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Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito
ter mostrado, apenas um outro nome para a
semiótica, a quase-necessária, ou formal
doutrina dos signos. Descrevendo a doutrina
COMUM
Com o séculoPublicação
XX as técnicas
de reprodução
atingiram
das Faculdades
Integradas Hélio
Alonso
Julho /elas
Dezembro
de 2014
um nível tal que, de agora em diante,
não somente
v. 16 – nº 36
poder-se-ão aplicar a todas as obras de arte
passado
ISSNdo
0101-305X
e modificar de maneira muito profunda seus modos
Mas como? Se, ao nomear um ser qualquer, por exemplo,
o que nós hoje chamamos de homem, eu lhe dou o nome
de cavalo e ao que hoje chamamos de cavalo lhe dou o
nome de homem, terá esse ser o nome de homem para
A revolução social do século XIX não pode tirar sua
poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar
sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração
supersticiosa do passado. As revolução anteriores
A etnografia, ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez
ainda mais necessário que em outras ciências, infelizmente nem sempre
contou no passado com um grau suficiente desse tipo de generosidade.
Muitos dos seus autores não utilizam
Deste logos sendo sempre os homens se
tornam descompassados quer antes de
ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois,
tornando-se todas (as coisas) segundo
À primeira vista, a forma especial do moderno
capitalismo ocidental teria sido fortemente
in f l u e n c i ad a pe lo d e s e n v o l v i m e nt o das
possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje
36
Comum - Rio de Janeiro - v. 16 nº 36 - p. 1 a 148 - julho / dezembro 2014
EDITORIAL
A revista Comum abre seu número 36 com dois artigos que trazem novas
ideias sobre as mudanças ocorridas recentemente na esfera comunicacional.
O artigo de abertura, assinado por Aristides Alonso e Potiguara Mendes da Silveira Jr., apresenta a transformática como uma teoria psicanalítica da comunicação
que não opera esse campo de estudos e pesquisas mediante fronteiras, mas, ao
contrário, o vê como área de conhecimento onde será inevitável a interpenetração
de conhecimentos tais como, por exemplo, ciência, filosofia e arte. Em seguida,
Francisco J. Paoliello Pimenta apresenta ensaio onde apresenta as tecnologias
digitais multicódigos como base de diferentes transformações ocorridas na esfera
comunicacional, e sugere o uso do conceito de pragmaticismo, desenvolvido
por C. S. Peirce, para nos ajudar a compreender melhor esse processo.
Comunicação audiovisual é o tema presente nos dois artigos apresentados a
seguir. No primeiro, Ariane Holzbach escreve sobre as origens do videoclipe,
conta a história desse gênero audiovisual e analisa algumas das suas principais características estruturais: a vocação televisiva, a especificidade de sua
linguagem e o desenvolvimento de sua narrativa. No segundo, Geraldo M. P.
Mainenti nos apresenta trabalho que estuda aspectos importantes da obra do
artista multimídia húngaro Péter Forgács. O texto analisa, especialmente, as
técnicas e dispositivos de edição, manipulação e montagem de filmes caseiros
e amadores das décadas de 1920 a 1950.
Diz-se que, em qualquer guerra, um dos primeiros setores a serem sacrificados é o da informação jornalística, operada pelos serviços de contraespionagem e censura. No momento em que se rememora tristemente os 100 anos
de início da Primeira Guerra Mundial, o texto de Tito H. S. Queiroz trata
exatamente disso, ou seja, a prática do jornalismo e o controle da informação
no Brasil no período de 1914-1919.
Outro aniversário de 100 anos, esses sim para serem comemorados com alegria,
são aqueles caracterizados pelo percurso da área de relações públicas no Brasil.
Para marcar esse momento, publicamos um dossiê formado por três artigos.
O primeiro texto, assinado por Manoel Marcondes Machado Neto, apresenta
o desenvolvimento teórico e prático dessa área entre nós. O segundo, que tem
Fernando Gonçalves e Alessandra Maia como autores, se propõe a analisar criticamente os paradigmas que orientam as atividades de comunicação organizacional e
de relações públicas, assim como as contribuições da teoria do ator-rede de Bruno
Latour. Fechamos o dossiê com texto, escrito por cinco professores da FACHA,
no qual se descreve como o curso de RP dessa instituição, um dos mais antigos do
país, vem se repensando, desde o início, para desempenhar o seu principal papel
educacional, ou seja, proporcionar uma sólida formação acadêmica aos seus alunos.
COLABORAM NESTE NÚMERO
Aristides Alonso – Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Pós-Doutor (CECL/Universidade Nova de Lisboa). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa/
CNPq: “Redes Sociais, Ambientes Imersivos e Linguagem” e “ETC: Estudos Transitivos
do Contemporâneo”. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA).
Potiguara Mendes da Silveira Jr. - Doutor em Comunicação pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutor (CECL/Universidade Nova de Lisboa). Psicanalista
(NovaMente/RJ). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa/CNPq: “Redes Sociais, Ambientes
Imersivos e Linguagem” e “ETC: Estudos Transitivos do Contemporâneo”. Professor associado
da Faculdade de Comunicação e do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Francisco J. Paoliello Pimenta – Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com parte da pesquisa de doutorado financiada pelo
CNPq na Tisch School of the Arts da New York University. É jornalista e professor associado
da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde foi o
coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e tutor do grupo PET/SESU.
Ariane Holzbach – Doutora e mestre em Comunicação pelo PPGCOM/UFF. Coordenadora adjunta de jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e professora
do curso de estudos de mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Geraldo M. P. Mainenti – Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Jornalista. Professor das Faculdades Integradas
Hélio Alonso (FACHA).
Tito H. S. Queiroz – Historiador e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA).
Manoel Marcondes Machado Neto – Pesquisador e professor associado da Faculdade
de Administração e Finanças da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Formado em Relações Públicas pelo IPCS/UERJ, especialista em Sistemas de Informação
pelo CPE/Saint Charles (EUA), mestre em Comunicação pela ECO/UFRJ, e doutor em
Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
Fernando Gonçalves – Mestre e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ (1996 e 2003). Realizou pesquisa de Pós-Doutorado em Sociologia do
Cotidiano na Universidade Paris V- Sorbonne. Foi pesquisador visitante na Tisch School of the
Arts (New York University). Atualmente é professor associado e diretor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e pesquisador do CNPq.
Alessandra Maia – Doutoranda em Tecnologias da Comunicação e Cultura PPGCOM/
UERJ – bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (FAPERJ) –, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Entretenimento e Cognição (CiberCog) e integrante do Laboratório de Pesquisas em Tecnologias
de Comunicação, Cultura e Subjetividade (LETS).
Anderson Ortiz, Charbelly Estrella, Cláudio Cotrim, Maria Helena Carmo e
Ricardo Benevides – Professores do curso de Relações Públicas das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA).
05
24
Transformática: a teoria psicanalítica da comunicação
Aristides Alonso e Potiguara Mendes da Silveira Jr.
48
Excesso, esquizofrenia, fragmentação e outros contos:
a história social de surgimento do videoclipe
Ariane Holzbach
64
Nas paragens de Péter Forgács, a memória em movimento
Geraldo M. P. Mainenti
Guerra e controle da informação: Brasil, 1914-1919
Tito H. S. Queiroz
Dossiê: Cem anos de relações públicas no Brasil
100
Reconhecimento social, relacionamento com stakeholders, relevância
no mercado e gestão de reputação. Busca e resultado de uma só formação
no Brasil: relações públicas
Manoel Marcondes Machado Neto
108
Reflexões sobre relações públicas, comunicação organizacional
e as TIC: contribuições da teoria do ator-rede
Fernando Gonçalves e Alessandra Maia
134
148
O repensar da área de relações públicas e o projeto do curso de RP da FACHA
Anderson Ortiz, Charbelly Estrella, Cláudio Cotrim, Maria
Helena Carmo e Ricardo Benevides
Nota aos colaboradores
SUMÁRIO
79
99
Redes multicódigos, mudança de hábitos e o campo da comunicação
Francisco J. Paoliello Pimenta
Conselho Editorial:
Ariane Holzbach, Aristides Alonso, Eliana Monteiro, Fernando Sá, José Eudes
de Alencar, Paulo Alonso e Ricardo Benevides.
Conselho Consultivo
Aluizio Ramos Trinta – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Antonio Edmilson Martins Rodrigues – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Arthur Poerner – Jornalista e escritor.
Consuelo Lins – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Eduardo Neiva – Universidade do Alabama em Birmingham (EUA)
Mário Feijó Monteiro – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Márcio Gonçalves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Michel Misse – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Nilson Lage – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Potiguara Mendes da Silveira Jr. – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Coordenação Editorial: Fernando Sá
Projeto Gráfico: Amaury Fernandes
Secretário Executivo: Gilvan Nascimento
Editoração Eletrônica: André Cunha
EXPEDIENTE
Organização Hélio Alonso de Educação e Cultura
Instituição de caráter educativo criada em 08/08/1969, como pessoa jurídica de
direito privado, tem por finalidade atuar no âmbito da Educação nos níveis do
1º e 2º graus e Superior, com cursos na área de Comunicação Social, Turismo,
Direito e Processamento de Dados, bem como contribuir através de projetos
de desenvolvimento comunitário para o bem estar social.
Sede: Rua das Palmeiras, 60 – Rio de Janeiro – Botafogo – RJ
FACHA
Unidade Botafogo
Rua Muniz Barreto, 51 – Botafogo – RJ – Tel.: (021) 2102-3100
Unidade Méier
Rua Lucídio Lago, 345 Méier – RJ – Tel.: (021) 2102-3350
E-mail: [email protected]
Diretor-Geral: Hélio Alonso
Vice-diretora Geral: Márcia Alonso Pfisterer
Diretor Executivo: Paulo Alonso
Gerente Acadêmica: Denise Azeredo
COMUM – v.16 – n° 36 – (julho/dezembro 2014) ISSN 0101-305X
Rio de Janeiro: Faculdades Integradas Hélio Alonso
2014
Semestral
148 Páginas
I. Comunicação – Periódicos.II. Educação
CDD 001.501
Transformática:
a teoria psicanalítica da comunicação
Aristides Alonso
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
A partir do final dos anos 1970 pareceu que a era das grandes teorias, que
abordavam tudo sob um único ponto de vista, teria acabado (Lyotard [1979]).
Consequentemente, pareceu que descrever os acontecimentos sob vários
ângulos seria preferível a tomá-los segundo visões (mais) globais. São dois
aspectos que, a rigor, estão entrelaçados, pois qualquer profusão de abordagens
sempre implicará a orientação de alguma teoria – que, justo por ser teoria,
não deixa de referir-se a modelos protocolares específicos –, assumida ou não.
Como, por outro lado, é impossível haver teoria que não implique aplicações
pontuais (isto que chamam de prática), ela será tanto mais eficaz quanto mais
inclua pontos de vista diversos.
O que parece inegável, sim, é o fato de os campos teóricos disponíveis até
então, todos sem exceção, terem sido obrigados a repensar suas sustentações
perante o que começava a se generalizar como globalizada e invasiva transfusão informacional de base tecnológica. Isto, numa rapidez de transformação
nunca antes vista, cujos efeitos não deixavam incólumes os mais recônditos
nichos do planeta e das mentes. Ou seja, era preciso correr atrás do prejuízo.
Não fazê-lo implicava perecer, entrar em declínio1 enquanto instrumento
útil de análise das novas conexões que se estabeleciam e começavam a se
expandir exponencialmente.
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 05 a 23 - julho / dezembro 2014
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O campo de estudos da comunicação está à vontade neste novo ambiente, pois surge no início do século XX e se desenvolve concomitantemente à
difusão para o grande público da telegrafia sem fio, do telefone, do cinema,
do rádio, da televisão... Sempre foram estudos e aplicações que, a cada momento, buscavam mapear e entender as formatações (sociais e mentais) que
se aprontavam condicionadas direta ou indiretamente por estas e outras tecnologias – que não cessaram de se transformar (e de transformar o entorno).
Para tanto, os estudiosos lançaram mão de saberes disponíveis nas ciências
duras, humanas, sociais... Esta característica não é sem problemas hoje: há
os que preconizam uma teoria própria, pura, do “comunicacional”, e outros
para os quais este “comunicacional” justamente implica a disponibilidade de
uso múltiplo como especificidade para o campo.
Mas falar em teoria da comunicação é falar de quê? Respondendo de
modo esquemático: é falar de algo emitido numa ponta e recebido em outra.
Evidentemente, o receptor, por ser receptor, já deve portar as condições de
recepção do que foi emitido. Isto é trivial, é o que acontece tanto no que é
biótico (organismos simples e complexos) quanto no que é produzido industrialmente (servomecanismos). O desenrolar teórico do campo é conhecido:
canal, mensagem, codificação, decodificação, ruído, entropia, feedback...
O que nos interessa é o fato de as condições de emissão e recepção já
estarem presentes em todos os atores (humanos e não-humanos) envolvidos
no processo da comunicação. Por entender isto é que Claude Shannon (19162001) (1948) pôde demonstrar uma unidade essencial para todos os meios
de informação – texto, sinais telefônicos, ondas de rádio, figuras, filme etc.
–, desde que codificados na linguagem universal dos dígitos binários, os bits:
uma vez digitalizada a informação, poderia ser veiculada sem erro (se mantida
abaixo do limite de velocidade da transmissão).
Mediante esta moderna concepção de informação (não mais intangível,
e sim física) (Waldrop, 2001), possibilitou-se o passo que muitos vinham
buscando para bem traduzir eletronicamente a dinâmica humana do campo
do sentido e do processo da significação, em que predomina a continuidade
(Eco, 1971: 20s), para o universo das máquinas, caracterizado pelo sinal
enquanto série de unidades discretas computáveis. Mencionamos Shannon
por supor que o momento sociotecnológico que vivemos hoje potencializa
e expande os efeitos do que sua concepção propiciou (aliada, é claro, aos
achados de muitos outros antes e depois dele) – e exige teorias da comunicação consentâneas com esse momento.
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Dados psicológicos
Uma origem tradicionalmente atribuída ao campo de estudos da comunicação são as sondagens realizadas por Paul Lazarsfeld (1901-1976) no final
dos anos 1920 em Viena e posteriormente nos EUA. É a chamada corrente
funcionalista-empirista da mídia de massa, que, promissora na época, passa a
mostrar-se muito restrita ante a amplitude que o campo da comunicação vem
a ganhar na sequência. Theodor Adorno (1903-1969), outro nome importante
dos inícios, trabalha com Lazarsfeld no final dos anos 1930, mas posteriormente critica sua ênfase na “pesquisa administrativa”. De lá para cá, como é
sabido, muitos avanços e desdobramentos ocorreram – e estudar e pesquisar
sobre comunicação continua sendo uma atividade em questionamento constante de suas bases teóricas, processos e objetivos.
Notável para os objetivos de nossa exposição é que, ainda em Viena,
Lazarsfeld se interessara pela psicologia e pela psicanálise buscando – sem
muito sucesso – desenvolver análises estatísticas para certos problemas psicológicos. Interessa resgatar esta referência, pois nessa época (anos 1920),
segundo estudo recente de um pesquisador dos estudos culturais, já vigorava
nos EUA uma “convergência fatal entre fordismo e freudismo”: este, desde
o final do século XIX, surgira como a “primeira grande teoria e prática da
‘vida pessoal’”2 e aquele havia “transformado a vida pessoal em um fenômeno
de massa” (Zaretsky, 2004: 138). Convergência esta que demandava novas
ferramentas para arrazoar o que ocorria.
Essas mudanças já tinham levado intelectuais a buscarem desenvolver uma
cultura genuinamente norte-americana, “emancipada não apenas da Europa,
mas também da Nova Inglaterra” e de seu contumaz calvinismo (Zaretsky,
2004: 153). Um dos recursos que utilizaram foi a então nascente psicanálise.
Ela fornecia os meios teóricos e práticos para, além dos protestantes brancos
anglo-americanos, também incluir judeus, italianos e, sobretudo, negros
como integrantes originais dessa cultura – o que alavancou pesquisas como
as realizadas pelo movimento Harlem Renaissance3 na tentativa de “entender
as raízes inconscientes da cultura americana” (Zaretsky, 2004: 153).
Então, se Lazarsfeld não tem maior êxito em aplicar estatísticas a questões psicológicas, na Europa e na América já temos bem difundidas as ideias
tanto da crescente necessidade de coleta e quantificação das informações
(essencial para o fordismo) quanto de que é preciso levar em conta questões psicológicas para a compreensão dos dados colhidos. E mesmo de
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que, sem considerar estas questões psicológicas, os dados, estatísticos ou
outros, poderiam restar sem possibilidade de aplicação maior.
Freud
Freud (1856-1939) tem incursões exemplares e bastante conhecidas em
questões culturais (que hoje podemos bem chamar de comunicacionais). As
três mais conhecidas são justamente aquelas feitas também nessa década
de 1920. Primeira, os estudos sobre a psicologia das massas (1921), em que
inquiria sobre como um grupo adquire a capacidade de exercer forte influência na vida mental do indivíduo. Freud dialoga com os autores que
trataram do tema e aponta que os fenômenos mentais são básica e intrinsecamente dependentes de atividades vinculares (transferenciais, comunicacionais), cujos níveis, em última instância, definiriam os movimentos
desejantes gerais da espécie humana (Silveira Jr., 2006: 53). A presença
destas ideias em trabalhos orientados pelas ciências sociais hoje já é lugar
comum. Segunda, seis anos depois estuda a função da ilusão na civilização,
educação, relações familiares, atitudes religiosas, e, em consonância com
outros pensadores da época, destaca ideias e questões como as que serão
depois incluídas no quesito “trabalho imaterial”, por exemplo. Diz ele que,
além do controle da natureza para a obtenção de riquezas, “parece agora
que a ênfase se deslocou do material para o mental” (Freud, [1927]: 17).
Terceira, em 1930, trata do mal-estar na cultura e, entre itens como a função
do trabalho na economia libidinal, reafirma que o homem, “por assim
dizer, tornou-se uma espécie de ‘Deus de prótese’” (Freud, [1930]: 111),
raciocínio este que permeia linhas atuais de reflexão sobre cibercultura,
pós-humano, estudos de mídia etc.
No mais, no esforço de configurar uma área temática específica de
estudo, pesquisa e aplicação da comunicação, tem-se buscado integrar o
que diversas disciplinas definem como “contato”, “memória”, “arquivo”,
“energia”, “informação”, “autopoiese”, “complexidade”, “vínculo”, “transferência”, “interface”, “transe”, “rede”, “mídia”, “poder” e outros termos
constituintes das transações e performances dos homens, do mundo, do
homem com o mundo e vice-versa. Parece-nos, portanto, claro que o
horizonte de qualquer teoria da comunicação deve ser o de uma dinâmica
capaz de incluir ao máximo esses acontecimentos.
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Uma teoria plena: a pulsão, o Haver, o revirão e a indiferenciação
Nosso encaminhamento supõe, então, que, para pensar em teoria hoje,
em qualquer área, não é possível desconsiderar pontos como os elencados
acima. E já que o objetivo é apresentar contribuições para a consolidação da
comunicação como campo de conhecimento, estudo e pesquisa, é cabível a
referência a teorias atuais capazes de embasar uma concepção consistente
do que seja a comunicação, seus processos, suas formações e resultantes.
Neste sentido, tem nos interessado trabalhar uma teoria psicanalítica produzida no Brasil dos anos 1990, que, em mão dupla, postula: a psicanálise
é uma teoria plena da comunicação, e uma teoria plena da comunicação é
uma teoria psicanalítica (Silveira Jr., 1999).
O ponto de partida é o que Freud, em 1920, adianta como o conceito
de pulsão de morte (Todestrieb), uma força ou impulso constante (konstante
Kraft) que ele descobre estar necessariamente presente no psiquismo.
Qualifica-o como “de morte” por constatar que o sentido do impulso é o
de sua própria extinção. Hoje, mais avançados nos estudos do conceito e
seus desdobramentos, podemos acelerar heuristicamente sua consonância
com a segunda lei da termodinâmica (permanente crescimento da entropia) e reforçar algo que Freud indica, mas não desenvolve. A saber, que a
pulsão não está apenas circunscrita ao psiquismo, mas diz respeito ao que
quer que haja, ao Haver (Alonso, 2010).
Esta ampliação do conceito de pulsão de morte para o conceito único e
genérico de pulsão norteou uma grande reformatação do aparelho teórico
e prático da psicanálise nos anos 1980, extrapolando-o justamente de seu
entendimento apenas como “teoria e prática da vida pessoal” a que aludimos
no início e passando a concerni-lo a todos os acontecimentos (mentais,
cosmológicos, políticos, sociais...) – como, aliás, sempre foi a perspectiva
de Freud. Esta reformatação foi então denominada nova psicanálise 4 e
posteriormente, nos anos 1990, renomeada NovaMente.
Nesta mesma década, a nova psicanálise propõe uma teoria do conhecimento diversa daquela desenvolvida pela filosofia. Trata-se da gnômica
(Magno, [1991, v.I]: 96; e [2000/2001]: 59-95), um campo de estudo e
pesquisa sobre as condições e desempenhos da produção do conhecimento
de qualquer ordem, não apenas aquele oriundo da produção científica como
querem as epistemologias. A gnômica, como veremos adiante, visa mapear
todas as ocorrências do conhecimento (suas relações, transformações e
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encaixes). Ocorrências estas que serão operadas segundo uma teoria polar
centrada no conceito geral de formação5, que também será desenvolvido
a seguir. O que nos interessa diretamente é que o modo de operação da
gnômica, denominado transformática, é proposto como teoria psicanalítica da comunicação. Seu objetivo é justamente descrever, acompanhar e
intervir nos processos de coleta e arquivamento das transposições e jogos
das formações (Magno [1996]: 391-428; e [1998]).
Como dissemos, trata-se de uma concepção que estende o alcance da
pulsão para além do que ocorre no psiquismo e abrange o que há por inteiro, o Haver (conceito este que não só designa o campo do possível, mas
também inclui o que vier a haver neste ou em qualquer outro universo).
Acontece que o movimento pulsional em seus desdobramentos (e não há
como impedi-lo de desdobrar-se) bate de frente com uma radical impossibilidade de se extinguir, de não mais haver. É desta impossibilidade que
a nova psicanálise extrai uma Lei que se enuncia como Haver desejo de não-Haver (A-->Ã). Neste enunciado, temos ao mesmo tempo a requisição de
não haver e a impossibilidade de sua consecução, pois o “não-Haver”, como
o nome diz, não há de fato, só há como nome. É justo esta requisição do
impossível que se chama de “desejo” e qualifica também a espécie humana.
Além disso, resulta dessa impossibilidade de passagem à extinção uma
operação que a nova psicanálise chama de revirão6. Ou seja, como o movimento pulsional chega a um ponto extremo e inultrapassável (Ã), isto o faz
revirar sobre si mesmo. Neste reviramento, indiferenciam-se7 as polaridades
das formações que nele estão em jogo e elas se veem levadas a “retornar”
– entre aspas, pois nunca saíram – ao Haver (A). E mais, decorre dessa
não passagem e consequente “retorno” que o que quer que haja (material
ou imaterialmente) se reduz a existir como formações condenadas a uma
eterna agonística dentro do Haver, sem um “fora” para onde pudessem ir.
Como veremos à frente ao tratar da “teoria polar das formações”, o que
há são Formações do Haver sem saída possível do Haver.
Teoria dos vínculos: os vínculos relativos e o vínculo absoluto
Outra hipótese da transformática que desenvolvemos é que uma teoria
da comunicação sempre depende de uma teoria dos vínculos: a definição
de vínculo que ela toma para si é que dá a sustentação de seu arcabouço
conceitual e prático. Em nosso caso, é da lei pulsional, do revirão e da
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Comum 36 - jul./dez. 2014
indiferenciação que se retira um sentido abstrato para a definição dos
vínculos e das intencionalidades adscritas a eles.
Em sequência, então, ao que foi dito sobre a pulsão e a inevitável condenação ao Haver, é dentro desta condenação (pois não há o “fora” do Haver)
que se produzem e sobrevêm os vínculos. Considerando-se também que
o que quer que compareça no campo do Haver força à vinculação8, como
supõe outro conceito freudiano importante, o de transferência (Übertragung),
poderemos entender que são relativos os vínculos produzidos no âmbito das oposições presentes nas rotinas do mundo (macho/fêmea, noite/
dia, ocidente/oriente...). São vínculos dependentes das formações que a
nova psicanálise chama de primárias (naturais, somáticas, etológicas) ou
secundárias (culturais, simbólicas, neo-etológicas), as quais, mesmo as
secundárias sendo mais permeáveis, se mostram reativas às tentativas de
transformação em qualquer coisa diferente delas mesmas.
Mas há um tipo de vínculo não relativo, chamado vínculo absoluto, que
podemos depreender por via da referência ao movimento pulsional. Nele, para
aquém e além da oscilação entre formações opostas observadas no decorrer
da história dos pensamentos ocidental (mente/corpo, por exemplo) e oriental
(yin/yang, por exemplo), o que ocorre é a suspensão das oposições, ou seja,
a possibilidade de indiferenciação acima mencionada que os humanos portam
como distinção para com os demais vivos (Magno [1993]: 9). Uma vez então
que o vínculo absoluto é o que especifica o humano, a nova psicanálise considera que todos da espécie se vinculam não entre si9, mas absolutamente ao fato
de estarem condenados a realizar seus desempenhos numa mesma situação
de imanência sem transcendência possível, embora esta transcendência seja
requerida o tempo todo de dentro da imanência.
A referência à lei pulsional – Haver desejo de não-Haver – relativiza necessariamente qualquer conteúdo dos vínculos primários e secundários ante a
única diferença que importa, aquela intransponível entre Haver e não-Haver
(A/Ã). A grande massa dos recalques que caracteriza o cotidiano dos vínculos
relativos é que impede nossa referência indiferenciante de ser operativa com
mais frequência, e, portanto, que a força da pressão (e da opressão, sobretudo)
desses vínculos possa ser modulada (portanto, ter chances de ser minorada)
pela referência ao vínculo absoluto. Para a transformática, então, é mediante
a referência a este vínculo absoluto que é possível destacar tanto os níveis de
recalque em vigor em qualquer situação quanto as possibilidade de novos
modos de vinculação e de intervenção – políticas, inclusive – nos acontecimentos das pessoas e do mundo.
Comum 36 - jul./dez. 2014
11
Outro modelo da teoria é existirem três registros no Haver: primário,
secundário e originário10. A cada um deles corresponde um tipo de recalque: recalque primário11, recalque secundário12 e recalque originário. Este
último sendo o modelo dos outros dois por resultar da impossibilidade de
passar a não-Haver que ressoa por todo o Haver: se é impossível passar,
quebra-se a simetria desejada (entre A e Ã) e há que “retornar” ao Haver
tendo recalcado, ainda que por um instante, o desejo de passar. É isto –
não passar, “retornar”, insistir em passar, não conseguir... – que é o registro
originário, o registro do revirão.
No registro secundário – aquele das anotações do que se dispõe no mundo como
formações “naturais”, espontâneas –, estabelece-se o diálogo mediante conexões linguageiras ou qualquer tipo de força passível de ser transcrita em algum
código. Pode-se discutir infinitamente a respeito de grandes complexidades de
oposições e eventualmente estabelecer suspensões no sentido do reviramento
dessas oposições, mas a própria suspensão aí estabelecida tende necessariamente
a se configurar como situação – isto é, como resistência – no Haver.
Já no registro primário, as formações não operam na disponibilidade pontual do revirão (como é o caso no registro secundário). Aí, as oposições são
preponderantes e apenas raramente, ou mediante custo muito alto, têm
oportunidade de estabelecer novas conexões. As formações primárias – chamadas de autossomáticas (suas corporeidades) e etossomáticas (comportamentos aderidos a esses corpos13) – são muito fechadas, algo precisa agredi-las,
rompê-las para que deixem um lugar neutro momentaneamente disponível
(a produção de uma vacina propiciada no registro secundário intervindo no
comportamento de um vírus, por exemplo) e se modifiquem.
Temos, portanto: a) a vinculação absoluta; b) a vinculação secundária, que
pode propiciar uma suspensão das oposições como condição para as criações
e invenções culturais da espécie, mas que também pode ser neo-etológica
(quando co-naturaliza os resultados criadores, isto é, quando os des-historiciza
e reduz a mera imitação e repetição dos automatismos espontâneos do registro
primário14); e c) as vinculações em estado bruto do registro primário, que são
etológicas propriamente ditas e autossomáticas.
A teoria polar, o conhecimento e a transa das formações
Como vimos, a nova psicanálise alça o conceito de pulsão à posição de
articulador geral da teoria psicanalítica e destaca a operação do revirão como
básica no funcionamento do Haver. Dado que este articulador (a pulsão) e esta
12
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operação (o revirão) estão presentes de saída em suas ações, ela toma o que quer
que se manifeste no Haver como emergências artificiosas, sejam emergências
espontâneas, que estão aí desde sempre, ou industrialmente produzidas15. E
mais, qualquer destas emergências (espontâneas ou industriais) é considerada
uma formação: uma coalescência resultante da partição, do enantiomorfismo16
e da fractalização17 que acontecem diante da impossível realização do revirão
último (aquele entre Haver e não-Haver: A-->Ã).
O termo formação diz respeito à teoria polar das formações que a nova
psicanálise vem desenvolvendo junto com sua teoria do conhecimento,
a gnômica que mencionamos antes. Para esta teoria polar, o que há são
formações. Mesmo gente, humanidade, nossa espécie, são formações.
