-obra, predominou o regime econômico da Virgínia ou da Geórgia, inteiramente baseado na exploração do braço escravo. Nenhum interesse material considerável pôde ser oposto às conveniências dos barões fazendeiros e senhores de engenho, que eram os reguladores de fato da nossa economia geral. Se o governo do Rio de Janeiro tem pretendido imitar a política decidida e enérgica do presidente Lincoln, os dias do império estariam talvez contados, com todas as desastrosas conseqüências para a unidade nacional, que então atribuíamos a essa eventualidade. Não dizemos que o escravismo houvesse aqui triunfado em definitivo e de uma maneira completa. O sentimento popular, profundamente liberal e abolicionista, como já vimos, o não teria afinal permitido. Mas, sem a forte base de reação que o presidente americano encontrou na grande metalurgia da sua terra, o nosso governo central não teria tido elementos para manter-se, e muito menos para restabelecer a unidade nacional, quebrada pela guerra civil. A nossa secessão, muito mais numerosa pela dispersão dos núcleos populosos, teria talvez sido irremediável. A questão do elemento servil teve, portanto, de entrar para o programa geral de preparação política, que foi a missão histórica do segundo reinado. Sem podermos acabar imediatamente com a escravidão, tratamos de acabar com os escravocratas. A ação do gabinete Zacarias de Góis não chegou, é certo, ao seu fim procurado; mas tornou -se o início de um movimento geral de opinião, tão claro, livre e consciente nas suas manifestações, como igual não se conhece na história de nenhum dos outros povos americanos. Foi uma verdadeira campanha de humanidade. Na imprensa, no 172 parlamento, na praça pública, nos clubes políticos, nas igrejas, nas escolas, no seio das famílias, por toda parte, abriu-se uma propaganda devotada e tenaz, na qual se pedia aos senhores de escravos, em nome dos altos interesses morais da nação, que se resignassem apenas ao abandono imediato dos seus direitos legais sobre os cativos. naturalmente, a esta corrente, estabeleceu-se logo, como era inevitável, a oposição correspondente. Mas, se esta oposição, pelas suas origens, representava o interesse prático e material dos proprietários rurais, nos meios políticos e parlamentares ela jamais foi aceita no mesmo terreno. Aí, tratou-se apenas de uma questão de ordem pública e segurança do império. Foi uma preocupação moral, como o não pode deixar de ser o patriotismo, que regulou portanto todas as atitudes dos nossos parlamentares e homens de governo. O fato da câmara eleita pela reação de 1868, ter sido a mesma a votar a lei do ventre livre, em 1871, mostra bem o terreno no qual os nossos políticos souberam, desde o princípio, colocar o problema do elemento servil. Resistir ou ceder à corrente emancipadora, ficou sendo para eles um caso de simples oportunidade, pois, no fundo, todos eles estavam certos da absoluta necessidade moral da abolição. Entretanto, a adoção da grande reforma Rio Branco veio dar a muitos, tanto conservadores como liberais moderados, a ilusão de que a política estava quites com o abolicionismo. Desde que o contingente de escravos existente não podia mais ser reformado pelos nascimentos, o tempo se encarregaria do resto... Efetivamente, entre 1872 e os últimos dias de 1877, a nossa política geral parece dominada pela preocupação de 173 evitar qualquer reabertura de discussão em torno às idéias liberais. O advento de um governo presidido pelo Duque de Caxias, em 1875, poderia ser mesmo tomado como o sinal evidente de uma deliberação em tal sentido, pois teve como destino marcar um largo tempo de parada ou de repouso no nosso avanço para a democracia. Não se deve porém dar uma exagerada importância àquelas auras de reação. Os círculos do Conselho de Estado sentiam muito bem a poderosa evolução que continuava a processar-se nas camadas profundas da nacionalidade. O próprio Caxias, declarando no discurso de apresentação do gabinete, no dia 25 de junho, que vinha para ser “moderado e justo, observando religiosamente as leis e resolvendo as questões internas com ânimo desprevenido”, logo voltou as suas vistas para as leis eleitorais, de que já se ocupava o governo anterior, procurando assegurar na representação das minorias, um contato mais fiel e constante do governo com as diferentes faces da opinião. O que se dava realmente, era que o nosso país não se tinha ainda adaptado perfeitamente às novas condições gerais, surgidas ao fim da campanha do Paraguai. Para que o governo imperial pudesse guardar a conveniente autoridade nas negociações internacionais daquele momento, era-lhe indispensável uma grande liberdade na política interna. Desde, porém, que os negócios decorrentes da guerra foram convenientemente regulados, sobretudo pela substituição do tratado de paz argentino-paraguaio por outras disposições mais de acordo com as nossas vistas, a missão do gabinete Caxias estava virtualmente terminada. Tendo ainda encerrado a luta religiosa da questão dos bispos, pela concessão da anistia aos prelados nela implicados, e reorganizado sobre novas bases a 174 força militar do império, o governo conservador retirava-se nos primeiros dias de janeiro de 1878, para dar lugar ao gabinete liberal do visconde de Sinimbu. Se o leitor tem observado com atenção, terá visto que o nosso regime eleitoral da monarquia adaptou-se tão bem às condições gerais do país que chegou a fornecer sempre um exato denominador comum das nossas várias correntes de opinião. O processo indireto da eleição de dois graus, apoiado inicialmente no alistamento selecionado, constituía um tríplice sistema de comportas, através do qual o sentimento nacional atingia o parlamento e o governo, no seu mais justo e perfeito equilíbrio. Em absoluto, não se poderia dizer que aquele fosse o ideal, pois não admitindo o embate universal e simultâneo de todas as opiniões, no plano imediato e precipitado da eleição direta, naturalmente atenuava esse caráter de grande comício popular, que devem ter sempre os pleitos eleitorais. Mas não se pode negar que ele tenha sido extremamente hábil, pois, se, de certa forma, funcionava como aparelho de contenção, também as modificações que lhe foram sendo introduzidas, poderiam ser marcadas pelas diferentes etapas do nosso progresso social. Fornecendo parlamentos que irredutivelmente se opuseram aos governos ditatoriais do primeiro reinado e da Regência, ele, no segundo reinado, conseguiu rigorosamente condicionar, tanto a revolução liberal como a reação conservadora, à estrita e constante manutenção da ordem material. É claro que uma instituição, por mais evolutiva que seja, pode sempre chegar a um momento em que não corresponda mais às necessidades do espírito público. A partir da crise ministerial de 1868 e das eleições que lhe seguiram, 175 tornou-se evidente que o processo eleitoral já não tinha condições para estabelecer o justo equilíbrio entre os meios dirigentes e os impulsos da opinião geral. A câmara de 1871, ao votar a lei do ventre livre, era francamente forçada a perder o contato com o eleitorado que a nomeou, para atender diretamente à grande voz popular que se levantava muit o além do estreito quadro do alistamento. Foi certamente uma grande felicidade que se encontrasse o gênio político do Visconde do Rio Branco, para conduzi-la àquele resultado. Mas não seria possível acreditar na repetição indefinida de tais soluções. O fato do parlamento, encerrado em outubro de 1877, só poder reabrir-se em dezembro de 1878, após uma preventiva dissolução da câmara dos deputados no mês de abril, mostra vem as dificuldades que se vinham acumulando e as perigosas circunstâncias a que o país poderia ser levado, se não se atendesse rapidamente àquela situação. Foram estas considerações que determinaram o programa do gabinete Sinimbu. Era indispensável quebrar a espécie de separação estanque em que o sistema eleitoral se constituíra entre a nação e o seu governo. Em torno deste programa fizeram-se as eleições de 1878, e ao abrir-se o parlamento, no dia 15 de dezembro, a fala do trono acentuava com exatidão: “Reconhecida a necessidade de substituir o sistema vigente pela eleição direta, cumpre que, mediante reforma constitucional, a decreteis, a fim de que o concurso de cidadãos devidamente habilitados a exercer tão importante direito, contribua eficazmente para a realidade do sistema representativo”. Cinco dias depois, o Visconde de Sinimbu, falando aos deputados, mais diretamente, vinha dizer-lhes: “Creio não haver neste país quem desconheça que, nas 176 circunstâncias atuais, com as provas repetidas que temos tido, as nossas instituições não podem marchar com segurança para um futuro tranqüilizador, se não conseguirmos efetuar a reforma eleitoral pelo sistema de eleição direta.” Aquela câmara havia tacitamente recebido um mandato especial para aquele fim. Apesar da sua composição restrita e selecionada, o eleitorado, fundamente trabalhado desde 1869 pelapropaganda radical, não pudera fugir ao sentimento geral do país. A pressão da grande opinião popular fora tão forte, que a separação estanque a que nos referimos tornara-se permeável. Mas quando a reforma eleitoral, votada pela câmara chegou ao senado, no início de 1880, aí ainda a esperava a reação conservadora. O Visconde de Sinimbu não se julgou com forças para vencer a resistência dos senadores. No próprio interesse da reforma, a retirada do gabinete lhe pareceu indispensável, nada podendo melhor dizer dos seus sentimentos naquele instante, do que a carta que então dirigiu ao conselheiro José Antonio Saraiva, chamando-o a substitui-lo no governo. Esta carta, que Saraiva recebeu na Bahia, onde se achava, no dia 4 de março, dizia assim: “Sua Majestade, no pensamento de evitar, quanto se possa, repetidas eleições, honrando a V. Exa. com a mais plena confiança, encarrega-me de me dirigir a V. Exa. para consultálo se pode V. Exa., nas atuais circunstâncias, prestar um grande serviço ao país, assumindo a direção dos negócios públicos, com o intuito de obter do senado o projeto de reforma, com as bases com que foi adotado pela camada dos srs. deputados, poupando-se a dissolução desta. 177 “V. Exa. sem dúvida terá lido o último discurso que sobre a reforma proferi no senado; aí fiz novas concessões, Tais foram: a maioridade civil para gozo dos direitos políticos e capacidade dos católicos. “O novo projeto poderá conter essas concessões e assim se tornará talvez mais aceitável, opiniões estas que creio serem também as de V. Exa”. Note-se que a oposição do senado, à primeira vista, não se dirigia especialmente contra o sistema de eleição direta. O que aparentemente repugnava aos senadores era a feição de reforma constitucional que o projeto da primeira câmara trazia, envolvendo questões de liberdade religiosa e de consciência. Era esse o ponto no qual eles resistiam, tendo arrancado a Sinimbu aquela concessão da “capacidade dos católicos”, que significava apenas só poderem ser votados os cidadãos adeptos da religião oficial. Mas no fundo, todos sentiam muito bem que era uma transformação completa do país o que estava em jogo naquele momento, compreendendo todas as antigas aspirações do liberalismo histórico e as idéias do período governamental de Zacarias de Góis, tudo junto, como depois se consolidara no programa dos radicais. Bastara abrir uma brecha, e a corrente se precipitaria. Quando Saraiva percebeu o governo nas mãos de Sinimbu, os mais alarmados não se privaram de lhe abrir bem os olhos sobre aquele temeroso aspecto do conjunto. Era a revolução!... Mas o novo presidente do conselho muito vem o sabia. Era precisamente por sabê-lo que ele ali vinha procurar um terreno de conciliação – pois muito mais sensato era avançar para ela legalmente, do que se deixar por ela surpreender. 178 Mesmo de um rápido exame da atividade política brasileira, desenvolvida de janeiro de 1878 a junho de 1881, logo se percebe que a grande preocupação dos gabinetes Sinimbu e Saraiva consistiu toda em evitar que a vaga democrática, resultante com temos visto da nossa própria evolução histórica, pudesse chegar ao seu instante final de deflagração sem encontrar no nosso aparelho político e constitucional os meios de pacificamente canalizar-se para o terreno das soluções legais. Quando Sinimbu iniciou em 1878 o seu esforço nesse sentido, o anseio pelas reformas decisivas aumentava cada vez mais na consciência coletiva, sem entretanto poder, pelos motivos já examinados, ecoar com força no seio do parlamento. Dado porém o caráter da reação democrática da seguinte eleição legislativa, em 1879 a situação já era outra. Apenas aberta a discussão sobre a reforma eleitoral, logo na câmara se manifesta, com Saldanha Marinho, Joaquim Nabuco, José Mariano, Rui Barbosa, Jerônimo Sodré, João Brígido, uma extrema esquerda democrática, tão ativa e inpetuosa como aquela de 1861 a 1867, em que figuravam Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano e Silveira Lobo, mas certamente muito mais segura nos seus propósitos, pela coordenante intervenção anterior do radicalismo. Primeiro, é a sonora e grande voz de Joaquim Nabuco, a exigir, em nome da própria lógica dos princípios, que a reforma não se restrinja apenas ao processo eleitoral, mas seja a reforma constitucional completa, capaz de cobrir todas as velhas aspirações do liberalismo histórico. Logo em seguida vem o representante baiano Jerônimo Sodré a recordar que, sem compreender a abolição total do elemento servil, nenhum programa de governo liberal podia ser legítimo nem 179 sincero. O gabinete Saraiva consegue afinal, em janeiro de 1881, fazer promulgar a lei do novo processo eleitoral, que conciliando as vistas do senado com os da câmara, evitava a reforma constitucional. Mas a situação parlamentar tinha -selhe tornado extremamente difícil. Joaquim Nabuco, com os veementes aplausos de toda a esquerda liberal, respondera à iniciativa de Jerônimo Sodré. A campanha pela abolição total imediata, que de 1871 até ali andara apenas na grande alma do povo, viera colocar-se enfim dentro do parlamento, imediatamente em face do governo. Saraiva, embaraçado na execução da lei eleitoral, obtém o adiamento da assembléia geral para 15 de agosto. Mas o simples adiamento era, como solução, muito precário. A necessidade de evitar que aquela câmara voltasse a reunir-se foi-se tornando patente,. No dia 30 de julho, o adiamento era revogado, para dar lugar ao decreto final de dissolução. É claro que o conselheiro José Antônio Saraiva, em princípio, não podia ser contrário à abolição. Mas ele via claramente que o momento de obtê-la, sem profundos abalos para a nação, não chegara ainda. A maioria da câmara não escondia a sua impaciência ante os intrépidos e eloqüentes apelos de Joaquim Nabuco. No senado não era certamente mais propícia a atmosfera. Era preciso esperar. Era indispensável dar à reforma eleitoral o tempo de produzir os seus efeitos, trazendo grande opinião popular, em maioria, ao seio do parlamento. O único resultado da iniciativa Sodré Nabuco, que ao governo liberal se afigurava, era o de acordar, sem resultado prático provável, a desordenada e perigosa exaltação das ruas. 180 O decreto de dissolução de 30 de junho, convocava a nova câmara, em sessão extraordinária, para o dia 31 de dezembro. A lei Saraiva, a exemplo do que se dera com a reforma eleitoral de Honório Hermeto, na sua primeira aplicação não operou imediatamente no sentido que lhe quiseram dar os seus promotores. Graças ao intenso esforço desenvolvido por aqueles que, no problema da abolição, pretendiam deter-se indefinidamente na lei do ventre livre, a eleição de 1881 deu em resultado uma câmara cujo espírito de moderação excedia a todas as previsões. Nela, quase não se via mais nem um só daqueles que na legislatura anterior formavam na extrema esquerda, O conselheiro Saraiva, fosse pela surpresa daquele resultado, fosse porque considerasse, como o disse, encerrada a sua missão, não tardou então em demitir -se. No dia 21 de janeiro subia ao poder o gabinete Martinho Campos. Martinho Campos era um destes gênios de ecletismo, em cuja dialética os princípios só aparecem para imediatamente se equilibrarem numa displicente e elegante comodidade pessoal. Sem deixar jamais perceber com muita clareza qual era realmente o seu partido, ele entretanto sabia muito bem se definir, quando se tratava de um destes interesses predominantes, sobre os quais era evidente a opinião do maior eleitorado. Aceitando em grande número os pontos de vista do partido liberal, em relação ao problema do elemento servil, não punha dúvidas em proclamar-se “um escravocrata da gema...” Não se poderia dizer que fosse um simples oportunista, pois mais ou menos sempre esteve em oposição. Era sobretudo um observador para gozo próprio, a 181 quem uma boa dose de ceticismo conferia uma grande liberdade de crítica e comentário. Tudo parecia indicar que não fosse possível encontrar homem mais bem talhado a governar com aquela câmara. O seu discurso de apresentação do gabinete, cuidadosamente escoimado de pontos de vista extremos, é uma maravilha de tato. Dir-se-ia não existir no Brasil daquele instante coisa alguma de monta a dividir as opiniões, Tudo ia pelo melhor, no melhor dos mundos possível, teria obtemperado o dr. Pangloss, se ali estivesse, Os costumes políticos eram quase perfeitos. A ética geral fizera os mais assinalados progressos e nada poderia perturbar seriamente o desenvolvimento de um grande surto de boa vontade entre os homens. Só a imprensa, com uma inexplicável virulência, desmandava-se ainda em demonstrações de impaciência. Mas mesmo a esta, ele ali estava para, revestido de toda tolerância, aceitar-lhe “as injúrias, os insultos, as críticas as mais amargas, como um auxílio à administração”. O governo cuidaria da situação financeira, que muito mal andava com tanto papel -moeda. Era necessário equilibrar o orçamento do império, promovendo ao mesmo tempo a redução lenta e cautelosa do meio circulante. No mais, o novo gabinete não tinha programa, pois tudo lhe parecia estar direito e na ordem desejável. Nesse verdadeiro cântico de otimismo, a incurável ironia do presidente do conselho, porém, transparecia. Ela chegava mesmo a raiar, em certos pontos, por uma involuntária e sorridente crueldade. Naquela câmara liberal havia um grande número de conservadores. Isto era indispensável à própria dignidade do parlamento e, depois, não importava, porque: “Hoje é que se pode dizer como o finado 182 Visconde de Albuquerque (Holanda Cavalcanti) – são duas coisas muito parecidas, um liberal e um conservador – e podia mesmo acrescentar-se, um republicano; porque têm todos os mesmos ares de família...” Sim; no tempo de Holanda Cavalcanti era a suprema preocupação da unidade nacional que amalgamava liberais e conservadores, dentro da política de conciliação. Na maioria que o devia apoiar no parlamento, Martinho Campos também não enxergava distinções partidárias. Via apenas uma coalizão em favor do “status quo”, na questão do elemento servil... Homem de espírito sutil, ele o não afirmava com franqueza, mas todos assim o entendiam. Entretanto, o novo chefe de gabinete, evocando no seu belo discurso os métodos políticos da Inglaterra, para mais uma vez oferecê-los como modelo aos parlamentares brasileiros, talvez não se lembrasse de uma coisa, É que na Inglaterra, como em todas as nações livres e de organização parlamentar, periodicamente os partidos se fragmentam e confundem, na luta em torno a certos grandes problemas, avançando em formidável corpo a corpo até as soluções definitivas, para depois se reorganizarem nitidamente muito mais adiante, numa nova situação geral e inspiradas num novo sistema de idéias.(45) Aquela uniformidade de vistas, que se comprazia em assinalar o orador, só existia ali dentro, graças à cabala eleitoral no último pleito. Lá fora a confusão partidária também se estabelecia mas não era para a defesa do “status quo”. Era precisamente na grande luta por uma transformação radical e profunda. Dos dois lados, o meio naturalmente circunscrito das organizações partidárias, de fragmentava. Os espíritos mais esclarecidos e corajosos delas se afastavam, 183 para momentaneamente se encontrarem todos no irresistível tumulto da grande opinião popular, em porfia da solução definitiva do cativeiro, isto é, em demanda de uma nova situação social, do novo e próximo período da nossa evolução histórica, que imediatamente se anunciava e não poderia mais tardar. Daqui por diante, não vale mais à pena nos determos nos incidentes que particularmente determinaram as posteriores mudanças de gabinete. A extinção total do elemento servil, era, mesmo sem que dela se falasse, a grande questão que condicionava todas as manifestações da nossa existência política. Os círculos parlamentares resultantes da eleição de 1881, apesar da sua tácita deliberação de ignorar a campanha abolicionista, não podiam fugir à pressão exterior da opinião geral. Pesava sobre eles uma atmosfera de indizível inquietação, senão de vago e inafastável remorso. O cauteloso ministério Martinho Campos não chegou a durar seis meses. No dia 3 de julho vinha ao poder um novo gabinete, trazendo na presidência o Visconde de Paranaguá, um dos antigos ministros do governo Zacarias de Góis, que no seu discurso de apresentação imediatamente abordava o problema da abolição para dizer: “O ministério favorecerá, sem quebra do respeito à propriedade, a evolução que se opera no trabalho escravo para o trabalho livre, evolução que se pode conseguir naturalm ente, pela melhor execução da sábia lei de 28 de setembro”. O ministro preconizava para tal fim a elevação do fundo de emancipação, o imposto sobre transmissão na venda de escravos e a proibição desse comércio entre as províncias. Era um programa de extrema moderação, que, partindo de um 184 liberal da escola de Zacarias, só servia para indicar as dificuldades da situação. No dia 14 de maio de 1883, um requerimento do deputado José Mariano, sobre as coisas da administração nas províncias, determinava a retirada do ministério Paranaguá. Foi então chamado ao governo o senador Lafayete Rodrigues Pereira. Lafayete Pereira era um radical, que chegara a firmar o manifesto republicano de 1870, tendo depois reconsiderado aquela sua decisão, sem dúvida movido pela ulterior inconseqüência das atitudes qu foi tomando o partido fundado naquele documento. A sua chamada ao poder, aproximando a administração dos princípios do radicalismo naquele momento, procurava naturalmente oferecer uma satisfação |às correntes populares. Mas o novo presidente do conselho não se fez ilusões sobre as inúmeras dificuldades que o esperavam. Em face da câmara que na visível inquietação com que aguardava o seu programa, mostrava bem os sentimentos antagônicos que nela se defrontavam, ele foi logo declarando: “Senhores, um programa não é uma invenção, uma criação arbitrária do espírito humano; um programa é um complexo de idéias que corresponde à realidade da situação do país em um momento dado.” Acalmando os impacientes, o ministro procurava desarmar os prevenidos. Ele falava na imperiosa necessidade de prestar atenção às coisas imediatas da administração financeira, sem o que não existe crédito público nem ordem nos negócios do Estado. O seu discurso é quase uma lição de direito administrativo. É em nome do interesse da boa administração que se reporta às idéias do radicalismo, advogando o alargamento da autonomia das províncias e apontando como necessárias diversas outras reformas na 185 legislação existente. Mas, se em tudo aquilo a sua dialética de grande jurista e professor de Direito podia ir-se desenvolvendo com cera segurança, ao abordar o problema fatal do elemento servil, ela suspende-se logo numa angustiosa interrogação: o não será possível adotar alguma medida no sentido de auxiliar, de facilitar a ação da lei de 28 de setembro?... Ali estava, evidentemente, um governo de simples contemporização. O gabinete que se lhe seguiu, em 6 de junho de 1884, presidido pe3lo conselheiro Souza Dantas, procurou com notável energia responder pela afirmativo àquela interrogação. Colocado em face da câmara, Souza Dantas foi logo declarando: “Chegamos a uma quadra em que o governo carece intervir com a maior seriedade na solução progressiva deste problema, trazendo-o francamente para o seio do parlamento, a quem compete dirigir-se a solução. Neste assunto nem retroceder, nem parar, nem precipitar.” O ministro pedia que fossem postas em prática as medidas preconizadas pelo gabinete Paranaguá, ampliadas pela libertação imediata de todos os escravos maiores de ses senta anos. No dia 15 de julho o governo apresentava à câmara o seu projeto complementar da lei de 28 de setembro. O resultado imediato foram duas moções de desconfiança, das quais a mais áspera e peremptória lograva ser votada por uma maioria de sete votos, sobre cento e onze votantes. Mas Souza Dantas viera decidido a lutar. A câmara foi dissolvida, convocando-se uma outra em sessão extraordinária, para o dia 4 de março de 1885. Não há dúvida de que a reforma eleitoral de 1881, como esforço no sentido de melhor adaptar as manifestações das 186 urnas aos sentimentos da grande massa popular, foi muito lenta em seus efeitos. A sua principal virtude consistiu no avanço da eleição de dois graus para o voto direto. Mantendose porém, no alistamento segundo o critério econômico, ela não conseguiu libertar convenientemente o eleitorado da pressão predominante e inevitável dos interesses agrários. A câmara de 1885 era mais ou menos uma reprodução da anterior. Convocada na sessão extraordinária de 4 de março para o fim especial de conhecer do projeto Souza Dantas sobre a abolição, ela, logo no dia 13 de abril, se bipartia em duas votações iguais em face da moção seguinte: “A Câmara dos Deputados, não aceitando o sistema de resolver sem indenização o problema do elemento servil, nega seu apoio a política do gabinete.” Cinqüenta deputados votavam a favor, cinqüenta votaram contra. O presidente do conselho, sabendo muito bem que a opinião pública gera, entre aquela negativa e a afirmação correspondente, não se distribuía na mesma proporção, não quis aceitar o empate como motivo bastante para a retirada do gabinete. Ele ainda esperava obter o número de votos indispensável à passagem do seu projeto. Desde, porém que ele recolocara o debate abolicionista no terreno concreto da ação governamental imediata, a atenção popular no Rio de Janeiro voltara-se toda a câmara dos deputados. As galerias enchiam-se de espectadores cujas manifestações a presidência da assembléia mal podia conter. Ao fim das sessões, a multidão aguardava os deputados à saída da câmara, festejando ruidosamente os que apoiavam o gabinete e com igual veemência significando aos outros a sua reprovação. A tensão de ânimos tornava-se ameaçadora. A 3 de maio, a exaltação 187 popular contra os deputados da oposição ameaça d egenerar em vias de fato. No dia seguinte a câmara reúne-se numa atmosfera quase de pânico, e, por cinqüenta e dois votos contra cinqüenta, adota esta moção: “A camada dos Deputados, convencida de que o ministério não pode garantir a ordem e segurança pública, que é indispensável à resolução do elemento servil, nega-lhe a sua confiança.” À noite, Souza Dantas, já demissionário, respondia, numa imensa manifestação popular, em frente à sua casa: “Caio nos braços do povo!..” Voltou então ao poder o especial preparador de ambientes que era o conselheiro José Antônio Saraiva. Modificando o projeto Sousa Dantas em diversos pontos e ampliando de sessenta para sessenta e cinco anos a idade para a emancipação compulsória, o novo chefe do governo sempre conseguiu o número de votos necessário a fazê-lo aprovar na câmara dos deputados. Mas, convencido de não poder obter no senado idêntico resultado, ele retirava-se logo depois, subindo no dia 20 de agosto um novo gabinete sob a presidência do Barão de Cotegipe. Era um governo conservador... O novo presidente do conselho apresentou-se à câmara quase exclusivamente para significar-lhe que com ela não havia situação governamental possível: “No fim de uma sessão tão trabalhosa como tem sido a atual, pouco por certo podia fazer um governo, mesmo liberal que fosse, e muito menos o partido conservador. Há porém, duas medidas que acredito se poderão conseguir da atual câmara dos srs. deputados, ou antes, uma já está conseguida. Essas duas medidas são o projeto de emancipação gradual dos escravos e a obtenção de meios para constituir o governo em condições regulares de 188 poder governar.” Mas tendo-se-lhe perguntado, em aparte, se aceitava o projeto de emancipação tal como já fora ali aprovado, ele logo se reservou, para responder apen as: “No senado eu direi...” Era uma franca provocação. Seguiu -se um intenso e acalorado debate, que teve o seu epílogo na seguinte moção, aprovada por sessenta e três votos contra quarenta e nove: “A Câmara dos Deputados, ouvindo as explicações do sr. presidente do Conselho, nega ao ministério de 2 de agosto a sua confiança, e passa à ordem do dia.” O Barão de Cotegipe não procurava outra coisa. Convencido de que o Partido Liberal não tinha condições para legalmente precipitar o fim do cativeiro, ele aceita ra o poder no firme propósito de criar uma forte situação conservadora, que resistindo à exaltação das ruas, energicamente se opusesse a qualquer solução revolucionária, em desacordo com o processo lento e gradual instituído na lei Rio Branco. Aquela moção dava-lhe o pretexto para dissolver a câmara e procurar em novas eleições um parlamento que eficazmente o secundasse em tal propósito. Na aparência, e de acordo com os velhos aspectos da nossa vida partidária, o presidente do Conselho não deixou de levar a melhor no início deste seu programa. Tendo, com a aprovação do senado, convertido o projeto Dantas-Saraiva na lei de 28 de setembro de 1885, na reabertura da assembléia geral em 3 de maio do ano seguinte, ele encontrava-se em face de uma câmara aupiciosamente correligionária, a qual comunicava as suas últimas vistas sobre o elemento servil, neste confiante e tranqüilo trecho da fala do trono: “A lei de 28 de setembro de 1885 vai sendo fiel e lealmente executada. Com ela prende-se a questão da introdução de imigrantes, aos quais dever-se-ão proporcionar 189 meios de empregarem-se como pequenos proprietários do solo, ou como trabalhadores agrícolas. Para este fim, é indispensável a revisão do decreto de 15 de março de 1879 sobre locação de serviços e da lei de terras de 18 de setembro de 1850.” A abolição era portanto um caso tão irrevogavelmente liquidado no tempo, que, à medida que fossem operando os dispositivos daquela lei final e definitiva, ela já se transformava na simples e gradual substituído da mão-de-obra escrava pelo novo regime do braço imigratório... Mas, apesar de toda a sua habitual sagacidade, o estadista conservador enganava-se profundamente. Pouco importava que ele pudesse ver correligionários, homens do partido conservador, na maioria dos deputados. Naquele momento, a opinião pública do Brasil, em qualquer das suas esferas, não se dividia mais em liberais e conservadores, segundo os antigos limites doutrinários do dois partidos. O que se tratava de saber, era apenas se era-se pela abolição imediata, ou se ainda se pretendia a manutenção do cativeiro sobre aquela última geração de escravos. Era esta a linha real de separação, porque tudo mais fora afastado como assunto de cogitação ulterior. A agitação abolicionista, vencendo todas as resistências do interesse privado, havia avançado dos meios propriamente populares para os círculos eleitorais, vindo afinal manifestar-se irresistível na maioria do parlamento. Na terceira eleição procedida segundo a lei Saraiva quebraram -se as últimas barreiras. A câmara na qual o Barão de Cotegipe contava apoiar-se para ter a questão abolicionista como encerrada na lei do ventre livre, foi a mesma que aprovou, por oitenta e três votos contra nove, a grande lei de 13 de maio de 1888, concebida neste texto rápido e peremptório: 190 “Art. 1º - É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil.” “Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.” Se este capítulo tem sido bem raciocinado, certamente teremos visto que a extinção do cativeiro foi no Brasil u m produto da vontade coletiva. Foi um destes movimentos populares, nacionais, tão profundos e generalizados, que a ação individual neles inteiramente desaparece como decisão, para não ser mais que obediência. Posteriormente à lei de 13 de maio, têm-se feito várias tentativas para saber a quem reverte a maior glória daquele fato. Uni cuique suum.