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Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para a semiótica, a quase-necessária, ou formal doutrina dos signos. Descrevendo a doutrina COMUM Com o séculoPublicação XX as técnicas de reprodução atingiram das Faculdades Integradas Hélio Alonso Julho /elas Dezembro de 2014 um nível tal que, de agora em diante, não somente v. 16 – nº 36 poder-se-ão aplicar a todas as obras de arte passado ISSNdo 0101-305X e modificar de maneira muito profunda seus modos Mas como? Se, ao nomear um ser qualquer, por exemplo, o que nós hoje chamamos de homem, eu lhe dou o nome de cavalo e ao que hoje chamamos de cavalo lhe dou o nome de homem, terá esse ser o nome de homem para A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revolução anteriores A etnografia, ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em outras ciências, infelizmente nem sempre contou no passado com um grau suficiente desse tipo de generosidade. Muitos dos seus autores não utilizam Deste logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas (as coisas) segundo À primeira vista, a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido fortemente in f l u e n c i ad a pe lo d e s e n v o l v i m e nt o das possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje 36 Comum - Rio de Janeiro - v. 16 nº 36 - p. 1 a 148 - julho / dezembro 2014 EDITORIAL A revista Comum abre seu número 36 com dois artigos que trazem novas ideias sobre as mudanças ocorridas recentemente na esfera comunicacional. O artigo de abertura, assinado por Aristides Alonso e Potiguara Mendes da Silveira Jr., apresenta a transformática como uma teoria psicanalítica da comunicação que não opera esse campo de estudos e pesquisas mediante fronteiras, mas, ao contrário, o vê como área de conhecimento onde será inevitável a interpenetração de conhecimentos tais como, por exemplo, ciência, filosofia e arte. Em seguida, Francisco J. Paoliello Pimenta apresenta ensaio onde apresenta as tecnologias digitais multicódigos como base de diferentes transformações ocorridas na esfera comunicacional, e sugere o uso do conceito de pragmaticismo, desenvolvido por C. S. Peirce, para nos ajudar a compreender melhor esse processo. Comunicação audiovisual é o tema presente nos dois artigos apresentados a seguir. No primeiro, Ariane Holzbach escreve sobre as origens do videoclipe, conta a história desse gênero audiovisual e analisa algumas das suas principais características estruturais: a vocação televisiva, a especificidade de sua linguagem e o desenvolvimento de sua narrativa. No segundo, Geraldo M. P. Mainenti nos apresenta trabalho que estuda aspectos importantes da obra do artista multimídia húngaro Péter Forgács. O texto analisa, especialmente, as técnicas e dispositivos de edição, manipulação e montagem de filmes caseiros e amadores das décadas de 1920 a 1950. Diz-se que, em qualquer guerra, um dos primeiros setores a serem sacrificados é o da informação jornalística, operada pelos serviços de contraespionagem e censura. No momento em que se rememora tristemente os 100 anos de início da Primeira Guerra Mundial, o texto de Tito H. S. Queiroz trata exatamente disso, ou seja, a prática do jornalismo e o controle da informação no Brasil no período de 1914-1919. Outro aniversário de 100 anos, esses sim para serem comemorados com alegria, são aqueles caracterizados pelo percurso da área de relações públicas no Brasil. Para marcar esse momento, publicamos um dossiê formado por três artigos. O primeiro texto, assinado por Manoel Marcondes Machado Neto, apresenta o desenvolvimento teórico e prático dessa área entre nós. O segundo, que tem Fernando Gonçalves e Alessandra Maia como autores, se propõe a analisar criticamente os paradigmas que orientam as atividades de comunicação organizacional e de relações públicas, assim como as contribuições da teoria do ator-rede de Bruno Latour. Fechamos o dossiê com texto, escrito por cinco professores da FACHA, no qual se descreve como o curso de RP dessa instituição, um dos mais antigos do país, vem se repensando, desde o início, para desempenhar o seu principal papel educacional, ou seja, proporcionar uma sólida formação acadêmica aos seus alunos. COLABORAM NESTE NÚMERO Aristides Alonso – Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutor (CECL/Universidade Nova de Lisboa). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa/ CNPq: “Redes Sociais, Ambientes Imersivos e Linguagem” e “ETC: Estudos Transitivos do Contemporâneo”. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). Potiguara Mendes da Silveira Jr. - Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutor (CECL/Universidade Nova de Lisboa). Psicanalista (NovaMente/RJ). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa/CNPq: “Redes Sociais, Ambientes Imersivos e Linguagem” e “ETC: Estudos Transitivos do Contemporâneo”. Professor associado da Faculdade de Comunicação e do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Francisco J. Paoliello Pimenta – Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com parte da pesquisa de doutorado financiada pelo CNPq na Tisch School of the Arts da New York University. É jornalista e professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde foi o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e tutor do grupo PET/SESU. Ariane Holzbach – Doutora e mestre em Comunicação pelo PPGCOM/UFF. Coordenadora adjunta de jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e professora do curso de estudos de mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Geraldo M. P. Mainenti – Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Jornalista. Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). Tito H. S. Queiroz – Historiador e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). Manoel Marcondes Machado Neto – Pesquisador e professor associado da Faculdade de Administração e Finanças da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Formado em Relações Públicas pelo IPCS/UERJ, especialista em Sistemas de Informação pelo CPE/Saint Charles (EUA), mestre em Comunicação pela ECO/UFRJ, e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Fernando Gonçalves – Mestre e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (1996 e 2003). Realizou pesquisa de Pós-Doutorado em Sociologia do Cotidiano na Universidade Paris V- Sorbonne. Foi pesquisador visitante na Tisch School of the Arts (New York University). Atualmente é professor associado e diretor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e pesquisador do CNPq. Alessandra Maia – Doutoranda em Tecnologias da Comunicação e Cultura PPGCOM/ UERJ – bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) –, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Entretenimento e Cognição (CiberCog) e integrante do Laboratório de Pesquisas em Tecnologias de Comunicação, Cultura e Subjetividade (LETS). Anderson Ortiz, Charbelly Estrella, Cláudio Cotrim, Maria Helena Carmo e Ricardo Benevides – Professores do curso de Relações Públicas das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). 05 24 Transformática: a teoria psicanalítica da comunicação Aristides Alonso e Potiguara Mendes da Silveira Jr. 48 Excesso, esquizofrenia, fragmentação e outros contos: a história social de surgimento do videoclipe Ariane Holzbach 64 Nas paragens de Péter Forgács, a memória em movimento Geraldo M. P. Mainenti Guerra e controle da informação: Brasil, 1914-1919 Tito H. S. Queiroz Dossiê: Cem anos de relações públicas no Brasil 100 Reconhecimento social, relacionamento com stakeholders, relevância no mercado e gestão de reputação. Busca e resultado de uma só formação no Brasil: relações públicas Manoel Marcondes Machado Neto 108 Reflexões sobre relações públicas, comunicação organizacional e as TIC: contribuições da teoria do ator-rede Fernando Gonçalves e Alessandra Maia 134 148 O repensar da área de relações públicas e o projeto do curso de RP da FACHA Anderson Ortiz, Charbelly Estrella, Cláudio Cotrim, Maria Helena Carmo e Ricardo Benevides Nota aos colaboradores SUMÁRIO 79 99 Redes multicódigos, mudança de hábitos e o campo da comunicação Francisco J. Paoliello Pimenta Conselho Editorial: Ariane Holzbach, Aristides Alonso, Eliana Monteiro, Fernando Sá, José Eudes de Alencar, Paulo Alonso e Ricardo Benevides. Conselho Consultivo Aluizio Ramos Trinta – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Antonio Edmilson Martins Rodrigues – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Arthur Poerner – Jornalista e escritor. Consuelo Lins – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Eduardo Neiva – Universidade do Alabama em Birmingham (EUA) Mário Feijó Monteiro – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Márcio Gonçalves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Michel Misse – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Nilson Lage – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Potiguara Mendes da Silveira Jr. – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Coordenação Editorial: Fernando Sá Projeto Gráfico: Amaury Fernandes Secretário Executivo: Gilvan Nascimento Editoração Eletrônica: André Cunha EXPEDIENTE Organização Hélio Alonso de Educação e Cultura Instituição de caráter educativo criada em 08/08/1969, como pessoa jurídica de direito privado, tem por finalidade atuar no âmbito da Educação nos níveis do 1º e 2º graus e Superior, com cursos na área de Comunicação Social, Turismo, Direito e Processamento de Dados, bem como contribuir através de projetos de desenvolvimento comunitário para o bem estar social. Sede: Rua das Palmeiras, 60 – Rio de Janeiro – Botafogo – RJ FACHA Unidade Botafogo Rua Muniz Barreto, 51 – Botafogo – RJ – Tel.: (021) 2102-3100 Unidade Méier Rua Lucídio Lago, 345 Méier – RJ – Tel.: (021) 2102-3350 E-mail: [email protected] Diretor-Geral: Hélio Alonso Vice-diretora Geral: Márcia Alonso Pfisterer Diretor Executivo: Paulo Alonso Gerente Acadêmica: Denise Azeredo COMUM – v.16 – n° 36 – (julho/dezembro 2014) ISSN 0101-305X Rio de Janeiro: Faculdades Integradas Hélio Alonso 2014 Semestral 148 Páginas I. Comunicação – Periódicos.II. Educação CDD 001.501 Transformática: a teoria psicanalítica da comunicação Aristides Alonso Potiguara Mendes da Silveira Jr. A partir do final dos anos 1970 pareceu que a era das grandes teorias, que abordavam tudo sob um único ponto de vista, teria acabado (Lyotard [1979]). Consequentemente, pareceu que descrever os acontecimentos sob vários ângulos seria preferível a tomá-los segundo visões (mais) globais. São dois aspectos que, a rigor, estão entrelaçados, pois qualquer profusão de abordagens sempre implicará a orientação de alguma teoria – que, justo por ser teoria, não deixa de referir-se a modelos protocolares específicos –, assumida ou não. Como, por outro lado, é impossível haver teoria que não implique aplicações pontuais (isto que chamam de prática), ela será tanto mais eficaz quanto mais inclua pontos de vista diversos. O que parece inegável, sim, é o fato de os campos teóricos disponíveis até então, todos sem exceção, terem sido obrigados a repensar suas sustentações perante o que começava a se generalizar como globalizada e invasiva transfusão informacional de base tecnológica. Isto, numa rapidez de transformação nunca antes vista, cujos efeitos não deixavam incólumes os mais recônditos nichos do planeta e das mentes. Ou seja, era preciso correr atrás do prejuízo. Não fazê-lo implicava perecer, entrar em declínio1 enquanto instrumento útil de análise das novas conexões que se estabeleciam e começavam a se expandir exponencialmente. Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 05 a 23 - julho / dezembro 2014 Comum 36 - jul./dez. 2014 5 O campo de estudos da comunicação está à vontade neste novo ambiente, pois surge no início do século XX e se desenvolve concomitantemente à difusão para o grande público da telegrafia sem fio, do telefone, do cinema, do rádio, da televisão... Sempre foram estudos e aplicações que, a cada momento, buscavam mapear e entender as formatações (sociais e mentais) que se aprontavam condicionadas direta ou indiretamente por estas e outras tecnologias – que não cessaram de se transformar (e de transformar o entorno). Para tanto, os estudiosos lançaram mão de saberes disponíveis nas ciências duras, humanas, sociais... Esta característica não é sem problemas hoje: há os que preconizam uma teoria própria, pura, do “comunicacional”, e outros para os quais este “comunicacional” justamente implica a disponibilidade de uso múltiplo como especificidade para o campo. Mas falar em teoria da comunicação é falar de quê? Respondendo de modo esquemático: é falar de algo emitido numa ponta e recebido em outra. Evidentemente, o receptor, por ser receptor, já deve portar as condições de recepção do que foi emitido. Isto é trivial, é o que acontece tanto no que é biótico (organismos simples e complexos) quanto no que é produzido industrialmente (servomecanismos). O desenrolar teórico do campo é conhecido: canal, mensagem, codificação, decodificação, ruído, entropia, feedback... O que nos interessa é o fato de as condições de emissão e recepção já estarem presentes em todos os atores (humanos e não-humanos) envolvidos no processo da comunicação. Por entender isto é que Claude Shannon (19162001) (1948) pôde demonstrar uma unidade essencial para todos os meios de informação – texto, sinais telefônicos, ondas de rádio, figuras, filme etc. –, desde que codificados na linguagem universal dos dígitos binários, os bits: uma vez digitalizada a informação, poderia ser veiculada sem erro (se mantida abaixo do limite de velocidade da transmissão). Mediante esta moderna concepção de informação (não mais intangível, e sim física) (Waldrop, 2001), possibilitou-se o passo que muitos vinham buscando para bem traduzir eletronicamente a dinâmica humana do campo do sentido e do processo da significação, em que predomina a continuidade (Eco, 1971: 20s), para o universo das máquinas, caracterizado pelo sinal enquanto série de unidades discretas computáveis. Mencionamos Shannon por supor que o momento sociotecnológico que vivemos hoje potencializa e expande os efeitos do que sua concepção propiciou (aliada, é claro, aos achados de muitos outros antes e depois dele) – e exige teorias da comunicação consentâneas com esse momento. 6 Comum 36 - jul./dez. 2014 Dados psicológicos Uma origem tradicionalmente atribuída ao campo de estudos da comunicação são as sondagens realizadas por Paul Lazarsfeld (1901-1976) no final dos anos 1920 em Viena e posteriormente nos EUA. É a chamada corrente funcionalista-empirista da mídia de massa, que, promissora na época, passa a mostrar-se muito restrita ante a amplitude que o campo da comunicação vem a ganhar na sequência. Theodor Adorno (1903-1969), outro nome importante dos inícios, trabalha com Lazarsfeld no final dos anos 1930, mas posteriormente critica sua ênfase na “pesquisa administrativa”. De lá para cá, como é sabido, muitos avanços e desdobramentos ocorreram – e estudar e pesquisar sobre comunicação continua sendo uma atividade em questionamento constante de suas bases teóricas, processos e objetivos. Notável para os objetivos de nossa exposição é que, ainda em Viena, Lazarsfeld se interessara pela psicologia e pela psicanálise buscando – sem muito sucesso – desenvolver análises estatísticas para certos problemas psicológicos. Interessa resgatar esta referência, pois nessa época (anos 1920), segundo estudo recente de um pesquisador dos estudos culturais, já vigorava nos EUA uma “convergência fatal entre fordismo e freudismo”: este, desde o final do século XIX, surgira como a “primeira grande teoria e prática da ‘vida pessoal’”2 e aquele havia “transformado a vida pessoal em um fenômeno de massa” (Zaretsky, 2004: 138). Convergência esta que demandava novas ferramentas para arrazoar o que ocorria. Essas mudanças já tinham levado intelectuais a buscarem desenvolver uma cultura genuinamente norte-americana, “emancipada não apenas da Europa, mas também da Nova Inglaterra” e de seu contumaz calvinismo (Zaretsky, 2004: 153). Um dos recursos que utilizaram foi a então nascente psicanálise. Ela fornecia os meios teóricos e práticos para, além dos protestantes brancos anglo-americanos, também incluir judeus, italianos e, sobretudo, negros como integrantes originais dessa cultura – o que alavancou pesquisas como as realizadas pelo movimento Harlem Renaissance3 na tentativa de “entender as raízes inconscientes da cultura americana” (Zaretsky, 2004: 153). Então, se Lazarsfeld não tem maior êxito em aplicar estatísticas a questões psicológicas, na Europa e na América já temos bem difundidas as ideias tanto da crescente necessidade de coleta e quantificação das informações (essencial para o fordismo) quanto de que é preciso levar em conta questões psicológicas para a compreensão dos dados colhidos. E mesmo de Comum 36 - jul./dez. 2014 7 que, sem considerar estas questões psicológicas, os dados, estatísticos ou outros, poderiam restar sem possibilidade de aplicação maior. Freud Freud (1856-1939) tem incursões exemplares e bastante conhecidas em questões culturais (que hoje podemos bem chamar de comunicacionais). As três mais conhecidas são justamente aquelas feitas também nessa década de 1920. Primeira, os estudos sobre a psicologia das massas (1921), em que inquiria sobre como um grupo adquire a capacidade de exercer forte influência na vida mental do indivíduo. Freud dialoga com os autores que trataram do tema e aponta que os fenômenos mentais são básica e intrinsecamente dependentes de atividades vinculares (transferenciais, comunicacionais), cujos níveis, em última instância, definiriam os movimentos desejantes gerais da espécie humana (Silveira Jr., 2006: 53). A presença destas ideias em trabalhos orientados pelas ciências sociais hoje já é lugar comum. Segunda, seis anos depois estuda a função da ilusão na civilização, educação, relações familiares, atitudes religiosas, e, em consonância com outros pensadores da época, destaca ideias e questões como as que serão depois incluídas no quesito “trabalho imaterial”, por exemplo. Diz ele que, além do controle da natureza para a obtenção de riquezas, “parece agora que a ênfase se deslocou do material para o mental” (Freud, [1927]: 17). Terceira, em 1930, trata do mal-estar na cultura e, entre itens como a função do trabalho na economia libidinal, reafirma que o homem, “por assim dizer, tornou-se uma espécie de ‘Deus de prótese’” (Freud, [1930]: 111), raciocínio este que permeia linhas atuais de reflexão sobre cibercultura, pós-humano, estudos de mídia etc. No mais, no esforço de configurar uma área temática específica de estudo, pesquisa e aplicação da comunicação, tem-se buscado integrar o que diversas disciplinas definem como “contato”, “memória”, “arquivo”, “energia”, “informação”, “autopoiese”, “complexidade”, “vínculo”, “transferência”, “interface”, “transe”, “rede”, “mídia”, “poder” e outros termos constituintes das transações e performances dos homens, do mundo, do homem com o mundo e vice-versa. Parece-nos, portanto, claro que o horizonte de qualquer teoria da comunicação deve ser o de uma dinâmica capaz de incluir ao máximo esses acontecimentos. 8 Comum 36 - jul./dez. 2014 Uma teoria plena: a pulsão, o Haver, o revirão e a indiferenciação Nosso encaminhamento supõe, então, que, para pensar em teoria hoje, em qualquer área, não é possível desconsiderar pontos como os elencados acima. E já que o objetivo é apresentar contribuições para a consolidação da comunicação como campo de conhecimento, estudo e pesquisa, é cabível a referência a teorias atuais capazes de embasar uma concepção consistente do que seja a comunicação, seus processos, suas formações e resultantes. Neste sentido, tem nos interessado trabalhar uma teoria psicanalítica produzida no Brasil dos anos 1990, que, em mão dupla, postula: a psicanálise é uma teoria plena da comunicação, e uma teoria plena da comunicação é uma teoria psicanalítica (Silveira Jr., 1999). O ponto de partida é o que Freud, em 1920, adianta como o conceito de pulsão de morte (Todestrieb), uma força ou impulso constante (konstante Kraft) que ele descobre estar necessariamente presente no psiquismo. Qualifica-o como “de morte” por constatar que o sentido do impulso é o de sua própria extinção. Hoje, mais avançados nos estudos do conceito e seus desdobramentos, podemos acelerar heuristicamente sua consonância com a segunda lei da termodinâmica (permanente crescimento da entropia) e reforçar algo que Freud indica, mas não desenvolve. A saber, que a pulsão não está apenas circunscrita ao psiquismo, mas diz respeito ao que quer que haja, ao Haver (Alonso, 2010). Esta ampliação do conceito de pulsão de morte para o conceito único e genérico de pulsão norteou uma grande reformatação do aparelho teórico e prático da psicanálise nos anos 1980, extrapolando-o justamente de seu entendimento apenas como “teoria e prática da vida pessoal” a que aludimos no início e passando a concerni-lo a todos os acontecimentos (mentais, cosmológicos, políticos, sociais...) – como, aliás, sempre foi a perspectiva de Freud. Esta reformatação foi então denominada nova psicanálise 4 e posteriormente, nos anos 1990, renomeada NovaMente. Nesta mesma década, a nova psicanálise propõe uma teoria do conhecimento diversa daquela desenvolvida pela filosofia. Trata-se da gnômica (Magno, [1991, v.I]: 96; e [2000/2001]: 59-95), um campo de estudo e pesquisa sobre as condições e desempenhos da produção do conhecimento de qualquer ordem, não apenas aquele oriundo da produção científica como querem as epistemologias. A gnômica, como veremos adiante, visa mapear todas as ocorrências do conhecimento (suas relações, transformações e Comum 36 - jul./dez. 2014 9 encaixes). Ocorrências estas que serão operadas segundo uma teoria polar centrada no conceito geral de formação5, que também será desenvolvido a seguir. O que nos interessa diretamente é que o modo de operação da gnômica, denominado transformática, é proposto como teoria psicanalítica da comunicação. Seu objetivo é justamente descrever, acompanhar e intervir nos processos de coleta e arquivamento das transposições e jogos das formações (Magno [1996]: 391-428; e [1998]). Como dissemos, trata-se de uma concepção que estende o alcance da pulsão para além do que ocorre no psiquismo e abrange o que há por inteiro, o Haver (conceito este que não só designa o campo do possível, mas também inclui o que vier a haver neste ou em qualquer outro universo). Acontece que o movimento pulsional em seus desdobramentos (e não há como impedi-lo de desdobrar-se) bate de frente com uma radical impossibilidade de se extinguir, de não mais haver. É desta impossibilidade que a nova psicanálise extrai uma Lei que se enuncia como Haver desejo de não-Haver (A-->Ã). Neste enunciado, temos ao mesmo tempo a requisição de não haver e a impossibilidade de sua consecução, pois o “não-Haver”, como o nome diz, não há de fato, só há como nome. É justo esta requisição do impossível que se chama de “desejo” e qualifica também a espécie humana. Além disso, resulta dessa impossibilidade de passagem à extinção uma operação que a nova psicanálise chama de revirão6. Ou seja, como o movimento pulsional chega a um ponto extremo e inultrapassável (Ã), isto o faz revirar sobre si mesmo. Neste reviramento, indiferenciam-se7 as polaridades das formações que nele estão em jogo e elas se veem levadas a “retornar” – entre aspas, pois nunca saíram – ao Haver (A). E mais, decorre dessa não passagem e consequente “retorno” que o que quer que haja (material ou imaterialmente) se reduz a existir como formações condenadas a uma eterna agonística dentro do Haver, sem um “fora” para onde pudessem ir. Como veremos à frente ao tratar da “teoria polar das formações”, o que há são Formações do Haver sem saída possível do Haver. Teoria dos vínculos: os vínculos relativos e o vínculo absoluto Outra hipótese da transformática que desenvolvemos é que uma teoria da comunicação sempre depende de uma teoria dos vínculos: a definição de vínculo que ela toma para si é que dá a sustentação de seu arcabouço conceitual e prático. Em nosso caso, é da lei pulsional, do revirão e da 10 Comum 36 - jul./dez. 2014 indiferenciação que se retira um sentido abstrato para a definição dos vínculos e das intencionalidades adscritas a eles. Em sequência, então, ao que foi dito sobre a pulsão e a inevitável condenação ao Haver, é dentro desta condenação (pois não há o “fora” do Haver) que se produzem e sobrevêm os vínculos. Considerando-se também que o que quer que compareça no campo do Haver força à vinculação8, como supõe outro conceito freudiano importante, o de transferência (Übertragung), poderemos entender que são relativos os vínculos produzidos no âmbito das oposições presentes nas rotinas do mundo (macho/fêmea, noite/ dia, ocidente/oriente...). São vínculos dependentes das formações que a nova psicanálise chama de primárias (naturais, somáticas, etológicas) ou secundárias (culturais, simbólicas, neo-etológicas), as quais, mesmo as secundárias sendo mais permeáveis, se mostram reativas às tentativas de transformação em qualquer coisa diferente delas mesmas. Mas há um tipo de vínculo não relativo, chamado vínculo absoluto, que podemos depreender por via da referência ao movimento pulsional. Nele, para aquém e além da oscilação entre formações opostas observadas no decorrer da história dos pensamentos ocidental (mente/corpo, por exemplo) e oriental (yin/yang, por exemplo), o que ocorre é a suspensão das oposições, ou seja, a possibilidade de indiferenciação acima mencionada que os humanos portam como distinção para com os demais vivos (Magno [1993]: 9). Uma vez então que o vínculo absoluto é o que especifica o humano, a nova psicanálise considera que todos da espécie se vinculam não entre si9, mas absolutamente ao fato de estarem condenados a realizar seus desempenhos numa mesma situação de imanência sem transcendência possível, embora esta transcendência seja requerida o tempo todo de dentro da imanência. A referência à lei pulsional – Haver desejo de não-Haver – relativiza necessariamente qualquer conteúdo dos vínculos primários e secundários ante a única diferença que importa, aquela intransponível entre Haver e não-Haver (A/Ã). A grande massa dos recalques que caracteriza o cotidiano dos vínculos relativos é que impede nossa referência indiferenciante de ser operativa com mais frequência, e, portanto, que a força da pressão (e da opressão, sobretudo) desses vínculos possa ser modulada (portanto, ter chances de ser minorada) pela referência ao vínculo absoluto. Para a transformática, então, é mediante a referência a este vínculo absoluto que é possível destacar tanto os níveis de recalque em vigor em qualquer situação quanto as possibilidade de novos modos de vinculação e de intervenção – políticas, inclusive – nos acontecimentos das pessoas e do mundo. Comum 36 - jul./dez. 2014 11 Outro modelo da teoria é existirem três registros no Haver: primário, secundário e originário10. A cada um deles corresponde um tipo de recalque: recalque primário11, recalque secundário12 e recalque originário. Este último sendo o modelo dos outros dois por resultar da impossibilidade de passar a não-Haver que ressoa por todo o Haver: se é impossível passar, quebra-se a simetria desejada (entre A e Ã) e há que “retornar” ao Haver tendo recalcado, ainda que por um instante, o desejo de passar. É isto – não passar, “retornar”, insistir em passar, não conseguir... – que é o registro originário, o registro do revirão. No registro secundário – aquele das anotações do que se dispõe no mundo como formações “naturais”, espontâneas –, estabelece-se o diálogo mediante conexões linguageiras ou qualquer tipo de força passível de ser transcrita em algum código. Pode-se discutir infinitamente a respeito de grandes complexidades de oposições e eventualmente estabelecer suspensões no sentido do reviramento dessas oposições, mas a própria suspensão aí estabelecida tende necessariamente a se configurar como situação – isto é, como resistência – no Haver. Já no registro primário, as formações não operam na disponibilidade pontual do revirão (como é o caso no registro secundário). Aí, as oposições são preponderantes e apenas raramente, ou mediante custo muito alto, têm oportunidade de estabelecer novas conexões. As formações primárias – chamadas de autossomáticas (suas corporeidades) e etossomáticas (comportamentos aderidos a esses corpos13) – são muito fechadas, algo precisa agredi-las, rompê-las para que deixem um lugar neutro momentaneamente disponível (a produção de uma vacina propiciada no registro secundário intervindo no comportamento de um vírus, por exemplo) e se modifiquem. Temos, portanto: a) a vinculação absoluta; b) a vinculação secundária, que pode propiciar uma suspensão das oposições como condição para as criações e invenções culturais da espécie, mas que também pode ser neo-etológica (quando co-naturaliza os resultados criadores, isto é, quando os des-historiciza e reduz a mera imitação e repetição dos automatismos espontâneos do registro primário14); e c) as vinculações em estado bruto do registro primário, que são etológicas propriamente ditas e autossomáticas. A teoria polar, o conhecimento e a transa das formações Como vimos, a nova psicanálise alça o conceito de pulsão à posição de articulador geral da teoria psicanalítica e destaca a operação do revirão como básica no funcionamento do Haver. Dado que este articulador (a pulsão) e esta 12 Comum 36 - jul./dez. 2014 operação (o revirão) estão presentes de saída em suas ações, ela toma o que quer que se manifeste no Haver como emergências artificiosas, sejam emergências espontâneas, que estão aí desde sempre, ou industrialmente produzidas15. E mais, qualquer destas emergências (espontâneas ou industriais) é considerada uma formação: uma coalescência resultante da partição, do enantiomorfismo16 e da fractalização17 que acontecem diante da impossível realização do revirão último (aquele entre Haver e não-Haver: A-->Ã). O termo formação diz respeito à teoria polar das formações que a nova psicanálise vem desenvolvendo junto com sua teoria do conhecimento, a gnômica que mencionamos antes. Para esta teoria polar, o que há são formações. Mesmo gente, humanidade, nossa espécie, são formações. Estas são, entretanto, chamadas idioformações18 porque, além de características biológicas e comportamentais presentes em muitos dos seres vivos também portam o revirão. Por isso, apenas uma idioformação tem “condições de trans-por sua própria formação” (Magno [1996]: 393), mas, como veremos, sua presença não é necessária para que haja conhecimento. As formações são compostas de aglomerados de formações que resistem, mas não têm como impedir o revirão, isto é, o movimento de transformação em outra coisa diferente delas mesmas, ainda que esta transformação leve milênios para ocorrer. O que conseguem é pontualmente manter-se enquanto “polos, configurados como formação e como resistência” (Magno [2005]: 113). São polos constituídos por uma zona focal, onde se concentra sua força maior, e uma zona franjal, cujo alcance não se tem como definir. A teoria polar das formações é aquela que reconhece a existência de polos e busca apreendê-los mediante a descoberta de focos e a descrição aproximada das franjas (Magno [2005]: 115). franja foco – polo – Comum 36 - jul./dez. 2014 13 Trata-se, então, de pensar em aglomerados de formações sem fronteiras, mas que se polarizam e se configuram como formação e como resistência. No polo assim concebido, o foco pode ser situado, mas não sua franja, que é interminável e está intricada com franjas de outros polos. Por não pensar aplicando fronteiras, a teoria polar supõe que as formações se co-movem e podem se acoplar (comunicar) umas às outras chegando mesmo a se transformarem. Isto é pensável mediante a ideia de haver entre elas o ponto neutro, em que ocorre a “indiferença entre as formações”19 (Magno [2005]: 122) mencionada acima. Dada, então, a teoria polar das formações, podemos entender que a teoria psicanalítica do conhecimento, a gnômica (Magno [2008]), visa o “mapeamento possível entre formações do Haver” na “procura de uma formação que melhor se encaixe com outra” (Magno [1994]: 142). Como ela “considera qualquer dessas formações no mesmo registro, no mesmo âmbito de origem: são todas Formações do Haver”, o que lhe cabe precisar são “seus materiais, seus modos de produção, suas articulações internas e externas” (Magno [1996]: 391). O conhecimento é, portanto, entendido como o que resulta de uma transa20 entre as formações – outra noção importante da teoria –, incluindo ou não a presença de uma idioformação nesta transa: simplesmente “algo se anota quando algo se dá” (Magno [2000/01]: 72). Se o conhecimento se explicita somente com a participação de alguém ou de alguma formação preparada por alguém com este propósito, isto apenas implica a necessidade dessa participação na explicitação, “mas não que seja desse alguém a produção” (Magno [1998]: 75). O que interessa é a transa entre as formações – na qual pode estar presente uma ou mais pessoas, isto é, idioformações – que pressionam, se articulam e configuram situações em função dos próprios processos em jogo nessa transa. Vê-se aí um diferencial claro para com as abordagens de base epistemológica, já que não se pressupõe um sujeito diante de algum objeto para que haja conhecimento: são, sim, formações em transa resultando em conhecimento. A indiferenciação: aquém do binário Fundamental para a teoria polar das formações é a ideia de que qualquer formação do Haver se expressa de saída binariamente, opositivamente, mas há um nível unário prévio a qualquer modo de expressão. Foi o que Shannon, citado no início, entendeu para aplicar a seu conceito físico de informação (= manipulação de bits). Seguindo um procedimento de engenharia rever- 14 Comum 36 - jul./dez. 2014 sa, podemos supor que ele percebeu que, antes ainda de binarizar-se como informação (0/1), estava em jogo na oposição energia/matéria algo da ordem do unário, que, por sua vez, precisava tornar-se binário para se expressar. Ou seja, a informação estaria expressando em bits o unário radicado na própria possibilidade de seu surgimento como informação (Alonso, 2012). É justo este nível unário que é específico do processo de indiferenciação presente no registro originário, e que é acompanhável no percurso do revirão. Como a idioformação que definimos antes é a formação que, além dos registros primário e secundário, porta o revirão em sua própria construtura mental, nela se verifica mais diretamente a operação de indiferenciação. Ao que quer que se coloque para sua mente revirante, no ato, coloca-se também a possibilidade de o oposto daquilo ser possível e mesmo exigível. É assim porque, na mente, antes ainda de qualquer formação expressar-se opositivamente, o que ocorre diz respeito a uma coisa só. É o que, por exemplo, Freud ([1900]) detecta na elaboração dos sonhos e nas fantasias das pessoas (Magno [2010]); ou o que está no livro milenar chinês que inspirou Leibniz, o inventor do sistema binário: ao I Ching, antes ainda da combinatória expressa em traços cheios (–) ou interrompidos (– –), o que interessa é a pura e simples mutação de um a outro traço; ou ainda o que se busca na computação quântica e na teoria da informação dos q-bits: processar ao mesmo tempo as duas vertentes de uma questão, possibilitando assim, tecnologicamente, que qualquer questão colocada porte a totalidade da computação (Magno [2000/2001]: 515). Trata-se, então, para a transformática, de tomar a indiferenciação como necessariamente prévia a qualquer expressão – e isto fornece a condição para entendermos as declinações que o unário sofre ao expressar-se. No vínculo absoluto é que justamente vigora a indiferenciação. Nem por isso ele elimina a existência dos vínculos relativos (primários e secundários), pois estes têm funções necessárias até para que seja possível conceber incidência e a insistência da vinculação absoluta nas idioformações. A diferença está em supor, como faz a transformática, a hegemonia referencial do vínculo absoluto na abordagem dos outros vínculos, possibilitando assim considerar as formações em seu nível prévio, e não em função das configurações (naturais ou culturais) de que se revestem. Estamos, pois, no âmbito da pragmática de um artificialismo amplo (Silveira Jr., 2006) que não exclui o entendimento das formações ditas naturais, mas as considera também no regime da artificialidade espontânea dada desde sempre. Comum 36 - jul./dez. 2014 15 Transformática: teoria da comunicação Como dissemos, a transformática é o modo de aplicação da gnômica. Comunicação, para ela, é: o processo dos acoplamentos das formações (conhecimentos) em meio à co-moção que há entre elas. A transformática é, pois, a teoria da comunicação que, mediante a sustentação conceitual na pulsão e a pragmática centrada no revirão, visa colher, descrever e intervir no que ocorre nas, e decorre das, transas entre as formações (que resultam em conhecimento): suas conexões e clausuras, suas possibilidades de acesso e arquivamento, suas transposições e estases, seus avanços e emperramentos, seus níveis de extração e hegemonia (primária, secundária ou originária), seus efeitos vinculares e implicações políticas. Para tanto, ela pode se utilizar do que quer que esteja disponível (produções artísticas, filosóficas, científicas...), desde que aplicado segundo o protocolo do revirão em sua perene possibilidade de neutralização das formações, por mais duras e diferenciadas que aparentem ser. O que nos autoriza a tomar a transformática como nova teoria da comunicação é o fato de incluir em seu mapeamento e coleta das transas entre as formações um recurso heurístico não presente em outras teorias e que possibilita também a emergência de novas formações que serão incluídas nos sistemas em vigor: o recurso ao processo de indiferenciação do registro originário exposto acima. Ou seja, uma vez que os vínculos primários e secundários são inelimináveis por serem, juntamente com o vínculo absoluto, os constituintes mínimos das possibilidades de vinculação entre as formações, faz toda a diferença considerar os dois primeiros recorrendo ao processo de indiferenciação que ocorre no terceiro. Assim procedendo, temos que: a) além das formações em vigor em dado momento, ou dada época, visualizam-se também aquelas que estão sendo recalcadas justamente porque estas estão em vigor21; b) considera-se que o recalcado é inerente a todas as formações e, mais, que condiciona as próprias possibilidades de suas manifestações (a cada vez que uma formação se manifesta de tal modo, recalca-se – naquela vez, pelo menos – necessariamente tal outro modo de manifestação e, além disso, a possibilidade de passagem de um a outro); c) proíbe-se tomar uma formação – qualquer que seja – como perenemente hegemônica na regência das transas entre as formações, já que, segundo a lógica do movimento pulsional presente no Haver, formação alguma deixará de se transformar (isto é, de revirar) à medida que se desempenha como recalcante 16 Comum 36 - jul./dez. 2014 de outra ou como recalcada por outra (podendo, eventualmente, qualquer uma, tornar-se obsoleta ou hegemônica); d) sabe-se que é impossível considerar a totalidade das formações envolvidas em determinada transa, pois a possibilidade de suas conexões é tida como infinita; mas é possível, sim, aviar expedientes – isto é, próteses resultantes do recurso à indiferenciação – para que se maximizem a cada vez as possibilidades de computação das formações em jogo em dada situação; e e) distinguem-se ao máximo “os níveis, os modos e as diversas formações que estão disponíveis em cada processo de vinculação” (Magno [1993]: 120). Sobretudo, distinguem-se as vinculações por reprodutividade em série (primárias) e por transmissão de um discurso (secundárias) da vinculação absoluta (esta, por seu recurso ao revirão, disponibilizando – e não “obrigando”, pois não se trata de imperativo kantiano – para a reconsideração e transformação das outras duas vinculações). Vemos, então, que se relativizam as configurações dos poderes e imposições advindas dos vínculos relativos, restando avaliar, caso a caso, a adequação maior ou menor de tal configuração em tal momento – sem, portanto, necessidade de qualquer apego fundamentalista a esta ou aquela formação. Trata-se, o tempo todo, de tomar as situações como resultantes de meras apostas quanto a funcionamentos mais eficazes em tal ou qual caso, e não de crença – religiosa, política, intelectual ou outra – que se suponha superior por si mesma. Lembre-se que a indiferenciação implica necessariamente a suspensão das oposições – quaisquer (menos aquela impossível de ser eliminada entre A e Ã) –, o que, por sua vez, propicia uma consideração abrangente das possibilidades das transas entre as formações (mesmo que pareçam absurdas). *** Reportamos acima os elementos constituintes e o contexto de surgimento da transformática como teoria brasileira da comunicação que orienta a linha de pesquisa “Comunicação, estética e psicanálise” em que vimos trabalhando nos últimos 20 anos22 (orientação de monografias e dissertações, publicação e edição de livros e artigos, participação em congressos23, em bancas de graduação e pós-graduação, pesquisa clínica, docência). Como vimos, a transformática é uma teoria que não opera mediante fronteiras. Ela toma a comunicação como campo de estudo e pesquisa que surgiu e se desenvolveu numa época em que justamente começavam a perder fôlego as definições produtoras de Comum 36 - jul./dez. 2014 17 demarcações e distinções – entre ciência, filosofia e arte, por exemplo – que pareciam garantir a força da modernidade. Diz Muniz Sodré que, ao final dos anos 1980, “vão se tornando fluidas as fronteiras entre campos outrora bem demarcados (fenômeno análogo à crise dos gêneros na literatura) no pensamento social” (Sodré, 2012: 15). Consequentemente, as pesquisas e observações realizadas no campo comunicacional, segundo supomos, não podem deixar de proceder enumerando e descrevendo tipos e situações que nos são cada vez mais comuns e próximas: figuras ambivalentes, tramas sociotécnicas, e, sobretudo, reviravoltas e avessamentos que ocorrem a todo momento, se aprimoram, se expandem, se desfazem... Daí a atualidade da transformática, que não opera mediante fronteiras (disciplinares ou outras), o que não exclui que ela trate – e é o que faz, segundo protocolo próprio (do revirão) – de questões também tratadas pelo “pensamento social” ou outros. Ela tampouco se prende aos parâmetros ditos científicos (aliás, hoje, em franca mutação), mesmo estando, como a ciência, interessada na descrição (qualitativa e quantitativa) da composição e do funcionamento das formações, assim como se aplica em intervir nestas formações e investe na possibilidade de criação de novas formações (próteses). E sua doutrina, esta, compõe-se de princípios não apenas discursivamente estabelecidos e regrados por parâmetros da lógica clássica, mas, sim, retirados dos resultados obtidos no laboratório (clínico, empírico) da psicanálise, que toma a estrutura mental como determinada inconscientemente24 (isto é, como caótica e complexa, em determinismo sem previsibilidade) (Magno [2009]: 118s). No mais, a transformática se apresenta como um endereçamento já consolidado e promissor aos estudos e à pesquisa em comunicação no Brasil. Notas 1. Registre-se o comentário de Bernard Miège ao apresentar no Brasil seu paradigma de pensamento comunicacional: “Hoje, em vários países, tanto nos mais desenvolvidos como no meu (que é um país em declínio)...” Justamente a França, tão pródiga em grandes pensadores até os anos 1970... (Miège, 2009: 13). 