Estas são, entretanto, chamadas idioformações18 porque, além de características biológicas e comportamentais presentes em muitos dos seres
vivos também portam o revirão. Por isso, apenas uma idioformação tem
“condições de trans-por sua própria formação” (Magno [1996]: 393), mas,
como veremos, sua presença não é necessária para que haja conhecimento.
As formações são compostas de aglomerados de formações que resistem,
mas não têm como impedir o revirão, isto é, o movimento de transformação em
outra coisa diferente delas mesmas, ainda que esta transformação leve milênios
para ocorrer. O que conseguem é pontualmente manter-se enquanto “polos,
configurados como formação e como resistência” (Magno [2005]: 113). São
polos constituídos por uma zona focal, onde se concentra sua força maior, e uma
zona franjal, cujo alcance não se tem como definir. A teoria polar das formações é
aquela que reconhece a existência de polos e busca apreendê-los mediante a
descoberta de focos e a descrição aproximada das franjas (Magno [2005]: 115).
franja
foco
– polo –
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13
Trata-se, então, de pensar em aglomerados de formações sem fronteiras, mas
que se polarizam e se configuram como formação e como resistência. No polo
assim concebido, o foco pode ser situado, mas não sua franja, que é interminável e está intricada com franjas de outros polos. Por não pensar aplicando
fronteiras, a teoria polar supõe que as formações se co-movem e podem se
acoplar (comunicar) umas às outras chegando mesmo a se transformarem. Isto
é pensável mediante a ideia de haver entre elas o ponto neutro, em que ocorre
a “indiferença entre as formações”19 (Magno [2005]: 122) mencionada acima.
Dada, então, a teoria polar das formações, podemos entender que a
teoria psicanalítica do conhecimento, a gnômica (Magno [2008]), visa o
“mapeamento possível entre formações do Haver” na “procura de uma
formação que melhor se encaixe com outra” (Magno [1994]: 142). Como
ela “considera qualquer dessas formações no mesmo registro, no mesmo
âmbito de origem: são todas Formações do Haver”, o que lhe cabe precisar
são “seus materiais, seus modos de produção, suas articulações internas e
externas” (Magno [1996]: 391). O conhecimento é, portanto, entendido
como o que resulta de uma transa20 entre as formações – outra noção importante da teoria –, incluindo ou não a presença de uma idioformação nesta
transa: simplesmente “algo se anota quando algo se dá” (Magno [2000/01]:
72). Se o conhecimento se explicita somente com a participação de alguém
ou de alguma formação preparada por alguém com este propósito, isto
apenas implica a necessidade dessa participação na explicitação, “mas não
que seja desse alguém a produção” (Magno [1998]: 75).
O que interessa é a transa entre as formações – na qual pode estar presente
uma ou mais pessoas, isto é, idioformações – que pressionam, se articulam
e configuram situações em função dos próprios processos em jogo nessa
transa. Vê-se aí um diferencial claro para com as abordagens de base epistemológica, já que não se pressupõe um sujeito diante de algum objeto para
que haja conhecimento: são, sim, formações em transa resultando em conhecimento.
A indiferenciação: aquém do binário
Fundamental para a teoria polar das formações é a ideia de que qualquer
formação do Haver se expressa de saída binariamente, opositivamente, mas
há um nível unário prévio a qualquer modo de expressão. Foi o que Shannon,
citado no início, entendeu para aplicar a seu conceito físico de informação
(= manipulação de bits). Seguindo um procedimento de engenharia rever-
14
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sa, podemos supor que ele percebeu que, antes ainda de binarizar-se como
informação (0/1), estava em jogo na oposição energia/matéria algo da ordem
do unário, que, por sua vez, precisava tornar-se binário para se expressar. Ou
seja, a informação estaria expressando em bits o unário radicado na própria
possibilidade de seu surgimento como informação (Alonso, 2012). É justo
este nível unário que é específico do processo de indiferenciação presente no
registro originário, e que é acompanhável no percurso do revirão.
Como a idioformação que definimos antes é a formação que, além dos
registros primário e secundário, porta o revirão em sua própria construtura
mental, nela se verifica mais diretamente a operação de indiferenciação. Ao
que quer que se coloque para sua mente revirante, no ato, coloca-se também
a possibilidade de o oposto daquilo ser possível e mesmo exigível. É assim
porque, na mente, antes ainda de qualquer formação expressar-se opositivamente, o que ocorre diz respeito a uma coisa só. É o que, por exemplo, Freud
([1900]) detecta na elaboração dos sonhos e nas fantasias das pessoas (Magno
[2010]); ou o que está no livro milenar chinês que inspirou Leibniz, o inventor
do sistema binário: ao I Ching, antes ainda da combinatória expressa em traços
cheios (–) ou interrompidos (– –), o que interessa é a pura e simples mutação
de um a outro traço; ou ainda o que se busca na computação quântica e na
teoria da informação dos q-bits: processar ao mesmo tempo as duas vertentes
de uma questão, possibilitando assim, tecnologicamente, que qualquer questão
colocada porte a totalidade da computação (Magno [2000/2001]: 515).
Trata-se, então, para a transformática, de tomar a indiferenciação como
necessariamente prévia a qualquer expressão – e isto fornece a condição
para entendermos as declinações que o unário sofre ao expressar-se. No
vínculo absoluto é que justamente vigora a indiferenciação. Nem por isso
ele elimina a existência dos vínculos relativos (primários e secundários),
pois estes têm funções necessárias até para que seja possível conceber
incidência e a insistência da vinculação absoluta nas idioformações. A diferença está em supor, como faz a transformática, a hegemonia referencial do
vínculo absoluto na abordagem dos outros vínculos, possibilitando assim
considerar as formações em seu nível prévio, e não em função das configurações
(naturais ou culturais) de que se revestem. Estamos, pois, no âmbito da
pragmática de um artificialismo amplo (Silveira Jr., 2006) que não exclui o
entendimento das formações ditas naturais, mas as considera também no
regime da artificialidade espontânea dada desde sempre.
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15
Transformática: teoria da comunicação
Como dissemos, a transformática é o modo de aplicação da gnômica.
Comunicação, para ela, é: o processo dos acoplamentos das formações
(conhecimentos) em meio à co-moção que há entre elas. A transformática
é, pois, a teoria da comunicação que, mediante a sustentação conceitual na
pulsão e a pragmática centrada no revirão, visa colher, descrever e intervir no
que ocorre nas, e decorre das, transas entre as formações (que resultam em
conhecimento): suas conexões e clausuras, suas possibilidades de acesso e
arquivamento, suas transposições e estases, seus avanços e emperramentos,
seus níveis de extração e hegemonia (primária, secundária ou originária), seus
efeitos vinculares e implicações políticas. Para tanto, ela pode se utilizar do que
quer que esteja disponível (produções artísticas, filosóficas, científicas...), desde
que aplicado segundo o protocolo do revirão em sua perene possibilidade de
neutralização das formações, por mais duras e diferenciadas que aparentem ser.
O que nos autoriza a tomar a transformática como nova teoria da comunicação é o fato de incluir em seu mapeamento e coleta das transas entre
as formações um recurso heurístico não presente em outras teorias e que
possibilita também a emergência de novas formações que serão incluídas
nos sistemas em vigor: o recurso ao processo de indiferenciação do registro
originário exposto acima. Ou seja, uma vez que os vínculos primários e secundários são inelimináveis por serem, juntamente com o vínculo absoluto,
os constituintes mínimos das possibilidades de vinculação entre as formações,
faz toda a diferença considerar os dois primeiros recorrendo ao processo de
indiferenciação que ocorre no terceiro. Assim procedendo, temos que:
a) além das formações em vigor em dado momento, ou dada época,
visualizam-se também aquelas que estão sendo recalcadas justamente
porque estas estão em vigor21;
b) considera-se que o recalcado é inerente a todas as formações e, mais,
que condiciona as próprias possibilidades de suas manifestações (a cada
vez que uma formação se manifesta de tal modo, recalca-se – naquela vez,
pelo menos – necessariamente tal outro modo de manifestação e, além
disso, a possibilidade de passagem de um a outro);
c) proíbe-se tomar uma formação – qualquer que seja – como perenemente
hegemônica na regência das transas entre as formações, já que, segundo a lógica
do movimento pulsional presente no Haver, formação alguma deixará de se
transformar (isto é, de revirar) à medida que se desempenha como recalcante
16
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de outra ou como recalcada por outra (podendo, eventualmente, qualquer
uma, tornar-se obsoleta ou hegemônica);
d) sabe-se que é impossível considerar a totalidade das formações envolvidas em determinada transa, pois a possibilidade de suas conexões é tida como
infinita; mas é possível, sim, aviar expedientes – isto é, próteses resultantes do
recurso à indiferenciação – para que se maximizem a cada vez as possibilidades
de computação das formações em jogo em dada situação; e
e) distinguem-se ao máximo “os níveis, os modos e as diversas formações
que estão disponíveis em cada processo de vinculação” (Magno [1993]: 120).
Sobretudo, distinguem-se as vinculações por reprodutividade em série (primárias) e por transmissão de um discurso (secundárias) da vinculação absoluta
(esta, por seu recurso ao revirão, disponibilizando – e não “obrigando”, pois
não se trata de imperativo kantiano – para a reconsideração e transformação
das outras duas vinculações).
Vemos, então, que se relativizam as configurações dos poderes e imposições
advindas dos vínculos relativos, restando avaliar, caso a caso, a adequação maior
ou menor de tal configuração em tal momento – sem, portanto, necessidade
de qualquer apego fundamentalista a esta ou aquela formação. Trata-se, o
tempo todo, de tomar as situações como resultantes de meras apostas quanto
a funcionamentos mais eficazes em tal ou qual caso, e não de crença – religiosa, política, intelectual ou outra – que se suponha superior por si mesma.
Lembre-se que a indiferenciação implica necessariamente a suspensão das
oposições – quaisquer (menos aquela impossível de ser eliminada entre A e Ã)
–, o que, por sua vez, propicia uma consideração abrangente das possibilidades
das transas entre as formações (mesmo que pareçam absurdas).
***
Reportamos acima os elementos constituintes e o contexto de surgimento
da transformática como teoria brasileira da comunicação que orienta a linha
de pesquisa “Comunicação, estética e psicanálise” em que vimos trabalhando
nos últimos 20 anos22 (orientação de monografias e dissertações, publicação e
edição de livros e artigos, participação em congressos23, em bancas de graduação
e pós-graduação, pesquisa clínica, docência). Como vimos, a transformática
é uma teoria que não opera mediante fronteiras. Ela toma a comunicação
como campo de estudo e pesquisa que surgiu e se desenvolveu numa época
em que justamente começavam a perder fôlego as definições produtoras de
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demarcações e distinções – entre ciência, filosofia e arte, por exemplo – que
pareciam garantir a força da modernidade.
Diz Muniz Sodré que, ao final dos anos 1980, “vão se tornando fluidas
as fronteiras entre campos outrora bem demarcados (fenômeno análogo
à crise dos gêneros na literatura) no pensamento social” (Sodré, 2012:
15). Consequentemente, as pesquisas e observações realizadas no campo
comunicacional, segundo supomos, não podem deixar de proceder enumerando e descrevendo tipos e situações que nos são cada vez mais comuns
e próximas: figuras ambivalentes, tramas sociotécnicas, e, sobretudo, reviravoltas e avessamentos que ocorrem a todo momento, se aprimoram,
se expandem, se desfazem... Daí a atualidade da transformática, que não
opera mediante fronteiras (disciplinares ou outras), o que não exclui que
ela trate – e é o que faz, segundo protocolo próprio (do revirão) – de questões
também tratadas pelo “pensamento social” ou outros.
Ela tampouco se prende aos parâmetros ditos científicos (aliás, hoje,
em franca mutação), mesmo estando, como a ciência, interessada na descrição (qualitativa e quantitativa) da composição e do funcionamento das
formações, assim como se aplica em intervir nestas formações e investe
na possibilidade de criação de novas formações (próteses). E sua doutrina,
esta, compõe-se de princípios não apenas discursivamente estabelecidos e
regrados por parâmetros da lógica clássica, mas, sim, retirados dos resultados
obtidos no laboratório (clínico, empírico) da psicanálise, que toma a estrutura mental como determinada inconscientemente24 (isto é, como caótica
e complexa, em determinismo sem previsibilidade) (Magno [2009]: 118s).
No mais, a transformática se apresenta como um endereçamento já consolidado e promissor aos estudos e à pesquisa em comunicação no Brasil.
Notas
1. Registre-se o comentário de Bernard Miège ao apresentar no Brasil seu paradigma de pensamento comunicacional: “Hoje, em vários países, tanto nos mais desenvolvidos como no meu
(que é um país em declínio)...” Justamente a França, tão pródiga em grandes pensadores até
os anos 1970... (Miège, 2009: 13).
2. Vida pessoal significando “uma experiência de singularidade e interioridade historicamente
específica, (...) sociologicamente fundamentada em processos modernos de industrialização e
urbanização, e na história da família”, surgida particularmente das experiências dos membros
mais jovens e das mulheres em suas iniciais tentativas de manifestação e emancipação no final
do século XIX (Zaretsky, 2004: 4-5).
3. Nome dado ao florescimento de atividades culturais e intelectuais ligadas às manifestações
africano-americanas ocorridas entre 1920-1930. É a expressão de uma Black America até então
impedida de mostrar-se como tal.
18
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4. (Cf. Magno [1986-87]). Esta reformatação ocorreu no âmbito da Escola de Comunicação/
UFRJ e está documentada em publicações da época e atuais. Além da comunicação, continua
reunindo pesquisadores de várias áreas (filosofia, psicologia, pedagogia, arquitetura [Araujo
2011, 2012, 2013], serviço social). Cf. as obras de MD Magno e de outros pesquisadores em:
www.novamente.org.br. Cf. também ‘MD Magno’ na wikipedia.
5. Para um aprofundamento do conceito na nova psicanálise, (cf. Medeiros, 2008: 4): “Por
formação entende-se toda e qualquer forma, ordenação, articulação ou estrutura que há, das
partículas e anti-partículas a uma ordenação simbólica (humana) qualquer, do código genético
e dos ecossistemas vivos a todo tipo de técnica, língua, conhecimento ou arte. Ou ainda, toda e
qualquer forma comparecente como matéria, vida ou artefato, para usar os termos das teorias
da complexidade e da auto-organização...”.
6. Conceito introduzido em Magno [1982]. Considera-se o revirão instalado, de saída, na
espécie humana como sua essencial disponibilidade (e não obrigação) para reverter, avessar o
que quer que lhe seja apresentado. Acrescente-se que o revirão é também inerente ao que há,
ao Haver, e não apenas à espécie.
7. Trata-se de um ponto de suspensão, ainda que por um átimo, do caráter opositivo das
formações que pressionam umas às outras dentro do Haver (entre as quais, a formação chamada humana). Suspensão esta produzida por uma indiferenciação (isto é, uma equi-valência
das diferenças) dos sentidos de seus polos como permanente possibilidade de passagem, em
continuidade, de um polo a outro. É aí que se disponibiliza a criação (não de sínteses, mas)
das próteses que têm caracterizado nosso modo de existir. Não confundir, portanto, com
“superação”, dialética ou outra.
8. Ao que há ou venha a haver só é dada a possibilidade de haver vincularmente.
9. “(...) é na absoluta estranheza para com o próximo que encontro a minha absoluta vinculação” (Magno [1993], p. 122).
10. Embora diferentes, não são registros heterogêneos. No humano, por exemplo, as formações primárias estão de tal modo imbricadas às secundárias que se torna difícil estabelecer
onde começam umas e terminam outras. Daí, por exemplo, a diferença natureza/cultura, tão
necessária ao estruturalismo, perder sua suposta nitidez.
11. Nossa conformação corporal, por ser de saída esta e não outra, já traz recalcada a possibilidade de voarmos, por exemplo, sem que nada precise proibir isto.
12. O fato de falarmos tal língua, por exemplo, recalca as possibilidades de falarmos outras
sem sotaque.
13. Cf. (Lorenz [1965], p. 9-10): “(...) padrões comportamentais são características tão confiáveis e conservadas nas espécies quanto as formas dos ossos, dos dentes, ou de qualquer
outra estrutura corporal. (...) Admitir que padrões comportamentais têm evolução exatamente
igual à dos órgãos leva ao reconhecimento de outro fato: eles também têm o mesmo tipo de
transmissão hereditária”.
14. A neo-etologia diz respeito, por exemplo, a vinculações nacionais ou religiosas (portanto,
históricas) que insistem em se fundamentar em etnia, cor da pele, sexo anatômico, etc.
15. São artifícios de dois tipos: espontâneos e industriais.
16. Referente a pares de elementos opostamente simétricos, cujas imagens são especulares,
mas não idênticas. Por exemplo, um par de luvas, de cristais, de moléculas...
17. De fractal (quebrado), termo criado pelo matemático Benoit Mandelbrot (1924-2010) em
1975 para designar uma figura geométrica não euclidiana que expressa propriedades sem “definição clara: o grau de aspereza, ou de fragmentação, ou de irregularidade de um objeto. Um
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19
litoral sinuoso, por exemplo”. A geometria fractal estuda as propriedades e o comportamento
dos fractais e supõe que “o grau de irregularidade permanece constante em diferentes escalas”
(Gleick, 1990: 93).
18. As idioformações de nosso caso terrestre são chamadas de pessoas.
19. Isto porque a Mente – entendida como instância que: abrange o que há, é relacional e
transacional, sem dentro ou fora –, diante do que quer que haja ou venha a haver (ainda que
apenas em pensamento), opera conjeturando sobre a possibilidade de o oposto daquilo também (vir a) haver.
20. O termo transa é aqui utilizado conceitualmente, englobando não só a ideia de transação
(sexual, inclusive), mas também as de transe e transiência das formações.
21. Aquelas nem por isso deixam de forçar seu direito à manifestação. Neste contexto, está o
que Freud verificava como permanente pressão do “retorno do recalcado”.
22. Em dois Grupos de Pesquisa/CNPq: “Redes Sociais, Ambientes Imersivos e Linguagem”
e “ETC: Estudos Transitivos do Contemporâneo”.
23. Entre outros, apresentação de trabalhos no GT “Epistemologia da Comunicação” da
Compós, desde 2009.
24. Isto é, hiperdeterminada para além das sobredeterminações (opositivas, lateralizadas) vigentes
no âmbito da Consciência. Cf. Freud ([1925], p. 258): “[ao contrário do que é para a filosofia]
o psíquico é antes inconsciente em si, [e] estar consciente é apenas uma qualidade que pode ou
não juntar-se ao ato psíquico particular e nele nada mais altera, caso fique ausente”.
25. As datas entre colchetes se referem aos anos em que os textos foram originalmente apresentados em público (falas, primeiras edições).
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20
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22
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Resumo
Objetivo desse artigo é situar a teoria da comunicação no campo geral do
conhecimento (científico ou outro); tomá-la como ferramenta de estudo,
pesquisa e aplicação a uma ampla gama de acontecimentos vinculatórios
(além daqueles específicos dos seres humanos); descrever a teoria geral dos
vínculos que embasa a transformática (teoria psicanalítica da comunicação); e
expor a definição de comunicação decorrente dessa teoria geral dos vínculos.
Palavras-chave
Teorias da comunicação – Nova Psicanálise – Pesquisa em comunicação.
Abstract
This paper aims to place the Communication Theory in the general field
of knowledge (scientific or other); consider it a tool for studying, researching
and to be used in a wide variety of communicative situations (not exclusively
those involving human beings); depict the general bonding theory which
grounds “Transformatics”, the psychoanalytical communication theory; and
display a definition of Communication derived of this general bonding theory.
Keywords
Communication theories – New Psychoanalysis – Research in communication.
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23
Redes multicódigos, mudança de hábitos
e o campo da comunicação
Francisco J. Paoliello Pimenta
As possibilidades abertas pelas tecnologias digitais multicódigos constituem,
hoje, a base de diversas mudanças na esfera comunicacional, desde a emergência
de percepções vagas, passando pela adoção de novos tipos de atitudes do âmbito
das ocorrências concretas, e chegando a transformações de processos ideacionais,
lógicos, das mentes interpretadoras, conforme já apresentamos em trabalhos anteriores (Pimenta, 2006; 2007A; 2007B; 2007C; 2008A; 2008B; 2009; 2010A; 2010B;
Pimenta e Franco, 2005; e Lorena Filho, 2007; e Rivello, 2012; e Rodrigues, 2012; e
Silveira Jr, 2009; e Soares, 2004; e Umbelino, 2012; e Varges, 2009; e Varges, 2010).
Se, por um lado, esse contexto mutante aparece como um desafio para essa área do
saber, tanto para a produção quanto para a análise dos eventos, por outro oferece
oportunidades bastante interessantes para um esclarecimento crescente sobre como
podemos conceber os processos de comunicação nesse atual ambiente e, ainda,
seu caráter mais genuíno como área do conhecimento frente às demais ciências.
A partir daí, acreditamos que o pragmaticismo pode nos conduzir a uma
compreensão mais rica desses resultados, definindo melhor o papel dos processos
de comunicação no atual ambiente em transformação. Isso porque esse método
se mostrou bastante útil nos trabalhos acima citados, ao nos fornecer o diagrama
lógico para analisarmos o atual contexto por meio do esclarecimento detalhado
de como deve ser cada passo das investigações e descobertas científicas sobre a
base das três inferências, a abdução, a dedução e a indução.
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 24 a 47 - julho / dezembro 2014
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O pragmaticismo está articulado a uma complexa arquitetura, concebida
pelo lógico norte-americano Charles Sanders Peirce, visando explicar como
se dão os processos de obtenção do conhecimento, e que pode ser aplicada
aos diversos tipos de inteligências que hoje conhecemos, sejam elas animais,
entre elas a humana, ou das máquinas, e, ainda, seus híbridos. Portanto, apresentaremos, a seguir, de forma sintética, a possível contribuição desse método
para uma melhor compreensão dos processos de comunicação, por meio de
suas relações com as demais esferas da ciência e do pensamento.
A concepção pragmaticista e o saber em comunicação
Em seu esforço de criar o pragmaticismo como método que propiciasse um maior esclarecimento sobre os processos de obtenção do conhecimento, Peirce desenvolveu diversas versões de um diagrama que o
situasse numa ampla classificação das ciências. Abaixo, segue uma de suas
versões, seguindo sempre as características triádicas de suas categorias
da primeiridade, secundidade e terceiridade.
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Assim, por meio desses diagramas, podemos compreender que qualquer
esforço científico, entre eles essa definição que buscamos sobre o que seria
o campo da comunicação, se encontra no âmbito mais geral do contínuo
trabalho humano de descobrir e aprimorar métodos, ou seja, da metodêutica
(Peirce, 1931-58: 2.108). Dessa perspectiva, a tarefa se apoia, portanto, na
lógica ou semiótica, como teoria geral dos signos. De fato, se não há como
pensar sem signos, para que se possa estabelecer uma ciência é imprescindível
uma compreensão semiótica de como se dão seus processos, em especial a
comunicação, que se dá necessariamente por meio deles.
A propósito, em nossas pesquisas anteriores, citadas acima, nos
apoiamos fundamentalmente nessa perspectiva semiótica, desde a base
pragmaticista fornecida pela metodêutica, passando pela postura metodológica derivada da lógica crítica, com suas subáreas da abdução, indução
e dedução, e, ainda, em sua analítica, que nos forneceu a teoria sígnica
para as análises em geral.
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O saber em comunicação e sua inserção na lógica da natureza
Seguindo os diagramas, outra instância que pode ser útil no entendimento
dos processos de obtenção do conhecimento nesse plano comunicacional,
especialmente se considerarmos o atual contexto das trocas por meio das redes
digitais, é a metafísica, tal como a concebeu Peirce, como ciência da mente e
da matéria, voltada para a busca do que seria a realidade em seus traços mais
gerais. Isso porque essa esfera nos remete à vertente do realismo escolástico,
na qual o pragmaticismo se insere.
Segundo ela, nossos pensamentos são determinados por uma realidade
lógica da natureza, infinitamente mais ampla que a cognição humana, o que
nos permite superar as limitações nominalistas herdadas do estruturalismo,
que tanto impactaram e ainda influenciam fortemente a área da comunicação.
Fred Michael descreve assim esta última fase do realismo de Peirce:
O real, na última versão de Peirce, é independente da cognição, e assim independente da investigação, o que talvez
explique como Peirce podia abandonar a sua caracterização
do real como aquilo que a investigação revelaria ao final. E
suas categorias não são mais categorias da experiência, como
foram para Kant e tinham sido para Peirce até aquela época;
as categorias baseadas na nova lógica dos predicados, em
contraste com as categorias da lógica de classes inicial, são
categorias da realidade externa (Michael, 1988: 334).
Portanto, de acordo com essa vertente, a lógica do raciocínio humano não é uma elaboração exclusiva dessa espécie, mas, ao contrário, foi
desenvolvida, inclusive biologicamente, articulada a processos naturais
com características universais, um pensamento derivado de uma hipótese
intitulada sinequismo. Tal concepção, decorrente do realismo moderado
adotado por Peirce, com base em Aristóteles e Duns Scot, pressupõe, assim,
a constante referência a um padrão lógico sob o qual opera a razão, inclusive
a nossa, derivado, por sua vez, do que seria uma espécie de “pensamento
do universo”. Para esse realismo, o saber deve decorrer de “um processo
por meio do qual o existente vem a incorporar continuamente uma certa
classe de gerais que, ao longo de seu desenvolvimento, vêm se mostrar
razoáveis” (Peirce, n/d: MS 329, 20). Diz Peirce:
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A criação do universo, que não aconteceu durante certa semana
agitada, no ano 4004 A.C., e sim continua hoje e nunca estará
completada, é o próprio desenvolvimento da Razão. (...) A única
coisa cuja admirabilidade não é devida a uma razão ulterior é
a Razão, ela mesma, compreendida em toda a sua inteireza, na
medida em que possamos compreendê-la. Sob tal concepção,
o ideal de conduta será executar nossa pequena função na
operação da criação, dando uma mão, visando tornar o mundo
mais razoável sempre que, como a gíria diz, fazer isto é “up to
us” (responsabilidade nossa). Na lógica, será observado que
conhecimento é razoabilidade, e o ideal de raciocínio será seguir
tais métodos, como o conhecimento mais desenvolvido, o mais
rapidamente... (Peirce, 1931-58: 1.615)
Em outra passagem, ao definir suas categorias, Peirce afirmou: “Elas
sugerem um modo de pensar; e a possibilidade da ciência depende do fato
de que o pensamento humano necessariamente compartilha de qualquer
característica difundida por todo o universo, e que suas modalidades naturais
têm alguma tendência de ser os modos de ação do universo” (Peirce, 1931-58:
1.351). Assim, os processos de obtenção do conhecimento seguiriam uma
lógica que não é apenas humana, e, sim, da natureza, e, portanto, seriam
autônomos frente à nossa cognição. Tal visão diverge de vertentes muito
disseminadas no campo, segundo as quais o fenômeno comunicacional é
algo estritamente limitado ao seu respectivo contexto cultural.
O saber em comunicação como etapa rumo à razoabilidade
Ainda a partir do diagrama acima, compreendemos que o saber está associado aos esforços daquele setor que Peirce chamou de idioscopia, ou das
ciências especiais, o qual, dentro da esfera das ciências da descoberta, visa à
resolução de questões teóricas a partir de experimentos físicos ou mentais. A
definição mais precisa do que seriam os processos comunicacionais é certamente algo desse domínio, na medida em que tal elaboração teórica depende
de investigações com esse caráter empírico. Do mesmo modo, esse percurso
está relacionado também à instância das ciências da revisão, que vincula as
descobertas derivadas das pesquisas às atividades práticas, visando organizar
seus resultados para aprimoramentos da filosofia da ciência, algo que certamente pode ser aplicado às concepções epistemológicas da comunicação.
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A partir desses pressupostos, dos quais as vertentes de estudos comunicacionais que enfatizam as matrizes especificamente culturais devem
discordar, chegamos à descrição pragmaticista das etapas que caracterizam a obtenção de conhecimento, ou seja, dos processos sígnicos, ou
comunicacionais, bem sucedidos, entre eles a própria ideia do que seja
o fenômeno comunicacional. Nessa esfera, acreditamos que as concordâncias poderão ser bem mais expressivas.
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De acordo com essa perspectiva, a adoção de um padrão lógico determinado pela razoabilidade nos vem possibilitando ampliar o conhecimento a
respeito do ambiente em que vivemos, nas mais diversas áreas pesquisadas
pela ciência, incluindo, aí, os processos de comunicação, uma vez que somos constrangidos a agir dessa forma para obter resultados, pois não é esta
espécie que determina as regularidades por meio das quais os fenômenos
se dão. Naturalmente, existem ocorrências nas esferas das culturas que
podem fugir a esses padrões, contrariando a razoabilidade, porém, a longo
prazo, procedimentos com essas características tendem a ser superados pela
acachapante superioridade das regularidades universais.
Portanto, a partir dessa ideia de razoabilidade, tomada como “o pensamento
do universo”, o pragmaticismo é apresentado como um método dela derivado, o qual intenta descrever as etapas por meio das quais a mente adquire
conhecimento de algo. Como tal obtenção do conhecimento tem de se dar,
necessariamente, por meio de processos envolvendo algum tipo de percepção, e, daí, de interpretação sígnica, mesmo que extremamente frágil ou até
inconsciente, sua descrição serve também como critério para o que seria um
processo de comunicação bem sucedido, de caráter genuíno.