(46) O padre Rafael Galanti, estabelecendo esta indagação no Tomo V, pág. 30, da sua correta e conscienciosa História do Brasil,(47) cita Joaquim Nabuco, para quem a coroa de louros da abolição deve ser atribuída a uma plêiade de homens eminentes, cuja figura central é o imperador Pedro II. Naturalmente, seria quase impossível fazer a história dos grandes acontecimentos humanos, sem ver as individualidades que os atravessam em maior destaque. É preciso notar entretanto que o esforço dos políticos e homens de Estado, no nosso fenômeno abolicionista, aparece constantemente subor dinado a uma individualidade maior, que é o país, o povo brasileiro, a consciência nacional do Brasil. É esta individualidade oculta, mais onipresente, que a todos eles impele e precipita. A ação dos meios políticos, propriamente ditos. consistiu muito mais em compensar o grande movimento popular, dando-lhe feição mais calma, do que mesmo em secundá-lo. No período que vai dos últimos meses de 1866 a 191 julho de 1868, o governo imperial, sujeito às circunstâncias que já examinamos, esteve a dois passos de se ver arrastado à abolição imediata. Mudada, porém, a situação governamental e reduzidas as aspirações do momento à lei do ventre livre, a preocupação das classes dirigentes assentou toda em guardar aquela medida como suficientemente resolutiva. Mas, naquele instante, a determinação coletiva ganhara um tal volume e uma tão grande velocidade que não era mais possível esperar o transcurso médio de duas gerações, para que o cativeiro atingisse a sua última etapa, segundo as disposições daquela lei. As alforrias voluntárias, iniciadas em favor dos escravos da coroa, no decorrer da guerra do Paraguai, fizeram-se de uso corrente entre os particulares. “A manumissão tornou-se para nós a forma preferida da caridade pública e privada, a inscrição essencial de todo acontecimento feliz, o tributo de saudade aos mortos queridos, a polidez para com o estrangeiro e o hóspede, em uma palavra, o uso nacional por excelência.”(48) No dia 25 de março de 1884, o Ceará declara extinta a escravidão no seu território, sendo, a 10 de julho seguinte, acompanhado pelo Amazonas. No Rio Grande do Sul, no dia 18 de setembro daquele ano, para comemorar o aniversário da rendição de Estigarribia às tropas aliadas em 1865, são alforriados todos os escravos nos municípios de Uruguaiana, São Borja, Viamão e Conceição do Arroio. No dia 16 de outubro, os cidadãos de Pelotas, reunidos numa grande festa pública, libertam de uma só vez cinco mil cativos, e quando, no ano seguinte, o ministro Saraiva faz ampliar de sessenta para sessenta e cinco anos a idade para a emancipação compulsória, brada uma voz no recinto da câmara dos deputados: - Pouco importa o prazo fixado à agonia da 192 escravidão, porque ela decerto não acabará junto à cova do último escravo!...(49) A grande opinião pública, assumindo as suas expressões mais nítidas e claras na palavra de tribunos e jornalistas como Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Joaquim Serra, Lopes Trovão, Bezerra de Menezes, João Clap, Silva Jardim ou Antônio bento, fizera seu esplêndido trabalho. Os escravocratas desapareciam, e com eles a escravidão. mesmo nos centros mais poderosos da grande propriedade agrícola, do Rio Grande do Norte às divisas do Paraná, começaram as numerosas alforrias voluntárias. Em São Paulo, um gentil homem fazendeiro e chefe conservador, o conselheiro Antônio Prado,(50) dando por si o exemplo, convida os seus colegas da lavoura a saírem ao encontro do sentimento geral do país, pela imediata concessão da liberdade aos seus escravos. Nem todos o atenderam. Mas o gesto de Antônio Prado produziu no meio urbano da capital da província uma tão agradável impressão, que um grupo de cidadãos reuniu por cotização o dinheiro necessário à libertação dos últimos escravos existentes na cidade, e, no dia do seu aniversário, a 25 de fevereiro de 1887, foi levar-lhe duzentas e tantas cartas de alforria, como o mais precioso e grato dos presentes de festa. Dessa época em diante, começa nas fazendas e nos engenhos a evasão em massa dos escravos, sem que se encontre mais um único soldado que consinta em opor-se a sua livre passagem pelas estradas. Na fuga, que às vezes assume aspectos verdadeiram ente triunfais, todo mundo os ajuda, ampara e lhes fornece meios de prosseguir, Enfim, “a classe agrícola compreendeu que ficava inútil e sem valia uma propriedade que nem era mais susceptível de posse,(51) e quando a 13 de maio do ano 193 seguinte vem a lei que declara extinta a escravidão no Brasil, ela não traz mais do que a consagração jurídica de uma evidente e indiscutível situação de fato. Agora, se compararmos as duas abolições, a norteamericana e a brasileira, nos seus fundamentos morais e psicológicos, havemos de chegar necessariamente à conclusão de que o Brasil de Pedro II foi muito mais uma democracia, do que os Estados Unidos de 1865. Não seria possível negar todo idealismo a um movimento nacional que produziu essa grande e radiosa flor da sentimentalidade humana, que é A cabana de pai Thomz, de Mrs. Beecher Stowe, e que determinou o generoso e formidável sacrifício de centenas de milhares de vidas. Mas a diferença é evidente e essencial. A extinção do cativeiro nas antigas colônias inglesas, por mais que a sua antecedência sobre a do Brasil pareça dar-lhe a primazia liberal, não deixou de apoiar-se de uma forma decisiva, em interesses tangíveis e imediatos, e de vir imposta pela força das armas. Entre nós ela parte de considerações puramente morais e humanas e atinge o seu termo com a feição altamente democrática de uma esplêndida e universal vitória de opinião. NOTAS (44) Vide Albert Grenier – Les Gaulois, págs. 37, 38 e 42. Ed. Payot, Paris, 1923. (45) O sr. Albert Milhand, no número de 1º d e junho deste ano, do jornal L’Ere Nouvelle, de Paris, tratando das últimas edições inglesas, diz que, na Inglaterra “é-se sempre whig ou tory, mesmo se se muda de etiqueta de tempo em tempo, de século em século. Há uma centena de anos a esquerda, se se ousa exprimir-se assim, deixou no vestiário o nome de whig e chamou-se partido liberal. Era a moda continental, A direita, 194 outra denominação abusiva, pôs de lado a apelação desusada de partido tory e tomou o nome de partido conservador. Por sua vez ela imitava assim certos países europeus. Hoje os novos whigs são os trabalhistas e os neo-torys são os eleitores do sr. Baldwin e de seus amigos”. Parece -nos que o sr. A. Milhand conseguiu dar aí um quadro muito justo dessas transformações pelas quais vão passando os partidos, através da evolução social dos povos. (46) A cada um o que lhe pertence. (47) Edic. Duprat & Cia., São Paulo, 1910. (48) Carta de Joaquim Nabuco ao cardeal secretário de Estado do Vaticano, em 10 de janeiro de 1888, pedindo a intervenção m oral do papa Leão XIII em favor da abolição. Vide O Paíz, do Rio de Janeiro, de 20 de março do mesmo ano. (49) Frase divulgada nos jornais da época e citada pelo R. P. Rafael Galanti. Vide op. cit., Tomo V, pág. 45. (50) Antônio Prado, como ministro da Agricultura dos gabinetes Cotegipe e João Alfredo, teve a felicidade de sucessivamente referendar as duas leis emancipadoras de 28 de setembro de 1885 e de 13 de maio de 1888. (51) Fala do trono do imperador Pedro II, lida na abertura da Assembléia Geral, a 3 de maio de 1889. 195 CAPÍTULO X( * ) O FIM DO SEGUNDO REINADO A abdicação e a partida de Pedro I marcam realmente o instante em que o governo do Brasil perde os seus últimos contatos com a velha corte de Lisboa. Daí por diante o nosso país se organiza segundo o seu espírito próprio, orientando-se exclusivamente nos livres e igualitários sentimentos da sua primeira formação. Sob este aspecto, o Brasil é, completamente e sem a mínima dúvida, um país novo. As fórmulas democráticas e parlamentares, nas quais as idéias da Revolução se vão condensando nos meios mais cultos da Europa, aqui não encontram resistências invencíveis. Enquanto os países de origem castelhana, despedaçados pela guerra civil, só obtêm um pouco de sossego pelo restabelecimento da autoridade absoluta dos antigos vice-reis, em mãos dos seus novos governantes,e as pequenas repúblicas municipais da América do Norte, para viverem unidas, precisam submeter-se ao poder anacrônico e excessivo de um grande monarca eletivo, o Brasil logo se organiza no sistema constitucional representativo de (*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”, distante do objeto da transcrição, sendo por isso suprimido neste trabalho, e consequentemente também suas notas (52 a 60) referentes ao capítulo. 196 forma parlamentar, o único no qual se manifestam eficazmente os princípios fundamentais do moderno direito público. Considerada assim, no conjunto dos seus fatores morais e psicológicos, a história do nosso país apresenta-se como profundamente lógica e bem ordenada. Cada fato aí se manifesta no seu momento exato, quando se tornam patentes todas as suas condições de ambiência e de equilíbrio. Obedecendo a essa constante harmonia da nossa vida social, a idéia abolicionista não se desenvolveu isolada. Ela estava inclusa na nossa orientação política geral, como uma grande função, e o seu triunfo definitivo não podia verificar -se sem que, paralelamente, outras modificações profundas se operassem. É precisamente nessa íntima penetração do abolicionismo na universalidade das preocupações éticas e sociais, que deve ser encontrada a diferença essencial entre a abolição do Brasil e a dos Estados Unidos. Na América do Norte, a extinção do cativeiro nasceu das considerações que o branco pôde fazer sobre o negro, em vista do seu interesse exclusivo. A raça escrava foi o objeto mais ou menos direto do esforço abolicionista, mas dele, tanto que ação política, de maneira alguma participou, visto não haver tido jamais ingresso na massa deliberante. A emancipação não se processou portanto como um interesse comum ao branco e ao negro, dentro da nação, mas como uma medida unilateral, tomada de um só ponto de vista. Apesar de realizada, no momento, com alta e vigorosa decisão, ela não pôde reagir sobre a vida moral e política do país. As suas conseqüências foram apenas de ordem industrial e econômica, por haver quebrado a barreira mental que se opunha à grande imigração européia. Mas, no domínio ético e social, ela nada produziu, pois não determinou a 197 mínima alteração nas idéias anteriores, nem coincidiu com a menor modificação das práticas estabelecidas(61). Os Estados Unidos, na civilização greco-latina, constituem mesmo, a este respeito, um caso unido. É conhecida a profunda influência que as manumissões tiveram na vida social da Antigüidade clássica, sobretudo no grande período que vem dos ultimos dias da república romana à sistematização final do imperador Justiniano. Da Idade Média aos tempos modernos, através da Renascença, a evolução dos métodos políticos, nos países do Sul da Europa, coincidiu com a gradual e completa fusão do grande número de escravos negros, bérberes e tártaros, que aqueles países tiveram, na massa geral das populações. Na fase final dessa longa evolução, bastaram três séculos aos europeus, para completamente absorverem na sua composição étnica e nas suas novas organizações jurídicas, todas as incontáveis levas exóticas, lançadas ao continente pelas guerras religiosas ou pela sua fatal e inseparável companheira, a escravidão. Os Estados Unidos fugiram a essa regra geral dos povos ocidentais. Passado o formidável conflito da secessão, o americano, na sua vida moral e política, ignorou completamente a abolição do cativeiro, deixando-a evoluir, nas suas conseqüências ulteriores, pela constituição da raça liberta em corpo estranho, dentro da nacionalidade. O processo da abolição no Brasil tinha que ser diverso do das antigas colônias inglesas. No eleitorado que elegia o parlamento estavam representados todos os elementos raciais do império. No senado e na câmara aquela perfeita união étnica se reproduzia. Homens de cor, pelo cruzamento de brancos com índios, de brancos com negros, de índios com negros ou pela presença simultânea das três raças num só tipo, 198 eram Zacarias de Góis, o Visconde do Rio Branco, Sales Torres Homem (Visconde de Inhomirim), o senador Francisco Otaviano, o Barão de Cotegipe. Os três ramos da mossa constituição demográfica intimamente se associavam em todas as esferas da atividade social, sentindo as mesmas aspirações, confundindo-se nos mesmos esforços e tendendo conjuntamente para os mesmos objetos de ordem nacional e coletiva. A abolição não poderia portanto processar-se como um violento conflito de interesses, no mundo étnico dos senhores, para só indiretamente refletir-se no meio racional da outra classe, tal como se deu nos Estados Unidos. Não era uma liquidação transitória e subsidiária, apesar de indispensável, nem podia, uma vez realizada, isolar-se ou ser simplesmente esquecida na vida moral e política da nação. Aqui, a mudança da condição de escravos para a de homens livres, no círculo dos trabalhadores do solo, foi um dos principais aspectos de um fenômeno muito maior e infinitamente mais amplo, que naquele momento chegava à sua produção completa. Por motivos de natureza quase mecânica, teria sido impossível ao Brasil, no caminho das transformações daquela época. ficar apenas na lei de 13 de maio de 1888. Ao que assistíamos naquele instante, era ao complemento e ao termo da nossa formação democrática ou republicana, tal como a esboçáramos, no projeto de constituição de 1823, em nome da qual fizéramos a revolução de 1831 e a Maioridade, e que, retardada pela reação autoritária da Regência e severamente subordinada às exigências da nossa segurança externa, na política de conciliação, viera após a lei dos círculos, fixar as suas linhas definitivas no manifesto radical de 1869, para depois precipitar-se na lei do ventre livre à abolição completa 199 do cativeiro – e daí enfim ao programa do gabinete de 7 de junho de 1889. Esse programa, lido pelo Visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho, na sessão da câmara dos deputados, de 11 daquele mês, é extremamente interessante e sugestivo sob o ponto de vista histórico. Extintas as últimas resistências do passado, perante o abolicionismo vitorioso, seria talvez de supor que uma trégua se abrisse no nosso avanço para a democracia integral, como reação natural do grande esforço despendido até ali. Entretanto, apenas liqüidada a época abolicionista, pelo desaparecimento do gabinete que a encerrara a 13 de maio do ano anterior, o novo ministério inaugura-se a proclamar pelo órgão do seu chefe, que “a situação do país define-se por uma frase: - necessidade urgente e imprescindível de reformas liberais...” Essas reformas, o ministro não as anuncia emocionado e a medo. Não o assusta o escândalo da novidade nem ele teme reações, porque sabe que todas elas estão na consciência pública, a mais de vinte anos, perfeitamente compreendidas e fixadas em fórmulas nítidas e exatas. No meio da atmosfera de tumulto que se estabelece no recinto da câmara, a sua voz de velho parlamentar e homem de Estado, alteia-se segura e clara: “Esta tempestade não me assusta; ao contrário, alegro-me com ela. Eu prefiro esta agitação, sinal de vida e movimento...” E, quando as reformas vão sendo enunciadas – “alargamento maior do direito de voto, plena autonomia dos municípios e províncias, efetividade do direito de reunião, liberdade de culto e seus consectarios, temporariedade do senado, anu lação das funções políticas do Conselho de Estado – tudo numa ordem perfeita e quase cronológica, como a disposição 200 metódica dos materiais de uma construção imediata, ouve -se a voz do deputado Pedro Luís: “É o começo da república”...” O presidente do conselho protesta: “Não; é a inutilização da república. Sob a monarquia constitucional representativa, podemos obter, com maior facilidade e segurança, a mais ampla liberdade...” É preciso meditar com atenção estas palavras do Visconde de Ouro Preto, evocando, com o auxílio da rápida recapitulação de antecedentes que temos feito, o especial e ultra-sensibilizado ambiente em que elas vibravam. A inutilização da república, pela mais ampla liberdade!... O ministro não diz – a destruição ou a morte da república. Ele deseja somente que as reformas a realizar sejam tão completas, tão amplas, tanto avancem para a república, que, perante elas, a proclamação formal do novo regime se torne inútil, desnecessária, salvando-se assim as formas aparentes da monarquia, ao mesmo tempo que se reforça e amplia, até as suas últimas conseqüências práticas, tudo quanto o nosso velho aparelho institucional e os nossos hábitos políticos já possuíam de real e verdadeiramente republicano. A plataforma do gabinete Ouro Preto não tontinha um dos artigos principais do programa radical de 1869. Era a extinção do poder moderador. Mas dado o estado geral dos ânimos no momento, nada poderia impedir que, mais ou menos imediatamente, aquela medida se impusesse. O poder moderador era como a árvore mais alta, sobre a qual o raio desce, apenas desencadeada a tormenta. Se o seu fim não viesse, por natural e imperiosa extensão, com a simples abertura dos debates sobre o programa do ministério Ouro Preto, ele não sobreviveria sem dúvida aos três anos da 201 legislatura seguinte. A nova câmara e o senado temporário que resultassem do alargamento do direito de voto recomendado pelo gabinete, talvez não o tolerassem além da sua primeira sessão. Como limite extremo à permanência daquela função no nosso aparelho político, poder-se-ia portanto admitir, quando muito, o ano de 1895.(62) E, a partir daí, a nossa família não teria muito mais o que fazer, no seu patriarcal e modesto paço de São Cristóvão... Seria extremamente interessante podermos hoje saber quais eram as íntimas disposições e o fundo real do pensamento do velho Afonso Celso, no momento em que ele, destruindo os últimos fundamentos essenciais da monarquia, pela adoção final das doutrinas radicais de 1869, ainda se esforçava em defender e salvar os sinais visíveis do império. Dirão que esse era o seu dever de coerência e lealdade. Sem dúvida... Mas, em política, nem sempre o cumprimento de um dever de coerência nos isenta da íntima e trágica certeza da sua inutilidade. A realeza é um aparato multimilenário que, nas nações verdadeiramente evoluídas do mundo moderno, só se mantém ainda, nas suas formas puramente visuais, pelo prestígio mental da tradição. Ora, num país descoberto pela Renascença, com todas as suas tradições políticas iniciais fundadas no século XVIII e na revolução francesa, esse milagre de persistência era necessariamente impossível. Como poderia o trono, depois de perder toda a sua significação prática, manter se ainda, como uma inútil e suntuosa relíquia, num império que jamais concebeu o amor do rei e suntuosa relíquia, num mistério que jamais concebeu o amor do rei como artigo de fé religiosa e onde a nobreza da corte não podia pensar, nem 202 sorrir, na antiguidade da sua formação? Os estadistas daquele momento, a começar pelo próprio imperador, não nutriam ilusões a tal respeito. Neste ponto, a crônica do tempo nos oferece indicações as mais várias e preciosas. O dito do Barão de Cotegipe, o imperador é o império e o império é o imperador, significando que o trono não subsistiria ao seu último ocupante, tornara-se corrente. A presença de Pedro II era o derradeiro obstáculo à proclamação do novo estado de coisas. Não que o velho imperador pudesse materialmente opor-se a uma decisão coletiva em tal sentido, mas porque a grata e afetuosa consideração da maioria se concertava em dele afastar tão rude comoção. A monarquia, em todo caso, já não se apresentava como tolerável, senão com Pedro II... Entre os documentos que mais facilmente podemos hoje consultar sobre aquele estado de ânimo, parece-nos um dos mais interessantes, A República na América Latina,(63) de A. Coelho Rodrigues. Apesar de não concordarmos com o ponto de vista em que o autor se coloca, no seu cap. I, para descobrir as causas da proclamação da república no Brasil, não lhe poderíamos negar a qualidade de excelente e autorizada testemunha de vista. Ele pode ter errado nas conclusões a que pretendeu chegar, mas não nos fatos a que se refere. Membro da câmara dos deputados na monarquia, e senador nos primeiros anos da república, ele esteve intimamente ligado à vida política das duas épocas, no seu período de interseção, dando ao depoimento que oferece naquele trabalho um impressionante caráter de veracidade. Conta Coelho Rodrigues: “Em dezembro de 1888, Silva Jardim, fazendo-se encontradiço com o velho barão (o Barão de Cotegipe, cujo ministério cedera o lugar ao gabinete 203 abolicionista do conselheiro João Alfredo) no hotel das Paineiras, procurou sondá-lo sobre o advento da república e ouviu dele esta profecia: - não se apresse a correr para ela, que ela está correndo para nós. O meu ministério caiu por uma conspiração do Palácio; o meu sucessor há de cair na lama das ruas, e o sucessor do meu sucessor cairá na ponta das baionetas e, talvez, com ele, a monarquia. Os nossos ministérios duram pouco e, portanto, V. não terá muito que esperar”. E Coelho Rodrigues acrescenta: “Ouvimos esta referência ao próprio Silva Jardim, em dezembro de 1889, um ano depois do fato, e um mês depois da proclamação da república”. A República na América do Sul contém várias informações desta natureza, com indicação de lugar, de pessoas e de datas. mas onde o testemunho do seu autor nos parece mais sugestivo, é onde conta(64) uma conferência que se teria realizado entre o imperador e o conselheiro José Antônio Saraiva, em março de 1889. Tendo Pedro II encorajado Saraiva a assumir o poder, em substituição ao gabinete João Alfredo, cuja demissão próxima era esperada, o velho estadista “declarara ao imperador parecer-lhe próximo e inevitável o advento da república, e necessário preparar o país para ela, fazendo a federação das províncias e abdicando em seguida a coro nas mãos do parlamento”. O imperador pergunta a Saraiva se, em tais condições, não lhe parecia mais possível o terceiro reinado. Sua Majestade referia-se à coroação da princesa Dona Isabel, Condessa d‟Eu, após a sua morte. Coelho Rodrigues coloca então na boca dos dois interlocutores este rápido e impressionante diálogo, começado por Saraiva: - O reino de Sua Alteza não é deste mundo...(65) 204 - Pois bem, sr. Saraiva; organize o ministério e governe como entender, que eu não lhe oporei embaraços”. Sobre as disposições de espírito com as quais Pedro II encarava uma eventual transformação política e constitucional do seu país, existe um documento escrito de seu própri o punho. É uma nota por ele lançada no livro, Império e República Ditatorial, de Alberto de Carvalho, no seu exílio de Versalhes, com data de 1º de junho de 1891. Aí se encontra a maravilhosa explicação de toda a sua grande vida de rei e de incomparável cidadão. Diz o monarca destronado: “Desejaria, repito, que a civilização do Brasil já admitisse o sistema republicano, que, para mim, é o mais perfeito, como podem sê lo as coisas humanas. Creiam que eu só desejava contribuir para um estado social em que a república pudesse ser “plantada”, para assim dizer, por mim, e dar sazonados frutos. Como seria ela produção natural, não poderiam preocupar-me os direitos de minha filha e netos”.(66) Na história de nenhuma das monarquias do mundo moderno poderia ser encontrado um documento semelhante. Pedro II, educado pelos seus compatriotas que haviam revolucionariamente encerrado o primeiro reinado, inteiramente escapou às influências da tradição monárquica, trazida da Europa com o seu avô, Dom João VI, e transmitida ao seu pai, com a coroa do novo império. Essa tradição, que em outras circunstâncias teria formado o fundo e a base sentimental do seu caráter, depois de uma precária instalação de trinta e sete anos, daqui partira em 1831, com Pedro I e as damas da corte, todos recambiados de volta e de uma vez ao velho mundo. Quem ficou no paço de São Cristóvão foi apenas um pequeno brasileiro, sobre cuja inteligência, ainda não 205 formada, entrou logo a trabalhar uma educação de forte espírito local, toda inspirada nos costumes e nas idéias do nosso povo. Posta ao lado destas considerações necessárias, aquela nota, lançada à margem de uma leitura evocativa num instante de saudade, assume imediatamente para nós um intenso poder de revelação. Aí, como à súbita claridade de um r elâmpago, projeta-se em síntese toda a grande missão histórica do segundo reinado. Passados aqueles trinta e sete anos – da chegada de Dom João VI à partida de Pedro I – acrescidos do indeciso e tumultuário período da Regência, essa missão consistiu toda em reatar completamente as livres tradições da nossa primitiva formação nacional, para conduzi-las, em segura e metódica evolução, até as fórmulas mais perfeitas e adiantadas da grande república moderna. Assim compreendemos o sentido exato e profundo daquelas palavras do imperador e a sua absoluta sinceridade. A transformação final da monarquia representativa em república democrática, dentro do sistema parlamentar, era o termo natural do segundo reinado. Pedro II, como qualquer dos grandes espíritos do seu tempo, não escapava a esta convicção, nem tinha a fraqueza de tentar iludi-la. Os últimos anos da família imperial do Rio de Janeiro chegam mesmo a ser um melancólico e tocante exemplo de resignação. Contemplando com enlevo os progressos do Brasil, desejando ardentemente que eles fossem sempre maiores, mais amplos e mais completos, todo mundo nos círculos de São Cristóvão sentia muito bem que o império se extinguia. Lá fora, na agitação dos meios partidários, já se discutia francamente a quem caberia a proclamação formal do novo regime. O Barão de Cotegipe afirmava com veemência: 206 a república deverá ser feita por nós conservadores, porque, se o for pelos liberais, desunidos e desorientados com estão, não serão capazes de manter a integridade deste colosso, a qual vale mais do que a sua forma de governo.