2. Vida pessoal significando “uma experiência de singularidade e interioridade historicamente específica, (...) sociologicamente fundamentada em processos modernos de industrialização e urbanização, e na história da família”, surgida particularmente das experiências dos membros mais jovens e das mulheres em suas iniciais tentativas de manifestação e emancipação no final do século XIX (Zaretsky, 2004: 4-5). 3. Nome dado ao florescimento de atividades culturais e intelectuais ligadas às manifestações africano-americanas ocorridas entre 1920-1930. É a expressão de uma Black America até então impedida de mostrar-se como tal. 18 Comum 36 - jul./dez. 2014 4. (Cf. Magno [1986-87]). Esta reformatação ocorreu no âmbito da Escola de Comunicação/ UFRJ e está documentada em publicações da época e atuais. Além da comunicação, continua reunindo pesquisadores de várias áreas (filosofia, psicologia, pedagogia, arquitetura [Araujo 2011, 2012, 2013], serviço social). Cf. as obras de MD Magno e de outros pesquisadores em: www.novamente.org.br. Cf. também ‘MD Magno’ na wikipedia. 5. Para um aprofundamento do conceito na nova psicanálise, (cf. Medeiros, 2008: 4): “Por formação entende-se toda e qualquer forma, ordenação, articulação ou estrutura que há, das partículas e anti-partículas a uma ordenação simbólica (humana) qualquer, do código genético e dos ecossistemas vivos a todo tipo de técnica, língua, conhecimento ou arte. Ou ainda, toda e qualquer forma comparecente como matéria, vida ou artefato, para usar os termos das teorias da complexidade e da auto-organização...”. 6. Conceito introduzido em Magno [1982]. Considera-se o revirão instalado, de saída, na espécie humana como sua essencial disponibilidade (e não obrigação) para reverter, avessar o que quer que lhe seja apresentado. Acrescente-se que o revirão é também inerente ao que há, ao Haver, e não apenas à espécie. 7. Trata-se de um ponto de suspensão, ainda que por um átimo, do caráter opositivo das formações que pressionam umas às outras dentro do Haver (entre as quais, a formação chamada humana). Suspensão esta produzida por uma indiferenciação (isto é, uma equi-valência das diferenças) dos sentidos de seus polos como permanente possibilidade de passagem, em continuidade, de um polo a outro. É aí que se disponibiliza a criação (não de sínteses, mas) das próteses que têm caracterizado nosso modo de existir. Não confundir, portanto, com “superação”, dialética ou outra. 8. Ao que há ou venha a haver só é dada a possibilidade de haver vincularmente. 9. “(...) é na absoluta estranheza para com o próximo que encontro a minha absoluta vinculação” (Magno [1993], p. 122). 10. Embora diferentes, não são registros heterogêneos. No humano, por exemplo, as formações primárias estão de tal modo imbricadas às secundárias que se torna difícil estabelecer onde começam umas e terminam outras. Daí, por exemplo, a diferença natureza/cultura, tão necessária ao estruturalismo, perder sua suposta nitidez. 11. Nossa conformação corporal, por ser de saída esta e não outra, já traz recalcada a possibilidade de voarmos, por exemplo, sem que nada precise proibir isto. 12. O fato de falarmos tal língua, por exemplo, recalca as possibilidades de falarmos outras sem sotaque. 13. Cf. (Lorenz [1965], p. 9-10): “(...) padrões comportamentais são características tão confiáveis e conservadas nas espécies quanto as formas dos ossos, dos dentes, ou de qualquer outra estrutura corporal. (...) Admitir que padrões comportamentais têm evolução exatamente igual à dos órgãos leva ao reconhecimento de outro fato: eles também têm o mesmo tipo de transmissão hereditária”. 14. A neo-etologia diz respeito, por exemplo, a vinculações nacionais ou religiosas (portanto, históricas) que insistem em se fundamentar em etnia, cor da pele, sexo anatômico, etc. 15. São artifícios de dois tipos: espontâneos e industriais. 16. Referente a pares de elementos opostamente simétricos, cujas imagens são especulares, mas não idênticas. Por exemplo, um par de luvas, de cristais, de moléculas... 17. De fractal (quebrado), termo criado pelo matemático Benoit Mandelbrot (1924-2010) em 1975 para designar uma figura geométrica não euclidiana que expressa propriedades sem “definição clara: o grau de aspereza, ou de fragmentação, ou de irregularidade de um objeto. Um Comum 36 - jul./dez. 2014 19 litoral sinuoso, por exemplo”. A geometria fractal estuda as propriedades e o comportamento dos fractais e supõe que “o grau de irregularidade permanece constante em diferentes escalas” (Gleick, 1990: 93). 18. As idioformações de nosso caso terrestre são chamadas de pessoas. 19. Isto porque a Mente – entendida como instância que: abrange o que há, é relacional e transacional, sem dentro ou fora –, diante do que quer que haja ou venha a haver (ainda que apenas em pensamento), opera conjeturando sobre a possibilidade de o oposto daquilo também (vir a) haver. 20. O termo transa é aqui utilizado conceitualmente, englobando não só a ideia de transação (sexual, inclusive), mas também as de transe e transiência das formações. 21. Aquelas nem por isso deixam de forçar seu direito à manifestação. Neste contexto, está o que Freud verificava como permanente pressão do “retorno do recalcado”. 22. Em dois Grupos de Pesquisa/CNPq: “Redes Sociais, Ambientes Imersivos e Linguagem” e “ETC: Estudos Transitivos do Contemporâneo”. 23. Entre outros, apresentação de trabalhos no GT “Epistemologia da Comunicação” da Compós, desde 2009. 24. Isto é, hiperdeterminada para além das sobredeterminações (opositivas, lateralizadas) vigentes no âmbito da Consciência. Cf. Freud ([1925], p. 258): “[ao contrário do que é para a filosofia] o psíquico é antes inconsciente em si, [e] estar consciente é apenas uma qualidade que pode ou não juntar-se ao ato psíquico particular e nele nada mais altera, caso fique ausente”. 25. As datas entre colchetes se referem aos anos em que os textos foram originalmente apresentados em público (falas, primeiras edições). Referências25 ALONSO, Aristides. A nova mente da máquina e outros ensaios. Rio de Janeiro: NovaMente, 2012. __________. Aspectos do verbo Haver e seu uso na Nova Psicanálise. TranZ: Revista dos Estudos Transitivos do Contemporâneo, v. 5, 2010. Acessar: http://www.tranz.org.br/5_edicao/TranZ10-Aristides-VerboHaver-RevMD.pdf ARAUJO, Rosane. A cidade sou eu. Rio de Janeiro: NovaMente, 2011. Trad. Inglesa: The city is me. Londres: Intellect, 2012. Trad. Francesa: La ville c’est moi. Paris: L’Harmattan, 2013, a sair. ECO, Umberto. [1968] A estrutura ausente - introdução à pesquisa semiológica. 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[1994] Velut luna: a clínica geral da nova psicanálise. Rio de Janeiro: NovaMente, 2008. __________. [1993] A natureza do vínculo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. __________. [1991] Est’Ética da psicanálise: parte II. 2 v. Rio de janeiro: NovaMente, 2003. __________. [1986] Pleroma. In: [1986-87] O sexo dos anjos: a sexualidade humana em psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra editora, 1988. __________. [1982] A música. Rio de Janeiro: Aoutra, 1986. MEDEIROS, Nelma. O primado heurístico da noção de “formação”: para uma teoria gnóstica do conhecimento. Lumina: Revista do PPGCOM / UFJF. V. 2, n. 2, 2008. Disponível em: http://www.ppgcomufjf.bem-vindo.net/lumina/index.php?journal=edicao& page=article&op=view&path[]=69&path[]=84 Comum 36 - jul./dez. 2014 21 MIÈGE, Bernard. O pensamento comunicacional na contemporaneidade. Líbero: Revista do PPGCom da Faculdade Casper Líbero. São Paulo, v. 12, n. 23, p. 9-18, junho 2009. SODRÉ, Muniz. Comunicação: um campo em apuros teóricos. MATRIZes. 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Technology Review: julho-agosto 2001. (technologyreview.com) ZARETSKY, Eli. Secrets of the soul: a social and cultural history of psychoanalysis. Nova York: Vintage books, 2004. 22 Comum 36 - jul./dez. 2014 Resumo Objetivo desse artigo é situar a teoria da comunicação no campo geral do conhecimento (científico ou outro); tomá-la como ferramenta de estudo, pesquisa e aplicação a uma ampla gama de acontecimentos vinculatórios (além daqueles específicos dos seres humanos); descrever a teoria geral dos vínculos que embasa a transformática (teoria psicanalítica da comunicação); e expor a definição de comunicação decorrente dessa teoria geral dos vínculos. Palavras-chave Teorias da comunicação – Nova Psicanálise – Pesquisa em comunicação. Abstract This paper aims to place the Communication Theory in the general field of knowledge (scientific or other); consider it a tool for studying, researching and to be used in a wide variety of communicative situations (not exclusively those involving human beings); depict the general bonding theory which grounds “Transformatics”, the psychoanalytical communication theory; and display a definition of Communication derived of this general bonding theory. Keywords Communication theories – New Psychoanalysis – Research in communication. Comum 36 - jul./dez. 2014 23 Redes multicódigos, mudança de hábitos e o campo da comunicação Francisco J. Paoliello Pimenta As possibilidades abertas pelas tecnologias digitais multicódigos constituem, hoje, a base de diversas mudanças na esfera comunicacional, desde a emergência de percepções vagas, passando pela adoção de novos tipos de atitudes do âmbito das ocorrências concretas, e chegando a transformações de processos ideacionais, lógicos, das mentes interpretadoras, conforme já apresentamos em trabalhos anteriores (Pimenta, 2006; 2007A; 2007B; 2007C; 2008A; 2008B; 2009; 2010A; 2010B; Pimenta e Franco, 2005; e Lorena Filho, 2007; e Rivello, 2012; e Rodrigues, 2012; e Silveira Jr, 2009; e Soares, 2004; e Umbelino, 2012; e Varges, 2009; e Varges, 2010). Se, por um lado, esse contexto mutante aparece como um desafio para essa área do saber, tanto para a produção quanto para a análise dos eventos, por outro oferece oportunidades bastante interessantes para um esclarecimento crescente sobre como podemos conceber os processos de comunicação nesse atual ambiente e, ainda, seu caráter mais genuíno como área do conhecimento frente às demais ciências. A partir daí, acreditamos que o pragmaticismo pode nos conduzir a uma compreensão mais rica desses resultados, definindo melhor o papel dos processos de comunicação no atual ambiente em transformação. Isso porque esse método se mostrou bastante útil nos trabalhos acima citados, ao nos fornecer o diagrama lógico para analisarmos o atual contexto por meio do esclarecimento detalhado de como deve ser cada passo das investigações e descobertas científicas sobre a base das três inferências, a abdução, a dedução e a indução. Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 24 a 47 - julho / dezembro 2014 24 Comum 36 - jul./dez. 2014 O pragmaticismo está articulado a uma complexa arquitetura, concebida pelo lógico norte-americano Charles Sanders Peirce, visando explicar como se dão os processos de obtenção do conhecimento, e que pode ser aplicada aos diversos tipos de inteligências que hoje conhecemos, sejam elas animais, entre elas a humana, ou das máquinas, e, ainda, seus híbridos. Portanto, apresentaremos, a seguir, de forma sintética, a possível contribuição desse método para uma melhor compreensão dos processos de comunicação, por meio de suas relações com as demais esferas da ciência e do pensamento. A concepção pragmaticista e o saber em comunicação Em seu esforço de criar o pragmaticismo como método que propiciasse um maior esclarecimento sobre os processos de obtenção do conhecimento, Peirce desenvolveu diversas versões de um diagrama que o situasse numa ampla classificação das ciências. Abaixo, segue uma de suas versões, seguindo sempre as características triádicas de suas categorias da primeiridade, secundidade e terceiridade. Comum 36 - jul./dez. 2014 25 Assim, por meio desses diagramas, podemos compreender que qualquer esforço científico, entre eles essa definição que buscamos sobre o que seria o campo da comunicação, se encontra no âmbito mais geral do contínuo trabalho humano de descobrir e aprimorar métodos, ou seja, da metodêutica (Peirce, 1931-58: 2.108). Dessa perspectiva, a tarefa se apoia, portanto, na lógica ou semiótica, como teoria geral dos signos. De fato, se não há como pensar sem signos, para que se possa estabelecer uma ciência é imprescindível uma compreensão semiótica de como se dão seus processos, em especial a comunicação, que se dá necessariamente por meio deles. A propósito, em nossas pesquisas anteriores, citadas acima, nos apoiamos fundamentalmente nessa perspectiva semiótica, desde a base pragmaticista fornecida pela metodêutica, passando pela postura metodológica derivada da lógica crítica, com suas subáreas da abdução, indução e dedução, e, ainda, em sua analítica, que nos forneceu a teoria sígnica para as análises em geral. 26 Comum 36 - jul./dez. 2014 O saber em comunicação e sua inserção na lógica da natureza Seguindo os diagramas, outra instância que pode ser útil no entendimento dos processos de obtenção do conhecimento nesse plano comunicacional, especialmente se considerarmos o atual contexto das trocas por meio das redes digitais, é a metafísica, tal como a concebeu Peirce, como ciência da mente e da matéria, voltada para a busca do que seria a realidade em seus traços mais gerais. Isso porque essa esfera nos remete à vertente do realismo escolástico, na qual o pragmaticismo se insere. Segundo ela, nossos pensamentos são determinados por uma realidade lógica da natureza, infinitamente mais ampla que a cognição humana, o que nos permite superar as limitações nominalistas herdadas do estruturalismo, que tanto impactaram e ainda influenciam fortemente a área da comunicação. Fred Michael descreve assim esta última fase do realismo de Peirce: O real, na última versão de Peirce, é independente da cognição, e assim independente da investigação, o que talvez explique como Peirce podia abandonar a sua caracterização do real como aquilo que a investigação revelaria ao final. E suas categorias não são mais categorias da experiência, como foram para Kant e tinham sido para Peirce até aquela época; as categorias baseadas na nova lógica dos predicados, em contraste com as categorias da lógica de classes inicial, são categorias da realidade externa (Michael, 1988: 334). Portanto, de acordo com essa vertente, a lógica do raciocínio humano não é uma elaboração exclusiva dessa espécie, mas, ao contrário, foi desenvolvida, inclusive biologicamente, articulada a processos naturais com características universais, um pensamento derivado de uma hipótese intitulada sinequismo. Tal concepção, decorrente do realismo moderado adotado por Peirce, com base em Aristóteles e Duns Scot, pressupõe, assim, a constante referência a um padrão lógico sob o qual opera a razão, inclusive a nossa, derivado, por sua vez, do que seria uma espécie de “pensamento do universo”. Para esse realismo, o saber deve decorrer de “um processo por meio do qual o existente vem a incorporar continuamente uma certa classe de gerais que, ao longo de seu desenvolvimento, vêm se mostrar razoáveis” (Peirce, n/d: MS 329, 20). Diz Peirce: Comum 36 - jul./dez. 2014 27 A criação do universo, que não aconteceu durante certa semana agitada, no ano 4004 A.C., e sim continua hoje e nunca estará completada, é o próprio desenvolvimento da Razão. (...) A única coisa cuja admirabilidade não é devida a uma razão ulterior é a Razão, ela mesma, compreendida em toda a sua inteireza, na medida em que possamos compreendê-la. Sob tal concepção, o ideal de conduta será executar nossa pequena função na operação da criação, dando uma mão, visando tornar o mundo mais razoável sempre que, como a gíria diz, fazer isto é “up to us” (responsabilidade nossa). Na lógica, será observado que conhecimento é razoabilidade, e o ideal de raciocínio será seguir tais métodos, como o conhecimento mais desenvolvido, o mais rapidamente... (Peirce, 1931-58: 1.615) Em outra passagem, ao definir suas categorias, Peirce afirmou: “Elas sugerem um modo de pensar; e a possibilidade da ciência depende do fato de que o pensamento humano necessariamente compartilha de qualquer característica difundida por todo o universo, e que suas modalidades naturais têm alguma tendência de ser os modos de ação do universo” (Peirce, 1931-58: 1.351). Assim, os processos de obtenção do conhecimento seguiriam uma lógica que não é apenas humana, e, sim, da natureza, e, portanto, seriam autônomos frente à nossa cognição. Tal visão diverge de vertentes muito disseminadas no campo, segundo as quais o fenômeno comunicacional é algo estritamente limitado ao seu respectivo contexto cultural. O saber em comunicação como etapa rumo à razoabilidade Ainda a partir do diagrama acima, compreendemos que o saber está associado aos esforços daquele setor que Peirce chamou de idioscopia, ou das ciências especiais, o qual, dentro da esfera das ciências da descoberta, visa à resolução de questões teóricas a partir de experimentos físicos ou mentais. A definição mais precisa do que seriam os processos comunicacionais é certamente algo desse domínio, na medida em que tal elaboração teórica depende de investigações com esse caráter empírico. Do mesmo modo, esse percurso está relacionado também à instância das ciências da revisão, que vincula as descobertas derivadas das pesquisas às atividades práticas, visando organizar seus resultados para aprimoramentos da filosofia da ciência, algo que certamente pode ser aplicado às concepções epistemológicas da comunicação. 28 Comum 36 - jul./dez. 2014 A partir desses pressupostos, dos quais as vertentes de estudos comunicacionais que enfatizam as matrizes especificamente culturais devem discordar, chegamos à descrição pragmaticista das etapas que caracterizam a obtenção de conhecimento, ou seja, dos processos sígnicos, ou comunicacionais, bem sucedidos, entre eles a própria ideia do que seja o fenômeno comunicacional. Nessa esfera, acreditamos que as concordâncias poderão ser bem mais expressivas. Comum 36 - jul./dez. 2014 29 De acordo com essa perspectiva, a adoção de um padrão lógico determinado pela razoabilidade nos vem possibilitando ampliar o conhecimento a respeito do ambiente em que vivemos, nas mais diversas áreas pesquisadas pela ciência, incluindo, aí, os processos de comunicação, uma vez que somos constrangidos a agir dessa forma para obter resultados, pois não é esta espécie que determina as regularidades por meio das quais os fenômenos se dão. Naturalmente, existem ocorrências nas esferas das culturas que podem fugir a esses padrões, contrariando a razoabilidade, porém, a longo prazo, procedimentos com essas características tendem a ser superados pela acachapante superioridade das regularidades universais. Portanto, a partir dessa ideia de razoabilidade, tomada como “o pensamento do universo”, o pragmaticismo é apresentado como um método dela derivado, o qual intenta descrever as etapas por meio das quais a mente adquire conhecimento de algo. Como tal obtenção do conhecimento tem de se dar, necessariamente, por meio de processos envolvendo algum tipo de percepção, e, daí, de interpretação sígnica, mesmo que extremamente frágil ou até inconsciente, sua descrição serve também como critério para o que seria um processo de comunicação bem sucedido, de caráter genuíno. A crise epistemológica da comunicação e a saída pelo pragmaticismo É comum em nosso campo a ideia de que a comunicação humana é um fenômeno eminentemente cultural, às vezes tomado até mesmo como regulado pelo código das línguas ocidentais e, no caso de Derrida, predominantemente do verbal escrito, um pensamento reforçado pelas vertentes conceptualistas e estruturalistas da linguagem. Contudo, sob o prisma da razoabilidade, e, daí, do pragmaticismo, as normas das línguas indo-europeias, que constituem as bases dessas vertentes, devem ser vistas apenas como uma apropriação de caráter ínfimo das regularidades lógicas que ocorrem no universo. Acreditamos que a rigidez da compreensão estrutural dos processos de comunicação e sua dificuldade de articular a ideia de acaso e indeterminação aos seus conceitos linguísticos de substância, diferença e arbitrariedade vem colocando em xeque a verdadeira hegemonia obtida nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado pelas teorias derivadas do verbal no âmbito das ciências humanas e sociais, incluindo aí o pós-estruturalismo. Isto porque tal postura tem se mostrado incapaz de explicar o impacto dos fenômenos decorrentes da tecnologia digital, que vem ocorrendo tanto na produção comunicacional 30 Comum 36 - jul./dez. 2014 quanto em suas articulações conceituais na esfera teórica, conduzindo a um excesso de trabalhos meramente descritivos, com fortes conotações políticas, em detrimento das descobertas e da apresentação de soluções comunicacionais para o cotidiano daqueles envolvidos nesses processos. É interessante observar que muitas vertentes do campo comunicacional, por outro lado, têm conduzido suas pesquisas de acordo com as etapas propostas pelo pragmaticismo, mesmo que discordem de seus pressupostos, geralmente sem a explicitação de estarem operando dessa forma. Assim, nossa ideia é propor o tratamento dos fluxos comunicacionais como uma subclasse dos processos de obtenção do conhecimento em geral, na medida em que compartilham os mesmos objetivos, ou seja, os de aprimorar uma compreensão anterior de algum objeto, seja tal comunicação uma simples conversação ou trocas informacionais sobre temas de alta complexidade. De acordo com o pragmaticismo, portanto, a pesquisa em comunicação pode ser conduzida por meio dos procedimentos habituais das investigações científicas, o que implica em considerar os estágios da abdução, dedução e indução na busca de um maior esclarecimento sobre o respectivo objeto, tal como procedemos nas pesquisas que realizamos nos últimos anos, conforme já citamos. Tal compreensão deriva da classificação de argumentos da lógica crítica (ver Diagrama 2), como área do conhecimento voltada para o estudo dos modos de inferência e para a caracterização das diferenças entre os raciocínios corretos e os incorretos. Esse estudo dos modos de inferência permite compreender melhor o significado de cada uma das etapas da descoberta. A aplicação do pragmaticismo e sua abertura para o empírico Nossas pesquisas nos conduziram, então, à ideia de que as tecnologias digitais vêm estimulando os processos de comunicação no sentido de proporcionar às mentes envolvidas, ainda que em graus diferentes, sentimentos de compartilhamento, inserções mais efetivas em seus contextos sociais e daí, crescente autoconsciência de estarem operando por meio de signos complexos. Esses resultados confirmaram num grau significativo nossa hipótese geral de que os processos de comunicação possibilitados pelas redes digitais, quando produzidos de forma multicódigos, estimulam a geração de pensamentos mutantes, permitindo maior efetividade comunicacional. A perspectiva pragmaticista adotada e os resultados obtidos propiciam, portanto, a apropriação do atual contexto crítico que afeta o campo da Comum 36 - jul./dez. 2014 31 comunicação em aspectos bastante produtivos, na medida em que incorporam a mudança e a articulam à própria concepção dessa área do saber. A busca de processos comunicacionais de maior eficiência, que conduzam a um estado de transformação permanente dos hábitos de pensamento como critério de excelência também é algo derivado da ideia de razoabilidade do pragmaticismo, em especial de sua esfera da ética. Definida não como algo ligado à moral e sim como estudo de quais fins de nossas ações estamos deliberadamente preparados a adotar (Peirce, 1903: EP 2.200), a ética nos fornece a direção mais adequada para harmonizarmos nossos pensamentos com seus respectivos contextos existenciais em vista de um ideal admirável. Estes são concebidos pelo pragmaticismo como em permanente mudança, algo que aparece agora de forma bastante clara no plano da comunicação. Além disso, a concepção do campo apoiada nessa ideia de ética dialoga diretamente com o âmbito empírico da comunicação, na medida em que se insere na esfera das ciências normativas (ver Diagrama 2), ou seja, aquelas áreas do saber que buscam esclarecer as bases estéticas, éticas e lógicas das normas que motivam nossas condutas em vista de um ideal, de um fim, frente ao dualismo de nosso encontro com a experiência. Tais fundamentos, contudo, devem estar balizados pela razoabilidade do universo e não por qualquer motivação de caráter meramente humano. Nas palavras de Peirce: Uma sutil e quase incontornável estreiteza na concepção de Ciência Normativa atravessa quase toda a filosofia moderna ao relacioná-la exclusivamente à mente humana. O belo é concebido como relativo ao gosto humano, o certo e o errado são ligados somente à conduta humana, a lógica lida com o raciocínio humano. Na verdade, essas ciências certamente são de fato ciências da mente. Porém, a filosofia moderna nunca foi suficientemente capaz de se livrar da ideia Cartesiana de mente, como algo que “reside” – e esse é termo – na glândula pineal. Todos riem disso hoje em dia, e ainda assim todos continuam a pensar na mente dessa mesma maneira em geral, como uma coisa dentro dessa ou daquela pessoa, pertencendo a ela e correlata ao mundo real. Um programa inteiro de conferências seria necessário para mostrar esse erro. Eu posso apenas sugerir que se alguém refletir sobre isso, sem estar dominado por ideias pré-concebidas, logo começará a perceber que é uma visão muito estreita de mente (Peirce, 1931-58: 5.128). 32 Comum 36 - jul./dez. 2014 Portanto, as bases fornecidas por essas ciências para as definições conceituais relativas ao campo da comunicação nos dão elementos para que abordemos esse momento crítico tomando as mudanças como constituintes naturais inerentes a esses processos, assim como acontece com todos os demais fenômenos. A ênfase no empírico inclui a ideia de que deve haver sempre uma profunda articulação da teoria com a prática em todo esse movimento em busca da definição do campo, não sendo possível considerar concepções rígidas, de caráter disciplinar. Implica, ainda, em tomar a comunicação como algo muito mais complexo do que uma mera ciência prática, com motivações particulares como o jornalismo, a publicidade, etc. A hipótese pragmaticista da comunicação como mudança Assim, de acordo com as etapas preconizadas pelo pragmaticismo, e a partir dos resultados obtidos com as pesquisas realizadas, chegamos a uma segunda hipótese, de fundo epistemológico. Ela afirma que a ciência da comunicação tem como objeto os incessantes processos de criação, produção e interpretação de referências a contextos possíveis, existenciais ou ideacionais, ou de articulação entre eles, que envolvem sistemas vivos, inteligências artificiais ou seus híbridos, o que sempre conduz os agentes a algum grau de mudança, afetando seus modos de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações. De acordo com essa definição, os processos de criação, produção e interpretação que caracterizam os sistemas vivos, inteligências artificiais e seus híbridos, em seu contínuo esforço de relacionar referências do ambiente a contextos mais complexos, constituem, portanto, o objeto da ciência da comunicação. De fato, não é possível o estabelecimento de qualquer tipo de processo de comunicação sem que ocorram percepções de signos de algum tipo (sub-hipótese 1) e, daí, é inevitável que os agentes envolvidos no processo os relacionem a algum contexto, seja ele meramente possível, fisicamente existente, ideacional, ou uma combinação dessas esferas (sub-hipótese 2). Além disso, compreendemos que tal processo perceptivo, ao final, sempre conduz as mentes envolvidas a algum grau de mudança. Isto porque, na medida em que a relação apresentada acima entre um signo percebido e um determinado contexto é estabelecida, não há como evitar algum tipo de efeito nas mentes envolvidas, seja na esfera dos sentimentos, da ação, do pensamento, ou de suas combinações (sub-hipótese 3). A única alternativa seria esta eventual mente interpretadora esquivar-se, caso isso seja possível, antes Comum 36 - jul./dez. 2014 33 da ocorrência dessas percepções. Acreditamos que, apesar de ser originária do método pragmaticista, tal definição do objeto da ciência da comunicação atende a uma ampla diversidade de abordagens teóricas, contribuindo para a redução de tensões na área, ao revelar proximidades ainda não percebidas. O lançamento dessa hipótese sobre a constituição do campo decorre da adoção do primeiro dos três tipos de inferência adotados em qualquer processo de descoberta, de acordo com o pragmaticismo, ou seja, a abdução. Esse tipo de raciocínio serve ao propósito de lançar uma possível explicação frente a uma questão surpreendente ou obscura. Nesse caso, a abdução é derivada dos resultados das pesquisas que apresentamos anteriormente, ou seja, nossos primeiros processos abdutivos foram submetidos a testes e geraram essas novas hipóteses. Assim, os resultados obtidos após a adoção das primeiras hipóteses, por meio de processos indutivos de caráter qualitativo, conduziram a novas predições de tipo inteiramente diferente e, caso sejam igualmente verificadas, reforçam a confirmação obtida a partir das abduções iniciais (Peirce, 1931-58: 7.117). Portanto, embora essa hipótese sobre o campo tenha uma anterioridade lógica em relação às primeiras que lançamos, relativas à comunicação multicódigos, para nós surgiu como consequência do sucesso desse método quando aplicado à essas pesquisas que realizamos durante muitos anos. A hipótese e suas bases na analítica, no interpretante último e na razão Outra base dessa proposta vem da gramática especulativa, ou analítica, que compõe a teoria sígnica de Peirce (ver Diagrama 2), na medida em que o processo comunicacional é tomado, em primeiro lugar, como algo que ocorre por meio de signos. Em decorrência disso, é descrito por meio das relações que apresenta considerando-se várias tríades, entre elas as que ocorrem entre signos, objetos e interpretantes. Nesse caso, os signos são as “referências” produzidas, os objetos os “contextos possíveis, existenciais ou ideacionais, ou de articulação entre eles” e os interpretantes os resultados dos “incessantes processos de criação, produção e interpretação” realizados “pelos sistemas vivos, inteligências artificiais ou seus híbridos”. Esses resultados geram nas mentes, como efeitos pragmáticos do processo, “algum grau de mudança, afetando seus modos de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações”, cumprindo, portanto, sua função de interpretante. Este, como se sabe, é o signo desenvolvido na mente do intérprete, 34 Comum 36 - jul./dez. 2014 mesmo que ela seja artificial ou híbrida, a partir da percepção da referência produzida e sua inevitável relação a um possível contexto. Existem diversas gradações do conceito de interpretante, desde o imediato, da esfera da mera possibilidade de ocorrência, passando pelo dinâmico e seus subtipos, até o “final”, de âmbito extremamente geral, abarcando também processos futuros. Entre os tipos do dinâmico, encontra-se o lógico último que avança, em relação aos demais, de um caráter de interpretabilidade ligada à esfera dos sentimentos ou da ação, para se constituir numa operação cognitiva diferente, de mudança de hábito, com caráter coletivo e um horizonte de alta generalidade. Como tem esse caráter geral, atinge o máximo de normatividade em termos semióticos e constitui, assim, a referência para a mudança à qual nos referimos na definição que propusemos aqui. Ou seja, a excelência dos processos comunicacionais está relacionada à capacidade das mentes interpretadoras chegarem a tal operação cognitiva, o que inclui a submissão a uma permanente heterocrítica por parte de outras mentes e, ainda, ao máximo possível de autoconsciência de seus próprios processos inferenciais. Peirce descreve da seguinte maneira esse interpretante, ao tratar dos significados dos conceitos intelectuais como um “efeito”: Antes de determinar a natureza desse efeito será conveniente adotar uma designação para ele, e vou chamá-lo de interpretante lógico, sem determinar ainda se este termo deve se estender a alguma coisa além do significado de um conceito geral – embora certamente esteja relacionado a isso – ou não. Devemos dizer que esse efeito pode ser um pensamento, ou seja, um sinal mental? Sem dúvida, pode ser, porém, se este signo é do tipo intelectual – como deveria ser – ele próprio deve ter um interpretante lógico, de modo que ele não pode ser o interpretante lógico último do conceito. Pode-se provar que o único efeito mental que pode ser assim produzido e que não é um signo, mas é de aplicação geral, é uma mudança de hábito; significando por mudança de hábito a modificação das tendências de uma pessoa para a ação, resultante de experiências anteriores ou de esforços anteriores de sua vontade ou atos, ou de um complexo de ambas as causas (Peirce, 1931-58: 5.476). Comum 36 - jul./dez. 2014 35 A concepção de que o interpretante lógico último é a mudança de hábitos decorre da hipótese pragmaticista de que o pensamento é analógico às regularidades naturais que atuam sobre seus agentes, por meio da razão. Naturalmente, nem todos os processos comunicacionais atingem esse estágio, porém, segundo nossa definição, ele funciona como um critério para determinar sua excelência. As bases estéticas, fenomenológicas e matemáticas da mudança Esse raciocínio acima nos conduz a outra das bases dessa definição que é a estética (ver Diagrama 2). Primeira das ciências normativas, fundamento da ética, ela permite distinguir o que é admirável em si mesmo, algo que constitui, segundo Peirce, o principal fundamento para o raciocínio atingir um estado de harmonia com os processos naturais. Em consequência, se há essa harmonia, é possível adotarmos essa lógica que nos conduz à razão e haver, assim, mudança de hábitos. Portanto, é nesse processo que o pensamento aproxima-se do “admirável”, do kalós, do Summum Bonum, que é a adoção espontânea de uma ideia pela mente coletiva como a mais adequada às circunstâncias, sem nenhuma razão especial a não ser a noção instintiva dessa adequação. Diz Peirce: Mas, para apresentar a questão da estética em sua pureza, devemos eliminar dela não apenas todas as considerações acerca de esforço, mas todas as considerações sobre ação e reação, incluindo toda consideração acerca da nossa recepção do prazer, tudo, em síntese, que pertença à oposição entre ego e não–ego. Não temos em nossa língua uma palavra com a generalidade requisitada. O grego kalós, o francês beau apenas se aproximam, sem alcançá-la exatamente. “Fine” seria uma pobre substituta. Belo é mau, porque um modo de ser kalós depende essencialmente da qualidade ser não-bela. Talvez, contudo, a frase “o belo do não belo” não fosse ofensivo. Mas “beleza” é muito superficial ainda. A questão da estética é, usando o termo Kalós (do grego, “admirável”): Qual é aquela qualidade que, na sua presença imediata, é Kalós? A ética deve depender desta questão, assim como a lógica depende da ética. A estética, portanto, embora eu a tenha negligenciado terrivelmente, parece ser, possivelmente, a primeira e indispensável propedêutica para a lógica, e a lógica da estética parece ser uma parte distinta da ciência lógica que não deve ser omitida (Peirce, 1931-58: 2.199). 36 Comum 36 - jul./dez. 2014 Assim, na medida em que obtemos significações cada vez mais precisas, ou seja, interpretamos as relações de referências a contextos de forma crescentemente adequada, mudamos nossos hábitos em harmonia com uma dinâmica que é “admirável” por ser própria à “razão da natureza”. É interessante assinalar, de passagem, que, no atual contexto tecnológico, as inteligências artificiais criadas por humanos ainda não estão aptas a tais mudanças. Daí, quanto mais as mentes estiverem envolvidas em processos comunicacionais com tal razoabilidade, mais próximas estarão da excelência em significação, as conduzindo à proposição lançada acima de que o objeto da ciência da comunicação está relacionado às mudanças geradas pela criação, produção e interpretação de referências a contextos existenciais. Tanto a abdução quanto as percepções sígnicas e as relações estéticas são processos fundamentalmente ligados à fenomenologia, tal como a concebeu Peirce (ver diagrama 2). Nomeando-a, mais tarde, phaneroscopia, para diferenciá-la de outras perspectivas filosóficas, ele considerava ser seu objetivo descrever todos os aspectos comuns a tudo aquilo que é ou poderia ser experienciado, ou se tornar objeto de estudo. É nessa área do conhecimento onde se situam as já conhecidas categorias peircianas, das quais a primeiridade é o lugar de predominância dos fenômenos indeterminados, ligados à estética, e geradores das possibilidades de mudança. Portanto, sob essa perspectiva, os processos comunicacionais encontram aí as raízes de toda e qualquer transformação que sobre eles incide, seja na percepção, no embate com o existencial ou no pensamento. Essa esfera do raciocínio relaciona-se, ainda, diretamente, com a área do saber mais básica das ciências da descoberta, a matemática (ver Diagrama 1), encarregada de colocar hipóteses e tirar suas consequências como conclusões necessárias (Peirce, 1931-58: 1.240). Embora seu campo de ação seja marcadamente abstrato, provê o pensamento com o rigor necessário para se pensar a indeterminação e, portanto, o novo e a mudança. É interessante notar, ainda, que as próprias categorias peircianas decorrem de uma visão pitagórica, portanto matemática, do mundo, e exibem propriedades geométricas compondo fractais. Possíveis consequências da proposta sobre o campo e seus testes empíricos A etapa seguinte prescrita pelo método pragmaticista para que nossa proposta de definição para o campo da comunicação esteja articulada com a razoabilidade, requer que suas possíveis consequências práticas tenham alguma Comum 36 - jul./dez. 2014 37 confirmação empírica. Para isso é necessário que haja um novo deslocamento desses procedimentos, de forma que se efetue a passagem da dominância da terceiridade, ou seja, da generalidade da inferência hipotética que consiste na proposta, para particularidades existenciais testáveis, da esfera da secundidade, por meio da dedução. Essa inferência constitui um dos três tipos de argumentos cuja validade e grau de força são avaliados pela lógica crítica (ver Diagrama 2). Agora, a utilizaremos outra vez para chegarmos a essas possíveis consequências práticas da nova proposta. Num exercício mental com a proposta tomada como diagrama representativo do objeto em questão, ou seja, o processo comunicacional, e sua divisão em sub-hipóteses (ver item 3), é possível deduzir três possíveis efeitos práticos, com base nas categorias de Peirce: 1. os processos de comunicação são desencadeados pela percepção de algo que funciona como signo para uma mente interpretadora; 2. a percepção de algo que funciona como signo conduz a mente interpretadora a relacioná-lo com algum contexto possível, existencial ou ideacional; e 3. a relação sígnica com algum contexto possível, existencial ou ideacional por parte da mente interpretadora tem como consequência mudanças em seus modos de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações. A partir dos dados recolhidos em nossas diversas pesquisas, já citadas, sobre processos comunicacionais envolvendo ciberativistas, usuários de jogos eletrônicos e de redes sociais, e de pesquisadores ligados ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação da Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós, nos foi possível encontrar confirmações em todos esses efeitos derivados da hipótese lançada. O efeito de algo funcionando como signo Numa verificação sobre o primeiro, é fácil constatar que esses processos de comunicação foram desencadeados pela percepção de algo que funcionou como signo para mentes interpretadoras. Nas pesquisas sobre ciberativismo, as referências sígnicas para os processos comunicacionais foram os elementos visuais e verbais encontrados nos sites. Situam-se, aí, vários signos por nós investigados, entre eles aqueles criados pelos organizadores de uma parada intitulada EuroMayday, incluindo sua “parada virtual” (Pimenta e Soares, 2004); os contidos no site do movimento dos zapatistas mexicanos, incluindo o endereço Europa Zapatista (Pimenta e Rivello, 2012), e, ainda, os do movimento Wikileaks, no caso, de sua versão brasileira (Pimenta e Rodrigues, 2012). 