A crise epistemológica da comunicação e a saída pelo pragmaticismo
É comum em nosso campo a ideia de que a comunicação humana é um fenômeno eminentemente cultural, às vezes tomado até mesmo como regulado
pelo código das línguas ocidentais e, no caso de Derrida, predominantemente
do verbal escrito, um pensamento reforçado pelas vertentes conceptualistas e
estruturalistas da linguagem. Contudo, sob o prisma da razoabilidade, e, daí,
do pragmaticismo, as normas das línguas indo-europeias, que constituem
as bases dessas vertentes, devem ser vistas apenas como uma apropriação de
caráter ínfimo das regularidades lógicas que ocorrem no universo.
Acreditamos que a rigidez da compreensão estrutural dos processos de
comunicação e sua dificuldade de articular a ideia de acaso e indeterminação
aos seus conceitos linguísticos de substância, diferença e arbitrariedade vem
colocando em xeque a verdadeira hegemonia obtida nas décadas de 60, 70 e
80 do século passado pelas teorias derivadas do verbal no âmbito das ciências
humanas e sociais, incluindo aí o pós-estruturalismo. Isto porque tal postura
tem se mostrado incapaz de explicar o impacto dos fenômenos decorrentes
da tecnologia digital, que vem ocorrendo tanto na produção comunicacional
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quanto em suas articulações conceituais na esfera teórica, conduzindo a um
excesso de trabalhos meramente descritivos, com fortes conotações políticas,
em detrimento das descobertas e da apresentação de soluções comunicacionais para o cotidiano daqueles envolvidos nesses processos.
É interessante observar que muitas vertentes do campo comunicacional,
por outro lado, têm conduzido suas pesquisas de acordo com as etapas propostas pelo pragmaticismo, mesmo que discordem de seus pressupostos,
geralmente sem a explicitação de estarem operando dessa forma. Assim,
nossa ideia é propor o tratamento dos fluxos comunicacionais como uma
subclasse dos processos de obtenção do conhecimento em geral, na medida
em que compartilham os mesmos objetivos, ou seja, os de aprimorar uma
compreensão anterior de algum objeto, seja tal comunicação uma simples
conversação ou trocas informacionais sobre temas de alta complexidade.
De acordo com o pragmaticismo, portanto, a pesquisa em comunicação
pode ser conduzida por meio dos procedimentos habituais das investigações
científicas, o que implica em considerar os estágios da abdução, dedução e
indução na busca de um maior esclarecimento sobre o respectivo objeto, tal
como procedemos nas pesquisas que realizamos nos últimos anos, conforme
já citamos. Tal compreensão deriva da classificação de argumentos da lógica
crítica (ver Diagrama 2), como área do conhecimento voltada para o estudo
dos modos de inferência e para a caracterização das diferenças entre os raciocínios corretos e os incorretos. Esse estudo dos modos de inferência permite
compreender melhor o significado de cada uma das etapas da descoberta.
A aplicação do pragmaticismo e sua abertura para o empírico
Nossas pesquisas nos conduziram, então, à ideia de que as tecnologias
digitais vêm estimulando os processos de comunicação no sentido de proporcionar às mentes envolvidas, ainda que em graus diferentes, sentimentos
de compartilhamento, inserções mais efetivas em seus contextos sociais e daí,
crescente autoconsciência de estarem operando por meio de signos complexos.
Esses resultados confirmaram num grau significativo nossa hipótese
geral de que os processos de comunicação possibilitados pelas redes digitais, quando produzidos de forma multicódigos, estimulam a geração de
pensamentos mutantes, permitindo maior efetividade comunicacional.
A perspectiva pragmaticista adotada e os resultados obtidos propiciam,
portanto, a apropriação do atual contexto crítico que afeta o campo da
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comunicação em aspectos bastante produtivos, na medida em que incorporam a mudança e a articulam à própria concepção dessa área do saber.
A busca de processos comunicacionais de maior eficiência, que conduzam
a um estado de transformação permanente dos hábitos de pensamento como
critério de excelência também é algo derivado da ideia de razoabilidade do
pragmaticismo, em especial de sua esfera da ética. Definida não como algo
ligado à moral e sim como estudo de quais fins de nossas ações estamos deliberadamente preparados a adotar (Peirce, 1903: EP 2.200), a ética nos fornece
a direção mais adequada para harmonizarmos nossos pensamentos com seus
respectivos contextos existenciais em vista de um ideal admirável. Estes são
concebidos pelo pragmaticismo como em permanente mudança, algo que
aparece agora de forma bastante clara no plano da comunicação.
Além disso, a concepção do campo apoiada nessa ideia de ética dialoga
diretamente com o âmbito empírico da comunicação, na medida em que se
insere na esfera das ciências normativas (ver Diagrama 2), ou seja, aquelas
áreas do saber que buscam esclarecer as bases estéticas, éticas e lógicas das
normas que motivam nossas condutas em vista de um ideal, de um fim, frente
ao dualismo de nosso encontro com a experiência. Tais fundamentos, contudo, devem estar balizados pela razoabilidade do universo e não por qualquer
motivação de caráter meramente humano. Nas palavras de Peirce:
Uma sutil e quase incontornável estreiteza na concepção de
Ciência Normativa atravessa quase toda a filosofia moderna
ao relacioná-la exclusivamente à mente humana. O belo é
concebido como relativo ao gosto humano, o certo e o errado
são ligados somente à conduta humana, a lógica lida com o
raciocínio humano. Na verdade, essas ciências certamente são
de fato ciências da mente. Porém, a filosofia moderna nunca foi
suficientemente capaz de se livrar da ideia Cartesiana de mente,
como algo que “reside” – e esse é termo – na glândula pineal.
Todos riem disso hoje em dia, e ainda assim todos continuam
a pensar na mente dessa mesma maneira em geral, como uma
coisa dentro dessa ou daquela pessoa, pertencendo a ela e correlata ao mundo real. Um programa inteiro de conferências seria
necessário para mostrar esse erro. Eu posso apenas sugerir que
se alguém refletir sobre isso, sem estar dominado por ideias pré-concebidas, logo começará a perceber que é uma visão muito
estreita de mente (Peirce, 1931-58: 5.128).
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Portanto, as bases fornecidas por essas ciências para as definições conceituais
relativas ao campo da comunicação nos dão elementos para que abordemos esse
momento crítico tomando as mudanças como constituintes naturais inerentes
a esses processos, assim como acontece com todos os demais fenômenos.
A ênfase no empírico inclui a ideia de que deve haver sempre uma
profunda articulação da teoria com a prática em todo esse movimento em
busca da definição do campo, não sendo possível considerar concepções
rígidas, de caráter disciplinar. Implica, ainda, em tomar a comunicação
como algo muito mais complexo do que uma mera ciência prática, com
motivações particulares como o jornalismo, a publicidade, etc.
A hipótese pragmaticista da comunicação como mudança
Assim, de acordo com as etapas preconizadas pelo pragmaticismo, e a partir
dos resultados obtidos com as pesquisas realizadas, chegamos a uma segunda
hipótese, de fundo epistemológico. Ela afirma que a ciência da comunicação
tem como objeto os incessantes processos de criação, produção e interpretação
de referências a contextos possíveis, existenciais ou ideacionais, ou de articulação entre eles, que envolvem sistemas vivos, inteligências artificiais ou seus
híbridos, o que sempre conduz os agentes a algum grau de mudança, afetando
seus modos de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações.
De acordo com essa definição, os processos de criação, produção e interpretação que caracterizam os sistemas vivos, inteligências artificiais e seus
híbridos, em seu contínuo esforço de relacionar referências do ambiente
a contextos mais complexos, constituem, portanto, o objeto da ciência da
comunicação. De fato, não é possível o estabelecimento de qualquer tipo de
processo de comunicação sem que ocorram percepções de signos de algum
tipo (sub-hipótese 1) e, daí, é inevitável que os agentes envolvidos no processo
os relacionem a algum contexto, seja ele meramente possível, fisicamente
existente, ideacional, ou uma combinação dessas esferas (sub-hipótese 2).
Além disso, compreendemos que tal processo perceptivo, ao final, sempre conduz as mentes envolvidas a algum grau de mudança. Isto porque,
na medida em que a relação apresentada acima entre um signo percebido e
um determinado contexto é estabelecida, não há como evitar algum tipo de
efeito nas mentes envolvidas, seja na esfera dos sentimentos, da ação, do pensamento, ou de suas combinações (sub-hipótese 3). A única alternativa seria
esta eventual mente interpretadora esquivar-se, caso isso seja possível, antes
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da ocorrência dessas percepções. Acreditamos que, apesar de ser originária
do método pragmaticista, tal definição do objeto da ciência da comunicação
atende a uma ampla diversidade de abordagens teóricas, contribuindo para
a redução de tensões na área, ao revelar proximidades ainda não percebidas.
O lançamento dessa hipótese sobre a constituição do campo decorre
da adoção do primeiro dos três tipos de inferência adotados em qualquer
processo de descoberta, de acordo com o pragmaticismo, ou seja, a abdução. Esse tipo de raciocínio serve ao propósito de lançar uma possível
explicação frente a uma questão surpreendente ou obscura.
Nesse caso, a abdução é derivada dos resultados das pesquisas que
apresentamos anteriormente, ou seja, nossos primeiros processos abdutivos foram submetidos a testes e geraram essas novas hipóteses. Assim,
os resultados obtidos após a adoção das primeiras hipóteses, por meio de
processos indutivos de caráter qualitativo, conduziram a novas predições de
tipo inteiramente diferente e, caso sejam igualmente verificadas, reforçam a
confirmação obtida a partir das abduções iniciais (Peirce, 1931-58: 7.117).
Portanto, embora essa hipótese sobre o campo tenha uma anterioridade lógica
em relação às primeiras que lançamos, relativas à comunicação multicódigos, para nós surgiu como consequência do sucesso desse método quando
aplicado à essas pesquisas que realizamos durante muitos anos.
A hipótese e suas bases na analítica, no interpretante último e na razão
Outra base dessa proposta vem da gramática especulativa, ou analítica,
que compõe a teoria sígnica de Peirce (ver Diagrama 2), na medida em que o
processo comunicacional é tomado, em primeiro lugar, como algo que ocorre
por meio de signos. Em decorrência disso, é descrito por meio das relações
que apresenta considerando-se várias tríades, entre elas as que ocorrem entre
signos, objetos e interpretantes. Nesse caso, os signos são as “referências”
produzidas, os objetos os “contextos possíveis, existenciais ou ideacionais, ou
de articulação entre eles” e os interpretantes os resultados dos “incessantes
processos de criação, produção e interpretação” realizados “pelos sistemas
vivos, inteligências artificiais ou seus híbridos”.
Esses resultados geram nas mentes, como efeitos pragmáticos do processo,
“algum grau de mudança, afetando seus modos de perceber, de agir, ou de
raciocinar, ou suas combinações”, cumprindo, portanto, sua função de interpretante. Este, como se sabe, é o signo desenvolvido na mente do intérprete,
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mesmo que ela seja artificial ou híbrida, a partir da percepção da referência
produzida e sua inevitável relação a um possível contexto.
Existem diversas gradações do conceito de interpretante, desde o
imediato, da esfera da mera possibilidade de ocorrência, passando pelo
dinâmico e seus subtipos, até o “final”, de âmbito extremamente geral,
abarcando também processos futuros. Entre os tipos do dinâmico, encontra-se o lógico último que avança, em relação aos demais, de um caráter
de interpretabilidade ligada à esfera dos sentimentos ou da ação, para se
constituir numa operação cognitiva diferente, de mudança de hábito, com
caráter coletivo e um horizonte de alta generalidade.
Como tem esse caráter geral, atinge o máximo de normatividade em termos
semióticos e constitui, assim, a referência para a mudança à qual nos referimos na definição que propusemos aqui. Ou seja, a excelência dos processos
comunicacionais está relacionada à capacidade das mentes interpretadoras
chegarem a tal operação cognitiva, o que inclui a submissão a uma permanente heterocrítica por parte de outras mentes e, ainda, ao máximo possível
de autoconsciência de seus próprios processos inferenciais.
Peirce descreve da seguinte maneira esse interpretante, ao tratar dos significados dos conceitos intelectuais como um “efeito”:
Antes de determinar a natureza desse efeito será conveniente
adotar uma designação para ele, e vou chamá-lo de interpretante
lógico, sem determinar ainda se este termo deve se estender a
alguma coisa além do significado de um conceito geral – embora
certamente esteja relacionado a isso – ou não. Devemos dizer
que esse efeito pode ser um pensamento, ou seja, um sinal
mental? Sem dúvida, pode ser, porém, se este signo é do tipo
intelectual – como deveria ser – ele próprio deve ter um interpretante lógico, de modo que ele não pode ser o interpretante
lógico último do conceito. Pode-se provar que o único efeito
mental que pode ser assim produzido e que não é um signo,
mas é de aplicação geral, é uma mudança de hábito; significando
por mudança de hábito a modificação das tendências de uma
pessoa para a ação, resultante de experiências anteriores ou de
esforços anteriores de sua vontade ou atos, ou de um complexo
de ambas as causas (Peirce, 1931-58: 5.476).
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A concepção de que o interpretante lógico último é a mudança de hábitos
decorre da hipótese pragmaticista de que o pensamento é analógico às regularidades naturais que atuam sobre seus agentes, por meio da razão. Naturalmente,
nem todos os processos comunicacionais atingem esse estágio, porém, segundo
nossa definição, ele funciona como um critério para determinar sua excelência.
As bases estéticas, fenomenológicas e matemáticas da mudança
Esse raciocínio acima nos conduz a outra das bases dessa definição que é
a estética (ver Diagrama 2). Primeira das ciências normativas, fundamento da
ética, ela permite distinguir o que é admirável em si mesmo, algo que constitui,
segundo Peirce, o principal fundamento para o raciocínio atingir um estado de
harmonia com os processos naturais. Em consequência, se há essa harmonia, é
possível adotarmos essa lógica que nos conduz à razão e haver, assim, mudança de hábitos. Portanto, é nesse processo que o pensamento aproxima-se do
“admirável”, do kalós, do Summum Bonum, que é a adoção espontânea de uma
ideia pela mente coletiva como a mais adequada às circunstâncias, sem nenhuma
razão especial a não ser a noção instintiva dessa adequação. Diz Peirce:
Mas, para apresentar a questão da estética em sua pureza, devemos eliminar dela não apenas todas as considerações acerca de
esforço, mas todas as considerações sobre ação e reação, incluindo toda consideração acerca da nossa recepção do prazer, tudo,
em síntese, que pertença à oposição entre ego e não–ego. Não
temos em nossa língua uma palavra com a generalidade requisitada. O grego kalós, o francês beau apenas se aproximam, sem
alcançá-la exatamente. “Fine” seria uma pobre substituta. Belo
é mau, porque um modo de ser kalós depende essencialmente
da qualidade ser não-bela. Talvez, contudo, a frase “o belo do
não belo” não fosse ofensivo. Mas “beleza” é muito superficial
ainda. A questão da estética é, usando o termo Kalós (do grego,
“admirável”): Qual é aquela qualidade que, na sua presença
imediata, é Kalós? A ética deve depender desta questão, assim
como a lógica depende da ética. A estética, portanto, embora eu
a tenha negligenciado terrivelmente, parece ser, possivelmente,
a primeira e indispensável propedêutica para a lógica, e a lógica
da estética parece ser uma parte distinta da ciência lógica que não
deve ser omitida (Peirce, 1931-58: 2.199).
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Assim, na medida em que obtemos significações cada vez mais precisas, ou seja, interpretamos as relações de referências a contextos de forma
crescentemente adequada, mudamos nossos hábitos em harmonia com
uma dinâmica que é “admirável” por ser própria à “razão da natureza”.
É interessante assinalar, de passagem, que, no atual contexto tecnológico,
as inteligências artificiais criadas por humanos ainda não estão aptas a tais
mudanças. Daí, quanto mais as mentes estiverem envolvidas em processos
comunicacionais com tal razoabilidade, mais próximas estarão da excelência
em significação, as conduzindo à proposição lançada acima de que o objeto
da ciência da comunicação está relacionado às mudanças geradas pela criação,
produção e interpretação de referências a contextos existenciais.
Tanto a abdução quanto as percepções sígnicas e as relações estéticas
são processos fundamentalmente ligados à fenomenologia, tal como a concebeu Peirce (ver diagrama 2). Nomeando-a, mais tarde, phaneroscopia,
para diferenciá-la de outras perspectivas filosóficas, ele considerava ser
seu objetivo descrever todos os aspectos comuns a tudo aquilo que é ou
poderia ser experienciado, ou se tornar objeto de estudo. É nessa área do
conhecimento onde se situam as já conhecidas categorias peircianas, das
quais a primeiridade é o lugar de predominância dos fenômenos indeterminados, ligados à estética, e geradores das possibilidades de mudança.
Portanto, sob essa perspectiva, os processos comunicacionais encontram
aí as raízes de toda e qualquer transformação que sobre eles incide, seja
na percepção, no embate com o existencial ou no pensamento.
Essa esfera do raciocínio relaciona-se, ainda, diretamente, com a área do
saber mais básica das ciências da descoberta, a matemática (ver Diagrama 1),
encarregada de colocar hipóteses e tirar suas consequências como conclusões
necessárias (Peirce, 1931-58: 1.240). Embora seu campo de ação seja marcadamente abstrato, provê o pensamento com o rigor necessário para se pensar
a indeterminação e, portanto, o novo e a mudança. É interessante notar, ainda,
que as próprias categorias peircianas decorrem de uma visão pitagórica, portanto
matemática, do mundo, e exibem propriedades geométricas compondo fractais.
Possíveis consequências da proposta sobre o campo e seus testes empíricos
A etapa seguinte prescrita pelo método pragmaticista para que nossa
proposta de definição para o campo da comunicação esteja articulada com a
razoabilidade, requer que suas possíveis consequências práticas tenham alguma
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confirmação empírica. Para isso é necessário que haja um novo deslocamento
desses procedimentos, de forma que se efetue a passagem da dominância da
terceiridade, ou seja, da generalidade da inferência hipotética que consiste
na proposta, para particularidades existenciais testáveis, da esfera da secundidade, por meio da dedução. Essa inferência constitui um dos três tipos de
argumentos cuja validade e grau de força são avaliados pela lógica crítica (ver
Diagrama 2). Agora, a utilizaremos outra vez para chegarmos a essas possíveis
consequências práticas da nova proposta.
Num exercício mental com a proposta tomada como diagrama representativo do objeto em questão, ou seja, o processo comunicacional, e sua
divisão em sub-hipóteses (ver item 3), é possível deduzir três possíveis
efeitos práticos, com base nas categorias de Peirce: 1. os processos de
comunicação são desencadeados pela percepção de algo que funciona
como signo para uma mente interpretadora; 2. a percepção de algo que
funciona como signo conduz a mente interpretadora a relacioná-lo com
algum contexto possível, existencial ou ideacional; e 3. a relação sígnica
com algum contexto possível, existencial ou ideacional por parte da
mente interpretadora tem como consequência mudanças em seus modos
de perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações.
A partir dos dados recolhidos em nossas diversas pesquisas, já citadas,
sobre processos comunicacionais envolvendo ciberativistas, usuários de
jogos eletrônicos e de redes sociais, e de pesquisadores ligados ao Grupo
de Trabalho Epistemologia da Comunicação da Associação dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação – Compós, nos foi possível encontrar
confirmações em todos esses efeitos derivados da hipótese lançada.
O efeito de algo funcionando como signo
Numa verificação sobre o primeiro, é fácil constatar que esses processos
de comunicação foram desencadeados pela percepção de algo que funcionou
como signo para mentes interpretadoras. Nas pesquisas sobre ciberativismo,
as referências sígnicas para os processos comunicacionais foram os elementos
visuais e verbais encontrados nos sites. Situam-se, aí, vários signos por nós
investigados, entre eles aqueles criados pelos organizadores de uma parada
intitulada EuroMayday, incluindo sua “parada virtual” (Pimenta e Soares,
2004); os contidos no site do movimento dos zapatistas mexicanos, incluindo
o endereço Europa Zapatista (Pimenta e Rivello, 2012), e, ainda, os do movimento Wikileaks, no caso, de sua versão brasileira (Pimenta e Rodrigues, 2012).
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Em trabalhos voltados para o estudo das mentes interpretadoras de usuários de
jogos e redes sociais, as referências sígnicas se encontravam nos chamados metaversos, ou seja, nas simulações de ambientes 3D (Pimenta e Umbelino, 2012); nos
sites de relacionamento, ou seja, o Orkut, o Kaneva e o Second Life (Pimenta e Varges,
2010); e, ainda, no jogo eletrônico World of Warcraft (Prado Silva, 2010). Finalmente,
nas pesquisas envolvendo os participantes do grupo de trabalho Epistemologia da
Comunicação da Compós, as referências sígnicas foram os dados obtidos por eles
em suas investigações, depois traduzidos nos signos verbais constituintes dos artigos
que utilizamos (Pimenta, 2007B; 2009; 2010A; Pimenta e Silveira Jr, 2009).
O efeito da relação do signo a um contexto
Em relação ao segundo efeito previsto a partir da hipótese que aqui apresentamos, de que a percepção de algo que funciona como signo conduz a
mente interpretadora a relacioná-lo a algum contexto possível, existencial ou
ideacional, também é fácil constatar essas ocorrências nas pesquisas realizadas.
Nos casos do ciberativismo, os signos da parada virtual EuroMayday remetiam
as mentes interpretadoras tanto para as manifestações existenciais do dia primeiro de maio que ocorreram fisicamente em várias cidades europeias, quanto
para o ambiente simbólico de mobilização compartilhado pelos usuários do
site (Pimenta e Soares, 2004); os signos dos sites dos zapatistas mexicanos
estavam relacionados, igualmente, tanto àquele movimento social quanto ao
espaço que ocupavam na internet (Pimenta e Rivello, 2012); enquanto os do
movimento Wikileaks se ligavam especialmente à sua versão virtual, embora
também dissessem respeito a eventos com caráter existencial (Pimenta e Rodrigues, 2012). Portanto, essas relações são claras e foram fundamentais para
a ocorrência de seus respectivos processos comunicacionais.
O efeito das relações sígnicas promoverem mudanças
Também o terceiro possível efeito dessa hipótese, de que a relação sígnica com algum contexto possível, existencial ou ideacional por parte da
mente interpretadora tem como consequência mudanças em seus modos de
perceber, de agir, ou de raciocinar, ou suas combinações, é algo igualmente
bastante claro a partir das pesquisas realizadas. Das nove amostras obtidas,
apenas dois dos processos comunicacionais não foram caracterizados como
notoriamente geradores de mudanças por meio das análises realizadas, ou seja,
os sites zapatistas e aqueles relatados por um grupo dos pesquisadores da área
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de epistemologia (Pimenta e Rivello, 2012 e Pimenta, 2007B; 2009; 2010A).
No primeiro caso, embora o resultado seja algo surpreendente, por ser um
grupo que se tornou mundialmente conhecido exatamente como exemplo
de ciberativismo, a plataforma digital se mostrou bastante precária em relação aos efeitos pesquisados. Isso não quer dizer que esses seus processos de
comunicação não produzam mudanças, porém, nesse caso, elas não se mostraram tão evidentes. O mesmo aconteceu em uma das amostras referentes a
pesquisadores da esfera da epistemologia, na qual não verificamos a percepção
de transformações marcantes decorrentes dos processos comunicacionais multicódigos. Contudo, da mesma forma que no caso dos zapatistas, o resultado
não implica, necessariamente, na conclusão de que tais processos não estão
relacionados a mudanças nas mentes interpretadoras.
Assim, somente nesses dois casos os efeitos previstos não se confirmaram de forma clara. Em todas as demais situações pudemos constatar
alterações tanto nas percepções, quanto nas ações e, ainda, nos pensamentos
relativos aos processos comunicacionais observados. Assim, consideramos
bastante provável nossa hipótese de que possamos caracterizar a área a
partir da concepção deste campo do saber conforme a proposta acima.
Diálogos da perspectiva pragmaticista sobre o processo comunicacional
De acordo com a classificação das ciências proposta por Peirce, a
comunicação encontra-se, portanto, dentro do âmbito da idioscopia ou
ciências especiais, as quais se apoiam na filosofia, e, daí, em uma fenomenologia, e em sua lógica, ou semiótica (ver diagrama 2). Além disso, em
sua constituição como campo do saber, deriva da metodêutica, que estuda
os métodos a ser utilizados na investigação, na exposição e na aplicação das
descobertas, de onde se origina o pragmaticismo (Peirce, 1907: MS 320,
024). Daí, podemos estabelecer, então, diversos diálogos teóricos a partir
da proposta que lançamos de caracterização do campo da comunicação.
O efeito mutante dos suportes multicódigos e a cibercultura
Uma das esferas que pode ter seus processos compreendidos de forma
mais complexa se adotarmos tais perspectivas é a área que se convencionou
chamar de tecnocultura, cultura digital, ou cibercultura. O fator originário
dessa vertente de estudos está relacionado, essencialmente, ao plano do su-
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porte, em vista da substituição de componentes analógicos por tecnologias
digitais nos mais diversos equipamentos de comunicação. Daí, se compreende
que esse desenvolvimento vem alterando os modos como se dão os processos
de trocas, uma vez que as tecnologias digitais permitem a criação, transmissão
e recepção de signos híbridos articuladores dos mais diversos códigos, ampliando as relações entre os referentes e seus contextos, ou seja, entre signos
e objetos, propiciando processos interpretativos de crescente complexidade.
Diante desse quadro, a definição dos processos comunicacionais com
base no pragmaticismo pode ser útil na medida em que enfatiza os processos de mudança, e, daí, avança na explicação dos efeitos gerados no
contexto das tecnologias digitais. Para tal, o conceito de interpretante, por
exemplo, derivado da semiótica, em suas diversas acepções, articulado
com os outros domínios da estética e da ética, ajuda a compreender a base
lógica dessas mudanças de seus aspectos comunicacionais, avançando em
relação às visadas de fundo descritivo.
Uma dessas contribuições se refere a uma possível mudança não só de hábitos de ação, mas também de pensamento, derivada de um aprimoramento dos
processos de interpretação pela utilização dos suportes digitais multicódigos.
Tal desenvolvimento viria a partir de hipótese, com a qual trabalhamos, de existência de um crescente compartilhamento comunicacional entre os usuários
por causa das mediações de caráter sinestésico, que recuperam as qualidades
dos fenômenos face a face, em vista da atenuação da intermediação sígnica.
Em artigo apresentado no congresso da Compós em 2006, descrevemos
as condições para a ocorrência de tais mudanças:
Cultivar hábitos críticos coletivos de autocontrole reflexivo,
submetidos à heterocrítica, tendendo para a ação em conjunto
em busca de um ideal estético sempre em processo é, portanto,
o caminho que o Pragmatismo de Peirce indica para o ciberativismo. Com um alerta: sem a consciência dos princípios guia,
as possibilidades da imersão hipermídia e da telepresença não
estarão articuladas aos genuínos interpretantes lógicos últimos
e, assim, deixarão de estar aptas a gerar novos hábitos mentais,
de ação e de sentimento sempre que a realidade externa assim
o exigir (Pimenta, 2007A: 185).
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Caso essas condições estejam sendo cumpridas e tais mudanças estejam,
de fato, acontecendo, estaríamos caminhando no sentido da razoabilidade.
Sobre tal base de compreensão, essa vertente pode, então, explorar outros
aspectos dos fenômenos e situá-los num quadro menos relacionado a uma
cultura em particular, o que, de resto, é ainda mais compatível com as
características abrangentes da tecnocultura.
A superação do construtivismo, a ideia coletiva e as vertentes sociológicas
Outra tendência de estudos da área que pode se beneficiar da definição de
objeto da ciência da comunicação apresentada é a do campo visto sob uma
perspectiva social, na medida em que se compreenda que mesmo as ocorrências de esferas mais estritamente culturais, com ênfase em trocas simbólicas,
são organizadas semioticamente. De fato, os processos sociais sempre se
desenvolvem por meio de trocas sígnicas, nas quais múltiplas relações entre
referências e contextos vão sendo estabelecidas e, daí, interpretadas.
Compreender esse fundamento dos processos perceptivos, de ação, e
do pensamento na esfera social, passa a ser, então, um instrumento a mais.
Acreditamos, assim, que a ênfase no contexto externo ao pensamento, e à
consideração da existencialidade dos objetos das representações decorrente
da imersão e imediaticidade permitidas, constitui uma das contribuições
mais relevantes do pragmaticismo e da lógica semiótica às ciências sociais
no atual quadro de estudos.
A propósito desse tema, e também com base no realismo, o pesquisador
Fernando Andacht criticou a “moda” teórica da vertente intitulada construção
social da realidade. Em suas palavras:
Considero o uso maciço e difuso da CSR na literatura comunicacional um movimento centrífugo de diluição da identidade
causado pela adoção irreflexiva, automática do modelo construcionista. O desfecho deste uso prático e reducionista dessa
teoria é a transformação de uma atividade de natureza científica
em outra política ou prática: embora justa ou admirável, a tarefa
de mudar o mundo através da elevação da consciência social não
deve ser confundida com a procura autocrítica e sistemática de
conhecimento. Estamos perante uma ação baseada em certezas,
em convicções pessoais. O maior ou menor grau de respeitabili-
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dade desta atitude não é algo pertinente para a presente discussão
epistemológica do campo comunicacional (Andacht, 2006: 2).