(67) Era fato previsto para muito breve, e logicamente considerado como inevitável. Ora, não é crível, em face de todos estes elementos de informação, que o Visconde de Ouro Preto, ao apresentar ao parlamento o gabinete de 7 de junho de 1889, estivesse realmente certo de poder protelar indefinidamente a proclamação da república. Já era mesmo conhecido o seu pensamento sobre a forma a dar à transferência final da soberania da coroa para os representantes do povo. Falando no senado em 1883, ele realmente se referira à possibilidade da câmara dos deputados votar a mudança do regime. Em meio à sensação produzida pelas suas palavras, o Barão de Cotegipe perguntou-lhe se achava então que a câmara tivesse capacidade para tanto. Ele respondeu com perfeita segurança: “A câmara atual não; mas uma outra que haja recebido poderes para tal fim, certamente o poderá fazer”. O mais provável portanto é que o velho ministro da marinha da campanha do Paraguai, depois de ouvir a Pedro II e entender-se com o Conselho de Estado, tenha aceitado o árduo e extremo encargo dos últimos retoques na grande obra do segundo reinado, dispondo o Brasil definitivamente para a completa democracia, na sua forma normal de expressão: a república. A abolição do elemento servil, pela sua universal significação social e econômica, era, sem a menor dúvida, o artigo primeiro e de mais urgente aplicação do programa radical de 1869. Apesar dessa medida não haver merecido esse lugar na disposição ordinal daquela relação de princípios, sem 207 ela realizada, as demais reformas não encontrariam ambiente, tornando-se portanto prematuras. Mas, a própria sucessão cronológica tendo-se encarregado de restituir-lhe essa colocação necessária, uma vez ela obtida, estava aberta sem parada ou retrocesso possível a fase final da nossa evolução democrática. A plataforma do gabinete de 7 de junho, a conjugar as suas reformas políticas com as disposições econômicas e financeiras que inauguravam o novo regime do trabalho livre, era bem o testamento de uma época. A situação que convertesse em lei aquelas sugestões só podia ser substituída por uma situação republicana. O programa radical de 1869, que lograra converter-se ali em programa de governo, era tanto e tão completamente a república, que o partido republicano, organizado em 1870, jamais encontrou, em toda a sua propaganda, coisa alguma de positivo a acrescentar-lhe. O manifesto inicial dessa agremiação política, apesar de traçado pela pena percuciente e vivaz de Aristides Lobo e aceito com entusiasmo pelas mais ativas inteligência do radicalismo, nada lhe pôde aduzir, limitando-se tão-somente a uma longa e eloqüente dissertação abstrata. A ação do novo partido, em face das demais correntes da opinião nacional, ressente-se constantemente dessa completa ausência de base objetiva e mesmo de fiel orientação doutrinária. O manifesto do congresso republicano de São Paulo, reunido a primeiro de julho de 1873, fala da abolição nestes termos indecisos e francamente suspeitos: “Sendo certo que o partido republicano não pode ser indiferente a uma questão altamente social, é mister entretanto ponderar que ele não tem nem terá a responsabilidade de tal solução, pois que antes de ser governo estará ela definida por um dos partidos da monarquia”. Os 208 deputados republicanos, quando o partido chega a mandar ao parlamento os seus representantes não destoam muito dessa atitude oportunista e de cautelosa e deselegante passividade moral. Eles vacilam constantemente entre os liberais e os conservadores, pendendo com mais freqüência para os segundos. A propaganda nascida com o manifesto republicano de 1870, como lançamento e difusão de novas idéias, é absolutamente nula. Ela apenas acompanha a nossa evolução anterior, sem nada lhe adiantar e a ela subordinad a, como um canal que se destacasse de uma caudalosa torrente, para a ir seguindo paralelamente, sem jamais ultrapassá-la em nível nem em velocidade. Num percurso que já nos permitimos extremar mais ou menos no ano de 1895, esse canal teria de ser necessariamente reabsorvido na grande caudal primitiva, quando os princípios radicais de 1869 se encontrassem integralmente realizados, com todas as suas previstas e inevitáveis conseqüências de forma de governo. Mas, essa corrente subsidiária da propaganda nominalmente republicana, ou especialmente designada com esse nome, veio cair a ebulição insólita e tumultuária da questão militar. E sobreveio o acidente de 15 de novembro... NOTAS (61) Não valeria a pena mencionar a transitória e infeliz participação dada aos negros, logo depois da abolição, na política de alguns Estados do Sul, participação essa donde nasceram, sob a inspiração inferior dos carpet baggers, os chamados governos dos saturnaes. Tudo aquilo, vindo após o assassinato do presidente Lincoln, não passou de uma vingança dos 209 políticos do Norte contra os vencidos do Sul. Era evidente que os negros americanos, recém-extraídos do cativeiro, não poderiam, sem o mínimo preparo intelectual e moral anterior, ocupar decentemente funções governativas. Foi preconceito de raça e surgiu a vergonha nacional da Ku Klus-Klan. (62) Por decreto de 15 de junho de 1889 foi a câmara dos deputados dissolvida, convocando-se uma outra para 20 de novembro do mesmo ano, em sessão extraordinária. Essa nova câmara terminaria o s eu mandato em 1892. A nova legislatura seria a de 1893 -1895. (63) Existem duas edições desse livrinho. A última foi feita em 1906, nos estabelecimentos gráficos de Benzinger & Cia., de Einsiedeln, na Suíça. (64) Pág. 8, da edição Benzinger. (65) Saraiva, ao mesmo tempo que confirmava a sua certeza na inviabilidade do terceiro reinado, também prestava, empregando o texto evangélico, uma homenagem ao bom coração da Condessa d‟Eu, que, ardente defensora da abolição, firmara com imensa alegria, como regente do Império, a lei de 13 de maio de 1888. (66) O exemplar do Império Ditatorial, de Alberto de Carvalho, onde está escrita esta nota, encontra-se hoje no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. (67) Coelho Rodrigues, op.cit., pág. 6. CONCLUSÃO (Parte Final) Transportando agora este conceito geral da democracia moderna ao quadro das atuais condições políticas do Brasil, resta atender à consideração tão insistentemente formulada de que o nosso povo ainda não apresenta os requisitos 210 indispensáveis à posse de um muito adiantado sistema de governo. Este modo de ver é a conseqüência natural do completo falseamento de idéias e de fatos em que entre nós se transformaram os estudos políticos e a exposição histórica, a partir de 1889, e ao qual já longamente nos temos referido em todo o correr deste trabalho. A história do Brasil, como país independente, divide-se muito exatamente em três períodos sucessivos e muito vem caracterizados, dos quais os dois extremos, mantendo de um para o outro as mais íntimas relações de semelhança, inteiramente se diferenciam do outro que lhes fica de permeio. O primeiro destes três períodos, começando na proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, e abrangendo a fase da Regência, termina a 22 de junho de 1840, com o golpe da Maioridade. O segundo compreende, sem interrupção alguma, todo o grande reinado do imperador Pedro II, consistindo o terceiro, finalmente, na república de 15 de novembro, que, partindo da rebelião militar de 1889, vem até os dias atuais, no governo discricionário do sr. Getúlio Vargas. Nos dois períodos extremos, o governo, praticamente e por princípio, assenta na vontade pessoal do chefe do Estado. A vida do país é uma desordem permanente, marcada por sucessivos golpes de força que, sendo a anulação progressiva da liberdade, no domínio das relações políticas, é também, no terreno dos interesses econômicos, uma desoladora e constante marcha para a bancarrota e para a miséria. O Brasil, a viver inquieto e perturbado no interior, como a grande nação que realmente é. No período intermediário, transportadas as fontes iniciais do poder público na pessoa do chefe do Estado à 211 autoridade coletiva do parlamento, tudo se transforma. A paz interna se restabelece com a liberdade, imediatamente resultando, desse alto conjunto de condições morais, o equilíbrio financeiro e a prosperidade econômica geral, O país tem uma política externa baseada em vistas próprias, que nobre e eficazmente faz valer no conceito internacional, enquanto o seu alto câmbio monetário vai revelando a honrosa e justa medida do seu crédito nos mercados do exterior. Pela liberdade, assegurada nos métodos parlamentares, automa ticamente nos aproximamos da fórmula socrática do bom governo: aquele que assegura a confiança no interior e o respeito no exterior. O simples cotejo desses três períodos históricos, tomados mesmo como termos de relação matemática, já seria o bastante para nos fazer nitidamente ver onde está a justa e necessária solução de todo esse terrível e angustioso problema que é hoje a nossa política geral. Uma vez que não tenhamos completamente renunciado aos métodos comuns do raciocínio, impossível será fugir à lógica desta simples dedução. Dizem nos porém, como último argumento da passividade e do desânimo, que hoje não temos mais os grandes e nobres estadistas que o segundo reinado produziu. A crise é de caráter, segundo afirmam, nada de melhor sendo possível, no baixo nível moral a que descemos. Fala-se da desolante mediocridade dos homens públicos, do analfabetismo geral da população, e deixa-se cair os braços de puro desalento, sem excluir uma certa dose de irônico e superior desinteresse... Ora, se o Brasil, quando contava apenas dez, doze, quatorze ou dezesseis milhões de habitantes, ligados entre si através do seu imenso território por meio de transportes e 212 comunicações que estavam bem longe de ser satisfatórios; quando dispunha apenas de cinco escolas superiores, com um serviço de instrução primária que, existindo nas cidades e nas vilas, desprezada as povoações e os arraiais do interior; se, em tais condições, já podia realizar um verdadeiro modelo de moral política e de seriedade administrativa sob o governo representativo de forma parlamentar, porque não pode4ria ele agora, se o restabelecessem naquelas bases tradicionais da sua evolução, fazer qualquer coisa de aceitável, quando a sua cifra demográfica iguala a da França, da Itália ou da Inglaterra; quando os seus serviços ferroviários, a sua navegação marítima e fluvial, as suas estradas, automóveis e as linhas de navegação aéreos que o atravessa, ligam os centros populosos entre si mais afastados de toda a sua extensão territorial, em tempo máximo de um mês e mínimo de apenas quatro dias; quando em uma ou duas horas nos comunicamos pelo telégrafo com os nossos compatriotas de qualquer ponto, desde as grandes florestas do Amazonas às extremas do Rio Grande do Sul e de Mato Grosso; quando a radiotelefonia, no mesmo instante, faz ouvir em Santo Antônio do Rio madeira, em Brejo de Areia ou em Santa Rita do Araguaia a mesma ária cantada ou a mesma exortação proferida nos estúdios do Rio de Janeiro e de São Paulo; quando as faculdades de Direito se contam pelo número dos Estados, com diversas escolas de Engenharia, de Medicina e múltiplos outros institutos científicos de criação pública e particular de todo gênero, sendo especialmente de notar que a instrução primária já vai, na sua grande difusão pelo país inteiro, muito além do que ainda, a tal respeito, deixam supor as nossas queixas habituais? ... 213 Não temos estadistas?... Isso não prova que se haja alterado o velho caráter do nosso povo, em que o grau da cultura brasileira tenha diminuído. Prova apenas que o regime de 15 de novembro, pela sua natureza despótica e opressora, exclui necessariamente as formas superiores da inteligência, pois transforma a vida pública num baixo concurso de interesses, para cuja promoção e em cuja defesa a insídia e a sobrevivência, aliadas a uma proporcional arrogância para com os fracos, são as qualidades mais preciosas e eficazes. Não faltam ao Brasil homens cultivados e de grande inteligência. O que falta é o ambiente político no qual os seus predicados possam manifestar-se em função da vida coletiva. O próprio analfabetismo, de que tanto nos falam como irrecusável motivo de protelação mais ou menos indefinida de um regime de liberdade, é um argumento que, lançado por muitos sem a mínima reflexão, da parte dos beneficiários das atuais condições políticas, constitui uma simples artimanha. Certamente o Brasil não tem, ainda uma organização de instrução primária em satisfatória correspondência com a sua cifra demográfica e a sua extensão territorial. Dizer, porém, que o seu coeficiente de analfabetos se eleve a 90 ou 80%, é uma alegação que, para fundar-se de alguma forma, precisa recorrer a dados estatísticos do primeiro recenseamento feito pela República, quando ainda influíam muito de perto as condições sociais da passada escravidão. Não só a instrução pública e particular se desenvolveu, daí para cá, em proporção muito acima do crescimento geral da população, isto é, determinando um número sempre muito maior de alfabetização para um igual número de habitantes, como a nossa organização escolar e os nossos métodos de ensino, em alguns Estados, 214 chegaram a ultrapassar o que, no gênero, exista mesmo em alguns países europeus. Não há mais das jovens gerações brasileiras a espécie de aversão supersticiosa do alfabeto, que ainda se nota nas classes rurais e mais pobres de certos povos que conhecemos. Não saber ler e escrever constitui aqui, n o consenso geral do povo, a inferioridade, por assim dizer, inicial dos indivíduos, sendo, confessadamente, a maior vergonha para aqueles que em tais condições se reconhecem. A não ser em habitações isoladas pelos sertões ou em certos ermos do litoral, não há lugar privado de escolas regulares onde não se encontre um professor de fazenda, um velho padre, uma tia velha mais sabida, enfim, qualquer pessoa que, mais ou menos, não se dedique ao nobre dever de ensinar os primeiros rudimentos da leitura e da escrita. O analfabetismo, com a extensão que lhe querem dar certos sociólogos indígenas, não existe. Os mato-grossenses afirmam que no seu Estado a porcentagem de analfabetos não vai além de 15. Em Goiás, ela é calculada em 20. Trata-se de duas das nossas regiões de território mais extenso e de menos e mais disseminada população. Que motivos haveria para que as coisas se passassem de modo diferente nos Estados mais povoados e de maior adiantamento como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, ou Pernambuco?... Mesmo dando todos os descontos imagináveis, pode-se seguramente garantir que a média do analfabetismo no Brasil, representada sobretudo por indivíduos maiores de 50 anos e imigrantes estrangeiros, não ultrapassa nunca a cifra de 30, sobre cada centena de habitantes. Não há nas condições sociais do Brasil atual coisa alguma que se oponha realmente à sua volta imediata a um 215 regime político de liberdade. O essencial é que, enfim, nos convençamos de que a liberdade política não é um voto abstrato ou um simples motivo a meras dissertações teóricas – mas uma coisa prática, que concretamente se expressa e praticamente se realiza num sistema de leis claras e objetivas, cujo mérito inicial esteja exatamente em prevenir e vedar com vigilante intransigência toda e qualquer intervenção dos processos governamentais e administrativos que lhe são contrários. A técnica deste sistema, nós, para encontrá -la, não temos mais que recorrer à nossa própria formação política anterior, desprezando as pobres e lamentáveis fantasias nas quais nos perdemos a partir de 1889. O trabalho que se oferece a nossa inteligência nem mesmo chega a ser uma criação nova: - é uma simples reparação. Reparemos o grande erro de 15 de novembro, que se espelha no pretensioso e vazio documento de 24 de fevereiro, erro imenso, cujas conseqüências nos vieram arrastando até ao ponto de duvidarmos da grandeza de nossa pátria, da sua esplêndida coesão nacional, do seu futuro e da nossa própria dignidade de homens. Trazido a um plano mais vasto e em muito maiores proporções pelo seu crescimento vegetativo ou pela simples ação do tempo, o Brasil ainda se encontra nas mesmas condições para a revelação definitiva das suas grandes faculdades nacionais, em que o deixou a monarquia em 1889. A não serem os sofrimentos da última geração do império e das que se lhe seguiram até agora, nada de realmente concreto e profundo se perdeu. O nosso patrimônio nacional está intacto e moralmente ainda somos uma das mais vividas e maiores nações da terra. As grandes dificuldades que ora se nos apresentam nos devem servir exatamente para nos dar a 216 consciência dos desvios em que caímos e a firma e clara decisão de corrigi-los. Socialmente, não temos problemas profundos a resolver, e, economicamente, os embaraços atuais não resistiriam certamente a simples mudanças dos métodos administrativos que o produziram. A bem dizer, não há aqui nenhum problema econômico, porque problema econômico não pode existir racionalmente num país de oito milhões e meio de quilômetros quadrados de terras férteis e imensamente ricas, para 41 milhões de habitantes. O que há é apenas um problema político, isto é, uma política geral profundamente errada, donde resultou uma política econômica evidentemente absurda, que nos faz viver contra os nossos interesses naturais e fora do próprio senso comum. Faça-se desaparecer essa causa inicial, e veremos como tudo se resolverá pela simples reposição das coisas na sua ordem justa e natural. Para isto precisamos realmente de novos hábitos políticos e de novos métodos administrativos; precisamos de uma nova cons tituição, cujo espírito se funde nas qualidades práticas do nosso povo e na índole da nossa evolução histórica, e não em maravilhas de concepção abstrata, como se pretende a 24 de fevereiro. Basta que ela se concretize, no ambiente republicano, que, feita a Abolição, se destinava a realizar quase integralmente o grande programa radical de 1869 – que este era verdadeiramente a república, a nossa república, a grande e livre República Brasileira, herdeira legítim a e imediata da monarquia liberal, da nobre “democracia coroada” do imperador Pedro II. Na crítica que, no nosso Cap. XIII, nos permitimos fazer da constituição de 24 de fevereiro, já deixamos indicada, em suas linhas gerais, qual deveria ter sido, racionalmente, a 217 nossa evolução constitucional, na passagem da monarquia para a república. Pela transformação do Brasil, de império hereditário, em grande país republicano, devia-se tratar apelas de conjugar a “plena autonomia dos municípios e províncias” pedida pelo ministro Ouro Preto no seu discurso de 11 de junho de 1889, com “a abdicação da coroa nas mãos do parlamento”, tal como o conselheiro Saraiva a aconselhara ao imperador, na entrevista que tiveram em março daquele ano. Esta deveria ter sido a nossa entrada inteligente e natural no regime republicano. A autonomia dos municípios e províncias (ou Estados, como depois se resolveu chamar...) estaria regulada com exatidão na constituição geral do país, de modo a nela encontrar as suas garantias eficazes, com ela intimamente se harmonizando, pelo emprego obrigatório do sistema parlamentar, em qualquer das três esferas da nova organização política. Ao invés disto, a abdicação da coroa, tacitamente obtida na generosa submissão de Pedro II ao golpe de 15 de novembro, deu-se nas mãos do presidente da República que, pela redução do parlamento a uma assembléia de simples funções orçamentárias, imediatamente revestiu -se de todos os caracteres essenciais do déspota, na exata compreensão antiga. O sistema tinha necessariamente que generalizar-se ao país inteiro, pela submissão, de fato e de princípio, dos congressos estaduais e das câmaras municipais aos presidentes de Estado e aos prefeitos de municípios. Este foi o erro; este é o erro que precisamos, que devemos urgentemente reparar. E aí está a revolução que todos desejamos e ainda não fizemos, a única a fazer, a revolução necessária. 218 (Transcrito da edição da Coleção Reconquista do Brasil, vol. 153; Belo Horizonte, 1989) 219 A QUESTÃO MILITAR Nota introdutória de Antonio Paim Além dos aspectos antes destacados, José Maria dos Santos notabiliza-se pela forma original como interpretou a chamada Questão Militar. Naturalmente, não se requer maior acuidade para dar-se conta de que, justamente aquele evento definiu a forma pela qual seria implantada a República: através de um golpe de Estado que, de pronto, asseguraria a hegemonia do Exército no novo regime. Apesar disto, passaria desapercebido o fato de que não havia, no seio da alta hierarquia militar, qualquer predisposição naquele sentido. O desfecho verificado deve-se, basicamente, à capacidade demonstrada por Quintino Bocaiuva (1836/1912) de obstar, sistematicamente, as diversas tentativas de minimizar os desencontros entre alguns oficiais do Exército e as instituições. Como demonstra o notável historiador, Quintino estava convencido de que o encaminhamento dado à campanha republicana não propiciaria a antecipação do que, a que tudo indica, seria a busca de uma alternativa para o Terceiro Reinado. Como sua atuação deixa entrever claramente, perseguiu obstinadamente a solução militar. O desenvolvimento que José Maria dos Santos facultaria à sua tese encontra-se na parte introdutória do livre Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista (Rio de Janeiro, José Olímpio, 1960), adiante transcrita. 220 Precede-se uma breve caracterização do processo da Independência e da fase em que se estruturaram as instituições do governo representativo. A nota dominante desse período é a evidência de que elite passou a dar preferência à solução pacífica dos problemas emergentes, encontrando sempre a maneira adequada de alcançá-la. Escreve, a esse propósito: “É evidente entretanto que os estadistas e os homens de pensamento no Brasil, com a educação política dos oitenta e um anos (quase um s éculo) da independência, que vêm de 1808 a 1889, não podiam compreender a ascensão final do seu país à democracia completa, no regime republicano, senão por evolução legal das instituições anteriores. Dentro das condições históricas que temos examinado, o Brasil – caso único, na América – tivera a ventura de operar o seu desenvolvimento político em paralelo com os povos mais cultos e adiantados do Velho Mundo, passando do poder absoluto para a liberdade, por transferência progressiva da soberania do rei para a nação, segundo o processo representativo parlamentar. Depois da penosa e longa experiência do primeiro Império e da Regência, de maneira alguma chegavam eles a pensar na extinção da Monarquia por um golpe de força, mais ou menos assemelhado aos desconcertantes e intermináveis pronunciamentos do mundo hispano-americano. As mutações políticas daquele gênero, havendo sempre falhado aqui, não estavam na nossa índole histórica nem era dos nossos hábitos.” (págs. 19/19, da edição citada). Segue-se a transcrição da caracterização que empreende, da Questão Militar, no livro mencionado. 221 TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS CAPÍTULO II PEDRA DE TROPEÇO A Questão Militar, a nosso ver, não foi senão uma das muitas conseqüências psicológicas da longa luta política da Abolição. O permanente estado de exaltação em que viveu o Brasil desde que se tornou patente a insuficiência da Lei do Ventre Livre, não podia deixar de ir mais ou menos atingindo e comprometendo os vários fundamentos da autoridade. Não é fácil a muito rigorosa observância de regulamentos e estatutos, num país em contínua agitação, tocando com freqüência às raias da rebeldia ou da revolta. Dada a grande flexibilidade das nossas instituições e dos nossos costumes políticos daquele tempo, sempre capazes de iludir ou contornar os mais agudos pontos de fricção, a estrita ordem material, na vida pública, não deixou de ser mantida. Não se poderia entretanto evitar o constante e crescente desassossego dos espíritos, a manifestar se com maior ou menor evidência nas naturezas mais sensíveis e exaltadas. A disciplina coletiva é sempre função de um certo estado mental de conjunto, envolvendo as diferentes camadas sociais, e por aí interessando imediatamente o poder público. Sem uma certa calma dos espíritos não há correto entendimento dos vários interesses, pois a predisposição geral é continuamente reatora. Este é sem dúvida o sinal 222 característico desses grandes períodos de evolução, sem os quais talvez não houvesse progresso na vida das nações. Mas, por isso mesmo que se trata de romper um certo equilíbrio, em procura de um outro sobre novas bases, tudo passa a tender facilmente ao debate ou à discussão. A constante agitação dos meios políticos e partidários, com as suas fáceis imputações de violência e as suas mútuas invectivas, diminuindo a confiança nas soluções justas e adequadas, vai comunicando-se aos vários ramos da vida coletiva, por toda parte instigando às atitudes de réplica ou de defesa. É o próprio processus da oposição, nos seus momentos decisivos... Este foi o estão de ânimo que se foi transmitindo, não dizemos às fileiras do Exército, mas pelo menos aos elementos mais ativos e destacados do seu corpo de oficiais em quase todas as guarnições, a começar pela da corte. A primeira manifestação da chamada Questão Militar vem certamente do gabinete Sinimbu, de 5 de janeiro de 1878. O mundo político e parlamentar, partindo sempre da questão fundamental da Abolição, agitava-se fortemente em torno ao projeto do voto direto, que devia completar, com progresso eleitoral, a lei do terço ou das minorias, de 20 de outubro de 1874. A Câmara dos Deputados havia sido dissolvida em 1877, só tendo sido possível reunir-se uma outra, em sessão extraordinária, a 15 de dezembro de 1878. Nos primeiros dias de 1879 a Comissão de Marinha e Guerra dessa nova Câmara propôs um aditivo à lei de fixação de forças, mandando diminuir o número das praças de pré nas várias unidades do Exército, extinguindo um posto de alferes em cada companhia, fundindo os vários corpos científicos em um só e eliminando em todas as armas o posto de tenente-coronel e as graduações 223 de furriel e anspeçada. Na Marinha, o mesmo aditivo prescrevia a supressão do Conselho naval, a redução dos quadros de combatentes e comissários, a diminuição dos vencimentos dos maquinistas e a extinção do Batalhão Naval. Tudo leva a crer que se tratava de medidas de heróica e rigorosa economia Já estavam estas disposições aprovadas em segunda discussão quando se deu, exatamente no dia 11 de maio e no prédio nº 83, da Rua 7 de Setembro, uma grande reunião de oficiais de terra e mar que, condenando essas reformas, como foi dito, por ferirem de morte as corporações militares, resolveu nomear uma comissão que as viesse analisar e combater pelos jornais... Foram designados, pelo Exército, o general Francisco Carlos da Luz, o Major Sena Madureira, os engenheiros militares Jacques Ourique, Luís Mendes d Morais e Garcez Palha e, pela Marinha, o Capitão de-Mar-e-Guerra Eduardo Wandenkolk, o Comandante Saldanha da Gama, os Primeiros-Tenentes Pinto Bravo e Garcez Palha, o oficial de Fazenda Lima Franco e o maquinista Gabriel Ferreira da Cruz. A discussão abriu-se logo e com grande sensação pelos Apedidos do Jornal do Comércio.(14) Ora, além de um aviso já existente desde 1859, um outro fora expedido a 14 de setembro de 1878 vedando aos militares a faculdade de manifestar-se pela imprensa sobre objeto de serviço, sem prévia autorização do ministro respectivo. Seguiram-se portanto várias reações de caráter administrativo, dando em resultado algumas sanções disciplinares que, regularmente, puseram termo ao incidente. Mas o aditivo parlamentar foi abandonado, sendo os artigos do 224 Jornal do Comércio logo depois reeditados em volume, sob o título característico e muito sugestivo de Questões Militares... Este foi realmente o início. Em 1883 o caso reproduziuse. Tendo deixado a 23 de maio daquele ano a presidência do gabinete de 3 de julho de 1882, substituído pelo gabinete Lafaiete no dia 24, o Senador Visconde de Paranaguá apresentou à sua Câmara, no mês de junho, um projeto de lei criando um montepio de contribuição obrigatória para os militares e alterando as condições da reforma no Exército e na Marinha. Deu-se imediatamente uma reunião no gênero da de 11 de maio de 1879, com designação de uma nova comissão que, recebendo desta vez o nome de Diretório de Resistência, delegou os seus poderes individualmente ao já então Tenente Coronel Sena Madureira. Dada a habitual impetuosidade desse oficial, que era realmente um brilhante polemista, a discussão impressa assumiu logo um caráter de grande veemência(15). Seguiram-se as mesmas reações administrativas, mas, não tendo ido por diante o projeto Paranaguá, não advieram maiores conseqüências. Com este renovo, entretanto, ficou definitivamente lançada perante o público a questão do livre direito dos militares de discutir, como quaisquer outros cidadãos, os negócios governamentais de qualquer espécie que os tocassem de perto(16). No ano seguinte os ânimos inflamavam-se novamente, desta vez partindo de um incidente imediatamente ligado à Abolição. No mês de abril, a Confederação Abolicionista acolhia em grande festa no Rio de Janeiro o jangadeiro cearense Francisco do Nascimento que, ajudado pelo Clube do Cumpim de Pernambuco, muito se distinguira a passar escravos de vários pontos do Nordeste para a sua província. 