38 Comum 36 - jul./dez. 2014 Em trabalhos voltados para o estudo das mentes interpretadoras de usuários de jogos e redes sociais, as referências sígnicas se encontravam nos chamados metaversos, ou seja, nas simulações de ambientes 3D (Pimenta e Umbelino, 2012); nos sites de relacionamento, ou seja, o Orkut, o Kaneva e o Second Life (Pimenta e Varges, 2010); e, ainda, no jogo eletrônico World of Warcraft (Prado Silva, 2010). Finalmente, nas pesquisas envolvendo os participantes do grupo de trabalho Epistemologia da Comunicação da Compós, as referências sígnicas foram os dados obtidos por eles em suas investigações, depois traduzidos nos signos verbais constituintes dos artigos que utilizamos (Pimenta, 2007B; 2009; 2010A; Pimenta e Silveira Jr, 2009). O efeito da relação do signo a um contexto Em relação ao segundo efeito previsto a partir da hipótese que aqui apresentamos, de que a percepção de algo que funciona como signo conduz a mente interpretadora a relacioná-lo a algum contexto possível, existencial ou ideacional, também é fácil constatar essas ocorrências nas pesquisas realizadas. Nos casos do ciberativismo, os signos da parada virtual EuroMayday remetiam as mentes interpretadoras tanto para as manifestações existenciais do dia primeiro de maio que ocorreram fisicamente em várias cidades europeias, quanto para o ambiente simbólico de mobilização compartilhado pelos usuários do site (Pimenta e Soares, 2004); os signos dos sites dos zapatistas mexicanos estavam relacionados, igualmente, tanto àquele movimento social quanto ao espaço que ocupavam na internet (Pimenta e Rivello, 2012); enquanto os do movimento Wikileaks se ligavam especialmente à sua versão virtual, embora também dissessem respeito a eventos com caráter existencial (Pimenta e Rodrigues, 2012). Portanto, essas relações são claras e foram fundamentais para a ocorrência de seus respectivos processos comunicacionais. O efeito das relações sígnicas promoverem mudanças Também o terceiro possível efeito dessa hipótese, de que a relação sígnica com algum contexto possível, existencial ou ideacional por parte da mente interpretadora tem como consequência mudanças em seus modos de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações, é algo igualmente bastante claro a partir das pesquisas realizadas. Das nove amostras obtidas, apenas dois dos processos comunicacionais não foram caracterizados como notoriamente geradores de mudanças por meio das análises realizadas, ou seja, os sites zapatistas e aqueles relatados por um grupo dos pesquisadores da área Comum 36 - jul./dez. 2014 39 de epistemologia (Pimenta e Rivello, 2012 e Pimenta, 2007B; 2009; 2010A). No primeiro caso, embora o resultado seja algo surpreendente, por ser um grupo que se tornou mundialmente conhecido exatamente como exemplo de ciberativismo, a plataforma digital se mostrou bastante precária em relação aos efeitos pesquisados. Isso não quer dizer que esses seus processos de comunicação não produzam mudanças, porém, nesse caso, elas não se mostraram tão evidentes. O mesmo aconteceu em uma das amostras referentes a pesquisadores da esfera da epistemologia, na qual não verificamos a percepção de transformações marcantes decorrentes dos processos comunicacionais multicódigos. Contudo, da mesma forma que no caso dos zapatistas, o resultado não implica, necessariamente, na conclusão de que tais processos não estão relacionados a mudanças nas mentes interpretadoras. Assim, somente nesses dois casos os efeitos previstos não se confirmaram de forma clara. Em todas as demais situações pudemos constatar alterações tanto nas percepções, quanto nas ações e, ainda, nos pensamentos relativos aos processos comunicacionais observados. Assim, consideramos bastante provável nossa hipótese de que possamos caracterizar a área a partir da concepção deste campo do saber conforme a proposta acima. Diálogos da perspectiva pragmaticista sobre o processo comunicacional De acordo com a classificação das ciências proposta por Peirce, a comunicação encontra-se, portanto, dentro do âmbito da idioscopia ou ciências especiais, as quais se apoiam na filosofia, e, daí, em uma fenomenologia, e em sua lógica, ou semiótica (ver diagrama 2). Além disso, em sua constituição como campo do saber, deriva da metodêutica, que estuda os métodos a ser utilizados na investigação, na exposição e na aplicação das descobertas, de onde se origina o pragmaticismo (Peirce, 1907: MS 320, 024). Daí, podemos estabelecer, então, diversos diálogos teóricos a partir da proposta que lançamos de caracterização do campo da comunicação. O efeito mutante dos suportes multicódigos e a cibercultura Uma das esferas que pode ter seus processos compreendidos de forma mais complexa se adotarmos tais perspectivas é a área que se convencionou chamar de tecnocultura, cultura digital, ou cibercultura. O fator originário dessa vertente de estudos está relacionado, essencialmente, ao plano do su- 40 Comum 36 - jul./dez. 2014 porte, em vista da substituição de componentes analógicos por tecnologias digitais nos mais diversos equipamentos de comunicação. Daí, se compreende que esse desenvolvimento vem alterando os modos como se dão os processos de trocas, uma vez que as tecnologias digitais permitem a criação, transmissão e recepção de signos híbridos articuladores dos mais diversos códigos, ampliando as relações entre os referentes e seus contextos, ou seja, entre signos e objetos, propiciando processos interpretativos de crescente complexidade. Diante desse quadro, a definição dos processos comunicacionais com base no pragmaticismo pode ser útil na medida em que enfatiza os processos de mudança, e, daí, avança na explicação dos efeitos gerados no contexto das tecnologias digitais. Para tal, o conceito de interpretante, por exemplo, derivado da semiótica, em suas diversas acepções, articulado com os outros domínios da estética e da ética, ajuda a compreender a base lógica dessas mudanças de seus aspectos comunicacionais, avançando em relação às visadas de fundo descritivo. Uma dessas contribuições se refere a uma possível mudança não só de hábitos de ação, mas também de pensamento, derivada de um aprimoramento dos processos de interpretação pela utilização dos suportes digitais multicódigos. Tal desenvolvimento viria a partir de hipótese, com a qual trabalhamos, de existência de um crescente compartilhamento comunicacional entre os usuários por causa das mediações de caráter sinestésico, que recuperam as qualidades dos fenômenos face a face, em vista da atenuação da intermediação sígnica. Em artigo apresentado no congresso da Compós em 2006, descrevemos as condições para a ocorrência de tais mudanças: Cultivar hábitos críticos coletivos de autocontrole reflexivo, submetidos à heterocrítica, tendendo para a ação em conjunto em busca de um ideal estético sempre em processo é, portanto, o caminho que o Pragmatismo de Peirce indica para o ciberativismo. Com um alerta: sem a consciência dos princípios guia, as possibilidades da imersão hipermídia e da telepresença não estarão articuladas aos genuínos interpretantes lógicos últimos e, assim, deixarão de estar aptas a gerar novos hábitos mentais, de ação e de sentimento sempre que a realidade externa assim o exigir (Pimenta, 2007A: 185). Comum 36 - jul./dez. 2014 41 Caso essas condições estejam sendo cumpridas e tais mudanças estejam, de fato, acontecendo, estaríamos caminhando no sentido da razoabilidade. Sobre tal base de compreensão, essa vertente pode, então, explorar outros aspectos dos fenômenos e situá-los num quadro menos relacionado a uma cultura em particular, o que, de resto, é ainda mais compatível com as características abrangentes da tecnocultura. A superação do construtivismo, a ideia coletiva e as vertentes sociológicas Outra tendência de estudos da área que pode se beneficiar da definição de objeto da ciência da comunicação apresentada é a do campo visto sob uma perspectiva social, na medida em que se compreenda que mesmo as ocorrências de esferas mais estritamente culturais, com ênfase em trocas simbólicas, são organizadas semioticamente. De fato, os processos sociais sempre se desenvolvem por meio de trocas sígnicas, nas quais múltiplas relações entre referências e contextos vão sendo estabelecidas e, daí, interpretadas. Compreender esse fundamento dos processos perceptivos, de ação, e do pensamento na esfera social, passa a ser, então, um instrumento a mais. Acreditamos, assim, que a ênfase no contexto externo ao pensamento, e à consideração da existencialidade dos objetos das representações decorrente da imersão e imediaticidade permitidas, constitui uma das contribuições mais relevantes do pragmaticismo e da lógica semiótica às ciências sociais no atual quadro de estudos. A propósito desse tema, e também com base no realismo, o pesquisador Fernando Andacht criticou a “moda” teórica da vertente intitulada construção social da realidade. Em suas palavras: Considero o uso maciço e difuso da CSR na literatura comunicacional um movimento centrífugo de diluição da identidade causado pela adoção irreflexiva, automática do modelo construcionista. O desfecho deste uso prático e reducionista dessa teoria é a transformação de uma atividade de natureza científica em outra política ou prática: embora justa ou admirável, a tarefa de mudar o mundo através da elevação da consciência social não deve ser confundida com a procura autocrítica e sistemática de conhecimento. Estamos perante uma ação baseada em certezas, em convicções pessoais. O maior ou menor grau de respeitabili- 42 Comum 36 - jul./dez. 2014 dade desta atitude não é algo pertinente para a presente discussão epistemológica do campo comunicacional (Andacht, 2006: 2). Em trabalho recente, Felinto também denunciou o que julga ser uma atual desconsideração da materialidade nas análises dos processos de comunicação, embora sua crítica não venha de uma vertente de fundo semiótico. Diz o autor: Como disciplina fundamentalmente preocupada com a investigação de processos de significação entre emissores e receptores, a comunicação se caracterizou como uma investigação de ordem hermenêutica. E, notadamente, a história das teorias e dos métodos de pesquisa em comunicação apresenta um viés quase que exclusivamente hermenêutico. De análise de conteúdo aos estudos de recepção, trata-se essencialmente de interpretar sentidos. Nesse circuito, o componente propriamente tecnológico e material dos meios foi quase que inteiramente esquecido. O mais importante eram os emissores e receptores humanos que se encontravam nas pontas da cadeia comunicacional, na qual os meios apareciam como pouco mais que instrumentos de transmissão de informação (Felinto, 2011: 6). Uma noção mais complexa e atual das trocas semióticas que estão na base dos processos comunicacionais, incluindo as articulações permitidas pela teoria dos interpretantes, pode ser útil para superar dificuldades que essa vertente geralmente encontra, em seu apego a fundamentações teóricas ainda muito associadas ao estruturalismo, com seu referencial linguístico e seu modelo verbalista. Nesse caso, a contribuição do pragmaticismo pode ser encontrada, em especial, em sua ênfase no caráter coletivo dos processos de significação, na medida em que seu desenvolvimento é visto em harmonia com a lógica ou “razão” do universo. Segundo Peirce, uma visão científica do mundo é, necessariamente, fruto do pensamento geral, e, portanto, algo de caráter social. Em vista do fato dessa lógica se apoiar na excelência ética que constitui a adesão à meta do Summum Bonum, do admirável, isso também se aplica ao terreno das ações, no caso, a uma ênfase naqueles comportamentos de caráter coletivo. Comum 36 - jul./dez. 2014 43 A busca da eficiência comunicacional e a crise do jornalismo Uma terceira esfera que tem muito a ganhar a partir de uma compreensão dos fenômenos de seu campo de atuação consciente de sua base semiótica é o jornalismo, em vista do fato de ter como matéria prima, por excelência, processos sígnicos. Portanto, conhecê-los da melhor forma possível em suas relações derivadas de suas instâncias representativas, de referência e interpretativas é algo bastante recomendável. Na medida em que essa atividade está sempre em busca de signos que possam representar seus objetos da forma mais rica possível, tal objetivo está intrinsecamente relacionado à procura de razoabilidade preconizada pela Máxima Pragmática de Peirce, concebida como método que visa, exatamente, aprimorar a obtenção de significados. Outro campo no qual há uma clara articulação entre o jornalismo e sua base semiótica é o das mudanças geradas pelas tecnologias digitais. De fato, todas as rotinas, desde a confecção de pautas até a edição final têm passado por uma reorganização radical, alterando, ainda, todas as suas demais esferas, incluindo aspectos sociais e econômicos. Nesse contexto, a semiótica e o pragmaticismo podem contribuir para uma melhor compreensão desses processos, tanto no âmbito do signo, ele mesmo, em vista das alterações nos suportes; do signo em relação a seu objeto, considerando-se todas as transformações nos processos de obtenção de informações, e, ainda, no plano do signo em relação a seus interpretantes, observando-se o grande impacto que as tecnologias digitais têm causado no domínio social e do pensamento. Na medida em que o jornalismo se desloca de sua configuração da sociedade de massas, caracterizada pela concentração de emissores, para a atual estrutura aberta “todos para todos” das redes informatizadas, apresenta-se uma ambiência propícia para intervenções comunicacionais com características coletivas, conforme destacamos acima, e, portanto, mais adequada à lógica da razoabilidade. A lógica dos processos de comunicação como epistemologia Finalmente, acreditamos que os debates na esfera da epistemologia da comunicação também têm a ganhar com a adoção de tal definição do campo, como formado por processos de referência a contextos que conduzem a mudanças, tendo-se em vista o caráter metalinguístico da epistemologia em relação às suas práticas de linguagem. Esse fato a torna, de saída, portadora de um estatuto marcadamente representacional e semiótico, e, daí, apta a um tratamento lógico que lhe garanta segurança quanto à excelência do raciocínio empregado. O pensamento epistemológico se desenvolve, portanto, por meio 44 Comum 36 - jul./dez. 2014 de análises ou referências ao contexto de produções teóricas comunicacionais, as quais, por sua vez, são constituídas de outras representações, ou referências, a objetos em seus diversos contextos práticos, sejam eles midiáticos, de comunicação interpessoal ou envolvendo máquinas. Também o caráter dinâmico, de mudança, da epistemologia da comunicação, decorrente das características de seu objeto, radicalizadas pela tecnologia digital, encontra abrigo em nossa caracterização da comunicação, ainda mais em vista do atual momento crítico das atuais posturas. De fato, os problemas com os quais a tarefa de construção da ciência da comunicação se debate estão a exigir mudanças de hábitos e, daí, os instrumentos fornecidos pela semiótica podem ser de grande utilidade. Além disso, a visada pragmaticista da definição proposta proporciona a possibilidade de uma compreensão mais complexa das questões metodológicas. Ao operar a partir da metodêutica, o pragmaticismo se propõe como método que articula os três tipos de raciocínio, a abdução, a indução e a dedução, e os combina com a experiência, em direção a uma compreensão dos fenômenos relacionada à lógica ou “razão” do universo. O pragmaticismo permite, assim, a proposição de um método para a própria ciência dos métodos, na medida em que parte de uma compreensão de caráter extremamente geral associada ao conceito de razoabilidade, que inclui a universalidade dessas operações, derivadas da generalidade extramental que opera no universo e que formata pensamentos e teorias. Referências ANDACHT, F. A Síndrome de Prometeu: um obstáculo no desenvolvimento do campo da comunicação. Anais do XIV Compós. Niterói: UFF/Compós (CD), 2005. FELINTO, E. 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Resumo As possibilidades abertas pelas tecnologias digitais multicódigos constituem, hoje, a base de diversas mudanças na esfera comunicacional, tanto perceptivas, nas atitudes concretas, como nos processos ideacionais, lógicos, das mentes interpretadoras. Se, por um lado, esse contexto mutante aparece como um desafio para a área, por outro oferece oportunidades para um esclarecimento crescente sobre os processos de comunicação e, ainda, de seu caráter científico frente às demais ciências. A partir daí, acreditamos que o pragmaticismo de Peirce pode ajudar a definir o papel desses processos no atual ambiente em transformação. Palavras-chave Epistemologia – Comunicação – Pragmaticismo. Abstract The possibilities created by digital technologies multicode are today the basis for several changes in the sphere of communication, since the perceptual processes, through the concrete attitudes, and also in ideational and logical processes of the interpretant minds. If, on the one hand, this changing context poses a challenge for the area, on the other provides increasing opportunities for a clarification on the processes of communication and also of its scientific character in relation to other sciences. In that sense, we believe that the Pragmaticism of Peirce can help to define the role of these processes in the current changing environment. Keywords Epistemology – Communication – Pragmaticism. Comum 36 - jul./dez. 2014 47 Excesso, esquizofrenia, fragmentação e outros contos: a história social de surgimento do videoclipe1 Ariane Holzbach Introdução O videoclipe é um audiovisual injustiçado. Apesar de fazer parte da cultura do entretenimento mundial há mais de 30 anos, ainda são poucos os estudos que se dedicam a ele. É verdade que há alguns anos, novos pesquisadores vêm demonstrando tentativas de tentar compreender esse gênero audiovisual, mas ainda contemplando poucas perspectivas. Alguns pesquisadores se concentram em aspectos relacionados à linguagem do videoclipe (Machado, 2000; Soares, 2004), outros se dedicam a entender o videoclipe no contexto da música massiva (Goodwin, 1992) e ainda outros analisam a estrutura do videoclipe e tentam encaixar seus elementos no mundo contemporâneo (Kaplan, 1992; Prysthon, 2004). Há, também, alguns estudos que procuram entender o papel cultural da MTV, a maior vitrine do videoclipe durante o seu período de solidificação (Lusvarghi, 2007; Kaplan, 2002), que problematizam a narratividade do videoclipe (Carvalho, 2006), que discutem noções de autoria no videoclipe (Barreto, 2010) e que procuram criar uma tipologia de análise do videoclipe, como propõem Barreto (2005) e Thiago Soares (2004). É interessante e sintomático observar, todavia, que praticamente nenhum estudo acerca do videoclipe se detém prioritariamente em um aspecto imprescindível para compreender o papel dele na cultura midiática contemporânea: a sua história. Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 48 a 63 - julho / dezembro 2014 48 Comum 36 - jul./dez. 2014 A história “oficial” de surgimento do videoclipe, na verdade, é velha conhecida dos que se debruçam sobre ele, mas a maneira como ela é narrada pouco oferece para verdadeiramente se compreender o papel do videoclipe no audiovisual, na música popular massiva e na cultura do entretenimento de maneira geral. Quando se põem a narrar a história do videoclipe, a maior parte das pesquisas apenas descreve o surgimento e consolidação do gênero de forma cronológica, linear e com pouca problematização provavelmente porque em geral não se tem a historicidade como foco. Quando narram a história do videoclipe, os autores costumam seguir um roteiro comum. Primeiramente, apontam-se as principais tecnologias que possibilitaram o surgimento do videoclipe (cinema, scopitone, televisão, vídeo, fonógrafo, disco etc.) bem como seu contexto histórico de surgimento. Em seguida, analisam-se a importância do rock, surgido nos anos 1950, e do surgimento de algumas experiências estéticas que se aproximam do videoclipe, como alguns filmes dos Beatles. Posteriormente, analisa-se o surgimento de novas experiências com vídeo, a exemplo da videoarte, responsável por importantes doses de experimentação que o videoclipe vai absorver, bem como a crescente importância da indústria fonográfica na indústria cultural. Nessa etapa, costuma-se analisar alguns vídeos, como Bohemian Rhapsody, da banda britânica Queen, lançado em 1975 e considerado o primeiro trabalho que verdadeiramente pode ser chamado de videoclipe, para então se analisar o surgimento e consolidação da MTV no mundo todo a partir de 1981. Com o crescimento da MTV ao redor do mundo e surgimento de videoclipes de grandes artistas como Michael Jackson e Madonna, considera-se que o videoclipe finalmente se torna adulto e passa, com isso, a de fato fazer parte da cultura do entretenimento. Apesar da importância óbvia dessas informações para compreensão do videoclipe enquanto gênero audiovisual, diversos elementos que complexificam questões relacionadas ao surgimento e desenvolvimento do videoclipe ficam de fora dessa narrativa. Por exemplo, Goodwin (1992), Kaplan (1992), Machado (2000), Soares (2004) e Barreto (2005) afirmam que o videoclipe se consolidou sendo um gênero televisivo. Mas esses mesmos estudos não se perguntam por que o videoclipe foi para a televisão e não, por exemplo, para o cinema, visto que em princípio a experiência imersiva possibilitada pelo cinema, como lembra Raymond Williams (1975) é bem maior que a oferecida pela televisão e, portanto, ofereceria uma experiência mais marcante para o espectador, o que acarretaria, em última análise, em uma maior chance de venda de discos. Além disso, desde que o cinema se consolidou, a música e Comum 36 - jul./dez. 2014 49 os músicos têm espaço significativo na grande tela, haja vista, por exemplo, a importância dos musicais e do rock para a história do cinema. Barreto chega a citar algumas experiências de vídeos musicais veiculados nas salas de cinema, os short films, e afirma que em função da Segunda Guerra Mundial e por uma questão orçamentária – vídeos musicais televisivos eram mais baratos que os cinematográficos – os short films perderam espaço. Mesmo assim, permanece a pergunta: se um formato não deu certo no cinema, por que um de seus derivados deu certo na televisão? Outro elemento vinculado ao videoclipe pouco problematizado diz respeito à sua narrativa singular. Como bem pontua Lilian Coelho (2003: 1), costuma-se afirmar que o videoclipe é dotado de uma narrativa fragmentada e “é comumente reduzido a um disparatado arranjo de imagens desconexas cuja razão de ser reside exclusivamente no apelo sensorial”. O trabalho da autora mostra que o videoclipe está longe de ter uma narrativa pautada na “esquizofrenia” e na colagem gratuita de imagens, mas tem uma narrativa constantemente presente. Outros trabalhos, como o de Carvalho (2006) também mostram que a narrativa é uma peça fundamental para a lógica do videoclipe. Contudo, essas pesquisas não têm como finalidade saber por que a falta de sentido narrativo costuma ser relacionada ao videoclipe. Assim, cria-se uma enorme lacuna nos estudos sobre o gênero que impede que se compreenda como o videoclipe dialoga com seus dois principais alicerces: os outros audiovisuais, entre eles o cinema e principalmente a televisão, e com a música popular massiva. Além disso, a falta de uma historicidade que encaixe o videoclipe em um contexto cultural mais amplo isola esse audiovisual em um campo de análise exclusivista que dificulta o seu próprio crescimento como campo de estudo. Andrew Goodwin (1992) já havia percebido a existência de várias lacunas nos estudos sobre videoclipe quando apontou, com propriedade, que os estudos do videoclipe raramente levam em conta um de seus elementos mais importantes – a música – para se concentrar apenas nos aspectos imagéticos desse audiovisual. Ao fazer essa afirmação, o autor faz uma crítica explícita a Ann Kaplan, que em alguns estudos apontou o videoclipe como a “síntese” do pós-modernismo por causa da linguagem imagética normalmente acelerada, excessivamente fragmentada e com narrativa não-linear que os videoclipes veiculados pela MTV dos anos 1980 ajudaram a consolidar. Mas a observação de Goodwin ajuda a perceber a necessidade de se conhecer de fato as apropriações que o gênero vem fazendo há mais de 30 anos. Este artigo, portanto, visa a preencher parte dessa lacuna e vai se concentrar na história de surgimento do videoclipe, mas tentando ir além do que a nar50 Comum 36 - jul./dez. 2014 rativa tradicional já descreveu. Para tanto, o artigo tenta entender melhor o contexto de surgimento do videoclipe, analisando, em um primeiro momento, a sua consolidação como gênero televisivo e a estruturação de uma linguagem “excessiva”. Posteriormente, serão analisadas duas das principais características estruturais do videoclipe: a sincronização da música com a imagem e a narrativa singular adotada por ele desde seu cerne. O objetivo deste artigo não é ser totalizante, visto que as questões levantadas são muito mais amplas e complexas do que o espaço permite e mesmo do que um único pesquisador é capaz de levantar. A intenção é apenas incentivar uma discussão necessária para que se possa entender melhor as características e o papel do videoclipe no mundo. Videoclipe, televisão e excesso Apesar de ter se tornado um produto de massa apenas a partir da década de 1980, é importante inserir o videoclipe em um contexto anterior, quando novas formas de comportamento social começaram a surgir, preparando os indivíduos para o aparente excesso informacional que estrutura o videoclipe desde seu cerne. Autores como Ben Singer e Richard Sennett lembram que a virada do século XIX para o XX foi marcada por uma mudança radical na paisagem urbana do Ocidente que modificou, sobretudo, a experiência sensorial dos indivíduos. Singer (2001), em particular, afirma que com o surgimento de diversos aparatos tecnológicos que encurtaram distâncias (bonde), modificaram a rotina das famílias (energia elétrica), mudaram a comunicação interpessoal (telefone), entre outros, provocaram um “hiperestímulo”, ou seja, um excesso de novas sensorialidades que em muitos casos chegava a ser insuportável. O autor analisa textos e imagens da imprensa da época para mostrar como o excesso de novos estímulos criou no imaginário social a ideia de que a cidade é um lugar caótico, amedrontador e abarrotado de informações. Richard Sennett (1977), por sua vez, afirma que esse período histórico trouxe novos paradigmas sociais. O crescimento populacional concentrado principalmente nos grandes centros urbanos, o aumento da expectativa de vida e a imigração de jovens e solteiros solitários para cidades como Paris, Londres e Chicago incentivaram o surgimento de novas formas de comércio, novas formas de consumo e um novo comportamento humano pautado especialmente na individualização, causando uma crise ou um declínio na importância social do espaço público. O interior das casas, que protege os indivíduos do Comum 36 - jul./dez. 2014 51 caos do mundo exterior, e a intimidade passam a ser vistos como elementos sociais fundamentais. Nesse sentido, as tecnologias de comunicação como cinema, rádio e televisão vão intensificar essas novas experiências e ajudar a modificar a relação dos indivíduos com o ambiente e auxiliá-los, simultaneamente, a encarar esse novo mundo. A televisão, em particular, supre parte dessa necessidade social de individualização e vai oferecer entretenimento e informação no interior das residências, ou seja, longe do caos urbano. Apesar de ter surgido apenas entre as décadas de 1920 e 1940, a televisão tem uma história cultural que antecede o surgimento do seu suporte e, também, do seu conteúdo. Raymond Williams (1975), um dos mais importantes pensadores da televisão broadcasting, afirma que a imagem em movimento feita a partir da tecnologia do tubo de imagem foi apenas a conclusão de uma história pouco documentada, mas fundamental para entender os rumos que a televisão tomou como meio noticioso e de entretenimento. Para ele, a necessidade de se ter televisão se evidenciou na segunda metade do século XIX, quando importantes acontecimentos sociais, dentre os quais aqueles narrados por Sennett e Singer, mudaram a forma de as pessoas encararem o mundo ao seu redor. Dentre esses acontecimentos, três são particularmente importantes: a necessidade de individualizar experiências anteriormente coletivas, problemas de transporte em um mundo afetado pelo crescimento populacional descontrolado e pelos veículos motorizados e, finalmente, a tendência em levar para dentro de casa a experiência de entretenimento consolidada pelo cinema e, anteriormente, pelo teatro. Ainda no que concerne às novas experiências sensoriais consolidadas a partir do século XIX, há ainda uma em especial enfatizada no século XX e que vem ganhando novo fôlego neste início de século XXI: as novas audibilidades que surgem nos centros urbanos especialmente a partir do surgimento das várias tecnologias da comunicação e da maior industrialização do mundo. Pereira, Castanheira e Sarpa (2010) destacam que uma das mais importantes consequências ocasionadas a partir das mudanças sociais consolidadas no século XIX diz respeito às novas formas de percepção dos sons que vêm mudando a própria definição do conceito de música. Conceitos como os de ruído e de instrumento musical sofrem uma problematização com o surgimento, por exemplo, do movimento noise2 e da música eletrônica. As novas sonoridades vindas de carros motorizados, máquinas e novos instrumentos musicais, como a guitarra elétrica3, vão mudando a paisagem sonora de forma que a vida social acaba sempre, em alguma medida, preenchida por 52 Comum 36 - jul./dez. 2014 novas sonoridades. O “excesso” sonoro, assim, passa a integrar a vida social. Todo esse cenário de mudanças tecnológicas e culturais mostra que o início do século XX vai assistir à consolidação de alguns dos elementos a partir dos quais o videoclipe vai se estruturar mais adiante: o excesso de informação oferecendo múltiplas experiências sensoriais, tanto no campo sonoro quanto visual, e a experiência de consumo íntima e individualizada de entretenimento hegemonizada pela televisão. O excesso de informação que estrutura o videoclipe é praticamente um consenso entre os estudiosos do campo, embora normalmente esse excesso seja atribuído apenas à edição rápida e fragmentada das imagens, feita muitas vezes com cortes bruscos e acelerados. Thiago Soares (2004) sintetiza essa ideia de excesso e fragmentação ao intitular seu livro Videoclipe, o elogio da desarmonia, numa alusão ao aparente uso desorganizado e aleatório dos elementos constituintes do videoclipe. O autor lembra que a palavra “clipe”, que em muitos casos serve de sinônimo para “videoclipe”, dá ideia de pinça, corte, seleção, como se as imagens do videoclipe fossem “pinçadas” e posteriormente reunidas para transmitirem a imagem ideal do músico. Ocorre que como bem pontuam alguns estudiosos recentes do videoclipe, como o próprio Soares e como Barreto (2010), a música é um elemento tão fundamental quanto as imagens referentes a ela no videoclipe. Sendo assim, os cortes fragmentados e acelerados, a edição rápida e o excesso imagético só são possíveis porque como estrutura, o videoclipe utiliza a edição das imagens de forma a seguir o ritmo musical. As batidas da música, a regularidade com que a estrutura da letra aparece (quantidade de refrão, o tempo da introdução, o tamanho e a quantidade das estrofes etc.) e o tempo musical são essenciais para a criação e edição das imagens. Dessa perspectiva, a imagem é submissa à música e seu uso “excessivo” só é possível porque, culturalmente, a “descrição” das músicas no videoclipe se dá a partir do excesso imagético. A questão que se coloca aqui é entender por que, em determinando momento do século XX, começou-se a descrever determinados tipos de música através de imagens. É o que se pretende discutir a seguir. Videoclipe e a sincronização da música com a imagem Sabe-se que as tecnologias de reprodução visual e as de reprodução sonora foram criadas separadamente. De um lado, a fotografia e o cinema surgiram para gravar imagens estáticas ou em movimento. De outro, o fonógrafo, Comum 36 - jul./dez. 2014 53 o gramofone e o vinil tinham como função principal reproduzir os sons, particularmente o que a cultura do início do século XX considerava música. Contudo, é interessante observar que em pouco tempo o que essas tecnologias reproduziam – a música e a imagem – passaram a ser usadas em conjunto, transformando-se em elementos complementares no audiovisual. O cinema, nesse contexto, foi a primeira tecnologia a unir o som com a imagem. Como afirma Tony Berchmans (2006), apesar de mudo, o cinema já nasceu atrelado à música. Quando esse gênero ainda dava seus primeiros passos, rapidamente descobriu-se a necessidade de orquestras ou músicos ao vivo “completarem” a experiência visual fazendo performances musicais enquanto o filme se desenvolvia. O autor descreve que a partir de 1914 grandes cinemas contratavam orquestras para acompanhar as sessões noturnas de filmes. Compositores famosos de trilhas sonoras como Max Steiner, compositor da música da primeira versão de King Kong (1933), trabalharam como regentes de orquestras do cinema mudo antes de se especializarem na produção de trilhas sonoras. A harmonia entre música e imagem no cinema era tão intensa que rapidamente, quando o cinema tinha pouco mais de 30 anos, em 1927, uma experiência de união de som e imagem transformou para sempre a sétima arte: considerado o primeiro filme falado da história, The Jazz Singer era lançado nas telas de cinema4. Como o próprio título leva a crer, o filme não apenas traz diálogos sincronizados como tem na música um elemento importante da história. É claro que a elaboração de um filme musical facilita a sincronização sonora e imagética, mas não deixa de ser sintomático o primeiro filme a usar a sincronização ter como protagonista um cantor de música popular. É interessante destacar que essa intensa união entre música e imagem, que vem desde o surgimento do cinema, não é um uso dado a partir das possibilidades da tecnologia, e sim um uso transformado pelas necessidades sociais. Afinal, a sincronização até hoje, no cinema, é bastante complexa e requer uma pós-produção. Filmes de grande orçamento normalmente fazem primeiramente a captação das imagens e só posteriormente inserem o som, incluindo a trilha sonora e os diálogos dos personagens. No videoclipe, a pós-produção para criar a sincronização é uma regra desde seu surgimento. A união desses elementos por meio da tecnologia certamente tem várias causas, e aqui serão destacadas algumas delas. Sabe-se que em muitos aspectos a estrutura física dos cinemas é inspirada no teatro, a forma cultural que por vários séculos foi hegemônica no Ocidente. E o teatro sempre utilizou, além da imagem dos artistas, vários 54 Comum 36 - jul./dez. 2014 recursos sonoros – além das vozes – para contar suas histórias. Filipe Salles (2002) lembra que na obra Poética, Aristóteles define a “melopeia” – arte de acompanhar com música uma récita qualquer – como um dos elementos constitutivos da tragédia grega, reforçando que a necessidade de se contar histórias usando música com imagem é milenar. A estrutura das primeiras trilhas sonoras, inclusive, foi bastante inspirada nas óperas (Berchmans, 2006), um gênero artístico extremamente musical. O audiovisual, portanto, adaptou em seu meio uma característica social consolidada. O videoclipe é devoto da sincronização inventada no cinema e da importância da música vinda com a invenção da sétima arte, mas não utiliza a sincronização como os filmes cinematográficos. Isso porque em geral, no cinema, a imagem e a história são protagonistas, enquanto à música cabe um papel secundário, de complementação: “ela [a música no filme] deve auxiliar a narrativa, seus personagens, seu ritmo, suas texturas, sua linguagem, seus requisitos dramáticos” (Berchmans, 2006: 20). Ao contrário do que ocorre normalmente em outros audiovisuais, não é possível conceber o videoclipe sem música, até porque ela necessariamente o precede. Se nos filmes a música é um elemento secundário, que serve para intensificar o significado das imagens, no videoclipe ambos são necessariamente interdependentes5. Esse tipo de sincronização que transforma música e imagens em elementos interdependentes começou logo que as tecnologias possibilitaram essa união, novamente mostrando as necessidades sociais por trás de cada nova invenção tecnológica. A partir dos anos 1920, alguns artistas passaram a fazer experiências usando as tecnologias áudio e visuais. Nesse período, pode-se destacar o trabalho de Oskar Fischinger6, artista alemão que desenvolveu diversas experiências com animação no audiovisual. Dentre sua extensa obra, que conta com trabalhos para a Paramount e para a Walt Disney, Fischinger criou vários curtas-metragens abstratos que visavam a transformar músicas instrumentais em imagens concretas. Ele se inspirou no pensamento budista para afirmar que “todas as coisas têm um som, mesmo que a gente comumente não ouça” (Moritz, 2004: 78). Com isso em mente, suas obras audiovisuais, chamadas por ele de Visual Music films, foram criadas a partir de músicas pré-existentes e seguindo as suas características. Se, por exemplo, a música fosse acelerada, as imagens se movimentavam ou modificavam sua forma rapidamente; se, ao contrário, a música fosse lenta, as imagens também se desenvolviam lentamente. O que mais chama atenção no trabalho de Fischinger no que concerne ao videoclipe é que suas experiências em geral tentavam dar formas geométricas Comum 36 - jul./dez. 2014 55 e cores específicas (quando já era possível fazer filmes coloridos) para cada instrumento musical sem, contudo, se preocupar em formar uma narrativa clássica. As imagens simplesmente aparecem e desaparecem ao som da música, sem contar uma história. Trata-se, notoriamente, de uma alternativa ao audiovisual que se desenvolvia no cinema e uma experiência nova de uso da música e da imagem que vai, inclusive, encontrar um amplo espaço na videoarte a partir dos anos 1960. Mas é, sobretudo, um gênero artístico que começa a evidenciar uma das principais características do videoclipe: a despreocupação em seguir a narrativa clássica. Videoclipe e narrativa Como afirmado no início deste trabalho, a não-linearidade narrativa é uma importante característica do videoclipe e vários estudos já apontaram isso. Em geral, como fazem Coelho (2003) e Carvalho (2006), os estudos analisam