Em trabalho recente, Felinto também denunciou o que julga ser uma atual
desconsideração da materialidade nas análises dos processos de comunicação,
embora sua crítica não venha de uma vertente de fundo semiótico. Diz o autor:
Como disciplina fundamentalmente preocupada com a investigação de processos de significação entre emissores e receptores,
a comunicação se caracterizou como uma investigação de ordem hermenêutica. E, notadamente, a história das teorias e dos
métodos de pesquisa em comunicação apresenta um viés quase
que exclusivamente hermenêutico. De análise de conteúdo aos
estudos de recepção, trata-se essencialmente de interpretar sentidos. Nesse circuito, o componente propriamente tecnológico
e material dos meios foi quase que inteiramente esquecido. O
mais importante eram os emissores e receptores humanos que
se encontravam nas pontas da cadeia comunicacional, na qual
os meios apareciam como pouco mais que instrumentos de
transmissão de informação (Felinto, 2011: 6).
Uma noção mais complexa e atual das trocas semióticas que estão na base dos
processos comunicacionais, incluindo as articulações permitidas pela teoria dos
interpretantes, pode ser útil para superar dificuldades que essa vertente geralmente
encontra, em seu apego a fundamentações teóricas ainda muito associadas ao
estruturalismo, com seu referencial linguístico e seu modelo verbalista.
Nesse caso, a contribuição do pragmaticismo pode ser encontrada, em
especial, em sua ênfase no caráter coletivo dos processos de significação, na
medida em que seu desenvolvimento é visto em harmonia com a lógica ou
“razão” do universo. Segundo Peirce, uma visão científica do mundo é, necessariamente, fruto do pensamento geral, e, portanto, algo de caráter social. Em
vista do fato dessa lógica se apoiar na excelência ética que constitui a adesão à
meta do Summum Bonum, do admirável, isso também se aplica ao terreno das
ações, no caso, a uma ênfase naqueles comportamentos de caráter coletivo.
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A busca da eficiência comunicacional e a crise do jornalismo
Uma terceira esfera que tem muito a ganhar a partir de uma compreensão
dos fenômenos de seu campo de atuação consciente de sua base semiótica
é o jornalismo, em vista do fato de ter como matéria prima, por excelência,
processos sígnicos. Portanto, conhecê-los da melhor forma possível em suas
relações derivadas de suas instâncias representativas, de referência e interpretativas é algo bastante recomendável. Na medida em que essa atividade está
sempre em busca de signos que possam representar seus objetos da forma
mais rica possível, tal objetivo está intrinsecamente relacionado à procura de
razoabilidade preconizada pela Máxima Pragmática de Peirce, concebida como
método que visa, exatamente, aprimorar a obtenção de significados.
Outro campo no qual há uma clara articulação entre o jornalismo e sua base semiótica é o das mudanças geradas pelas tecnologias digitais. De fato, todas as rotinas,
desde a confecção de pautas até a edição final têm passado por uma reorganização
radical, alterando, ainda, todas as suas demais esferas, incluindo aspectos sociais e
econômicos. Nesse contexto, a semiótica e o pragmaticismo podem contribuir para
uma melhor compreensão desses processos, tanto no âmbito do signo, ele mesmo,
em vista das alterações nos suportes; do signo em relação a seu objeto, considerando-se todas as transformações nos processos de obtenção de informações, e, ainda, no
plano do signo em relação a seus interpretantes, observando-se o grande impacto
que as tecnologias digitais têm causado no domínio social e do pensamento.
Na medida em que o jornalismo se desloca de sua configuração da sociedade
de massas, caracterizada pela concentração de emissores, para a atual estrutura
aberta “todos para todos” das redes informatizadas, apresenta-se uma ambiência
propícia para intervenções comunicacionais com características coletivas, conforme destacamos acima, e, portanto, mais adequada à lógica da razoabilidade.
A lógica dos processos de comunicação como epistemologia
Finalmente, acreditamos que os debates na esfera da epistemologia da
comunicação também têm a ganhar com a adoção de tal definição do campo, como formado por processos de referência a contextos que conduzem a
mudanças, tendo-se em vista o caráter metalinguístico da epistemologia em
relação às suas práticas de linguagem. Esse fato a torna, de saída, portadora
de um estatuto marcadamente representacional e semiótico, e, daí, apta a um
tratamento lógico que lhe garanta segurança quanto à excelência do raciocínio
empregado. O pensamento epistemológico se desenvolve, portanto, por meio
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de análises ou referências ao contexto de produções teóricas comunicacionais,
as quais, por sua vez, são constituídas de outras representações, ou referências, a objetos em seus diversos contextos práticos, sejam eles midiáticos, de
comunicação interpessoal ou envolvendo máquinas.
Também o caráter dinâmico, de mudança, da epistemologia da comunicação, decorrente das características de seu objeto, radicalizadas pela
tecnologia digital, encontra abrigo em nossa caracterização da comunicação,
ainda mais em vista do atual momento crítico das atuais posturas. De fato,
os problemas com os quais a tarefa de construção da ciência da comunicação se debate estão a exigir mudanças de hábitos e, daí, os instrumentos
fornecidos pela semiótica podem ser de grande utilidade.
Além disso, a visada pragmaticista da definição proposta proporciona a
possibilidade de uma compreensão mais complexa das questões metodológicas. Ao operar a partir da metodêutica, o pragmaticismo se propõe como
método que articula os três tipos de raciocínio, a abdução, a indução e a
dedução, e os combina com a experiência, em direção a uma compreensão
dos fenômenos relacionada à lógica ou “razão” do universo.
O pragmaticismo permite, assim, a proposição de um método para a
própria ciência dos métodos, na medida em que parte de uma compreensão
de caráter extremamente geral associada ao conceito de razoabilidade, que
inclui a universalidade dessas operações, derivadas da generalidade extramental que opera no universo e que formata pensamentos e teorias.
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Comum 36 - jul./dez. 2014
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Comum 36 - jul./dez. 2014
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Resumo
As possibilidades abertas pelas tecnologias digitais multicódigos constituem,
hoje, a base de diversas mudanças na esfera comunicacional, tanto perceptivas,
nas atitudes concretas, como nos processos ideacionais, lógicos, das mentes interpretadoras. Se, por um lado, esse contexto mutante aparece como um desafio
para a área, por outro oferece oportunidades para um esclarecimento crescente
sobre os processos de comunicação e, ainda, de seu caráter científico frente às
demais ciências. A partir daí, acreditamos que o pragmaticismo de Peirce pode
ajudar a definir o papel desses processos no atual ambiente em transformação.
Palavras-chave
Epistemologia – Comunicação – Pragmaticismo.
Abstract
The possibilities created by digital technologies multicode are today
the basis for several changes in the sphere of communication, since the
perceptual processes, through the concrete attitudes, and also in ideational
and logical processes of the interpretant minds. If, on the one hand, this
changing context poses a challenge for the area, on the other provides
increasing opportunities for a clarification on the processes of communication and also of its scientific character in relation to other sciences. In
that sense, we believe that the Pragmaticism of Peirce can help to define
the role of these processes in the current changing environment.
Keywords
Epistemology – Communication – Pragmaticism.
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Excesso, esquizofrenia, fragmentação
e outros contos: a história social de
surgimento do videoclipe1
Ariane Holzbach
Introdução
O videoclipe é um audiovisual injustiçado. Apesar de fazer parte da cultura
do entretenimento mundial há mais de 30 anos, ainda são poucos os estudos
que se dedicam a ele. É verdade que há alguns anos, novos pesquisadores vêm
demonstrando tentativas de tentar compreender esse gênero audiovisual, mas
ainda contemplando poucas perspectivas. Alguns pesquisadores se concentram
em aspectos relacionados à linguagem do videoclipe (Machado, 2000; Soares, 2004), outros se dedicam a entender o videoclipe no contexto da música
massiva (Goodwin, 1992) e ainda outros analisam a estrutura do videoclipe
e tentam encaixar seus elementos no mundo contemporâneo (Kaplan, 1992;
Prysthon, 2004). Há, também, alguns estudos que procuram entender o
papel cultural da MTV, a maior vitrine do videoclipe durante o seu período
de solidificação (Lusvarghi, 2007; Kaplan, 2002), que problematizam a narratividade do videoclipe (Carvalho, 2006), que discutem noções de autoria no
videoclipe (Barreto, 2010) e que procuram criar uma tipologia de análise do
videoclipe, como propõem Barreto (2005) e Thiago Soares (2004). É interessante e sintomático observar, todavia, que praticamente nenhum estudo acerca
do videoclipe se detém prioritariamente em um aspecto imprescindível para
compreender o papel dele na cultura midiática contemporânea: a sua história.
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 48 a 63 - julho / dezembro 2014
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Comum 36 - jul./dez. 2014
A história “oficial” de surgimento do videoclipe, na verdade, é velha conhecida dos que se debruçam sobre ele, mas a maneira como ela é narrada
pouco oferece para verdadeiramente se compreender o papel do videoclipe
no audiovisual, na música popular massiva e na cultura do entretenimento
de maneira geral. Quando se põem a narrar a história do videoclipe, a maior
parte das pesquisas apenas descreve o surgimento e consolidação do gênero de
forma cronológica, linear e com pouca problematização provavelmente porque
em geral não se tem a historicidade como foco. Quando narram a história do
videoclipe, os autores costumam seguir um roteiro comum. Primeiramente,
apontam-se as principais tecnologias que possibilitaram o surgimento do videoclipe (cinema, scopitone, televisão, vídeo, fonógrafo, disco etc.) bem como
seu contexto histórico de surgimento. Em seguida, analisam-se a importância
do rock, surgido nos anos 1950, e do surgimento de algumas experiências
estéticas que se aproximam do videoclipe, como alguns filmes dos Beatles.
Posteriormente, analisa-se o surgimento de novas experiências com vídeo, a
exemplo da videoarte, responsável por importantes doses de experimentação
que o videoclipe vai absorver, bem como a crescente importância da indústria
fonográfica na indústria cultural. Nessa etapa, costuma-se analisar alguns vídeos, como Bohemian Rhapsody, da banda britânica Queen, lançado em 1975
e considerado o primeiro trabalho que verdadeiramente pode ser chamado
de videoclipe, para então se analisar o surgimento e consolidação da MTV
no mundo todo a partir de 1981. Com o crescimento da MTV ao redor do
mundo e surgimento de videoclipes de grandes artistas como Michael Jackson
e Madonna, considera-se que o videoclipe finalmente se torna adulto e passa,
com isso, a de fato fazer parte da cultura do entretenimento.
Apesar da importância óbvia dessas informações para compreensão do
videoclipe enquanto gênero audiovisual, diversos elementos que complexificam questões relacionadas ao surgimento e desenvolvimento do videoclipe
ficam de fora dessa narrativa. Por exemplo, Goodwin (1992), Kaplan (1992),
Machado (2000), Soares (2004) e Barreto (2005) afirmam que o videoclipe
se consolidou sendo um gênero televisivo. Mas esses mesmos estudos não se
perguntam por que o videoclipe foi para a televisão e não, por exemplo, para
o cinema, visto que em princípio a experiência imersiva possibilitada pelo
cinema, como lembra Raymond Williams (1975) é bem maior que a oferecida
pela televisão e, portanto, ofereceria uma experiência mais marcante para o
espectador, o que acarretaria, em última análise, em uma maior chance de
venda de discos. Além disso, desde que o cinema se consolidou, a música e
Comum 36 - jul./dez. 2014
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os músicos têm espaço significativo na grande tela, haja vista, por exemplo,
a importância dos musicais e do rock para a história do cinema. Barreto
chega a citar algumas experiências de vídeos musicais veiculados nas salas de
cinema, os short films, e afirma que em função da Segunda Guerra Mundial
e por uma questão orçamentária – vídeos musicais televisivos eram mais
baratos que os cinematográficos – os short films perderam espaço. Mesmo
assim, permanece a pergunta: se um formato não deu certo no cinema, por
que um de seus derivados deu certo na televisão?
Outro elemento vinculado ao videoclipe pouco problematizado diz respeito à sua narrativa singular. Como bem pontua Lilian Coelho (2003: 1),
costuma-se afirmar que o videoclipe é dotado de uma narrativa fragmentada
e “é comumente reduzido a um disparatado arranjo de imagens desconexas
cuja razão de ser reside exclusivamente no apelo sensorial”. O trabalho da
autora mostra que o videoclipe está longe de ter uma narrativa pautada na
“esquizofrenia” e na colagem gratuita de imagens, mas tem uma narrativa
constantemente presente. Outros trabalhos, como o de Carvalho (2006)
também mostram que a narrativa é uma peça fundamental para a lógica do
videoclipe. Contudo, essas pesquisas não têm como finalidade saber por que a
falta de sentido narrativo costuma ser relacionada ao videoclipe.
Assim, cria-se uma enorme lacuna nos estudos sobre o gênero que impede
que se compreenda como o videoclipe dialoga com seus dois principais alicerces: os outros audiovisuais, entre eles o cinema e principalmente a televisão, e
com a música popular massiva. Além disso, a falta de uma historicidade que
encaixe o videoclipe em um contexto cultural mais amplo isola esse audiovisual
em um campo de análise exclusivista que dificulta o seu próprio crescimento
como campo de estudo. Andrew Goodwin (1992) já havia percebido a existência de várias lacunas nos estudos sobre videoclipe quando apontou, com
propriedade, que os estudos do videoclipe raramente levam em conta um de
seus elementos mais importantes – a música – para se concentrar apenas nos
aspectos imagéticos desse audiovisual. Ao fazer essa afirmação, o autor faz uma
crítica explícita a Ann Kaplan, que em alguns estudos apontou o videoclipe
como a “síntese” do pós-modernismo por causa da linguagem imagética normalmente acelerada, excessivamente fragmentada e com narrativa não-linear
que os videoclipes veiculados pela MTV dos anos 1980 ajudaram a consolidar.
Mas a observação de Goodwin ajuda a perceber a necessidade de se conhecer
de fato as apropriações que o gênero vem fazendo há mais de 30 anos.
Este artigo, portanto, visa a preencher parte dessa lacuna e vai se concentrar
na história de surgimento do videoclipe, mas tentando ir além do que a nar50
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rativa tradicional já descreveu. Para tanto, o artigo tenta entender melhor
o contexto de surgimento do videoclipe, analisando, em um primeiro
momento, a sua consolidação como gênero televisivo e a estruturação de
uma linguagem “excessiva”. Posteriormente, serão analisadas duas das
principais características estruturais do videoclipe: a sincronização da
música com a imagem e a narrativa singular adotada por ele desde seu
cerne. O objetivo deste artigo não é ser totalizante, visto que as questões
levantadas são muito mais amplas e complexas do que o espaço permite
e mesmo do que um único pesquisador é capaz de levantar. A intenção
é apenas incentivar uma discussão necessária para que se possa entender
melhor as características e o papel do videoclipe no mundo.
Videoclipe, televisão e excesso
Apesar de ter se tornado um produto de massa apenas a partir da década
de 1980, é importante inserir o videoclipe em um contexto anterior, quando
novas formas de comportamento social começaram a surgir, preparando os
indivíduos para o aparente excesso informacional que estrutura o videoclipe
desde seu cerne. Autores como Ben Singer e Richard Sennett lembram que
a virada do século XIX para o XX foi marcada por uma mudança radical na
paisagem urbana do Ocidente que modificou, sobretudo, a experiência sensorial dos indivíduos. Singer (2001), em particular, afirma que com o surgimento de diversos aparatos tecnológicos que encurtaram distâncias (bonde),
modificaram a rotina das famílias (energia elétrica), mudaram a comunicação
interpessoal (telefone), entre outros, provocaram um “hiperestímulo”, ou
seja, um excesso de novas sensorialidades que em muitos casos chegava a ser
insuportável. O autor analisa textos e imagens da imprensa da época para mostrar como o excesso de novos estímulos criou no imaginário social a ideia de
que a cidade é um lugar caótico, amedrontador e abarrotado de informações.
Richard Sennett (1977), por sua vez, afirma que esse período histórico
trouxe novos paradigmas sociais. O crescimento populacional concentrado
principalmente nos grandes centros urbanos, o aumento da expectativa de vida
e a imigração de jovens e solteiros solitários para cidades como Paris, Londres
e Chicago incentivaram o surgimento de novas formas de comércio, novas
formas de consumo e um novo comportamento humano pautado especialmente na individualização, causando uma crise ou um declínio na importância
social do espaço público. O interior das casas, que protege os indivíduos do
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caos do mundo exterior, e a intimidade passam a ser vistos como elementos
sociais fundamentais. Nesse sentido, as tecnologias de comunicação como
cinema, rádio e televisão vão intensificar essas novas experiências e ajudar a
modificar a relação dos indivíduos com o ambiente e auxiliá-los, simultaneamente, a encarar esse novo mundo. A televisão, em particular, supre parte
dessa necessidade social de individualização e vai oferecer entretenimento e
informação no interior das residências, ou seja, longe do caos urbano.
Apesar de ter surgido apenas entre as décadas de 1920 e 1940, a televisão
tem uma história cultural que antecede o surgimento do seu suporte e, também, do seu conteúdo. Raymond Williams (1975), um dos mais importantes
pensadores da televisão broadcasting, afirma que a imagem em movimento
feita a partir da tecnologia do tubo de imagem foi apenas a conclusão de
uma história pouco documentada, mas fundamental para entender os rumos
que a televisão tomou como meio noticioso e de entretenimento. Para ele, a
necessidade de se ter televisão se evidenciou na segunda metade do século
XIX, quando importantes acontecimentos sociais, dentre os quais aqueles
narrados por Sennett e Singer, mudaram a forma de as pessoas encararem o
mundo ao seu redor. Dentre esses acontecimentos, três são particularmente
importantes: a necessidade de individualizar experiências anteriormente
coletivas, problemas de transporte em um mundo afetado pelo crescimento
populacional descontrolado e pelos veículos motorizados e, finalmente, a
tendência em levar para dentro de casa a experiência de entretenimento
consolidada pelo cinema e, anteriormente, pelo teatro.
Ainda no que concerne às novas experiências sensoriais consolidadas a
partir do século XIX, há ainda uma em especial enfatizada no século XX e que
vem ganhando novo fôlego neste início de século XXI: as novas audibilidades
que surgem nos centros urbanos especialmente a partir do surgimento das
várias tecnologias da comunicação e da maior industrialização do mundo.
Pereira, Castanheira e Sarpa (2010) destacam que uma das mais importantes
consequências ocasionadas a partir das mudanças sociais consolidadas no
século XIX diz respeito às novas formas de percepção dos sons que vêm
mudando a própria definição do conceito de música. Conceitos como os
de ruído e de instrumento musical sofrem uma problematização com o
surgimento, por exemplo, do movimento noise2 e da música eletrônica. As
novas sonoridades vindas de carros motorizados, máquinas e novos instrumentos musicais, como a guitarra elétrica3, vão mudando a paisagem sonora
de forma que a vida social acaba sempre, em alguma medida, preenchida por
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novas sonoridades. O “excesso” sonoro, assim, passa a integrar a vida social.
Todo esse cenário de mudanças tecnológicas e culturais mostra que o
início do século XX vai assistir à consolidação de alguns dos elementos a
partir dos quais o videoclipe vai se estruturar mais adiante: o excesso de
informação oferecendo múltiplas experiências sensoriais, tanto no campo
sonoro quanto visual, e a experiência de consumo íntima e individualizada
de entretenimento hegemonizada pela televisão.
O excesso de informação que estrutura o videoclipe é praticamente um
consenso entre os estudiosos do campo, embora normalmente esse excesso
seja atribuído apenas à edição rápida e fragmentada das imagens, feita muitas
vezes com cortes bruscos e acelerados. Thiago Soares (2004) sintetiza essa ideia
de excesso e fragmentação ao intitular seu livro Videoclipe, o elogio da desarmonia,
numa alusão ao aparente uso desorganizado e aleatório dos elementos constituintes do videoclipe. O autor lembra que a palavra “clipe”, que em muitos
casos serve de sinônimo para “videoclipe”, dá ideia de pinça, corte, seleção,
como se as imagens do videoclipe fossem “pinçadas” e posteriormente reunidas para transmitirem a imagem ideal do músico. Ocorre que como bem
pontuam alguns estudiosos recentes do videoclipe, como o próprio Soares
e como Barreto (2010), a música é um elemento tão fundamental quanto as
imagens referentes a ela no videoclipe. Sendo assim, os cortes fragmentados
e acelerados, a edição rápida e o excesso imagético só são possíveis porque
como estrutura, o videoclipe utiliza a edição das imagens de forma a seguir
o ritmo musical. As batidas da música, a regularidade com que a estrutura da
letra aparece (quantidade de refrão, o tempo da introdução, o tamanho e a
quantidade das estrofes etc.) e o tempo musical são essenciais para a criação
e edição das imagens. Dessa perspectiva, a imagem é submissa à música e
seu uso “excessivo” só é possível porque, culturalmente, a “descrição” das
músicas no videoclipe se dá a partir do excesso imagético. A questão que se
coloca aqui é entender por que, em determinando momento do século XX,
começou-se a descrever determinados tipos de música através de imagens.
É o que se pretende discutir a seguir.
Videoclipe e a sincronização da música com a imagem
Sabe-se que as tecnologias de reprodução visual e as de reprodução sonora
foram criadas separadamente. De um lado, a fotografia e o cinema surgiram
para gravar imagens estáticas ou em movimento. De outro, o fonógrafo,
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o gramofone e o vinil tinham como função principal reproduzir os sons,
particularmente o que a cultura do início do século XX considerava música.
Contudo, é interessante observar que em pouco tempo o que essas tecnologias
reproduziam – a música e a imagem – passaram a ser usadas em conjunto,
transformando-se em elementos complementares no audiovisual. O cinema,
nesse contexto, foi a primeira tecnologia a unir o som com a imagem. Como
afirma Tony Berchmans (2006), apesar de mudo, o cinema já nasceu atrelado
à música. Quando esse gênero ainda dava seus primeiros passos, rapidamente
descobriu-se a necessidade de orquestras ou músicos ao vivo “completarem”
a experiência visual fazendo performances musicais enquanto o filme se desenvolvia. O autor descreve que a partir de 1914 grandes cinemas contratavam
orquestras para acompanhar as sessões noturnas de filmes. Compositores
famosos de trilhas sonoras como Max Steiner, compositor da música da primeira versão de King Kong (1933), trabalharam como regentes de orquestras
do cinema mudo antes de se especializarem na produção de trilhas sonoras. A
harmonia entre música e imagem no cinema era tão intensa que rapidamente,
quando o cinema tinha pouco mais de 30 anos, em 1927, uma experiência de
união de som e imagem transformou para sempre a sétima arte: considerado
o primeiro filme falado da história, The Jazz Singer era lançado nas telas de
cinema4. Como o próprio título leva a crer, o filme não apenas traz diálogos
sincronizados como tem na música um elemento importante da história. É
claro que a elaboração de um filme musical facilita a sincronização sonora e
imagética, mas não deixa de ser sintomático o primeiro filme a usar a sincronização ter como protagonista um cantor de música popular.
É interessante destacar que essa intensa união entre música e imagem,
que vem desde o surgimento do cinema, não é um uso dado a partir das
possibilidades da tecnologia, e sim um uso transformado pelas necessidades
sociais. Afinal, a sincronização até hoje, no cinema, é bastante complexa
e requer uma pós-produção. Filmes de grande orçamento normalmente
fazem primeiramente a captação das imagens e só posteriormente inserem
o som, incluindo a trilha sonora e os diálogos dos personagens. No videoclipe, a pós-produção para criar a sincronização é uma regra desde seu
surgimento. A união desses elementos por meio da tecnologia certamente
tem várias causas, e aqui serão destacadas algumas delas.
Sabe-se que em muitos aspectos a estrutura física dos cinemas é inspirada no teatro, a forma cultural que por vários séculos foi hegemônica no
Ocidente. E o teatro sempre utilizou, além da imagem dos artistas, vários
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recursos sonoros – além das vozes – para contar suas histórias. Filipe Salles
(2002) lembra que na obra Poética, Aristóteles define a “melopeia” – arte de
acompanhar com música uma récita qualquer – como um dos elementos
constitutivos da tragédia grega, reforçando que a necessidade de se contar
histórias usando música com imagem é milenar. A estrutura das primeiras
trilhas sonoras, inclusive, foi bastante inspirada nas óperas (Berchmans, 2006),
um gênero artístico extremamente musical. O audiovisual, portanto, adaptou
em seu meio uma característica social consolidada.
O videoclipe é devoto da sincronização inventada no cinema e da importância da música vinda com a invenção da sétima arte, mas não utiliza a
sincronização como os filmes cinematográficos. Isso porque em geral, no
cinema, a imagem e a história são protagonistas, enquanto à música cabe um
papel secundário, de complementação: “ela [a música no filme] deve auxiliar
a narrativa, seus personagens, seu ritmo, suas texturas, sua linguagem, seus
requisitos dramáticos” (Berchmans, 2006: 20). Ao contrário do que ocorre
normalmente em outros audiovisuais, não é possível conceber o videoclipe
sem música, até porque ela necessariamente o precede. Se nos filmes a música é um elemento secundário, que serve para intensificar o significado das
imagens, no videoclipe ambos são necessariamente interdependentes5.
Esse tipo de sincronização que transforma música e imagens em elementos
interdependentes começou logo que as tecnologias possibilitaram essa união,
novamente mostrando as necessidades sociais por trás de cada nova invenção
tecnológica. A partir dos anos 1920, alguns artistas passaram a fazer experiências usando as tecnologias áudio e visuais. Nesse período, pode-se destacar
o trabalho de Oskar Fischinger6, artista alemão que desenvolveu diversas experiências com animação no audiovisual. Dentre sua extensa obra, que conta
com trabalhos para a Paramount e para a Walt Disney, Fischinger criou vários
curtas-metragens abstratos que visavam a transformar músicas instrumentais
em imagens concretas. Ele se inspirou no pensamento budista para afirmar
que “todas as coisas têm um som, mesmo que a gente comumente não ouça”
(Moritz, 2004: 78). Com isso em mente, suas obras audiovisuais, chamadas
por ele de Visual Music films, foram criadas a partir de músicas pré-existentes
e seguindo as suas características. Se, por exemplo, a música fosse acelerada,
as imagens se movimentavam ou modificavam sua forma rapidamente; se, ao
contrário, a música fosse lenta, as imagens também se desenvolviam lentamente. O que mais chama atenção no trabalho de Fischinger no que concerne ao
videoclipe é que suas experiências em geral tentavam dar formas geométricas
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e cores específicas (quando já era possível fazer filmes coloridos) para
cada instrumento musical sem, contudo, se preocupar em formar uma
narrativa clássica. As imagens simplesmente aparecem e desaparecem ao
som da música, sem contar uma história. Trata-se, notoriamente, de uma
alternativa ao audiovisual que se desenvolvia no cinema e uma experiência nova de uso da música e da imagem que vai, inclusive, encontrar um
amplo espaço na videoarte a partir dos anos 1960. Mas é, sobretudo, um
gênero artístico que começa a evidenciar uma das principais características
do videoclipe: a despreocupação em seguir a narrativa clássica.
Videoclipe e narrativa
Como afirmado no início deste trabalho, a não-linearidade narrativa é
uma importante característica do videoclipe e vários estudos já apontaram
isso. Em geral, como fazem Coelho (2003) e Carvalho (2006), os estudos
analisam os vários tipos de narrativas presentes no videoclipe numa tentativa
de evitar que o gênero seja visto como um audiovisual desprovido de sentido.
Em muitos casos, afirma-se que há vários videoclipes que seguem a narrativa
clássica ou boa parte dela, como se a linearidade narrativa fosse sinônimo de
inteligibilidade. Ocorre que, como bem pontua Vernallis (2007), a descontinuidade do videoclipe é, na verdade, uma de suas características estruturais
mais importantes, e é ela uma das grandes responsáveis para que o gênero seja
reconhecido enquanto tal. Indo além, a autora afirma que a descontinuidade
narrativa das imagens do videoclipe pode servir para que a atenção recaia
sobre a música, ou seja, ela teria uma função estrutural intrínseca ao gênero
relacionada à música que lhe deu origem.
Ainda quando Oskar Fischinger e vários outros artistas inseriam no imaginário social a ideia de que músicas poderiam ter imagens, a partir dos anos
1930 novas experiências se aproximaram ainda mais da narrativa singular que
o videoclipe vai apresentar. Primeiramente, como afirma Rodrigo Barreto
(1930) os short films, pequenas filmagens de três a oito minutos feitas em estúdio e com a presença do cantor, oferecem uma forma diferente de consumo
musical: aliando-a ao cinema, já que os short films eram veiculados antes dos
filmes. O formato chegou a veicular apresentações de cantores como Billie
Holiday e Bing Crosby, mas a partir da Segunda Guerra Mundial, deixou de
ser produzido. Amy Herzog (2007), por sua vez, lembra que a Panoram Soundie,
também chamada apenas de soundie, pode ser considerada uma das primeiras
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experiências audiovisuais de massa em que uma música recebia imagens
e, mais do que isso, o intérprete da canção se apresentava enquanto tal.
Durante sete anos, a Sounding Distributing Corporation distribuiu cerca
de duas mil cabines musicais em bares, estações de trem e outros pontos
públicos dos Estados Unidos nos quais o usuário depositava 10 centavos
de dólar e assistia à apresentação de algum artista e de sua música através
de uma tela. Os vídeos tinham poucos minutos de duração e abarcavam
uma grande variedade de gêneros musicais que iam desde swing, baladas
românticas e música country até cantores de jazz, havaianos e latinos. Ao
contrário do que ocorria com outras jukebox, ao colocar a moeda na soundie, o usuário não escolhia a música que queria ouvir; isso ficava a cargo
da própria máquina, que veiculava os vídeos em looping ou, deslocando a
expressão de Raymond Williams da televisão para as soundies, em fluxo.