225 Levado a visitar a Escola de Tiro de Campo Grande, Nascimento recebe dos alunos uma manifestação estrepitosa, com tácito assentimento do comandante, que era muito exatamente o Coronel Sena Madureira. Noticiado o fato pelos jornais, manda o ajudante-general do Exército ao comandante que o informe do ocorrido para fins disciplinares. Sena Madureira responde que nada tem a informar àquela autoridade, uma vez que a sua escola depende diretamente do diretor-geral da artilharia, o marechal Conde d‟Eu... O Ministro da Guerra interessa-se pelo assunto, mandando demitir e repreender em ordem do dia o comandante. Este em seguida é transferido da corte para o Rio Grande do Sul. Sena Madureira, naturalmente, não se esqueceu de trazer o incidente para os jornais, determinando um grande interesse entre os seus camaradas que definitivamente o passaram a ver como o herói dos seus direitos civis, esquecidos pelos políticos. A atmosfera de agitação em torno a essas pretensões não fez senão se acentuar. No decorrer de 1885 surge um novo caso. O Coronel Cunha Matos, em serviço de inspeção, descobre irregularidade nos fornecimentos a uma companhia isolada com sede no Piauí. Imediatamente dá parte às autoridades superiores, pedindo o afastamento do respectivo comandante, o Capitão Pedro José de Lima, e a nomeação de um conselho de guerra que devidamente apure as responsabilidades. No fundo, tratava-se de um caso bem simples, no qual Cunha Matos apenas cumpria muito regularmente o seu dever. Mas surgiram complicações incalculáveis. Tendo o Capitão Lima retorquido com uma queixa contra o coronel, a quem acusava de parcialidade de inspiração política, o Deputado Coelho de Resende quis tomar 226 lhe as dores no Parlamento, dirigindo ao Ministro da Guerra, Alfredo Chaves, um pedido de informações. O deputado concitava o ministro a ser discreto e cauteloso, porque, segundo disse na tribuna, os militares que se imiscuem na política, não só conhecem as regras da estratégia como têm ainda a argúcia da raposa. O Coronel Cunha Matos resolve então – e aí começa o verdadeiro caso – contestar pela imprensa as observações do deputado, dizendo entretanto não pretender levantar os insultos que este lhe dirigira na tribuna irresponsável... Nesta primeira publicação, Coelho de Resende era dado como parceiro habitual do Capitão Lima no jogo do solo, na vida provinciana de Teresina. O deputado volta à tribuna para atacar desabridamente o coronel, acusando-o de, quando prisioneiro de Lopes, haver-se posto a serviço do ditador, dirigindo o fogo das baterias paraguaias contra as nossas posições(17). As cousas tomaram então um curso francamente lamentável. Treplicando em novos artigos pela imprensa. Cunha Matos critica o Ministro da Guerra por não haver sabido dominar o incidente. O ministro chamado à fala por esta forma, o manda censurar e prender disciplinarmente. Em tais condições, era natural que no Parlamento alguém surgisse também em defesa de Cunha Matos. Com todo o seu prestígio de incontestável herói do Paraguai e grande chefe liberal na sua província, levantou-se no Senado o general Visconde de Pelotas. para ele não havia como recusar o direito de defesa a um oficial ofendido em sua honra. O Senador Barros Barreto aparteia: se as leis o permitissem... O velho soldado exalta-se e retruca: Eu não digo que as nossas leis o permitam: estou dizendo ao nobre Ministro da Guerra o que eu entendo que deve fazer um militar quando é ferido em sua 227 honra, e que fique sabendo o nobre senador por Pernambuco que quem está falando assim, assim procederá sem se importar que haja lei que o vede. Eu ponho a minha honra acima de tudo! Alfredo Chaves então observa ao orador que o Coronel Cunha Matos havia sido punido, não pelo que escrevera em revide aos ataques do deputado, mas por haver discutido pela imprensa assuntos militares, sem prévia licença, contra todas as disposições legais. Apesar de tudo, o incidente parecia terminado. Estava se na segunda metade de 1886. Ressurge porém do Sul o Tenente-Coronel Sena Madureira. Na edição de 16 de agosto do jornal A Federação, de Porto Alegre, ele faz uma longa publicação para comentar o caso Cunha Matos, em função de tudo quanto com ele mesmo se passara. A sua tese era a de que os avisos ministeriais, sobre os quais se basearam as sançõe s tomadas contra Cunha Matos e contra ele próprio, eram constitucionais, pois feriam de frente a Constituição de 1824 na parte em que assegurava a todos os brasileiros o direito de livre manifestação do pensamento. Reproduzido o seu artigo no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, o ministro da Guerra, em data em ordem do dia do exército. Não se conformando, Sena Madureira replica com um memorial pedindo um conselho de guerra, perante o qual espera firmar a sua doutrina da inconstitucionalidade dos avisos ministeriais, para o fim de tornar nulas e fazer cancelar todas as sanções daquela espécie. As questões de ordem disciplinar escapam entretanto à alçada dos conselhos de guerra O conselho pedido é recusado, mantendo-se não somente a punição como sendo ainda o requerente demitido do comando da Escola Preparatória e Tática do Rio Pardo, no qual se achava. A 228 Questão Militar precipita-se então no seu período mais intenso e agitado. Com assentimento declarado do Marechal Deodoro da Fonseca, comandante das armas e vice-presidente em exercício na província do Rio Grande do Sul, os oficiais da guarnição de Porto Alegre realizam uma reunião de classe para aderir publicamente à doutrina dos avisos ministeriais sustentada por Sena Madureira. A atitude do Marechal Deodoro era tanto mais estranha e inexplicável quanto anteriormente, no exercício das mesmas funções, havia mandado submeter a processo um oficial subalterno por haver recorrido à imprensa na defesa de seus interesses particulares. Interpelado pelo governo e aceitando a responsabilidade do que se dera, Deodoro é logo retirado daquelas funções e chamado ao Rio de Janeiro. Mas a sua chegada à corte não faz senão aumentar a agitação. Recebido em triunfo pelos oficiais da guarnição, com integral comparecimento da Escola Militar da Praia Vermelha, ele, ao lado do Visconde de Pelotas, entra a desenvolver uma grande atividade no sentido de provocar uma intervenção direta da coroa contra a política seguida no caso pelo governo. De posse de numerosas adesões enviadas de todas as guarnições das províncias, menos a de Pernambudo, onde comandava o Coronel Mallet, ele convoca para o dia 2 de janeiro de 1887 uma grande reunião de oficiais no Teatro Recreio Dramático, para tomar deliberações. Era um verdadeiro meeting popular, bem no gênero e em um dos locais mais preferidos dos naquele momento tão em voga a favor da Abolição... A reunião realizou-se com a sala cheia de oficiais do Exército e da Marinha, e repleta de espectadores civis todas as demais dependências do teatro. A mesa diretora dos trabalhos, disposta no palco, sentaram-se, ladeando o marechal 229 os Coronéis Cunha Matos e José Simeão e os Tenentes Coronéis Sena Madureira e Benjamim Constant. Ai foi aprovada a seguinte resolução: - 1º) Os oficiais de terra e mar, presentes a esta reunião, não julgam terminado com honra para a classe militar o conflito suscitado entre esta e o governo, enquanto perdurarem os efeitos dos avisos inconstitucionais, que foram justamente condenados pela imperial resolução de 3 de novembro último, tomada sobre consulta do venerando Conselho Supremo Militar(18). – 2º) Pensam também que só a cessação de qualquer medida, tendente a perseguir os oficiais pelo fato de terem aderido à Questão Militar, poderá acalmar a irritação e o desgosto que reinam nas fileiras do Exército. – 3º) Recorrem confiantes à alta justiça do Augusto Chefe da Nação, para pôr termo ao estado de agitação em que se acha ainda a classe militar, que só provas de resignação e disciplina até hoje tem dado. – 4º) resolvem dar plenos poderes ao Exmo, Sr. Marechal-deCampo Manuel Deodoro da Fonseca, presidente desta reunião, para representá-los junto ao governo de S. M. o Imperador, no intuito de conseguir uma solução completa do conflito, digna do mesmo governo e dos brios da classe militar. Esta resolução, tentando colocar-se entre a coroa e o governo do Parlamento, procurava forçar naturalmente um golpe de estado... Pero II, entretanto, sempre fiel aos seus deveres de rei constitucional, negou-se a dela tomar conhecimento. Não há dúvida porém de que nos meios políticos e governamentais foi feito um certo trabalho para, de alguma forma, a ela dar satisfação. Oficiosamente foi entendido que o governo mandasse trancar as notas referentes 230 a todas as sanções disciplinares oriundas da Questão Militar, uma vez que os respectivos interessados individualmente o requeressem. A maioria dos oficiais, no Rio de Janeiro, pronunciou-se por essa solução, achando-a correta e suficiente. Mas Sena Madureira e Cunha Matos discordaram. Parecia -lhes que, se o trancamento das notas era cabível, devia ser ordenado ex-officio, sem a nova humilhação de um pedido pessoal. Ao governo cabia portanto penitenciar-se... Trazida esta objeção para os jornais, com o caráter que não podia deixar de ter, aquele acordo discreto e tolerante fracassou, aumentando, por contragolpe, o mal-estar e a irritação. A declaração do Recreio Dramático, pretendendo dirigir-se ao imperador por cima do Parlamento e do governo, seguira evidentemente um caminho errado. O Marechal Deodoro resolveu mudar de direção. Rui Barbosa foi encarregado de redigir sobre a questão um longo Manifesto ao Parlamento e à Nação, que, assinado a 14 de maio pelo marechal, e pelo general Visconde de Pelotas, logo encontrou publicidade nas colunas dO País. Os meios parlamentares então emocionaramse, decidindo-se a intervir. Por iniciativa do verdadeiro gênio de conciliação que era o Conselheiro José Antônio Saraiva, Silveira Martins subia à tribuna do Senado seis dias depois, para dizer: “Sr. Presidente: o governo imperial, por resolução de 3 de novembro do ano passado, tomada sobre consulta do Conselho Supremo Militar de Justiça, firmou este princípio: “É livre ao militar, como a qualquer cidadão, o exercício do direito de liberdade de imprensa sem prévia censura, e contrária à disciplina qualquer discussão entre militares sobre objetos de serviço. 231 “Deste princípio deduz-se: “Que todas as penas disciplinares anteriormente a esta resolução impostas a militares por uso indevido da imprensa, fora do caso específico na consulta, constituem outros abusos, cujos efeitos devem cessar. “A ordem social não tem mais nobre e elevado fim do que a justiça, e não haverá justiça enquanto haja militares que sofram apenas por terem exercitado direitos que o governo reconhece aos seus camaradas. “Para que justiça se faça mando à mesa a indicação seguinte: “Requeiro que, à vista da imperial resolução de 3 de novembro de 1886, tomada sobre consulta do Conselho Supremo Militar, de 18 de outubro do mesmo ano, o Senado convide o governo a fazer cessar os efeitos das penas disciplinares, anteriores à resolução, impostas a militares por uso indevido da imprensa, fora do caso especificado na consulta do Conselho Supremo como contrária à disciplina do Exército.” A interpretação aí dada à resolução de 3 de novembro aceitava o destinguo, certamente curioso, levantado por Sena Madureira e Cunha Matos de que as discussões que haviam mantido pela imprensa não haviam sido discussões entre militares, mas entre militares e civis, não podendo, portanto, serem consideradas como contrárias à disciplina, apesar de versarem, como realmente versaram, sobre exclusivo objeto de serviço. Mas, posto a votos, o requerimento de Silveira Martins foi aprovado por 33 votos sobre 34. Contra, votou apenas o Senador Silveira da Mota. Cotegipe concordou, 232 exigindo apenas que a expressão o Senado aconselha, como fora escrito anteriormente, fosse substituída pela o Senado convida, como ficou. Entretanto, tudo encerrado, não pode ele deixar de confessar que o governo saia da refrega com alguns arranhões na dignidade... Mas, assim, tentava-se abafar de uma vez a inconseqüente e áspera questão. *** Força será reconhecer que, tanto da parte de Pelotas e Deodoro, como do lado da oficialidade que se considerava sob a proteção deles, nenhuma idéia política, compreendida propriamente no sentido partidário, podia haver em tudo aquilo. Tratava-se de uma questão de puro espírito de classe, tendente a uma equiparação desusada e arbitrária dos militares aos civis, no direito de livre manifestação do pensamento. O anseio inquieto e mais ou menos absurdo de elevação civil que ali se nota, era apenas produto do ambiente especial daquele instante em que todo mudo discutia e perorava, tomado de irresistíveis propensões para tribuno popular(19). Era a atmosfera geral da Abolição... Numa velha sociedade, com as suas várias categorias solidamente definidas por longa tradição, as cousas talvez se passassem de outra forma, melhor guardando cada um a sua exata posição. Mas num país americano recém -egresso da colônia, que precisamente revia no momento as suas bases econômicas ou os próprios fundamentos da sua vida social, 233 não havia muito como consolidar certos deveres na defesa consciente e determinada de dados interesses. A reclamar como uma prerrogativa de classe o direito de agir como toda gente, os militares apenas demonstravam que no Brasil daquele instante não havia classe alguma, tudo encontrando -se em fase aguda de solução. não se pode negar entretanto que, devido ao modo peculiar de evolução que nos coubera em meio aos grandes acontecimentos do início do século passado, nós já tínhamos uma certa consciência pública, um certo modo de ser político e sociológico, muito diferente do reservado aos outros povos do continente. Nem no Exército nem nos meios políticos verdadeiramente responsáveis alguém pensava em soldar a Abolição à República, ao calor de uma revolta de quartéis. A Questão Militar, até a sua penúltima hora, não teve realmente este caráter, sobre isto havendo provas e testemunhas irrecusáveis. Em junho de 1890, o general Visconde de Pelotas, que a ela tanto se ligara, como temos visto, escrevia ao Visconde de Ouro Preto: O pronunciamento da guarnição do Rio, que deu um resultado a proclamação da República, me surpreendeu mais do que a V. Exa. que dele teve aviso horas antes. Eu, porém, de nada soube até o momento em que o telégrafo nos transmitiu essa notícia (o general estava em Porto Alegre); recebendo nessa mesma ocasião a nomeação de governador deste Estado, que aceitei para evitar perturbação da ordem pública e talvez mesmo a guerra civil no Rio Grande do Sul. Não julgava possível a República enquanto vivesse o imperador, e daí a minha surpresa(20). Em 1900 foi dado à publicidade o Volume IV da Década Republicana. O Fascículo IX, no qual se estuda a administração do Exército no período republicano, foi 234 confiado ao Coronel Cunha Matos, já então elevado ao generalato. Examinando a mútua situação dos militares nos dois regimes, aí está como ele recorda a Questão Militar: Sob o Império, as prerrogativas de que gozavam os oficiais do Exército, “ex-vi” da Constituição e das leis, jamais foram violadas por quem mais alto estivesse (pág. 11)... Em 1886, o Exército do Império, unido, teve bastante força e ombridade para, levantando a Questão Militar, alcançar notável vitória parlamentar contra o governo(21). Tratava-se do direito que tinham os oficiais do Exército de recorrer à imprensa, fora dos casos não permitidos por disposições expressas (pág. 13). Insistindo ainda no direito dos militares a manifestarem-se livremente pela imprensa, o General Cunha Matos mostra bem as agitações em que tomou parte não iam além de uma formal afirmação daquele suposto direito, sem outras nem maiores pretensões políticas. Não deixa também de ser interessante recordar que o Tenente-Coronel Sena Madureira, para eximirse em 1884 às explicações que lhe ordenava o ajudante-general do Exército sobre o incidente do jangadeiro Nascimento, na Escola de Tiro de Campo Grande, se procurava cobrir coma autoridade do marechal Conde d‟Eu, diretor-geral da artilharia, de certa forma defendendo senão mesmo exaltando essa autoridade. Ora, o príncipe consorte, por vários motivos que de tão propalados na época não vale a pena relembrar, era nos meios republicanos o menos estimado de todos os membros da família imperial. Uma das mais freqüentes alegações de inviabilidade da Monarquia, após a morte do Imperador Pedro II, era exatamente a possível influência que ele viesse a ter no reinado de sua esposa. Como explicar então que Sena Madureira, se já era republicano e realmente agia no sentido 235 da revolução antimonárquica, se quisesse precisamente acobertar com o prestígio de tão detestada e característica entidade? Dirão talvez que ele assim fazia por simples estratagema. Força será porém reconhecer que tal suposição de nenhum modo se coadunaria com o caráter do impetuoso oficial, no qual tudo se poderá encobrir, menos uma irredutível e quase feroz sinceridade. Ora, a Questão Militar, nem para os homens do Exército, nem para aqueles outros que por sua posição nela se viram envolvidos, nunca teve o caráter de uma conspiração política, preparada com exata consciência e com método conduzida. Para uns como para outros, foi sempre um caso de disciplina, disciplina que os primeiros pretendiam rel axar ou tornar mais flexível, e os outros queriam manter nos limites legais estabelecidos. A própria resolução do Senado, convidando o governo a cancelar as sanções anteriores, serve para demonstrar a completa ausência de um real senso político em tudo aquilo. Estando no poder um governo conservador e partindo a moção de senadores liberais, poder-se-ia talvez descobrir na iniciativa um golpe partidário contra o Gabinete. Mesmo no Senado houve quem a quisesse assim considerar. Lançada a idéia da moção por Silveira Martins, com o apoio de Saraiva, Outro Preto e Francisco Otaviano, logo Sousa Dantas, Franco de Sá e Cândido de Oliveira discordaram, sob o fundamento de não desejarem o poder por aqueles meios. Tudo porém foi explicado. Não se tratava de um ataque ao gabinete, mas, bem ao contrário, de facilitar-lhe uma saída daquele impasse. Ouro Preto, para não deixar qualquer suspeita, insistiu em que realmente o Partido Liberal não poderia voltar ao governo por um caminho aberto pelas baionetas, sendo 236 secundado por Silveira Martins que ajuntou: O Partido Liberal não assalta o poder por meio de pronunciamentos militares. Estas declarações eram profundamente sinceras, pois além dos motivos morais que as ditavam, havia para as apoiar ainda as mais sérias razões de caráter partidário. Realmente, entre a demissão do último gabinete Saraiva e a Abolição, não podiam os chefes liberais pretender a sucessão do governo Cotegipe. O esforço que eles faziam no sentido de resolver a Questão Militar era, portanto, sem o mínimo egoísmo e animado do mais nobre desinteresse, entrando aliás naquela tendência à intimidade interpartidária que temos estudado como uma das manifestações mais características daquele instante. Cotegipe foi de tudo previamente ouvido e consultado, tendo resu mido o seu assentimento nesta frase: Sim pois não me viriam propor o que não fariam se, como eu, fossem governo. Se a Questão Militar não tinha caráter político nem para os oficiais que a lançaram, nem para os estadistas da Monarquia que a tiveram de enfrentar, restaria saber como a viram os políticos republicanos. Desse lado existe um documento extremamente conclusivo. É um discurso pronunciado por Bernardino de Campos na Assembléia Legislativa de São Paulo no dia 6 de fevereiro de 1888, sobre cousas da propaganda, imediatamente ligadas à política do tempo. Mas, aqui, sobretudo para o leitor que ainda não teve em mãos Os Republicanos Paulistas e a Abolição devemos intercalar um pequeno retrospecto. O Partido Republicano Paulista, logo ao nascer em 1873, dividiu-se em dois ramos em torno ao problema da extinção do cativeiro. De um lado, ficaram, em seu maior número, os membros do antigo Clube Radical, que, havendo 237 sempre considerado a Abolição como o ponto principal do seuprogama, mantiveram-se inquebrantavelmente fieis à campanha libertadora. De outro, tomaram posição os homens da lavoura, todos proprietários de escravos em suas terras, que, tendo aderido às idéias republicanas em represália à lei de 28 de setembro de 1871 que libertou os nascituros do ventre escravo, não podiam aceitar os princípios contra os quais exatamente se revoltavam. Entre estes dois grupos maiores, ficou um terceiro, composto de radicais que resolveram respeitar as reservas antiabolicionistas dos fazendeiros, em nome da prosperidade ou da pujança do partido. Dado que o lado dos senhores agrários, somado ainda aos radicais condescendentes, era o mais numeroso e mais rico, foi naturalmente o que logo predominou nos pontos diretores, levando o partido, nas suas manifestações oficiais, a totalmente desinteressar-se das cousas da Abolição. O outro lado, a lutar bravamente pela emancipação dos negros, foi mantido em segundo plano, não merecendo lugares na comissão diretora nem cadeiras no Parlamento. Mas, tendo a campanha abolicionista chegado a tudo dominar e absorver na vida do país, o partido foi caindo num certo esquecimento, tendendo a minguar, senão mesmo a dissolver-se. Depois de haver logrado enviar dois deputados ao Parlamento nacional, o Partido Republicano Paulista, nos fins de 1887, já não sabia como guardar dignamente a sua posição na Assembléia da província. Foi então resolvido, a título de salvação, abdicar francamente perante o abolicionismo. Por decisão conjunta dos elementos principais do lado agrário, foi eleito deputado ara a próxima legislatura provincial e elevado à presidência da comissão diretora o advogado Bernardino de Campos, no 238 momento, a figura mais notável e de maior prestígio do ramo abolicionista(22). Muito acatado não só pelos seus antigos companheiros do Radicalismo como por um grande número de homens novos recém-chegados à vida pública, não foi difícil ao presidente recém-eleito imprimir ao partido uma vida nova. Pondo logo em ação intensiva todos os meios usuais de propaganda da imprensa diária e da tribuna popular, ele promoveu ainda uma representação de várias câmaras municipais ao Parlamento do Império, pedindo a imediata reforma da Constituição de 1824, nos seus dispositivos sobre a forma do governo. O Barão de Cotegipe, presidente do Conselho de Ministros, manda ao presidente da província que faça proceder judicialmente contra os vereadores tornados responsáveis. Naquele dia 6 de fevereiro, Bernardino de Campos, já empossado na sua cadeira de deputado, vem à tribuna da Assembléia defender as câmaras inculpadas. Da discussão geral então aberta, resultou uma moção de censura à presidência da província, que, aprovada por grande maioria com participação dos representantes do Partido Conservador, que sustentava o gabinete, se converteu numa demonstração de rompimento da seção paulista daquele partido com o presidente do Conselho. Ali começou realmente a crise ministerial que, no dia 7 do mês seguinte, determinava a demissão do gabinete Cotegipe, abrindo a porto ao governo João Alfredo, para, dois meses depois, trazer a Abolição. No seu veemente requisitório contra o Ministério Cotegipe, Bernardino de Campos não se limitou apenas ao caso especialmente republicano das câmaras municipais. Abrangeu toda a vida do gabinete, envolvendo com as suas atitudes 239 perante a campanha abolicionista as suas recentes medidas sobre os últimos incidentes da Questão Militar. Mas, avocando ao seu partido a defesa das câmaras municipais, ao mesmo tempo que oficialmente o articulava ao movimento abolicionista, ele não pôs menor empenho nem menor veemência em escoimá-lo de qualquer sombra de interesse ou simpatia pela escandalosa manifestação de indisciplina partida dos quartéis. Perante os conceitos que então emitiu sobre a posição na qual se colocou o governo Cotegipe ao aceitar a moção de cancelamento das sanções disciplinares, não há realmente como admitir qualquer ligação de princípio entre a Questão Militar e a propaganda republicana. Para ele, tão abusiva e reprovável era a atitude dos militares, quanto deprimente e lamentável a tolerân cia contida naquela decisão. Ao concluir o seu discurso, ele insistiu ainda. Será necessário que eu rememore outra vez as capitulações aviltantes do poder público, toda vez que o poder armando se ergue diante dele?... Bernardino de Campos não somente condenava ser reservas a rebeldia militar, como tinha por indignos de exercer o poder público aqueles que com ela condescendiam. Considerando-se que tais idéias partiam do presidente do PRP, isto é, do elemento naquele instante mais representativo e autorizado do único partido republicano realmente existente, temerário não seria admitir que os verdadeiros republicanos - os vindos ara a República por evolução consciente e normal do liberalismo – não podiam ver a hipótese de uma ascensão ao poder ao sabor de um pronunciamento militar com menor repulsa que Ouro Preto, Silveira Martins ou qualquer outro dos grandes chefes liberais. 240 Dentro das condições históricas e sociais do povo brasileiro, a Questão Militar foi bem uma das várias manifestações do ambiente mental da Abolição. Igual na origem à confusão dos partidos, e dessa confusão participando a todo instante, ela naturalmente se resolveria, uma vez cessada a causa geral da agitação. Só quem não calcular quando a escravidão se entranhava na vida brasileira, terá como desarrazoado ou excessivo este conceito. Quando, com a subversão das bases econômicas da sociedade, as várias relações se alteram e se deslocam, como manter intangível uma instituição como o Exército, que, destinada a materialmente garantir aquelas relações, sobretudo repousa na obediência? Mas o abolicionismo era apenas um grande momento de transição. Passado ele, tudo se restabeleceria na ordem normal da nossa evolução, segundo os nossos velhos hábitos políticos. Os partidos tradicionais automaticamente se recomporiam em plano diferente, restabelecendo-se com o novo equilíbrio das idéias a disciplina geral correspondente. Assim, devia operar-se a passagem da Monarquia ara a República, se o fenômeno abolicionista se tem encerrado normalmente, em todas as suas faces e repercussões, sem qualquer intervenção estranha ou acidental. A todos era patente que a Monarquia portuguesa, naturalizada brasileira na pessoa do Imperador Pedro II, inevitavelmente se extinguiria com a morte do grande neto de D. João VI. Todos assim pensavam, todos desta fatalidade histórica estavam certos. Mas a ninguém ocorria que a grande transição, aliás bem pouco significativa em sua ausência, se operasse por um golpe militar. Ninguém queria nem mesmo acreditava que assim fosse. Para admitir uma possível 241 transformação política do Brasil sob a forma sumária e primitiva de uma revolta de quartéis, seria indispensável estar fora da mentalidade brasileira, sentindo contra a nossa índole e pensando para além das nossas fronteiras nacionais. Ora, esta era exatamente a posição, ou, melhor, este era o exótico e forasteiro ponto de vista de Quintino Bocaiúva... NOTAS (14) Havendo as autoridades da Marinha concentrado as suas atenções um pouco especialmente sobre o Comandante Saldanha da Gam a, os seus companheiros de comissão, apesar de ele não concordar, resolveram exclui-lo, dando-lhe como substituto o 1º Tenente Pinheiro Guedes. (15) Aliás, no seu perpétuo conflito com as exigências da disciplina militar, o Coronel Sena Madureira fôra certamente um predestinado. Já em 1868, quando ainda oficial subalterno servindo na guerra do Paraguai, ele chegou, num momento de irritação, a pedir demissão do Exército. Enviado o seu requerimento ao Marquês de Caxias, para informar, aqui está o que disse o grande general em chefe dos exércitos aliados: “É oficial de inteligência e tem mostrado valor, mas é muito insubordinado, pelo que acaba de cumprir uma sentença, imposta pela Junta Militar, em conseqüência de ter falado a respeito a um general deste Exér cito, debaixo de cujas ordens servia. Talvez seja por despeito que agora pede demissão e parece-me que ela lhe não deve ser concedida, não só porque não o julgo com direito adquirido, como mesmo porque tal concessão iria ofender diretamente a disciplina do Exército, além de ser falso que tenha numerosa família, pois é moço e solteiro.” (16) No Cap. XI da Política Geral do Brasil, págs. 189 a 201, demos o projeto Paranaguá como sendo o ponto de partida da Questão Militar. Orientados porém pelas Efemérides Navais, do Comandante José E. Garcez Palha (supomos que aquele mesmo 1º Tenente da comissão de 1879), pág. 43, ed. da Tipografia da Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1891, conseguimos agora restabelecer os dados daquele verdadeiro incidente inicial. 242 (17) Essa acusação, trazida do Paraguai como simples suspeita por desafetos do coronel, nunca teve a menor confirmação nem o menor fundamento sério Na segunda batalha de Tuiuti, a 3 de novembro de 1867, os paraguaios conseguiram apoderar-se, logo no início da ação, de toda a artilharia de três fortins argentinos, aprisionando ainda o nosso 4º batalhão de artilharia, com a bandeira e o comandante, que era o então Major Cunha Matos. Com o material de artilharia assim adquirido, eles apossaram-se de numerosas peças raiadas, atirando com obuses cilíndricos, o que representava um grande progresso sobre a sua velha artilharia de campanha, de alma lisa e bala esférica. Foi daí que lhes veio o fogo de maior alcance e mais justo que nos puderam dirigir nos dias subseqüentes, e não da circunstância de terem o oficial brasileiro entre os seus prisioneiros. O fato de o general Visconde de Pelotas, um dos nossos chefes mais ilustres em toda a campanha do Paraguai, ter ficado do lado de Cunha Matos naquela discussão, já é bastante para tirar àquelas suspeitas qualquer caráter de verossimilhança. (18) Essa resolução fôra realmente formulada, apoiando -se num parecer do Conselho Supremo Militar de Justiça, de 30 de outubro daquele ano, provocado pelo próprio governo. (19) Numa comunicação feita ao governo em 11 de novembro de 1889, sobre o recente embarque do 22º de Infantaria para o Amazonas, dizia o general Barão de Rio Apa: ...antepor a popularidade à disciplina (hoje um mal de que são atacadas todas as classes)... Vide Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar no Brasil, Imprimerie Pichon, Paris, 1891, págs. 37 e 38. (20) Vide Tobias Monteiro, Pesquisas e Depoimentos para a História , ed. Alves, Rio de Janeiro, 1913, págs. 146, 146, 148. (21) O general faz aí a tácita apologia daquilo que, quando coronel, chamava a tribuna irresponsável. A liberdade, em qualquer das suas formas, é realmente como a saúde, cujo valor só conhecemos depois que a perdemos. (22) O núcleo inicial do Partido Republicano Paulista foi o Clube Radical, fundado em São Paulo em 1868 e do qual faziam parte Luís Gama, Américo de Campos, Bernardino de Campos, Campos Sales, Prudente de Morais, Francisco Glicério, Martinho Prado Júnior, Jorge de Miranda, 243 Luís Quirino dos Santos, Jaime Serva, Antônio Lôbo e muito s outros. O Clube Radical, calcado sobre o de igual nome do Rio de Janeiro e seguindo a orientação local de José Bonifácio (o moço), era abolicionsita. Em 1870, com o aparecimento, a 3 de dezembro, do jornal A República, trazendo o Manifesto Republicano, o clube do Rio mudou o nome para Clube Republicano, no que foi imitado logo pelo de São Paulo, com adesão de todos os seus membros às idéias do manifesto. Ao mesmo tempo declararam-se também pelas mesmas idéias o Dr. Américo Brasiliense e os jovens fazendeiros João Tibiriçá Piratininga, José Vasconcelos de Almeida Prado e Carlos Vasconcelos de Almeida Prado, sem entretanto pedirem a sua inclusão no clube. Ficaram um pouco à parte. Em 1871, como reação à Lei do Ventre Livre, numerosos fazendeiros da província entraram também a declarar-se republicanos, com tanto mais decisão quanto Quintino Bocaiúva, nas colunas d A República, mostrava-se adversário daquela lei. João Tibiriçá e os irmãos Almeida Prado começaram então a pleitear a fusão dos fazendeiros com os antigos radicais num só partido, recorrendo para esse fim a Américo Brasiliense que em ambos os grupos dispunha de grande estima. Américo Brasiliense aceitou o encargo, promovendo uma primeira conferência que teve lugar a 17 de janeiro de 1872. Dadas porém a s ressalvas sobre o problema do cativeiro que os lavradores quiseram fazer incluir nas bases de programa do futuro partido, a segunda conferência, marcada para dali a poucos dias, não se realizou, por não haverem comparecido os radicais. Uma nova reunião foi marcada para 24 de outubro, sem melhores resultados, o mesmo acontecendo ainda numa outra fixada para 25 de dezembro. Mas, nas noites de 27 e 28 de fevereiro de 1873 dá -se no Rio qualquer cousa que profundamente irrita os meios republicanos de São Paulo. A redação dA República, na Rua do Ouvidor, foi violentamente apedrejada à visa da polícia, que de nenhum modo de opôs, daí resultando o fechamento do jornal. Os antigos radicais fizeram então saber aos fazendeiros que estavam prontos a com eles reunir -se quando quisessem. Resultou daí a convenção de Itu, de 18 de abril, onde se teve por fundado o Partido Republicano Paulista, sem contudo tratar -se do programa a adotar, o que foi reservado para uma nova reunião a realizar -se em São Paulo, no dia 1 de julho. O novel partido quase aí se despedaça. Luís Gama não quis aceitar as restrições antiabolicionistas incluídas no programa, no que foi acompanhado pelos irmãos Campos e muitos outros dos seus amigos. Graças porém ao hábil e intenso trabalho desenvolvido por Francisco Glicério ao correr da noite, a reunião pôde recompor -se no dia seguinte, sendo o programa afinal aceito tal como fôra apresentado. É evidente entretanto que Luís Gama e seus mais fiéis companheiros na 244 campanha abolicionista, se consentiram em manter-se nos quadros da nova agremiação, evitando a sua imediata dissolução, só o fizeram