os vários tipos de narrativas presentes no videoclipe numa tentativa de evitar que o gênero seja visto como um audiovisual desprovido de sentido. Em muitos casos, afirma-se que há vários videoclipes que seguem a narrativa clássica ou boa parte dela, como se a linearidade narrativa fosse sinônimo de inteligibilidade. Ocorre que, como bem pontua Vernallis (2007), a descontinuidade do videoclipe é, na verdade, uma de suas características estruturais mais importantes, e é ela uma das grandes responsáveis para que o gênero seja reconhecido enquanto tal. Indo além, a autora afirma que a descontinuidade narrativa das imagens do videoclipe pode servir para que a atenção recaia sobre a música, ou seja, ela teria uma função estrutural intrínseca ao gênero relacionada à música que lhe deu origem. Ainda quando Oskar Fischinger e vários outros artistas inseriam no imaginário social a ideia de que músicas poderiam ter imagens, a partir dos anos 1930 novas experiências se aproximaram ainda mais da narrativa singular que o videoclipe vai apresentar. Primeiramente, como afirma Rodrigo Barreto (1930) os short films, pequenas filmagens de três a oito minutos feitas em estúdio e com a presença do cantor, oferecem uma forma diferente de consumo musical: aliando-a ao cinema, já que os short films eram veiculados antes dos filmes. O formato chegou a veicular apresentações de cantores como Billie Holiday e Bing Crosby, mas a partir da Segunda Guerra Mundial, deixou de ser produzido. Amy Herzog (2007), por sua vez, lembra que a Panoram Soundie, também chamada apenas de soundie, pode ser considerada uma das primeiras 56 Comum 36 - jul./dez. 2014 experiências audiovisuais de massa em que uma música recebia imagens e, mais do que isso, o intérprete da canção se apresentava enquanto tal. Durante sete anos, a Sounding Distributing Corporation distribuiu cerca de duas mil cabines musicais em bares, estações de trem e outros pontos públicos dos Estados Unidos nos quais o usuário depositava 10 centavos de dólar e assistia à apresentação de algum artista e de sua música através de uma tela. Os vídeos tinham poucos minutos de duração e abarcavam uma grande variedade de gêneros musicais que iam desde swing, baladas românticas e música country até cantores de jazz, havaianos e latinos. Ao contrário do que ocorria com outras jukebox, ao colocar a moeda na soundie, o usuário não escolhia a música que queria ouvir; isso ficava a cargo da própria máquina, que veiculava os vídeos em looping ou, deslocando a expressão de Raymond Williams da televisão para as soundies, em fluxo. Esse tipo de consumo de vídeos musicais é bastante parecido ao que se viu na televisão, uma vez que nos anos 1980 e 1990 o telespectador praticamente não tinha autonomia para escolher o videoclipe da programação televisiva, e este era veiculado num fluxo contínuo. Em geral, o conteúdo veiculado nas soundies se limitava a performances simples do cantor ambientadas em cenários com poucos detalhes e, com o início da Segunda Guerra Mundial, conflitos com união de músicos e concorrência com outras formas musicadas de entretenimento, a experiência não se sustentou. Mas o seu razoável sucesso demonstra que já estava enraizada socialmente uma nova experiência de consumo musical complementada pelo audiovisual, e isso pelo menos 10 anos antes da televisão começar a se tornar hegemônica. Se com os short films o espectador era levado a consumi-los se quisesse assistir ao filme, as soundies possibilitaram um consumo espontâneo por parte do consumidor. Além disso, em termos de linguagem, as soundies incentivaram uma forma bastante específica de “descrição” musical: a maior parte dos vídeos narra a canção e o artista aparece dublando e interpretando o que a letra diz7, um elemento extremamente comum das narrativas dos videoclipes contemporâneos. Nas soundies, o artista é o foco da câmera e não há necessidade de seguir a narrativa clássica. Com isso, o ouvinte podia ter uma experiência ampliada em relação ao que as rádios e os vinis ofereciam, visto que o artista aparecia em ação. Como afirmam Barreto e Herzog, o advento da Segunda Guerra Mundial e o aparecimento da televisão foram cruciais para o desaparecimento dessas experiências. Todavia, tendo em vista que outros formatos de entretenimen- Comum 36 - jul./dez. 2014 57 to musical e audiovisual, como o rádio e o cinema, continuaram mesmo no período pós-guerra e durante o crescimento da televisão, propõem-se ampliar essa justificativa. Em que medida, nesse sentido, a televisão de fato “roubou” o espaço de formatos como soundies e short films? Norma Coates (2007) analisa a consolidação do rock como fenômeno cultural e a importância que a televisão teve nesse contexto. De acordo com a autora, logo que a televisão começou a ser considerada uma tecnologia relevante de comunicação, ou seja, bastante vendável, os programas de auditório se instalaram e obtiveram muito sucesso. Ela lembra que o dia 6 de janeiro de 1957, quando Elvis Presley se apresentou pela terceira vez no antológico The Ed Sullivan Show, é considerado o nascimento do rock na televisão mundial. A partir desse período, a música popular massiva, liderada pelo rock, começou a ser exaustivamente veiculada na televisão, e isso teve um enorme impacto no crescimento do rock, que dava seus primeiros passos, e da música massiva em geral. A presença de artistas de rock nos programas televisivos ocorreu, ainda de acordo com Coates, devido à enorme aceitação do público para com esses artistas, sobretudo do público adolescente. Tanto que o próprio Ed Sullivan não gostava de Elvis e chegou a afirmar publicamente que jamais convidaria o cantor “imoral” para seus palcos. Isso até ver sua audiência migrar para o concorrente The Steve Allen Show quando Elvis se apresentou ali e ajudou o programa a ficar em primeiro lugar na audiência. O sucesso da união entre televisão e rock firmou um pacto simbólico entre as gravadoras e as emissoras de televisão. Se a audiência era significativa, ambas as instituições ganhavam com isso. E se até o momento os formatos de vídeos musicais estavam apenas sendo testados, na televisão o teste se mostrou mais do que eficaz. E essa aceitação tem menos relação com a tecnologia e mais com a aceitação do público, que finalmente encontrou um formato de exposição de seus artistas preferidos que poderia ser consumido no conforto do lar e de forma gratuita. As apresentações dos grupos de rock na televisão foram muito importantes para que o público se acostumasse a consumir música pela televisão, o que foi essencial para a consolidação do videoclipe anos mais tarde. Além disso, outro elemento pode ser adicionado à linguagem que o videoclipe vai incorporar a partir das apresentações desses artistas nos programas de auditório: o close de câmera com destaque para o vocalista e para os demais integrantes das bandas. Coates afirma que quando Elvis começou a se apresentar na televisão, Ed Sullivan ficou tão chocado com o excesso de rebolado do cantor que 58 Comum 36 - jul./dez. 2014 obrigou seus cinegrafistas a filmarem sua performance apenas da cintura para cima, numa tentativa de “proteger” as famílias norte-americanas do apelo sexual de Elvis. Com isso, percebe-se que em várias apresentações, as câmeras focam demoradamente o rosto do vocalista ou a performance de bateristas e guitarristas, recurso que se tornou comum não apenas nas apresentações de músicos na televisão, mas principalmente nos videoclipes8. Com a consolidação da música na televisão, ainda houve tentativas de transformar os vídeos musicais em algo a ser contemplado coletivamente em ambientes públicos. Nos anos 1960, por exemplo, nasceram as scopitones. De fabricação francesa, cada uma dessas máquinas abrigava 36 títulos de vídeos filmados em 16 mm. A estética dos vídeos, bem mais complexa que a das soundies, tem vários elementos que o videoclipe vai absorver, como a presença constante de coreografias e o artista encarando a câmera, ou seja, o espectador. Em 1964, descreve Herzog (2007), a empresa Chicago Tel-A-Sign começou a fabricar scopitones em solo norte-americano. Apesar desse investimento, contudo, a experiência não se mostrou eficaz e, no final da década de 1960, elas já não faziam mais sucesso. Até hoje, os videoclipes são consumidos em bares, festas, casas noturnas e outros ambientes exteriores às residências, mas é interessante observar que esses usos não se tornaram hegemônicos9. Considerações finais O videoclipe é um dos audiovisuais mais intrigantes da atualidade. Isso ocorre não porque ele seja “melhor” ou “pior” que outros produtos culturais, e sim porque quando se comparam os estudos desse audiovisual com outros, como o cinema e o vídeo, percebe-se que, embora proeminentes, ainda são tímidos os estudos que se dedicam prioritariamente ao videoclipe, e isso faz com que pouco se conheça dele. Essa falta de pesquisa talvez tenha como principal consequência o surgimento de juízos de valor que transformam o videoclipe em um produto audiovisual limitado, “esquizofrênico” e desprovido de sentido. Muitas vezes seus elementos mais importantes e que o transformam em um produto único são considerados “defeitos”, pouco auxiliando para compreensão do videoclipe na cultura contemporânea. Este artigo tentou ir de encontro a essa ideia e, para isso, fez uma análise social de surgimento de algumas das principais características que moldaram o videoclipe antes de seu surgimento oficial, em meados da década de 1970. Foi possível perceber que a estrutura desse audiovisual está intrinsecamente Comum 36 - jul./dez. 2014 59 ligada ao desenvolvimento social que começou a se consolidar no século XIX, com destaque para as novas sonoridades e sensorialidades que afloraram nesse período. As novas experiências e necessidades sociais ajudaram a fazer do videoclipe um produto permeado pelo “excesso” imagético, que encontrou na televisão um ambiente propício, rapidamente aceito. Além disso, esse novo ambiente possibilitou que o videoclipe se consolidasse como um audiovisual de narrativa singular – comumente tida como “fragmentada”, “acelerada” – e que utiliza o som e a imagem de forma bastante particular, sem hierarquizar nenhum dos dois elementos. Notas 1. Parte do artigo foi apresentada no GP Televisão e Vídeo do X Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2. Segundo os autores (2010: 4): “normalmente engloba-se sob o termo uma série de subgêneros musicais como o noise japonês, o power electronics, a primeira onda do movimento industrial, o harsh noise, dentre outros. (...) Embora tais gêneros possuam características que os distinguem, em todos encontramos um mesmo modelo de abordagem sonora, visando atingir o corpo em seus limites de suportabilidade a estímulos auditivos”. 3. Rebecca Mcswain (2002) analisa detalhadamente o surgimento e a importância da guitarra elétrica para a música do século XX afirmando que em pouquíssimo tempo (cerca de 20 anos) a guitarra elétrica se tornou elemento fundamental da música pop, especialmente nos Estados Unidos, onde floresceu, e trouxe uma nova sonoridade à música, ajudando a mudar a cultura musical mundial. 4. Dirigido por Alan Crosland e interpretado por Al Johnson, uma estrela da comédia e da música da época, o filme narra a vida de Jakie Rabinowitz, que vai de encontro às tradições de sua família judia e cai no mundo em busca do sonho de ser um famoso cantor de jazz. 5. Neste artigo, o cinema é tratado de maneira generalizada e ampla, visto que em alguns de seus gêneros, como os musicais, a música é essencial para transmissão de significado, como ocorre com o videoclipe (Allan, 1990). 6. Algumas de suas principais obras podem ser conhecidas no endereço http://www.oskarfischinger.org/. Acessado em março de 2014. 7. Veja-se, por exemplo, a performance de Clink! Clink! Another Drink!, (1942) de Spike Jones and His City Slickers. O vídeo pode ser visto no endereço http://www.youtube.com/ watch?v=ijnfdLFhn2o. Acessado em março de 2014. 8. Não se está afirmando que os programas de auditório são os únicos responsáveis pela utilização desses recursos de câmera. Contudo, levando em conta a harmonia entre rock e televisão que está sendo descrita, é possível sugerir que o uso desses recursos na televisão ajudou de forma mais significativa a impulsionar o seu uso nos videoclipes. 9. Atualmente, o consumo dos videoclipes vem sendo reconfigurado, sobretudo em função das novas tecnologias (internet, celular com televisão etc.). Este artigo, contudo, não contempla o sistema contemporâneo de produção e consumo de videoclipes. 60 Comum 36 - jul./dez. 2014 Referências ALLAN, Blaine. Musical Cinema, Music Video, Music Television. In: Film Quartely, v. 43, n. 3, 1990, p. 2-14. BARRETO, Rodrigo Ribeiro. A fabricação do ídolo pop: análise textual de videoclipes e a construção da imagem de Madonna. Dissertação de mestrado. UFBA, 2005. __________. Do contexto produtivo às obras: autoria, campo e estilos nos videoclipes. In: SERAFIM, José Francisco (Org.). Autor e autoria no cinema e na televisão. Salvador: EDUFBA, 2009. BERCHMANS, Tony. 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In addition to reviewing some of the historical events considered essential to give the basis that the music video became from the 1970s, this paper will examine the origins of some of the main structural characteristics of it: its television side, the very specific synchronization between sound and image, and the development of its particular narrative. Keywords Music video – Television – History. Comum 36 - jul./dez. 2014 63 Nas paragens de Péter Forgács, a memória em movimento Geraldo M. P. Mainenti Introdução A maior parte da pesquisa para esse trabalho foi concentrada no filme O turbilhão: uma crônica familiar (1997), de Péter Forgács 1. Assim como outros filmes, entre os 39 que compõem a obra cinematográfica de Forgács, O turbilhão retrata a vida cotidiana de uma família burguesa judia europeia, durante os anos que antecederam à Segunda Guerra Mundial até à década seguinte ao fim do conflito. Bill Nichols2 observa que os filmes de Péter Forgács – construídos a partir da reorganização de material de arquivo – “não tem como objetivo polemizar, explicar ou julgar; ao contrário”. De acordo com Patrícia Rabello, Nichols acredita que eles procuram evocar um sentido para experiências passadas, de forma a retomá-las como um eco do seu futuro – as grandes tragédias que abalaram a primeira metade do século passado (Rabello, 2012: 6). Nichols aponta para o fato de que (...) através da música estranhamente vigorosa de Tibor Szemzö, comentários lacônicos, zooms e panorâmicas, coloração do filme, velocidade lenta, parada da imagem e oratório (utilizado para articular os detalhes das leis que limitavam a participação Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 64 a 78 - julho / dezembro 2014 64 Comum 36 - jul./dez. 2014 na vida pública através da “denominação israelita”), todos em evidência no filme OTurbilhão, por exemplo, Forgács transforma imagens recuperadas em um vivido olhar sobre um mundo perdido (Forgács e Nichols, 2012: 12). Forgács produz filmes “que escolhem se orientar pela produção de questionamentos, em detrimento da formulação de respostas; e que optam por sublinhar a complexidade do conhecimento sobre o mundo através de uma ênfase nas dimensões subjetivas e afetivas” (Rabello, 2012: 6). O campo discursivo por onde circulam os documentários e filmes de ficção de Peter Forgács é um dos mais prolíficos e sintomáticos da produção atual. A principal preocupação desta forma de cinema é a construção do pensamento como obra. Em uma aproximação foucaultiana, poderíamos dizer que se trata de uma narrativa que busca compreender afetos e processos produzidos na rede de conexões entre elementos, objetos e situações que modulam e modelam uma sociedade (Rabello, 2012: 6). Parar sem parar, o instante cinematográfico de Forgács Em trocas de e-mail com Nichols, Forgács estabeleceu sete regras para o jogo dele, “um jogo de costurar retalhos” (patchwork): Primeiro: nenhuma tautologia de significados e nenhum uso de fatos como ilustração. Segundo: encontrar a magia inconsciente desses rolos de filme de família, a magia da recontextualização, camada após camada, para sentir a intensidade gráfica de cada quadro. Terceiro: quero fazer filmes para meus amigos, o grupo de referência: “Olhe o que encontrei para você”, enquanto eu descasco o material de base até suas raízes. Quarto: não explicar ou educar, mas envolver, absorver o espectador o tanto quanto possível. Quinto: se endereçar à parte mais inconsciente, sensível, inexprimível, tangível, mas, na maioria das vezes, silenciosa do espectador. Sexto: deixar a música orquestrar e comandar a história emocional. Sétimo: precisei aprender a escutar minha própria frágil voz interior, o guia da criação – se eu puder afugentar, ou reduzir, o ruído no canal (Forgács e Nichols, 2012: 19). Comum 36 - jul./dez. 2014 65 O estilo de Péter Forgács se distingue por procedimentos tópicos de processos reflexivos, segundo Patrícia Rabello (2012: 7): narracão em linguagem poética, cartelas, repetições, fusões, trilha sonora minimalista, cortes rápidos alternados a diminuicão da velocidade das cenas, coloração de pedaços de filme (azul, sépia) e paradas na imagem. Consuelo Lins (2012: 103) ressalta que a mistura entre o que nós sabemos da história e o que ainda não sabem os personagens filmados é o que há de mais perturbador nos filmes de Forgács. Por isso, Lins afirma que não são poucos os momentos em que sentimos vontade de gritar para os personagens: Fujam! A retomada dessas imagens é um gesto artistico e político que dissolve as funções originais do material – filmes de família para serem vistos pela família, visando o fortalecimento dos laços e a continuidade do grupo – em favor de novas configurações e sentidos. As imagens deixam de estar a serviço da memória familiar para se tornarem testemunhas da história, compartilhadas, produzindo experiências inéditas para um público de anônimos (Lins e Blank, 2012: 104). Para Forgács (2012: 12), o filme de família representa um mundo diferente, por não ter sido planejado para o olhar público. E diz que o “outro aspecto da intimidade em relação a esses filmes de família é a técnica da colagem, como o clássico procedimento de recontextualizar”: O nível metafísico do sentido pede liberdade para mexer, alterar, editar, combinar e reajustar o sentido original em relação ao novo contexto. Encontrar as imagens por trás da superfície. Todos os três aspectos são embaraçosos e fascinantes ao mesmo tempo. Como posso abrir o privado e o íntimo, as filmagens-não-feitas-para-o-olhar-público, para um contexto mais amplo? A psicanálise do filme diário percebe. Eu tenho que ser moderado para manter a distância correta (Forgács e Nichols, 2012: 12). Mexer, alterar, editar, combinar e reajustar... todas essas ações estão intrinsecamente ligadas à montagem, que Giorgio Agamben (1998: 64) afirma ser o caráter mais próprio do cinema. Ele pergunta: “Mas o que é a montagem, ou antes, quais são as condições de possibilidade da montagem?” E explica: “Em 66 Comum 36 - jul./dez. 2014 filosofia, depois de Kant, chama-se às condições de possibilidade de alguma coisa os transcendentais”. Agamben pergunta de novo: “Quais são então os transcendentais da montagem?” Ele mesmo responde: Existem duas condições transcendentais da montagem: a repetição e a paragem. A paragem é o poder de interromper, a “interrupção revolucionária” de que falava Benjamin3. É muito importante no cinema, mas, mais uma vez, não apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a narração, a prosa narrativa, com a qual se tem tendência a comparar o cinema. A paragem mostra-nos, pelo contrário, que o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa. (...) Por isso Valéry4 pôde uma vez dar ao poema esta definição tão bela: “O poema, uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”. Poderíamos retomar a definição de Valéry e dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que é uma hesitação prolongada entre a imagem e o sentido. Não se trata de uma paragem no sentido de uma pausa, cronológica, mas antes de uma potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para a expor enquanto tal (Agamben, 1998: 64,78). O congelamento de imagem, segundo observa Raymond Bellour (1997: 131), serve de suporte à busca obstinada de um outro tempo, de uma falha no tempo na qual o cinema moderno (do tempo que nasce após a guerra e da guerra, com o neo-realismo e a Nouvelle Vague) talvez tenha se lançado em busca de seu mais íntimo segredo. Bellour (1997: 128) define o congelamento da imagem como sendo a interrupção do movimento, “o instante quase sempre único, fugidio, mas talvez determinante, no qual o cinema dá a impressão de lutar contra seu princípio, se o definimos como imagem-movimento”. No cinema primitivo, que descobriu o movimento dos corpos, é claro que o congelamento da imagem seria dificilmente concebível. Em compensação, na medida em que o cinema se desenvolveu, o congelamento se tornou uma de suas figuras possíveis. É o que vemos em Vertov, talvez o primeiro a praticá-lo em grande escala, em Um homem com uma câmera (1929), como, de outra Comum 36 - jul./dez. 2014 67 forma, em René Clair, no seu famoso Paris qui dort (1924). (...) Parece-me, porém, que o congelamento da imagem foi uma das formas de tratar livremente um tempo de cinema apaixonado pela conquista dos seus movimentos. (...) Procurando situar as decomposições de Salve-se quem puder (a vida), Godard5 qualificou bem a possibilidade, própria do cinema mudo, de variar a velocidade de seu movimento aparente. Instigado pelo desejo de “outras velocidades”, ele só podia desacelerar o movimento e fixá-lo onde o cinema, por ser mudo e novo, estava livre para metamoforseá-lo (Bellour, 1997: 130). Andrea França (2012: 88), além de destacar o envolvimento emocional provocado por Forgács, em seus filmes, que convoca o espectador a se incumbir (imaginariamente) de uma parte da mise-en-scène das imagens do passado, a se virar com os fragmentos (de filmes, de diários, de gestos, de vozes) que lhe são oferecidos”, aponta, entre esses elementos, o procedimento de congelar certas imagens, (...) especialmente quando o olhar de alguém se dirige à câmera, quando os olhares (frequentemente cúmplices, íntimos, familiares) de quem está por trás e diante da câmera se encontram e, portanto, nos encontram hoje. E possível imaginar um olhar correspondido que atravessa as épocas? Uma reciprocidade entre passado e futuro sem data marcada para acontecer, mas que eventualmente se revela? O encontro de um futuro com aquilo que o passado nessas imagens ocultara? A técnica do congelamento carrega, a princípio, a força da interrupção, nem sempre brusca, mas sempre contundente; na maior parte das vezes em que é usada por Forgács, sugere justamente o inverso – invertendo não somente o sentido tradicional, mas fazendo contorcer-se em pensamento o espectador, na busca por compreender o que parece incompreensível. Em seus filmes, Forgács se utiliza das paragens para, num incessante vai-e-vem temporal, nos remeter ao passado e nos devolver ao presente, futuro das imagens, como espectadores privilegiados de uma história conhecida em seus aspectos gerais e, ao mesmo tempo, como espectadores angustiados, pela possível descoberta da história específica daqueles perso- 68 Comum 36 - jul./dez. 2014 nagens, remontada pela mão criativa e o coração inquieto do cineasta, que ali se instala também como mais um espectador. E o lugar do espectador é sempre um exercício de subjetividade, nos aponta Jean-Luc Comolli. A mão do espectador é central: convicção, dúvida, ilusão. Sem espectador, o cinema não está, morreu – o que pode servir para a totalidade dos documentos audiovisuais (e talvez de todos os tipos de documentos). Se não houver nenhuma vontade humana, nenhuma preocupação social que lhe dê suporte, o documento permanecerá mudo, surdo e cego (Comolli, 2008: 6). Documentarista-espectador-montador, Forgács, quase sempre não dá, às paragens que provoca, o sentido a que estamos acostumados, em edições clássicas de filmes e vídeos. Vai além do instante fotográfico, congelado no tempo, e nos remete, em um movimento emocional constante, interruptível, à alma dos personagens, ainda que através de sua imagem estática, mas movimentada pela história de seus dramas. Bellour questiona se o congelamento da imagem – ou o congelamento na imagem, como também encontramos referência – “com a ambiguidade peculiar que faz com que interrompa o movimento aparente, sem com isso suspender o movimento fundado no decurso automático das imagens, não passaria de um instante privilegiado entre outros, isto é, de um instante qualquer?” E acrescenta: “Ou seria ele um instante privilegiado já não mais tão qualquer?” (Bellour, 1997: 129). Esses tempos de parada (que, entretanto, dão a impressão de estar soldados entre si) designam um ponto de fuga: ele nasce da divisibilidade própria do espaço, quando se atenta contra a continuidade e contra a ilusão de seu movimento natural. Num certo sentido, essa divisibilidade vai além do fotograma, pois supõe um espaço entre os fotogramas, embora seja no fotograma que ela encontra o seu limite material, quando se sai do filme e do seu tempo de projeção. Quando permanecemos nesses limites, é uma espécie de fotograma mental, virtual, que se vê então projetado, uma imagem de imagem, deixada ao critério do espectador apesar de programada a todo momento pelo filme. Mas isso não basta. Não podemos nos limitar à forma abstrata desses momentos, Comum 36 - jul./dez. 2014 69 é preciso pensar também o que designam. Sua força reside paradoxalmente no fato de serem extraídos do neutro, das casualidades da vida, e do tempo, de serem realmente momentos quaisquer. Ao mesmo tempo eles designam, contudo, um espaço que não pode ser isolado (Bellour, 1997: 145). Nas montagens de Forgács, quase sempre, é congelada apenas a imagem física, não sua carga de sentidos, que faz remissão à memória. Ao contrário, essas emoções despreendem-se da imagem congelada diante de nós, para formar, em nosso pensamento, em nossas lembranças, em nossas dúvidas acerca daquela imagem, novas imagens e sensações de um mundo íntimo, desconhecido, instigante, mas que, ao mesmo tempo, é historicamente conhecido, tragicamente conhecido – e faz-nos mergulhar na busca desesperada de um remédio tardio ao que é transcedentalmente irremediável. “A imagem excessivamente fixa, a suspensão do tempo demasiadamente visível, remete-nos inexoravelmente à perda e à morte”, afirma Bellour (1997: 151). O filme O turbilhão registra momentos de vida e morte de uma família burguesa judaica holandesa, os Peereboom, nas décadas de 1930 e 1940. Da mesma forma que somos testemunhas da alegre e descontraída reunião familiar na laje da casa nova e de uma feliz viagem a Paris, a passeio, na véspera da invasão da Polônia pela Alemanha, somos convidados a nos reunir com a família, três anos depois, na sala da casa, na última noite antes de todos seguirem para o que naquele momento acreditavam ser um “campo de trabalho”. 70 Comum 36 - jul./dez. 2014 Ficamos, pelas mãos de Forgács, diante de atitudes cotidianas enigmáticas e assustadoras: o café sendo servido à mesa por Anie, mulher de Max Peereboom, que lê o jornal – o jornal! Será que Max nunca vira no jornal o que estava por vir?! – enquanto a madrasta de Anie tricoteia e o casal de filhos pequenos brinca no chão. Ninguém parece se importar – ou entender – o que realmente se passa. Uma voz feminina monocórdia, em off, vai nos informando os artigos pessoais que os deportados poderão levar, enquanto a câmera passeia pela cena, entremeada por paragens na imagem, produzidas na edição, quase sempre para congelar um olhar que nos fita e, depois, retomar o movimento, como se nos fosse permitido um momento de reflexão, antes de a vida daqueles personagens seguir seu trágico rumo, que logo se desvendará em uma legenda: Max, Anie, a madrasta de Anie, Franklin e Flora foram mandados para Auschwitz, em setembro de 1942. Forgács (2012: 18) explica que “o plano casamento-casa-criancas, como uma moldura, compõe a felicidade dos Peereboom. Para nós hoje, agora e neste instante, por nosso conhecimento histórico, surge uma perspectiva dramática inesquecível e imperdoável: a sombra invisível sobre os seus momentos felizes” (Forgács e Nichols, 2012: 18). Comum 36 - jul./dez. 2014 71 Nichols revela que os filmes de Forgács “não são histórias de fortes, nem histórias de fracos; não vemos campos de concentração, chaminés enfumaçadas, guetos judaicos ou médicos nazistas de riso sarcástico. E completa: Os presságios para nós – anunciando sinais da destruição agourenta – são apenas um elemento a mais no mundo de coisas do cotidiano para os realizadores e sujeitos originais desses filmes. Ver Bela Liebmann, um fotógrafo notável, em “Queda Livre”, por exemplo, fazer caretas para a câmera, ao mesmo tempo em que executa um trabalho manual degradante para o Servico de Trabalho Voluntário, uma unidade não-combatente na qual os judeus eram forçados a servir durante a guerra, remete a uma dor atroz (Forgács e Nichols, 2012: 21). Forgács confirma que evita mostrar cenas explícitas da morte dos personagens de seus filmes ou imagens dos corpos das vítimas no barbarismo nazista: O momento feliz apela, em nossas mentes, para outras construções, como uma profunda corrente subterrânea de expectativas inconscientes: a morte torturante em uma câmara de gás, uma corrente subterrânea escondida, nesse pedaço do filme, para suas futuras vitimas. E, por essa razão, ela nunca é concretizada, nem se torna visível em meus filmes. Isso não é querer falar das cenas como fontes de fatos, mas pode explicar a estrutura de um redemoinho espiralado: em quais sequências, em quais episódios, pode-se perceber a torsão da espiral? Quando se começa a ficar apreensivo e temer pelo fim deles? (Forgács e Nichols, 2012: 18). “Como olhar para imagens que foram realizadas a partir de um princípio de memória, mas cujas próprias memórias foram consumidas pelos acontecimentos da historia? – indaga Patrícia Rabello (2012: 5). Da resposta que encontra – “Imagens de memórias tornadas imagens desmemoriadas, mas jamais imagens sem memória” – ela se inspira para duas outras indagações: Qual o princípio de resistência que se esconde por trás de gestos, situações e cenas congeladas em antigas fotos e velhos filmes? Qual sentido de resistência apreende-se da decisão de 72 Comum 36 - jul./dez. 2014 registrar imagens, de capturar a parte de mundo que acontece na frente da câmera? Surpreendemo-nos descobrindo nos limites entre fazer ver e tornar visivel o pano de fundo de todas as imagens; é o único cenário a partir do qual um acontecimento, um rosto ou um movimento se permite ler. Desse encontro dialético, dessa percepção da imagem como uma montagem de singularidades efêmeras e inusitadas, nasce uma forma de arquitetura que revela a memória como uma constelação de fragmentos à nossa espera (Rabello, 2012: 5). O filme O turbilhão nos traz ainda outros momentos em que o congelamento de imagens nos inquieta e nos obriga à reflexão e à busca de respostas para aqueles olhares que, do passado, nos interrogam, sem saber que nos interrogam. Para Jean-Louis Comolli (2010: 338), o olhar para a câmera permanece um olhar em direção ao futuro, um olhar que reinstala o futuro a partir do presente: O presente só não basta, o corpo filmado volta-se para o futuro. É isso que está em jogo. Esse olhar para a câmera só tem sentido se visto pelo espectador. Ele não é destinado a quem está na frente dele, mas sim para quem estará diante dele (Lindeperg e Comolli, 2010: 338). Nas imagens do gueto gravadas por soldades alemães e obtidas por Forgács nos arquivos oficiais – ele as mistura ao material gravado pela família, para contextualizar a história – os judeus, vão passando diante do cinegrafista, em sequência intermediada por paragens estratégicas, em closes daqueles que, de alguma maneira, se manifestam para a câmera: os homens estão de terno e gravata, a maior parte olha com indireferença; as crianças parecem assustadas; e o rapaz caminha sorridente em direção ao cinegrafista e tira o chapéu, em reverência. Em off, ouvimos o rol de roupas que deveriam ser levadas, por eles, para o “campo de trabalho”: duas camisas, duas meias, dois calções... Forgács relaciona o texto à imagem de uma forma semelhante à cena na sala da família de Max Peeroboom. A sensação que nos dá, lá e cá, é a de que essas pessoas ilustram e pertencem ao rol daqueles objetos insignificantes. Comum 36 - jul./dez. 2014 73 Também em filmes como Miss Universo 1929 (2006), Queda livre (Hungria Particular 10, 1996), O filme de Angelo (1999), O êxodo do Danúbio (1998), alerta Andrea França (2012: 88), o procedimento de congelar certas cenas ou o efeito de câmera lenta sobre imagens de filmes amadores do passado trazem uma perspectiva dramática inegável – as sombras opressoras das forças nazistas a acenar com a morte brutal para aqueles homens “infames” cujas imagens, devotadas ao futuro, endereçadas a nós, evocam a inocência de um estado de mundo que só mais tarde revelaria toda a sua atrocidade. São cenas de casamento, de indivíduos que dançam, passeiam com seus bebês, festejam um aniversário, sorriem (estamos no campo da intimidade de quem está por trás e diante da câmera), de modo que o procedimento da parada sobre a imagem solicita duplamente nossa atenção ao que no documento e multiplicidade de tempos, histórias, vestígios, contradições. Mais do que isso: a parada sobre a imagem de cenas banais e cotidianas fornece ao arquivo filmico “condições de experimentação” de modo a mostrar o caráter não ideal da história, sua impureza e incompletude. Forgács convoca o espectador a um movimento que é de aproximação e de distanciamento: se aproximar com reserva desses vestígios, se distanciar com desejo (de saber mais) (França, 2012: 88). Mais adiante, no filme O turbilhão, voltamos a ser apanhados pelos incessantes olhares do passado. O quadro é parado na imagem do irmão caçula de Max Peereboom, Simon, e de sua noiva, Ross, no dia do casamento deles, em outubro de 1942. Em destaque, na mão da noiva, um buquê de flores e, na roupa, a estrela amarela de identificação dos judeus – que também está muito visível no terno do noivo. Não há mais nada, mais ninguém ali. Imediatamente, as perguntas nos tormentam: “Que fim levaram todos? E o casal, que fim levará?” A resposta não tarda: “Simon foi o único da família que sobreviveu à guerra” – informa a legenda, enquanto a imagem fecha, em zoom, para ser novamente congelada, num close do rosto de Simon, que sorri – seus olhos parecem dizer: “Agora você sabe.” Segundo François Niney, “essas imagens nos observam, como um retorno ao remetente; elas nos interpelam sobre sua herança abandonada ou nos inquietam por suas perigosas metástases possíveis; elas nos pedem justiça ou 74 Comum 36 - jul./dez. 2014 nos relembram de suas esperanças esquecidas que poderiam ser as nossas” (Niney, 2009 apud Rodovalho, 2012: 97). Para Beatriz Rodovalho (2012: 97), “as imagens do passado são então evocadas no presente: Forgács reanima os espectros e ressuscita os mortos à luz do presente”. À pergunta que faz Bellour (1997: 138): “De onde vem o desejo de chamar de pregnantes esses instantes que suspendem o tempo do movimento, abrindo no interior do tempo um novo tempo?” – ele próprio encontra resposta: “É principalmente porque esses instantes possuem uma qualidade de abstração e de irrealidade que parecem introduzir no filme uma emoção comparável à que perpassa de imediato a pintura”. Eles são, por certo, essencialmente fugidios, ao passo que o instante pregnante do quadro ocupa todo o tempo. Mas, de um outro modo, o instante que detém o filme também diz respeito ao filme todo. Ele propaga muito além de sua pura inscrição material, voltando o filme sobre si mesmo, captando seu drama singular, sublinhando sua irredutibilidade ao tempo excessivamente natural da ilusão, induzindo um espaço tempo na fronteira do visível e do invisível. A caracterização do instante pregnante do cinema, aliado às condições gerais de cada filme em particular é, portanto, simultaneamente ampla e irrestrita, difusa e pontual (Bellour, 1997: 138). Bill Nichols, em conversa com Forgács, aponta que “os gestos espontâneos, as cenas improvisadas e as situações concretas que nós observamos nos filmes dele não foram criadas como indicadores de forças históricas externas, mas como lembranças de história pessoal”. E completa: Mas os atores sociais nestes filmes de família, que gesticulam uns para os outros, agora estimulam mais a nossa resposta do que a daqueles para quem originalmente se endereçavam. Forgács, no duplo papel de arqueólogo e antropólogo de resgate, conduz uma sessão na qual essas figuras fazem as vezes de meios através dos quais nós podemos de novo ver e escutar a voz de tempos passados (Forgács e Nichols, 2012: 12-13). Comum 36 - jul./dez. 2014 75 Forgács revela a Nichols, em troca de e-mails, que sentiu um “misterioso e quase telepático” sentimento, o de ser “um delegado”: “Todas as pessoas que apareciam na imagem cinematográfica estão mortas, e eu estou vivo, distinguindo aqui, no meu próprio tempo, o passado deles como uma presença. Mas, o passado deles, ao mesmo tempo, é aparentemente presente” (Forgács e Nichols, 2012: 14). Notas 1. Peter Forgacs, artista multimídia e cineasta independente. Durante as décadas de 1970 e 1980, esteve ligado a grupos e diretores de cinema underground em Budapeste, que se reuniam em torno do célebre Bela Balazs Studio. A partir de 1982, começou a colecionar os found footages (fragmentos, tiras, pedaços, rolos de filmes amadores e caseiros, em maioria anônimos), que se tornariam a base de seu trabalho. Utilizava uma metodologia peculiar para obtê-los: anúncios de jornal. O material de arquivo é quase uma marca registrada de sua obra, já que muito pouco é filmado por ele (Rabello, 2012: 7). 2. Teórico e pesquisador do documentário, responsável pela criação de uma eficiente metodologia de compreensão deste tipo de cinema: os “modos de representação”. 3. Walter Benjamin (1892-1940), ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão associado à Escola de Frankfurt. 4. Paul Valéry (1871-1945), filósofo, escritor e poeta francês. 5. Em Jean Luc Godard, por Jean Luc Godard, Cahiers du Cinéma, 1986, p. 461-465. Referências AGAMBEN, Giorgio. Le cinéma de Guy Debord (1995). In: Image et mémoire. Hoëbeke: 1998. p. 65-76. BELLOUR, Raymond. A interrupção: o instante. In: Entre-imagens (trad. Luciana A. Penna). Campinas: Papipus, 1997. p. 126-155. COMOLLI, Jean-Louis. Mauvaises Fréquentations: document et spectacle. In: Images Documentaires n. 63, regard sur les archives. Paris, 2008. FRANÇA, Andrea. 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Revista de Cultura Audiovisual / Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, n. 37 (jan-jun 2012) - São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais / ECA/USP, p. 52-74. NICHOLS, Bill. The domain of documentary. In: Representing Reality: issues and concepts in documentary. Indianapolis: Indiana University Press, 1991. p. 3-31. __________ e FORGÁCS, Péter. A memória da perda: a saga da vida familiar e inferno social, de Péter Forcács. In: RABELLO, Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: CCCB, 2012. p.12,33. NINEY, Francois. Le Documentaireet ses faux-semblants. Paris: Klincksieck, 2009. p. 151. RABELLO, Patrícia. Fazer ver ou tornar visível? A arquitetura da memória em Péter Forgács. In: RABELLO, Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: CCCB, 2012. p. 5-7. RODOVALHO, Beatriz. O Amador e o Alquimista. Notas sobre o cinema de Peter Forgacs a partir de O Turbilhão – uma Crônica Familiar. In: RABELLO, Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: CCCB, 2012. p. 93-101. Vídeos no Youtube http://www.youtube.com/watch?v=5k_8s6M8vUo&feature=BFa&list=PL 6C3B458128E718CA Comum 36 - jul./dez. 2014 77 Resumo A proposta deste trabalho é estudar aspectos da obra do artista multimídia húngaro Péter Forgács, considerando, de forma especial, as reflexões sobre o cinema contemporâneo. Pretende-se analisar, em especial, o uso, por Forgács, de técnicas e dispositivos de edição, manipulação e montagem de filmes caseiros e amadores das décadas de 1920 a 1950, com especial atenção à interrupção do movimento – a paragem/congelamento de imagem. Palavras-chave Cinema contemporâneo – Filmes caseiros – Congelamento de imagem. Abstract The purpose of this case is to study aspects of the Hungarian multimedia artist Péter Forgács’s work considering in a special way, reflections on contemporary cinema. We intend to analyze in particular the use by Forgács of techniques and devices for editing, manipulation and assembly of home movies and amateurs of the 1920-1950 decades, with special attention to the interruption of the movement – the stop / freeze frame Keywords Contemporary cinema – Home movies – Picture freeze. 