Esse tipo de consumo de vídeos musicais é bastante parecido ao que se
viu na televisão, uma vez que nos anos 1980 e 1990 o telespectador praticamente não tinha autonomia para escolher o videoclipe da programação
televisiva, e este era veiculado num fluxo contínuo.
Em geral, o conteúdo veiculado nas soundies se limitava a performances
simples do cantor ambientadas em cenários com poucos detalhes e, com o
início da Segunda Guerra Mundial, conflitos com união de músicos e concorrência com outras formas musicadas de entretenimento, a experiência não
se sustentou. Mas o seu razoável sucesso demonstra que já estava enraizada
socialmente uma nova experiência de consumo musical complementada pelo
audiovisual, e isso pelo menos 10 anos antes da televisão começar a se tornar
hegemônica. Se com os short films o espectador era levado a consumi-los se
quisesse assistir ao filme, as soundies possibilitaram um consumo espontâneo
por parte do consumidor. Além disso, em termos de linguagem, as soundies
incentivaram uma forma bastante específica de “descrição” musical: a maior
parte dos vídeos narra a canção e o artista aparece dublando e interpretando
o que a letra diz7, um elemento extremamente comum das narrativas dos
videoclipes contemporâneos. Nas soundies, o artista é o foco da câmera e não
há necessidade de seguir a narrativa clássica. Com isso, o ouvinte podia ter
uma experiência ampliada em relação ao que as rádios e os vinis ofereciam,
visto que o artista aparecia em ação.
Como afirmam Barreto e Herzog, o advento da Segunda Guerra Mundial
e o aparecimento da televisão foram cruciais para o desaparecimento dessas
experiências. Todavia, tendo em vista que outros formatos de entretenimen-
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to musical e audiovisual, como o rádio e o cinema, continuaram mesmo no
período pós-guerra e durante o crescimento da televisão, propõem-se ampliar
essa justificativa. Em que medida, nesse sentido, a televisão de fato “roubou”
o espaço de formatos como soundies e short films?
Norma Coates (2007) analisa a consolidação do rock como fenômeno
cultural e a importância que a televisão teve nesse contexto. De acordo com
a autora, logo que a televisão começou a ser considerada uma tecnologia relevante de comunicação, ou seja, bastante vendável, os programas de auditório
se instalaram e obtiveram muito sucesso. Ela lembra que o dia 6 de janeiro de
1957, quando Elvis Presley se apresentou pela terceira vez no antológico The
Ed Sullivan Show, é considerado o nascimento do rock na televisão mundial.
A partir desse período, a música popular massiva, liderada pelo rock, começou
a ser exaustivamente veiculada na televisão, e isso teve um enorme impacto no
crescimento do rock, que dava seus primeiros passos, e da música massiva em
geral. A presença de artistas de rock nos programas televisivos ocorreu, ainda
de acordo com Coates, devido à enorme aceitação do público para com esses
artistas, sobretudo do público adolescente. Tanto que o próprio Ed Sullivan
não gostava de Elvis e chegou a afirmar publicamente que jamais convidaria
o cantor “imoral” para seus palcos. Isso até ver sua audiência migrar para o
concorrente The Steve Allen Show quando Elvis se apresentou ali e ajudou o
programa a ficar em primeiro lugar na audiência.
O sucesso da união entre televisão e rock firmou um pacto simbólico
entre as gravadoras e as emissoras de televisão. Se a audiência era significativa, ambas as instituições ganhavam com isso. E se até o momento os
formatos de vídeos musicais estavam apenas sendo testados, na televisão o
teste se mostrou mais do que eficaz. E essa aceitação tem menos relação
com a tecnologia e mais com a aceitação do público, que finalmente encontrou um formato de exposição de seus artistas preferidos que poderia
ser consumido no conforto do lar e de forma gratuita. As apresentações dos
grupos de rock na televisão foram muito importantes para que o público
se acostumasse a consumir música pela televisão, o que foi essencial para
a consolidação do videoclipe anos mais tarde. Além disso, outro elemento
pode ser adicionado à linguagem que o videoclipe vai incorporar a partir das
apresentações desses artistas nos programas de auditório: o close de câmera
com destaque para o vocalista e para os demais integrantes das bandas.
Coates afirma que quando Elvis começou a se apresentar na televisão,
Ed Sullivan ficou tão chocado com o excesso de rebolado do cantor que
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obrigou seus cinegrafistas a filmarem sua performance apenas da cintura
para cima, numa tentativa de “proteger” as famílias norte-americanas do
apelo sexual de Elvis. Com isso, percebe-se que em várias apresentações, as
câmeras focam demoradamente o rosto do vocalista ou a performance de
bateristas e guitarristas, recurso que se tornou comum não apenas nas apresentações de músicos na televisão, mas principalmente nos videoclipes8.
Com a consolidação da música na televisão, ainda houve tentativas de
transformar os vídeos musicais em algo a ser contemplado coletivamente em
ambientes públicos. Nos anos 1960, por exemplo, nasceram as scopitones. De
fabricação francesa, cada uma dessas máquinas abrigava 36 títulos de vídeos
filmados em 16 mm. A estética dos vídeos, bem mais complexa que a das
soundies, tem vários elementos que o videoclipe vai absorver, como a presença
constante de coreografias e o artista encarando a câmera, ou seja, o espectador.
Em 1964, descreve Herzog (2007), a empresa Chicago Tel-A-Sign começou
a fabricar scopitones em solo norte-americano. Apesar desse investimento,
contudo, a experiência não se mostrou eficaz e, no final da década de 1960,
elas já não faziam mais sucesso. Até hoje, os videoclipes são consumidos em
bares, festas, casas noturnas e outros ambientes exteriores às residências, mas
é interessante observar que esses usos não se tornaram hegemônicos9.
Considerações finais
O videoclipe é um dos audiovisuais mais intrigantes da atualidade. Isso
ocorre não porque ele seja “melhor” ou “pior” que outros produtos culturais,
e sim porque quando se comparam os estudos desse audiovisual com outros,
como o cinema e o vídeo, percebe-se que, embora proeminentes, ainda são
tímidos os estudos que se dedicam prioritariamente ao videoclipe, e isso faz
com que pouco se conheça dele. Essa falta de pesquisa talvez tenha como
principal consequência o surgimento de juízos de valor que transformam o
videoclipe em um produto audiovisual limitado, “esquizofrênico” e desprovido
de sentido. Muitas vezes seus elementos mais importantes e que o transformam em um produto único são considerados “defeitos”, pouco auxiliando
para compreensão do videoclipe na cultura contemporânea.
Este artigo tentou ir de encontro a essa ideia e, para isso, fez uma análise
social de surgimento de algumas das principais características que moldaram
o videoclipe antes de seu surgimento oficial, em meados da década de 1970.
Foi possível perceber que a estrutura desse audiovisual está intrinsecamente
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ligada ao desenvolvimento social que começou a se consolidar no século
XIX, com destaque para as novas sonoridades e sensorialidades que afloraram nesse período. As novas experiências e necessidades sociais ajudaram
a fazer do videoclipe um produto permeado pelo “excesso” imagético, que
encontrou na televisão um ambiente propício, rapidamente aceito. Além
disso, esse novo ambiente possibilitou que o videoclipe se consolidasse
como um audiovisual de narrativa singular – comumente tida como “fragmentada”, “acelerada” – e que utiliza o som e a imagem de forma bastante
particular, sem hierarquizar nenhum dos dois elementos.
Notas
1. Parte do artigo foi apresentada no GP Televisão e Vídeo do X Encontro dos Grupos de
Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação.
2. Segundo os autores (2010: 4): “normalmente engloba-se sob o termo uma série de subgêneros
musicais como o noise japonês, o power electronics, a primeira onda do movimento industrial, o
harsh noise, dentre outros. (...) Embora tais gêneros possuam características que os distinguem,
em todos encontramos um mesmo modelo de abordagem sonora, visando atingir o corpo em
seus limites de suportabilidade a estímulos auditivos”.
3. Rebecca Mcswain (2002) analisa detalhadamente o surgimento e a importância da guitarra
elétrica para a música do século XX afirmando que em pouquíssimo tempo (cerca de 20 anos)
a guitarra elétrica se tornou elemento fundamental da música pop, especialmente nos Estados
Unidos, onde floresceu, e trouxe uma nova sonoridade à música, ajudando a mudar a cultura
musical mundial.
4. Dirigido por Alan Crosland e interpretado por Al Johnson, uma estrela da comédia e da
música da época, o filme narra a vida de Jakie Rabinowitz, que vai de encontro às tradições de
sua família judia e cai no mundo em busca do sonho de ser um famoso cantor de jazz.
5. Neste artigo, o cinema é tratado de maneira generalizada e ampla, visto que em alguns de
seus gêneros, como os musicais, a música é essencial para transmissão de significado, como
ocorre com o videoclipe (Allan, 1990).
6. Algumas de suas principais obras podem ser conhecidas no endereço http://www.oskarfischinger.org/. Acessado em março de 2014.
7. Veja-se, por exemplo, a performance de Clink! Clink! Another Drink!, (1942) de Spike
Jones and His City Slickers. O vídeo pode ser visto no endereço http://www.youtube.com/
watch?v=ijnfdLFhn2o. Acessado em março de 2014.
8. Não se está afirmando que os programas de auditório são os únicos responsáveis pela utilização
desses recursos de câmera. Contudo, levando em conta a harmonia entre rock e televisão que
está sendo descrita, é possível sugerir que o uso desses recursos na televisão ajudou de forma
mais significativa a impulsionar o seu uso nos videoclipes.
9. Atualmente, o consumo dos videoclipes vem sendo reconfigurado, sobretudo em função das
novas tecnologias (internet, celular com televisão etc.). Este artigo, contudo, não contempla o
sistema contemporâneo de produção e consumo de videoclipes.
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Comum 36 - jul./dez. 2014
Resumo
Tendo em vista que boa parte das pesquisas descrevem mas pouco problematizam as origens do videoclipe, o artigo pretende preencher parte dessa
lacuna contando a história social de surgimento desse gênero audiovisual. Além
de analisar alguns dos acontecimentos históricos considerados fundamentais
para dar base ao que o videoclipe se tornou a partir dos anos 1970, o trabalho
vai analisar as origens de algumas das principais características estruturais do
videoclipe: a sua veia televisiva, a sincronização bastante específica entre som
e imagem e o desenvolvimento da sua narrativa particular.
Palavras-chave
Videoclipe – Televisão – História do audiovisual.
Abstract
Given that much of the researches merely describe the origins of the music
video instead of make a discussion about it, the article attempts to fill part
of this gap by telling the social history of the emergence of this audiovisual.
In addition to reviewing some of the historical events considered essential
to give the basis that the music video became from the 1970s, this paper will
examine the origins of some of the main structural characteristics of it: its
television side, the very specific synchronization between sound and image,
and the development of its particular narrative.
Keywords
Music video – Television – History.
Comum 36 - jul./dez. 2014
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Nas paragens de Péter Forgács,
a memória em movimento
Geraldo M. P. Mainenti
Introdução
A maior parte da pesquisa para esse trabalho foi concentrada no filme
O turbilhão: uma crônica familiar (1997), de Péter Forgács 1. Assim como
outros filmes, entre os 39 que compõem a obra cinematográfica de Forgács, O turbilhão retrata a vida cotidiana de uma família burguesa judia
europeia, durante os anos que antecederam à Segunda Guerra Mundial
até à década seguinte ao fim do conflito.
Bill Nichols2 observa que os filmes de Péter Forgács – construídos a
partir da reorganização de material de arquivo – “não tem como objetivo polemizar, explicar ou julgar; ao contrário”. De acordo com Patrícia
Rabello, Nichols acredita que eles procuram evocar um sentido para
experiências passadas, de forma a retomá-las como um eco do seu futuro
– as grandes tragédias que abalaram a primeira metade do século passado
(Rabello, 2012: 6). Nichols aponta para o fato de que
(...) através da música estranhamente vigorosa de Tibor Szemzö, comentários lacônicos, zooms e panorâmicas, coloração do
filme, velocidade lenta, parada da imagem e oratório (utilizado
para articular os detalhes das leis que limitavam a participação
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 64 a 78 - julho / dezembro 2014
64
Comum 36 - jul./dez. 2014
na vida pública através da “denominação israelita”), todos em
evidência no filme OTurbilhão, por exemplo, Forgács transforma imagens recuperadas em um vivido olhar sobre um mundo
perdido (Forgács e Nichols, 2012: 12).
Forgács produz filmes “que escolhem se orientar pela produção de
questionamentos, em detrimento da formulação de respostas; e que optam
por sublinhar a complexidade do conhecimento sobre o mundo através
de uma ênfase nas dimensões subjetivas e afetivas” (Rabello, 2012: 6).
O campo discursivo por onde circulam os documentários e
filmes de ficção de Peter Forgács é um dos mais prolíficos e
sintomáticos da produção atual. A principal preocupação desta
forma de cinema é a construção do pensamento como obra. Em
uma aproximação foucaultiana, poderíamos dizer que se trata de
uma narrativa que busca compreender afetos e processos produzidos na rede de conexões entre elementos, objetos e situações
que modulam e modelam uma sociedade (Rabello, 2012: 6).
Parar sem parar, o instante cinematográfico de Forgács
Em trocas de e-mail com Nichols, Forgács estabeleceu sete regras para
o jogo dele, “um jogo de costurar retalhos” (patchwork):
Primeiro: nenhuma tautologia de significados e nenhum uso de
fatos como ilustração. Segundo: encontrar a magia inconsciente
desses rolos de filme de família, a magia da recontextualização,
camada após camada, para sentir a intensidade gráfica de cada
quadro. Terceiro: quero fazer filmes para meus amigos, o grupo
de referência: “Olhe o que encontrei para você”, enquanto eu
descasco o material de base até suas raízes. Quarto: não explicar
ou educar, mas envolver, absorver o espectador o tanto quanto
possível. Quinto: se endereçar à parte mais inconsciente, sensível,
inexprimível, tangível, mas, na maioria das vezes, silenciosa do
espectador. Sexto: deixar a música orquestrar e comandar a história emocional. Sétimo: precisei aprender a escutar minha própria
frágil voz interior, o guia da criação – se eu puder afugentar, ou
reduzir, o ruído no canal (Forgács e Nichols, 2012: 19).
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O estilo de Péter Forgács se distingue por procedimentos tópicos de
processos reflexivos, segundo Patrícia Rabello (2012: 7): narracão em
linguagem poética, cartelas, repetições, fusões, trilha sonora minimalista,
cortes rápidos alternados a diminuicão da velocidade das cenas, coloração
de pedaços de filme (azul, sépia) e paradas na imagem.
Consuelo Lins (2012: 103) ressalta que a mistura entre o que nós sabemos
da história e o que ainda não sabem os personagens filmados é o que há de mais
perturbador nos filmes de Forgács. Por isso, Lins afirma que não são poucos
os momentos em que sentimos vontade de gritar para os personagens: Fujam!
A retomada dessas imagens é um gesto artistico e político que
dissolve as funções originais do material – filmes de família
para serem vistos pela família, visando o fortalecimento dos
laços e a continuidade do grupo – em favor de novas configurações e sentidos. As imagens deixam de estar a serviço da
memória familiar para se tornarem testemunhas da história,
compartilhadas, produzindo experiências inéditas para um
público de anônimos (Lins e Blank, 2012: 104).
Para Forgács (2012: 12), o filme de família representa um mundo diferente, por não ter sido planejado para o olhar público. E diz que o “outro
aspecto da intimidade em relação a esses filmes de família é a técnica da
colagem, como o clássico procedimento de recontextualizar”:
O nível metafísico do sentido pede liberdade para mexer, alterar, editar, combinar e reajustar o sentido original em relação
ao novo contexto. Encontrar as imagens por trás da superfície.
Todos os três aspectos são embaraçosos e fascinantes ao mesmo
tempo. Como posso abrir o privado e o íntimo, as filmagens-não-feitas-para-o-olhar-público, para um contexto mais amplo? A
psicanálise do filme diário percebe. Eu tenho que ser moderado
para manter a distância correta (Forgács e Nichols, 2012: 12).
Mexer, alterar, editar, combinar e reajustar... todas essas ações estão intrinsecamente ligadas à montagem, que Giorgio Agamben (1998: 64) afirma ser o
caráter mais próprio do cinema. Ele pergunta: “Mas o que é a montagem, ou
antes, quais são as condições de possibilidade da montagem?” E explica: “Em
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filosofia, depois de Kant, chama-se às condições de possibilidade de alguma
coisa os transcendentais”. Agamben pergunta de novo: “Quais são então os
transcendentais da montagem?” Ele mesmo responde:
Existem duas condições transcendentais da montagem: a repetição e a paragem. A paragem é o poder de interromper, a
“interrupção revolucionária” de que falava Benjamin3. É muito
importante no cinema, mas, mais uma vez, não apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a narração, a prosa
narrativa, com a qual se tem tendência a comparar o cinema. A
paragem mostra-nos, pelo contrário, que o cinema está muito
mais próximo da poesia que da prosa. (...) Por isso Valéry4 pôde
uma vez dar ao poema esta definição tão bela: “O poema, uma
hesitação prolongada entre o som e o sentido”. Poderíamos retomar a definição de Valéry e dizer do cinema, pelo menos de um
certo cinema, que é uma hesitação prolongada entre a imagem
e o sentido. Não se trata de uma paragem no sentido de uma
pausa, cronológica, mas antes de uma potência de paragem que
trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para
a expor enquanto tal (Agamben, 1998: 64,78).
O congelamento de imagem, segundo observa Raymond Bellour (1997:
131), serve de suporte à busca obstinada de um outro tempo, de uma falha
no tempo na qual o cinema moderno (do tempo que nasce após a guerra e
da guerra, com o neo-realismo e a Nouvelle Vague) talvez tenha se lançado
em busca de seu mais íntimo segredo.
Bellour (1997: 128) define o congelamento da imagem como sendo a
interrupção do movimento, “o instante quase sempre único, fugidio, mas
talvez determinante, no qual o cinema dá a impressão de lutar contra seu
princípio, se o definimos como imagem-movimento”.
No cinema primitivo, que descobriu o movimento dos corpos, é
claro que o congelamento da imagem seria dificilmente concebível. Em compensação, na medida em que o cinema se desenvolveu, o congelamento se tornou uma de suas figuras possíveis. É
o que vemos em Vertov, talvez o primeiro a praticá-lo em grande
escala, em Um homem com uma câmera (1929), como, de outra
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forma, em René Clair, no seu famoso Paris qui dort (1924). (...)
Parece-me, porém, que o congelamento da imagem foi uma das
formas de tratar livremente um tempo de cinema apaixonado
pela conquista dos seus movimentos. (...) Procurando situar as
decomposições de Salve-se quem puder (a vida), Godard5 qualificou bem a possibilidade, própria do cinema mudo, de variar a
velocidade de seu movimento aparente. Instigado pelo desejo
de “outras velocidades”, ele só podia desacelerar o movimento
e fixá-lo onde o cinema, por ser mudo e novo, estava livre para
metamoforseá-lo (Bellour, 1997: 130).
Andrea França (2012: 88), além de destacar o envolvimento emocional
provocado por Forgács, em seus filmes, que convoca o espectador a se
incumbir (imaginariamente) de uma parte da mise-en-scène das imagens
do passado, a se virar com os fragmentos (de filmes, de diários, de gestos,
de vozes) que lhe são oferecidos”, aponta, entre esses elementos, o procedimento de congelar certas imagens,
(...) especialmente quando o olhar de alguém se dirige à câmera,
quando os olhares (frequentemente cúmplices, íntimos, familiares) de quem está por trás e diante da câmera se encontram
e, portanto, nos encontram hoje. E possível imaginar um olhar
correspondido que atravessa as épocas? Uma reciprocidade entre passado e futuro sem data marcada para acontecer, mas que
eventualmente se revela? O encontro de um futuro com aquilo
que o passado nessas imagens ocultara?
A técnica do congelamento carrega, a princípio, a força da interrupção, nem
sempre brusca, mas sempre contundente; na maior parte das vezes em que é
usada por Forgács, sugere justamente o inverso – invertendo não somente o
sentido tradicional, mas fazendo contorcer-se em pensamento o espectador,
na busca por compreender o que parece incompreensível.
Em seus filmes, Forgács se utiliza das paragens para, num incessante
vai-e-vem temporal, nos remeter ao passado e nos devolver ao presente,
futuro das imagens, como espectadores privilegiados de uma história conhecida em seus aspectos gerais e, ao mesmo tempo, como espectadores
angustiados, pela possível descoberta da história específica daqueles perso-
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nagens, remontada pela mão criativa e o coração inquieto do cineasta, que
ali se instala também como mais um espectador. E o lugar do espectador
é sempre um exercício de subjetividade, nos aponta Jean-Luc Comolli.
A mão do espectador é central: convicção, dúvida, ilusão. Sem
espectador, o cinema não está, morreu – o que pode servir para
a totalidade dos documentos audiovisuais (e talvez de todos os
tipos de documentos). Se não houver nenhuma vontade humana,
nenhuma preocupação social que lhe dê suporte, o documento
permanecerá mudo, surdo e cego (Comolli, 2008: 6).
Documentarista-espectador-montador, Forgács, quase sempre não dá,
às paragens que provoca, o sentido a que estamos acostumados, em edições
clássicas de filmes e vídeos. Vai além do instante fotográfico, congelado no
tempo, e nos remete, em um movimento emocional constante, interruptível, à alma dos personagens, ainda que através de sua imagem estática,
mas movimentada pela história de seus dramas.
Bellour questiona se o congelamento da imagem – ou o congelamento
na imagem, como também encontramos referência – “com a ambiguidade
peculiar que faz com que interrompa o movimento aparente, sem com isso
suspender o movimento fundado no decurso automático das imagens, não
passaria de um instante privilegiado entre outros, isto é, de um instante
qualquer?” E acrescenta: “Ou seria ele um instante privilegiado já não
mais tão qualquer?” (Bellour, 1997: 129).
Esses tempos de parada (que, entretanto, dão a impressão de
estar soldados entre si) designam um ponto de fuga: ele nasce da
divisibilidade própria do espaço, quando se atenta contra a continuidade e contra a ilusão de seu movimento natural. Num certo
sentido, essa divisibilidade vai além do fotograma, pois supõe um
espaço entre os fotogramas, embora seja no fotograma que ela
encontra o seu limite material, quando se sai do filme e do seu
tempo de projeção. Quando permanecemos nesses limites, é uma
espécie de fotograma mental, virtual, que se vê então projetado,
uma imagem de imagem, deixada ao critério do espectador apesar
de programada a todo momento pelo filme. Mas isso não basta.
Não podemos nos limitar à forma abstrata desses momentos,
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é preciso pensar também o que designam. Sua força reside
paradoxalmente no fato de serem extraídos do neutro, das
casualidades da vida, e do tempo, de serem realmente momentos quaisquer. Ao mesmo tempo eles designam, contudo, um
espaço que não pode ser isolado (Bellour, 1997: 145).
Nas montagens de Forgács, quase sempre, é congelada apenas a imagem
física, não sua carga de sentidos, que faz remissão à memória. Ao contrário,
essas emoções despreendem-se da imagem congelada diante de nós, para
formar, em nosso pensamento, em nossas lembranças, em nossas dúvidas
acerca daquela imagem, novas imagens e sensações de um mundo íntimo,
desconhecido, instigante, mas que, ao mesmo tempo, é historicamente conhecido, tragicamente conhecido – e faz-nos mergulhar na busca desesperada
de um remédio tardio ao que é transcedentalmente irremediável.
“A imagem excessivamente fixa, a suspensão do tempo demasiadamente visível, remete-nos inexoravelmente à perda e à morte”, afirma Bellour (1997: 151).
O filme O turbilhão registra momentos de vida e morte de uma família
burguesa judaica holandesa, os Peereboom, nas décadas de 1930 e 1940. Da
mesma forma que somos testemunhas da alegre e descontraída reunião familiar na laje da casa nova e de uma feliz viagem a Paris, a passeio, na véspera
da invasão da Polônia pela Alemanha, somos convidados a nos reunir com a
família, três anos depois, na sala da casa, na última noite antes de todos seguirem para o que naquele momento acreditavam ser um “campo de trabalho”.
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Ficamos, pelas mãos de Forgács, diante de atitudes cotidianas enigmáticas e assustadoras: o café sendo servido à mesa por Anie, mulher de Max
Peereboom, que lê o jornal – o jornal! Será que Max nunca vira no jornal
o que estava por vir?! – enquanto a madrasta de Anie tricoteia e o casal de
filhos pequenos brinca no chão. Ninguém parece se importar – ou entender
– o que realmente se passa. Uma voz feminina monocórdia, em off, vai nos
informando os artigos pessoais que os deportados poderão levar, enquanto a
câmera passeia pela cena, entremeada por paragens na imagem, produzidas na
edição, quase sempre para congelar um olhar que nos fita e, depois, retomar
o movimento, como se nos fosse permitido um momento de reflexão, antes
de a vida daqueles personagens seguir seu trágico rumo, que logo se desvendará em uma legenda: Max, Anie, a madrasta de Anie, Franklin e Flora foram
mandados para Auschwitz, em setembro de 1942.
Forgács (2012: 18) explica que “o plano casamento-casa-criancas, como
uma moldura, compõe a felicidade dos Peereboom. Para nós hoje, agora e
neste instante, por nosso conhecimento histórico, surge uma perspectiva
dramática inesquecível e imperdoável: a sombra invisível sobre os seus momentos felizes” (Forgács e Nichols, 2012: 18).
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Nichols revela que os filmes de Forgács “não são histórias de fortes, nem
histórias de fracos; não vemos campos de concentração, chaminés enfumaçadas, guetos judaicos ou médicos nazistas de riso sarcástico. E completa:
Os presságios para nós – anunciando sinais da destruição agourenta – são apenas um elemento a mais no mundo de coisas do
cotidiano para os realizadores e sujeitos originais desses filmes.
Ver Bela Liebmann, um fotógrafo notável, em “Queda Livre”,
por exemplo, fazer caretas para a câmera, ao mesmo tempo em
que executa um trabalho manual degradante para o Servico de
Trabalho Voluntário, uma unidade não-combatente na qual os
judeus eram forçados a servir durante a guerra, remete a uma
dor atroz (Forgács e Nichols, 2012: 21).
Forgács confirma que evita mostrar cenas explícitas da morte dos personagens de seus filmes ou imagens dos corpos das vítimas no barbarismo nazista:
O momento feliz apela, em nossas mentes, para outras construções,
como uma profunda corrente subterrânea de expectativas inconscientes: a morte torturante em uma câmara de gás, uma corrente
subterrânea escondida, nesse pedaço do filme, para suas futuras
vitimas. E, por essa razão, ela nunca é concretizada, nem se torna
visível em meus filmes. Isso não é querer falar das cenas como
fontes de fatos, mas pode explicar a estrutura de um redemoinho
espiralado: em quais sequências, em quais episódios, pode-se perceber a torsão da espiral? Quando se começa a ficar apreensivo e
temer pelo fim deles? (Forgács e Nichols, 2012: 18).
“Como olhar para imagens que foram realizadas a partir de um princípio
de memória, mas cujas próprias memórias foram consumidas pelos acontecimentos da historia? – indaga Patrícia Rabello (2012: 5). Da resposta que
encontra – “Imagens de memórias tornadas imagens desmemoriadas, mas
jamais imagens sem memória” – ela se inspira para duas outras indagações:
Qual o princípio de resistência que se esconde por trás de
gestos, situações e cenas congeladas em antigas fotos e velhos
filmes? Qual sentido de resistência apreende-se da decisão de
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registrar imagens, de capturar a parte de mundo que acontece
na frente da câmera?
Surpreendemo-nos descobrindo nos limites entre fazer ver e
tornar visivel o pano de fundo de todas as imagens; é o único
cenário a partir do qual um acontecimento, um rosto ou um
movimento se permite ler. Desse encontro dialético, dessa
percepção da imagem como uma montagem de singularidades efêmeras e inusitadas, nasce uma forma de arquitetura
que revela a memória como uma constelação de fragmentos
à nossa espera (Rabello, 2012: 5).
O filme O turbilhão nos traz ainda outros momentos em que o congelamento de imagens nos inquieta e nos obriga à reflexão e à busca de
respostas para aqueles olhares que, do passado, nos interrogam, sem saber
que nos interrogam. Para Jean-Louis Comolli (2010: 338), o olhar para a
câmera permanece um olhar em direção ao futuro, um olhar que reinstala
o futuro a partir do presente:
O presente só não basta, o corpo filmado volta-se para o
futuro. É isso que está em jogo. Esse olhar para a câmera só
tem sentido se visto pelo espectador. Ele não é destinado a
quem está na frente dele, mas sim para quem estará diante
dele (Lindeperg e Comolli, 2010: 338).