com as mais sólidas e tenazes reservas de consciência. De modo algum se desinteressaram do movimento libertador, a ele dedicando sem cessar o melhor das suas energias. Falecido Luís Gama em 1882, Bernardino de Campos ficou sendo o centro daquele grupo que, associando -se ao trabalho heróico de Antônio Bento para a evasão dos escravos das fazendas, enriqueceu-se de um grande número de homens novos, como os advogados Adolfo Gordo e Muniz de Sousa, os engenheiros Bueno de Andrada e Garcia Redondo, o médico Silva Pinto e os estudantes Carlos Garcia, Júlio de Mesquita, Paula Novais e Hipólito da Silva. Foi exatamente nestes que, em 1887, Bernardino de Campos assentou a parte mais vivaz e impetuosa do seu esforço de regeneração do PRP. Os leitores que não leram Os Republicanos Paulistas e a Abolição , onde vem a história detalhada de todos esses fatos, devem reter esses nomes porque de muitos deles nos ocuparemos a seguir. CAPÍTULO III A INTERFERÊNCIA HISPANO-AMERICANA Um dos aspectos mais desconcertantes da Questão Militar, para quem hoje a examina, é a sua grande capacidade de resistência a todas as tentativas de solução, renascendo a ressurgindo continuamente de novos e inesperados incidentes. Entretanto, se bem se consideram as mútuas disposições de ânimo, nota-se que, tanto do lado dos militares como dos políticos civis, o sentimento predominante nunca deixou de ser um grande desejo de a encerrar e concluir, como se a ninguém escapasse o escabroso e a gravidade da sua prolongação indefinida. Esse sentimento é evidente e geral 245 sobretudo no período em que as maiores patentes se resolvem a intervir, entre fins de 1886 e princípios de 1887. De uma parte como de outra apela-se para a prudência, insiste-se na necessidade de preservar a ordem pública, invocam-se os altos interesses da nação, sem esquecer jamais um gesto reverente na direção do imperador... Qual seria porém o persistente germe de inquietação, a mola ágil e bem tendida que de cada vez provocava nos novos choques, determinando novos sobressaltos? Para o saber com segurança basta recordar que, entre a partida de Sena Madureira para o Rio Grande e a chegada de Cunha Matos do Piauí, se coloca o lançamento dO País, a 1º de outubro de 1884. Ricamente montado com maior e petrechos de que talvez nem mesmo o Jornal do Comércio dispusesse naquela época, o novo diário não aparece como órgão republicano, nem se declara por qualquer das correntes partidárias existentes no momento. A titulo de programa, dizem os seus lançadores: “O País” tem a sua origem no comércio; nele assenta particularmente o apoio das simpatias a que deve a sua existência; com ele se honra de associar-se na devoção dos eminentes interesses nacionais que essa nobre classe representa. A inscrição do nome de Joaquim José dos Reis Júnior no cabeçalho, como proprietário, corroborava essa declaração de ofício, precisando um pouco mais quais eram aqueles interesses. Eram sobretudo os do comércio de importação de secos e molhados... Reis, homem de íntimas ligações de família e de negócios com o Norte de Portugal, depois elevado pelo governo de Lisboa a Conde de São Salvador de Matosinhos, era um dos maiores representantes daquele ramo na praça do Rio de Janeiro. Possuidor de um grande trapiche no bairro Saúde, o Trapiche Reis, ele justamente saía de uma longa querela com o Ministério da Fazenda sobre classificação de certos vinhos na pauta aduaneira. Esse programa um tanto específico não impedia 246 entretanto a folha de ostentar na sua primeira coluna um artigo magnificamente político, no qual se lia esta sonora e clara apologia: Enquanto o regime parlamentar for, como até hoje, a mais perfeita expressão da inteligência humana aplicada à administração das sociedades civilizadas, os partidos que constituem a alma desse regime, continuarão a ser necessidades nacionais da ordem mais elevada... Compreende-se: era Rui Barbosa o chefe da redação. O brilhante tradutor de O Papa e o Concílio, sendo um escritor maravilhoso, não era entretanto um verdadeiro jornalista, com todas as pequenas qualidades que, ao lado do talento, completam os homens dessa classe.Faltava-lhe o gosto dos detalhes, esse igual interesse por todas as seções da folha, que vela o bom jornalista a por tanta arte num grande artigo de fundo, quanto numa crônica qualquer ou numa simples notícia de polícia. Para isto, lá estava Quintino Bocaiúva. Rui Barbosa, nos dois números seguintes, deu dois esplêndidos artigos sobre a Abolição. Raramente, em espaço tão pequeno, a questão fora estudada com tanta elevação e tanto brilho. Mas, tanto no jornalismo concorrente como nos vários meios políticos e parlamentares cresciam as indagações sobre o verdadeiro programa do jornal. Falava-se em órgão do Trapiche Reis, surgiam maliciosas expressões como esta, empregada pelo Correio Paulistano ainda em 1887: arauto de excelência das vinhas do Alto Douro... Fosse pelos incômodos dessa maledicente curiosidade, fosse por discrepância de doutrina ou qualquer outro motivo não sabido, Rui Barbosa, ao quarto dia, deixava a redação. Quintino Bocaiúva, desde o primeiro número, havia inaugurado uma coluna permanente sob o título de Resenha Diária, onde com grande sagacidade ia comentando tudo quanto em política se passava. Fora aí que aparecera aquele programa, tido por indiscreto e pitoresco, da solidariedade com os interesses do comércio. Com a saída de Rui 247 Barbosa, a Resenha Diária saltou para a primeira coluna, aceitando bravamente a discussão sobre a alegada insuficiência de programa e vivamente metendo à bulha os que se compraziam em tais futilidades... Nestes dados sobre a fundação e os primeiros dias dO País, ninguém veja entretanto, da parte de Quintino Bocaiúva, a menor sombra de interesse pecuniário ou qualquer propósito de lucro. Tais preocupações nunca existiram para ele. Extremamente sóbrio e de uma grande austeridade para consigo mesmo, ele tinha as maneiras e os hábitos de um asceta. O dinheiro, como garantia de bem-estar e fonte de prazeres, jamais teve sobre ele a mínima influência. Discreto e comedido, qualquer coisa lhe bastava. O seu único luxo consistia na correção do traje, sempre igual e sempre o mesmo, fazendo-se porém notar por um aprumo irrepreensível e um asseio meticuloso. José do Patrocínio chegou a dizer que aquele homem extraordinário não precisava de dinheiro para viver. Bem cedo casado e pai de filhos, a sua vida doméstica, cercada de um grande recato, era de uma sobriedade que tocava de perto a parcimônia. Muitas vezes mortificado por exigências de credores, sempre por somas em extremo moderadas, ele, para livrar-se de tais dificuldades, nunca consentiu em afastar-se do que julgava ser a sua honra ou o seu dever profissional. O gozo, a ostentação, a simples comodidade, não tinham presa sobre ele. Só uma coisa o movia e realmente interessada. Era a sua idéia política, concretizada sobretudo, senão exclusivamente, na substituição pura e simples da Monarquia pela República. O jornalismo nunca lhe fora uma indústria deveras proveitosa, nem mesmo um passável meio de existência. Privado do seu primeiro jornal, A República, cuja publicação suspendera a contragosto em fevereiro de 1873, ele sujeitou-se a trabalhar a módico salário e por vários anos em empresas nas quais não tinha a 248 menor parte. De todas estas, do O Globo aquela em que mais se demorou. Na última fase dessa folha, em 1881, chegou a ser o seu principal editor, senão mesmo o seu proprietário. Nesse posto faltava-lhe porém o tino comercial indispensável. Certos aspectos da publicidade jornalística, onde em geral se encontram os mais pingues resultados, não eram para ele os mais dignos de atenção. O Globo não se manteve... De cada vez caia-lhe assim das mãos o grande instrumento com o qual sonhava realizar a sua eterna aspiração, Dados estes antecedentes, como admitir que ele pudesse abandonar, tal como o fazia Rui Barbosa, já notável advogado, o grande jornal que se lhe oferecia, com aquela montagem magnífica e os sólidos meios inerentes ao seu programa imediato ou declarado? Os interesses do comércio de secos e molhados!... Não há dúvida. Mas, se esses interesses eram legítimos e na sua significação coletiva podiam ser tidos por nacionais, por que não assentar sobre eles, pelo menos de início, a grande obra nacional da pregação republicana: Ele não teve indecisões... O grande jornalista, entretanto, nunca conseguiu ver os negócios do Brasil do ponto de vista realmente brasileiro, isto é, dentro da nossa evolução política normal, segundo aquela forma peculiar luso-americana. Ele pensava e escrevia como se a redação do seu jornal se colocasse, não na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, mas na Calle Flórida ou na Calle Corrientes de Buenos Aires. Era no rio da Prata, com os seus tribunos lidadores e as suas agitadas mutações governamentais, que ele se inspirava, de lá vindo os seus padrões políticos mais sugestivos e recomendados. Ali sim, havia convicções, havia caráter, havia coragem nas idéias e firmeza nas atitudes... A sua preferência por aqueles costumes e processos era toa insistente e acentuada que com freqüência foi posta em dúvida a sua nacionalidade. Durante a sua permanência em Buenos Aires, no 249 correr da guerra do Paraguai, encontrando-se ele ligado às nossas forças navais, como funcionário da Fazenda, a sua assiduidade nos meios argentinos chegou a irritar seriamente os brasileiros. Daí lhe vieram mesmo alguns desagradáveis incidentes. Uma vez, estando ele na companhia de vários argentinos no camarote de um teatro onde se dava um baile de carnaval, um dominó, do camarote ao lado, entrou a perguntar-lhe com motejada insistência se afinal de contas era ele argentino ou brasileiro... O dominó era o Primeiro Tenente Antônio Pedro Alves de Barros, do couraçado Silvado, que ali estava com alguns outros jovens oficiais da nossa esquadra. Não há dúvida entretanto de que Quintino fosse brasileiro. Por uma certidão de batismo expedida pela igreja paroquial do Sacramento da Sé, no Rio de Janeiro, já várias vezes publicada, é hoje sabido que ele era carioca, tendo nascido a 4 de dezembro de 1836, numa casinha existente no lugar onde agora se eleva o Gabinete Português de Leitura, à Rua Luís de Camões. Tendo porém muito cedo perdido o seu pai, de nome Quintino Ferreira de Sousa, deve ter sofrido uma influência muito grande de sua mãe, D. Maria Candelária Moreno d‟Alargon, que era argentina. Até uma certa idade, pode-se mesmo supor que falasse de preferência o castelhano. Pelo menos, são nesta língua as primeiras produções literárias que se lhe conhecem(23). Eram certamente grandes o seu amor e a sua filial admiração pela Argentina... Assentadas as suas idéias nestas bases sentimentais, não podia Quintino Bocaiúva conceber a nossa passagem da Monarquia para a República, segundo os nossos métodos habituais de evolução legal. O problema era por ele colocado nos seus dados iniciais do princípio do século XIX, quando a noção de liberdade se resumia para os povos hispano-americanos no simples repúdio do poder absoluto, representado no rei de Espanha, tomando portanto a forma de um 250 conflito irreconciliável, solúvel apenas pelas armas. O processo evolutivo aqui desenvolvido entre a chegada de D. João VI e a Abolição, era por ele eliminado, para serem tomados os oitenta anos correspondentes como simples expressão do nosso atraso perante as várias Repúblicas do continente. Admitir que a nossa Monarquia parlamentar indicasse um progresso qualquer sobre as confusas e atormentadas instituições hispano-americanas, parecia-lhe uma desprezível heresia, senão uma pura falsidade. O nosso aparelhamento legal, com as suas garantias liberais, era uma simples simulação, por trás da qual existia apenas o irresistível poder pessoal do imperador... A história do Brasil, entre o encerramento da era colonial e o advento da República, tinha de ser revista, ara adaptar-se por amputação à história geral dos nossos irmãos americanos. Este era o seu programa!... É claro que, de semelhante ponto de vista, a nossa transformação política só podia ser de caráter militar. Não havia como fazer do presente uma transação entre o passado e o futuro, pois tratava-se de uma ruptura essencial e absoluta. Retomando a tradição continental dos Bolívar, dos San Martin, dos O‟Higgins, dos Miranda, era indispensável fazer surgir também aqui o herói de brilhante armadura que enfrentasse e abatesse a hidra da Monarquia, sendo óbvio que, em se tratando de heróis, logo se lançasse os olhos para a mais próxima caserna... E aí está como O País, no qual a fácil malícia dos contemporâneos quis ver o órgão do Trapiche Reis, foise constituindo sobretudo em órgão da Questão Militar! Podemos hoje aceitar com segurança que, se não fosse O País, jamais a Questão Militar se teria arrastado tão persistente e teimosa até o golpe de 15 de Novembro. Quintino Bocaiúva, da redação do seu jornal, foi o guarda vigilante e o incansável animador daquela chama. Era ele que destacava as posições e punha em relevo 251 as circunstâncias, determinando, por via de conseqüência, os novos incidentes.É preciso notar entretanto que o hábil e tenaz propagandista não ligava diretamente a agitação militar à sua revolução republicana. Tratava apenas de incompatibilizar o Exército com o governo imperial, como se abrisse uma fenda na qual a idéia da República se introduzisse como uma cunha, para fazer ruir a Monarquia. Ele nunca teve os militares como suficientemente preparados para uma conspiração consciente e decidida. Não é que não encontrasse oficiais republicanos. Entre os signatários de um severo e curioso Termo de Compromisso e Adesão, firmado nos dias 20 de setembro e 27 de outubro de 1877, para revigoramento da propaganda republicana no Rio de Janeiro(24), encontram-se alguns oficiais bem conhecidos como Moreira César, Dantas Barreto e Vespasiano de Albuquerque, dos quais os dois últimos chegaram ao generalato no período republicano. O fato de pertencer ao Exército, não os eximia entretanto de pensar sobre a matéria como em geral pensavam todos os brasileiros, fossem ou não republicanos. Nenhum deles naquele documento figurou como soldado, pondo em jogo a sua espada, mas como homem livre, capaz de aceitar livremente uma idéia e por ela sinceramente comprometer-se. Em perfeita identidade de sentimentos com Aristides Lôbo, promotor daquele ato, nenhum deles cuidava em mudar as instituições do seu país por um golpe militar de estilo hispano-americano. Obrigados a freqüentes contatos com o rio da Prata, tanto pelas exigências militares da nossa recente política exterior no Paraguai como pelas condições das nossas comunicações com a província de Mato Grosso, eles por demais conheciam aqueles métodos, não guardando por eles nenhuma admiração nem a mínima simpatia. Para supor o contrário, será indispensável ignorar como eles se referiam às que então chamavam as republiquetas do sul... 252 Coerente com suas preferências pelo caudilhismo republicano, de caráter necessariamente militar, Quintino Bocaiúva aplicou-se especialmente a exaltar o amor-próprio dos militares, opondo aos escrúpulos tradicionais da disciplina a noção nova do cidadão fardado ou soldado-cidadão por ele criada. O ambiente especial do abolicionismo, que temos examinado, não só lhe facilitava como mesmo inspirava-lhe esse programa auxiliar de forma indireta e provisória. O País foi-se tornando em órgão declarado da classe militar, que nele passou a ter a sua melhor fonte de informações e o eco mais seguro das suas aspirações e das suas queixas. Não havia pelas províncias um batalhão, um regimento ou uma companhia isolada onde não se encontrasse pelo menos um assinante dO País, que, lendo-o, em atenta roda de camaradas, o devia ainda passar de mão em mão, até a chegada do próximo correio. Devido à orientação acentuadamente erudita e filosófica impressa por Benjamim Constant ao ensino militar, havia no Exército um grande número de jovens oficiais com fortes e mesmo brilhantes tendências literárias. Firmassem eles ou não as suas produções jubilosamente se lhes abriam as colunas dO País. Para dar uma idéia exata da influência que o grande jornal chegou a adquirir nos meios militares, basta dizer que, entre os vários motivos de felicitar um companheiro que de uma guarnição qualquer partia para o Rio de Janeiro, havia o de ir poder ler O Pais do mesmo dia!... Este foi, a partir do caso Sena Madureira de 1884, o segredo, o fermento constante e inesgotável da Questão Militar, em todas as suas fases e nos seus mínimos e mais remotos incidentes. Entretanto, muito bem guardou-se Quintino Bocaiúva de revelar aos seus amigos aonde realmente os conduzia., Uma proposta clara e direta de tomar armas contra o imperador naquele instante teria sido de uma insigne imprudência. Primeiro, provocaria no seio do Exército, na grande 253 maioria dos oficiais, a natural indignação que jamais deixamos de sentir por quem nos pretenda embair ou ludibriar, fazendo-nos ir mais longe do que sinceramente o desejamos. Em seguida, tirando as autoridades da Monarquia e a própria sociedade brasileira da constante perplexidade em que viveram ante a inconseqüência e o absurdo daqueles fatos, logo indicaria o ponto exato sobre o qual se deveria agir para por ordem em tudo aquilo. Na preparação do cancelamento das sanções disciplinares, em 1877, o fim visado por Quintino Bocaiúva no seu entranhado zelo pelos brios do uniforme não deixou de ser apontado pelo Barão de Cotegipe. Escrevendo ao Visconde de Ouro Preto sobre os termos da resolução senatorial, dizia o presidente do Conselho: O Ministério aceita o meio lenbrado por V.Exa., mas parece-me que devemos acordar previamente nos termos da moção; e quem melhor a pode redigir do que V. Exa.? É o que lhe peço. Não aprovo que dela se possa concluir que o Senado se constitua procurador para requerer em nome de terceiros. Zelando tanto a dignidade deste quanto zelo a do governo, desejo que a de ambos fique intata. Leu o que disse “O País”? É natural que desaponte (o cancelamento visou afrouxar a tensão entre os militares e o governo) e por isso já de prevenção atava os partidos e o parlamentarismo. A razão é clara: perde a oportunidade de embarcar a República em águas revoltas(25). Um fracasso dos planos subversivos de Quintino Bocaiúva, perante a decisão tomada pelo Senado, era tanto mais aceitável por Cotegipe quanto mais certo estava ele de que o Exército realmente não participasse das idéias do direito dO País nem de nenhum modo concordasse como seus métodos. O ministro não deixava de ter bons motivos para assim pensar, pois não há dúvida de que, até aquele momento, os militares de nenhum modo admitiam qualquer intimidade da sua questão profissional com a propaganda republicana. Quando, após a reunião 254 do Recreio Dramático, se tratou do requerimento individual do cancelamento das sanções, tanto a maioria dos oficiais tinha aquela solução por boa e perfeitamente aceitável que, em face das últimas resistências de Sena Madureira e Cunha Matos, Benjamim Constant foi solicitado a dissuadi-los de tanta intransigência. Para isto combinou-se uma entrevista dos três no escritório do advogado Alfredo Madureira(26). Ao ver que eles não cediam, o prestigioso e festejado professor da Escola Militar severamente retrucou-lhes: Os senhores são uns turbulentos que querem fazer a República. E, dando por finda a entrevista, levantou-se, confirmando com veemência: Devem requerer o trancamento das notas... Ora, por aí se vê que a articulação da Questão Militar com a revolução republicana, sonhada por Quintino Bocaiúva , não só não era aceita nem mesmo conhecida nos meios militares, como podia ainda a sua simples suspeita provocar indignação. Desde porém que a anulação dos atos disciplinares era tida como questão de honra para os dois interessados, com eles tendo-se considerado todos solidários, só eles tinham afinal o direito de decidir. Foi assim que se chegou ao remédio heróico do Manifesto ao Parlamento e à Nação, com a sua conseqüência da moção senatorial, É claro, é evidente que os militares obtiveram todas as satisfações, nos limites máximos em que as quiseram e formularam, nenhum resíduo devendo restar das suas amarguras. Cotegipe portanto não deixava de estar certo, dando os planos dO País como frustrados. *** Mas Quintino Bocaiúva não era homem a desnortear-se facilmente. Emprestando logo à resolução senatorial o caráter de um desses arranjos interpartidários de moral suspeita e somenos 255 importância, muito de gosto no sistema parlamentar, como pensava, ele tratou de ir pondo em guarda os militares contra todas as surpresas. O governo da Monarquia, não esquecendo certamente a humilhação recebida em tudo aquilo, apenas estava a ganhar tempo. A reação não tardaria muito... Nessa forma nova ou nessa segunda fase da sua grande manobra, o direito dO País revelava-se um excelente psicólogo. O orgulho, por sua própria natureza, é progressivo, crescendo sempre na razão direta das satisfações que lhe sejam oferecidas. Aquela solução não podia deixar de ser precária e provisória, tendendo a desdobrar-se com o tempo em novos incidentes. Na grande exaltação do amor-próprio ou do prestígio do uniforme em que se sentiram, os militares facilmente entrariam em novos conflitos com o poder civil, automaticamente tomando qualquer reação por este ainda tentada como o início previsto e deliberado do grande ajuste de contas esperado. Foi o que se deu... O próprio Cotegipe, conjugando oito meses depois a retirada do gabinete com o caso Leite Lôbo, vinha concorrer para a acentuação maior de tais disposições. Já o governo João Alfredo, no mês de novembro, seguiu-se o conflito dos oficiais do 17º de Infantaria com o chefe de polícia de São Paulo. Se no mês de março um incidente do mesmo gênero determinada a demissão de todo um Ministério, a demissão do chefe de polícia imediatamente se impunha como a solução mais indicada. Assim foi feito. Mas daí por diante não houve mais contacto algum do governo com a tropa que não desse em mal-entendido, mantendo o público em constante sobressalto. Ninguém dirá com exatidão os motivos pelos quais o gabinete João Alfredo, tendo de nomear o comandante de uma forte coluna de observação, a enviar às fronteiras de Mato Grosso, escolheu precisamente o Marechal Deodoro da Fonseca. Era um velho e enérgico soldado, com longa prática das condições 256 estratégicas daquela região(27). Mas a verdade é que a sua partida determinou uma geral inquietação nos meios militares. espalhou-se que o governo, desviando o marechal com tão numerosos efetivos para tão longe, apenas procurava ter as mãos livres para contra o Exército agir como quisesse. Ao desassossego dos que ficaram, correspondeu uma grande irritação dos que partiram. Mudou o governo em junho de 1889, subindo com o gabinete Ouro Preto o Partido Liberal. Os motivos oficiais do envio da coluna a Mato Grosso, que tinham sido a eminência de um conflito armado entre a Bolívia e o Paraguai, pareciam terminados. A volta da coluna e do seu chefe foi logo aconselhada como uma medida capaz de melhor dispor o Exército para com a nova situação e os seus ministros. A 13 de setembro o marechal desembarcava no Rio de Janeiro. Para os militares, entretanto, ele era apenas restituído, no lugar próprio, à sua função de gênio tutelar da classe, para o fim de conjurar as graves ameaças que sobre ela se adensavam... Quem hoje consulta os números dO País, entre 13 de setembro e 15 de novembro de 1889, examina apenas o desenvolvimento metódico e seguro de um processo de intimidação. O Exército, a não deixar dúvidas, tinha que escolher entre a reação armada e a sua dissolução! Os menores atos do governo eram habilmente apresentados como os sinais mais evidentes desta temerosa alternativa... Por motivos disciplinares, o Coronel Mallet é demitido a bem do serviço público do comando da Escola Militar do Ceará. O país de 23 de outubro logo põe o caso em cotejo com o incidente da demissão do chefe de polícia de São Paulo, em novembro do ano anterior, para mostrar que entre militares e civis o governo tem sempre dois pesos e duas medidas. O chefe de polícia, tendo sido – como pelo menos ele asseverava – o único causador dos distúrbios e das desinteligências que ali se deram, não foi demitido a 257 bem do serviço público, mas apenas convidado a pedir a sua demissão. Isso se fez, continuava, porque se tratava de um funcionário civil, de um camarada político a quem não se queria magoar. Com os militares, porém, seja qual seja a graduação e os seus serviços e a sua honrosa fé de ofício, o governo imperial não gasta sedas nem faz cerimônias. Basta a resistência de qualquer funcionário militar ao capricho ou à prepotência de um ministro, basta que ele não seja servil ou condescendente com as exigências de qualquer mandão eleitoral, para ser ele demitido a bem do serviço público ou transferido peremptoriamente para o Amazonas ou para Mato Grosso. O artigo conclui que, sem a menor dúvida, o Exército é mal visto atualmente nas altas regiões. Segue-se, num verdadeiro crescendo de inquietação, toda uma série de outros artigos de grande veemência. No dia 26, os Planos do Governo; o dia 28, O Poder é Poder... Na atmosfera de indisfarçável e perigosa agitação que se vai acentuando, o gabinete resolve afastar muitos oficiais da guarnição da corte, sendo alguns mandados servir em Mato Grosso. Vem então As Energias do Poder! Estamos no dia 30 de outubro. Entretanto, ainda até ali, se o Exército, fugindo às tradições gerais da nossa vida pública e esquecendo as suas proprias tradições, já havia adotado a visão extrafronteiras de Quintino Bocaiúva, só em parte o havia feito. Estava aceita entre os oficiais a eventualidade do recurso às armas, em defesa própria, uma vez que realmente andavam convencidos da intenção dos políticos civis de abater senão mesmo de dissolver o próprio Exército(28). Avançávamos portanto para um pronunciamento militar. Mas nenhum dos chefes naturais desse possível movimento se conformava com a hipótese de uma ação direta contra o imperador(29). Eles supunham mesmo que o monarca estivesse do seu lado, não se manifestando francamente por encontrar-se prisioneiro dos 258 seus ministros. Falando na sessão do Senado de 6 de junho de 1887, quando se discutia a moção do cancelamento das sanções, o Visconde de Pelotas manifestou com grande insistência esse modo de pensar. Pedro II não havia recebido a Deodoro que lhe pretendera entregar em mão a resolução votada no Recreio. Cotegipe explicou que o imperador, doente e retirado à Tijuca, estava, por prescrição médica, impedido de dar audiência e receber visitas, mesmo de simples cortesia. Os que iam a saber de sua saúde, contentavam-se em deixar os seus cartões. A declaração do ministro entretanto não satisfez, persistindo entre os militares a idéia da segregação do imperador. Depois, havendo Pedro II, de volta da sua viagem para tratamento de saúde pela Europa (22 de agosto de 1888), se demorado pouco tempo em São Cristóvão, subindo para Petrópolis, o boato da segregação continuou. Para a maioria dos oficiais, a começar por Deodoro e Benjamim Constant, o comandante nato e o chefe supremo das forças armadas, o primeiro soldado do Brasil, assediado pelos casacas e contra todas as suas inclinações, estava na impossibilidade de vir em socorro dos seus melhores amigos, dos seus verdadeiros sustentáculos, que eram naturalmente os portadores dos mesmos uniformes por ele usados. Dentro dessas condições psicológicas, as reações que as circunstâncias lhes sugeriam tinham muito mais de extrema defesa da Monarquia ou do monarca, que de conspiração republicana. Era Quintino Bocaiúva que do seu jornal os manobrava, insensivelmente precipitando-os a um passo além do qual só houvesse o pelotão de fuzilamento ou a mudança do regime! Mas não eram apenas os militares que, mais ou menos constrangidos, seguiam por um caminho em cujo termo forçosamente teriam de escolher entre dois males o menor... A posição dos meios republicanos, tanto na corte como em São Paulo, não era muito diferente. Em fase de exclamações como o não era esta a República 259 dos meus sonhos, do velho Saldanha Marinho, ou o fato foi deles, deles só, de Aristides Lôbo, não seria possível admitir que os antigos radicais do Rio de Janeiro se deixassem comprometer realmente numa conjura militar. Do lado dos paulistas, os elementos de informação são ainda mais precisos e mais claros. O primeiro homem do PRP a identificar com segurança a mola real da Questão Militar, vendo com decisão onde era conduzida a agitação, foi Francisco Glicério. Em dezembro de 1887, após o seu devotado trabalho pela eleição de Bernardino de Campos, tido como reconciliação do partido com o movimento abolicionista, ele quis pessoalmente informar-se do que havia. Tudo o levava a supor que, se alguma cousa realmente se tramava, a arte mais adiantada ou mais densa desse trama se encontrasse para o Sul. Era no Rio Grande que a Questão Militar tivera afinal as suas manifestações mais veementes e expressivas, necessariamente determinando não pequenas emoções em Buenos Aires. A grande capital platina, centro clássico de intriga em todas as agitações do Sul do continente, não podia deixar de ser um excelente campo de observação. Os políticos argentinos nunca deixaram de experimentar o mais vivo interesse por tudo quanto significasse um progresso qualquer das idéias republicanas no Brasil. Com ou sem razão, eles sempre tiveram o nosso governo imperial como responsável por ceras decepções da sua política na bacia do Prata, não podendo portanto ser indiferente a uma nossa possível transfrormação interna que o viesse a destruir. No tempo de Rosas, ao famoso grito de Viva la santa federación; mueran los selvajes unitarios, seguia-se sempre o complemento: abajo el infame gobierno del Brasil… Com o correr dos anos, amenizaram-se as atitudes e poliram-se as expressões. Mas os sentimentos não se modificaram muito. As nossas agitações militares tinham que ser ali observadas com a máxima atenção, tanto mais segura e facilmente 260 havendo a dirigi-las alguém tão voltado às cousas argentinas como Quintino Bocaiúva(30). Era portanto do Sul que o vento soprava mais firme e mais constante. Glicério dirigiu-se para lá. Informado pelo seu amigo Bento Quirino dos Santos de que o antigo convencional de Itu e zeloso presidente da Câmara Municipal de São Vicente, Antônio Carlos da Silva Teles e Domingos Neto (ambos sócios de Quirino) na grande firma comissária de Santos, Teles Neto & Cia), projetava uma próxima excursão