78 Comum 36 - jul./dez. 2014 Guerra e controle da informação: Brasil, 1914-1919 Tito H. S. Queiroz A Primeira Guerra Mundial é um momento ao qual se dá pouca atenção na história do Brasil. Com exceção dos reflexos econômicos da guerra, as demais dimensões são geralmente negligenciadas pelos historiadores ou demais especialistas que se dedicam ao assunto. Mesmo sendo a guerra um dos principais acontecimentos do século XX, parece que o Brasil passou por esse período em brancas nuvens. Possivelmente, a pequena participação militar na guerra é um dos motivos a explicar a pouca atenção dada ao fato por aqui; outro é o fato de ainda se considerar a guerra mais europeia que realmente mundial. Se deixarmos essa perspectiva de lado, notaremos que a guerra foi um momento de inovações para o Brasil em várias dimensões – escolhemos uma que julgamos significativa: o de como a guerra levou o Estado brasileiro a desenvolver ou reforçar estruturas de controle da informação. Por controle da informação, queremos indicar medidas de caráter legal e institucional que possibilitaram ao governo brasileiro reter ou filtrar dados, notícias e manifestações ligadas à guerra no Brasil e à posição e atitudes governamentais em relação a ela. Em relação a medidas de caráter legal, o controle da informação baseou-se, primeiramente, nos decretos emitidos pelo governo brasileiro para a manutenção da neutralidade. Com o envolvimento do país na guerra, Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 79 a 98 - julho / dezembro 2014 Comum 36 - jul./dez. 2014 79 esse controle baseou-se na legislação de guerra brasileira. Em relação às medidas de caráter institucional, houve a organização de um serviço de contraespionagem e de alguns de censura. Guerra e informação Um dos aspectos inovadores da Primeira Guerra Mundial é que foi a primeira guerra instantaneamente global. A partir do momento em que as potências decidiram deixar-se arrastar para o conflito, as declarações de guerra e ordens de mobilização foram repassadas pelo globo através do espectro eletromagnético. Com o uso do rádio se alcançavam navios ou guarnições nas mais remotas partes do mundo, os informando imediatamente sobre a guerra. Pela primeira vez na história, possibilitou-se a mobilização quase imediata de forças por todo o planeta. Assim, a informação – a velocidade da informação e sua virtualidade global tornaram-se uma das mais importantes dimensões (poderíamos até dizer, armas) da guerra.1 Seu uso ditou ações em áreas distantes do epicentro europeu. Vejamos o caso do Brasil e como isso ditou as primeiras iniciativas em relação ao controle da informação. Nos primeiros dias de agosto de 1914, enquanto as notícias da guerra fluíam pelos jornais brasileiros, outras movimentações iam sendo feitas ao longo da costa brasileira. Seguindo um planejamento anterior ao conflito, cruzadores alemães e britânicos se posicionaram para controlar as rotas de navegação que iam do Brasil à Europa. Se comunicando pelo rádio, cruzadores alemães começaram a atacar navios dos países da Entente que saíam do Brasil. A primeira vítima foi o mercante britânico Hyades, afundado na costa do Rio Grande do Norte em 15 de agosto de 1914, pelo cruzador alemão Dresden. O aviso sobre a saída do Hyades dos portos brasileiros, foi passado por rádio emitido do transatlântico alemão Blücher (ancorado em Recife). O Dresden estava acompanhado por outros três mercantes alemães, que saíram dos portos brasileiros para abastecê-lo com víveres e carvão (o navio havia carvoado no Atol das Rocas, dias antes) e um desses navios, o Prussia, chegou ao Rio de Janeiro em 20 de agosto, ali desembarcando a tripulação do Hyades.2 Ao mesmo tempo, os britânicos começaram a posicionar cruzadores para fiscalizar os mercantes saídos do Brasil, usando as proximidades dos Abrolhos como base (com o tempo também teriam mercantes para 80 Comum 36 - jul./dez. 2014 reabastecê-los). E suprimiram o cabo submarino que ligava o Brasil à Libéria (usado pela Alemanha para a comunicação com a América do Sul): assim além de “monopolizar o serviço de informações de guerra” os britânicos forçavam a Alemanha a utilizar apenas transmissões de rádio – que podiam ser captadas e codificadas pela inteligência naval britânica.3 Toda essa movimentação próxima ao Brasil alarmou opinião pública e governo. Os decretos de neutralidade feitos em agosto foram reforçados em setembro: aumentou-se a vigilância sobre a costa e o controle sobre a informação emitida a partir do Brasil – em especial, sobre transmissões de rádio clandestinas. As estações de rádio nos navios dos países beligerantes que entrassem ou estivessem internados nos portos brasileiros passaram a ter antenas arriadas e aparelhos lacrados e, em Santos, uma estação clandestina foi descoberta em setembro de 1914.4 Apesar de todas essas medidas, vários navios aliados e neutros foram afundados pelos alemães na costa brasileira entre agosto de 1914 e janeiro de 1918. A rede de espionagem montada pela inteligência naval alemã (Ettapendienst) no Brasil anos antes para apoiar ações contra a navegação de países inimigos manteve-se ativa e as contramedidas tomadas pelos britânicos – chegando mesmo a confeccionar uma black list para atingir empresas ligadas à essa rede não surtiram efeito – visto que os corsários alemães continuaram a agir na costa do Brasil durante quase toda a guerra. Outro nível que ligava a guerra à informação foi a guerra de propaganda. Nessa, os aliados tiveram mais sucesso que os impérios centrais. Enquanto os alemães e seus aliados jamais conseguiram montar uma rede de propaganda eficiente no país, os britânicos e em menor medida, franceses, italianos e norte-americanos, conseguiram – por suas agências de notícias e serviços de propaganda (que em alguns casos, eram secretos, como a Wellington House britânica), cinema e outras mídias a conquista da opinião pública brasileira nos primeiros anos da guerra.5 Não havia censura prévia à imprensa (salvo em períodos de estado de sítio). Mas havia para espetáculos; assim, nem toda propaganda passava sem censura: no Rio de Janeiro, a peça Águia negra foi proibida em meio a uma disputa envolvendo a polícia, a legação alemã, uma companhia de operetas portuguesa e o Judiciário. A peça, que estreou em junho de 1916 e havia sido liberada previamente pela polícia, suscitou um tumulto na plateia durante a quinta apresentação “em consequência de cenas representadas de modo ofensivo a um dos países envolvidos na guerra europeia”. Comum 36 - jul./dez. 2014 81 Além disso, uma nota da legação alemã ao governo brasileiro chamou a atenção para a situação “vexatória” representada pela peça “aos zelos de sua neutralidade”. A companhia conseguiu que o Judiciário liberasse a peça, mas após uma entrevista do empresário teatral José Loureiro com o 2° delegado auxiliar, a peça saiu de cartaz, levando a companhia teatral a requerer um habeas corpus, negado pelo Judiciário a pedido do chefe de polícia Aurelino Leal, que invocou a ordem pública e a neutralidade do país. Pouco depois, em setembro, a ópera do maestro francês Ledoux, Les Cadeaux de Noel, foi censurada “por suspeita de ataque a Alemanha”, mas acabou liberada (havia sido proibida antes em Buenos Aires, mas não em Montevidéu).6 Mesmo neutro, o governo brasileiro teve que desenvolver, nos primeiros anos da guerra, parâmetros e medidas para o controle da informação. Não só ações militares foram desenvolvidas ao longo da costa brasileira, como a guerra de propaganda podia criar problemas. Não surpreende, portanto, que com o envolvimento direto do país na guerra, esse controle se tornasse mais complexo. Contraespionagem e controle da informação Tanto quanto a campanha submarina irrestrita, as Américas foram levadas à guerra por telegramas alemães codificados pela inteligência britânica – caso do telegrama Zimmermann (propondo uma aliança do México e Japão com a Alemanha contra os EUA); e dos telegramas Luxburg – onde o representante diplomático alemão em Buenos Aires, propôs o afundamento de navios argentinos, a vinda de submarinos para a América do Sul para intimidar os países da região (especialmente o Brasil, que havia se apossado dos mercantes alemães) e que um dos objetivos alemães era a “reorganização” do sul do Brasil. Mesmo que virtuais esses comunicados legitimavam a causa aliada expondo as intenções do militarismo germânico.7 Os telegramas Luxburg foram usados como uma das justificativas para o “reconhecimento” do estado de guerra entre Brasil e Alemanha. Mas desde a sequência de afundamentos de navios brasileiros, a partir de abril de 1917, o governo havia começado a tomar medidas para controlar as atividades de informação dos alemães no país – de abril de 1917, são as primeiras informações sobre a montagem de um Serviço Especial de Contraespionagem.8 82 Comum 36 - jul./dez. 2014 Esse serviço foi criado dentro do Corpo de Segurança Pública, umas das divisões da polícia “federal” (isto é, do Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro). Essa polícia investigativa, contava com agentes à paisana (popularmente conhecidos como “secretas”), diretamente ligados ao chefe de polícia, ao Ministério da Justiça e Interior ou à Presidência da República. No período, o Corpo era dirigido pelo Major Bandeira de Mello.9 Geralmente lidava com crimes comuns, conspirações e as greves do movimento anarquista. A guerra redirecionou o Corpo para a contraespionagem. 10 Não se pode dizer que a questão da espionagem fosse preocupação nova no país. Na crise de 1908 entre Brasil e Argentina – suscitada pela interceptação do telegrama n. 9, enviado pelo Itamaraty ao Chile, o Itamaraty usou os serviços de um informante para ter acesso ao original do telegrama que o ministro argentino Zeballos divulgou e desacreditá-lo. O Código Penal da Armada (de 1891) previa penalidades para o crime de espionagem: variavam entre a pena de morte e de 10 a 30 anos de prisão com trabalhos forçados. O próprio Corpo de Segurança Pública descendia da polícia secreta (existente, desde o Império).11 Com a proximidade da guerra, os temores com espionagem aumentaram. Em 1913, o deputado federal Maurício de Lacerda clamava pela organização de um serviço de contraespionagem militar no país. Para reforçar sua tese aludiu a um caso de 1905, quando projetos de um projétil desenvolvido pelo tenente José Felix da Cunha Menezes foram roubados do gabinete do ministro da Marinha. Reapareceram pouco depois na Alemanha, fabricados pela Casa Ehrhardt. Além disso, navios alemães, britânicos, norte-americanos e argentinos faziam “sondagens” na costa brasileira, as fronteiras eram abertas e personalidades como Theodore Roosevelt faziam prédicas sobre a “conquista do nosso vale amazônico”.12 Com a guerra, os temores se concretizaram. Em janeiro de 1915, o Itamaraty enviou um telegrama a todos os governadores, instando-os a “vigiarem as pessoas que lhes parecerem suspeitas, darem as buscas que forem necessárias, apreenderem aparelhos clandestinos e responsabilizarem autores diante de qualquer atentado contra nossa neutralidade”.13 Outro estímulo aos temores veio de casos de brasileiros envolvidos com espionagem na Europa. Fernando Buschmann foi fuzilado pelos britânicos; Patrocínio Filho, ficou preso por mais de um ano, também devido à acusação de espionar para os alemães. E esses são os casos mais Comum 36 - jul./dez. 2014 83 conhecidos. Há outros dos quais só temos indícios: segundo um espião francês baseado em Lugano (Suíça) em 1917, o local vivia cheio de espiões, de várias nacionalidades: ele cita brasileiros dentre eles.14 O caso mais polêmico envolvendo atividades secretas no país ocorreu quando uma bomba explodiu no mercante britânico Tennyson, em fevereiro de 1916, matando três tripulantes. Como a bomba estava em caixas despachadas em Salvador e como houve a fuga de um bôer (Van Dan, aliás, Fordham, na realidade, um agente a serviço alemão, Frederick – também conhecido como Fritz – Joubert Duquesne) e de um alemão, Hermann Niewerth, que as haviam despachado, a suspeita recaiu sobre eles. Pressões britânicas levaram as autoridades brasileiras a investigar o caso, mas em maio de 1916, o Judiciário considerou o caso da alçada britânica (pela explosão ter ocorrido em alto mar) e nenhum dos implicados (incluindo três despachantes brasileiros que embarcaram as caixas) foi preso ou procurado.15 A legação alemã no Rio ainda utilizou uma tática de contrainformação para se desvincular do caso. O cônsul procurou Aurelino Leal e disse que Joubert o havia procurado pedindo dinheiro, numa “grosseira tentativa” de comprometer as autoridades alemãs, solicitando à polícia que o prendesse (mas ele já estava provavelmente em Buenos Aires; só seria preso nos EUA, em 1917).16 Os britânicos iniciaram então, um boicote ao porto de Salvador. Durou até novembro, quando o jornal Correio da Manhã publicou documentos revelando a insatisfação britânica com as autoridades brasileiras e que para reclamar do caso, um agente consular havia tentado uma entrevista com o governador baiano, J. J. Seabra (que de tão irritado com a intromissão britânica, teria pedido a “coronéis” correligionários que homiziassem Niewerth em suas fazendas – o que foi feito até abril de 1918, quando foi finalmente preso). Ainda que com o escândalo os britânicos saíssem desgastados, o caso evidenciou a presença concreta de agentes alemães no Brasil. 17 Com o gradual envolvimento do Brasil na guerra, a formação de um serviço de contraespionagem passou a ser alvo de considerações. Um editorial do Correio da Manhã considerou que “agentes ao serviço de mais de uma potência estrangeira conseguem coligir informações de considerável valor” sem que as autoridades lhes impeçam. Pelo contrário, era fácil espionar: bastava subir ao Pão de Açúcar e se analisava as fortalezas 84 Comum 36 - jul./dez. 2014 da baía de Guanabara; há hotéis e restaurantes em “pontos estratégicos” e muitos estrangeiros prestando serviços às Forças Armadas. Antes de se reorganizar a defesa nacional, era necessário adotar medidas administrativas e penais contra o “perigo da espionagem”.18 Não existiu legislação para criar a contraespionagem. O serviço teria sido criado pelo presidente Wenceslau Braz, que escolhia até os agentes. O decreto 6640, de 30 de março de 1907, dava ao presidente poder de inspeção suprema da polícia do Distrito Federal, podendo até ordenar despesas reservadas. Com a entrada oficial do país no conflito, a verba veio dos créditos destinados à defesa nacional – contando a partir de então com 70 contos de réis mensais, repassados pelo Banco do Brasil ao Palácio do Catete, que empregava a verba segundo seus desígnios.19 O serviço de contraespionagem não atuou apenas no Rio de Janeiro, mas em outros estados “e ainda além das fronteiras do país”. Seu alvo inicial foram os tripulantes dos navios alemães internados, muitos dos quais dispersos pelo país. Para informações sobre outros alvos, o serviço requisitou os registros dos súditos alemães (uma das medidas da “Lei de Guerra” – Lei 3.393, de 16 de novembro de 1917), feitos em todas as delegacias do país e até intimou – através das Inspetorias de Veículos, os donos de garagens a comunicar todos os serviços prestados a alemães. Centenas de denúncias também foram feitas. Entre outubro e novembro de 1917 (antes da censura à imprensa se tornar efetiva) noticiou-se o fechamento de estações clandestinas e a prisão de vários suspeitos pelo serviço.20 Há poucos indícios sobre como o serviço funcionava – destacamos um caso que parece mostrar um modus operandi. Em novembro de 1917, foi preso o holandês Balen, do Lloyd Holandês, devido a denúncias de que há meses ia a Jacarepaguá e Guaratiba, sempre em grupo, tirar fotos e levantar mapas. Bandeira de Mello mandou um agente (que “disfarçou-se em roceiro”) vigiá-lo e prendê-lo. Balen só foi solto dias depois, por intermédio do ministro da Holanda que deu garantias sobre sua pessoa.21 A atuação do serviço foi criticada na imprensa nos meses seguintes, pois o serviço estaria “encabulado”, por não ter conseguido prender nenhum espião. Além disso, folhetos de propaganda driblavam a censura postal “procurando manter nos meios alemães a ilusão de que os exércitos do kaiser caminham, realmente, para a vitória” – a solução comentava um artigo, seria criar um serviço de contraespionagem como o dos EUA.22 Comum 36 - jul./dez. 2014 85 Se o serviço não prendeu nenhum espião confesso, sem dúvida, foi o maior responsável, ao longo de 1918, por enviar mais de uma centena de suspeitos para os campos de concentração. O serviço ainda vigiava as imediações dos campos e procurava internados que eventualmente fugiam. 23 Enfim, em relação ao Brasil, mesmo a contraespionagem dos EUA não conseguiu muitos resultados. Quando, por exemplo, a inteligência naval dos EUA, o Office of Naval Intelligence (ONI), enviou seu agente Edward Breck (passando-se por um viajante suíço), em meados de 1917 para espionar a colônia alemã no Rio, ele nada conseguiu. Teve mais sorte dentre a colônia alemã de Buenos Aires.24 Pode-se dizer que a rede de informações alemã no Brasil diminuiu suas atividades, senão pelo serviço de contraespionagem, por todas as medidas restritivas tomadas contra alemães e teuto-brasileiros no país: o internamento em campos de concentração, a intervenção nos bancos, a liquidação das seguradoras, o fechamento de inúmeras associações, a neutralização da imprensa, a obrigação dos alemães se apresentarem regularmente às autoridades policiais e precisarem de salvo-conduto para se deslocar de uma cidade para outra... Além da hostil vigilância dos brasileiros – sempre lembrados pela mensagem presidencial de outubro de 1917, impressa nos periódicos e cartazes espalhados pelo governo: “– Estejam todas as atenções alerta aos manejos da espionagem que é multiforme, e emudeçam todas as bocas quando se tratar de interesse nacional”. Censura e controle da informação Se a contraespionagem pôde ser montada antes da entrada do Brasil na guerra, a censura só pôde ser justificada a partir de outubro de 1917. Assim como a questão da espionagem, a da censura não era nova (por exemplo: dado o estado de sítio em abril-outubro de 1914, houve censura telegráfica e à imprensa no Distrito Federal). Assim como no caso da espionagem, nova era a estrutura montada para ela.25 A inspiração veio dos países já em guerra. Ela era visível, por exemplo, na correspondência censurada que vinha do exterior ou na censura sofrida por alguns jornalistas brasileiros na Europa.26 A censura pode ser vista como mais uma das medidas restritivas em relação aos alemães e justificada em termos de defesa nacional, mas ao contrário da contraespionagem (voltada a alemães, teuto-brasileiros ou 86 Comum 36 - jul./dez. 2014 “germanófilos”), a censura atingia toda população, tornando este nível de controle da informação uma estratégia de controle social mais amplo.27 Daí que as criticas tenham sido mais intensas – embora o governo prometesse que duraria apenas durante o estado de guerra, ela se estendeu um pouco além da Conferência de Versalhes e no caso do rádio, bem além. Mesmo provisória, sua dimensão não deixava de ser surpreendente. Estabeleceu-se a censura prévia à imprensa (visível nos espaços em branco que começaram a aparecer nos jornais), censura postal (visível nos carimbos de “aberto pela censura” nas correspondências) e telegráfica; além disso, para controlar outras emissões no espectro eletromagnético, que não passassem pelo crivo dos Correios e Telégrafos, os decretos 3296, de 10 de julho de 1917 e 3508, de 10 de julho de 1918, declararam o controle do governo federal sobre a radiotelegrafia e radiofonia e penalizaram aqueles que explorassem atividades de rádio sem permissão do governo – delitos que dependendo das circunstâncias podiam ser classificados como atos de resistência à autoridade ou espionagem. A censura à imprensa baseou-se na decretação do estado de sítio (no Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) em meados de novembro de 1917, embora desde fins de outubro – pelo Aviso de 30 de outubro do Ministério da Justiça, tivesse começado no Distrito Federal (para impedir boatos alarmantes e informações de caráter estratégico). No Distrito Federal foi feita por funcionários do Ministério da Justiça, nos demais estados, por funcionários das Secretarias de Justiça e/ou policiais. Alguns estados, como Pará e Amazonas adotaram também a censura. As penalidades podiam variar entre o confisco da edição, prisão dos jornalistas ou suspensão do jornal. A imprensa em língua alemã foi proibida. Houve críticas pelo caráter discricionário da censura – ela não foi formalmente legalizada, mas seguia uma orientação genérica de controle da informação emanada pela Presidência da República (e uma tradição de censura típica dos estados de sítio) e foi adotada por governos estaduais onde sequer o sítio foi decretado. 28 O órgão que mais reclamou foi O Estado de S. Paulo. Segundo o jornal, muitas matérias censuradas nada tinham a ver com a guerra, mas com críticas às oligarquias paulistas – com muitas ligações com o capital alemão. No caso do Amazonas a censura voltou-se contra apenas um jornal, A Gazeta da Tarde, após este ter criticado gastos de 80 contos na construção de uma linha de tiro pelo governo do estado. Criticou-se ainda Comum 36 - jul./dez. 2014 87 a falta de critério da censura: em agosto de 1918, por exemplo, a censura proibiu a notícia da partida da Missão Médica para a França no A Rua, mas a permitiu em A Noite. A “uniformidade de critério da censura” para evitar “desigualdades e violências” foi uma das teses aprovadas no Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas, em setembro de 1918.29 A censura postal e telegráfica foi feita a partir de novembro de 1917 pelos funcionários do Ministério da Viação (que administrava os serviços postais). Também não era totalmente nova: no governo do marechal Hermes, por exemplo, a imprensa carioca denunciava que correspondências eram violadas e funcionários eram mantidos no telégrafo para copiar telegramas. Havia uma censura telegráfica parcial desde a legislação da neutralidade: telegramas cifrados eram censurados e podiam ser recusados caso não obedecessem ao único código regulamentado.30 A censura à correspondência aos internados nos campos de concentração (já que era a Marinha que administrava os campos) e ao pessoal embarcado da Marinha de Guerra era feita pelo Estado Maior da Armada. Embora abrangesse todo o território nacional, os postos de censura existiam apenas no Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Pernambuco e Pará. A correspondência dos e para os estados sem postos, devia passar pelos postos mais próximos. A censura estendeu-se ao idioma: foram proibidas correspondências que não estivessem em português, inglês, francês, italiano ou espanhol (salvo a correspondência diplomática, que não era censurada). 31 Como o Brasil “era a chave das vias telegráficas entre todos os países da América do Sul e a Europa”, a censura telegráfica interessou aos aliados. Em março de 1918, o país aderiu à estrutura da censura telegráfica internacional dos aliados, sendo o serviço chefiado pelo ministro Oscar de Teffé, do Itamaraty, auxiliado pelo tenente William Young Reid, da Marinha dos EUA (representando ainda os governos francês e italiano). Assim esperava-se cortar as transmissões da Alemanha para o Brasil (a mais potente estação de rádio alemã, Nauen, tinha alcance até Pernambuco).32 A censura foi extinta parcialmente. Em 13 de novembro de 1918, uma ordem verbal do ministro da Justiça suspendeu a censura à imprensa no Distrito Federal (nos outros estados seria suspensa posteriormente: em São Paulo, teve que esperar subir um novo governo em 16 de novembro). Em 31 de dezembro de 1918 foi suspensa a telegráfica. Para as correspondências dentro do território nacional, em 25 de janeiro de 1919. 88 Comum 36 - jul./dez. 2014 Na Marinha acabou em 03 de fevereiro de 1919. Para as correspondências internacionais em 22 de setembro de 1919. Ninguém se lembrou (ou quis se lembrar) das limitações impostas às atividades de rádio.33 As críticas à censura postal acentuaram seu caráter exagerado, pois mesmo em países como Itália e França, a censura só era exercida nas zonas consideradas de guerra. Criticou-se também sua duração, pois em meados de 1919, ela já havia sido extinta em muitos dos países nos quais havia sido adotada, mas continuava no Brasil. Outras críticas apontavam os prejuízos da censura ao comércio e o fato de que funcionários postais continuavam a censura, mesmo após sua extinção. Dentre as mais de quatro milhões de correspondências censuradas, 153.237 foram apreendidas.34 A polícia continuou a ser chamada no caso de possíveis suspeitos descobertos graças à censura postal. Também continuou a censurar espetáculos teatrais e cinematográficos. Houve pelo menos um caso de censura cinematográfica, no caso do filme Pátria e bandeira (1917): que teve uma cena cortada, pois fazia menções que ligavam a legação suíça com a espionagem, o que provocou protestos da legação.35 Por ironia, com o estado de guerra com a Alemanha, críticas ao governo alemão, antes proibidas, tornaram-se permissíveis: assim, a outrora proibida Águia negra foi liberada, tendo uma apresentação especial em novembro de 1917 num teatro carioca. Segundo notícias da época, a curiosidade do público em torno da peça fez com que as vendas de ingressos se tornassem “extraordinárias”. 36 Legados Com o fim da guerra coincidindo com o do governo Wenceslau Braz, o serviço de contraespionagem foi aparentemente desmontado. Ao longo de 1918, o Corpo de Segurança havia voltado atenções para o movimento anarquista, cujas agitações dentre os marítimos (greves de estivadores, manifestações de marinheiros que não queriam ir para áreas de bloqueio submarino, encalhes e incêndios em navios e instalações portuárias, etc.) afetavam as contribuições do país aos aliados. Então, o Corpo de Segurança começou a trabalhar com a hipótese de que os anarquistas “estejam trabalhados por alemães”, vinculando o anarquismo a uma ameaça à segurança nacional. A ocorrência da rebelião anarquista em novembro de 1918, reforçou essa vinculação mais ainda. 37 Comum 36 - jul./dez. 2014 89 Antes de ser esquecido, o Serviço de Contraespionagem propiciaria um breve escândalo em meados de 1919. Houve denúncias relativas ao desvio de verbas do serviço, algumas das quais, teriam sido direcionadas para o jornal O País, tornando-o favorável ao governo. Apesar de alguns debates na Câmara dos Deputados, o assunto foi logo abafado.38 De qualquer forma, o Serviço de Contraespionagem pode ser entendido como a primeira formatação de uma polícia (explicitamente) política. Como fez parte do Corpo de Segurança, há toda uma linhagem que o liga a seus sucessores: a 4ª delegacia auxiliar (1922), a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (1933) e o Departamento Federal de Segurança Pública (embrião da atual Polícia Federal) em 1944 e que tinha dentre suas preocupações iniciais a contraespionagem.39 A censura sequer desapareceu de todo. Às limitações legais a estações de rádio deve ser creditado, por exemplo, o atraso no desenvolvimento da radiodifusão no país. O início das rebeliões tenentistas e a continuidade das agitações envolvendo o movimento operário levaram a uma Lei de Imprensa em 1923, cerceando a liberdade de imprensa até então existente e tornando a censura mais comum. As rebeliões nos anos 1920 e 30, também levariam a vários períodos onde a censura à imprensa, postal e telegráfica seriam adotadas. Os estados de sítio, de guerra e as ditaduras que se sucederam ao longo do século XX no Brasil e a utilização por esses governos da censura foi tão ampla que seriam necessários alguns outros artigos para descrevê-la. Até que ponto a experiência do Brasil na Primeira Guerra inspirou diretamente os desenvolvimentos posteriores é uma questão em aberto – embora a proximidade entre determinados eventos e a possibilidade de que determinadas personalidades envolvidas num primeiro momento ainda estivessem ativas posteriormente, possam vir a indicar relações entre ambos. Mas as experiências legais e institucionais para o controle da informação pelo Estado brasileiro devem ser levadas em consideração quando se trata dessa questão numa perspectiva mais ampla da história brasileira. 90 Comum 36 - jul./dez. 2014 Notas 1. Impossível não fazer referência à “dimensão dromológica do poder” de Paul Virilio: “Aquele que tem a velocidade tem o poder”. Virilio, P. Guerra pura. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 49-50. 2. Chatterton, E. K. Les coureurs de mers. Paris: Payot, 1931. p. 55-59. 3. Abranches, D. de. A ilusão brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. p. 10. Na p. 251, descreve a rede de espionagem britânica no Brasil. Chack, P. La guerre des croiseurs. Paris: Société d´Editions, 1923, v. II; p. 27. Tuchman, B. O telegrama Zimmermann. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, cap. 01. 4. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Relatório (1914 a 1915). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915. p. 41-89. 5. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/ dezembro 2011. p. 35-36. 6. Leal, A. Polícia e poder de polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. p. 172; 219224. “Les Cadeaux de Noel”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 de julho de 1916, p. 04. “A representação do ‘Les Cadeaux de Noel’”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1916, p. 09. “Peças anunciadas”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917, p. 08. 7. Luxburg: Luebcke, F. The Germans in Brazil. Baton Rouge/London: Louisiana State University Press, 1987. p. 156. 8. “Contra os espiões alemães?” A Razão, Rio de Janeiro, 08 de abril de 1917, p. 01. Segundo a notícia, o serviço foi pensado na noite do dia anterior numa reunião entre Bandeira de Mello e o Dr. Machado Guimarães, para facilitar a ação da polícia em caso de emergência. 9. Gustavo Moncorvo Bandeira de Mello (c. 1879-1946) participou da Revolta da Armada como cadete do Exército, embarcado no cruzador legalista Guanabara e combateu na Ponta da Armação. Em 1907 era alferes do 2º Batalhão da Polícia Militar. Em 1909, como capitão, foi inspetor da Guarda Civil do Distrito Federal. Em 1910, na Secretaria da Polícia Militar, foi voluntário para a guarda do Arsenal de Marinha durante a Revolta do Batalhão Naval. Em 1914 era diretor da Escola da Polícia: foi então, promovido a Major. Em 1915, tomou posse como inspetor do Corpo de Segurança Pública (em meio a um escândalo envolvendo a inspetoria anterior). No fim desse ano e no ano seguinte descobriu as conspirações para implantar no país uma república parlamentarista, conhecidas como “Revolta dos Sargentos”. Em 1919, promovido a tenente-coronel, deixou o Corpo de Segurança (interinamente entregue ao comissário Júlio Ribeiro, chefe da Seção de Ordem Social do Corpo e principal policial envolvido no desbaratamento da rebelião anarquista de 1918) e foi para o comando do 2º Batalhão da Polícia Militar, tendo se afastado para uma comissão que redigiu o Guia do Distrito Federal. Em abril de 1922, uma intriga do novo chefe do Corpo, o Major Carlos Reis, quis indispô-lo com o General Silva Pessoa, que em resposta o recolocou no comando do 2º Batalhão... Daí foi para o 5° Batalhão da Polícia Militar. Em 1924, comandava o 4° Batalhão da Polícia Militar e chefiava o serviço de defesa e pesquisas da seguradora Lloyd Atlântico. Em 1926, voltou para o Corpo (agora 4ª Delegacia Auxiliar), criticando seu caráter de polícia política em detrimento da investigação criminal; mas, reforçou o sistema de vigilância, utilizando mais a censura telefônica e ao que tudo indica agentes femininas. Ainda propôs uma “rede federal de vigilância política” que se estendesse a outros estados (como nos tempos da contraespionagem). Os comunistas ainda o acusaram de manipular verbas secretas e sindicalistas amarelos. Em fins Comum 36 - jul./dez. 2014 91 de 1926, alegando os “dissabores” da profissão se afasta da delegacia. Em 1927, de novo comandava o 5º Batalhão da Polícia Militar; mas em dezembro, o militante comunista Astrogildo Pereira (que havia sido preso por ele durante a greve da Cantareira em 1918) o viu em Corumbá, na fronteira com a Bolívia, alerta para movimentações da Coluna Prestes (o próprio Astrogildo iria se entrevistar com L. C. Prestes). Teria conseguido ele seu grupo de vigilância federal? Ao que tudo indica sim, pois em novembro de 1929, estava em Curitiba numa comissão com 40 agentes cariocas, um dos quais, num comício da Aliança Liberal, matou um oficial do Exército. É uma questão em aberto se esse era um serviço especial, como a contraespionagem, ligado à 4ª Delegacia Auxiliar ou uma divisão operativa da embrionária inteligência federal, o Conselho de Defesa Nacional. Em novembro de 1930 (até outubro comandava o 2º Batalhão) foi preso próximo a um incidente no quartel-general do Corpo de Bombeiros, onde quatro soldados morreram. Boatos o acusaram de tentar levantar o 5º Batalhão (com apoio de 400 estivadores e 1000 investigadores). Na sequência, pediu reforma (Carlos Reis, seu antigo desafeto, também foi reformado) e foi exonerado do magistério da Escola de Polícia. Em 1931, fundou uma agência de investigação, o Instituto Informator. A partir de 1934, chefiou o Serviço de Informações do Departamento Nacional do Café, lidando com desfalques. Fez parte da Associação Mantenedora do Orfanato Osório e do Clube dos Oficiais da Polícia Militar (foi um dos criadores da Revista de Polícia desse órgão em 1925). Fez parte da comissão que publicou os dois volumes da História da Polícia Militar do Rio de Janeiro (1925). Escreveu A Polícia Militar Federal. Contribuição para sua História de 1808-1909 (1909) e estudos geográficos. Em 1971, um prêmio com seu nome foi dado aos melhores cadetes da Academia da Polícia Militar. 10. Uma conspiração monarquista no Rio? Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1915, p. 01. O fato do dia – Mais uma conspiração. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 de abril de 1916, p. 03. 11. França, T. C. N. Self Made Nation: Domício da Gama e o pragmatismo do bom senso. Brasília: UNB, 2007. Tese de Doutorado, p. 279. Brasil. Ministério da Guerra. Relatório (1900). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. p. 157. O código da Armada foi estendido ao Exército em 1899. A Lei 3.397, de 24 de novembro de 1888, que estabeleceu a despesa geral do Império, no seu art. 3º, item 06, destinou 120 contos para as “despesas secretas da polícia”. 12. O Brasil está cercado de espiões. A Noite, Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1913, p. 01. Apesar de tudo, o projétil foi utilizado pela Marinha do Brasil, sendo chamado de projétil “José Felix”. Gama, Arthur Oscar Saldanha da. A Marinha do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Capemi Editora e Gráfica Ltda., 1982, p. 71. 13. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Relatório (1914 a 1915). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915. p. 64. 14. Vinhosa F. L. Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: IHGB, 1990. p. 64-68. Miller, M. Shangai on the Métro. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 49-50. 15. Vinhosa F. L. Teixeira. Op. cit., p. 47-50. O “Tennyson”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 04 de março de 1916, p. 03. “Um caso velho”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 de maio de 1916, p. 04. Só em março de 1917, um promotor resolveu que o caso tinha provas claras de “criminalidade”: os três despachantes brasileiros – únicos ao alcance da lei, foram os primeiros a serem julgados, mas foram absolvidos. O caso do “Tennyson”. 92 Comum 36 - jul./dez. 2014 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de março de 1917, p. 03. O caso do “Tennyson”. O Imparcial. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1918, p. 02. 16. O Caso do “Tennyson”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1916, p.03. Duquesne se tornou lendário: há até um verbete sobre ele na Wikipédia. Não encontrei referências na imprensa carioca de que o Corpo de Segurança possa ter prendido cúmplices de Duquesne (que A. Leal sabia terem vindo com ele de Salvador para o Rio, como afirmou na reportagem supracitada), mas num livro escrito durante a guerra pelo inspetor Tunney, da polícia de Nova York, há referências à prisão de um tal Bauer, no Rio de Janeiro, com papéis comprometedores de Duquesne. Tunney prenderia Duquesne logo após a entrada dos EUA na guerra (ele tentava então arranjar um emprego no serviço de propaganda de guerra dos EUA!). Tunney, T. J. e Hollister, P. M. Throttled! Boston, Small, Maynard & Comp. Publishers, 1919, p. 237-242. Ele simulou então uma paralisia para ser transferido para um hospital, de onde fugiu em 1919. Mandou depois uma carta a um amigo dizendo que fugira de avião para o México. “Um dos incendiários do ‘Tennyson’ fugiu da prisão”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919, p. 01. Como nos filmes – o célebre capitão Fritz fugiu para o México. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1919, p. 07. 17. O caso do “Tennyson” – Documentos Sensacionais. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1916, p. 01-02. O caso do Sr. Beresford. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1916, p. 01. A boicotagem da Bahia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1916, p. 01. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1916, p. 01. Niewerth era funcionário da Siemens em Salvador, o que o tornava próximo à rede de informações alemã no Brasil, pois a empresa era ligada aos serviços de rádio alemães por todo o mundo. Ele teria sido preso graças à colaboração da Liga Pró-Aliados da Bahia e também por que a Lamport & Holt teria oferecido uma recompensa sobre o seu paradeiro. Para se defender das acusações de que teria ajudado a homiziar Niewerth, o chefe da polícia baiana, Álvaro Cova alegou que sempre tinha secretas à procura dele e que um tal Schirdler (ou Schroeder) o mantinha a par do paradeiro de Niewerth. E que José Rodolpho, o fazendeiro que o homiziava caluniava J. J. Seabra, pois havia uma teia de parentesco entre ele e a mulher brasileira de Niewerth, Evangelina. Em seu primeiro julgamento foi condenado a 12 anos e nove meses de prisão, com trabalhos forçados (uma penalidade prevista para espiões segundo o Código Penal da Armada). Mas em 1919, num novo julgamento, foi inocentado. Ao que tudo indica, o resultado teria sido influenciado por A. Cova, que no final do ano tentou usar Niewerth numa tentativa de atingir a oposição: Niewerth foi preso e declarou ter sido convidado pelos chefes da oposição para fabricar bombas como a usada no “Tennyson” contra o governo. A oposição desmascarou a tentativa e Niewerth continuava esperando um habeas corpus para sua soltura no início de 1920, quando sua história se perdeu em meio à confusão das lutas políticas baianas de então. O caso do vapor “Tennyson”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de abril de 1918, p. 07. Da Bahia. O País. Rio de Janeiro, 03 de junho de 1918, p. 03. O epílogo de um drama no mar. A Tarde, Salvador, 07 de julho de 1918, p. 01. O atentado do “Tennyson”. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 14 de março de 1919, p. 05. Por instinto de conservação. O País. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1918, p. 01. Foi absolvido o alemão Niewerth. A Rua. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1919, p. 05. A proteção do governador ao autor do atentado do “Tennyson”. O Imparcial, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1919, p. 01. O governo baiano engendra uma conspiração. O Imparcial, Rio de Janeiro, 28 de dezembro Comum 36 - jul./dez. 2014 93 de 1919, p. 14. Um protesto do chefe de polícia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1919, p. 08. O alemão Niewerth novamente em foco. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1920, p. 03. 18. A propósito de um alarme. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1917, p. 01. 19. Autêntico e oportuno. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919, p. 02. As despesas de guerra no governo do Sr. Wenceslau. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 31 de maio de 1919, p. 02. 20. No C. de Segurança – a última ordem de serviço do inspetor Bandeira de Mello. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1919, p. 08. Os alemães presos vão ser internados. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1917, p. 03. O registro dos súditos alemães. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1917, p. 01. Medidas de prevenção. O País. Rio de Janeiro, 02 de novembro de 1917, p. 02. Em torno da espionagem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1917, p. 07. 21. Um funcionário do Lloyd Holandês preso como espião. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 de novembro de 1917, p. 03. As denúncias nesse caso partiram de A Noite, que recebia muitas cartas com denúncias e as repassava à polícia; o jornal reclamou quando da soltura de Balen e seus “cúmplices”, como Jorge Schleiffer, alemão, professor da Escola Politécnica, que residia com Balen e revelava suas fotos; foi solto por solicitação do influente político Joaquim Murtinho. A espionagem. A Noite. Rio de Janeiro, 05 de novembro de 1917, p. 01. A espionagem – o vigário de Guaratiba fugiu. A Noite, Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1917, p. 01. Espionagem. A Noite, Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1917, p. 02. Um boche perigoso que está em liberdade. A Noite, Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1917, p. 03. A imprensa de guerra britânica, de qualquer forma, se referiu ao caso como o de uma tentativa dos alemães comprarem terras para estabelecer uma base secreta de submarinos em Guaratiba... 22. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1918, p. 01. A propaganda alemã. O País, Rio de Janeiro, 21 de abril de 1918, p. 01. 23. Queiroz, Tito H. S. Campo de concentração São Gonçalo: a Ilha das Flores, 19171919. Revista Científica FAP. S. Gonçalo – v. 03, nº 01, 2011, p. 100-104. Em 1917, 153 suspeitos alemães foram enviados para o campo de concentração da Ilha das Flores. Além do Serviço de Contraespionagem, a Marinha possuía um embrionário serviço de informações, baseado nas capitanias dos portos, o Exército também possuía um serviço, mas devia ser mais embrionário ainda; não se sabe, se tais serviços se comunicavam com o Serviço de Contraespionagem. 24. Heiner, G. Edward Breck, Anglo-saxon Scholar, Golf Champion and Master Spy. In: A Fetschrift for Hiroshi Yonekura on the Occasion of his 65 th Birthday. Tokyo: Eichosha, 2007, p. 43-44. Foi Breck quem conseguiu o telegrama Luxburg, entregue ao embaixador americano. Há fontes, porém, que apontam que os telegramas foram conseguidos pela inteligência britânica. 25. O Estado de sítio. O País, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1914, p. 02. 26. Queiroz, Tito H. S. Um correspondente de duas guerras mundiais: Raul Brandão & O Correio da Manhã. Comum. Rio de Janeiro - v. 15, n. 34, julho/dezembro 2013. p.78, 80. 27. Por outro lado, com o sítio, o Corpo de Segurança pretendia, além dos espiões, “sanear” o Rio “de todos elementos perniciosos”: falsos mendigos, cáftens e o jogo do bicho: dividindo-se em uma seção preventiva e uma repressiva. As medidas da polícia durante o estado de sítio. O Imparcial, Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 06. 94 Comum 36 - jul./dez. 2014 Um editorial chamava a atenção de que o governo devia se precaver não só contra os alemães, mas também “contra as tentativas subversivas de agitadores revolucionários”, ou seja, os anarquistas. “As providências do governo”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1917, p. 01. Os índices de ocorrências policiais (jogo e vadiagem) na cidade do Rio, apresentados por Marcos Bretas, parecem apontar que a precedência do trabalho político implicou numa atenção menor dada à criminalidade comum em 1917 e 1918. Bretas, M. Ordem na cidade. Rio de Janeiro, Rocco, 1997. p. 88-89. 28. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1917, p. 02. Brasil-Alemanha. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1917, p. 06. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 02. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1917, p. 02. Policial. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 de janeiro de 1918, p. 03. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 02. Telegramas dos Estados. O País, Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1917, p. 03. 29. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/ dezembro 2011, p. 31; p. 48 n. 42. E o Amazonas não toma juízo. A Noite, Rio de Janeiro, 25 de março de 1918, p. 03. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1918, p. 02. Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas – Algumas das Teses Aprovadas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1918, p. 06. . 30. Réu de todos os crimes. A Noite, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1914, p. 01. A censura no telégrafo. A Noite, Rio de Janeiro, 15 de junho de 1917, p. 04. 31. Queiroz, Tito H. S. Campo de Concentração São Gonçalo: a Ilha das Flores, 19171919. Revista Científica FAP. S. Gonçalo – v. 03, n. 01, 2011, p. 104. Ao que tudo indica, o serviço de censura da Marinha foi estabelecido em maio de 1918: GAMA, A. O. Saldanha da. Op. cit., p. 48. A repartição postal. Pacotilha, São Luís, 11 de dezembro de 1917, p. 01. 32. A censura telegráfica internacional. Pacotilha, São Luís, 16 de agosto de 1918, p. 02. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 de abril de 1918, p. 02. 33. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1918, p. 02. Foi suspensa a censura da Imprensa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1918, p. 08. Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1918). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1920, p. 220. A censura postal. A Noite, Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1919, p. 03. Ainda a censura postal na Marinha. A Noite, Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 1919, p. 03. Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1919). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1921, p. 483. 34. Albuquerque, Medeiros e. A censura. A Noite, Rio de Janeiro, 22 de maio de 1919, p. 01. Ecos & Novidades. A Noite, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1919, p. 02. Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1919). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1921, p. 484. 35. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/ dezembro 2011, p. 48, n. 42. 36. Peças anunciadas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917, p. 08. 37. O incêndio do “Barbacena”. A Noite, Rio de Janeiro, 06 de abril de 1918, p. 03. A tese de que as greves eram fruto da “intervenção oculta da Alemanha” foram cristalizadas por Pandiá Calógeras na sua síntese de 1930, Formação histórica do Brasil: Dulles, J. W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 59. 38. Autêntico e oportuno. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919, p. 02. O escândalo foi aumentado graças ao depoimento de Aurelino Leal, dizendo que a verba Comum 36 - jul./dez. 2014 95 de 70 contos não ia para ele, chefe de polícia, mas para o Catete, onde o presidente os distribuía para “os jornalistas vendidos desta terra e com seus protegidos da política”. A sua verba secreta Leal a usou só na polícia. W. Braz negou tudo. 39. Britto, A. A sala dos detidos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2011. p. 57, 69. Huggins, M. K. Polícia e política. São Paulo: Cortez, 1998. p. 59-76. Referências Documentos oficiais BRASIL. Ministério da Guerra. Relatório (1900). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. BRASIL. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1918). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1920. BRASIL. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1919). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1921. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Relatório (1914 a 1915). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915. Livros, teses e artigos ABRANCHES, Dunshee de. 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Resumo O texto analisa medidas de controle da informação adotadas pelo governo brasileiro durante a Primeira Guerra Mundial, especificamente, serviços de contraespionagem e censura. Palavras-chave Primeira Guerra Mundial – Contraespionagem – Censura. Abstract This text analyses information control measures adopted by the Brazilian government during World War I, specifically, services of counterespionage and censorship. Keywords World War I – Counterespionage – Censorship. 98 Comum 36 - jul./dez. 2014 DOSSIÊ Cem anos de relações públicas no Brasil A Revista Comum reúne neste dossiê temático três reflexões que possuem como ponto de convergência o fato histórico das comemorações dos 100 anos da atividade de relações públicas no Brasil. Tendo como data marco a instalação do primeiro departamento de relações públicas no país em 1914, na São Paulo Tramway and Power Company – empresa de energia que viria a se denominar Light –, a área passou por grandes transformações ao longo de um século. De ampla penetração na vida das organizações, públicas e privadas, as relações públicas se desenvolveram como campo de conhecimento acadêmico e âmbito de exercício profissional, chegando ao novo milênio com uma série de desafios. Para investigar esse momento histórico, o dossiê reproduz um ensaio no qual o professor Manoel Marcondes Machado Neto faz breve comentário sobre a evolução da atividade, analisando suas fases e revendo suas mudanças de alinhamento mercadológico. A seguir, Fernando Gonçalves e Alessandra Maia analisam criticamente paradigmas da comunicação organizacional e das relações públicas em confronto com a teoria do ator-rede, de Bruno Latour, procurando encontrar novas visões sobre o papel das tecnologias de comunicação e informação nas organizações. Por fim, os professores do curso de relações públicas das Faculdades Integradas Hélio Alonso promovem um exercício de análise coletivo sobre o seu projeto político-pedagógico, repensando suas propostas fundamentais e projetando seu futuro. Comum 36 - jul./dez. 2014 99 Reconhecimento social, relacionamento com stakeholders, relevância no mercado e gestão de reputação. Busca e resultado de uma só formação no Brasil: relações públicas Manoel Marcondes Machado Neto “Toda profissão tem um propósito moral. A Medicina tem a Saúde. O Direito tem a Justiça. Relações Públicas têm a Harmonia – a harmonia social.” (Seib; Fitzpatrick apud Simões, 2006) Apresentação Em 2014, a atividade de relações públicas completa 100 anos de Brasil. Implantado na Cia. Light de São Paulo em 1914, sob a gestão do engenheiro alagoano Eduardo Pinheiro Logo (1876-1933), o primeiro departamento de relações públicas externava a preocupação da companhia monopolista canadense em prestar satisfações aos seus clientes. Este marco histórico coloca o Brasil entre os pioneiros na área, uma vez que a atividade teve seu nascedouro apenas oito anos antes nos Estados Unidos, sob a batuta de Ivy Lee, ex-jornalista (detalhe vital, uma vez que é impossível exercer-se as duas funções ao mesmo tempo – por antiético conflito de interesses). Tal pioneirismo manifesta-se novamente em 1953, com a primeira especialização ministrada na EBAP/FGV, e em 1954, com a criação da Associação Brasileira de Relações Públicas (ABRP), entidade que seria crucial para a regulamentação da profissão apenas 13 anos mais tarde, em 11 de dezembro de 1967, com a Lei 5.377 (a qual institui como função privativa de relações públicas “a comunicação de caráter institucional”). Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 100 a 107 - julho / dezembro 2014 100 Comum 36 - jul./dez. 2014 1914 - 2014: a busca da harmonia social em sete estações O segredo é um instrumento de conspiração e não deveria ser um sistema normal de governo. Sem publicidade, nenhum bem é permanente; sob a publicidade, nenhum mal continua. Jeremy Bentham [filósofo e jurista inglês (1748-1832)], pioneiro no uso do termo “deontologia” (“deon”, dever + “logos”, ciência) para definir o conjunto de princípios éticos aplicados às atividades profissionais (Keen, 2012). 1a Estação: divulgação Em 1914, a Cia. Light, em São Paulo, seguia o modelo criado por Ivy Lee, em 1906, de divulgação (publicity), nos jornais, de fatos (internos) no interesse de clientes. Sua empresa, uma assessoria independente, pregava o seguinte: Declaração de Princípios: Este não é um serviço de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é feito às claras. Nosso objetivo é fornecer notícias no interesse de clientes, mas esta não é uma agência de publicidade. Nosso lema é acurácia. Mais detalhes sobre qualquer assunto tratado será fornecido imediatamente. Todo editor será assistido atenciosamente na verificação direta de qualquer declaração feita. Nosso plano é, franca e abertamente, em nome dos negócios que representamos perante as instituições públicas, abastecer a imprensa e o público de pronta e precisa informação. Ivy Lee & Associates (Machado Neto, 2014). Ou seja; de Bentham a Lee (e Pinheiro Lobo), o conceito e a demanda por transparência que a publicidade necessariamente trazia aos atos de governo passava também a fazer parte dos requisitos impostos às empresas particulares! É a era dos primeiros setores de public affairs nas companhias. “Instituições são criadas para reduzir as incertezas que surgem do desconhecimento das regras do jogo, ou seja, da informação incompleta em relação ao comportamento dos indivíduos em sociedade e da sua capacidade de processar, organizar e utilizar a informação” (North, 1990). Comum 36 - jul./dez. 2014 101 2a Estação: relações com a mídia Media relations: com o desenvolvimento do capitalismo, da democracia e da imprensa, o modelo de relações públicas como “relações com a imprensa” e, depois, de “relações com a mídia” se estabelece. Entre 1927 e 1953, as três maiores empresas (hoje) globais de relações públicas são criadas nos Estados Unidos. São elas: Hill & Knolwton, Edelman e Burson-Marsteller. Definição - Conrerp1 (2010): Relações Públicas são, mais que uma profissão e um conjunto de atividades, escolha de formação. Formação esta que privilegia a multidisciplinaridade, a visão holística da comunicação e o entendimento de que as organizações constituem-se de relacionamentos que demandam, sempre, aprimoramento e gestão. Relações com o público interno, a imprensa, a comunidade, governos nas três esferas, agências reguladoras, investidores, consumidores; são denominações atuais para as funções que a formação em Relações Públicas sempre privilegiou com vistas à tão almejada cidadania corporativa (Machado Neto, 2014). 3a Estação: controle da informação A Guerra Fria enseja outro papel (sem abandono do tradicional “relacionamento com a imprensa”), mais relacionado ao lobbying, para relações públicas – o controle da informação. No Brasil, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Getulio Vargas seguia este princípio e durou de 1939 a 1945, quando foi substituído pelo (hoje extinto) SNI. O controle da informação como filosofia continuaria a inspirar as relações públicas governamentais e de empresas estatais brasileiras de todo o período militar (1964-1985). O que caracteriza más práticas de comunicação institucional e o mau exercício profissional nas relações públicas? Os conselhos profissionais de Medicina, de Engenharia e de Advocacia protegem a cidadania de maus médicos, maus engenheiros e maus advogados. No caso de más práticas de comunicação institucional, indaga-se: - Quem protege o cidadão? a) ... de um resultado de pesquisa de opinião divulgado incompleto? b) ... de uma concessionária de serviços públicos que desdiz os fatos? 102 Comum 36 - jul./dez. 2014 c) ... de uma empresa que engabela o seu acionista com a publicação de “fato relevante” insatisfatório ao público, “informes publicitários” vagos, “relatórios” que impõem aos acionistas minoritários um discurso não substantivo? d) ... de uma ONG que sequer publica os seus estatutos, mas põe-se a levantar fundos? e, e) ... finalmente; o que dizer de tantos comunicados que nos chegam e aos quais nós, profissionais da comunicação institucional, atribuímos credibilidade zero, mas contra os quais o cidadão desavisado não tem defesa? (Doutrina RP, 17/08/2014). 4a Estação: profissão regulamentada Com o surgimento, em 1968, da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), junto à Presidência da República, e do Sistema Conferp-Conrerp, em 1969, a profissionalização em torno do conceito de “comunicação social” se estabelece. É a primeira fase da profissão regulamentada. Quando sabemos que na empresa moderna as operações são voltadas para a clientela, verificamos que toda a sua atividade envolve um constante problema de comunicação social, quer no sentido amplo, quer no sentido mais estrito do termo, traduzido na expressão relações públicas (Vasconcelos, 1977). 5a Estação:profissão liberal Em 1979, Saïd Fahrat assume a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República; em 1980, surge o Prêmio Opinião Pública; e em 1986, Margarida Kunsch publica seu conceito de comunicação integrada: relações públicas firma-se como profissão liberal. O conceito de legitimidade, a legitimidade das decisões, a promessa da utopia de uma sociedade justa são critérios que ancoram, ética e esteticamente, a atividade de Relações Públicas. Sem essa premissa, essa atividade jamais alcançará, no plano de horizonte, sua justificativa de ser útil à sociedade. Daí por que se deve abandonar os velhos refrões de formar imagem, compreensão mútua, Comum 36 - jul./dez. 2014 103 boa vontade, e fundamentar a atividade de Relações Públicas nestes valores (Simões, 2006: 113). 6a Estação: transparência nos negócios Vera Giangrande (antes consultora independente em sua própria empresa, a Inform), assume o cargo de ombudsman da rede Pão de Açúcar em 1993; Sidinéia Freitas, presidente do Conferp, lidera o Parlamento Nacional de Relações Públicas a partir da Carta de Atibaia (1997); e em 2002 é expedida a Resolução Normativa 43 do Conferp: relações públicas tornam-se, conceitualmente, o vetor comunicacional da transparência nos negócios. As organizações prezam pela sua imagem no mercado. Elas buscam preservar e consolidar sua imagem junto a clientes e parceiros e, se ocorrer alguma crise, precisam de alguém que as ajude a manter uma imagem de respeito intacta junto à imprensa. Os objetivos da comunicação institucional consistem em conquistar espaço, manter credibilidade e aceitação de produtos e ações (Pinho, 1990). Discussões havidas entre 2010 e 2011 no âmbito da Comissão Acadêmico-Científica do Conrerp1, sob a coordenação do conselheiro Ricardo Benevides; e da Comissão de Fiscalização do mesmo Conrerp1, sob a coordenação de Marcelo Ficher, foram por nós sistematizadas com vistas ao documento que seria encaminhado pelo Conselho à Comissão de Especialistas do MEC, encarregada das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (que acabaram sendo expedidas em setembro de 2013) (Ministério da Educação, 12/09/2013). Eixos programáticos de conteúdo multidisciplinar foram construídos em torno de quatro grandes demandas das organizações (empresas, entes estatais e ONGs): reconhecimento, relacionamento, relevância e reputação. Sistematizados num composto, denominado “4 Rs das relações públicas plenas”, foram objeto de artigo (Machado Neto, 18/08/2014) e, depois, livro (Machado Neto, 2012), desdobrando cada “R” em 4 táticas, num total de 16 frentes de ação a serem gerenciadas como caminho para a tão demandada transparência nos negócios. 104 Comum 36 - jul./dez. 2014 7a Estação: governança corporativa Com a extinção do conceito de comunicação “social” pelo Ministério da Educação, na esteira das novas Diretrizes Curriculares Nacionais expedidas a 27 de setembro de 2013 para os bacharelados em relações públicas e jornalismo, a área de relações públicas, agora autônoma e mais independente, torna-se ferramental reconhecido para a governança corporativa, tanto pública quanto privada e para as organizações do terceiro setor. Iniciativas como o coletivo “Todo Mundo Precisa de um RP” e a Sociedade Educativa Observatório da Comunicação Institucional protagonizam “uma virada” para o segundo século – e novo momento – das relações públicas no país, centralmente ligada à promoção dos movimentos sociais e de indivíduos que demandam gestão de sua imagem pública. Por ter, basicamente, a mesma formação que jornalistas e publicitários, o relações-públicas tem condição insuperável de – com distanciamento – fazer a leitura crítica da mídia, uma vez que não se encontra imerso em seu processo produtivo. Como jornalistas e publicitários poderiam – fora do ambiente acadêmico – refletir e discutir suas práticas à luz do interesse público legítimo? O relações-públicas é perfil talhado para esse trabalho de levantamento e ausculta, no interesse de grupos sociais e da cidadania em geral.1 Cem anos depois, as relações públicas brasileiras ganham novo impulso, novo lugar e novas responsabilidades. Muito além das discussões sobre a reserva de mercado que a legislação em vigor sustenta, apesar da fragilidade da fiscalização do exercício profissional, a formação superior na área, bem como todo o campo de pesquisa alcançado por aqueles que a ela se dedicam, reserva às relações públicas um papel crucial em um mundo conflagrado politicamente e de crescente desigualdade, do ponto de vista econômico. E é justamente no prêmio Nobel de Economia de 1993, Douglass North, que buscamos inspiração para seguir adiante, acreditando que só o fortalecimento contínuo e permanente das instituições pode levar a sociedade a um verdadeiro progresso. Discute-se, hoje, até o chamado “crescimento zero” como alternativa de estancar o esgotamento do planeta. E o institucionalismo Comum 36 - jul./dez. 2014 105 de North nos oferece um... norte, na contramão absoluta entre seus pares: “decisões econômicas devem-se menos à econometria que à cultura dos decisores (...) e tal caldo cultural deve-se à solidez das instituições que forjam os cidadãos e seu meio (...)” (North, 1990). Lutemos, pois, por instituições sólidas. De outro modo, em nossa opinião, não chegaremos a ser algo mais que a incensada “8a economia do planeta” que apresenta padrões de 84a nação em Índice de Desenvolvimento Humano (O Globo, 18/08/2014) e 116a. no ranking “Doing Business”. Nota 1. Machado Neto, M. Marcondes. Palestra na Universidade de Santa Cruz do Sul, 2014. Referências DOUTRINA RP. “O que caracteriza más práticas de comunicação institucional e mau exercício profissional das relações públicas”. Disponível em: < http://wwwrrpp.wix.com/doutrina-rp#!pergunta-mais-frequente-1/crmg>. Acesso em: <17/08/2014>. DOING BUSINESS. “Ease of Doing Business in Brazil”. Ranking. Disponível em: < http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil/>. Acesso em: <18/08/2014>. KEEN, Andrew. Vertigem digital. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. KUNSCH, Margarida M. K. Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. São Paulo: Summus, 1986. MACHADO NETO, M. Marcondes. A tão demandada transparência nos negócios: uma proposta de relações públicas para uma questão transdisciplinar da administração”. Artigo disponível em: < http://www.litteraemrevista.org/ojs/index.php/Littera/article/view/85> . Acesso em: <18/08/2014>. __________. A transparência é a alma do negócio: o que os 4 Rs das relações públicas plenas podem fazer por você e sua organização. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2012. __________. Relações públicas e marketing: convergências entre comunicação e administração. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2008. NORTH, Douglass. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Nova York: Cambridge University Press, 1990. O GLOBO. Índice de Desenvolvimento Humano. Gráfico. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/infograficos/idh/>. Acesso em <18/08/2014>. 106 Comum 36 - jul./dez. 2014 PINHO, José Benedito. Propaganda institucional: usos e funções da propaganda em relações públicas. São Paulo: Summus, 1990. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Relações Públicas. Processo n. 23000.013995/2010-54. Brasília: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior, 2013. DOU, Seção 1, 12/09/2013 (homologação). SIMÕES, Roberto Porto. Relações públicas: função política. São Paulo: Summus, 1995. __________. Informação, inteligência e utopia: contribuições à teoria de relações públicas. São Paulo: Summus, 2006. VASCONCELLOS, Manoel Maria de. Marketing básico. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2006. Resumo Um percurso fundamentado nos avanços conceituais e práticos da área de relações públicas em sua configuração única, brasileira. Diferentemente dos Estados Unidos, matriz da atividade e da área de estudos – sempre, e somente, em nível de pós-graduação, relações públicas, no país, desenvolveu-se como graduação universitária a partir de uma concepção holística de gestão da comunicação integrada no seio das organizações, muito além da função consagrada de relações com a mídia que a atividade tem, globalmente. Palavras-chave Relações públicas – História das relações públicas – Teoria das relações públicas. Abstract One centennial conceptual and practical narrative through advances in the area of Public Relations in its unique brazilian configuration. Unlike the United States, cradle of activity and area studies – always, and only, at the post-graduate –, Public Relations, in Brazil, has developed itself at undergraduate level from a holistic concept of integrated communications management within organizations, much far beyond from globally consecrated of media relations activity. Keywords Public Relations – Public Relations History – Public Relations Studies. Comum 36 - jul./dez. 2014 107 Reflexões sobre relações públicas, comunicação organizacional e as TIC: contribuições da teoria do ator-rede1 Fernando Gonçalves Alessandra Maia Introdução Os campos da comunicação organizacional e das relações públicas encontram-se, já não é de hoje, diante de dilemas e desafios de diferentes ordens. Mas talvez não se trate apenas de entender o “contemporâneo” e de saber reposicionar-se no presente para obter legitimação e reconhecimento como área de exercício profissional e de conhecimento. Provavelmente, um de nossos maiores desafios seja tornarmo-nos capazes de problematizar as maneiras como entendemos e formulamos tais questões na atualidade. Caracterizados historicamente pela adoção de abordagens que buscam ordenar estrategicamente a realidade com fins específicos, essas áreas assumem visões de sociedade e de comunicação assentadas numa clássica dicotomia entre natureza e cultura e entre sujeito e objeto, como se os diferentes domínios da vida fossem efetivamente fracionados em realidades distintas e isoladas e de fácil gestão. Contudo, como afirma Bruno Latour (2009), são esses próprios modelos e concepções que se encontram em crise e exigem de nós outros posicionamentos. Um dos vetores da vida social que mais evidenciam esse aspecto de crise são as chamadas tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Do ponto de vista das organizações, elas vêm, em parte, atualizar o desejo de domínio e Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 108 a 133 - julho / dezembro 2014 108 Comum 36 - jul./dez. 2014 de otimização de elementos que ajudem a equacionar problemas de relacionamento, de produção, de gestão e de negócios. Mas, se de certa forma, o que atualmente é colocado em questão é a visão instrumentalista que temos de todo um repertório de ferramentas e de estratégias apoiados em modelos de comunicação massiva e dirigida – algo redimensionada na cultura digital –, e de uma divisão tradicionalmente simplista de “públicos”, calcadas em relações de interioridade ou de exterioridade em relação à geografia organizacional. Tais visões precisam ser repensadas, pois são exatamente esses modelos e essas geografias que estão se modificando. Curiosamente, os pensamentos de diversos autores que haviam caído em esquecimento, como Gabriel Tarde e Gilbert Simondon, são hoje recuperados por compreenderem justamente a dimensão reticular do social e a condição híbrida da técnica (nem apenas técnica nem apenas social, mas propriamente “sociotécnica”). Ao observarmos as novas configurações culturais, midiáticas e subjetivas que redimensionam e projetam o papel do cidadão, do Estado e das empresas; as formas descentralizadas de produção, distribuição e acesso à informação e aos bens de consumo; o surgimento de novas formas de gestão da comunicação; as mudanças nas arquiteturas organizacionais; o maior poder de negociação e questionamento dos públicos, nos damos conta do aspecto visível das tramas que constituem a vida social e, em particular, a vida das organizações e suas formas de comunicar. A crença de que basta saber antecipar e manejar as mudanças para que a realidade se dobre diante de nossos interesses é correlata daquela que preconiza os avanços da tecnologia e seus usos como “coisa em si” e não como forças em contato com outras forças, que afetam e são afetadas, que organizam e são também organizadas pelas tramas de que fazem parte. Mas estas crenças, que têm embasado o pensamento e as práticas nas áreas da comunicação organizacional e das relações públicas, têm sua história, seus limites e quem sabe, suas possibilidades de ultrapassamento. Nosso objetivo aqui é relembrar um pouco dessa história, através de uma breve análise dos modelos que embasaram a construção das visões acerca das práticas e os discursos das relações públicas e da comunicação organizacional. Como procuraremos demonstrar, obviamente nem as práticas de relações públicas e da comunicação organizacional nem os usos das TIC são neutras. Todos se inscrevem em modos particulares de entender a relação entre organização e sociedade e as funções que a comunicação e as tecnologias ganham nesse contexto. Fundamentados em pesquisadores da área da comunicação e Comum 36 - jul./dez. 2014 109 da administração que, de certa forma, nos mostram essa história a contrapelo, o artigo busca também apresentar contribuições de outras visões, como as da sociologia das associações ou teoria do ator-rede (TAR). A abordagem da TAR sistematizada por Latour não será aqui necessariamente pensada como alternativa a esses modelos tradicionais, mas como contraponto a lógicas e visões que nos fazem aderir demasiadamente ao presente e que talvez por isso mesmo nos impeçam de apreendê-lo em sua gravidade e de pensar o mundo e as organizações tais quais se nos apresentam na atualidade. Esta será a base de nossa problematização desses modos de entendimento, com vistas à discussão sobre os atuais discursos e práticas de comunicação nas organizações no contexto das TIC. Breve revisão dos paradigmas de relações públicas Ana Maria Eirôa da Fonseca apresentou nos anos 1980 um interessante estudo sobre os modelos que embasam as visões e as práticas de RP, contextualizadas histórica e epistemologicamente. Em um primeiro artigo (Fonseca, 1987), a autora ensaia um movimento com o qual tenta dar ao profissional de relações públicas um status de “catalisador no fenômeno interativo”, algo mais complexo que seu tradicional papel “de divulgador, de formador de imagens ou técnicas de comunicação” (Fonseca, 1987: 69). Naquele momento, a autora reconhecia a necessidade de se repensar as práticas do profissional e sua postura. Vai então buscar nos paradigmas2 relacionados às teorias sociológicas, ferramentas para entender e analisar as práticas e os discursos da atuação profissional de nossa área, localizados por ela, a partir Burren e Morgan (1979) nas tradições funcionalista e dialética. Fonseca nos faz recordar que o surgimento das relações públicas ocorreu de forma “intuitiva”, em função das primeiras tentativas de gerenciamento de crises em empresas americanas no começo do século XX, que diziam respeito aos choques de interesses entre mercado e setores da sociedade da época3. Eram experiências práticas sem nenhum tipo de método, que a autora caracterizou, apoiada em Capra (1979: 35), como “pensamento intuitivo”, “sintetizador e não-linear”, baseado “na experiência direta, não intelectual da realidade”. Até aí nada demais, o mesmo se passava com o próprio jornalismo da época, que contava com escritores, cronistas e romancistas, que davam à notícia um conceito e um formato bem diferentes do que temos atualmente ou também com os publicitários. 110 Comum 36 - jul./dez. 2014 O que chama, porém, a atenção de Fonseca é que o marco inicial das relações públicas foi delineado apenas muito mais tarde, o que teria trazido prejuízo não apenas para a compreensão de que seria aquele conjunto de práticas que se constituíam no “manuseio de incipientes técnicas persuasivas, visando manipular a opinião pública” (Fonseca, 1987: 68), mas também para a sua definição enquanto profissão e área de conhecimento. É percebendo o quanto as relações públicas nasceram já confundidas com seus instrumentos e técnicas, sem nenhum tipo de formulação científica, algo obviamente impossível à época, que podemos compreender, por exemplo, a definição oficial da ABRP4, de 1955, que as colocam como técnica e função: “esforço deliberado, planificado, coeso e contínuo da alta administração, para estabelecer e manter uma compreensão mútua entre uma organização, pública ou privada, e seu pessoal, assim como entre essa organização e todos os grupos aos quais está ligada, direta ou indiretamente”. Como observou Fonseca (1989) num segundo momento, toda profissão em seu início é ditado pela experimentação e pela prática e somente depois passa por um processo de amadurecimento, institucionalização e reflexão e de fundamentação teórico-metodológica. O fato da “essência” da profissão, concebida, de forma genérica, como a de promover o diálogo entre os mais variados públicos, é um exemplo disso. A passagem de visões genéricas e abstratas para visões que dão contornos cada vez mais precisos, através da descrição das práticas como conjunto de ações de comunicação intencionais e estratégicas, vem exatamente desse esforço de individuação. É interessante notar como o alicerçamento da construção da história do surgimento da profissão, através do relato de um certo conjunto de ações realizadas por Ivy Lee num dado momento histórico, se dá por modos narrativos que variam segundo os autores e seus referenciais. Os relatos podem tratar dos fatos como sistematização ainda que “intuitiva” de processos e práticas (Wey, 1983; Andrade, 2005) ou como questão “ideológica”, no qual os detentores do capital norte-americano teriam buscado conquistar a opinião pública para, desta maneira, legitimar-se diante da sociedade (Peruzzo, 1986). Mas, a própria designação de tais ações como “práticas intuitivas sem método racional” – e que hoje se apresentam mais claramente delineadas como espécie de ações estratégicas apoiadas no uso racional de instrumentos e técnicas – ocorre no interior do próprio processo de construção identitária da profissão. Esse processo, construído e formulado teoricamente a posteriori com apoio de ferramentas conceituais das ciências sociais, no caso, os modelos Comum 36 - jul./dez. 2014 111 ou paradigmas identificados, descritos e aplicados por Fonseca às relações públicas. É esse processo que Fonseca de certa forma delineou ao identificar a presença de dois grandes tipos de enfoque para relações públicas, na América Latina dos anos 1980, e que eram correlatos a dois dos principais paradigmas presentes nas teorias sociais, na perspectiva de Burrel e Morgan5 (apud Fonseca, 1987: 70): o enfoque sistêmico do funcionalismo de Muriel e Rota e a abordagem transformadora do humanismo radical de Cecília Peruzzo, pertencente à tradição da dialética marxista. Cada qual com sua visão de sociedade, estes enfoques vêm aparelhando desde então conceitual e operativamente as práticas e os discursos de relações públicas. A abordagem funcionalista, de influência positivista, toma das ciências naturais e da sociologia do regulamento elementos para formular uma visão que vê a sociedade como sistema total que tende ao equilíbrio, devendo para isso ser regulado. Os modelos que resultam dessa abordagem – que de resto fundamentou e ainda fundamenta talvez grande parte das ciências no século XX e XXI – são os mecânicos (física) e os fisiologistas (biologia), fundamentados no reconhecimento e cumprimento objetivo de padrões que favoreçam a previsão e o controle. Percebe-se nessa abordagem o determinismo das ações sociais como fator de regulação de um todo estruturado extrínseco ao indivíduo, como nas proposições durkheimianas, por exemplo. Nessa abordagem, as organizações seriam consideradas subsistemas sociais e, nesse caso, caberia às relações públicas planejar, organizar e administrar os processos comunicativos presentes nas instituições, interna e externamente, para otimizar o relacionamento da instituição com seus públicos. Não por acaso, verifica-se na bibliografia da área, sobretudo entre os anos 1970 e 1990, uma ênfase na regulação dos processos comunicativos e organizacionais, por meio de técnicas e instrumentos diversos, coerente com o modelo sistêmico funcionalista. Resulta daí uma visão pautada em um modelo onde a noção de gestão é literalmente estratégica e socialmente legitimada, que favorece a crença de que uma visão “coerente” do todo e uso “correto” dos meios bastariam para ajustar e equilibrar o sistema e mantê-lo funcionando “adequadamente”. Vemos assim surgir a noção do profissional de relações públicas como um “coordenador do processo de comunicação social” (Muriel e Rota apud Fonseca, 1989: 71). Come se sabe, na mesma época, surge no Brasil um outro enfoque diametralmente oposto a esse, calcado no idealismo alemão das tradições kantiana, hegeliana e marxista. Esse enfoque tendeu a apresentar uma visão crítica da 112 Comum 36 - jul./dez. 2014 sociedade, visando romper com o objetivismo funcionalista e denunciando os jogos de poder e dominação presentes no sistema capitalista. Trata-se do modelo dialético, que fundamentou o enfoque dado por Cecília Peruzzo e que, dentro da perspectiva de Burrel e Morgan, recebe o nome de humanismo radical. Para Peruzzo, as relações públicas reproduziriam a ideologia burguesa e seriam usadas pelo poder para “ocultar as contradições estruturais da sociedade” (Fonseca, 1989: 73). No paradigma humanista, o relações públicas deve estar consciente de seu papel transformador e atuar como uma espécie de conscientizador que “desaliene” as classes oprimidas. Nesse enfoque, luta-se pela mudança radical ao invés de buscar-se a regulação do sistema, o que apenas reforçaria suas contradições. É quando vemos a proposta de atuação das relações públicas em apoio aos movimentos populares para superar os processos de dominação. Resulta daí um tipo de prática que favorece a expansão das atividades de relações públicas para além das áreas corporativa ou governamental. É a atuação no chamado terceiro setor e na comunicação comunitária. Apesar da mudança de enfoque, percebemos que, epistemologicamente, no humanismo radical parece haver menos uma alteração na natureza conceitual das atuações do que em suas funções. Trata-se, na verdade, de uma prática que visa criar uma outra função para as relações públicas, uma função “alternativa”, que aplique os meios e as técnicas de comunicação em favor de outra classe que não seja a “dominante”. Metáforas e outras imagens do mesmo As análises de Fonseca apoiaram-se nas investigações de outras áreas como economia e administração, que realizaram, sobretudo a partir dos anos 1980, estudos acerca das organizações, do ponto de vista de suas teorias, de sua gestão e de seus processos. É o caso de Gareth Morgan, economista e teórico britânico das organizações. Morgan buscava uma base teórica para compreensão dos fenômenos organizacionais e teve o mérito de sistematizar o debate da época em torno dos binômios ordenação x conflito, teorias sociais subjetivas x objetivas, determinismo x livre-determinação. Juntamente com Gibson Burrell, outro téorico organizacional britânico, o autor então organizou as bases para uma análise organizacional com base nas teorias que preconizavam, por um lado, a regulação e, por outro, as que enfatizavam a mudança radical (Burrel e Morgan, 1979). Comum 36 - jul./dez. 2014 113 Nos anos 2000, vemos também outros autores apoiarem-se em Morgan, desta vez no campo da engenharia de produção, para discutir as questões das condições de trabalho e da prevenção de acidentes nas empresas. É caso de Janaina Garcia e Josiane Minuzzi (2005). As autoras retomaram as bases das análises organizacionais de Morgan através dos quatro paradigmas propostos por Burrel e Morgan (1979), enfatizando sua noção de “metáfora organizacional”. Garcia e Minuzzi recordam que Morgan (1996) acreditava que as teorias e as explicações da vida organizacional são baseadas em metáforas que nos levam a ver e compreender as organizações de formas específicas, embora incompletas. O gesto de Morgan de pensar as organizações a partir de oito metáforas (máquina, organismo, cérebro, cultura, sistemas políticos, prisão psíquica, fluxo de transformação e instrumentos de dominação) para melhor descrevê-las pode ser assim representado: 114 Comum 36 - jul./dez. 2014 Assim, por exemplo, para Garcia e Minuzzi, a imagem da “prisão psíquica” nos ajudaria a compreender o paradigma humanista radical. É como se a organização fosse um fenômeno psíquico, ou seja, as pessoas ficariam aprisionadas a processos conscientes e inconscientes que