Nas imagens do gueto gravadas por soldades alemães e obtidas por Forgács
nos arquivos oficiais – ele as mistura ao material gravado pela família, para
contextualizar a história – os judeus, vão passando diante do cinegrafista, em
sequência intermediada por paragens estratégicas, em closes daqueles que, de
alguma maneira, se manifestam para a câmera: os homens estão de terno e
gravata, a maior parte olha com indireferença; as crianças parecem assustadas;
e o rapaz caminha sorridente em direção ao cinegrafista e tira o chapéu, em
reverência. Em off, ouvimos o rol de roupas que deveriam ser levadas, por eles,
para o “campo de trabalho”: duas camisas, duas meias, dois calções... Forgács
relaciona o texto à imagem de uma forma semelhante à cena na sala da família
de Max Peeroboom. A sensação que nos dá, lá e cá, é a de que essas pessoas
ilustram e pertencem ao rol daqueles objetos insignificantes.
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Também em filmes como Miss Universo 1929 (2006), Queda livre (Hungria
Particular 10, 1996), O filme de Angelo (1999), O êxodo do Danúbio (1998), alerta
Andrea França (2012: 88), o procedimento de congelar certas cenas ou o efeito
de câmera lenta sobre imagens de filmes amadores do passado trazem uma
perspectiva dramática inegável – as sombras opressoras das forças nazistas a
acenar com a morte brutal para aqueles homens “infames” cujas imagens,
devotadas ao futuro, endereçadas a nós, evocam a inocência de um estado de
mundo que só mais tarde revelaria toda a sua atrocidade.
São cenas de casamento, de indivíduos que dançam, passeiam
com seus bebês, festejam um aniversário, sorriem (estamos no
campo da intimidade de quem está por trás e diante da câmera), de modo que o procedimento da parada sobre a imagem
solicita duplamente nossa atenção ao que no documento e
multiplicidade de tempos, histórias, vestígios, contradições.
Mais do que isso: a parada sobre a imagem de cenas banais e
cotidianas fornece ao arquivo filmico “condições de experimentação” de modo a mostrar o caráter não ideal da história,
sua impureza e incompletude. Forgács convoca o espectador
a um movimento que é de aproximação e de distanciamento:
se aproximar com reserva desses vestígios, se distanciar com
desejo (de saber mais) (França, 2012: 88).
Mais adiante, no filme O turbilhão, voltamos a ser apanhados pelos incessantes olhares do passado. O quadro é parado na imagem do irmão caçula de
Max Peereboom, Simon, e de sua noiva, Ross, no dia do casamento deles,
em outubro de 1942. Em destaque, na mão da noiva, um buquê de flores
e, na roupa, a estrela amarela de identificação dos judeus – que também
está muito visível no terno do noivo. Não há mais nada, mais ninguém ali.
Imediatamente, as perguntas nos tormentam: “Que fim levaram todos? E o
casal, que fim levará?” A resposta não tarda: “Simon foi o único da família
que sobreviveu à guerra” – informa a legenda, enquanto a imagem fecha,
em zoom, para ser novamente congelada, num close do rosto de Simon, que
sorri – seus olhos parecem dizer: “Agora você sabe.”
Segundo François Niney, “essas imagens nos observam, como um retorno ao remetente; elas nos interpelam sobre sua herança abandonada ou nos
inquietam por suas perigosas metástases possíveis; elas nos pedem justiça ou
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nos relembram de suas esperanças esquecidas que poderiam ser as nossas”
(Niney, 2009 apud Rodovalho, 2012: 97). Para Beatriz Rodovalho (2012: 97),
“as imagens do passado são então evocadas no presente: Forgács reanima os
espectros e ressuscita os mortos à luz do presente”.
À pergunta que faz Bellour (1997: 138): “De onde vem o desejo de
chamar de pregnantes esses instantes que suspendem o tempo do movimento, abrindo no interior do tempo um novo tempo?” – ele próprio
encontra resposta: “É principalmente porque esses instantes possuem uma
qualidade de abstração e de irrealidade que parecem introduzir no filme
uma emoção comparável à que perpassa de imediato a pintura”.
Eles são, por certo, essencialmente fugidios, ao passo que o
instante pregnante do quadro ocupa todo o tempo. Mas, de
um outro modo, o instante que detém o filme também diz
respeito ao filme todo. Ele propaga muito além de sua pura
inscrição material, voltando o filme sobre si mesmo, captando
seu drama singular, sublinhando sua irredutibilidade ao tempo
excessivamente natural da ilusão, induzindo um espaço tempo
na fronteira do visível e do invisível. A caracterização do instante
pregnante do cinema, aliado às condições gerais de cada filme
em particular é, portanto, simultaneamente ampla e irrestrita,
difusa e pontual (Bellour, 1997: 138).
Bill Nichols, em conversa com Forgács, aponta que “os gestos espontâneos, as cenas improvisadas e as situações concretas que nós observamos
nos filmes dele não foram criadas como indicadores de forças históricas
externas, mas como lembranças de história pessoal”. E completa:
Mas os atores sociais nestes filmes de família, que gesticulam uns
para os outros, agora estimulam mais a nossa resposta do que a
daqueles para quem originalmente se endereçavam. Forgács, no
duplo papel de arqueólogo e antropólogo de resgate, conduz
uma sessão na qual essas figuras fazem as vezes de meios através
dos quais nós podemos de novo ver e escutar a voz de tempos
passados (Forgács e Nichols, 2012: 12-13).
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Forgács revela a Nichols, em troca de e-mails, que sentiu um “misterioso e quase telepático” sentimento, o de ser “um delegado”: “Todas as
pessoas que apareciam na imagem cinematográfica estão mortas, e eu estou
vivo, distinguindo aqui, no meu próprio tempo, o passado deles como
uma presença. Mas, o passado deles, ao mesmo tempo, é aparentemente
presente” (Forgács e Nichols, 2012: 14).
Notas
1. Peter Forgacs, artista multimídia e cineasta independente. Durante as décadas de 1970 e 1980,
esteve ligado a grupos e diretores de cinema underground em Budapeste, que se reuniam em
torno do célebre Bela Balazs Studio. A partir de 1982, começou a colecionar os found footages
(fragmentos, tiras, pedaços, rolos de filmes amadores e caseiros, em maioria anônimos), que se
tornariam a base de seu trabalho. Utilizava uma metodologia peculiar para obtê-los: anúncios
de jornal. O material de arquivo é quase uma marca registrada de sua obra, já que muito pouco
é filmado por ele (Rabello, 2012: 7).
2. Teórico e pesquisador do documentário, responsável pela criação de uma eficiente metodologia de compreensão deste tipo de cinema: os “modos de representação”.
3. Walter Benjamin (1892-1940), ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu
alemão associado à Escola de Frankfurt.
4. Paul Valéry (1871-1945), filósofo, escritor e poeta francês.
5. Em Jean Luc Godard, por Jean Luc Godard, Cahiers du Cinéma, 1986, p. 461-465.
Referências
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Hoëbeke: 1998. p. 65-76.
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In: Images Documentaires n. 63, regard sur les archives. Paris, 2008.
FRANÇA, Andrea. Imagens congeladas, imagens vivas: uma história da
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FORGÁCS, Péter e NICHOLS, Bill. A memória da Perda. A saga de
vida familiar e inferno social de Péter Forgács. In: RABELLO, Patrícia e
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LINDEPERG, Sylvie e COMOLLI, Jean-Louis. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. Entrevista com Sylvie Lindeperg. In: Catálogo do forumdoc.
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LINS, Consuelo e BLANK, Tais. Ruínas da intimidade: os objetos encontrados
por Péter Forgács. In: RABELLO, Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter
Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: CCCB, 2012. p. 102,109;
__________. Filmes de família, cinema amador e as memórias do mundo.
In: Significação. Revista de Cultura Audiovisual / Programa de Pós-Graduação
em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, n. 37 (jan-jun 2012) - São Paulo: Programa de
Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais / ECA/USP, p. 52-74.
NICHOLS, Bill. The domain of documentary. In: Representing Reality:
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1991. p. 3-31.
__________ e FORGÁCS, Péter. A memória da perda: a saga da vida familiar
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NINEY, Francois. Le Documentaireet ses faux-semblants. Paris: Klincksieck,
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RABELLO, Patrícia. Fazer ver ou tornar visível? A arquitetura da memória
em Péter Forgács. In: RABELLO, Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter
Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: CCCB, 2012. p. 5-7.
RODOVALHO, Beatriz. O Amador e o Alquimista. Notas sobre o cinema de
Peter Forgacs a partir de O Turbilhão – uma Crônica Familiar. In: RABELLO,
Patrícia e SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São
Paulo: CCCB, 2012. p. 93-101.
Vídeos no Youtube
http://www.youtube.com/watch?v=5k_8s6M8vUo&feature=BFa&list=PL
6C3B458128E718CA
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Resumo
A proposta deste trabalho é estudar aspectos da obra do artista multimídia
húngaro Péter Forgács, considerando, de forma especial, as reflexões sobre o
cinema contemporâneo. Pretende-se analisar, em especial, o uso, por Forgács,
de técnicas e dispositivos de edição, manipulação e montagem de filmes caseiros e amadores das décadas de 1920 a 1950, com especial atenção à interrupção
do movimento – a paragem/congelamento de imagem.
Palavras-chave
Cinema contemporâneo – Filmes caseiros – Congelamento de imagem.
Abstract
The purpose of this case is to study aspects of the Hungarian multimedia artist Péter Forgács’s work considering in a special way, reflections on
contemporary cinema. We intend to analyze in particular the use by Forgács
of techniques and devices for editing, manipulation and assembly of home
movies and amateurs of the 1920-1950 decades, with special attention to the
interruption of the movement – the stop / freeze frame
Keywords
Contemporary cinema – Home movies – Picture freeze.
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Guerra e controle da informação:
Brasil, 1914-1919
Tito H. S. Queiroz
A Primeira Guerra Mundial é um momento ao qual se dá pouca atenção
na história do Brasil. Com exceção dos reflexos econômicos da guerra, as
demais dimensões são geralmente negligenciadas pelos historiadores ou
demais especialistas que se dedicam ao assunto. Mesmo sendo a guerra
um dos principais acontecimentos do século XX, parece que o Brasil
passou por esse período em brancas nuvens. Possivelmente, a pequena
participação militar na guerra é um dos motivos a explicar a pouca atenção
dada ao fato por aqui; outro é o fato de ainda se considerar a guerra mais
europeia que realmente mundial.
Se deixarmos essa perspectiva de lado, notaremos que a guerra foi um
momento de inovações para o Brasil em várias dimensões – escolhemos
uma que julgamos significativa: o de como a guerra levou o Estado brasileiro a desenvolver ou reforçar estruturas de controle da informação.
Por controle da informação, queremos indicar medidas de caráter legal
e institucional que possibilitaram ao governo brasileiro reter ou filtrar
dados, notícias e manifestações ligadas à guerra no Brasil e à posição e
atitudes governamentais em relação a ela.
Em relação a medidas de caráter legal, o controle da informação baseou-se, primeiramente, nos decretos emitidos pelo governo brasileiro para
a manutenção da neutralidade. Com o envolvimento do país na guerra,
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 79 a 98 - julho / dezembro 2014
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esse controle baseou-se na legislação de guerra brasileira. Em relação às
medidas de caráter institucional, houve a organização de um serviço de
contraespionagem e de alguns de censura.
Guerra e informação
Um dos aspectos inovadores da Primeira Guerra Mundial é que foi a
primeira guerra instantaneamente global. A partir do momento em que
as potências decidiram deixar-se arrastar para o conflito, as declarações
de guerra e ordens de mobilização foram repassadas pelo globo através
do espectro eletromagnético. Com o uso do rádio se alcançavam navios
ou guarnições nas mais remotas partes do mundo, os informando imediatamente sobre a guerra. Pela primeira vez na história, possibilitou-se
a mobilização quase imediata de forças por todo o planeta.
Assim, a informação – a velocidade da informação e sua virtualidade
global tornaram-se uma das mais importantes dimensões (poderíamos até
dizer, armas) da guerra.1 Seu uso ditou ações em áreas distantes do epicentro europeu. Vejamos o caso do Brasil e como isso ditou as primeiras
iniciativas em relação ao controle da informação.
Nos primeiros dias de agosto de 1914, enquanto as notícias da guerra
fluíam pelos jornais brasileiros, outras movimentações iam sendo feitas ao
longo da costa brasileira. Seguindo um planejamento anterior ao conflito,
cruzadores alemães e britânicos se posicionaram para controlar as rotas
de navegação que iam do Brasil à Europa.
Se comunicando pelo rádio, cruzadores alemães começaram a atacar
navios dos países da Entente que saíam do Brasil. A primeira vítima foi o
mercante britânico Hyades, afundado na costa do Rio Grande do Norte
em 15 de agosto de 1914, pelo cruzador alemão Dresden. O aviso sobre a
saída do Hyades dos portos brasileiros, foi passado por rádio emitido do
transatlântico alemão Blücher (ancorado em Recife). O Dresden estava
acompanhado por outros três mercantes alemães, que saíram dos portos
brasileiros para abastecê-lo com víveres e carvão (o navio havia carvoado
no Atol das Rocas, dias antes) e um desses navios, o Prussia, chegou ao Rio
de Janeiro em 20 de agosto, ali desembarcando a tripulação do Hyades.2
Ao mesmo tempo, os britânicos começaram a posicionar cruzadores
para fiscalizar os mercantes saídos do Brasil, usando as proximidades
dos Abrolhos como base (com o tempo também teriam mercantes para
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reabastecê-los). E suprimiram o cabo submarino que ligava o Brasil à
Libéria (usado pela Alemanha para a comunicação com a América do
Sul): assim além de “monopolizar o serviço de informações de guerra” os
britânicos forçavam a Alemanha a utilizar apenas transmissões de rádio –
que podiam ser captadas e codificadas pela inteligência naval britânica.3
Toda essa movimentação próxima ao Brasil alarmou opinião pública e
governo. Os decretos de neutralidade feitos em agosto foram reforçados
em setembro: aumentou-se a vigilância sobre a costa e o controle sobre
a informação emitida a partir do Brasil – em especial, sobre transmissões
de rádio clandestinas. As estações de rádio nos navios dos países beligerantes que entrassem ou estivessem internados nos portos brasileiros
passaram a ter antenas arriadas e aparelhos lacrados e, em Santos, uma
estação clandestina foi descoberta em setembro de 1914.4
Apesar de todas essas medidas, vários navios aliados e neutros foram
afundados pelos alemães na costa brasileira entre agosto de 1914 e janeiro
de 1918. A rede de espionagem montada pela inteligência naval alemã
(Ettapendienst) no Brasil anos antes para apoiar ações contra a navegação
de países inimigos manteve-se ativa e as contramedidas tomadas pelos
britânicos – chegando mesmo a confeccionar uma black list para atingir
empresas ligadas à essa rede não surtiram efeito – visto que os corsários
alemães continuaram a agir na costa do Brasil durante quase toda a guerra.
Outro nível que ligava a guerra à informação foi a guerra de propaganda. Nessa, os aliados tiveram mais sucesso que os impérios centrais.
Enquanto os alemães e seus aliados jamais conseguiram montar uma
rede de propaganda eficiente no país, os britânicos e em menor medida,
franceses, italianos e norte-americanos, conseguiram – por suas agências
de notícias e serviços de propaganda (que em alguns casos, eram secretos,
como a Wellington House britânica), cinema e outras mídias a conquista
da opinião pública brasileira nos primeiros anos da guerra.5
Não havia censura prévia à imprensa (salvo em períodos de estado de
sítio). Mas havia para espetáculos; assim, nem toda propaganda passava
sem censura: no Rio de Janeiro, a peça Águia negra foi proibida em meio
a uma disputa envolvendo a polícia, a legação alemã, uma companhia de
operetas portuguesa e o Judiciário. A peça, que estreou em junho de 1916
e havia sido liberada previamente pela polícia, suscitou um tumulto na
plateia durante a quinta apresentação “em consequência de cenas representadas de modo ofensivo a um dos países envolvidos na guerra europeia”.
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Além disso, uma nota da legação alemã ao governo brasileiro chamou a
atenção para a situação “vexatória” representada pela peça “aos zelos de
sua neutralidade”. A companhia conseguiu que o Judiciário liberasse a
peça, mas após uma entrevista do empresário teatral José Loureiro com
o 2° delegado auxiliar, a peça saiu de cartaz, levando a companhia teatral
a requerer um habeas corpus, negado pelo Judiciário a pedido do chefe de
polícia Aurelino Leal, que invocou a ordem pública e a neutralidade do
país. Pouco depois, em setembro, a ópera do maestro francês Ledoux,
Les Cadeaux de Noel, foi censurada “por suspeita de ataque a Alemanha”,
mas acabou liberada (havia sido proibida antes em Buenos Aires, mas
não em Montevidéu).6
Mesmo neutro, o governo brasileiro teve que desenvolver, nos primeiros anos da guerra, parâmetros e medidas para o controle da informação.
Não só ações militares foram desenvolvidas ao longo da costa brasileira,
como a guerra de propaganda podia criar problemas. Não surpreende,
portanto, que com o envolvimento direto do país na guerra, esse controle
se tornasse mais complexo.
Contraespionagem e controle da informação
Tanto quanto a campanha submarina irrestrita, as Américas foram
levadas à guerra por telegramas alemães codificados pela inteligência
britânica – caso do telegrama Zimmermann (propondo uma aliança
do México e Japão com a Alemanha contra os EUA); e dos telegramas
Luxburg – onde o representante diplomático alemão em Buenos Aires,
propôs o afundamento de navios argentinos, a vinda de submarinos para
a América do Sul para intimidar os países da região (especialmente o
Brasil, que havia se apossado dos mercantes alemães) e que um dos objetivos alemães era a “reorganização” do sul do Brasil. Mesmo que virtuais
esses comunicados legitimavam a causa aliada expondo as intenções do
militarismo germânico.7
Os telegramas Luxburg foram usados como uma das justificativas para o
“reconhecimento” do estado de guerra entre Brasil e Alemanha. Mas desde
a sequência de afundamentos de navios brasileiros, a partir de abril de 1917,
o governo havia começado a tomar medidas para controlar as atividades de
informação dos alemães no país – de abril de 1917, são as primeiras informações sobre a montagem de um Serviço Especial de Contraespionagem.8
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Esse serviço foi criado dentro do Corpo de Segurança Pública, umas
das divisões da polícia “federal” (isto é, do Distrito Federal, a cidade do
Rio de Janeiro). Essa polícia investigativa, contava com agentes à paisana (popularmente conhecidos como “secretas”), diretamente ligados
ao chefe de polícia, ao Ministério da Justiça e Interior ou à Presidência
da República. No período, o Corpo era dirigido pelo Major Bandeira
de Mello.9 Geralmente lidava com crimes comuns, conspirações e as
greves do movimento anarquista. A guerra redirecionou o Corpo para
a contraespionagem. 10
Não se pode dizer que a questão da espionagem fosse preocupação
nova no país. Na crise de 1908 entre Brasil e Argentina – suscitada pela
interceptação do telegrama n. 9, enviado pelo Itamaraty ao Chile, o Itamaraty usou os serviços de um informante para ter acesso ao original do
telegrama que o ministro argentino Zeballos divulgou e desacreditá-lo.
O Código Penal da Armada (de 1891) previa penalidades para o crime de
espionagem: variavam entre a pena de morte e de 10 a 30 anos de prisão
com trabalhos forçados. O próprio Corpo de Segurança Pública descendia
da polícia secreta (existente, desde o Império).11
Com a proximidade da guerra, os temores com espionagem aumentaram. Em 1913, o deputado federal Maurício de Lacerda clamava pela
organização de um serviço de contraespionagem militar no país. Para reforçar sua tese aludiu a um caso de 1905, quando projetos de um projétil
desenvolvido pelo tenente José Felix da Cunha Menezes foram roubados
do gabinete do ministro da Marinha. Reapareceram pouco depois na
Alemanha, fabricados pela Casa Ehrhardt. Além disso, navios alemães,
britânicos, norte-americanos e argentinos faziam “sondagens” na costa
brasileira, as fronteiras eram abertas e personalidades como Theodore
Roosevelt faziam prédicas sobre a “conquista do nosso vale amazônico”.12
Com a guerra, os temores se concretizaram. Em janeiro de 1915, o
Itamaraty enviou um telegrama a todos os governadores, instando-os a
“vigiarem as pessoas que lhes parecerem suspeitas, darem as buscas que
forem necessárias, apreenderem aparelhos clandestinos e responsabilizarem autores diante de qualquer atentado contra nossa neutralidade”.13
Outro estímulo aos temores veio de casos de brasileiros envolvidos
com espionagem na Europa. Fernando Buschmann foi fuzilado pelos
britânicos; Patrocínio Filho, ficou preso por mais de um ano, também
devido à acusação de espionar para os alemães. E esses são os casos mais
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conhecidos. Há outros dos quais só temos indícios: segundo um espião
francês baseado em Lugano (Suíça) em 1917, o local vivia cheio de espiões,
de várias nacionalidades: ele cita brasileiros dentre eles.14
O caso mais polêmico envolvendo atividades secretas no país ocorreu quando uma bomba explodiu no mercante britânico Tennyson, em
fevereiro de 1916, matando três tripulantes. Como a bomba estava em
caixas despachadas em Salvador e como houve a fuga de um bôer (Van
Dan, aliás, Fordham, na realidade, um agente a serviço alemão, Frederick
– também conhecido como Fritz – Joubert Duquesne) e de um alemão,
Hermann Niewerth, que as haviam despachado, a suspeita recaiu sobre
eles. Pressões britânicas levaram as autoridades brasileiras a investigar
o caso, mas em maio de 1916, o Judiciário considerou o caso da alçada
britânica (pela explosão ter ocorrido em alto mar) e nenhum dos implicados (incluindo três despachantes brasileiros que embarcaram as caixas)
foi preso ou procurado.15
A legação alemã no Rio ainda utilizou uma tática de contrainformação
para se desvincular do caso. O cônsul procurou Aurelino Leal e disse que
Joubert o havia procurado pedindo dinheiro, numa “grosseira tentativa”
de comprometer as autoridades alemãs, solicitando à polícia que o prendesse (mas ele já estava provavelmente em Buenos Aires; só seria preso
nos EUA, em 1917).16
Os britânicos iniciaram então, um boicote ao porto de Salvador.
Durou até novembro, quando o jornal Correio da Manhã publicou
documentos revelando a insatisfação britânica com as autoridades brasileiras e que para reclamar do caso, um agente consular havia tentado
uma entrevista com o governador baiano, J. J. Seabra (que de tão irritado
com a intromissão britânica, teria pedido a “coronéis” correligionários
que homiziassem Niewerth em suas fazendas – o que foi feito até abril
de 1918, quando foi finalmente preso). Ainda que com o escândalo os
britânicos saíssem desgastados, o caso evidenciou a presença concreta
de agentes alemães no Brasil. 17
Com o gradual envolvimento do Brasil na guerra, a formação de um
serviço de contraespionagem passou a ser alvo de considerações. Um
editorial do Correio da Manhã considerou que “agentes ao serviço de
mais de uma potência estrangeira conseguem coligir informações de considerável valor” sem que as autoridades lhes impeçam. Pelo contrário, era
fácil espionar: bastava subir ao Pão de Açúcar e se analisava as fortalezas
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da baía de Guanabara; há hotéis e restaurantes em “pontos estratégicos”
e muitos estrangeiros prestando serviços às Forças Armadas. Antes de se
reorganizar a defesa nacional, era necessário adotar medidas administrativas e penais contra o “perigo da espionagem”.18
Não existiu legislação para criar a contraespionagem. O serviço teria
sido criado pelo presidente Wenceslau Braz, que escolhia até os agentes.
O decreto 6640, de 30 de março de 1907, dava ao presidente poder de
inspeção suprema da polícia do Distrito Federal, podendo até ordenar
despesas reservadas. Com a entrada oficial do país no conflito, a verba
veio dos créditos destinados à defesa nacional – contando a partir de então
com 70 contos de réis mensais, repassados pelo Banco do Brasil ao Palácio
do Catete, que empregava a verba segundo seus desígnios.19
O serviço de contraespionagem não atuou apenas no Rio de Janeiro,
mas em outros estados “e ainda além das fronteiras do país”. Seu alvo
inicial foram os tripulantes dos navios alemães internados, muitos dos
quais dispersos pelo país. Para informações sobre outros alvos, o serviço
requisitou os registros dos súditos alemães (uma das medidas da “Lei de
Guerra” – Lei 3.393, de 16 de novembro de 1917), feitos em todas as delegacias do país e até intimou – através das Inspetorias de Veículos, os donos
de garagens a comunicar todos os serviços prestados a alemães. Centenas
de denúncias também foram feitas. Entre outubro e novembro de 1917
(antes da censura à imprensa se tornar efetiva) noticiou-se o fechamento
de estações clandestinas e a prisão de vários suspeitos pelo serviço.20
Há poucos indícios sobre como o serviço funcionava – destacamos
um caso que parece mostrar um modus operandi. Em novembro de 1917,
foi preso o holandês Balen, do Lloyd Holandês, devido a denúncias de
que há meses ia a Jacarepaguá e Guaratiba, sempre em grupo, tirar fotos
e levantar mapas. Bandeira de Mello mandou um agente (que “disfarçou-se em roceiro”) vigiá-lo e prendê-lo. Balen só foi solto dias depois, por
intermédio do ministro da Holanda que deu garantias sobre sua pessoa.21
A atuação do serviço foi criticada na imprensa nos meses seguintes, pois
o serviço estaria “encabulado”, por não ter conseguido prender nenhum
espião. Além disso, folhetos de propaganda driblavam a censura postal
“procurando manter nos meios alemães a ilusão de que os exércitos do
kaiser caminham, realmente, para a vitória” – a solução comentava um
artigo, seria criar um serviço de contraespionagem como o dos EUA.22
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Se o serviço não prendeu nenhum espião confesso, sem dúvida, foi o
maior responsável, ao longo de 1918, por enviar mais de uma centena de
suspeitos para os campos de concentração. O serviço ainda vigiava as imediações dos campos e procurava internados que eventualmente fugiam. 23
Enfim, em relação ao Brasil, mesmo a contraespionagem dos EUA
não conseguiu muitos resultados. Quando, por exemplo, a inteligência
naval dos EUA, o Office of Naval Intelligence (ONI), enviou seu agente
Edward Breck (passando-se por um viajante suíço), em meados de 1917
para espionar a colônia alemã no Rio, ele nada conseguiu. Teve mais sorte
dentre a colônia alemã de Buenos Aires.24
Pode-se dizer que a rede de informações alemã no Brasil diminuiu suas
atividades, senão pelo serviço de contraespionagem, por todas as medidas
restritivas tomadas contra alemães e teuto-brasileiros no país: o internamento em campos de concentração, a intervenção nos bancos, a liquidação
das seguradoras, o fechamento de inúmeras associações, a neutralização
da imprensa, a obrigação dos alemães se apresentarem regularmente às
autoridades policiais e precisarem de salvo-conduto para se deslocar de
uma cidade para outra... Além da hostil vigilância dos brasileiros – sempre
lembrados pela mensagem presidencial de outubro de 1917, impressa nos
periódicos e cartazes espalhados pelo governo: “– Estejam todas as atenções alerta aos manejos da espionagem que é multiforme, e emudeçam
todas as bocas quando se tratar de interesse nacional”.
Censura e controle da informação
Se a contraespionagem pôde ser montada antes da entrada do Brasil
na guerra, a censura só pôde ser justificada a partir de outubro de 1917.
Assim como a questão da espionagem, a da censura não era nova (por
exemplo: dado o estado de sítio em abril-outubro de 1914, houve censura telegráfica e à imprensa no Distrito Federal). Assim como no caso
da espionagem, nova era a estrutura montada para ela.25
A inspiração veio dos países já em guerra. Ela era visível, por exemplo,
na correspondência censurada que vinha do exterior ou na censura sofrida
por alguns jornalistas brasileiros na Europa.26
A censura pode ser vista como mais uma das medidas restritivas em
relação aos alemães e justificada em termos de defesa nacional, mas ao
contrário da contraespionagem (voltada a alemães, teuto-brasileiros ou
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“germanófilos”), a censura atingia toda população, tornando este nível de
controle da informação uma estratégia de controle social mais amplo.27 Daí
que as criticas tenham sido mais intensas – embora o governo prometesse
que duraria apenas durante o estado de guerra, ela se estendeu um pouco
além da Conferência de Versalhes e no caso do rádio, bem além.
Mesmo provisória, sua dimensão não deixava de ser surpreendente.
Estabeleceu-se a censura prévia à imprensa (visível nos espaços em branco
que começaram a aparecer nos jornais), censura postal (visível nos carimbos de “aberto pela censura” nas correspondências) e telegráfica; além
disso, para controlar outras emissões no espectro eletromagnético, que não
passassem pelo crivo dos Correios e Telégrafos, os decretos 3296, de 10 de
julho de 1917 e 3508, de 10 de julho de 1918, declararam o controle do
governo federal sobre a radiotelegrafia e radiofonia e penalizaram aqueles
que explorassem atividades de rádio sem permissão do governo – delitos
que dependendo das circunstâncias podiam ser classificados como atos
de resistência à autoridade ou espionagem.