a Buenos Aires, ele imediatamente fez saber que os acompanharia. No dia 22 de dezembro, doze dias após as eleições, Glicério partia de Campinas para Santos, onde tomava um vapor com os dois comerciantes em direção ao Prata. Que observações teria ele feito em Buenos Aires? Com quem teria falado? De nada encontramos traço no que pudemos ver da sua correspondência. Apenas, numa carta dirigida ao seu companheiro de escritório, Antônio Lôbo, ele elogia muito a beleza e os bons serviços de polícia da capital platina. Pode-se, porém ter como certo que Glicério, pelo menos daquela vez, não se interessava muito pelas atrações comuns de uma grande e alegre cidade. Sem seguir com freqüência os seus companheiros de viagem nas suas visitas e excursões, um mês depois, de lá partia para Porto Alegre, a encontrar Júlio de Cstilhos. O severo e brilhante diretor dA Federação, bem homem da fronteira, fortemente versado nos princípios autoritários de fundo positivista dos quais Alberto Sales era em São Paulo o principal doutrinador, estava em cheio dentro do ponto de vista de Quintino Bocaiúva. No período mais grave ou mais aceso do segundo caso Sena Madureira e da manifestação coletiva dos oficiais de Porto Alegre, e, entre 23 de setembro e 30 de outubro do ano anterior, escrevera toda uma série de artigos a incitar francamente os militares à revolta. No dia 27 daquele mês, sob o título O Império e o Exército, dizia sem rebuços 261 nem cautelas: Em qualquer caso, pertença a principal responsabilidade a quem pertencer, os fatos que ocorrem são um salutar aviso ao Exército, que deve saber qual é a posição que lhe está destinada nesta derradeira fase do segundo reinado... Para ele que, da vizinhança da fronteira, também via os negócios do Brasil pelo mesmo prisma porteño do seu grande colega dO País, a República brasileira devia elevar-se sobre um mar de baionetas, com completa e eficaz anulação dos velhos e falsos processos da Monarquia. No ponto em que as coisas se encontravam, bastava lisonjear convenientemente o estado de ânimo dos militares. A desejada eventualidade não tardaria... Foi o que, de boa fonte, ficou a saber o chefe campineiro. *** Glicério, sendo um político sagaz e um dos mais ardentes partidários da República, não tinha entretanto os mesmos escrúpulos doutrinários de outros membros do seu partido, como Bernardino de Campos ou Américo Brasiliense. A hipótese de uma grande vitória política de base militar não lhe deixava de sorrir. Mas, ao chegar do Rio Grande em fins de fevereiro, vinha conhecer a posição oficial do PRP na Questão Militar , segundo a fixara Bernardino de Campos no seu discurso do dia 6. Entre os planos que lhe haviam sido transmitidos e aquelas idéias, não havia conciliação possível nem arranjo algum a concertar. Não podemos saber hoje com exatidão que expedientes deu ele à sua perplexidade. Tratava-se de conspiração, e evidentemente a discrição era de rigor. O certo é porém que Quintino Bocaiúva, no correr de março, apesar da acuidade da situação política com a mudança de gabinete do dia 10, precipitava-se do Rio de Janeiro para São Paulo. A sua viagem 262 cercou-se de grande reserva. Glicério nem veio de Campinas a recebê-lo. Na capital paulista ele avistou-se apenas com Bernardino de Campos, Américo Brasiliense e Campos Sales. O que entre eles se passou, tanto pelos motivos do momento como por conveniências posteriores bem fáceis de compreender, não foi divulgado ao maior número. É certo entretanto que, para o diretor dO Páis, a entrevista esteve longe de ser satisfatória. Bernardino de Campos, presidente do partido, de maneira alguma concordava com a proclamação da República ao sabor de um levante militar. Procurar a maior elevação política do país, simplesmente destruindo no Exército o sentimento do dever e os últimos escrúpulos da disciplina, parecia-lhe de um inadmissível contra-senso e de um perigo incalculável. Américo Brasiliense imediatamente pronunciou-se pelas suas idéias, Campos Sales, visivelmente perturbado, manteve-se indeciso e reservado. Terminada a entrevista, Quintino Bocaiúva recolheu-se à casa de um parente, onde pernoitou, voltando ao Rio logo no dia seguinte. Campos Sales ficou de consultar ainda alguns outros dois líderes do PRP. Mas, no dia 3 de maio, Bernardino de Campos dirigia uma carta à comissão permanente, na pessoa de Glicério, declinando da presidência dela própria e do partido. Ele tomava a si pessoalmente todas as responsabilidades do seu discurso de 6 de fevereiro. Disposto a não ceder naquele ponto, também não queria criar dificuldades aos seus amigos, deixando-lhes toda a liberdade. Entretanto, a retirada de Bernardino de Campos da presidência do PRP, naquele instante, após o brilhante e oportuníssimo trabalho de harmonização final da propaganda republicana com a campanha abolicionista por ele realizado, era para o partido de uma evidente desvantagem. Como reagiriam os radicais que só por ele e à sua voz haviam voltado à atividade das fileiras? Entrara-se no mês da Abolição; a grande vitória anunciava-se 263 imediata e inevitável. À luz daquele dia, não haveria sobre o PRP a sombra de um desgosto, a inconvenientemente recordar os seus velhos prejuízos escravocratas? Foi sob o peso de tais considerações que se leu em Campinas a carta de Bernardino. Entre a sua recepção e a confecção da resposta houve três dias de consultas. Afinal, no dia 6, Glicério respondia: Acho, porém, que você não tem razão quando se considera impossibilitado, pelas circunstâncias todas pessoais, de conduzir o partido pelo caminho acidentado que ele agora é forçado a percorrer. Pelo contrário, entendo que por isso mesmo deves ficar à frente do partido. A agitação deve ser feita por mim,C. Sales, Prudente, Pestana e outros companheiros. Você é o chefe, cuja missão é velar, aconselhar, deliberar e cobrir com a autoridade moral do seu nome e do seu cargo os atos dos agitadores...Prudente de Morais, prevenido em Piracicaba do que se passava, imediatamente escreve a Bernardino de Campos, reforçando o pedido de Campinas: Se você se demite agora, era uma vez o Partido Republicano... Mas, como velar, deliberar, cobrir com a responsabilidade do nome e do cargo, e, sobretudo, como aconselhar, se o primeiro conselho, que era o de não comprometer, não misturar a propaganda republicana com a insubordinação militar, não era ouvido? Ele insistia em que a demissão lhe fosse concedida. Glicério correu porém de Campinas a completamente dissuadi-lo, chamando ainda a Prudente de Morais que também se abalou de Piracicaba. Como da vinda de Quintino Bocaiúva, houve nova conferência, desta vez, entre seis, comparecendo ainda Rangel Pestana, além de Américo Brasiliense e Campos Sales. Glicério, a empregar os mesmos argumentos com os quais, na noite de 1º de julho de 1873, reduzira a resistência dos radicais antes as reservas antiabolicionistas dos fazendeiros, apelou para a unidade do partido e para o interesse capital do mais próximo advento da República, que a 264 tudo devia sobrepujar e preterir. Os princípios morais ou os escrúpulos doutrinários não podiam ser mantidos até ao ponto de se contraporem às necessidades práticas do partido, levantando embaraços ao objeto no qual todo o seu programa afinal se resumia. Foi admitido o critério da votação. Com as restrições de Bernardino de Campos ficava apenas Américo Brasiliense. Era um voto contra quatro. A demissão foi retirada. Como de propósito, o primeiro repiquete da Questão Militar, com caráter de correria e distúrbio sangrento na via pública, vinha produzir-se exatamente em São Paulo, determinando a demissão do chefe de polícia, Cardoso de Melo Júnior, e profundamente emocionando os meios sociais e políticos da província. É preciso notar porém que o programa novo e verdadeiramente estranho de chegar à República numa vaga de baionetas sublevadas não foi comunicado propriamente ao PRP nem fora dele se estendeu a quaisquer outros núcleos republicanos do país. Zelosamente guardado e promovido só individualmente por Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, para ser conhecido apenas do pequeno círculo dA Federação, de Porto Alegre, ele em São Paulo restringiu-se tão-somente àqueles seis principais dirigentes do partido. Não houve aliciamento nem procura de adesões. Conservouse no estrito caráter de conspiração, mas uma conspiração sui generis e jamais vista, onde o maior número ou a massa geral dos conspiradores, que eram os militares, devia avançar para o momento decisivo sem bem saber o que fazia nem perceber o ponto exato ao qual se conduzia. Na sessão de 15 de janeiro de 1889 da Assembléia Legislativa de São Paulo, Campos Sales chegou a defender em discurso a doutrina especial do cidadão fardado ou do soldadocidadão. Não lhe deu porém nenhum caráter de preparação 265 republicana, conservando-se no terreno das provocações vagas e indefinidas, tal como no Rio a levava Quintino Bocaiúva. Para dizer a verdade, é preciso reconhecer que a grande emoção nacional da Abolição, determinado como um geral abaixamento de tensão, reduziu de muito as preocupações com uma imediata mudança do regime. José do patrocínio, filiado ao Clube Republicano do Rio de Janeiro desde os dias da sua fundação e signatário daquele severo Termo de Compromisso e Adesão, de 1877, chegou mesmo a romper com a corrente republicana, constituindo-se por um momento em grande defensor do trono, em reconhecimento pelo que ele mesmo classificou como a Lei Áurea. Na Gazeta da Tarde ele fulminava sem piedade os republicanos de negreiros e escravocratas. Foi por sua inspiração e com o seu auxílio que o Ministro João Alfredo veio a criar a célebre Guarda Negra, para defesa pessoal da Redentora. Essa guarda especial e certamente pitoresca, pretendendo opor-se a manifestações republicanas, chegou mesmo a provocar vários distúrbios, tornando-se incômoda e françamente comprometedora. Foi ela que, a 30 de dezembro de 1888, determinou um forte charivari na Sociedade Francesca de Ginástica, à Travessa da Barreira(31), onde Silva Jardim fazia uma conferência republicana, depois de haver cassado ao tribuno a faculdade de manifestar-se de um teatro, com a ameaça de deitar fogo àquele que lhe fosse cedido para tal fim. Aliás, essa pressão redutora do abolicionismo sobre a propaganda republicana, como já a reconhecem um artigo da Província de São Paulo de 19 de novembro de 1887, não esperou 13 de Maio para manifestar-se. Tal como se deu com o próprio Rangel Pestana nas eleições provinciais de 10 de dezembro daquele ano, nas quais deixou de ser eleito, ela também chegou a envolver pessoalmente a Quintino Bocaiúva, ao apresentarse candidato a senador pela corte, nas eleições de 19 de abril do ano 266 seguinte. Em oposição à candidatura do diretor dO País, a Confederação Abolicionista lançou a de Ferreira Viana, que levantou 1.346 votos contra apenas 110 por ele conseguidos. O fato foi jocosamente comentado por Ângelo Agostini, na Revista Ilustrada. Quintino Bocaiúva, armado de rede, foi mostrado como pescador numa canoa, dizendo a legenda em referência ao seu pequeno número de votos, que tinha apenas pescado 110, entre sardinhas republicanas e baiacus negreiros, perante a brilhante votação do outro candidato... A queda do gabinete João Alfredo e do Partido Conservador, no dia 6 de junho de 1889, com a subida dos liberais no gabinete Ouro Preto, veio concorrer ainda mais para aquela atmosfera de desinteresse, senão mesmo de repulsa por uma imediata e mais forte agitação republicana. A plataforma do novo Ministério, apresentada à Câmara dos Deputados a 11 daquele mês, era, em suma, a preparação normal, digamos mesmo. O encaminhamento regular da nossa ascensão ao regime republicano, segundo o nosso velho processo – o processo brasileiro ou luso-americano – de revoluções por livre modificação das leis no Parlamento. Quem hoje lê o programa do gabinete Ouro Preto, nos anais da Câmara de 1889, compreende que o Deputado Pedro Luís, a exclamar admirado, é o começo da República!, tinha bem razão, como do seu lado também a tinha o presidente do Conselho em responder-lhe: Não, é a inutilização da República... Entenda-se: a inutilização da República como conspiração, como levante ou como desordem, porque a transformação legal para o novo regime, no momento apropriado e já previsto, claramente ali se encontra. Reflita-se um pouco sobre estes dispositivos; Alargamento do direito de voto, considerando-se como prova de renda legal o fato de o cidadão saber ler e escrever (sufrágio universal); plena autonomia dos municípios e províncias. 267 como elegibilidade dos respectivos administradores (federação); efetividade do direito de reunião; liberdade de culto a seus consectários (separação da Igreja do Estado); temporariedade do Senado e, finalmente, reforma do Conselho de Estado, para constitui-lo meramente administrativo, tirando-lhe todo caráter político (extinção do poder moderador)... Para ser totalmente a República faltava apenas a eliminação da coroa. Mas, esta, todos já a tinham como intransferível da cabeça do Imperador Pedro II. O fim da Monarquia brasileira, com o desaparecimento do neto de D. João VI, não é apenas uma hipótese que hoje possamos estabelecer por simples deduções. Era uma certeza, senão mesmo uma firme decisão dos homens daquele tempo. Feita a Abolição, ninguém mais tinha dúvidas a respeito, de tal convicção chegando a participar e com ela nobremente conformando-se o próprio imperador(32). Os republicanos de boa e clara orientação doutrinária estavam dentro destas idéias e firmes nestas esperanças. Da mesma forma pensavam os militares, não se compreendendo portanto que se lançassem aos riscos de uma rebelião, rompendo com os seus hábitos de disciplina, com o respeito que sempre tiveram pelo imperador e com as próprias tradições de sua pátria e do seu povo, só para fazerem uma coisa que todos tinham como certa e inevitável. É mesmo lícito afirmar que raramente se terá visto em qualquer parte uma tão completa unanimidade de opiniões e sentimentos como era a nossa daquele instante. Por mais que, por simples oposição ou fácil empenho de deprimir, se tenha depois criticado a composição esmagadoramente liberal da Câmara eleita a 31 de agosto de 1889, não se pode ter a menor dúvida de que os votos que a sufragaram, expressavam bem a vontade nacional daqueles dias. Por decreto de 15 de junho havia sido dissolvida a Câmara anterior que pusera o governo em minoria. Foi sobre aquele programa, por ela repudiado, 268 que se fizeram as novas eleições. O eleitorado quase unânime o aplaudira e confirmara. Aquele era o sentimento geral, aquela era realmente a opinião do povo brasileiro, tanto quanto possa um povo ter opinião e meios eficazes de a expressar. Só uma discrepância, só uma falha havia nessa geral harmonia de pensar e de sentir, nessa verdadeira ordem política do país. Era a sombria desconfiança dos militares de que o governo estivesse a tudo dispor para dissolução do Exército e a completa ruída de todos eles. Mas, ainda aí, há provas evidentes de que, nos seus projetos de reação contra essa ameaça suposta ou verdadeira, de nenhum modo eles se propunham a substituir a opinião nacional, precipitando à força e por sua conta a grande transformação. Neste ponto há um fato que supera todos os argumentos. Logo após as eleições e naturalmente fortalecido com o prestígio que delas lhe resultou, o presidente do Conselho foi tratando de tomar certas precauções contra a crescente inquietação dos militares. Os corpos de polícia e de bombeiros foram consideravelmente reforçados, dando-se os primeiros passos para uma grande reorganização da Guarda Nacional. Nesse meio tempo veio a São Paulo o jovem jornalista Medeiros e Albuquerque, muito ligado aos meios republicanos do Rio de Janeiro. Em visita ao Clube Republicano, ele disse que, em reciprocidade àquelas medidas do governo, o levante dos militares estava por poucas semanas ou poucos dias. Campos Sales quis então certificar-se pessoalmente das relações que essa possível ação dos militares pudesse ter com o movimento republicano. Partiu para o Rio, solicitando e obtendo uma entrevista com o Marechal Deodoro, o Visconde de Pelotas e o Tenente-Coronel Benjamim Constant. Qual não foi o seu enleio ao deles ouvir que de maneira alguma se preocupavam com a 269 proclamação da República, tratando apenas de resolver de uma forma exemplar e definitiva os velhos dissídios do Exército com o governo? Nenhum deles esqueceu-se mesmo de reafirmar a sua convicção de que a República só seria possível após a morte do imperador(33). Tão desapontado voltou Campos Sales da sua excursão informativa, que, atropelado de perguntas pelo seu amigo Glicério. logo na estação do Norte, acabou por familiar e estouvadamente concluir. Seu Chico, eu agora quero que a República se lixe (ou coisa semelhante)!...(34) Mas, os negócios iam rapidamente precipitar-se muito para além das reservas dos três chefes militares e dos desânimos do líder republicano. Na cidade de Ouro Preto, então capital da província de Minas Gerais, abria-se no dia 9 de outubro uma série de sangrentas arruaças entre soldados do 9º de Cavalaria e praças de polícia, surgindo daí um sério conflito de autoridade entre o chefe de polícia e o comandante daquele corpo. Negando-se a usar a mesma solução empregada pelo Conselheiro João Alfredo no caso idêntico de São Paulo em novembro do ano anterior, o ministro manda que para lá siga a manter a ordem uma numerosa força composta do 23º de Infantaria e de um esquadrão de cavalaria. Como da expedição a Mato Grosso, a medida é logo encarada como desfalcamento premeditado da guarnição da corte, para o fim de enfraquecê-la. Havia no momento seca no Nordeste, determinando um grande afluxo de retirantes para o extremo Norte. Fala-se que o governo, no intuito de prevenir perturbações possíveis, vai destacar mais um corpo de infantaria para Manaus. A atmosfera no Rio de Janeiro carrega-se ainda mais. O Visconde de Ouro Preto reage, ordenando as transferências de oficiais para guarnições distantes a que já nos referimos. O País entra violenta e francamente a pôr em guarda os militares contra qualquer cousa que tem por iminente e muito séria... 270 NOTAS (23) Vide conferência do Ministro Rodrigo Otávio sobre o primeiro centenário do nascimento de Quintino Bocaiúva, no Vol. 171 da Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., págs. 422, 443. (24) Vide Os Republicanos Paulistas e a Abolição , Cap. VII, págs. 163 a 166. (25) Vide Tobias Monteiro, op. cit., págs. 154, 155. (26) Essa entrevista, minuciosamente relatada depois por Cunha Matos, em publicações feitas no Jornal do Comércio e confirmadas por Alfredo Madureira, merece uma larga referência às págs. 140 e 141 das Pesquisas e Depoimentos de Tobias Monteiro. (27) Na época, pretendeu-se que a idéia partiu do Ministro da Guerra, o Conselheiro Tomás Coelho, e que exatamente visou afastar do Rio de Janeiro o esteio mais forte da Questão Militar. (28) Expressões de Deodoro a Ouro Preto, na manhã de 15 de Novembro. (29) No caso do chefe de polícia de São Paulo com os oficiais do 17º de Infantaria, a medida da demissão daquela autoridade completou -se com a retirada do batalhão que foi transferido para outra guarnição. Na noite de 24 de novembro, véspera da partida dos soldados, um grupo de 3 00 ou 400 pessoas entendeu de fazer-lhes uma manifestação de despedida, à porta do quartel. Tendo-se levantado do meio do grupo alguns vivas à República, o comandante chegou à janela e disse da manifestação que a agradecia, ao Exército rejeitando-a absolutamente, se porventura visava algum outro fim. (Relatório da polícia dirigido ao presidente da província, Dr. Pedro Vicente de Azevedo, em data de 25). (30) Uma das provas mais sugestivas do grande interesse com o qual a nossa política interna era, em todo aquele período, observada na República Argentina, encontra-se nas extraordinárias demonstrações de simpatia com as quais a imprensa de Buenos Aires comemorou o quinto aniversário da fundação dO País, a 1 de outubro de 1889. La Nación, El 271 Censor, El Nacional, El Globo, El Sud América, El Rio de La Plata , todos publicaram grandes artigos realmente encomiásticos. El Censor, saudando a Quintino e Matosinhos, classificou o O País de principal campeão das idéias democráticas no Brasil, La Nación dizia: “jornal que honra sobremodo a América Latina e que em prosperidade e influência adquiridas no curto espaço de um lustro, tornou -se um verdadeiro fenômeno na imprensa periódica deste lado do Atlântico”. Mas não foi tudo. Bartholomey Mitre y Vedia, diretor de La Nación, filho do general, reuniu em sua redação, no correr do dia, os diretores e vários redatores dos principais jornais portenhos numa grande recepção em honra de Quintino Bocaiúva e de O País, na qual, com entusiásticos brindes ao nosso patrício e ao seu jornal, bebeu-se também à República e ao progresso cívico da América do Sul... (31) Hoje, Rua Silva Jardim. (32) Repitamos que existem neste sentido documentos absolutamente concludentes. Como indicação, pode-se consultar A Política Geral do Brasil, no seu Cap. X, O Fim do Segundo Reinado, págs. 180 a 182. (33) Indicação ainda melhor dos verdadeiros sentimentos do Marechal Deodoro sobre a República encontra -se numa carta por ele escrita a um seu sobrinho, aluno da Escola Militar do Rio Grande do Sul, em se tembro de 1888, na qual há o seguinte trecho: “Não te metas em questões republicanas, porquanto – República no Brasil e desgraça é a mesma coisa”... Vide Ernesto Sena, Deodoro, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1910. (34) O próprio Glicério, recordando depois as vicissitudes, os momentos de esperança e desalento por que passaram, contava a sorrir esse incidente às pessoas de sua intimidade. CAPÍTULO IV A HÉJIRA DO CAUDILHISMO 272 Quintino Bocaiúva tenazmente continua a meter a sua cunha nas articulações da Monarquia. Todo mundo compreende naturalmente o que ele procura, Mas ninguém quer ainda acreditar que os soldados se prestem realmente à sua manobra. Em todo caso, alguém há de tudo bem informado e prevenido. É Dom Henrique Moreno, ministro da República Argentina no Rio de Janeiro. No dia 10 de outubro ele inesperadamente parte para Bueno Aires a entender-se com o seu governo. No dia 30 a corveta La Argentina lança ferros na baía de Guanabara. Vem ficar às ordens do bemavisado e cauteloso diplomata. Aliás, ali já está um outro navio de guerra sul-americano. É o couraçado chileno Almirante Cochrane. Este porém vem numa excursão toda ocasional e inteiramente descuidada. Partindo em primeira viagem dos seus estaleiros de construção da Europa, aproveita a passagem pelas nossas costas para uma homenagem ao governo e ao povo do Brasil. Grandes festas foram-lhe preparadas. Dando-se, porém no dia 18 o falecimento do Rei D. Luís de Portugal, o luta da corte de São Cristóvão impõe o adiamento da maior parte do programa. A permanência se prolonga até o mês seguinte. Naquele instante da nossa vida interna, a presença daquelas duas bandeiras no porto do Rio de Janeiro, por motivos tão diversos, não deixa de assumir uma involuntária e profunda significação na psicologia política do continente... As notícias do afastamento de mais um batalhão da guarnição da corte se confirmam. Na manhã de 10 de novembro, o 22º de Infantaria embarca para o Norte. Tudo correu bem. Mas, dois dias antes, Aristides Lôbo, fortemente alarmado, incluída nos autógrafos da sua crônica cotidiana para o Diário Popular de S. Paulo, um bilhete para Américo de Campos, cautelosamente tudo enviando, em mão própria, pelo seu sobrinho Francisco José da Silveira Lôbo. O 273 levante militar estava por dias ou por horas. Ele, propriamente, não se considerava dentro da agitação: não fôra para ela convidado nem tivera com os seus promotores, até então, qualquer aproximação ou qualquer contato. Mas, bem informado, achava do seu dever prevenir os seus amigos do Diário. Américo precipita-se para o escritório do seu irmão. Bernardino lá estava com Campos Sales. A pequena missiva de Aristides é lida com intraduzível ansiedade. Bernardino, com a fisionomia fortemente carregada, fica a olhar absorto pela janela. Mas Campos Sales escreve rapidamene um telegrama e corre a entregá-lo na próxima agência de São Paulo Railway: Francisco Glicério – Campinas – Venha já. Glicério, no seu escritório de advocacia, leu aquele recado telegráfico num ligeiro sobressalto, ficando a refletir alguns segundos. Mas, como se procedesse por enérgica eliminação de tudo quanto ao seu espírito se apresentasse naquele instante, para pensar apenas no mais urgente, tirou de uma gaveta o seu diário, que pôs em ordem e encerrou naquela data. Depois, chamando o seu companheiro Antônio Lôbo, o pôs ao corrente dos meios de que a sua família disporia, se por acaso lhe viesse a acontecer alguma cousa. Em seguida, foi-se à sua residência, e munindo-se da sumária bagagem de quem, por um dia ou dois, vai a uma pequena viagem de negócios, partiu para São Paulo. Aí, depois de uma rápida conferência com Bernardino de Campos, Rangel Pestana e Campos Sales, que o esperavam, tomou logo o trem para o Rio de Janeiro. É muito difícil guardar recordações minuciosas de momentos como aquele. Tudo se passa num turbilhão, sem que se possam ligar logicamente os fatos, discernindo claramente a influência positiva ou negativa que neles hajam tido os diferentes indivíduos e os vários incidentes. Ninguém, a não ser os mais fortes e obstinados, os mais raros ou raríssimos, chega mesmo a guardar constantemente uma 274 certa unidade de pensar e de sentir. Tudo se confunde, tudo se emaranha no contraditório torvelinho das emoções sucessivas, que nem todas são agradáveis de recordar. Há conveniências opostas e pontos de vista diferentes, tudo concorrendo para que os depoimentos da época, mesmo os daqueles a quem supúnhamos mais unidos e solidários, freqüentemente se acusem de esquecimento, senão mesmo de infidelidade. A quem queira ver as cousas com certa clareza, é indispensável portanto não dar um crédito absoluto à espécie de toilette geral do acontecimento, à qual logo em seguida se procede, a título de versão oficial para os vindouros... Só há um método seguro: é o de isolar o que haja de constante e permanente nos vários elementos contraditórios. Ora, se há uma constante nos dados formativos da crônica de 15 de Novembro, é, de um lado, a ignorância na qual estava o governo de que realmente se tratasse de um movimento republicano, e, de outro, a incerteza dos militares sobre as verdadeiras conseqüências do levante. Entre 23 de agosto de 1911 e a mesma data de 1912, Ernesto Sena, o velho e popular repórter do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, publicou em sua folha toda uma longa série de informações sobre o 15 de Novembro, onde um jovem leitor dos dias atuais já encontraria, sem a menor dúvida, uma grande e profusa fonte de surpresas(35). O primeiro motivo de admiração seria que, entre os vários documentos da época, provindos dos meios militares e ali citados ou reproduzidos, não há um só onde a palavra República apareça. Em todos eles fala-se apenas dos brios do Exército conspurcados por políticos inconscientes ou insensatos, contra os quais era imperioso e urgente reagir. Em nenhum se encontra a mínima referência a organizações políticas ou formas de governo. Não é assim tão-somente nos destinados a imediata divulgação, onde uma certa reserva ou discrição seria compreensível. O mesmo se dá 275 com os mais íntimos ou mais secretos, vindos a público só muito depois de a conjuração haver triunfado e produzido todos os seus efeitos. Em seguida, fica-se a saber que a articulação efetiva da agitação militar com a propaganda republicana só se deu no dia 11 de novembro, isto e, quatro dias antes do levante do Campo de Santana. Foi realmente naquela tarde, depois de uma conferência entre alguns oficiais, realizada na casa de Deodoro, que o Tenente Sebastião Bandeira partiu a procurar Quintino Bocaiúva e Aristides Lôbo, em falta de melhores referências, pelos cafés da Rua do Ouvidror(36), enquanto Benjamim Constant seguia a entender-se com Rui Barbosa, que, não sendo filiado à propaganda, era contudo da íntima confiança dos chefes militares, que o tinham de reserva para uma eventual mudança de gabinete, como solução final do momento. Menos espanto não causa a informação de que, em todo o desenrolar da grande parada do dia 15, Deodoro decididamente se opôs a qualquer palavra ou a qualquer gesto que se pudesse traduzir em ato proclamatório da República. À direita da 2ª Brigada, estendida em frente ao quartel-general, formara-se, curioso e mais ou menos inquieto, um certo magote de populares. Aristides Lôbo e Sampaio Ferraz, que ali vieram, tomaram a palavra para dar conta àqueles homens da imensa honra que lhes tocava se serem as primeiras testemunhas do grande fato histórico do advento da República no Brasil. Logo o marechal mete a trote o seu cavalo para vir dizer-lhes que o que estavam a fazer não era ainda oportuno ou ainda não cabia. Entretanto, das baterias do 2º Regimento de Artilharia um Viva a República! se levanta. É o Tenente Saturnino Cardoso que assim se manifesta. Deodoro, a agitar energicamente o braço, vem sobre ele, fazendo-o calar, com a áspera observação de que aquela atitude não era digna de um oficial em forma. Deixe isto para os civis, acrescentou. Mas, aos civis, ele vinha de acoimar de 276 inoportunos... A preocupação de salvar a Monarquia torna-se tão evidente no chefe da revolta que, quando tudo parecia terminado, um dos principais elementos da tropa, o Major Sólon Ribeiro, comandante do 9º Regimento de Cavalaria, dele se aproxima para dizer-lhe, segundo menciona Ernesto Sena, que a sua espada não se embainharia enquanto não fosse proclamada a República! Dessa tão inesperada e tão característica declaração ainda nos ocuparemos mais adiante. O trabalho de Ernesto Sena, todo no gênero do homem habituado a apenas compor rápidas notas sobre fatos da vida cotidiana, não chega a ser bem uma narrativa. É apenas um copioso repositório de dados e documentos, completado um pouco estouvadamente por alguns traços anedóticos. Mas, na mesma época da sua edição definitiva, aparece um outro livro que traz em si tidos os sinais de um verdadeiro trabalho de escritor. São as Pesquisas e Documentos para a História, de Tobias Monteiro, a que por vezes já nos temos referido. O trabalho de Tobias Monteiro, sobretudo nos quatro capítulos enfeixados sob a rubrica geral de Quinze de Novembro, é realmente um modelo de crônica minuciosa e bem elaborada. Catorze meses após a queda da Monarquia, o autor consegue ouvir pessoalmente quase todos os figurantes ainda vivos daquele drama. Lá estão o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Lucena, Francisco Glicério, Serzedelo Correia, o General Cunha Matos e vários outros, sem esquecer alguns dos já então desaparecidos, que ele não logra mais atingir, como Deodoro e Floriano, mas dos quais ainda fixa alguns aspectos inteiramente novos, em notas inéditas e de grande efeito sugestivo. Mas, de todos os instrumentos de informação ali apresentados, aqueles nos quais o autor menos parece acreditar, a 277 mesma impressão transmitindo aos seus leitores, são exatamente os destinados a emprestar ao advento da República naquele dia o caráter de um ato seriamente deliberado e conduzido com clara e perfeita consciência. Só de uma cousa se fica certo: é de que o Visconde de Ouro Preto, depois de haver afirmado na noite de 14 ao Conselheiro Sousa Ferreira, diretor do Jornal do Comércio, que o governo dispunha de todos os meios necessários a defender a ordem e manter a autoridade, na manhã do dia seguinte se encontrava sitiado no quartel-general, com todos os seus companheiros de gabinete, inteiramente à mercê da tropa sublevada. A simples disposição das forças no local já é de um grande valor informativo(37). No campo fronteiro ao edifício, trazendo à frente o Marechal Deodoro, estendiam-se o 1º e o 9º Regimento de Cavalaria, o 2º da Artilharia (toda a 2ª Brigada) e os alunos da Escola Superior de Guerra, vindos de São Cristóvão. No pátio interno e ao lado, em frente à estação da estrada de ferro, sob as ordens imediatas do Marechal Floriano Peixoto, ajudante-general do Exército, estavam os contingentes com os quais o governo contava para a resistência. A relação numérica dos dois grupos em presença era de um para quatro, pois a tropa trazida por Deodoro apenas excedia de quinhentos homens, enquanto a mais de dois mil se elevavam os defensores da autoridade. Mas eram estes que, ao lado do quartel acabaram fechando o cerco... Só um soldado se alteia a reagir: é o almirante Barão do Ladário, ministro da Marinha. Intimado de prisão ainda na rua, o bravo marinheiro duas vezes dispara a sua pistola sobre o chefe sublevado, sem o conseguir tocar ou atingir, recebendo em resposta uma descarga de clavinas que o prostra por terra todo ensangüentado. O Marechal Deodoro penetra então no edifício e, subindo ao salão onde se encontrava o presidente do Conselho, notifica-lhe simplesmente... a demissão do gabinete! 