geram imagens, ideias, pensamentos e ações. Ou seja, é como se todos estivessem “aprisionados por construções da realidade que, na melhor das hipóteses, dão uma noção imperfeita do mundo” (Morgan, 2006: 217). Esta metáfora nos aproxima também da discussão que Fonseca apresenta a respeito da visão do profissional de RP que remete a esse paradigma: uma vez que o humanista radical visa uma transformação radical da posição do funcionário, sua emancipação, pois, para ele, “a consciência do oprimido é dominada pela superestrutura ideológica na qual ele interage. Isso limita a capacidade cognitiva do oprimido” (Fonseca, 1989: 73), que o impediria de tomar consciência de si. O paradigma estruturalista radical seria entendido por meio da metáfora dos “instrumentos de dominação”, já que mesmo as empresas mais democráticas e racionais poderiam gerar modelos de dominação. Isso porque o pensamento racional que busca gerar maior lucro para a empresa pode causar um impacto negativo tanto à sociedade quanto aos seus funcionários, mesmo que de forma não intencional, como Morgan descreve na seção “A face repulsiva: as organizações como instrumentos de dominação” (Morgan, 2006: 301-342). Segundo o autor essa “metáfora cria um novo nível de consciência social e uma compreensão do porquê as relações entre grupos exploradores e explorados podem ficar tão polarizadas” (Ibid: 301). A partir do paradigma funcionalista podemos observar que Morgan destacou cinco metáforas para pensar o modo de atuação na organização que a emprega. Ainda no sentido horário, a da “máquina”, segundo Morgan, “ilustra como o estilo mecanicista de pensamento marca o desenvolvimento da organização burocrática” (2006: 27). Esta metáfora tem como alicerce a teoria clássica da administração e a administração científica. Para Garcia e Minuzzi, nesta primeira metáfora, os teóricos Taylor e Fayol fizeram uso da especificação de Weber de que a burocracia seria o ideal para as organizações. Ou melhor, essas são consideradas mais eficazes quando estão em ambientes estáveis ou protegidos; ou menos eficazes quando o ambiente é turbulento e competitivo, como o de hoje. Na metáfora do “organismo” há comparação entre os organismos vivos e as organizações, que nos chama a atenção para assuntos como a sobrevivência e a eficácia organizacional, no que tange as relações sociais no ambiente de Comum 36 - jul./dez. 2014 115 trabalho. Segundo Morgan, ela “concentra a atenção no entendimento e gestão das necessidades organizacionais e das relações ambientais” (Morgan, 2006: 27). Nessa metáfora, o organismo é visto como uma combinação de elementos diferentes que procuram sobreviver em um vasto ambiente. Ou seja, é possível enxergar claramente as semelhanças entre os elementos da teoria das organizações contemporâneas e o organismo, ainda mais se for dada ênfase aos sistemas abertos. A partir da crítica à metáfora anterior, Morgan destaca que “a teoria da organização foi enclausurada numa forma de engenharia preocupada com as relações entre metas, estruturas e eficiência” (Ibid: 55). Ou seja, a mudança na perspectiva – no lugar de uma máquina um organismo – nos permite identificar relações que antes eram deixadas de lado. A terceira metáfora é a do “cérebro”. Nela traçamos uma comparação entre o cérebro e a organização, visto que o funcionamento dos dois ocorre de forma semelhante, porque ambos possuem a mesma capacidade para processar informações, refletir sobre algum dado, e de reter na memória o aprendizado. Ou nas palavras de Morgan, “a metáfora chama a atenção para a importância do processamento da informação, aprendizado e inteligência e oferece uma estrutura de referência para a compreensão e a avaliação das modernas organizações nestes termos” (Ibid: 28). A metáfora do “sistema político” se diferencia das demais visões ao passo que não observa as organizações como interligadas e racionais perseguindo um objetivo comum. Ao contrário, as organizações são vistas como uma rede de pessoas com interesses divergentes, mas agindo de modo interdependente. Enfim, essa metáfora política dá ênfase, como Morgan descreve, aos “diferentes conjuntos de interesses, conflitos e jogos de poder que determinam as atividades organizacionais” (Morgan, 2006: 28). Ou seja, nela se explora os aspectos políticos da vida na organização. A metáfora da “cultura” está ligada à parte “humana” da organização, pois dá destaque à acepção simbólica dos vários aspectos da vida organizacional que são compartilhados: “podem ser a linguagem, normas, folclore, cerimônias e outras práticas sociais que comunicam ou expressam ideologias-chave, bem como os valores e crenças que guiam a ação” (Garcia e Minuzzi, 2005: 5). A última metáfora é a de “fluxos de informação”, que nos remete ao paradigma interpretativista. Ela aborda, segundo Morgan, quatro “lógicas de mudanças”: 116 Comum 36 - jul./dez. 2014 Uma enfatiza o modo como as organizações são sistemas autoproduzidos que se criam a sua própria imagem. A segunda chama a atenção para ideias originárias do estudo do caos e da complexidade, vendo a vida organizacional através de imagens de padrões de atração concorrentes. A terceira vê a organização como produto de fluxos circulares de feedback positivo e negativo. A quarta explora como os aspectos da moderna organização são produto de uma lógica dialética em que cada fenômeno gera seu oposto (Morgan, 2006: 29). Podemos observar como o esforço de sistematização de Morgan, acionado por Garcia e Minuzzi, reforçam, em sua apropriação, uma ideia ainda fragmentada do social ou então uma visão totalizante. Por um lado, binarismos, oposições e compartimentações tratam o social e a organização por partes, como se essas fossem isoladas. Por outro, essas partes tendem a ser vistas como formadoras de um todo. Por um lado, buscam reificar uma visão totalizante, coerente e estável para o social e para as organizações, e por outro uma abordagem que integre ao mesmo tempo todos os aspectos (políticos, econômicos, subjetivos, culturais, conflituais, tecnológicos, materiais, simbólicos etc.) que são vistos e apresentados por partes por esses modelos e metáforas. O próprio uso da ideia de metáfora, aliás, figura de linguagem que busca representar uma coisa no lugar de outra, parece indicar uma visão algo engessada de como uma organização seria de acordo com os quatro paradigmas, embora sejam vistas como “oportunidade de alargar nosso pensamento e aprofundar nosso entendimento, permitindo-nos ver as coisas de maneiras novas e agir de maneiras novas” (Morgan, 2006: 21). Por meio da imagem metafórica o que se faz é ainda permanecer no campo de uma representação que transfere e projeta, por comparação e analogia, um significado para algo, o que implica em determinar para esse algo o que ele seria, ou seja, um caráter de verdade. O que propomos a seguir é pensar as organizações não mais em termos de uma “metáfora”, mas nos de uma “alegoria”, figura de linguagem muita usada por Walter Benjamin (2011) e que implica uma outra forma de relação entre as imagens de que nos servimos para nos remeter a algo. Com a alegoria, produz-se não um único sentido, mas muitos, nenhum deles literal, de modo a não se fixar ou determinar um significado a priori para essas imagens e para a própria relação entre elas. Diferente da metáfora que ilustra por analogia, a alegoria nos faz pensar a partir das relações entre as imagens que emparelha, sem determinar de antemão um significado para tais relações. Comum 36 - jul./dez. 2014 117 O que faremos a seguir é apresentar a noção de “rede” em Latour como alegoria de um pensamento contemporâneo sobre os processos organizacionais e de comunicação e como uma figura epistemológica de grande importância. Por meio dela, o social – e também as organizações – será pensado mais como movimento permanente de recombinação e reordenamento e menos como um algo em si a ser explicado e simplesmente gerido por meio de técnicas e estratégias. Mas, para tanto, será preciso antes definir as condições de possibilidade dessa abordagem, que não quer, diga-se de partida, constituir um novo paradigma. Pensando “fora da caixa” A breve apresentação das metáforas de Morgan e do desdobramento dos seus paradigmas por Garcia e Minuzzi e de suas apropriações por Fonseca parecem participar do movimento fecundo de criação de um campo de reflexão para as práticas e os discursos nas áreas de relações públicas e comunicação organizacional. Entretanto, nota-se que, colocada nesses termos, as ações de comunicação organizacional e de relações públicas ainda podem facilmente ser polarizadas e engessadas, quando não dicotomizadas (objetivo x subjetivo, determinismo x livre-determinação, homem x tecnologia, organização x funcionário, cliente, imprensa etc.). Ou então resumir-se apenas a uma questão de técnica e de estratégia, bastando apenas saber adaptar-se à situação, usar e gerir de forma “correta” os “bons” instrumentos no caso e na hora “certa”. Tal qual as ações de Ivy Lee, blogs e redes sociais on-line, por exemplo, também não tiveram seus processos de funcionamento intuídos e sistematizados para poderem hoje ser mobilizados estrategicamente como ambientes e ferramentas de comunicação? Vemos atualmente a proliferação de profissionais que se especializam na atuação nesses ambientes, em sua gestão e na mensuração dos resultados dessas intervenções. No entanto, somos incessantemente surpreendidos por movimentos diversos nesses mesmos ambientes: pelos rumos, usos e funções de ferramentas e processos que se reinventam e recombinam a cada dia nas mãos de usuários e empresas; no ambiente de tecnologias e processos que reorganizam nossos modos de viver, de comunicar e de relacionar; nas dinâmicas rapidamente apropriadas, adaptadas e redirecionadas pelos profissionais de comunicação e em seguida, contra-apropriadas pelos públicos; finalmente, somos surpreendidos por nossa incapacidade de total antecipação e controle. 118 Comum 36 - jul./dez. 2014 Perguntamo-nos justamente então se essas formas de pensar as práticas de comunicação organizacional e de RP por meio de categorias rígidas, de explicações por meio de paradigmas ou pela sistematização da experiência pelos usos de técnicas e estratégias não seria ainda buscar enquadrar tais práticas dentro de uma perspectiva que pressupõe sistemas de pensamento redutores, mecânicos e compartimentados que Bruno Latour (2009) identificou como “modernos”. Latour localiza o cerne do pensamento moderno na separação da experiência em domínios distintos e opostos, como natureza e cultura, indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo, humano e não-humano, a partir de princípios do racionalismo e do iluminismo. Ora, Latour defende que uma dinâmica de conexão, afetação mútua e transformação entre esses domínios – que ele chamou de “rede” ou “tradução” – sempre existiu, de uma forma ou de outra, mas que tal movimento era rompido, freado ou negado através do que ele chamou de operação de “purificação” (Latour, 2009: 16). Por meio desta operação, convencionou-se pensar e organizar a vida nos termos das dicotomias mencionadas acima, que nos fazem crer, por exemplo, que ciência nada tem a ver com política, que política nada tem a ver tecnologia, que por sua vez nada tem a ver com subjetividade, que nada tem a ver com cultura e assim por diante. Talvez por isso a prevalência de concepções mecanicistas e organicistas das organizações e da comunicação, como se as organizações nada tivessem a ver com objetos, apenas com pessoas, como se objetos nada tivessem a ver com natureza, como se natureza nada tivesse a ver com tecnologia, como se a tecnologia nada tivesse a ver com política etc. Essa articulação e afetação entre elementos diversos de naturezas distintas corresponde ao conceito de “redes sociotécnicas” em Latour (2009, 2012a), considerado como um processo de mediação ou de tradução6. Nesse sentido, o que Latour chama de “rede” não se confunde com a acepção comum do termo “rede” no sentido de internet ou de redes sociais on-line, no contexto das TIC. Em Latour, esse conceito diz respeito a processos e redes de relações entre pessoas e coisas, onde um elemento não apresenta, a priori, maior importância ou capacidade de produzir uma ação ou mudança do que o outro. Nesta concepção, as relações na sociedade são construídas tanto a partir da ação de humanos como de não-humanos, considerados com igual capacidade de interferência num dado contexto. Eis o princípio de sua “antropologia simétrica” (Latour, 2009), concebida juntamente com Michel Callon, seu companheiro de estudos de Comum 36 - jul./dez. 2014 119 sociologia da ciência e da tecnologia. Segundo seu princípio de “simetria generalizada”, a natureza e a sociedade devem ser tratadas sob um mesmo plano e nunca separadamente, já que também não haveria entre elas diferença em espécie, apenas de grau. Seria preciso considerar, portanto, que existe no mundo uma espécie de transversalidade, de correspondência e de uma afetação recíproca entre elementos heterogêneos. Do ponto de vista dessa transversalidade, o pensamento de Latour permite ver o quanto afetamos e somos também afetados por imagens, marcas, produtos, práticas e discursos institucionais, tecnologias, comunicólogos, gestores, imprensa, funcionários etc. Esses e outros elementos constituem de forma imbricada uma “rede” cujo funcionamento não pode ser entendido de forma rígida, isolada ou hierarquizada. Segundo este modo de entendimento, as TIC não podem, de forma alguma, ser consideradas determinadoras dos modos de vida das organizações e de sua comunicação, embora participem ativamente dos processos organizacionais. Tecnologias não são neutras nem meros instrumentos a serviço da vontade do homem. Enquanto um agregado de relações, objetos e instituições também têm “subjetividade” (Latour, 2012a: 313). Não no sentido de ser a expressão de um sujeito, mas de carregarem e transportarem consigo princípios culturais e históricos, visões de mundo e questões de poder próprios a sujeitos e grupos. Pela mesma razão, Michel Serres (1995) denominou as invenções dos homens de “quase-sujeitos técnicos”: objetos que pensam por eles, com eles e entre eles, não podendo ser reduzidos a simples “coisas”. Portanto, sem pensar nas tecnologias como meras extensões do homem, podemos concebê-las como formas de pensamento que se individuam ou concretizam na relação entre homem e máquina, entre indivíduo e sociedade. A proposição não é nova. No século XX, diversos autores parecem ter seguido estas pistas. Nos anos 1960, Gilbert Simondon (1999), por exemplo, propunha uma natureza híbrida para os objetos técnicos, na medida em que a técnica “media” as relações do homem com seu entorno social. Para ele, nenhum objeto técnico é puro, sempre tem uma natureza híbrida, ao mesmo tempo social e técnica. Para Simondon, longe de ser meramente instrumental, a técnica é fruto de um processo contínuo de autoafetação entre, de um lado, a aquisição de saberes técnicos e habilidades cognitivas, e de outro, os contextos e regras de usos, aplicações, subversão e inovação desses conhecimentos por meio das vivências dos sujeitos. Um pouco mais tarde seria a vez de Deleuze afirmar que uma máquina nunca é simplesmente técnica; ela só o seria “en- 120 Comum 36 - jul./dez. 2014 quanto máquina social” (Deleuze, 1977: 118), na medida em que nos enreda em suas engrenagens tanto quanto outros objetos, discursos e práticas sociais. Mas, como observou Deleuze, as conexões nos levam à “desmontagem da máquina”, mas não a explica. Assim como não basta simplesmente estar conectado ou interagir para comunicar algo ou produzir mudança, estudar apenas as conexões em si não ajuda a entender ou a explicar um fenômeno. É preciso seguir as conexões e ver o que elas produzem, transportam e transformam nesse movimento, como propõe Latour. Daí ser inútil, neste gênero de abordagem, estudar os “impactos” das tecnologias, por exemplo, nas interações sociais sem levar em conta as redes em que se inserem e que elas próprias ajudam a construir. É certo que no contexto organizacional e da comunicação, as tecnologias criam lógicas, modos de vida e situações que impelem à ação, mas não o fazem fora de uma política organizacional, de códigos culturais nem de interesses econômicos e políticos, que a ordene, sustente e legitime. Também não surgem sem CEOs, profissionais, comunicação face a face e suas formas de intervenção e de controle. Só há comunicação em ambientes digitais ou usos estratégicos das TIC pelas organizações porque há agregados e rede de relações entre humanos e não-humanos que são manejadas. As TIC e seus ambientes relacionais existem e atuam em conjunto com outros atores. Em determinadas circunstâncias, podem ter um papel primordial, mas, em outros, elementos diferentes podem ter mais importância. Seus usos se dão juntamente com outros usos. Conectados, produzem encontros que mediam ou traduzem ações de coisas e pessoas, que ao afetarem-se mutuamente constroem realidades discursivas e não-discursivas. Os usos das tecnologias na comunicação não são uma solução em si mesmas, mas uma questão que cabe sempre investigar (Gonçalves, 2002). Elas fazem parte da trama que garante à comunicação organizacional uma complexidade irredutível tanto à sofisticação das técnicas ou das estratégias quanto à capacidade de adaptação ou da gestão de riscos, dada sua natureza de híbrido sociotécnico. Contribuições da teoria-ator rede para pensar a comunicação nas organizações Nas palavras de Bruno Latour, a teoria do ator-rede (TAR) ou sociologia da tradução ou das associações consiste em uma abordagem que se propõe a redefinir o que se entende atualmente como “ciência do social” e retomar Comum 36 - jul./dez. 2014 121 aquela que seria sua tarefa primeira, a saber: “rastrear as associações” ou “conexões” e não, dar “explicações sociais” sobre os fenômenos que investiga. Para Latour, a sociologia pagou um determinado preço para tornar-se uma disciplina: o de angariar para si o estatuto de ciência positiva que se afastou da metafisica para alinhar-se às demais ciências estabelecidas no século XIX. A TAR seria “alternativa” no sentido não de desistir da sociologia, mas no de recuperar algumas concepções que foram abortadas logo em seu surgimento: particularmente a perspectiva de Gabriel Tarde (2007) do socius como rede de fluxos e de transformações contínuas, ao invés de um domínio específico e próprio – o social –, estabilizado, coisificado, que pode ser percebido, representado e explicado a partir de uma mecânica ou de uma engenharia social, como propunha Durkheim. Nesse sentido, a TAR constitui uma renovação das concepções que definem a natureza e o escopo das ciências sociais. Ainda que arriscando ser simplista, o argumento de Latour poderia ser apresentado da seguinte forma: aquilo que é tomado como “social” seria na verdade uma espécie de configuração estabilizada de elementos e forças diversas que indicam menos uma realidade acabada do que um estado de coisas em constante mudança7. Essa perspectiva exigiria necessariamente do cientista social uma outra forma de observar e de investigar o mundo e suas relações e, certamente, de produzir problemas e de conduzir pesquisas. Mas por “rastrear as conexões” ou formular uma “sociologia das associações” Latour vai entender também um modo de suspeitar daquilo que chamamos de ciência e de sociedade. Para tanto, vai recuperar do projeto da sociologia do infinitesimal de Tarde sua crítica à razão moderna e sua concepção de que tudo o que existe emerge de encontros fortuitos e inumeráveis, de séries infinitas de relações. Para Latour, trata-se de perceber e investigar essas séries de relações, no lugar mesmo onde elas ocorrem e se afetam, gerando outras relações, forças e configurações. Eis a base do pensamento da TAR. O que parece ser pouco objetivo e menos palpável não é, porém, menos observável empiricamente. Só o é de outra forma. O propósito de tratar a sociedade como “domínio próprio” e como “coisa” – passível de ser explicada como tal a partir de deciframentos, interpretações generalizantes e/ou dados objetivos – foi certamente importante para o estabelecimento da sociologia como ciência moderna. Hoje, porém, este projeto evidencia seu caráter precário. Latour argumenta, no entanto, que isso se deve em grande parte ao desenvolvimento e sucesso das próprias ciências sociais, que ao multiplicar 122 Comum 36 - jul./dez. 2014 teorias, discursos e métodos “científicos” capazes de tudo explicar, passaram não raro a valer mais do que o próprio objeto ou a sobrepor-se a ele, esvaziando seu poder e sua sensibilidade de auscultação do mundo. Latour questiona se diante dos avanços técnico-científicos haveria hoje ainda relações suficientemente específicas para serem chamadas de “sociais” e “naturais”. Ou se seria ainda possível verificar com precisão os ingredientes que entrariam na “composição do social”. Paralelamente, pergunta-se qual a natureza da especificidade da disciplina sociológica e do próprio dizer ou do fazer cientifico hoje. Daí propor examinar os conjuntos/configurações (“agregados”), suas lógicas de formação e seus modos de funcionamento, não a partir de categorias pré-definidas, mas de uma “empiria cega”, do rastreamento das relações que constituem esses conjuntos e das relações que eles próprios realizam. Nesta perspectiva, a ordem social não teria nada de específico; não existiria “dimensão social” de nenhum tipo, nenhum “contexto social” capaz de explicar o social, nem nenhum domínio específico da realidade ao qual possamos colar uma etiqueta de “social” ou de “sociedade”. Tampouco existiriam “forças sociais” que expliquem aspectos residuais que os outros domínios não conseguem dar conta; não há vínculos sociais específicos que revelam a presença oculta de forças sociais específicas. O que há é redes de relações que produzem fatos circunstancialmente e que eventualmente se cristalizam, estabilizam e desestabilizam conforme as mudanças em curso. Na TAR, vai-se deixar de pensar em disciplinas para pensar-se em agregados. Agregados químicos, fisiológicos, subjetivos, organizacionais, políticos, econômicos, jurídicos, tecnológicos. Esses agregados são eles próprios formados de elementos heterogêneos que podem, por sua vez, ser reagrupados constantemente e formar outros compostos, outras configurações, nos ajudando a entender a evolução dos fenômenos em nossas sociedades. Uma especificidade da TAR é não reduzir a feitura dos fatos em análise à observação dos vínculos e das interações sociais, mas em acentuar a ação, o trabalho de fabricação e de transformação presente nessas interações. Para Latour, longe de uma hipótese inconcebível, essa seria uma forma de “confrontar o rosto desconcertante do social”. Ele afirma que todos os elementos heterogêneos precisam ser reunidos numa dada circunstância, ao invés de serem tratados isoladamente como especialidades: Comum 36 - jul./dez. 2014 123 Uma nova vacina está sendo preparada, uma nova descrição de tarefa está sendo oferecida, um novo movimento político está sendo criado, um novo sistema planetário está sendo descoberto, uma nova lei está sendo votada, uma catástrofe está ocorrendo. A cada instância, precisamos reformular nossas concepções daquilo que estava associado, pois a definição anterior se tornou praticamente irrelevante (Latour, 2012a: 23). Para cada ocorrência seria preciso reordenar os modos como observamos e entendemos o que está em jogo, pois em que medida pode-se traçar fronteiras precisas entre os elementos que participam desses fenômenos, seus papéis, ou pensar em graus de determinação e causalidade desses elementos? Não é esta lição que as manifestações que eclodiram nas ruas de todo país em 2013 ensinaram aos cientistas políticos e a todos nós? Não que não haja especificidades ou fronteiras, papéis ou intencionalidades, mas essas são vistas dentro de um conjunto de relações sendo elas próprias como algo a ser investigado. Tais elementos não são a resposta ou a explicação, mas parte da pergunta que os fenômenos nos colocam. Assim, por exemplo, não se deveria considerar as organizações e suas formas de comunicação como algo que deve ser explicado a partir da “estrutura social”, do “contexto” ou da época em que vivemos, como se fossem algo dado, estático, e capaz de permitir explicar a lógica das práticas comunicativas no presente. Não é porque vivemos na “era digital” ou “no interior” de uma cultura digital que as organizações usam redes sociais para comunicar. Antes, é porque uma organização encarna uma determinada lógica organizativa que redes sociais e blogs podem ser empregados em uma escala mais ou menos abrangente na gestão de crise, no relacionamento com stakeholders ou na criação de uma experiência com a marca, podendo ser modificadas ou durar no tempo. Pensar as próprias organizações como tramas ou redes sociotécnicas (Law, 1992; Latour, 2009; 2012a), implica pensá-las como nem puramente humanas ou nem apenas materiais, nem somente como realidade objetiva ou subjetiva ou natural ou política ou discursiva. O que propomos aqui é uma visão das organizações como coletivo composto ao mesmo tempo de pessoas e coisas, práticas e discursos capazes de produzir realidade ao se entrecruzarem e se afetarem mutuamente. Tal perspectiva, que em si não é necessariamente nova, permite, porém, que certas premissas que vêm norteando a comunicação organizacional sejam problematizadas, especialmente no contexto da chamada cibercultura ou cultura digital. 124 Comum 36 - jul./dez. 2014 Com a TAR percebemos que não se trata simplesmente de celebrar uma comunicação do tipo “todos-todos” ou de saber mensurar e gerir as redes sociais on-line como antes se buscava mensurar e controlar a opinião pública, mas perceber o quanto “redes sociais” e “opinião pública” são e sempre foram entidades feitas de pessoas e coisas, ao mesmo tempo abstratas e construídas, objetivas e discursivas. Nesse sentido, o que as tecnologias de comunicação e informação nos permitem perceber talvez não seja tanto o que e o quanto podemos nos comunicar mais eficazmente para atingirmos determinados fins, mas o que implica comunicar como comunicamos e que tipos de relações e realidades produzimos quando lidamos no contexto dessas e de outras entidades presentes hoje na vida das organizações. Mais que uma teoria, na verdade a TAR é uma abordagem que se apoia na cartografia como método8 para tornar visível o trabalho das mediações, seguindo-as e descrevendo-as como princípio analítico. Isso quer dizer que com a TAR a cartografia e a descrição das mediações apresentam um caráter não-hermenêutico, e sim “material” dos fatos. À luz da perspectiva da TAR, uma pesquisa não se coloca como objetivo avaliar resultados ou promover explicações ou interpretações sobre os fenômenos que estuda, por considerá-los em constante mudança, em função das relações heterogêneas que os organizam. Tampouco busca emitir interpretações sobre os atores que compõem o processo, enquadrando os acontecimentos numa moldura teórica qualquer. A TAR se presta a observar os processos de mediação por meios empíricos e não apenas quando já estão “prontos”. Nessa abordagem, o interesse do pesquisador consistirá em descrever o trabalho de fabricação dos fatos, dos sujeitos, dos objetos; fabricação que se faz em rede, através de alianças entre atores humanos e não-humanos. “Descrever” implicará deixar o “objeto falar” e vir na frente da análise, ditar o ritmo do texto. Mas a descrição não é um relato burocrático do que se observa. É propriamente uma narrativa que recorta coisas do vivido e as entrelaça com as questões que esse vivido traz, conectando-o assim a uma cadeia de outros fatos e enunciados, incluindo a própria experiência do pesquisador. Como se pode imaginar, o tema da descrição na TAR, como princípio metodológico, é complexo e desafiador. Não se trata apenas de reproduzir em detalhe o que se observa no campo, mas de observar fluxos e produzir narrativas capazes de evidenciar o trabalho das mediações, ou seja, os momentos em que as operações produzem sentido para as interações, práticas e discursos que observamos. Descrever tais ações em fluxo não é tarefa simples Comum 36 - jul./dez. 2014 125 e exige como já afirmaram outros pesquisadores que adotam a perspectiva etnográfica na comunicação, como Janice Caiafa (2007), todo um trabalho muito denso e ao mesmo tempo muito sutil com a escritura, que não exclui nem mesmo o pesquisador e seu modo de estar no campo. Embora a TAR tenha sido acolhida pelo menos desde os anos 1990 nas ciências ditas exatas9, constituindo mundialmente um campo de estudos chamado de STS (sigla em inglês para Science, Technology and Society), apenas mais recentemente se difundiu nas ciências humanas e sociais. No Brasil, além das áreas de ciências da computação e de engenharia de sistemas, a psicologia social10 e a administração11 foram as primeiras áreas a estudá-la. Só em meados dos anos 2000 começaram as primeiras pesquisas em comunicação social, particularmente nos estudos da chamada cibercultura, embora não de forma exclusiva12, pois a TAR não trata apenas de “tecnologia”, mas a aborda em suas imbricações com a ciência e a sociedade e com as formas coletivas de construção do conhecimento. Os estudos das organizações e da administração, aliás, antes mesmo dos da comunicação, vêm se servindo das ideias da TAR para discutir criticamente a própria noção de organização e suas teorias. Além do próprio Latour, outros sociólogos como John Law vêm se ocupando desse diálogo. Em um texto publicado em 2012 intitulado “What’s the story? Organizing as a mode of existence”, Latour, que durante alguns anos foi professor visitante no departamento de sociologia da London School of Economics, pergunta-se, por exemplo, se antes de falarmos de organizações no sentido de corporações, não deveríamos falar primeiro em termos da ação de organizar. Para ele, o ato de organizar criaria padrões de comportamento (formas de planejar, executar e avaliar, de adaptar-se a mudanças, de gerir riscos, pessoas, recursos materiais), que atravessariam a vida daquilo que conhecemos como “organizações”. Pensadas menos como micro ou macroentidades no interior de uma determinada realidade ou ordem social e mais como uma rede sociotécnica conectada a outras redes performatizando papéis e ações, as organizações podem ser pensadas como “formas de existência”. Maneiras de produzir efeitos; de incluir e de excluir, de inventar, de lembrar e fazer esquecer, de dar visibilidade a práticas, discursos, pessoas e objetos: maneiras coletivas de ser e de agir, encarnadas em empresas privadas, universidades, governos, instituições religiosas, do terceiro setor etc. e que produzem, por sua vez, igualmente formas de existência e visões de mundo. Mas como explicar que “formas de existência” de empresas como a IBM tenham sido tão relevantes nos anos 1970 e 1980, entrado em crise nos 1990, 126 Comum 36 - jul./dez. 2014 quando assistimos à ascensão da Microsoft de Bill Gates, que por sua vez perdeu o trono para a Apple de Steve Jobs nos anos 2000, que, por sua vez, perdeu o cetro atualmente para a Google, arqui-inimiga da Facebook? Evolução tecnológica? Jogada de marketing? Caprichos do mercado? Mudança de comportamento no consumo global? Falta de competência para se adaptar às mudanças de cenário? Crise financeira mundial? Que fio de Ariane permeia essas histórias complexas, misto de tecnologia, economia, política e... celebridades? Quando pensamos nessas tramas, não há como separar hardware de software de dispositivos móveis e smartphones e esses das estratégias de consumo e de marketing; nem mecanismos de busca na internet, sistemas autogerados de “web semântica” e de “cultura do amador” de crowdfunding e da gestão de redes sociais e nem das políticas governamentais e corporativas de distribuição da informação. No entanto, ainda assim, ficamos sem entender o que faz com que produtos, estratégias e ferramentas que funcionaram num certo momento entrem em crise, percam a consistência e eficácia. Organizações como rede e “modos de existência” Dentro de sua abordagem da TAR, o sociólogo inglês John Law (2005) vai enfatizar o aspecto “político” dos processos de mediação, o que nos parece muito pertinente para estudar as organizações e também suas formas de comunicação. Interessa a Law perceber como numa organização determinados elementos que as constituem são mobilizados, conectados e se mantêm unidos. Para Law, uma das principais contribuições da TAR à sociologia das organizações é explorar a relação entre os aspectos materiais e os aspectos estratégicos da vida organizacional. Ele se pergunta: como um gerente gerencia? Como cálculos são traduzidos em ações? Quais são os tipos de elementos criados e mobilizados para gerar os efeitos organizacionais? Como são superadas as resistências? É assim que em seus estudos de gestão, Law percebeu como elementos como “empreendimento”, “gestão”, “vocação” e “visão” em uma dada empresa operavam coletivamente para gerar agentes multiestratégicos, arranjos organizacionais e transações interorganizacionais. O argumento de Law é que uma organização pode ser vista como um agregado de tais elementos que funcionam como elementos ordenados estrategicamente para gerar “complexas configurações de durabilidade, mobilidade espacial, sistemas de Comum 36 - jul./dez. 2014 127 representação e calculabilidade – configurações que têm o efeito de gerar as assimetrias centro-periferia e as hierarquias características das organizações mais formais” (Law, 2005: s/p). Law também se interessa em entender como, nas organizações, esses processos reticulares de ordenamento e de orquestração são de certa forma naturalizados, tornados invisíveis ou então confundidos com atores específicos que seriam tomados por tais processos. É que Law chamou de “efeito de pontualização” e que é correlato do que Latour, ao tratar dos híbridos, chamou de purificação. Como quando há um acidente, fracasso ou falha e tais “erros” tendem a ser tratados como questão de técnica ou de planejamento ou logística, deixando de fora outros elementos que intencionalmente, ou não, tomaram parte do processo. O documentário Carne, osso13 que circulou através de um vídeo na internet em 2011 nos mostra com nuggets de frango podem ter a ver com o INSS. O filme conta que no oeste catarinense cerca de 80% do público atendido pelo INSS vêm de frigoríficos da região. Trata-se de pedidos de seguro-doença, aposentadoria, indenizações por danos físicos e psicológicos, efeitos da “tradução” de uma rede sociotécnica envolvendo empresas, seus trabalhadores, acidentes de trabalho, máquinas, precarização das relações laborais, governo, justiça, entre outros atores. Creditar a causa do problema apenas às empresas seria, usando o vocabulário de Law, uma “pontualização”, quando na verdade, é preciso seguir os rastros dos atores humanos e não-humanos para se dar conta da existência de toda uma cadeia de acontecimentos que participam da fabricação desses fatos. Acidentes acontecem, mas não ocorrem isolados de políticas públicas de segurança e de prevenção a acidentes e com políticas internas de proteção ao trabalhador. Empresas têm práticas lesivas, mas isso não ocorre sem falta de efetiva fiscalização pública e da própria empresa, de denúncias e da ação de sindicatos. Mais uma vez, é da organização como modo de existência que se fala, não apenas da organização como entidade concreta e geograficamente localizada. Pensar a organização como origem ou causa única de suas práticas comunicativas ou as tecnologias como fator de eficácia para tais práticas seria um efeito de pontualização, tomar toda uma rede pela ação de alguns de seus atores. Portanto, a questão que nos moveu aqui não foi a dos usos dessas tecnologias como ferramentas de comunicação, mas as lógicas que organizam esses usos – em termos históricos, culturais, cog- 128 Comum 36 - jul./dez. 2014 nitivos, econômicos e políticos –, lógicas que reorganizam nossas formas de percepção e de ação no âmbito das relações entre organizações e TIC. Como afirma Latour (2012b), falar de uma organização em si significa perder a dimensão de que ela constitui e é constituída por algo mais amplo: modos de vida, visões de mundo, lógicas e interesses que mobilizam e ordenam pessoas e coisas de um certo modo. Falar de modos de organização é falar de como conjunto de funcionamentos que se encadeiam podem expressar maneiras de viver em sociedade e encarnar formas de ação que produzem fatos concretos. O que o vídeo Carne, osso nos mostra é precisamente isso. A rede sociotécnica como alegoria de um pensamento contemporâneo sobre as relações entre as organizações e as TIC pode nos ajudar a refutar esse efeito de pontualização nas análises organizacionais e dos processos comunicativos. Nesse sentido, uma das grandes contribuições da TAR é possibilitar um recuo em relação às visões tecnicistas e midiáticas do fenômeno comunicativo. Assim como as organizações não se caracterizam apenas pelo que fazem, mas principalmente por como fazem o que fazem, também um pensamento sobre a comunicação não deve confundi-la com suas ferramentas e estratégias. A partir da alegoria da rede, também as práticas comunicativas nas organizações podem ser concebidas para além dos elementos imediatos que as constituem. Finalmente, talvez seja esta a maior contribuição da TAR para os estudos da comunicação organizacional no contexto da chamada cultura digital: fornecer senhas para nos relacionarmos de outra forma com nosso próprio tempo e tornarmo-nos o que Agamben chamou de “contemporâneos”. Para o filósofo italiano, o contemporâneo é aquele que não se cola demasiadamente a seu próprio tempo, aquele que não tece nem uma relação nostálgica com o passado, nem demasiado entusiasta com o presente, mas um movimento singular de adesão e de distância que permita “manter fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009: 62). Ser capaz de enxergar as “trevas” de seu próprio tempo, ou seja, vislumbrar suas questões e seus desafios e não apenas suas claridades, suas supostas transparências e verdades. Ser capaz de interpelar o presente e, quem sabe, transformar-se. Comum 36 - jul./dez. 2014 129 Notas 1. Texto adaptado do trabalho apresentado no Seminário Comunicação organizacional: dimensões teóricas, humanas e discursivas. UFMG, PPGCOM-UFMG, 27 a 29 de novembro de 2013. 2. O termo paradigma é geralmente usado para descrever os fundamentos das concepções básicas coexistentes nas teorias. Pode ser entendido como a visão de mundo aceita amplamente em uma disciplina e que determina a direção e os métodos de seus pesquisadores. Significa dizer que é um conjunto de visões relacionadas ao homem, à sociedade e à maneira de agir para se alcançar a verdade. 3. Uma boa descrição desses fatos foi feita por Hebe Wey, em O processo de relações públicas, e também por Cecília Peruzzo, em Relações públicas no modo de produção capitalista, ambos publicados pela editora Summus, em 1986. 4. Disponível em: http://www.portal-rp.com.br/historia/parte_13.htm. Acesso em 12/12/2012. 5. Os quatro paradigmas propostos por Burrel e Morgan são: funcionalista, interpretativista, humanista radical e estruturalista radical. 6. “Mediação” é processo de transformação que desloca e organiza as ações, discursos e forças presentes num certo contexto de conexões e de trocas entre pessoas e coisas (Latour, 1994, 2008). 7. Em suas palavras: “vou definir o social não como um domínio específico, mas como um movimento muito particular de recombinação e reordenamento” (p. 14). 8. A cartografia como método é discutido por Latour basicamente em termos de observação através de trabalho de campo e do relato etnográfico da antropologia, que têm o papel de fornecer uma descrição da construção dos fatos através de uma escrita “densa” de seus processos. Exemplos concretos desse modo de descrição não se encontram, porém, no livro em que Latour introduz e sistematiza a TAR, mas em obras anteriores como Ciência em ação e vida de laboratório, nas quais, como sociólogo das ciências, Latour atua como etnógrafo e descreve a construção dos fatos científicos como fatos culturais, criados através de redes de relações heterogêneas cujos elementos incluem, além de ciência, economia, política e história, entre outros. 9. No Brasil, o grupo de pesquisa NECSO (Núcleo de Estudos de Ciência & Tecnologia e Sociedade) foi um dos pioneiros no estudo da TAR. O grupo é responsável inclusive pela criação de cursos e disciplinas sobre história social da ciência e da tecnologia nos programas de pós-graduação em informática do Núcleo de Computação Eletrônica do departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática da UFRJ e do programa de pós em Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ. 10. Um exemplo de estudo de TAR desenvolvido no campo da psicologia social na interface com a comunicação é a tese de doutoramento de Patrícia Azambuja intitulada “Cognição e mediação técnica: passagem analógico-digital da recepção de TV sob a ótica da Teoria Ator-rede”, defendida no programa de pós-graduação em psicologia social da UERJ em 2012. 