A censura à imprensa baseou-se na decretação do estado de sítio (no
Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) em meados
de novembro de 1917, embora desde fins de outubro – pelo Aviso de
30 de outubro do Ministério da Justiça, tivesse começado no Distrito
Federal (para impedir boatos alarmantes e informações de caráter estratégico). No Distrito Federal foi feita por funcionários do Ministério da
Justiça, nos demais estados, por funcionários das Secretarias de Justiça
e/ou policiais. Alguns estados, como Pará e Amazonas adotaram também
a censura. As penalidades podiam variar entre o confisco da edição, prisão dos jornalistas ou suspensão do jornal. A imprensa em língua alemã
foi proibida. Houve críticas pelo caráter discricionário da censura – ela
não foi formalmente legalizada, mas seguia uma orientação genérica de
controle da informação emanada pela Presidência da República (e uma
tradição de censura típica dos estados de sítio) e foi adotada por governos
estaduais onde sequer o sítio foi decretado. 28
O órgão que mais reclamou foi O Estado de S. Paulo. Segundo o
jornal, muitas matérias censuradas nada tinham a ver com a guerra, mas
com críticas às oligarquias paulistas – com muitas ligações com o capital
alemão. No caso do Amazonas a censura voltou-se contra apenas um
jornal, A Gazeta da Tarde, após este ter criticado gastos de 80 contos na
construção de uma linha de tiro pelo governo do estado. Criticou-se ainda
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a falta de critério da censura: em agosto de 1918, por exemplo, a censura
proibiu a notícia da partida da Missão Médica para a França no A Rua,
mas a permitiu em A Noite. A “uniformidade de critério da censura”
para evitar “desigualdades e violências” foi uma das teses aprovadas no
Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas, em setembro de 1918.29
A censura postal e telegráfica foi feita a partir de novembro de 1917
pelos funcionários do Ministério da Viação (que administrava os serviços
postais). Também não era totalmente nova: no governo do marechal Hermes, por exemplo, a imprensa carioca denunciava que correspondências
eram violadas e funcionários eram mantidos no telégrafo para copiar
telegramas. Havia uma censura telegráfica parcial desde a legislação da
neutralidade: telegramas cifrados eram censurados e podiam ser recusados
caso não obedecessem ao único código regulamentado.30
A censura à correspondência aos internados nos campos de concentração (já que era a Marinha que administrava os campos) e ao pessoal
embarcado da Marinha de Guerra era feita pelo Estado Maior da Armada. Embora abrangesse todo o território nacional, os postos de censura
existiam apenas no Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia,
Pernambuco e Pará. A correspondência dos e para os estados sem postos, devia passar pelos postos mais próximos. A censura estendeu-se
ao idioma: foram proibidas correspondências que não estivessem em
português, inglês, francês, italiano ou espanhol (salvo a correspondência
diplomática, que não era censurada). 31
Como o Brasil “era a chave das vias telegráficas entre todos os países
da América do Sul e a Europa”, a censura telegráfica interessou aos aliados. Em março de 1918, o país aderiu à estrutura da censura telegráfica
internacional dos aliados, sendo o serviço chefiado pelo ministro Oscar
de Teffé, do Itamaraty, auxiliado pelo tenente William Young Reid, da
Marinha dos EUA (representando ainda os governos francês e italiano).
Assim esperava-se cortar as transmissões da Alemanha para o Brasil (a mais
potente estação de rádio alemã, Nauen, tinha alcance até Pernambuco).32
A censura foi extinta parcialmente. Em 13 de novembro de 1918, uma
ordem verbal do ministro da Justiça suspendeu a censura à imprensa
no Distrito Federal (nos outros estados seria suspensa posteriormente:
em São Paulo, teve que esperar subir um novo governo em 16 de novembro). Em 31 de dezembro de 1918 foi suspensa a telegráfica. Para as
correspondências dentro do território nacional, em 25 de janeiro de 1919.
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Na Marinha acabou em 03 de fevereiro de 1919. Para as correspondências
internacionais em 22 de setembro de 1919. Ninguém se lembrou (ou quis
se lembrar) das limitações impostas às atividades de rádio.33
As críticas à censura postal acentuaram seu caráter exagerado, pois
mesmo em países como Itália e França, a censura só era exercida nas zonas
consideradas de guerra. Criticou-se também sua duração, pois em meados
de 1919, ela já havia sido extinta em muitos dos países nos quais havia sido
adotada, mas continuava no Brasil. Outras críticas apontavam os prejuízos
da censura ao comércio e o fato de que funcionários postais continuavam
a censura, mesmo após sua extinção. Dentre as mais de quatro milhões
de correspondências censuradas, 153.237 foram apreendidas.34
A polícia continuou a ser chamada no caso de possíveis suspeitos
descobertos graças à censura postal. Também continuou a censurar espetáculos teatrais e cinematográficos. Houve pelo menos um caso de
censura cinematográfica, no caso do filme Pátria e bandeira (1917): que
teve uma cena cortada, pois fazia menções que ligavam a legação suíça
com a espionagem, o que provocou protestos da legação.35
Por ironia, com o estado de guerra com a Alemanha, críticas ao governo alemão, antes proibidas, tornaram-se permissíveis: assim, a outrora proibida Águia negra foi liberada, tendo uma apresentação especial
em novembro de 1917 num teatro carioca. Segundo notícias da época,
a curiosidade do público em torno da peça fez com que as vendas de
ingressos se tornassem “extraordinárias”. 36
Legados
Com o fim da guerra coincidindo com o do governo Wenceslau
Braz, o serviço de contraespionagem foi aparentemente desmontado.
Ao longo de 1918, o Corpo de Segurança havia voltado atenções para o
movimento anarquista, cujas agitações dentre os marítimos (greves de
estivadores, manifestações de marinheiros que não queriam ir para áreas
de bloqueio submarino, encalhes e incêndios em navios e instalações
portuárias, etc.) afetavam as contribuições do país aos aliados. Então,
o Corpo de Segurança começou a trabalhar com a hipótese de que os
anarquistas “estejam trabalhados por alemães”, vinculando o anarquismo
a uma ameaça à segurança nacional. A ocorrência da rebelião anarquista
em novembro de 1918, reforçou essa vinculação mais ainda. 37
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Antes de ser esquecido, o Serviço de Contraespionagem propiciaria
um breve escândalo em meados de 1919. Houve denúncias relativas ao
desvio de verbas do serviço, algumas das quais, teriam sido direcionadas
para o jornal O País, tornando-o favorável ao governo. Apesar de alguns
debates na Câmara dos Deputados, o assunto foi logo abafado.38
De qualquer forma, o Serviço de Contraespionagem pode ser entendido como a primeira formatação de uma polícia (explicitamente) política.
Como fez parte do Corpo de Segurança, há toda uma linhagem que o liga
a seus sucessores: a 4ª delegacia auxiliar (1922), a Delegacia Especial de
Segurança Política e Social (1933) e o Departamento Federal de Segurança
Pública (embrião da atual Polícia Federal) em 1944 e que tinha dentre
suas preocupações iniciais a contraespionagem.39
A censura sequer desapareceu de todo. Às limitações legais a estações
de rádio deve ser creditado, por exemplo, o atraso no desenvolvimento da
radiodifusão no país. O início das rebeliões tenentistas e a continuidade
das agitações envolvendo o movimento operário levaram a uma Lei de
Imprensa em 1923, cerceando a liberdade de imprensa até então existente e tornando a censura mais comum. As rebeliões nos anos 1920 e 30,
também levariam a vários períodos onde a censura à imprensa, postal e
telegráfica seriam adotadas. Os estados de sítio, de guerra e as ditaduras
que se sucederam ao longo do século XX no Brasil e a utilização por
esses governos da censura foi tão ampla que seriam necessários alguns
outros artigos para descrevê-la.
Até que ponto a experiência do Brasil na Primeira Guerra inspirou
diretamente os desenvolvimentos posteriores é uma questão em aberto
– embora a proximidade entre determinados eventos e a possibilidade
de que determinadas personalidades envolvidas num primeiro momento ainda estivessem ativas posteriormente, possam vir a indicar
relações entre ambos. Mas as experiências legais e institucionais para
o controle da informação pelo Estado brasileiro devem ser levadas em
consideração quando se trata dessa questão numa perspectiva mais
ampla da história brasileira.
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Notas
1. Impossível não fazer referência à “dimensão dromológica do poder” de Paul Virilio:
“Aquele que tem a velocidade tem o poder”. Virilio, P. Guerra pura. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 49-50.
2. Chatterton, E. K. Les coureurs de mers. Paris: Payot, 1931. p. 55-59.
3. Abranches, D. de. A ilusão brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. p. 10.
Na p. 251, descreve a rede de espionagem britânica no Brasil. Chack, P. La guerre des
croiseurs. Paris: Société d´Editions, 1923, v. II; p. 27. Tuchman, B. O telegrama Zimmermann. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, cap. 01.
4. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Relatório (1914 a 1915). Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1915. p. 41-89.
5. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/
dezembro 2011. p. 35-36.
6. Leal, A. Polícia e poder de polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. p. 172; 219224. “Les Cadeaux de Noel”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 de julho de 1916,
p. 04. “A representação do ‘Les Cadeaux de Noel’”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15
de agosto de 1916, p. 09. “Peças anunciadas”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de
novembro de 1917, p. 08.
7. Luxburg: Luebcke, F. The Germans in Brazil. Baton Rouge/London: Louisiana State
University Press, 1987. p. 156.
8. “Contra os espiões alemães?” A Razão, Rio de Janeiro, 08 de abril de 1917, p. 01. Segundo
a notícia, o serviço foi pensado na noite do dia anterior numa reunião entre Bandeira de
Mello e o Dr. Machado Guimarães, para facilitar a ação da polícia em caso de emergência.
9. Gustavo Moncorvo Bandeira de Mello (c. 1879-1946) participou da Revolta da Armada como cadete do Exército, embarcado no cruzador legalista Guanabara e combateu
na Ponta da Armação. Em 1907 era alferes do 2º Batalhão da Polícia Militar. Em 1909,
como capitão, foi inspetor da Guarda Civil do Distrito Federal. Em 1910, na Secretaria da
Polícia Militar, foi voluntário para a guarda do Arsenal de Marinha durante a Revolta do
Batalhão Naval. Em 1914 era diretor da Escola da Polícia: foi então, promovido a Major.
Em 1915, tomou posse como inspetor do Corpo de Segurança Pública (em meio a um
escândalo envolvendo a inspetoria anterior). No fim desse ano e no ano seguinte descobriu
as conspirações para implantar no país uma república parlamentarista, conhecidas como
“Revolta dos Sargentos”. Em 1919, promovido a tenente-coronel, deixou o Corpo de
Segurança (interinamente entregue ao comissário Júlio Ribeiro, chefe da Seção de Ordem
Social do Corpo e principal policial envolvido no desbaratamento da rebelião anarquista
de 1918) e foi para o comando do 2º Batalhão da Polícia Militar, tendo se afastado para
uma comissão que redigiu o Guia do Distrito Federal. Em abril de 1922, uma intriga do
novo chefe do Corpo, o Major Carlos Reis, quis indispô-lo com o General Silva Pessoa,
que em resposta o recolocou no comando do 2º Batalhão... Daí foi para o 5° Batalhão da
Polícia Militar. Em 1924, comandava o 4° Batalhão da Polícia Militar e chefiava o serviço
de defesa e pesquisas da seguradora Lloyd Atlântico. Em 1926, voltou para o Corpo (agora
4ª Delegacia Auxiliar), criticando seu caráter de polícia política em detrimento da investigação criminal; mas, reforçou o sistema de vigilância, utilizando mais a censura telefônica
e ao que tudo indica agentes femininas. Ainda propôs uma “rede federal de vigilância
política” que se estendesse a outros estados (como nos tempos da contraespionagem). Os
comunistas ainda o acusaram de manipular verbas secretas e sindicalistas amarelos. Em fins
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91
de 1926, alegando os “dissabores” da profissão se afasta da delegacia. Em 1927, de novo
comandava o 5º Batalhão da Polícia Militar; mas em dezembro, o militante comunista
Astrogildo Pereira (que havia sido preso por ele durante a greve da Cantareira em 1918)
o viu em Corumbá, na fronteira com a Bolívia, alerta para movimentações da Coluna
Prestes (o próprio Astrogildo iria se entrevistar com L. C. Prestes). Teria conseguido ele
seu grupo de vigilância federal? Ao que tudo indica sim, pois em novembro de 1929,
estava em Curitiba numa comissão com 40 agentes cariocas, um dos quais, num comício
da Aliança Liberal, matou um oficial do Exército. É uma questão em aberto se esse era
um serviço especial, como a contraespionagem, ligado à 4ª Delegacia Auxiliar ou uma
divisão operativa da embrionária inteligência federal, o Conselho de Defesa Nacional.
Em novembro de 1930 (até outubro comandava o 2º Batalhão) foi preso próximo a um
incidente no quartel-general do Corpo de Bombeiros, onde quatro soldados morreram.
Boatos o acusaram de tentar levantar o 5º Batalhão (com apoio de 400 estivadores e 1000
investigadores). Na sequência, pediu reforma (Carlos Reis, seu antigo desafeto, também
foi reformado) e foi exonerado do magistério da Escola de Polícia. Em 1931, fundou uma
agência de investigação, o Instituto Informator. A partir de 1934, chefiou o Serviço de
Informações do Departamento Nacional do Café, lidando com desfalques. Fez parte da
Associação Mantenedora do Orfanato Osório e do Clube dos Oficiais da Polícia Militar
(foi um dos criadores da Revista de Polícia desse órgão em 1925). Fez parte da comissão
que publicou os dois volumes da História da Polícia Militar do Rio de Janeiro (1925). Escreveu A Polícia Militar Federal. Contribuição para sua História de 1808-1909 (1909) e
estudos geográficos. Em 1971, um prêmio com seu nome foi dado aos melhores cadetes
da Academia da Polícia Militar.
10. Uma conspiração monarquista no Rio? Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1915, p. 01. O fato do dia – Mais uma conspiração. Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 07 de abril de 1916, p. 03.
11. França, T. C. N. Self Made Nation: Domício da Gama e o pragmatismo do bom senso.
Brasília: UNB, 2007. Tese de Doutorado, p. 279. Brasil. Ministério da Guerra. Relatório
(1900). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. p. 157. O código da Armada foi estendido ao Exército em 1899. A Lei 3.397, de 24 de novembro de 1888, que estabeleceu a
despesa geral do Império, no seu art. 3º, item 06, destinou 120 contos para as “despesas
secretas da polícia”.
12. O Brasil está cercado de espiões. A Noite, Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1913,
p. 01. Apesar de tudo, o projétil foi utilizado pela Marinha do Brasil, sendo chamado de
projétil “José Felix”. Gama, Arthur Oscar Saldanha da. A Marinha do Brasil na Primeira
Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Capemi Editora e Gráfica Ltda., 1982, p. 71.
13. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Relatório (1914 a 1915). Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1915. p. 64.
14. Vinhosa F. L. Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: IHGB,
1990. p. 64-68. Miller, M. Shangai on the Métro. Berkeley: University of California
Press, 1995. p. 49-50.
15. Vinhosa F. L. Teixeira. Op. cit., p. 47-50. O “Tennyson”. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 04 de março de 1916, p. 03. “Um caso velho”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
10 de maio de 1916, p. 04. Só em março de 1917, um promotor resolveu que o caso tinha
provas claras de “criminalidade”: os três despachantes brasileiros – únicos ao alcance da
lei, foram os primeiros a serem julgados, mas foram absolvidos. O caso do “Tennyson”.
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Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de março de 1917, p. 03. O caso do “Tennyson”. O
Imparcial. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1918, p. 02.
16. O Caso do “Tennyson”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1916,
p.03. Duquesne se tornou lendário: há até um verbete sobre ele na Wikipédia. Não encontrei referências na imprensa carioca de que o Corpo de Segurança possa ter prendido
cúmplices de Duquesne (que A. Leal sabia terem vindo com ele de Salvador para o Rio,
como afirmou na reportagem supracitada), mas num livro escrito durante a guerra pelo
inspetor Tunney, da polícia de Nova York, há referências à prisão de um tal Bauer, no
Rio de Janeiro, com papéis comprometedores de Duquesne. Tunney prenderia Duquesne logo após a entrada dos EUA na guerra (ele tentava então arranjar um emprego no
serviço de propaganda de guerra dos EUA!). Tunney, T. J. e Hollister, P. M. Throttled!
Boston, Small, Maynard & Comp. Publishers, 1919, p. 237-242. Ele simulou então uma
paralisia para ser transferido para um hospital, de onde fugiu em 1919. Mandou depois
uma carta a um amigo dizendo que fugira de avião para o México. “Um dos incendiários
do ‘Tennyson’ fugiu da prisão”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919,
p. 01. Como nos filmes – o célebre capitão Fritz fugiu para o México. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1919, p. 07.
17. O caso do “Tennyson” – Documentos Sensacionais. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
18 de novembro de 1916, p. 01-02. O caso do Sr. Beresford. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 19 de novembro de 1916, p. 01. A boicotagem da Bahia. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 20 de novembro de 1916, p. 01. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de novembro
de 1916, p. 01. Niewerth era funcionário da Siemens em Salvador, o que o tornava próximo à rede de informações alemã no Brasil, pois a empresa era ligada aos serviços de rádio
alemães por todo o mundo. Ele teria sido preso graças à colaboração da Liga Pró-Aliados
da Bahia e também por que a Lamport & Holt teria oferecido uma recompensa sobre o
seu paradeiro. Para se defender das acusações de que teria ajudado a homiziar Niewerth,
o chefe da polícia baiana, Álvaro Cova alegou que sempre tinha secretas à procura dele e
que um tal Schirdler (ou Schroeder) o mantinha a par do paradeiro de Niewerth. E que
José Rodolpho, o fazendeiro que o homiziava caluniava J. J. Seabra, pois havia uma teia
de parentesco entre ele e a mulher brasileira de Niewerth, Evangelina. Em seu primeiro
julgamento foi condenado a 12 anos e nove meses de prisão, com trabalhos forçados (uma
penalidade prevista para espiões segundo o Código Penal da Armada). Mas em 1919, num
novo julgamento, foi inocentado. Ao que tudo indica, o resultado teria sido influenciado
por A. Cova, que no final do ano tentou usar Niewerth numa tentativa de atingir a oposição: Niewerth foi preso e declarou ter sido convidado pelos chefes da oposição para
fabricar bombas como a usada no “Tennyson” contra o governo. A oposição desmascarou
a tentativa e Niewerth continuava esperando um habeas corpus para sua soltura no início
de 1920, quando sua história se perdeu em meio à confusão das lutas políticas baianas de
então. O caso do vapor “Tennyson”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de abril de 1918,
p. 07. Da Bahia. O País. Rio de Janeiro, 03 de junho de 1918, p. 03. O epílogo de um
drama no mar. A Tarde, Salvador, 07 de julho de 1918, p. 01. O atentado do “Tennyson”.
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 14 de março de 1919, p. 05. Por instinto de conservação.
O País. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1918, p. 01. Foi absolvido o alemão Niewerth. A
Rua. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1919, p. 05. A proteção do governador ao autor do
atentado do “Tennyson”. O Imparcial, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1919, p. 01. O
governo baiano engendra uma conspiração. O Imparcial, Rio de Janeiro, 28 de dezembro
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de 1919, p. 14. Um protesto do chefe de polícia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 de
dezembro de 1919, p. 08. O alemão Niewerth novamente em foco. Correio da Manhã. Rio
de Janeiro, 21 de fevereiro de 1920, p. 03.
18. A propósito de um alarme. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1917, p. 01.
19. Autêntico e oportuno. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919, p. 02.
As despesas de guerra no governo do Sr. Wenceslau. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,
31 de maio de 1919, p. 02.
20. No C. de Segurança – a última ordem de serviço do inspetor Bandeira de Mello.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1919, p. 08. Os alemães presos vão ser
internados. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1917, p. 03. O registro
dos súditos alemães. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1917, p. 01.
Medidas de prevenção. O País. Rio de Janeiro, 02 de novembro de 1917, p. 02. Em torno
da espionagem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1917, p. 07.
21. Um funcionário do Lloyd Holandês preso como espião. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 05 de novembro de 1917, p. 03. As denúncias nesse caso partiram de A Noite, que
recebia muitas cartas com denúncias e as repassava à polícia; o jornal reclamou quando
da soltura de Balen e seus “cúmplices”, como Jorge Schleiffer, alemão, professor da
Escola Politécnica, que residia com Balen e revelava suas fotos; foi solto por solicitação
do influente político Joaquim Murtinho. A espionagem. A Noite. Rio de Janeiro, 05 de
novembro de 1917, p. 01. A espionagem – o vigário de Guaratiba fugiu. A Noite, Rio de
Janeiro, 06 de novembro de 1917, p. 01. Espionagem. A Noite, Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1917, p. 02. Um boche perigoso que está em liberdade. A Noite, Rio de Janeiro,
07 de novembro de 1917, p. 03. A imprensa de guerra britânica, de qualquer forma, se
referiu ao caso como o de uma tentativa dos alemães comprarem terras para estabelecer
uma base secreta de submarinos em Guaratiba...
22. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1918, p. 01. A propaganda alemã. O
País, Rio de Janeiro, 21 de abril de 1918, p. 01.
23. Queiroz, Tito H. S. Campo de concentração São Gonçalo: a Ilha das Flores, 19171919. Revista Científica FAP. S. Gonçalo – v. 03, nº 01, 2011, p. 100-104. Em 1917, 153
suspeitos alemães foram enviados para o campo de concentração da Ilha das Flores.
Além do Serviço de Contraespionagem, a Marinha possuía um embrionário serviço de
informações, baseado nas capitanias dos portos, o Exército também possuía um serviço,
mas devia ser mais embrionário ainda; não se sabe, se tais serviços se comunicavam com
o Serviço de Contraespionagem.
24. Heiner, G. Edward Breck, Anglo-saxon Scholar, Golf Champion and Master Spy.
In: A Fetschrift for Hiroshi Yonekura on the Occasion of his 65 th Birthday. Tokyo: Eichosha,
2007, p. 43-44. Foi Breck quem conseguiu o telegrama Luxburg, entregue ao embaixador americano. Há fontes, porém, que apontam que os telegramas foram conseguidos
pela inteligência britânica.
25. O Estado de sítio. O País, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1914, p. 02.
26. Queiroz, Tito H. S. Um correspondente de duas guerras mundiais: Raul Brandão & O
Correio da Manhã. Comum. Rio de Janeiro - v. 15, n. 34, julho/dezembro 2013. p.78, 80.
27. Por outro lado, com o sítio, o Corpo de Segurança pretendia, além dos espiões,
“sanear” o Rio “de todos elementos perniciosos”: falsos mendigos, cáftens e o jogo do
bicho: dividindo-se em uma seção preventiva e uma repressiva. As medidas da polícia
durante o estado de sítio. O Imparcial, Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 06.
94
Comum 36 - jul./dez. 2014
Um editorial chamava a atenção de que o governo devia se precaver não só contra os
alemães, mas também “contra as tentativas subversivas de agitadores revolucionários”,
ou seja, os anarquistas. “As providências do governo”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
29 de outubro de 1917, p. 01. Os índices de ocorrências policiais (jogo e vadiagem) na
cidade do Rio, apresentados por Marcos Bretas, parecem apontar que a precedência do
trabalho político implicou numa atenção menor dada à criminalidade comum em 1917 e
1918. Bretas, M. Ordem na cidade. Rio de Janeiro, Rocco, 1997. p. 88-89.
28. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1917, p. 02. Brasil-Alemanha.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1917, p. 06. Correio da Manhã. Rio de
Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 02. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 11 de
novembro de 1917, p. 02. Policial. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 de janeiro de 1918,
p. 03. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1917, p. 02. Telegramas dos
Estados. O País, Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1917, p. 03.
29. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/
dezembro 2011, p. 31; p. 48 n. 42. E o Amazonas não toma juízo. A Noite, Rio de Janeiro,
25 de março de 1918, p. 03. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1918, p.
02. Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas – Algumas das Teses Aprovadas. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1918, p. 06.
.
30. Réu de todos os crimes. A Noite, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1914, p. 01. A
censura no telégrafo. A Noite, Rio de Janeiro, 15 de junho de 1917, p. 04.
31. Queiroz, Tito H. S. Campo de Concentração São Gonçalo: a Ilha das Flores, 19171919. Revista Científica FAP. S. Gonçalo – v. 03, n. 01, 2011, p. 104. Ao que tudo indica, o
serviço de censura da Marinha foi estabelecido em maio de 1918: GAMA, A. O. Saldanha
da. Op. cit., p. 48. A repartição postal. Pacotilha, São Luís, 11 de dezembro de 1917, p. 01.
32. A censura telegráfica internacional. Pacotilha, São Luís, 16 de agosto de 1918, p. 02.
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 de abril de 1918, p. 02.
33. Novas & Ecos. A Rua, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1918, p. 02. Foi suspensa
a censura da Imprensa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1918, p. 08.
Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1918). Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1920, p. 220. A censura postal. A Noite, Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1919,
p. 03. Ainda a censura postal na Marinha. A Noite, Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 1919,
p. 03. Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1919). Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1921, p. 483.
34. Albuquerque, Medeiros e. A censura. A Noite, Rio de Janeiro, 22 de maio de 1919,
p. 01. Ecos & Novidades. A Noite, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1919, p. 02. Brasil.
Ministério da Viação e Obras Públicas. Relatório (1919). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1921, p. 484.
35. Queiroz, Tito H. S. Guerra e imprensa. Comum. Rio de Janeiro - v. 15 n. 33, julho/
dezembro 2011, p. 48, n. 42.
36. Peças anunciadas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917, p. 08.
37. O incêndio do “Barbacena”. A Noite, Rio de Janeiro, 06 de abril de 1918, p. 03. A
tese de que as greves eram fruto da “intervenção oculta da Alemanha” foram cristalizadas
por Pandiá Calógeras na sua síntese de 1930, Formação histórica do Brasil: Dulles, J. W. F.
Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 59.
38. Autêntico e oportuno. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1919, p. 02.
O escândalo foi aumentado graças ao depoimento de Aurelino Leal, dizendo que a verba
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95
de 70 contos não ia para ele, chefe de polícia, mas para o Catete, onde o presidente os
distribuía para “os jornalistas vendidos desta terra e com seus protegidos da política”. A
sua verba secreta Leal a usou só na polícia. W. Braz negou tudo.
39. Britto, A. A sala dos detidos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2011. p. 57, 69. Huggins,
M. K. Polícia e política. São Paulo: Cortez, 1998. p. 59-76.
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Livros, teses e artigos
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VIRILIO, Paul. Guerra pura: a militarização do cotidiano. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Comum 36 - jul./dez. 2014
97
Periódicos
A Noite.
A Razão.
A Rua.
A Tarde.
Correio da Manhã.
Jornal do Brasil.
O Estado de São Paulo.
O Imparcial.
O País.
Pacotilha.
Resumo
O texto analisa medidas de controle da informação adotadas pelo governo brasileiro durante a Primeira Guerra Mundial, especificamente,
serviços de contraespionagem e censura.
Palavras-chave
Primeira Guerra Mundial – Contraespionagem – Censura.
Abstract
This text analyses information control measures adopted by the Brazilian government during World War I, specifically, services of counterespionage and censorship.
Keywords
World War I – Counterespionage – Censorship.
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Comum 36 - jul./dez. 2014
DOSSIÊ
Cem anos de relações públicas no Brasil
A Revista Comum reúne neste dossiê temático três reflexões que possuem
como ponto de convergência o fato histórico das comemorações dos 100 anos
da atividade de relações públicas no Brasil. Tendo como data marco a instalação
do primeiro departamento de relações públicas no país em 1914, na São Paulo
Tramway and Power Company – empresa de energia que viria a se denominar
Light –, a área passou por grandes transformações ao longo de um século. De
ampla penetração na vida das organizações, públicas e privadas, as relações
públicas se desenvolveram como campo de conhecimento acadêmico e âmbito de exercício profissional, chegando ao novo milênio com uma série de
desafios. Para investigar esse momento histórico, o dossiê reproduz um ensaio
no qual o professor Manoel Marcondes Machado Neto faz breve comentário
sobre a evolução da atividade, analisando suas fases e revendo suas mudanças
de alinhamento mercadológico. A seguir, Fernando Gonçalves e Alessandra
Maia analisam criticamente paradigmas da comunicação organizacional e das
relações públicas em confronto com a teoria do ator-rede, de Bruno Latour,
procurando encontrar novas visões sobre o papel das tecnologias de comunicação e informação nas organizações. Por fim, os professores do curso de
relações públicas das Faculdades Integradas Hélio Alonso promovem um
exercício de análise coletivo sobre o seu projeto político-pedagógico, repensando suas propostas fundamentais e projetando seu futuro.
Comum 36 - jul./dez. 2014
99
Reconhecimento social, relacionamento
com stakeholders, relevância no mercado e
gestão de reputação. Busca e resultado de
uma só formação no Brasil: relações públicas
Manoel Marcondes Machado Neto
“Toda profissão tem um propósito moral. A Medicina tem a Saúde.
O Direito tem a Justiça. Relações Públicas têm a Harmonia – a harmonia social.”
(Seib; Fitzpatrick apud Simões, 2006)
Apresentação
Em 2014, a atividade de relações públicas completa 100 anos de Brasil.
Implantado na Cia. Light de São Paulo em 1914, sob a gestão do engenheiro
alagoano Eduardo Pinheiro Logo (1876-1933), o primeiro departamento
de relações públicas externava a preocupação da companhia monopolista
canadense em prestar satisfações aos seus clientes.
Este marco histórico coloca o Brasil entre os pioneiros na área, uma
vez que a atividade teve seu nascedouro apenas oito anos antes nos Estados Unidos, sob a batuta de Ivy Lee, ex-jornalista (detalhe vital, uma
vez que é impossível exercer-se as duas funções ao mesmo tempo – por
antiético conflito de interesses).
Tal pioneirismo manifesta-se novamente em 1953, com a primeira
especialização ministrada na EBAP/FGV, e em 1954, com a criação da
Associação Brasileira de Relações Públicas (ABRP), entidade que seria
crucial para a regulamentação da profissão apenas 13 anos mais tarde, em
11 de dezembro de 1967, com a Lei 5.377 (a qual institui como função
privativa de relações públicas “a comunicação de caráter institucional”).