278 Sobre o que realmente se passou naquele instante, nenhum testemunho poderá jamais ser anteposto ao do próprio Visconde de Ouro Preto, que, emocionado e sincero, o exarou no seu livro A Ditadura Militar no Brasil, saído alguns meses após aqueles fatos. Assim resume ele o que então lhe disse o chefe da revolta: No meio do mais profundo silêncio, cientificou-me de que se pusera à frente do Exército para vingar as gravíssimas injustiças e ofensas por ele recebidas do governo... Só o Exército, afirmou, sabia sacrificar-se pela pátria e, no entanto, maltrataram-no os homens políticos que até então haviam dirigido o país. Apesar de enfermo, não se pudera escusar a dirigir seus camaradas por não ser homem que recuasse diante de cousa alguma, temendo só a Deus. Aludiu aos seus serviços no campo de batalha, rememorando que pela pátria estivera durante três dias e três noites combatendo no meio de um lodaçal, sacrifício que eu não podia avaliar. Declarou que o Ministério estava deposto e que se organizaria outro de acordo com as indicações que iria levar ao imperador. Disse que todos os ministros podiam retirar-se para suas casas, exceto eu – homem teimosíssimo, mas não tanto como ele (assim se exprimiu) – e o Sr. Ministro da Justiça, que ficaríamos presos até sermos deportados para a Europa. Quanto ao imperador, concluiu, tem a minha dedicação; sou seu amigo, devo-lhe favores. Seus direitos serão respeitados e garantidos. Essa narração do Visconde de Ouro Preto concorda no fundo com as palavras de aspectos textuais, atribuídas ao Marechal Deodoro pela imprensa da época, através dos repórteres ali presentes: Vossa Excelência e seus colegas estão demitidos, por haverem perseguido oficiais do Exército e revelarem o firme propósito em que estavam de abater ou mesmo dissolver o próprio Exército. Nesta fase de pretensões lapidares, recomposta ainda na forte emoção do 279 acontecido, resume-se afinal todo o programa dos militares naquele dia. Segundo os dados tão fiéis recolhidos depois por Tobias Monteiro, tudo quanto se passa dali por diante toma o aspecto de um tumulto precipitado e constrangido, onde apenas o temos das responsabilidades pelo ato praticado regula as decisões. Nas narrativas depois apresentadas, não há duas que realmente se assemelhem. Mesmo entre os principais interessados, militares ou civis, não há afirmações coerentes nem concordância de apontamentos. Glicério, por exemplo, depois de dizer a Tobias Monteiro que Deodoro, à última hora, sempre chegara a consentir na proclamação da República, conta ter-se visto à tarde do grande dia na necessidade de juntar gente pelas ruas para ir em cortejo à casa do marechal a saber do que afinal se proclamara ou fôra proclamado no Campo de Santana. As dez horas da noite Benjamin Constant ainda se encontra na obrigação de recordar ao comandante da grande parada da manhã, que, naquelas alturas, não era mais tempo de vacilar. O tenente-coronel observa cruamente ao marechal que este tem bem o direito de arriscar ou pôr em jogo a sua cabeça, mas não as dos seus amigos e companheiros(38). Entretanto, ele mesmo, Benjamim, ainda na véspera, não somente ignorava que o movimento se fizesse naquele dia, como estava mesmo na firma convicção de não ser ainda o momento de o fazer(39). *** Muito se tem querido esconder ou velar as indecisões do 15 de Novembro. A versão de haver o Marechal Deodoro penetrado no pátio interno do quartel-general a lançar um Viva Sua Majestade o Imperador!, que tão bem concorda e se harmoniza com aquelas declarações por ele feitas ao Visconde de Ouro Preto, é sobretudo 280 apontada como digna somente de ser repelida e cancelada(40). Para a boa apresentação histórica dos fatos, só um viva podia ele haver levantado naquele instante: um Viva a República! Assim pode não ter sido, mas é assim que o devemos ter por verificado e indiscutível... A história seria porém uma bem pobre fantasia, se só em convenções desta natureza a tivéssemos de assentar. Aliás, a simulação de bem pouco serviria, pois de completamente arruiná-la se encarregou o próprio Quintino Bocaiúva... Partindo naturalmente dos boletins iniciais do 15 de Novembro (o Exército e Armada em nome da Nação...), o quadro da proclamação, logo apresentado pelos cronistas oficiais, só podia ser o de um arranco espontâneo e irresistível das forças militares, a trazer o Marechal Deodoro como espírito e centro vivo da apoteose, com inevitável esbatimento ou atenuação de outras figuras. Uma das primeiras vítimas da penumbra assim formada, ao favor da qual muitas individualidades de menor significação entraram a empurrarse para a aura luminosa, foi o Major Sólon Ribeiro. Entretanto, se à última hora alguma ligação real se estabeleceu entre a Questão Militar e a propaganda republicana, dela foi esse oficial certamente o agente mais eficaz e mais seguro. Foi ele, do ponto de vista militar, o braço direito, poderíamos mesmo dizer o chefe de estado-maior de Quintino Bocaiúva na jornada de 15 de Novembro. mas, homem sisudo e um tanto severo de atitudes, não conseguiu depois as vantagens e brilhantes posições com as quais outros se premiara,. Caído no desagrado do Marechal Deodoro da Fonseca ainda no período do Governo Provisório, ele era mandado recolher a uma prisão militar pelo Marechal Floriano Peixoto durante a revolta naval de 1893, para vir a falecer alguns anos depois, mais ou menos esquecido, como general de brigada reformado. Em 1902, tão malparada andava a sua memória na glorificação literária dos heróis 281 republicanos, que a sua viúva, D. Túlia Sólo Ribeiro, resolveu pedir a Quintino Bocaiúva que lhe quisesse dizer como pensava do papel do seu marido na jornada memorável. O velho propagandista, então presidente do Estado do Rio de Janeiro, não se fez rogado. Em uma longa missiva(41), firmada em Petrópolis no dia 31 de julho daquele ano, é assim que ele começa: Tenho lido tantas historias sobre o movimento revolucionário de 15 de Novembro de 1889 e sobre a proclamação da República, que, afinal receoso de baralhar as minhas reminiscências, deliberei reconcentrar-me na minha memória, esquivando-me a fornecer o meu testemunho, quando o caso o reclamasse... Depois de tão claramente infirmar de inexatidão a crônica corrente, com as suas arbitrárias atribuições de méritos e glórias, Quintino Bocaiúva firmemente declara que o antigo Major Sólon Ribeiro foi o elemento decisivo no levante do Campo de Santana: Entre todos quantos tomaram parte na revolução de 15 de Novembro, nenhum foi mais abnegado do que o General Sólon, nenhum exerceu mais decisiva influência na proclamação da República do que ele. O episódio daquela interpelação feita pelo major ao marechal perante as tropas sublevadas, atrás referido, ele não somente o confirma, como avoca a si a sua inspiração, acrescentando com detalhe: O que o então Major Sólon disse, no exaltamento do seu entusiasmo ao Marechal Deodoro, quando este voltou a colocar-se à frente das tropas, depois de haver intimado a demissão do Ministério Imperial, foi que não embainhava a sua espada antes de proclamada a República. Como eu estava ao seu lado e me recordo do incidente não duvido descobrir-me a mim próprio, confessando que fui o instigador desse movimento, por circunstâncias que alguns conhecem, mas que eu peço licença de guardar em reserva. 282 As circunstâncias que alguns conheciam mas que ele pedia licença à sra. Sólon Ribeiro para guardar em reserva, a esta altura da nossa exposição, já deixaram de ser secretas. Eram os evidentes esforços do marechal para limitar as conseqüências do levante à simples demissão do Ministério, ressalvando os direitos do imperador, e, portanto, a Monarquia, em perfeita coerência, aliás, com as origens, a evolução e a própria natureza da Questão Militar, que, não tendo sido jamais uma questão política, não era de fato um movimento republicano. Quintino Bocaiúva tanto não se iludia a este respeito que nunca procurou o menor entendimento ou o menor contato direto com os meios militares, onde tinha todos os motivos para supor não ser bem recebido com os seus projetos de ação ou as suas idéias. Ele deixou a Questão Militar evoluir isoladamente. Mas, compreendendo bem que, como permanente e progressiva rebelião contra a autoridade, ela não podia deixar de, mais hoje, mais amanhã, vir a chocar-se diretamente com a coroa, tomou a si de sistematicamente ampliá-la, oferecendo-lhe em seu jornal uma espécie de superfície irradiante ou de centro de ressonância, donde ela, argumentada e mais viva refluísse mais diretamente e mais intensa sobre os quartéis. Entretanto, ele não podia esperar toda a sua vida que os militares se resolvessem enfim a tomar armas e sair à rua. Dado o espírito estreito e inconseqüente da sua agitação, adstrito apenas a reivindicações profissionais nem muito precisas nem jamais claramente enunciadas, era muito possível que eles, ante a gravidade e os perigos daquela hipótese, fossem a recuar indefinidamente as suas decisões, até virem as cousas a amortecer por si mesmas, ou de alguma forma se arranjassem. No dia 20 de novembro reabria-se o Parlamento. Era sabido que o governo já tinha pronto a apresentar às Câmaras um projeto de completa reorganização das forças militares, 283 com aumento geral do soldo e grande aquisição de novos armamentos. Estava-se no mês de outubro. O momento era a todos os títulos decisivos. Se o deixassem passar, estaria tudo comprometido para o futuro. Iremos ao 3º, ao 4º, e ao 5º reinados, observava com tristeza o incansável propagandista(42). Foi nesse instante realmente psicológico que, ao azar de uma relação comum, ele veio a encontrar o Major Sólon Ribeiro. Estatura esbelta e um pouco acima da média, fronte alta, cabelos curtos totalmente voltados para trás, olhos pequenos e brilhantes, tocados de uma forte expressão de vontade inteligente e inflexível, nariz afilado e um tanto adunco, barba toda, um pouco loura, com o farto bigode a esconder os lábios energicamente cerrados, era o Major Sólon Ribeiro um desses homens que logo à primeira vista impressionam fortemente. De volta de uma comissão ao Sul do país, para a qual fora escolhido a contragosto, estada adido ao 9º Regimento de Cavalaria que, por motivos de indisciplina e distúrbios na via pública, havia sido transferido da cidade de Ouro Preto para o quartel do 1º da mesma arma, em São Cristóvão. Um pouco parecidos no perfil e nos modos severos e reservados, Quintino Bocaiúva e aquele oficial eram dois homens feitos para entenderem-se. A partir daquele dia, os processos de agitação militar modificaram-se, passando a solicitar principalmente a cadetes e sargentos, na imediata intimidade das casernas. Sólon Ribeiro, muito mal disposto pelas suas últimas relações com a Secretaria da Guerra, pensava que aos grandes chefes militares faltavam sobretudo energia e decisão. Entre os dois foi logo resolvido precipitar os acontecimentos, atropelando e empurrando para a frente os indecisos. Afora os alunos militares, já longamente inquietados pelas dissertações teóricas do Tenente-Coronel Benjamim Constant, mas sem a obediência mecânica e o conseqüente desprezo de conseqüências dos soldados das fileiras, os 284 corpos mais bem dispostos para um rápido e eficaz golpe de audácia eram os da 2ª Brigada, o 2º Regimento de Artilharia e os 1º e 9º de Cavalaria, todos aquartelados em São Cristóvão. O plano de ação concretizou-se imediatamente em levantá-los e trazê-los em armas à praça pública, forçando todos os demais a uma pronta e extrema decisão. Ante a ingrata e inevitável perspectiva do mútuo massacre de camaradas, o espírito de classe, já tão exaltado no momento, faria o resto... Eles tiveram razão, pois tudo se passou como previram. Na sua carta à Sra. Sólon Ribeiro, Quintino Bocaiúva conta que na noite de 14 de novembro Benjamim Constant (este ilustre e legendário companheiro, tão nobre e desprendido quanto ingênuo e sincero...) ainda não sabia quando o levante se daria – porque na noite seguinte ao dia 14 devia conferenciar com alguns amigos do Clube Naval, e que só depois disso é que poderia fixar o dia do movimento revolucionário. Eu tinha na minha opinião que estava abortada a revolução, se ela não explodisse na manhã de 15 de Novembro. A discussão aí indicada teve lugar num escritório que o diretor dO País tinha na Rua do Carmo, ali bem perto da redação. Naquela noite pairava sobre toda a cidade do Rio de Janeiro uma pesada atmosfera de apreensões. O governo havia dado ordem de prontidão a todos os corpos da guarnição, nenhum soldado podendo sair à rua após a revista do recolher. O Major Sólon Ribeiro estava presente ao colóquio do jornalista com o professor da Escola Militar. naquele instante, aproveitando a própria ordem de prontidão expedida pelo governo, ele já havia concertado com os sargentos dos quartéis de São Cristóvão que à meia-noite os três regimentos, armados e municiados estivessem em forma. Quando Benjamim Constant, com expressões tranqüilizadoras de quem está certo de não haver motivos de precipitação, se retirou da Rua do Carmo, ele também se despediu 285 de Quintino Bocaiúva, mas o fez com o ar severo e decidido de quem, apesar de tudo, já sabe muito bem o que fazer. Daí a pouco, no Largo de São Francisco de Paula, ele atravessava os grupos de curiosos que à luz do gás comentavam os acontecimentos daquele dia, deixando atrás de si como um rastilho a notícia de que o governo, entre várias medidas de extrema severidade, acabava de mandar prender o Marechal Deodoro da Fonseca e o Dr. Benjamim Constant. Ele descobrira o melhor serviço que, no momento, ainda podiam aqueles dois prestar à conspiração. No largo havia vários oficiais vestidos à paisana. Em poucos segundos, quase todos os tílburis do habitual estacionamento em frente à Escola Politécnica, tinham desaparecido em furiosa disparada... A passagem do Major Sólon pelo Largo de São Francisco de Paula deu-se mais ou menos às sete e meia da noite. À uma hora da madrugada começaram os oficiais a afluir aos quartéis de São Cristóvão, onde se foram incorporando aos esquadrões e baterias, já metidos em forma pelos sargentos. Benjamim Constant e Deodoro, até então, de nada sabiam nem suspeitavam. O primeiro só apareceu às cinco e meia da manhã, trazido por dois oficiais da Escola Superior de Guerra, que, alertados como os outros, o foram procurar. Deodoro, tendo mesmo passado mal a noite com um dos seus freqüentes acessos de dispnéia, estava ainda na cama quando um seu sobrinho e mais dois oficiais o vieram avisar de que a coluna de São Cristóvão já vinha em marcha sobre a cidade. Levantando-se surpreso e visivelmente agita, ele fardou-se em grande pressa e, acompanhado pelos três, partiu numa caleça ao encontro da tropa sublevada, levando num saco, ao lado do cocheiro, os seus arreios de montar. Depois de uma volta inútil até o quartel do 1º de Cavalaria, ele veio dar com a coluna já na Rua Senador Eusébio, em frente à companhia do gás. Daí, sempre de carro, a veio acompanhando até a 286 esquina da Rua Visconde de Itaúna, onde desceu. Foram então trocados os arreios do cavalo do Alferes Eduardo Barbosa, do 1º Regimento. O marechal, que até ali parecia ofegante e mais ou menos abatido, como que recobrou todo o seu ânimo. Montou a cavalo e, muito ereto e firme sobre a sela, mandou a tropa tomar posições para combate, em frente ao quartel-general. Foi assim, inopinadamente e mais ou menos compelidos, que os dois chefes principais do movimento foram trazidos ao Campo de Santana. Mas não foi apenas a eles dois que se reservaram as surpresas daquele dia. Com a súbita corrida de oficiais aos quartéis de São Cristóvão, determinada pela discreta manobra do major Sólon Ribeiro, a polícia também quis saber do que se passava por ali. As três horas da madrugada, as tropas com as quais o governo supunha contar para sua defesa também eram alertadas, partindo a ocupar as posições que lhes haviam sido previamente indicadas pelo ajudantegeneral do Exército. Entre as destinadas ao quartel-general estava uma brigada de Marinha, que ficou estendido à direita do edifício, cobrindo a pequena praça fronteira à estação e tendo à retaguarda um batalhão de polícia, disposto em colunas de companhia. Foi dado o comando desse grupo ao Brigadeiro Almeida Barreto. Quando a força vinda de São Cristóvão entrou a estender-se, o Capitão-deFragata Frederico Lorena, vendo aproximar-se o Contra-Almirante Eduardo Wandenkolk, perguntou-se com certa ansiedade: Chefe, de que lado está o inimigo?...(43) Foi aquele o momento exato no qual de tudo decidiu o espírito de classe. O Marechal Deodoro mandou ordem ao Brigadeiro Almeida para trocar de campo. Houve um rápido e aflitivo instante de incerteza. A ordem, duas vezes, teve de ser energicamente repetida. Mas o brigadeiro moveu-se. Ouviram-se vozes de comando. Fuzileiros navais e marinheiros, seguidos docilmente pelas 287 companhias de polícia, vieram alinhar-se como convinha, à esquerda da gente de São Cristóvão. O inimigo estava do outro lado, ou, melhor, estava no cerco. Era apenas o Conselho de Ministros... *** O que se dera afinal fôra que os militares, arrastados na crescente irritação do seu conflito com os sucessivos gabinetes, não chegaram a perceber que, a partir do aparecimento dO País, não eram mais donos dos seus movimentos nem senhores das suas decisões. Uma idéia viera associar-se à simples paixão de classe que os dominava, aó resumindo-se toda a psicologia do golpe de 15 de Novembro. não caberia certamente a Quintino Bocaiúva a pública e franca revelação deste segredo, no qual se incluíam e comportavam todas aquelas circunstâncias por ele referidas como secretas. O elogio aí implícito não deixaria de ser grande demais em boca própria. Entretanto, seria justo afirmar não ter havido um único oficial para sentir ou compreender onde o direitor dO País os conduzia? Certamente não. Entre os signatários daquele áspero e severo Termo de Compromisso e Adesão, promovido por Aristides Lôbo em 1877 como reação ao amortecimento da propaganda republicana conseqüente ao grande interesse pela campanha abolicionista, há vários oficiais. Lá estão, com mais uns quatro ou cinco de menor notoriedade, Moreira César, Siqueira de Meneses, Dantas Barreto e Vespasiano de Albuquerque. Nenhum deles, entretanto, se faz notar em toda aquela, ao mesmo tempo, tão ativa e tão discreta conspiração. Como velhos brasileiros, dentro da nossa tradicional compreensão da vida pública, outro era também o modo pelo qual esperavam a nossa ascensão à forma republicana. Se chegaram a ver realmente as cousas, tal como elas se dispunham e 288 preparavam, certamente contentaram-se em dar de ombros, já que nem as autoridades da Monarquia nem os seus companheiros de uniforme as sabiam ver e interpretar com exatidão. Benjamim Constant, do seu lado, fosse qual fosse a firmeza dos seus princípios filosóficos, não escapava aos mesmos e confessados escrúpulos de consciência que prendiam o Marechal Deodoro e o Visconde de Pelotas à pessoa do imperador, fazendo da duração da vida do monarca um obrigatório motivo de protelação da Monarquia. O próprio Major Sólon, ainda nos fins de 1888, não era republicano. Solicitado como todos os seus camaradas pela sua questão de classe, teve muito a queixar-se naquele ano contra o gabinete João Alfredo, por haver sido enviado a contragosto, como já dissemos, a servir no Paraná. Na viagem, entre os portos do Rio de Janeiro e Paranaguá, mostrava-se desgostoso e apreensivo. Mas, amistosa e paternalmente interpelado sobre os motivos das suas preocupações por um dos seus companheiros de bordo, o Rev. Carvalhosa, da Igreja Presbiteriana de São Paulo, apenas queixou-se dos políticos civis, constituídos a seu ver em barreira prejudicial entre o Exército e o imperador. Foi só na sua volta à corte e a menos de dois meses do levante do Campo de Santana que o seu interesse pela República se manifestou, como conseqüência daquele primeiro encontro com Quintino Bocaiúva. O ardoroso e tenaz propagandista facilmente lhe fez compreender que, naquela altura, não havia mais como reconciliar o Exército com o princípio de autoridade expressado na Monarquia. O Exército tinha que arrebatar para si mesmo a representação total daquele princípio, proclamando a República em nome do povo, ou aceitar as inevitáveis conseqüências daquele seu incoerente e indefinido estado de sedição. Colocadas as cousas nesse plano terrivelmente prático. O Major Sólon não teve 289 dúvidas em jogar tudo por tudo, constituindo-se em realizador in extremis das velhas e sagazes previsões de Quintino Bocaiúva(44). Compreende-se portanto que o ardoroso propagandista tenha vindo dizer depois que nenhum exerceu mais decisiva influência na proclamação da República do que ele. O que não oferece dúvida entretanto é que foi por um verdadeiro plano inclinado, no qual não podiam mais recuar nem conseguiam mais se deter, que os militares chegaram ao 15 de Novembro. Para encarar despreocupadamente e com fácil entusiasmo a transfiguração final da Questão Militar em revolução republicana, houve apenas um pequeno grupo de jovens oficiais e alunos militares, entre os quais é justo destacar o Capitão Mena Barreto, os Tenentes Sebastião Bandeira e Saturnino Cardoso e o Alferes Joaquim Inácio que se fizeram, a partir do dia 11 de novembro, os exaltados e espontâneos ajudantes do Major Sólon. Na noite de 14 para 15, os três últimos, havendo recebido do major a falsa notícia da prisão de Benjamim Constant e Deodoro, acrescida ainda de um iminente ataque da polícia e da Guarda Negra aos regimentos de São Cristóvão, foram de tal boato os propagadores mais ativos e eficazes, não só correndo os quartéis em grande agitação, como indo mesmo de porta em porta a levantar os oficiais já recolhidos às suas residências. Fora daquele grupo certamente reduzido, só houve para aceitar a República, deliberadamente e sponte sua, um único homem – o Marechal, Floriano Peixoto. Mas este aí chegou por um caminho não somente oposto ao de todos os outros da sua classe, como totalmente estranho aos sentimentos ou à própria alma do Brasil daquele tempo. Tipo de soldado clássico, ou, melhor, tipo clássico do homem de tropa, aferrado por instinto às normas e obrigações da disciplina, o Marechal Floriano Peixoto jamais consentiu em se comprometer na 290 Questão Militar, terminantemente recusando participar dos seus conciliábulos. Foi exatamente a grande condescendência do cancelamento ex-officio das sanções disciplinares o que, aos seus olhos, desacreditou por uma vez o governo da Monarquia. Aqui está como, em carta dirigida das Alagoas ao Coronel João Soares Neiva em 10 de julho de 1888, ele julgava aquela extrema concessão do poder público aos soldados sediciosos: Fato unido que prova exuberantemente a podridão que vai por este pobre país e portanto a necessidade da “ditadura militar” para expurgá-la. Como liberal que sou, não posso querer para meu país o governo da espada; mas não há quem desconheça e aí estão os exemplos de que é ele o que sabe purificar o sangue do corpo social, que como o nosso está corrompido...(45) Dizendo como liberal que sou, Floriano Peixoto referia-se à circunstância de pertencer ao Partido Liberal, ao qual servira como presidente da província de Mato Grosso de maio de 1883 a outubro de 1884. Desiludido com o lamentável expediente dos seus correligionários do Senado, em lamentável associação com o governo conservador, ele rompia não só com o seu partido, mas com a própria Monarquia. Entretanto, prevendo a substituição do governo legal pela incapacidade revelada de manter a disciplina, ele evidentemente esperava combater o mal levando-o simplesmente ao paroxismo... Foi exatamente pelo seu notório apego às regras disciplinares que o Visconde de Ouro Preto, logo após a constituição do gabinete de 11 de junho, o chamou ao posto de ajudante-general do Exército, promovendo-o ainda de general-de-divisão a marechalde-campo. Mas o chefe liberal não podia saber as estranhas reações que o desrespeito àquelas regras, no qual ele tanto se comprometera, havia produzido no espírito do seu taciturno e severo correligionário, por aí se explicando bem todas as surpresas que veio a ter na manha de 15 de Novembro... 