11. Rafael Alcadipani e Cesar Tureta são alguns pesquisadores que buscam desenvolver um diálogo entre a TAR e a administração. Cf. Alcadipani, R.; Tureta, C. (2009). “Teoria ator-rede e estudos críticos em administração: possibilidades de um diálogo”. Disponível online: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v7n3/a03v7n3.pdf. Acesso em 15/12/12. 12. Pesquisas em comunicação fora do campo da cibercultura têm sido desenvolvidos com a abordagem da TAR, por exemplo, no campo da imagem e da arte como práticas sociais e de comunicação, como é o caso das realizadas desde 2009 por um dos autores deste artigo, Fernando Gonçalves, do programa de pós-graduação em comunicação da Faculdade de Comunicação Social da UERJ. 13. http://portogente.com.br/noticias/meio-ambiente/ambiente-em-foco/a-carne-o-osso-e-o-nugget-de-frango 130 Comum 36 - jul./dez. 2014 Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. BURREL e MORGAN. Sociological Paradigms and Organizational Analysis. London: Heineman, l979. ANDRADE, Cândido Teobaldo de Souza. Para entender relações públicas. São Paulo: Edições Loyola, 2005. FONSECA, Ana Maria Eirôa da. Paradigmas para a teoria de relações públicas. In: Revista de Biblioteconomia e Comunicação. 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O que propomos pensar é que não se trata apenas de saber adaptar-se aos novos tempos, de reposicionar-se no presente ou de lançar mão das TIC para obter legitimação e reconhecimento como área de exercício profissional e de conhecimento. Provavelmente, um de nossos maiores desafios é tornarmo-nos capazes de problematizar as maneiras como entendemos e formulamos nossas práticas e discursos na atualidade. O texto argumenta que a TAR pode trazer algumas importantes pistas para pensar tais questões. Palavras-chave Comunicação organizacional – Teoria do ator-rede – TIC. Abstract This paper has as subjects the critical analysis of the concepts of paradigms that underpin the activities of Organizational Communication and Public Relations and the contributions of Actor-Network Theory by Bruno Latour and aims to contribute to depth the reflections on the relationship between organizations and Communication Technologies and Information (ICT). What we suggest here is that the matter it is not only about knowing how to adapt to new times, or to repositioning itself in the present neither of making use of ICT for PR to get legitimacy and recognition as an area of professional practice and knowledge. Probably one of our biggest challenges is to become able to discuss the ways we understand and formulate our practices and discourses today. This a discussion for which ANT can probably give some important clues. Keywords Organizational Communication – Actor-Network Theory – ICT. Comum 36 - jul./dez. 2014 133 O repensar da área de relações públicas e o projeto do curso de RP da FACHA Anderson Ortiz Charbelly Estrella Cláudio Cotrim Maria Helena Carmo Ricardo Benevides O momento das comemorações dos 100 anos da atividade de relações públicas no Brasil favorece a reflexão sobre como a profissão se desenvolveu no país, para além de sua história de exercício nas organizações públicas, privadas e do terceiro setor ou da visão dos indivíduos que a abraçaram em sua trajetória de vida. Os esforços para investigar a evolução da área foram numerosos até aqui, merecendo destaque obras como as de Gurgel (1985), Kunsch (1997) e Moura (2008). Tanto quanto, e não apenas no caso de relações públicas, com frequência veremos estudos nos quais o pensamento sobre uma atividade profissional está vinculado às especificidades de projetos de ensino, posicionando as práticas da revisão conceitual na esfera acadêmica. É bem verdade que os cursos universitários não têm qualquer exclusividade sobre a análise evolutiva de uma carreira, nem sobre as definições de suas funções e desempenhos. Muitos organismos se detêm sobre o tema – órgãos de classe, entidades não-governamentais, órgãos de regulação governamental, grupos autônomos de pesquisa, entre outros. Também não se deve desconsiderar que o próprio segmento de atuação profissional pode contribuir ativamente para a visão e revisão de uma determinada formação. Mas, voltando ao caso de relações públicas, a autorreflexão da área sobre sua dimensão histórica – que contempla o ato de revisitar seus episódios mais marcantes, compreender sua inserção no contexto social, político e econômico do Brasil após a primeira década do século XXI, permitindo fazer projeções para o futuro – encontra Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 134 a 147 - julho / dezembro 2014 134 Comum 36 - jul./dez. 2014 na homologação de novas diretrizes curriculares para a profissão, pelo Ministério da Educação (2013), uma oportunidade bastante significativa. Os procedimentos empreendidos pela comissão de especialistas que propôs esta atualização dos princípios basilares de relações públicas foram muito diversos. Após audiências públicas, consultas virtuais e a participação de entidades, profissionais e docentes do país inteiro, fixou-se um documento que tem a pretensão de orientar as reformas curriculares e o ensino da carreira, procurando dar conta das demandas mais contemporâneas. Entre os princípios gerais que norteiam o documento, merece destaque o trecho no qual são mencionadas as linhas de formação e regionalização: Em seus projetos pedagógicos, as instituições de ensino ofertantes poderão definir suas linhas de formação específicas, apresentando identidade mais precisa e marcada para o profissional de relações públicas. Observando as diretrizes, as instituições podem adotar linhas de formação condizentes com suas demandas sociais, sua vocação e sua inserção regional e local (Ministério da Educação, 2013: 10). Está claro para o órgão regulador que, sendo o Brasil um país de dimensões continentais e complexo em suas especificidades regionais, deve-se reconhecer o aspecto político de certas escolhas na construção dos saberes de um curso, para acomodar questões locais e características fundamentais de cada contexto de inserção, sem perder de vista o espírito norteador daquele documento. Mas, parece ainda mais importante atentar para a passagem que sugere a possibilidade de uma instituição de ensino buscar, com essas linhas de formação, uma “identidade mais precisa e marcada”. A expressão de uma “vocação” pode aparecer em papel central no projeto pedagógico, sendo respeitadas estas diretrizes. Não estivesse o ensino de relações públicas instado a se repensar por uma circunstância histórica (os 100 anos), o documento do Ministério da Educação já forçaria esse exercício. Nesse aspecto, cabe discutir então que papel pode ter a história e a cultura de uma instituição de ensino na construção de sua matriz curricular, na elaboração de seu projeto político-pedagógico. A questão parece emergir justamente da possibilidade de haver uma “vocação institucional” como fruto de algo representativo na trajetória e na singularidade cultural de uma organização de ensino. Ao nos referirmos à cultura organizacional, não devemos esquecer que o conceito é amplo e comporta muitos significados. Elliot Jacques (apud Marchiori, 2008: 78) classifica a ideia como uma “forma costumeira de fazer as coisas, compartilhada em proporção maior ou menor entre todos os mem- Comum 36 - jul./dez. 2014 135 bros e sobre a qual os novos devem aprender a, pelo menos, aceitar”. Frost acrescenta elementos simbólicos que podem ser essenciais para determiná-la: (...) falar sobre cultura organizacional parece que significa falar sobre a importância para as pessoas do simbolismo – dos rituais, mitos, estórias e lendas – e sobre a interpretação de eventos, ideias e experiências que são influenciadas e moldadas pelos grupos nos quais elas vivem (apud Marchiori, 2008: 85). Maryan Schall (apud Freitas in: Kunsch, 2001: 44) sugere que a própria organização é um fenômeno de comunicação “e sua cultura se estabelece, se modifica e se cristaliza por meio da comunicação”, lançando luz sobre o fato de que toda experiência cultural vivida é, de alguma forma, fruto de algum tipo de representação ou, noutro sentido, mediada por alguma linguagem. Mas se a cultura organizacional também é fruto de uma rede de interações bastante complexa que depende das visões de mundo e das percepções de seus membros, é inevitável pensar que ela também está relacionada aos valores compartilhados, os princípios que, ao menos hipoteticamente, estão inseridos naquela dimensão cultural. Sidinéia Gomes Freitas lembra que “valores não são criados aleatoriamente. Eles já existem na cultura organizacional e são substituídos em determinados estágios” (in: Kunsch, 2001: 44). Se a cultura de uma organização prevê o compartilhamento de valores, tomando-se a instituição de ensino como exemplo, é natural supor que sua identidade seja influenciada por esses princípios em muitos aspectos de sua atuação. Eis que podemos avançar e discutir sobre como certos valores presentes na cultura organizacional das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) são absorvidos no projeto político pedagógico de seu curso de relações públicas. A FACHA ofereceu seus primeiros cursos de nível superior em 1971, o de RP entre eles – portanto apenas quatro anos depois de a Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo lançar pioneiramente o seu curso de RP. Estava em vigor o regime militar no Brasil e, ainda que as demandas sociais atrelassem o desenvolvimento do país ao investimento em educação de nível superior, a conjuntura de repressão à liberdade de pensamento não favorecia a constituição de espaços acadêmicos em seu sentido pleno. Ainda assim, nesse contexto de conflito, os cursos da FACHA foram concebidos de modo a garantir espaços a divergências de opinião, tendo como fato marcante a decisão de acolher em seu quadro docente professores perseguidos pelo regime. 136 Comum 36 - jul./dez. 2014 A partir de então, outros dados peculiares do cotidiano acadêmico da instituição passaram a apontar para a existência de uma cultura organizacional realmente singular. Prática ainda não tão comum às organizações de ensino privadas, adotou-se o sistema de eleição de coordenadores por voto direto do colegiado de professores. Foram estabelecidas garantias como liberdade de cátedra e a consequente autonomia dos docentes no processo de avaliação, evitando-se qualquer tipo de interferência das coordenações nas decisões de sala de aula. A influência desses princípios no dia a dia da instituição viria a impregnar – como é frequente na dinâmica cultural do compartilhamento de valores – o alunado em seus pontos de vista sobre direitos fundamentais e democracia. Relatos de ex-docentes da FACHA dão conta de que, nos anos 1980, seus estudantes promoveram movimentos contra o aumento de mensalidades, chegando ao extremo ato simbólico de organizar uma queima de carnês no pátio da instituição. Em outro momento à frente, pressionaram a mantenedora da instituição a realizar o investimento em aparelhos de ar condicionado para as salas de aula. Queremos ver essas circunstâncias não como fatos isolados, mas como resultado da construção de um ambiente acadêmico no qual a liberdade de expressão e posicionamento político foi sempre algo a ser zelado. Ao longo de mais de 40 anos de existência, a instituição foi frequentemente reconhecida por sustentar uma política de demissão cautelosa, registrando baixa rotatividade de professores. Sem dúvida, isto contribuiu para estabelecer o ambiente de liberdade de opinião e tolerância às divergências. Também pode ter influenciado na política de contratação que buscou sempre a diversidade, a pluralidade de pensamento e, noutro sentido, o perfil do docente mais voltado à reflexão que a qualquer outro aspecto. Reflexo disso se faz sentir na importância que historicamente se atribui na FACHA às disciplinas do chamado ciclo básico da formação em comunicação social, não apenas em sua variedade como também na estrutura curricular que lhe garante significativa carga horária. Estes aspectos da cultura FACHA são espelhados na constituição de um projeto político-pedagógico e se fazem sentir de muitas maneiras. Teoria e prática formam o mesmo elemento Tanto quanto o aspecto institucional que embala a vocação do curso de relações públicas historicamente, o que se reflete em sua política de ensino e convívio com os públicos, há outra dimensão que se impõe no planejamento pedagógico da FACHA: a realidade revelada pelo perfil do corpo discente, via sucessivas pesquisas Comum 36 - jul./dez. 2014 137 institucionais, apresentando um aluno interessado em inserir-se no mercado de trabalho, sem com isso negligenciar ou ignorar o traço de reflexão crítica que a boa formação acadêmica propõe e assume como compromisso a priori. Unir teoria e prática tem sido uma constante no planejamento pedagógico institucional. Aliás, se há um consenso entre o grupo de professores da instituição, é que sempre fez pouco sentido separar “teoria” e “prática” como dimensões estanques, quando a própria ciência caminha para o reconhecimento dos híbridos como tradutores mais plausíveis da realidade. Trata-se de duas dimensões presentes em todos os fenômenos da comunicação e qualquer explicação que isole exclusivamente uma das dimensões assume riscos epistemológicos, por vezes impossíveis de superar. É verdade que os alunos que buscam os cursos de RP da instituição enxergam no seu programa uma dimensão técnica que os insira no mercado de trabalho, aparelhados das habilidades requeridas do profissional de comunicação social. Isso se reflete, entre outras variáveis, na demanda sensível do curso noturno em detrimento dos outros turnos possíveis. Mas, também é possível perceber que os alunos de RP se identificam com as discussões que ajudam a amadurecer sua reflexão sobre as características das organizações, locus por onde boa parte já circula ou deseja atuar. Isso porque o que se obtém de tais análises em sala de aula, laboratórios, projetos de pesquisa, eventos e extensão contribui para aprimorar a capacidade de interpretar os ambientes de organização que tendem, cada vez mais, a modelos contemporâneos (cf. Kunsch, 2003), seja pelo viés da prática real ou do fetiche pelas novas formas de gestão organizacional em voga. É da natureza de organizações contemporâneas o convívio em ambientes de trabalho onde o indivíduo já deve trazer amadurecida uma série de concepções mentais, fruto do próprio investimento pessoal, atributos necessários para: julgar equilibradamente situações ambíguas; motivar-se mesmo em momentos adversos; mediar interesses conflitantes; trabalhar sem hierarquia formal, mas dentro de um senso de missão; compor equipes de trabalho transversais, reunidas ou geograficamente dispersas; engajar-se nos projetos que desenvolve, com efetividade na entrega e qualidade no acabamento; participar na construção de clima favorável, tanto desenvolvendo trabalhos que moldam a cultura e compartilham os objetivos da instituição quanto se comportando, ele próprio, como evidência desse bom ambiente laboral; entre vários outros atributos que as organizações contemporâneas esperam que o indivíduo já traga em sua “caixa de ferramentas”, quase pronto. Essa expectativa naturalizada no ideário da atualidade, aliás, também encontra eco entre detratores importantes, como as análises de Sennett (2008) 138 Comum 36 - jul./dez. 2014 sobre a combalida questão da lealdade que esses traços transformados atuais impõem aos indivíduos que desejam permanecer “interessantes” aos seus possíveis contratantes. O investimento na formação desse perfil ficou agora todo a cargo do postulante à vaga de um emprego. E dominar tais conceitos tem sido positivo para os alunos, como forma de inserção e progressão no trabalho, muitos deles já egressos de cursos outros na comunicação ou demais setores das ciências sociais, tais como jornalismo, publicidade e propaganda, radialismo, história, serviço social, psicologia, administração, relações internacionais, entre outras áreas. Tem sido recorrente a manifestação de que “dentro do curso de RP, finalmente nomeiam-se uma série de circunstâncias da dinâmica cotidiana da Comunicação em seus domínios de trabalho que explicam o que está acontecendo”, o que outros repertórios acadêmicos não têm espaço ou interesse em fazer. É na dimensão das relações públicas que as teorias estão produzindo sentido para as práticas transformadas de gestão de organizações, que se refletem necessariamente na forma como os projetos que dependem da comunicação vão se estruturar. O que equivale a dizer: praticamente tudo o que lida com a dinâmica e o processo de gestão organizacional de empresas, governos e máquina estatal ou entidades sem fins lucrativos, já que a comunicação adquire caráter transversal e estratégico na forma como se administra. Teoria e prática revelam-se, portanto, dimensões imbricadas, fruto da experiência refletida, daquilo que se observa no cotidiano e pode ser lido explícita ou implicitamente nos autores pioneiros; como também daquelas situações que, transformadas ou novas, exigem novas abordagens teóricas, métodos inovadores de análise, técnicas diferenciadas de conhecer o “objeto” da comunicação. Nesse sentido, a FACHA tem reunido um corpo docente com caráter diferenciado: professores que caminham de forma consistente tanto no “mercado”, quanto na “academia”. E a pergunta retoricamente merece ser colocada: será que verdadeiramente existe uma separação entre as discussões que se estabelecem no “mercado” e aquelas que são objeto de ciência na “academia”? A atuação dupla da equipe de professores tem prestado um serviço aos alunos nesse sentido. Não apenas são trazidos os depoimentos da forma técnica com que se planejam e executam os projetos da comunicação, posto que os vivem no espaço do mercado. Como também, por outro lado, obrigam-se a investir na formação acadêmica tradicional para refletir o que vivenciam tecnicamente, sem perder a capacidade de crítica, de intervenção, de transformação e de compartilhamento dessa experiência a partir das instâncias e etapas do fazer científico (cf. Lopes, 2005). Comum 36 - jul./dez. 2014 139 Trata-se, assim, de uma nova safra de “profissionais-professores”, que de forma dinâmica reúnem às dimensões “teórica” e “prática” sua própria experiência de vida, fazendo suas trajetórias com os pés em ambos os espaços, os mercadológicos e os acadêmicos, de forma concomitante. Algo, talvez, que as gerações anteriores à atual tenham tido dificuldade de fazer. Não à toa, parece que as boas vagas em relações públicas, logo depois da regulamentação da carreira em 1967, foram devidamente ocupadas e esses profissionais se afastaram por completo da missão reflexiva na academia. Como resultado disso, o campo acadêmico repete infinitamente os poucos autores e instituições que mantiveram uma produção de alto nível ao longo dos 47 anos de registro legal da profissão, em geral reunidos nos núcleos sul-sudeste do país. Perdeu-se a dimensão da práxis da produção acadêmica e, junto com ela, a capacidade de renovação teórica e a descoberta de novos métodos de análise reflexiva. Chega-se aos 100 anos da profissão, especula-se, à procura de novos referenciais teóricos que deem conta da realidade transformada. Embora os casos de relações públicas existam e multipliquem-se como realizações, raramente os profissionais têm coragem de categorizá-los como ações de RP, o que enfraquece o campo profissional e dificulta esclarecer os novos comunicadores que se formam. O objetivo que se coloca tecnicamente é demarcar o espaço das relações públicas dentro do campo profissional mais amplo da comunicação. Não mais como aquilo que o profissional de RP pode exclusivamente fazer. Ao contrário, na gestão administrativa necessária, em ambientes de organização, de projetos amplos de comunicação, tendo à frente gestores da comunicação que sejam capazes de diagnosticar, planejar, executar, controlar e mensurar um espectro no qual todas as áreas de comunicação necessitam ser mobilizados: publicidade e propaganda, jornalismo, produção editorial, audiovisual, design, marketing, estudos de mídia, cibercultura, entre outros. Não mais o que é exclusivo de RP, mas sim como se coadunam todos os demais campos da comunicação para os projetos organizacionais. Eis aí no que os professores da FACHA acreditam: é preciso formar líderes gestores com especialização na comunicação social, que sejam capazes de mobilizar qualquer outra vertente das ciências sociais no planejamento e consecução dos trabalhos. Essa perspectiva tem pautado as escolhas programáticas da instituição. Por exemplo, na formulação do programa que ora vigora na instituição – pré-reforma curricular do MEC, registre-se – prevalecem escolhas que lidam com os distintos modelos de organização; os variados setores de organização; e as vertentes da comunicação integrada. Seguindo, então, por três eixos distintos, as disciplinas estão organizadas de forma a reconhecer, primeiro, a dimensão da realidade atual das organizações, que 140 Comum 36 - jul./dez. 2014 compõem e trocam dentro do sistema capitalista, tendo por base o crescimento econômico contínuo; a democracia política qualificando a esfera pública; o Estado de bem-estar social; e a inovação tecnológica como fonte de transformação. Assim, reconhecer o eixo dos modelos significa articular com as teorias clássicas que indicam existir organizações tradicionais, modernas e contemporâneas (cf. Kunsch, 2003), cada qual com suas concepções mentais, pontos fortes e fracos, todas elas capazes de sobreviver, adaptar-se aos novos tempos, assim como também desaparecerem se não lerem corretamente o ambiente. Não se acredita que a característica contemporânea seja uma missão teleológica para toda e qualquer organização, embora muitas delas aceitem isso como fetiche. Muitas são as que optam pelos sistemas mentais precedentes e, de tão bem sucedidas e enraizadas culturalmente na forma de pensar e fazer, são capazes de garantir diferencial, perenidade e estabilidade. No eixo dos setores, as disciplinas respeitam as necessidades de planejamento e execução dos assuntos da comunicação e gestão nas organizações públicas (primeiro setor – governos, estatais e demais aparelhos burocráticos do Estado), privadas (segundo setor – empresas em geral, nacionais, multinacionais e transnacionais) e entidades sem fins lucrativos (terceiro setor – associações, instituições de pesquisa, ONGs, organizações sociais e de interesse público, entre outras). Cada uma exige uma abordagem diferenciada, evitando-se as fórmulas prontas e reducionistas. Cada qual demanda uma abordagem diferente e formas distintas de organizar a comunicação, o que exige um quadro de profissionais que entendam a dimensão técnica, mas também política do que faz. E na vertente da comunicação integrada, os projetos devem ser contemplados em suas dimensões externa e interna no repertório mercadológico (espécie de “primo rico” do sistema); institucional (“gênio dentro da lâmpada”); e administrativo (o “elo perdido” para outros campos). Cada uma das vertentes, sozinhas, daria azo a uma análise exclusiva em forma de artigo, o que seria exagerado propor neste espaço. Articulando-se os três eixos (modelos, setores, vertentes), revelam-se ao menos 27 repertórios distintos de organizações que podem criteriosamente ocupar tais espaços de análise. Além dos incontáveis casos que podem esconder-se nas “dobras” dos eixos, revelando organizações de todos os tipos. Um empreendimento que, inclusive, deve ser feito com parcimônia junto aos profissionais da administração, da tecnologia da informação, do direito, do serviço social, da psicologia social, entre outros campos na sombra das análises teóricas feitas até aqui. É dentro desse quadro desafiador que a FACHA mantém por mais de 40 anos seu curso de relações públicas, inclusive seguindo contra a corrente que, ao longo Comum 36 - jul./dez. 2014 141 dos anos 1980 e 1990, sentindo a ausência de reflexão da área e a demanda de novos estudantes, fez com que cursos tradicionais dentro do estado do Rio de Janeiro fechassem as portas. A despeito das práticas que se avolumavam no mercado; das mudanças de contexto da comunicação no plano internacional, em que públicos mais críticos e conscientes mudam o quadro relacional dessas sociedades; que a comunicação social firma-se, enfim, como um valor para as esferas públicas de países no Ocidente e no Oriente. O diálogo e a imbricação institucional, mais do que nunca, são fundamentais para sustentar e transformar o sistema social. E a FACHA acerta quando continua a enxergar esse quadro. É por isso que a instituição e seus professores, se por um lado consideram como positiva a chance proporcionada pelas novas diretrizes da área – qual seja, repensar continuamente seu projeto de curso –, por outro recebem-nas com relativa preocupação uma vez que desconsideram parte das expectativas do alunado da comunicação social que precisa trabalhar para sustentar sua permanência na universidade (pública ou privada). E, além disso, o próprio entendimento sobre o lugar da comunicação social na estrutura do ensino brasileiro tal e qual proposta pelo Ministério da Educação pode criar uma ultra segmentação forçada de campos de saber cuja prática diária, como afirmamos acima, caminha para uma convergência de campos, com espaços claros para incluir harmoniosamente todos eles. Por que separá-los, então? Vamos construir barreiras ou pontes? Conclusões sobre o Projeto de curso de relações públicas da FACHA: a busca da reflexão permanente com foco na formação do corpo discente São muitos os desafios que estão implicados na criação, consolidação e manutenção de um curso superior. Não seria diferente com o curso de relações públicas. Há a responsabilidade de manter um corpo docente qualificado, que articule muito bem o conhecimento amplo dos mais diversos saberes da comunicação social e das ciências sociais, fundamentais para formar o “olhar” do futuro profissional de relações públicas. Mas deve haver também um planejamento pedagógico de longo prazo que procure refletir constantemente sobre as novas exigências da sociedade contemporânea e das organizações, além de garantir o compromisso constante em construir laços com alunos, egressos e entidades parceiras, como o Conselho Regional de Relações Públicas/RJ1, o movimento Relacione-se, o Observatório da Comunicação Institucional, empresas, associações ligadas à comunicação empresarial, como a ABERJE, e mesmo pólos de disseminação de cultura, como o Imperator – Centro Cultu- 142 Comum 36 - jul./dez. 2014 ral João Nogueira2. Enfim, é um projeto pedagógico que tem como objetivo articular experiências e discussões que propiciem aos atuais e futuros alunos do curso de relações públicas da FACHA a percepção (e a vivência) de nosso ponto de vista orgânico sobre a mencionada relação teoria-prática, contribuindo para a formação de profissionais aptos ao exercício de RP e críticos quanto ao seu papel nas (para as) organizações, ou seja, defensores das boas práticas comunicacionais. Em relação aos egressos de relações públicas das Faculdades Integradas Hélio Alonso, o curso deve continuar apontando para uma formação sólida que alie forte componente humanístico e visão integrada da comunicação, de modo a desenvolver competências de análise conjuntural da realidade organizacional, identificando as dinâmicas socioculturais e ponderações sobre seus impactos na comunicação institucional. Os métodos de ensino precisam provocar nos alunos discussões em torno dos estudos de caso e, tanto quanto, contemplar trabalhos dirigidos para organizações (privadas, públicas e do terceiro setor), favorecendo o planejamento de políticas e estratégias de relacionamento. Mas essa vivência deve ultrapassar o ambiente de aula. Ainda no curso, a expectativa é de que se ampliem as situações reais de mercado no plano do aprendizado discente de duas maneiras: em atividades realizadas pelo Escritório de Relações Públicas, o laboratório modelo do curso, e de eventos, como o Encontro com Relações Públicas3 e a Aula Inaugural, que aproximam os alunos e os profissionais, entre os quais muitos formados pela FACHA. Tal troca de experiência, planejada para oferecer ao corpo discente uma ampla gama de oportunidades de conhecer a área, é fundamental para a integração entre egressos e estudantes do curso. Essa articulação também deve favorecer a criação de um ambiente de interlocução com as demais áreas da comunicação. Mais do que ações pontuais, o curso de RP da FACHA vem estabelecendo uma política de relacionamento com os egressos, o que, aliás, é uma a premissa das relações públicas: construir e manter relacionamentos com públicos de interesse. Por essa razão, a atualização dos contatos com ex-alunos, o mapeamento das áreas em que atuam no mercado e a visibilidade de suas conquistas contribuíram para o planejamento de novas ações, como a campanha “Relações Públicas em Alta”, cujos principais objetivos apontam para a valorização dos egressos e a divulgação para o corpo discente sobre as potencialidades de atuação da atividade de relações públicas. Como estratégica de relacionamento também com os egressos e como recurso para ampliar a comunicação por meio das ferramentas digitais, desde abril de 2013, o curso de relações públicas criou o perfil do Escritório de Relações Públicas4 para Comum 36 - jul./dez. 2014 143 divulgar as informações sobre a atividade, as perspectivas profissionais, bem como ações realizadas pelo próprio curso. O perfil do laboratório modelo traz notícias do mercado profissional, links para matérias relacionadas às relações públicas e às áreas afins, material promovido pelo curso e/ou por instituições parceiras, dentre outras. Na projeção de futuro do curso, o Escritório de Relações Públicas, criado em março de 2008, deve ter um papel ainda mais fundamental. Sendo um espaço interdisciplinar para alunos (estagiários de relações públicas e de outras habilitações da comunicação social oferecidas pela faculdade, como jornalismo, publicidade e radialismo), pretende ser um ambiente para a vivência da comunicação institucional integrada. Nesse espaço acadêmico, com a supervisão de professores, os alunos desempenham atividades diversas, como campanhas institucionais previamente definidas com a coordenação do curso; apoio a eventos acadêmicos internos (cursos de comunicação, turismo e direito); apoio a eventos externos correlatos com a carreira de relações públicas; divulgação de eventos, pesquisas, produções acadêmicas e parcerias relacionadas ao curso utilizando, para isso, diferentes plataformas comunicacionais; suporte prático para metodologias desenvolvidas nas disciplinas de relações públicas; elaboração de relatórios de acompanhamento das ações realizadas, custos envolvidos e resultados mensurados; e produção de conteúdo e gestão do Facebook do Escritório. Essa busca por oferecer ao corpo discente uma formação de qualidade demanda o repensar contínuo do curso de relações públicas. Para tanto, a visão que temos envolve a necessidade de um aprimoramento permanente do corpo docente, no duplo movimento já explicitado anteriormente, recorrendo à formação em nível de pós-graduação para nos manter num caminho de arejamento de ideias e reflexão e, noutro sentido, procurar circunstâncias em que a análise das práticas de mercado sirvam aos objetivos da atualização na área – a participação em comissões julgadoras como a do Prêmio Aberje de comunicação empresarial pode exemplificar bem esta intenção. No que diz respeito à produção de conhecimento na área, é preciso admitir que ela ainda é tímida, e talvez isto seja reflexo de fenômeno regional. Nos 100 anos de existência da atividade no Brasil, o Rio de Janeiro ainda não estruturou pesquisa acadêmica sobre o tema, embora muitas tentativas tenham surgido ao longo dos últimos 20 anos. Essa falta não está à altura do que os cursos de formação superior e os profissionais cariocas representam para a profissão no Brasil. Além do curso da FACHA, a cidade possui outra escola tradicional, pública, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em ambas ainda observamos a ausência de linhas de pesquisa que se dediquem integral e exclusivamente ao campo 144 Comum 36 - jul./dez. 2014 das relações públicas. Essa constatação não toma forma na impossibilidade, mas em desafio para o departamento de relações públicas da FACHA. Esse seria o compromisso institucional inadiável de assumir a dianteira desse processo, para consolidar a proposta de formação acadêmica que temos buscado para nosso corpo discente. Sob a forma de um pacto departamental, que inclui nosso corpo discente, a estruturação de uma linha de pesquisa em relações públicas, para a FACHA, busca, principalmente, estabelecer um diálogo entre os demais cursos da comunicação social, assim como reconhecer as emergências nos novos desenhos organizacionais, uma das abordagens fundadoras para a área. Desse pacto deve resultar uma proposta de pesquisa que traduza a expectativa do corpo discente, com a iniciação científica, e que ratifique o compromisso institucional e acadêmico da FACHA na formação da consciência crítica de seu alunado. Assim as relações públicas assumem seu caráter ético, técnico, estratégico e, principalmente, crítico às conformações institucionais que se apresentam no mundo contemporâneo. Mas, acima de tudo, é preciso dar relevância a outros diálogos, como tem sido feito de maneira interdisciplinar com o curso de direito e os estudos sobre consumo, consumerismo e relacionamento com cliente. Nessa perspectiva, o curso de relações públicas da FACHA inicia a definição de uma espécie de vocação acadêmica focada no diálogo com áreas para além da comunicação e da administração e assume o relacionamento com o cliente nas organizações atuais, considerando as condições de possibilidade da comunicação digital, em todas as suas formas, práticas e públicos, como o primeiro passo para consolidar a pesquisa em RP no Rio de Janeiro. A demanda pela pesquisa se faz em um encontro agendado entre o corpo docente e discente, com necessidades alinhadas com a expectativa da direção das Faculdades Integradas Hélio Alonso. Esse alinhamento de interesses pode ser a força motriz da proposta. A FACHA sempre colocou a formação crítica de seus graduandos como missão primeira e realizou isso amplamente, em sua história institucional, em seu corpo docente, na construção de suas grades curriculares e nas ações sociais e políticas que realizou e apoiou. A pesquisa científica é passo inevitável nessa trajetória. A reflexão e a produção científica estruturada são condições de possibilidade para repensar e reelaborar as práticas das relações públicas, legitimando sua renovação. Para além do compromisso institucional, há o soberano compromisso da produção de conhecimento, que envolve não apenas professores pesquisadores, mas que deve constar na agenda de todos os profissionais da área. Só a produção de conhecimento, por meio da pesquisa acadêmica, pode dar condições à formalização de uma verdadeira “escola” de relações públicas no Rio de Janeiro. Comum 36 - jul./dez. 2014 145 Enquanto esta intenção não se concretiza, a preocupação constante em criar e manter vínculos, em gerenciar relacionamentos com alunos, egressos, professores e instituições parceiras e o comprometimento em manter planos de ensino atualizados mediante os desafios de prepararmos nosso alunado para “ler” o macro e micro ambiente organizacional fizeram do curso de RP da FACHA uma referência de ensino no Rio de Janeiro. Em 2014, a avaliação institucional externa conduzida por uma comissão de especialistas do Ministério da Educação conferiu reconhecimento a este projeto, atribuindo-lhe nota quatro (em escala que vai até cinco), sugerindo que o curso caminha na direção certa. Mas, há muito o que fazer, seja por um ambiente externo que pressiona constantes reflexões e ajustes ao projeto pedagógico do curso, seja pelo nosso ambiente interno que nos impulsiona sempre a buscar o melhor para o curso de relações públicas. Notas 1. Como resultado de ações conjuntas para divulgar a área de relações públicas, o Escritório de Relações Públicas, laboratório modelo do curso, ganhou o diploma de Patrono das Relações Públicas em 2 de dezembro de 2013, Dia Nacional das Relações Públicas do Conrerp/RJ. 2. Exemplo desse tipo de vínculo é a parceria celebrada pela FACHA e o referido centro cultural, que envolve estudantes do curso num procedimento de pesquisa de campo ao longo do segundo semestre de 2014. 3. Evento realizado semestralmente desde 2013 como parte de uma política de relacionamento com os egressos a fim de trazer profissionais de Relações Públicas formados pela FACHA para compartilharem experiências de trabalho com o corpo discente. 4. Endereço: facebook.com/erpfacha Referências FREITAS, Sidinéia Gomes. Cultura organizacional e comunicação. In: KUNSCH, Margarida Maria Krohling. Obtendo resultados com relações públicas. São Paulo: Thomson, 2001. GURGEL, João Bosco Serra e. Cronologia da evolução histórica das relações públicas. Brasília: Linha Gráfica e Editora, 1985. KUNSCH, Margarida Maria Krohling. Relações públicas e modernidade: novos paradigmas na comunicação organizacional. São Paulo: Summus, 1997. __________. Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. São Paulo: Summus, 2003. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Pesquisa em comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 146 Comum 36 - jul./dez. 2014 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Relações Públicas. Processo n. 23000.013995/2010-54. Brasília: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior, 2013. DOU, Seção 1, 12/09/2013 (homologação). MOURA, Cláudia Peixoto de (Org.). História das relações públicas: fragmentos da memória de uma área. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2008. Resumo Nos 100 anos de relações públicas no Brasil e em mais de quatro décadas de cursos de relações públicas na FACHA, propomos, neste artigo, uma reflexão mais ampla sobre a área em nosso país e como o curso de RP da FACHA vem se repensando, desde o seu início para desempenhar o seu papel educacional: proporcionar uma sólida formação acadêmica em que teoria, prática e pesquisa, juntas, contribuam para que o corpo discente seja um ator crítico no planejamento, execução, coordenação e avaliação das práticas comunicacionais. Palavras-chave Relações públicas – Cem anos de RP – FACHA. Abstract Over hundred years of Public Relations in Brazil and during more than four decades of the Public Relations course offered at FACHA, in this article we propose a broader reflection on the profession in our country and on how the PR course at FACHA has been rethinking itself, from the very beginning, to fulfill its educational role: to provide a sound academic education in which theory, practice and research, together, contribute to make our students critical actors in planning, implementation, coordination and evaluation of communication practices. Keywords Public Relations – Public Relations’ 100th anniversary – FACHA. Comum 36 - jul./dez. 2014 147 NOTA AOS COLABORADORES A Revista Comum aceitará contribuições sem restrição de procedência, ressalvadas as prioridades estabelecidas pelo Conselho Editorial e recomenda a seus colaboradores que enviem seus artigos da seguinte forma: 1. Texto em mídia eletrônica, digitado em programa Word para Windows, corpo 12, entrelinha 1,5. 2. Os textos devem ter o mínimo de 10 e o máximo de 20 laudas (cada lauda com cerca de 30 linhas e 70 toques por linha). 3. Notas, referências bibliográficas e citações que obedeçam as normas da ABNT. 4. As referências bibliográficas, no final do texto, devem conter apenas as obras efetivamente mencionadas no artigo. 5. Apresentar um resumo de, no máximo, 150 palavras na língua original do texto e um abstract ou résumé. 6. Listar palavras-chave, keywords ou mots-clés. 7. Incluir nota biográfica do autor que indique sua formação acadêmica e, se for o caso, onde ensina, estuda e/ou pesquisa. No caso de publicação do artigo, o Conselho Editorial se reserva o direito de selecionar as informações biográficas que achar pertinentes. 8. O ineditismo do artigo é obrigatório. Indicar, em nota à parte, caso o texto tenha sido apresentado em forma de palestra ou comunicação. 9. Evitar palavras, expressões ou frases grafadas com sublinhado ou negrito. Para destaques usar apenas o itálico. 10. Enviar, com os originais, autorização assinada pelo autor ou seu procurador, para que aquele trabalho seja publicado nas versões impressa e digital da Revista Comum. O Conselho Editorial se reserva o direito de recusar os trabalhos que não atendam as normas estabelecidas e comunicará ao autor se o trabalho foi aceito sem restrições, aceito com sugestão de alterações ou recusado. Os autores receberão cinco exemplares do número que contiver sua colaboração. Comum 36 - jul./dez. 2014 148