291 A página 118 das suas Pesquisas e Depoimentos põe Tobias Monteiro a seguinte informação: “Não há muito tempo, em artigo publicado na imprensa, referiu o General Cunha Matos que, voltando de assistir ao desfecho do Aquidabã em que Lopes morreu recusando render-se, dizia Floriano Peixoto, então major da coluna expedicionária: De um homem daqueles é que nos carecemos no Brasil”. As preferências do ajudante-general do gabinete de 7 de junho pela ditadura militar, como terapêutica no tratamento das demopatologias, eram portanto muito anteriores às suas decepções na Questão Militar, desde que a receita lhe vinha assim da guerra do Paraguai. Segundo aquela informação, ele estaria também em condições de ver os negócios do Brasil pelo prisma especial hispanoamericano, com a agravante de escolher uma das suas faces mais grosseiras e mais sombrias... Em todo caso, não se poderá dizer que ele haja tido qualquer influência na Questão Militar, que tão profundamente repudiava, nem há prova alguma de se ter jamais posto em contato com Quintino Bocaiúva. A sua ação em tudo aquilo foi portanto indireta e sempre solitária. Pode mesmo dizer-se que foi apenas negativa, pois restringiu-se a imobilizar no quartel-general as tropas com as quais contava o governo para se defender. A chamada para ali dos corpos de polícia e de bombeiros, para colocá-los sob a imediata vigilância dos batalhões do Exército e a uma distância que não permitisse a mínima veleidade de reação, foi dessa manobra secreta e toda pessoal a parte mais astuta. Dos dados reunidos por Tobias Monteiro se depreende que, depois de haver assumido o posto de ajudante-general do Exército, várias vezes foi instado pelo Marechal Deodoro a tomar posição na pura questão de classe, comprometendo-se num possível levante destinado apenas a satisfazê-la. De cada vez a sua recusa foi imediata e peremptória. Não; não contassem com ele para um simples ato de indisciplina, 292 sem a mínima significação política. Se fosse para fazer a República, então sim! Por aí se vê a enorme diferença de mentalidade que os separava. Deodoro, em que pesasse o seu acidental e estranho modo de compreender as relações do Exército com o poder civil, ainda de certa forma se mantinha fiel às tradições políticas do seu país. Ele, não. Admitindo, a título de corretivo, a completa invasão da política pela tropa, delas já se havia totalmente libertado. Superficial e bem ligeiro em seus juízos seria entretanto aquele que, sumariamente ou sem maior exame, a um ou outro daqueles dois homens condenasse em absoluto. Para tanto seria indispensável negar-lhes preliminarmente a natureza humana ou a qualidade de serem homens. Nas indecisões do Marechal Deodoro nunca deixou de haver uma certa nobreza ou uma certa elevação. Era entre o respeito ao próprio espírito político da sua terra e o afeto pelos seus companheiros de sofrimentos e de glórias no Paraguai que continuamente ele oscilava. Na sua posição, que poderia ele temer pessoalmente da possível animosidade de políticos civis? Tudo fariam eles para tê-lo do seu lado. Tudo lhe foi oferecido. O Barão de Cotegipe, seu correligionário no Partido Conservador, quis fazê-lo Visconde de mato Grosso, e bastaria uma palavra sua para que um lugar se lhe abrisse no governo. Tudo ele recusou, tudo deixou de ver porque apenas o dominavam os seus sentimentos afetivos, nos quais, confusamente, mas com grande intensidade, chegava a compreender o próprio imperador. A vida do velho soldado em todo aquele período foi uma tremenda luta interior, na qual às reações do seu cérebro continuamente se opunham as suas fraquezas, senão as suas melhores qualidades de coração. Quem negará que seja em lutas desta natureza que se gerem e concretizem em geral as grandes ações humanas? Tudo está na escolha da última decisão, mas, para que esta 293 seja a mais feliz e mais correta, é indispensável ainda que o permitam as circunstâncias, entre as quais se incluem as nossas próprias disposições psicológicas no momento decisivo... A história dos povos está naturalmente cheia de casos como aquele. O herói, sobretudo no último instante ou na hora final, não tem mais o controle dos seus passos. É apenas um acessório do fato heróico, que o será principalmente segundo se projete na mente dos vindouros... O Marechal Floriano Peixoto, do seu lado, também não poderia fugir aos seus imperativos ontológicos, em face do seu tempo. Soldado – e sobretudo ou unicamente soldado – o respeito à disciplina militar parecia-lhe a pedra de toque das instituições políticas e o espelho da boa ordem em todo o conjunto da vida social. Que valor podiam ter para ele governos que consentiam em sofismar os regulamentos militares para fugir aos incômodos ou às ameaças de uma sedição tumultuária e inconsciente? Como poderia ele servir esses governos e que espécie de fidelidade poderiam eles reclamar de um soldado e um patriota como ele se estimava?... A única cousa a tentar era a regeneração do Brasil, a purificação do sangue do corpo social, por uma autoridade inflexível e mesmo inexorável, que, como expressão de força irresistível, só podia ser de caráter militar. A revolução republicana, fazendo ruir a velha e apodrecida construção da Monarquia, era o caminho natural e imediato para aquela autoridade – que só ela restabeleceria a disciplina, na exata compreensão dos deveres de todos e de cada um! Assim pensava ele... Tendo em conta as profundas diferenças de caráter que mutuamente distinguiam aqueles dois homens, entretanto tão semelhantes pelos recursos de educação e os dotes de cultura, imediatamente compreende-se as suas respectivas posições naquele instante, como conseqüências obrigatórias e inevitáveis das várias circunstâncias. Não resta porém a menor dúvida de que seja em 294 momentos como aquele que mais preciosos se tornem para os indivíduos – para eles como para o meio sobre o qual sejam chamados a reagir – essas grandes qualidades de claro entendimento e visão justa que só uma boa dose de cultura geral, aliada a uma certa experiência da vida pública, sabe em política fornecer. Nem um nem outro explicava ou compreendia com clareza as cousas do seu tempo. Nem Deodoro, constituído em grande protetor da Questão Militar, nem Floriano tendo-a por insensata e monstruosa, chegada a perceber que tudo aquilo não passava de um reflexo, de um puro reflexo, cuja origem, sendo a árdua e longa agitação abolicionista, já estava de todo encerrada em 1888. Perante a Câmara a abrir-se a 20 de novembro de 1889, a confusão dos partidos e das idéias em geral, na qual nasceram tanto os ímpetos panfletários dos militares como as condescendências disciplinares do governo, seria um fato do passado. A atenção pública estaria voltada para outras preocupações e outros assuntos, com uma nova definição de posições que automaticamente restabelecesse na política geral a mútua e bem determinada oposição de idéias e princípios, sem a qual não há partidos nem possível equilíbrio nos países de organização parlamentar. A posição do Exército desse novo ambiente rarefeito e saneado pela precipitação ou pela grande descarga da Abolição, não seria naturalmente muito diferente da que tivera na Independência, no dia 7 de Abril e na Maioridade, como em última análise também a teve na Abolição. Na passagem final da Monarquia para a República, os soldados não teriam certamente de substituir a opinião pública do seu país ou a ela violentamente se suporporem, salvando-se portanto os nossos costumes políticos e os nossos métodos tradicionais de evolução. *** 295 Perante as considerações aqui trazidas até agora que necessariamente decorrem da nossa norma peculiar de evolução, da própria natureza ou da própria índole da nossa formação histórica no continente, é que se compreende bem o imenso trabalho empreendido e executado pro Quintino Bocaiúva. Circunscrito a exagerar os incidentes, até levá-los a exceder e dominar completamente os fatos essenciais, esse trabalho constitui certamente o mais escandaloso e formidável artifício jamais montado na história de qualquer povo. O diretor de O País não podia realmente compreender e muito menos se associar a uma proclamação da República por ato regular do Parlamento, como expressão de um voto previamente pedido ao eleitorado ou à nação, tal como o sonhavam os estadistas do Império, fossem eles conservadores, como Cotegipe ou Francisco Belisário, ou fossem liberais, como Ouro Preto ou José Antônio Saraiva. A República, vazada nestes moldes, seria um lógico e puro desdobramento da Monarquia, a manter e consolidar o Brasil no seu velho caráter de democracia parlamentar, em necessária contradição com a democracia autoritária ou simplesmente caudilhesca dos seus vizinhos castelhanos. Ora, o programa de Quintino Bocaiúva visava exatamente a contração do Brasil ao nível comum do continente. Mais de espécie internacional que de caráter interno, ele procurava sobretudo resolver a latente e inevitável oposição em que até então vivêramos com aqueles povos, excetuada apenas a República do Chile, que, como nós, era também um país de organização parlamentar. Não há política internacional que não seja uma projeção exterior de uma dada situação interna. Só a liberdade, a manter a confiança no interior e o respeito no exterior, garante e assegura a paz naqueles dois planos da vida pública dos povos. Esse princípio 296 imutável, vindo da velha Atenas com Sócrates e a Dialética, tem mais de dois mil e trezentos anos de irrecusável e constante experiência. Colocai em vizinhança ou em contato de qualquer sorte dois povos de níveis políticos diferentes, e, no nível mais baixo, os motivos de conflito logo se acusarão. É sobretudo no domínio do direito internacional privado que esses motivos imediatamente se concretizam, pela fatal incapacidade dos governos antiliberais de reconhecer em súditos estrangeiros, direitos que só muito precariamente admitem nos seus nacionais. As nossas lutas no Prata e no Paraguai, durante o Segundo Reinado, tiveram suas origens invariáveis no sistemático desprezo à vida e aos bens dos nossos estancieiros além das fronteiras do Uruguai, assim como a guerra do Pacífico, de 1879, surgiu dos ataques do ditador Hilarión Daza, da Bolívia aos direitos dos salitreiros chilenos de Antofagasta. Dada a final e inevitável superioridade militar dos governos livres sobre os chamados governos fortes, apesar da maior e aparentemente mais eficaz preocupação desses com os armamentos e as atitudes militares, os dois povos parlamentaristas da América haviam conseguido sair-se excelentemente de todas as suas querelas com os seus turbulentos vizinhos autoritários, daí nascendo, com uma natural e clara simpatia entre o Chile e o Brasil, uma não menos lógica e evidente desconfiança dos outros para com eles. Para penetrar fundo na psicologia política de Quintino Bocaiúva, sentimentalmente fundada no seu grande pendor pelos homens e pelas cousas do rio da Prata, é preciso recorrer a todos estes dados, interpretando-a no quadro político geral da América Latina. Ele foi certamente um grande sul-americano, com um profundo senso de fraternidade continental, dentro do espírito republicano peculiar a esta parte do Novo Mundo. Mas esse espírito republicano necessariamente era o mesmo daqueles extremados e 297 rudes patriotas, que, de 1810 a 1826, furiosamente lutaram pela República desde os alcantis do México aos llanos da Venezuela e aos pampas argentinos, como simples meio de transferirem-se a si mesmos o primitivo poder absoluto conferido pelos reis de Espanha aos seus governadores e vice-reis. Era um espírito político simples e inteiriço, totalmente isento de gradações ou de nuanças, no qual passava-se imediatamente da noite para o dia sem crepúsculos e sem auroras, mas onde, em verdade, mudança havia apenas nas origens da tirania, tornada mais grosseira e mais próxima com os novos emblemas e os novos ocupantes do poder. Na mais íntima e perfeita identidade com aquele espírito, o nosso grande propagandista da República nunca se preocupou com fórmulas constitucionais ou instrumentos legais da liberdade na possível construção jurídica do seu novo Estado. As relações muito sábias e detalhadas de direitos e franquias, talo com tanto as estimavam os radicais até 1879, sempre o deixaram frio e de todo indiferente. Tendo-se uma primeira vez candidatado a senador pelo Município Neutro, em 1880, quiseram os positivistas, por solidariedade de princípios, trazer-lhe o apoio dos seus votos. Dadas porém as vagas expressões do Manifesto de 70 e as contínuas flutuações doutrinárias da propaganda, Miguel Lemos entendeu que já era tempo de, na matéria, assentar qualquer cousa de mais sério e mais concreto. Em uma assembléia geral republicana realizada para fins eleitorais, a 15 de agosto,na Travessa da Barreira, o chefe positivista veio submeter ao candidato este claro e expressivo mínimo de programa: 1º) Afirmar o alvo da transformação republicana; 2º) Condensar as reformas necessárias e oportunas em um certo número de medidas políticas, como o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos e a secularização dos cemitérios, como preparação para a completa separação do poder espiritual do 298 temporal; 3º) Indicar medidas complementares da obra iniciada pela lei Paranhos ou do Ventre Livre. Quintino Bocaiúva protelou, divagou, contornou e de modo algum se comprometeu. Na Primeira Circular Anual do Apostolado Positivista no Brasil (1881), Miguel Lemos dá conta do incidente, sem grande amenidade pelas idéias e mesmo pela própria pessoa do candidato... Não menos expressivo foi outro incidente verificado com Silva Jardim nos primeiros dias de janeiro de 1889. No último 30 de dezembro, o ardoroso tribuno santista havia-se visto às voltas com a Guarda Negra e os secretas da polícia numa conferência que proferiu na Sociedade Francesa de Ginástica. Houve grande tumulto, com vários tiros de revólver e certo número de feridos e contusos, sem que entretanto o bravo orador descesse da tribuna. Cercado por um grupo de estudantes que espontaneamente tomou a sua defesa, ele, apesar de tudo, levou até ao fim o seu discurso. Disposto a dar larga divulgação àquele escândalo, Jardim preparou então um inflamado e longo manifesto, cheio de duras e implacáveis invectivas contra o trono e contra José do patrocínio, levando-o a Quintino Bocaiúva para ter publicidade. O diretor dO País não deixou de inserir a terrível objurgatória nas colunas do seu jornal. Mas, a sorrir calmo e condescendente, achou de melhor instruir o seu jovem correligionário sobre o verdadeiro caminho que as cousas iam tomando. Não gastasse tanto a sua brilhante dialética nem tanto se arriscasse, pois a República, por meios muito mais simples e eficazes, bem depressa chegaria... Ao conhecer por esta forma o plano de Quintino Bocaiúva, baseado apenas no progressivo incitamento dos soldados à revolta, Silva Jardim tomou-se de uma irrefreável indignação condenando-o com grande veemência de expressões. Para um homem intimamente filiado, como ele era, à escola política de Martim Francisco e José Bonifácio, aqueles 299 projetos pareciam simplesmente detestáveis. O rompimento daí resultante entre os dois foi tão profundo e definitivo que, no seguinte 13 de novembro, lembrando Glicério a conveniência de chamar Silva Jardim para as conferências daquela noite, Bocaiúva peremptoriamente recusou. Tinha-o por um ideólogo aéreo e um tanto incômodo que só poderia perturbar(46). O ardente companheiro dos abolicionistas fundadores do quilombo do Jabaquara, o intrépido e sincero pregador da Abolição e da República só veio a saber, a 15 de Novembro, do que se passara no Campo de Santana, ao receber os bons dias do primeiro conhecido que encontrou ao sair ao meio-dia, à porta da sua casa. Dado o fato da proclamação da República, tal como realmente se deu e aqui o temos apresentado, era inevitável que o verdadeiro papel de Quintino Bocaiúva em tudo aquilo não deixasse de vir mais ou menos velado ou contrafeito nas crônicas do tempo, ou nas tantas histórias, como ele mesmo o diz na sua carta à Sra, Sólon Ribeiro. Por várias vezes tentaram amigos seus marcar-lhe melhor a posição no acontecimento memorável. Mas de cada vez levantaram-se verdadeiras torrentes de protestos, tendentes a manter inalterada aquela grande visão de apoteose, fixada pelo pintor Henrique Bernardelli, no seu grande e conhecido quadro de remomoração oficial. O período presidencial de 1910 a 1914, preenchido pelo Marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro, foi especialmente propício a tais pesquisas e controvérsias. Foi então que apareceram os trabalhos de Ernesto Sena. Na mesma época, o Dr. Ferreira Viana Filho, assinando-se Suetônio, procurava, em artigos publicados nO País, pôr em maior destaque a posição de Quintino Bocaiúva. Saiu-lhe em oposição o antigo Tenente Sebastião Bandeira, já então general reformado, a reclamar para o Marechal Deodoro não somente a ação decisiva como mesmo a principal 300 inteligência de todo o acontecido. Relegando a um plano de todo insignificante a parte atribuível ao Marechal Floriano Peixoto na preparação e nos resultados do levante, ele também só admitia a Bocaiúva uma intervenção mais ou menos indireta senão mesmo platônica ou de pura forma. Mas, se se trata de saber quais eram as reais disposições do Marechal Deodoro para com a eventualidade da mudança do regime, o próprio General Sebastião Bandeira, nas suas contestações a Suetônio, naturalmente sem querer, muito bem nos esclarece: O General (Deodoro) preferia realizar a revolução unicamente com o elemento militar de que dispunha, e que na sua opinião, naquela época, era tudo. Graças porém à sua natural docilidade (sic), conseguimos convencê-lo da vantagem da intervenção dos chefes republicanos prestigiosos, para dar feição mais ampla ao movimento com o concurso pelo menos aparente do elemento civil, a fim de não parecer que se tratava simplesmente de uma revolta de quartéis(47). Esta indicação, combinada com as resistências do general a quaisquer manifestações proclamativas da República no Campo de Santana, com o viva ao imperador e com as declarações feitas ao Visconde de Ouro Preto no ato de sua deposição, tornam-se imensamente preciosas... Durante os festejos oficiais pela proclamação da República, nos primeiros dias de dezembro de 1889, isto é, menos de um mês após o desenlace de 15 de Novembro, Emiliano Perneta, escritor e jornalista de segura visão das cousas do seu tempo, discursando numa sessão cívica o Teatro S. Teodoro, de Curitiba, onde por sinal falou também o brigadeiro e então jovem poeta paranaense Leôncio Correia, teve estas características palavras: Se não fosse uma cabeça como a de Quintino Bocaiúva... Sim, em todo o Brasil não se encontraria outra em condições de conceber e conduzir até o fim uma 301 revolução naqueles moldes. Já se tornou célebre a crônica de Aristides Lôbo para o Diário Popular sobre o 15 de Novembro. Escrevendo ainda sob a forte emoção do que acabara de assistir, assim falou ele da ação ou do papel dos militares naquele dia: - O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula... O primeiro Ministro do Interior do Governo Provisório, na sua evidente desconfiança para com as intervenções dos militares na política e com elas certamente perturbado, não foi exato e sobretudo não foi justo. Se alguém havia a quem se pudesse atribuir qualquer exclusividade de autoria em tudo aquilo, esse alguém era certamente Quintino Bocaiúva. Ele foi não somente o cérebro, a alma, o indiscutível autor do grande acontecimento, como, num verdadeiro golpe de teatro, chegou mesmo a constituir-se, no último instante, em seu símbolo perfeito... No Cap. III, pág. 65 do nosso livro Os Republicanos Paulistas e a Abolição, tratando do aparecimento do grande propagandista no mundo político do Rio de Janeiro, na sua volta da República Argentina ao fim da guerra do Paraguai, assim traçamos o seu perfil: “Até nos modos de vestir e nas mais simples atitudes a sua preocupação com o rio da Prata se revelava. No meio severo e formalístico da corte daquele tempo, onde o chapéu de pelo luzidio e a gravata preta de laço eram de rigor, ele apareceu toucado de um chapéu mole de grandes abas, com um amplo e frouxo laço à Lavalière a flutuar-lhe no colarinho baixo e rebatido. Muito esguio e ereto de busto, todo abotoado numa elegante sobrecasaca preta, com as mãos finas enluvadas em pelica negra e a barba toda, ligeiramente talhada em ponta, ele expunha um perfil sem dúvida curioso e original para o nosso velho mundo carioca e cortesão dos barões e conselheiros. Aquele era, ao que parece, o tipo clássico do homem público nas nações do Sul, misto oscilatório de demagogo erudito e 302 intrépido caudilho, segundo as atividades cívicas se desenvolvessem nos torneios oratórios da paz ou nos recontros eqüestres da guerra civil...” Com uma pequena variante no colarinho, que se tornou um pouco mais alto, e na gravata, substituída por um plastron negro fixado por um artístico alfinete, a sua toilette conservou-se sempre a mesma. Na manhã de 15 de Novembro, foi assim vestido que ele veio ao Campo de Santana. Mas, desta vez, era bem a segunda alternativa do seu misto oscilatório que se apresentava: ele vinha a cavalo!... Quintino Bocaiúva, nas suas idéias, no seu trajar característico, nos seus processos e nas suas atitudes, em toda a sua pessoa, era um programa. Naquele instante, a avançar assim, ereto e altaneiro, ao passo da montaria, na emocionante perspectiva de um mavórtico desenlace pelas armas, o programa heroicamente se completava... Partindo talvez do seu centro político da Rua do Carmo, para onde o desconhecimento oficial das articulações de última hora da agitação militar com a propaganda republicana não dispusera nem previra a mínima vigilância, ele veio tranqüila e lentamente a subir a Rua da Alfândega. Ao aproximar-se do campo, desceu a trote um piquete de clavineiros que o envolveu. Mas o comandante, reconhecendo-o, pôs-se à sua disposição, rendendo-lhe a continência da ordenança. Esse comandante era o cadete Raimundo de Abreu Filho que, na aliciação dos inferiores dos três regimentos de São Cristóvão, fôra o principal agente do Major Sólon Ribeiro. O diretor dO País, sem qualquer sinal de emoção ou de estranheza, perguntou-se onde estava o Marechal Deodoro da Fonseca. Dando-lhe passagem a acompanhando-o a passo até a esquina, o cadete mostrou-lhe no centro do campo o grupo formado pelo marechal e o seu piquete. Bocaiúva continuou sozinho no seu cavalo, a olhar interessado as 303 linhas de soldados com a naturalidade e a segurança de um velho chefe militar com longo hábito daquelas cousas. Daí a pouco o drama já descrito estava consumado. O Marechal Deodoro, saindo do quartel-general seguido pelas tropas que lá estavam, manda ao clarim do seu piquete tocar ajudantes para as ordens da nova formatura e do desfile. É nesse instante que o Major Sólon Ribeiro, instigado por Quintino Bocaiúva, deixa a trote o centro da linha do 9º Regimento de Cavalaria, em cujo comando estava, e vem trazer ao marechal aquela informação de não embainhar a sua espada enquanto não estivesse a República proclamada... Deodoro, ouvindo-o num ligeiro sobressalto, olha-o por um instante e responde-lhe lentamente algumas palavras. Rodando o seu cavalo pela direita, o major volta ao seu posto, mas, detendo-se junto a Quintino Bocaiúva, dá-lhe com um ligeiro sorriso de inteligência este aviso certamente inesperado: O marechal deseja tê-lo no seu estado-maior durante o desfile!... Quintino Bocaiúva não vacila. Dá de rédeas e vai calmamente postar-se um pouco por trás do marechal, à esquerda do Tenente-Coronel Benjamim Constant... Nenhum dos nossos políticos civis daquele tempo ousaria fazer aquilo. Nenhum resistiria ao intraduzível exotismo de desfilar a cavalo, à paisana, de sobrecasaca e chapéu mole, à testa de uma coluna de tropas regulares, pelas ruas de uma grande cidade como o Rio de Janeiro. Qualquer outro a quem a inédita exibição fosse oferecida, se teria escusado com verdadeiro espanto e certamente confuso e embaraçado. Ele, não. Cofiada a barba nazarena, levemente rebatida a aba direita do chapéu e bem seguras as rédeas nas duas mãos calçadas de luvas pretas, lá foi como num sonho, ao clangor estridente e triunfal das bandas militares. Entretanto, ele nada tinha de ridículo nem canhestro. Era apenas estranho... Resumindo-se naquela hora todas as suas lutas, todas as suas esperanças, toda a sua 304 vida, era dele mesmo, a avançar assim com o olhar perdido no horizonte, que nascia e irradiava o próprio ambiente daquele dia. Era o dia santo do Caudilhismo! Com Quintino Bocaiúva lá iam a pairar sobre aquele mar de baionetas sublevadas, em desconcertante e espantosa procissão evocativa, as sombras de todos os heróis clássicos da história hispano-americana, desde Bolívar e Miranda, desde O‟Higgins e San Martin, desde Rosas e Garcia Moreno, até Oribe e Melgarejo, senão mesmo ate Solano Lopes... Não importa... No seu triunfo tão sugestivo e tão completo, não deixava de passar um friso de tragédia. Porque, segundo Teodoro Mommsen nas suas severas meditações sobre a passagem do Rúbicon e a batalha de Farsália, o povo que muda de instituições pela força das armas, só muito dificilmente ou nunca mais endireita(48). NOTAS (35) Em 1913 esses trabalhos foram reunidos em volume, abun dantemente ilustrado com gravuras, sob o título Deodoro, composto e impresso nas oficinas da Imprensa Nacional. (36) O próprio Sebastião Bandeira, em carta dirigida a Ernesto Sena, assim o conta: - Depois de infrutíferas diligências em procura de Bocaiúva n’“O País” e no “Hotel Paris”, à rua da Uruguaian a, encontrando Trovão em frente ao “Diário de Notícias”, pedi -lhe me informasse onde acharia os aludidos chefes (Bocaiúva e Aristides)... Trovão, depois de indicar-me os lugares em que eu já havia procurado Bocaiúva, guiou-me ao “Café Londres”, onde estava Aristides Lôbo... A carta onde se encontra este trecho vem à pág. 99 do livro Deodoro. (37) Intercalado no texto do livro de Ernesto Sena, págs. 78 e 79, encontra-se, assinado por S. Fabrizzi, um mapa do local, com a exata posição das forças na manhã de 15 de Novembro. 305 (38) Vide Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil, 2ª ed., pág. 434. (39) Informação pessoal de Quintino Bocaiúva, em carta dirigida à viúva do General Sólon Ribeiro a 31 de julho de 1902. (40) O primeiro a revelar publicamente es se detalhe característico foi o Capitão José Bevilacqua, em discurso feito no Rio de Janeiro a 10 de julho de 1890. Tendo-se levantado a respeito uma acesa discussão, veio à imprensa, em defesa do capitão, o chefe do Apostolado Positivista, R. Teixeira Mendes, que disse haver também presenciado aquela manifestação do marechal, no que foi confirmado pelo Capitão Ximeno de Villeroy, pelo Tenente Pantoja Rodrigues e pelos civis Benjamim Constant Filho e Agilberto Xavier, todos figurantes ou testemunhas do drama de 15 de Novembro. Agilberto Xavier, falando em nome do Clube Benjamim Constant, de cuja diretoria fazia parte, fez pela edição d O País de 21 de setembro daquele ano uma declaração na qual se lê: “ Quanto ao fato de ter o Marechal Deodoro dado vivas a D. Pedro II, a 15 de Novembro, é fato ainda bem recente na memória de muitos companheiros dessa memorável jornada. Dentre muitos nomes que poderíamos apresentar, se nos quiséssemos dar ao ingrato trabalho de indagar, podemos indicar de momento os dos Srs. Serejo, Saturnino Cardoso, Ivo do Prado e Tasso Fragoso (todos oficiais do Exército). Seria inútil dizer igualmente que diversos, entre os quais o Sr. Capitão Villeroy, ouviram o Marechal Deodoro proibir aos alunos da Escola Militar darem vivas à República.” (41) É a mesma a que nos referimos em nota à pág. 77. Ela vem na íntegra às págs. 90 e 91 do livro de Ernesto Sena. Por iniciativa do Dr. Nestor Ascoli, antigo secretário de Quintino Bocaiúva, ela foi publicada no jornal carioca O Imparcial, de 11 de julho de 1913, tendo sido inserta nos Anais da Câmara dos Deputados do mesmo dia, a requerimento do deputado Maurício Lacerda. Na comemoração do primeiro centenário do nascimento do grande diretor dO País, em 1936, Rodrigo Otávio a leu na sua conferência sobre as efemérides, no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, conferência esta que, como já notamos, se encontra reproduzida no Vol. 171, págs. 422 a 433 da Revista do Instituto. (42) Palavras textuais. Vide E. Sena, Deodoro, pág. 113. 306 (43) Esta informação nós a tivemos pessoalmente, em Manaus, no ano de 1909, do Capitão-de-Mar-e-Guerra Nóbrega de Vasconcelos, que, tendo feito parte da oficialidade daquela brigada, era então comandante da flotilha do Amazonas. (44) Aqui retifica-se um pouco o papel do Tenente-Coronel Benjamim Constant no desenlace de 15 de Novembro, tal como o apresentamos no Cap. IV. pág. 200, da Política Geral do Brasil. O papel dele, na preparação da revolta, foi bem o ali indicado. É certo entretanto que jamais chegou a dominar completamente os sentimentos de fidelidade para com o imperador que o faziam desejar a República somente para depois do falecimento do monarca, tal como igualmente se dava com Deodoro, Pelotas e os demais chefes militares. Foram sem dúvida esses sentimentos que o levaram a vacilar à última hora, tornando decisiva e mesmo indispensável a enérgica intervenção do Major Sólon Ribeiro. (45) Essa carta, confiada a Tobias Monteiro, após a morte de João Neiva, pelo seu sobrinho, o Tenente-Coronel Neiva de Figueiredo, foi inserta em nova às págs. 118 e 119 das Pesquisas e Depoimentos. (46) Comentando os desentendimentos de Silva Jardim e Quintino Bocaiúva sobre os meios de chegar à República, num artigo publicado no Jornal do Comércio de 4 de dezembro de 1936, o Sr. A. Tavares de Lira pronuncia-se francamente pelos métodos do segundo contra as idéias do primeiro Emprestando a Quintino Bocaiúva uma segurança doutrinária nos princípios da democracia liberal que o grande jornalista nunca revelou, ele acha que a República não teria sido proclamada em 1889 sem a intervenção decisiva do Exército e da Marinha. Uma revolução de caráter exclusivamente civil (conclui o ilustre escritor e homem público) seria com facilidade esmagada. Não tenhamos ilusões. A verdade porém é que, em 1889, ou um pouco mais adiante, essa revolução de caráter exclusivamente civil teria de chegar. Nas dimensões naturalmente reduzidas de um artigo de jornal não deixa de ser fácil fechar assim a discussão. Mas, num trabalho mais longo, servido de ma is abundantes elementos de informação, já é um pouco mais difícil. Basta notar que naquela convicção geral do próximo advento da República por evolução normal da opinião pública se compreendiam os próprios meios positivistas. Teixeira Mendes, a págs. 362 e 363 do seu livro sobre a vida de Benjamim Constant, segundo o seu modo de ver, diz o seguinte: Para acelerar semelhante desfecho bastava que a influência social e moral do Apostolado Positivista crescesse. Ora, todos podem calcular o grau de 307 prestígio a que não teríamos atingido se Benjamim Constant em vez de operar o movimento de 11 de Frederico (15 de Novembro) viesse trazer nos o apoio decidido de todos os que entusiasticamente o seguiam. Em vez de uma admirável revolução militar ter-se-ia operado uma surpreendente evolução pacífica, pela transformação voluntária da ditadura imperial em ditadura republicana, sob a pressão de uma forte opinião pública. No dia seguinte não estaríamos a braços com as exigências de um exército revoltado, e nem o governo assa ltado com o receio de subversões na ordem pública... Assim pensavam os homens essencialmente práticos do Apostolado Positivista, lançando de tudo nas culpas ao ânimo emperrado do Imperador Pedro II. Naturalmente, em apoio do ponto de vista do Sr. Tavares de Lira restará sempre o velho adágio, o que tem de ser tem muito força. Mas aí estaremos em pleno fatalismo oriental ou muçulmano, não havendo mais a mínima utilidade em pesquisar, pela crítica histórica, a influência dos homens e das idéias nos grandes acontecimentos humanos, pois previamente teremos renunciado a todo princípio de liberdade do espírito ou de livre arbítrio... (47) Consignado à pág. 101 do livro Deodoro, de Ernesto Sena. (48) Devia estar nesta mesma ordem de idéias o Professor Reinaldo Porchat quando, a 26 de dezembro de 1925, renunciou à sua cadeira no Senado do Estado de São Paulo, após um longo discurso sobre as condições políticas do Brasil, encerrado por esta frase: Roma também foi assim, e Roma não teve remédio... (Transcrito de Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista . Rio de Janeiro. Editora José Olimpio, 1960, págs. 27 -100). 308 QUINTINO BOCAIUVA (1836/1912) Quintino Bocaiuva seguiu a carreira jornalística, desde muito jovem, trabalhando em diversos jornais, na Capital do Império. Acabou radicando-se no periódico O País, do qual sria um dos fundadores, evento que teve lugar em 1884, vindo a ser o seu grande inspirador. Nessa altura já se consagrara como prócer republicano, ideal a que aderira desde a criação do Partido Republicano, em 1870. Graças à sua atuação no desfecho do movimento, caracterizado no texto antes transcrito de José Maria dos Santos, pertenceu ao governo provisório, ocupando a pasta das Relações Exteriores. Entre as primeiras tarefas de que se incumbiu, nessa condição, seria encetar negociações com a Argentina no tocante a litígio territorial. Entretanto, o Tratado que firmou com o país vizinho foi considerado danoso aos interesses nacionais, por conter demasiadas concessões à Argentina, sendo rejeitado pelo Congresso Nacional. Devido a isto, demitiu-se do governo. Eleito senador pelo Estado do Rio de Janeiro, participaria da Assembléia Constituinte. Com a promulgação da Carta (24 de fevereiro de 1991), renunciou ao mandato, voltando à direção de O País. Em 1889, foi reeleito senador, sendo subseqüentemente escolhido para governar o Estado do Rio de Janeiro. Maçom, seria Grão Mestre da Loja Grande Oriente do Brasil, entre 1901 e 1904. Retornou ao Senado em 1909. Tornou-se aliado do conhecido caudilho gaúcho Pinheiro Machado (1851/1915), que o colocou na Presidência 309 do partido Republicano Conservador, uma das tentativas frustradas de organizar um partido nacional. Faleceu em 1912, aos 76 anos de idade. A Fundação Casa de Rui Barbosa editou, em 1986, livro intitulado Idéias políticas de Quintino Bocaiuva. 310