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 100 a 107 - julho / dezembro 2014
100
Comum 36 - jul./dez. 2014
1914 - 2014: a busca da harmonia social em sete estações
O segredo é um instrumento de conspiração e não deveria ser
um sistema normal de governo. Sem publicidade, nenhum
bem é permanente; sob a publicidade, nenhum mal continua. Jeremy Bentham [filósofo e jurista inglês (1748-1832)],
pioneiro no uso do termo “deontologia” (“deon”, dever +
“logos”, ciência) para definir o conjunto de princípios éticos
aplicados às atividades profissionais (Keen, 2012).
1a Estação: divulgação
Em 1914, a Cia. Light, em São Paulo, seguia o modelo criado por Ivy Lee,
em 1906, de divulgação (publicity), nos jornais, de fatos (internos) no interesse
de clientes. Sua empresa, uma assessoria independente, pregava o seguinte:
Declaração de Princípios: Este não é um serviço de imprensa
secreto. Todo o nosso trabalho é feito às claras. Nosso objetivo
é fornecer notícias no interesse de clientes, mas esta não é uma
agência de publicidade. Nosso lema é acurácia. Mais detalhes
sobre qualquer assunto tratado será fornecido imediatamente.
Todo editor será assistido atenciosamente na verificação direta de
qualquer declaração feita. Nosso plano é, franca e abertamente,
em nome dos negócios que representamos perante as instituições
públicas, abastecer a imprensa e o público de pronta e precisa
informação. Ivy Lee & Associates (Machado Neto, 2014).
Ou seja; de Bentham a Lee (e Pinheiro Lobo), o conceito e a demanda
por transparência que a publicidade necessariamente trazia aos atos de
governo passava também a fazer parte dos requisitos impostos às empresas
particulares! É a era dos primeiros setores de public affairs nas companhias.
“Instituições são criadas para reduzir as incertezas que surgem do desconhecimento das regras do jogo, ou seja, da informação incompleta em relação
ao comportamento dos indivíduos em sociedade e da sua capacidade de
processar, organizar e utilizar a informação” (North, 1990).
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2a Estação: relações com a mídia
Media relations: com o desenvolvimento do capitalismo, da democracia e
da imprensa, o modelo de relações públicas como “relações com a imprensa”
e, depois, de “relações com a mídia” se estabelece. Entre 1927 e 1953, as três
maiores empresas (hoje) globais de relações públicas são criadas nos Estados
Unidos. São elas: Hill & Knolwton, Edelman e Burson-Marsteller.
Definição - Conrerp1 (2010): Relações Públicas são, mais que
uma profissão e um conjunto de atividades, escolha de formação.
Formação esta que privilegia a multidisciplinaridade, a visão holística da comunicação e o entendimento de que as organizações
constituem-se de relacionamentos que demandam, sempre, aprimoramento e gestão. Relações com o público interno, a imprensa,
a comunidade, governos nas três esferas, agências reguladoras,
investidores, consumidores; são denominações atuais para as funções que a formação em Relações Públicas sempre privilegiou com
vistas à tão almejada cidadania corporativa (Machado Neto, 2014).
3a Estação: controle da informação
A Guerra Fria enseja outro papel (sem abandono do tradicional “relacionamento com a imprensa”), mais relacionado ao lobbying, para relações públicas
– o controle da informação. No Brasil, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Getulio Vargas seguia este princípio e durou de 1939 a 1945,
quando foi substituído pelo (hoje extinto) SNI. O controle da informação
como filosofia continuaria a inspirar as relações públicas governamentais e de
empresas estatais brasileiras de todo o período militar (1964-1985).
O que caracteriza más práticas de comunicação institucional e o
mau exercício profissional nas relações públicas? Os conselhos
profissionais de Medicina, de Engenharia e de Advocacia protegem
a cidadania de maus médicos, maus engenheiros e maus advogados.
No caso de más práticas de comunicação institucional, indaga-se:
- Quem protege o cidadão?
a) ... de um resultado de pesquisa de opinião divulgado incompleto?
b) ... de uma concessionária de serviços públicos que desdiz os fatos?
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c) ... de uma empresa que engabela o seu acionista com a publicação de “fato relevante” insatisfatório ao público, “informes
publicitários” vagos, “relatórios” que impõem aos acionistas
minoritários um discurso não substantivo?
d) ... de uma ONG que sequer publica os seus estatutos, mas
põe-se a levantar fundos? e, e) ... finalmente; o que dizer de
tantos comunicados que nos chegam e aos quais nós, profissionais da comunicação institucional, atribuímos credibilidade
zero, mas contra os quais o cidadão desavisado não tem defesa?
(Doutrina RP, 17/08/2014).
4a Estação: profissão regulamentada
Com o surgimento, em 1968, da Assessoria Especial de Relações Públicas
(AERP), junto à Presidência da República, e do Sistema Conferp-Conrerp,
em 1969, a profissionalização em torno do conceito de “comunicação social”
se estabelece. É a primeira fase da profissão regulamentada.
Quando sabemos que na empresa moderna as operações são
voltadas para a clientela, verificamos que toda a sua atividade
envolve um constante problema de comunicação social, quer
no sentido amplo, quer no sentido mais estrito do termo,
traduzido na expressão relações públicas (Vasconcelos, 1977).
5a Estação:profissão liberal
Em 1979, Saïd Fahrat assume a Secretaria de Comunicação Social da
Presidência da República; em 1980, surge o Prêmio Opinião Pública; e em
1986, Margarida Kunsch publica seu conceito de comunicação integrada:
relações públicas firma-se como profissão liberal.
O conceito de legitimidade, a legitimidade das decisões, a promessa da utopia de uma sociedade justa são critérios que ancoram,
ética e esteticamente, a atividade de Relações Públicas. Sem essa
premissa, essa atividade jamais alcançará, no plano de horizonte,
sua justificativa de ser útil à sociedade. Daí por que se deve abandonar os velhos refrões de formar imagem, compreensão mútua,
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boa vontade, e fundamentar a atividade de Relações Públicas
nestes valores (Simões, 2006: 113).
6a Estação: transparência nos negócios
Vera Giangrande (antes consultora independente em sua própria empresa,
a Inform), assume o cargo de ombudsman da rede Pão de Açúcar em 1993;
Sidinéia Freitas, presidente do Conferp, lidera o Parlamento Nacional de
Relações Públicas a partir da Carta de Atibaia (1997); e em 2002 é expedida a
Resolução Normativa 43 do Conferp: relações públicas tornam-se, conceitualmente, o vetor comunicacional da transparência nos negócios.
As organizações prezam pela sua imagem no mercado. Elas
buscam preservar e consolidar sua imagem junto a clientes e
parceiros e, se ocorrer alguma crise, precisam de alguém que
as ajude a manter uma imagem de respeito intacta junto à
imprensa. Os objetivos da comunicação institucional consistem em conquistar espaço, manter credibilidade e aceitação
de produtos e ações (Pinho, 1990).
Discussões havidas entre 2010 e 2011 no âmbito da Comissão Acadêmico-Científica do Conrerp1, sob a coordenação do conselheiro Ricardo Benevides;
e da Comissão de Fiscalização do mesmo Conrerp1, sob a coordenação de
Marcelo Ficher, foram por nós sistematizadas com vistas ao documento que
seria encaminhado pelo Conselho à Comissão de Especialistas do MEC, encarregada das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (que acabaram sendo
expedidas em setembro de 2013) (Ministério da Educação, 12/09/2013). Eixos
programáticos de conteúdo multidisciplinar foram construídos em torno de
quatro grandes demandas das organizações (empresas, entes estatais e ONGs):
reconhecimento, relacionamento, relevância e reputação. Sistematizados num
composto, denominado “4 Rs das relações públicas plenas”, foram objeto de
artigo (Machado Neto, 18/08/2014) e, depois, livro (Machado Neto, 2012),
desdobrando cada “R” em 4 táticas, num total de 16 frentes de ação a serem
gerenciadas como caminho para a tão demandada transparência nos negócios.
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7a Estação: governança corporativa
Com a extinção do conceito de comunicação “social” pelo Ministério da
Educação, na esteira das novas Diretrizes Curriculares Nacionais expedidas
a 27 de setembro de 2013 para os bacharelados em relações públicas e jornalismo, a área de relações públicas, agora autônoma e mais independente,
torna-se ferramental reconhecido para a governança corporativa, tanto
pública quanto privada e para as organizações do terceiro setor. Iniciativas
como o coletivo “Todo Mundo Precisa de um RP” e a Sociedade Educativa
Observatório da Comunicação Institucional protagonizam “uma virada”
para o segundo século – e novo momento – das relações públicas no país,
centralmente ligada à promoção dos movimentos sociais e de indivíduos
que demandam gestão de sua imagem pública.
Por ter, basicamente, a mesma formação que jornalistas e publicitários, o relações-públicas tem condição insuperável de –
com distanciamento – fazer a leitura crítica da mídia, uma vez
que não se encontra imerso em seu processo produtivo. Como
jornalistas e publicitários poderiam – fora do ambiente acadêmico – refletir e discutir suas práticas à luz do interesse público
legítimo? O relações-públicas é perfil talhado para esse trabalho
de levantamento e ausculta, no interesse de grupos sociais e da
cidadania em geral.1
Cem anos depois, as relações públicas brasileiras ganham novo impulso,
novo lugar e novas responsabilidades.
Muito além das discussões sobre a reserva de mercado que a legislação
em vigor sustenta, apesar da fragilidade da fiscalização do exercício profissional, a formação superior na área, bem como todo o campo de pesquisa
alcançado por aqueles que a ela se dedicam, reserva às relações públicas
um papel crucial em um mundo conflagrado politicamente e de crescente
desigualdade, do ponto de vista econômico.
E é justamente no prêmio Nobel de Economia de 1993, Douglass North,
que buscamos inspiração para seguir adiante, acreditando que só o fortalecimento contínuo e permanente das instituições pode levar a sociedade a um
verdadeiro progresso. Discute-se, hoje, até o chamado “crescimento zero”
como alternativa de estancar o esgotamento do planeta. E o institucionalismo
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de North nos oferece um... norte, na contramão absoluta entre seus pares:
“decisões econômicas devem-se menos à econometria que à cultura dos
decisores (...) e tal caldo cultural deve-se à solidez das instituições que
forjam os cidadãos e seu meio (...)” (North, 1990). Lutemos, pois, por
instituições sólidas. De outro modo, em nossa opinião, não chegaremos
a ser algo mais que a incensada “8a economia do planeta” que apresenta
padrões de 84a nação em Índice de Desenvolvimento Humano (O Globo,
18/08/2014) e 116a. no ranking “Doing Business”.
Nota
1. Machado Neto, M. Marcondes. Palestra na Universidade de Santa Cruz do Sul, 2014.
Referências
DOUTRINA RP. “O que caracteriza más práticas de comunicação institucional e mau exercício profissional das relações públicas”.
Disponível em: < http://wwwrrpp.wix.com/doutrina-rp#!pergunta-mais-frequente-1/crmg>. Acesso em: <17/08/2014>.
DOING BUSINESS. “Ease of Doing Business in Brazil”. Ranking. Disponível em:
< http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil/>. Acesso
em: <18/08/2014>.
KEEN, Andrew. Vertigem digital. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
KUNSCH, Margarida M. K. Planejamento de relações públicas na comunicação
integrada. São Paulo: Summus, 1986.
MACHADO NETO, M. Marcondes. A tão demandada transparência nos
negócios: uma proposta de relações públicas para uma questão transdisciplinar
da administração”. Artigo disponível em:
< http://www.litteraemrevista.org/ojs/index.php/Littera/article/view/85> .
Acesso em: <18/08/2014>.
__________. A transparência é a alma do negócio: o que os 4 Rs das relações públicas plenas
podem fazer por você e sua organização. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2012.
__________. Relações públicas e marketing: convergências entre comunicação e administração. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2008.
NORTH, Douglass. Institutions, Institutional Change and Economic Performance.
Nova York: Cambridge University Press, 1990.
O GLOBO. Índice de Desenvolvimento Humano. Gráfico. Disponível em:
< http://oglobo.globo.com/infograficos/idh/>. Acesso em <18/08/2014>.
106
Comum 36 - jul./dez. 2014
PINHO, José Benedito. Propaganda institucional: usos e funções da propaganda em
relações públicas. São Paulo: Summus, 1990.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso
de Relações Públicas. Processo n. 23000.013995/2010-54. Brasília: Conselho
Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior, 2013. DOU, Seção 1,
12/09/2013 (homologação).
SIMÕES, Roberto Porto. Relações públicas: função política. São Paulo: Summus, 1995.
__________. Informação, inteligência e utopia: contribuições à teoria de relações públicas.
São Paulo: Summus, 2006.
VASCONCELLOS, Manoel Maria de. Marketing básico. Rio de Janeiro: Conceito Editorial, 2006.
Resumo
Um percurso fundamentado nos avanços conceituais e práticos da área
de relações públicas em sua configuração única, brasileira. Diferentemente
dos Estados Unidos, matriz da atividade e da área de estudos – sempre, e somente, em nível de pós-graduação, relações públicas, no país, desenvolveu-se
como graduação universitária a partir de uma concepção holística de gestão
da comunicação integrada no seio das organizações, muito além da função
consagrada de relações com a mídia que a atividade tem, globalmente.
Palavras-chave
Relações públicas – História das relações públicas – Teoria das relações públicas.
Abstract
One centennial conceptual and practical narrative through advances in
the area of Public Relations in its unique brazilian configuration. Unlike the
United States, cradle of activity and area studies – always, and only, at the post-graduate –, Public Relations, in Brazil, has developed itself at undergraduate
level from a holistic concept of integrated communications management
within organizations, much far beyond from globally consecrated of media
relations activity.
Keywords
Public Relations – Public Relations History – Public Relations Studies.
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Reflexões sobre relações públicas,
comunicação organizacional e as TIC:
contribuições da teoria do ator-rede1
Fernando Gonçalves
Alessandra Maia
Introdução
Os campos da comunicação organizacional e das relações públicas
encontram-se, já não é de hoje, diante de dilemas e desafios de diferentes
ordens. Mas talvez não se trate apenas de entender o “contemporâneo” e de
saber reposicionar-se no presente para obter legitimação e reconhecimento
como área de exercício profissional e de conhecimento. Provavelmente, um
de nossos maiores desafios seja tornarmo-nos capazes de problematizar as
maneiras como entendemos e formulamos tais questões na atualidade.
Caracterizados historicamente pela adoção de abordagens que buscam
ordenar estrategicamente a realidade com fins específicos, essas áreas assumem visões de sociedade e de comunicação assentadas numa clássica
dicotomia entre natureza e cultura e entre sujeito e objeto, como se os
diferentes domínios da vida fossem efetivamente fracionados em realidades
distintas e isoladas e de fácil gestão. Contudo, como afirma Bruno Latour
(2009), são esses próprios modelos e concepções que se encontram em
crise e exigem de nós outros posicionamentos.
Um dos vetores da vida social que mais evidenciam esse aspecto de crise
são as chamadas tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Do ponto
de vista das organizações, elas vêm, em parte, atualizar o desejo de domínio e
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 108 a 133 - julho / dezembro 2014
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de otimização de elementos que ajudem a equacionar problemas de relacionamento, de produção, de gestão e de negócios. Mas, se de certa forma, o que
atualmente é colocado em questão é a visão instrumentalista que temos de
todo um repertório de ferramentas e de estratégias apoiados em modelos de
comunicação massiva e dirigida – algo redimensionada na cultura digital –, e
de uma divisão tradicionalmente simplista de “públicos”, calcadas em relações
de interioridade ou de exterioridade em relação à geografia organizacional.
Tais visões precisam ser repensadas, pois são exatamente esses modelos e essas
geografias que estão se modificando.
Curiosamente, os pensamentos de diversos autores que haviam caído
em esquecimento, como Gabriel Tarde e Gilbert Simondon, são hoje recuperados por compreenderem justamente a dimensão reticular do social
e a condição híbrida da técnica (nem apenas técnica nem apenas social,
mas propriamente “sociotécnica”). Ao observarmos as novas configurações
culturais, midiáticas e subjetivas que redimensionam e projetam o papel do
cidadão, do Estado e das empresas; as formas descentralizadas de produção,
distribuição e acesso à informação e aos bens de consumo; o surgimento
de novas formas de gestão da comunicação; as mudanças nas arquiteturas
organizacionais; o maior poder de negociação e questionamento dos públicos, nos damos conta do aspecto visível das tramas que constituem a vida
social e, em particular, a vida das organizações e suas formas de comunicar.
A crença de que basta saber antecipar e manejar as mudanças para que
a realidade se dobre diante de nossos interesses é correlata daquela que
preconiza os avanços da tecnologia e seus usos como “coisa em si” e não
como forças em contato com outras forças, que afetam e são afetadas, que
organizam e são também organizadas pelas tramas de que fazem parte. Mas
estas crenças, que têm embasado o pensamento e as práticas nas áreas da
comunicação organizacional e das relações públicas, têm sua história, seus
limites e quem sabe, suas possibilidades de ultrapassamento.
Nosso objetivo aqui é relembrar um pouco dessa história, através de uma
breve análise dos modelos que embasaram a construção das visões acerca das
práticas e os discursos das relações públicas e da comunicação organizacional.
Como procuraremos demonstrar, obviamente nem as práticas de relações
públicas e da comunicação organizacional nem os usos das TIC são neutras.
Todos se inscrevem em modos particulares de entender a relação entre organização e sociedade e as funções que a comunicação e as tecnologias ganham
nesse contexto. Fundamentados em pesquisadores da área da comunicação e
Comum 36 - jul./dez. 2014
109
da administração que, de certa forma, nos mostram essa história a contrapelo,
o artigo busca também apresentar contribuições de outras visões, como as da
sociologia das associações ou teoria do ator-rede (TAR).
A abordagem da TAR sistematizada por Latour não será aqui necessariamente pensada como alternativa a esses modelos tradicionais, mas como
contraponto a lógicas e visões que nos fazem aderir demasiadamente ao
presente e que talvez por isso mesmo nos impeçam de apreendê-lo em
sua gravidade e de pensar o mundo e as organizações tais quais se nos
apresentam na atualidade. Esta será a base de nossa problematização desses
modos de entendimento, com vistas à discussão sobre os atuais discursos
e práticas de comunicação nas organizações no contexto das TIC.
Breve revisão dos paradigmas de relações públicas
Ana Maria Eirôa da Fonseca apresentou nos anos 1980 um interessante
estudo sobre os modelos que embasam as visões e as práticas de RP, contextualizadas histórica e epistemologicamente. Em um primeiro artigo (Fonseca,
1987), a autora ensaia um movimento com o qual tenta dar ao profissional
de relações públicas um status de “catalisador no fenômeno interativo”,
algo mais complexo que seu tradicional papel “de divulgador, de formador
de imagens ou técnicas de comunicação” (Fonseca, 1987: 69). Naquele
momento, a autora reconhecia a necessidade de se repensar as práticas do
profissional e sua postura. Vai então buscar nos paradigmas2 relacionados
às teorias sociológicas, ferramentas para entender e analisar as práticas e os
discursos da atuação profissional de nossa área, localizados por ela, a partir
Burren e Morgan (1979) nas tradições funcionalista e dialética.
Fonseca nos faz recordar que o surgimento das relações públicas ocorreu
de forma “intuitiva”, em função das primeiras tentativas de gerenciamento
de crises em empresas americanas no começo do século XX, que diziam
respeito aos choques de interesses entre mercado e setores da sociedade
da época3. Eram experiências práticas sem nenhum tipo de método, que
a autora caracterizou, apoiada em Capra (1979: 35), como “pensamento
intuitivo”, “sintetizador e não-linear”, baseado “na experiência direta, não
intelectual da realidade”. Até aí nada demais, o mesmo se passava com o
próprio jornalismo da época, que contava com escritores, cronistas e romancistas, que davam à notícia um conceito e um formato bem diferentes
do que temos atualmente ou também com os publicitários.
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Comum 36 - jul./dez. 2014
O que chama, porém, a atenção de Fonseca é que o marco inicial das
relações públicas foi delineado apenas muito mais tarde, o que teria trazido
prejuízo não apenas para a compreensão de que seria aquele conjunto de
práticas que se constituíam no “manuseio de incipientes técnicas persuasivas,
visando manipular a opinião pública” (Fonseca, 1987: 68), mas também para
a sua definição enquanto profissão e área de conhecimento. É percebendo o
quanto as relações públicas nasceram já confundidas com seus instrumentos e técnicas, sem nenhum tipo de formulação científica, algo obviamente
impossível à época, que podemos compreender, por exemplo, a definição
oficial da ABRP4, de 1955, que as colocam como técnica e função: “esforço
deliberado, planificado, coeso e contínuo da alta administração, para estabelecer e manter uma compreensão mútua entre uma organização, pública ou
privada, e seu pessoal, assim como entre essa organização e todos os grupos
aos quais está ligada, direta ou indiretamente”.
Como observou Fonseca (1989) num segundo momento, toda profissão
em seu início é ditado pela experimentação e pela prática e somente depois
passa por um processo de amadurecimento, institucionalização e reflexão e
de fundamentação teórico-metodológica. O fato da “essência” da profissão,
concebida, de forma genérica, como a de promover o diálogo entre os mais
variados públicos, é um exemplo disso. A passagem de visões genéricas e
abstratas para visões que dão contornos cada vez mais precisos, através da
descrição das práticas como conjunto de ações de comunicação intencionais
e estratégicas, vem exatamente desse esforço de individuação.
É interessante notar como o alicerçamento da construção da história do
surgimento da profissão, através do relato de um certo conjunto de ações
realizadas por Ivy Lee num dado momento histórico, se dá por modos narrativos que variam segundo os autores e seus referenciais. Os relatos podem
tratar dos fatos como sistematização ainda que “intuitiva” de processos e
práticas (Wey, 1983; Andrade, 2005) ou como questão “ideológica”, no qual os
detentores do capital norte-americano teriam buscado conquistar a opinião
pública para, desta maneira, legitimar-se diante da sociedade (Peruzzo, 1986).
Mas, a própria designação de tais ações como “práticas intuitivas sem
método racional” – e que hoje se apresentam mais claramente delineadas
como espécie de ações estratégicas apoiadas no uso racional de instrumentos
e técnicas – ocorre no interior do próprio processo de construção identitária
da profissão. Esse processo, construído e formulado teoricamente a posteriori
com apoio de ferramentas conceituais das ciências sociais, no caso, os modelos
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111
ou paradigmas identificados, descritos e aplicados por Fonseca às relações
públicas. É esse processo que Fonseca de certa forma delineou ao identificar a presença de dois grandes tipos de enfoque para relações públicas, na
América Latina dos anos 1980, e que eram correlatos a dois dos principais
paradigmas presentes nas teorias sociais, na perspectiva de Burrel e Morgan5
(apud Fonseca, 1987: 70): o enfoque sistêmico do funcionalismo de Muriel
e Rota e a abordagem transformadora do humanismo radical de Cecília
Peruzzo, pertencente à tradição da dialética marxista.
Cada qual com sua visão de sociedade, estes enfoques vêm aparelhando
desde então conceitual e operativamente as práticas e os discursos de relações
públicas. A abordagem funcionalista, de influência positivista, toma das ciências naturais e da sociologia do regulamento elementos para formular uma
visão que vê a sociedade como sistema total que tende ao equilíbrio, devendo
para isso ser regulado. Os modelos que resultam dessa abordagem – que de
resto fundamentou e ainda fundamenta talvez grande parte das ciências no
século XX e XXI – são os mecânicos (física) e os fisiologistas (biologia), fundamentados no reconhecimento e cumprimento objetivo de padrões que favoreçam a previsão e o controle. Percebe-se nessa abordagem o determinismo
das ações sociais como fator de regulação de um todo estruturado extrínseco
ao indivíduo, como nas proposições durkheimianas, por exemplo.
Nessa abordagem, as organizações seriam consideradas subsistemas
sociais e, nesse caso, caberia às relações públicas planejar, organizar e administrar os processos comunicativos presentes nas instituições, interna
e externamente, para otimizar o relacionamento da instituição com seus
públicos. Não por acaso, verifica-se na bibliografia da área, sobretudo entre
os anos 1970 e 1990, uma ênfase na regulação dos processos comunicativos
e organizacionais, por meio de técnicas e instrumentos diversos, coerente
com o modelo sistêmico funcionalista. Resulta daí uma visão pautada em
um modelo onde a noção de gestão é literalmente estratégica e socialmente
legitimada, que favorece a crença de que uma visão “coerente” do todo e uso
“correto” dos meios bastariam para ajustar e equilibrar o sistema e mantê-lo
funcionando “adequadamente”. Vemos assim surgir a noção do profissional
de relações públicas como um “coordenador do processo de comunicação
social” (Muriel e Rota apud Fonseca, 1989: 71).
Come se sabe, na mesma época, surge no Brasil um outro enfoque diametralmente oposto a esse, calcado no idealismo alemão das tradições kantiana,
hegeliana e marxista. Esse enfoque tendeu a apresentar uma visão crítica da
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sociedade, visando romper com o objetivismo funcionalista e denunciando os
jogos de poder e dominação presentes no sistema capitalista. Trata-se do modelo
dialético, que fundamentou o enfoque dado por Cecília Peruzzo e que, dentro
da perspectiva de Burrel e Morgan, recebe o nome de humanismo radical.
Para Peruzzo, as relações públicas reproduziriam a ideologia burguesa
e seriam usadas pelo poder para “ocultar as contradições estruturais da
sociedade” (Fonseca, 1989: 73). No paradigma humanista, o relações públicas deve estar consciente de seu papel transformador e atuar como uma
espécie de conscientizador que “desaliene” as classes oprimidas. Nesse
enfoque, luta-se pela mudança radical ao invés de buscar-se a regulação
do sistema, o que apenas reforçaria suas contradições. É quando vemos
a proposta de atuação das relações públicas em apoio aos movimentos
populares para superar os processos de dominação.
Resulta daí um tipo de prática que favorece a expansão das atividades
de relações públicas para além das áreas corporativa ou governamental.
É a atuação no chamado terceiro setor e na comunicação comunitária.
Apesar da mudança de enfoque, percebemos que, epistemologicamente,
no humanismo radical parece haver menos uma alteração na natureza
conceitual das atuações do que em suas funções. Trata-se, na verdade, de
uma prática que visa criar uma outra função para as relações públicas, uma
função “alternativa”, que aplique os meios e as técnicas de comunicação
em favor de outra classe que não seja a “dominante”.
Metáforas e outras imagens do mesmo
As análises de Fonseca apoiaram-se nas investigações de outras áreas
como economia e administração, que realizaram, sobretudo a partir dos anos
1980, estudos acerca das organizações, do ponto de vista de suas teorias, de
sua gestão e de seus processos. É o caso de Gareth Morgan, economista e
teórico britânico das organizações. Morgan buscava uma base teórica para
compreensão dos fenômenos organizacionais e teve o mérito de sistematizar
o debate da época em torno dos binômios ordenação x conflito, teorias sociais subjetivas x objetivas, determinismo x livre-determinação. Juntamente
com Gibson Burrell, outro téorico organizacional britânico, o autor então
organizou as bases para uma análise organizacional com base nas teorias que
preconizavam, por um lado, a regulação e, por outro, as que enfatizavam a
mudança radical (Burrel e Morgan, 1979).
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Nos anos 2000, vemos também outros autores apoiarem-se em Morgan,
desta vez no campo da engenharia de produção, para discutir as questões
das condições de trabalho e da prevenção de acidentes nas empresas. É
caso de Janaina Garcia e Josiane Minuzzi (2005). As autoras retomaram
as bases das análises organizacionais de Morgan através dos quatro paradigmas propostos por Burrel e Morgan (1979), enfatizando sua noção
de “metáfora organizacional”. Garcia e Minuzzi recordam que Morgan
(1996) acreditava que as teorias e as explicações da vida organizacional são
baseadas em metáforas que nos levam a ver e compreender as organizações
de formas específicas, embora incompletas.
O gesto de Morgan de pensar as organizações a partir de oito metáforas
(máquina, organismo, cérebro, cultura, sistemas políticos, prisão psíquica, fluxo de transformação e instrumentos de dominação) para melhor
descrevê-las pode ser assim representado:
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Assim, por exemplo, para Garcia e Minuzzi, a imagem da “prisão psíquica”
nos ajudaria a compreender o paradigma humanista radical. É como se a organização fosse um fenômeno psíquico, ou seja, as pessoas ficariam aprisionadas a
processos conscientes e inconscientes que geram imagens, ideias, pensamentos
e ações. Ou seja, é como se todos estivessem “aprisionados por construções da
realidade que, na melhor das hipóteses, dão uma noção imperfeita do mundo”
(Morgan, 2006: 217). Esta metáfora nos aproxima também da discussão que
Fonseca apresenta a respeito da visão do profissional de RP que remete a esse
paradigma: uma vez que o humanista radical visa uma transformação radical
da posição do funcionário, sua emancipação, pois, para ele, “a consciência
do oprimido é dominada pela superestrutura ideológica na qual ele interage.
Isso limita a capacidade cognitiva do oprimido” (Fonseca, 1989: 73), que o
impediria de tomar consciência de si.
O paradigma estruturalista radical seria entendido por meio da metáfora dos
“instrumentos de dominação”, já que mesmo as empresas mais democráticas
e racionais poderiam gerar modelos de dominação. Isso porque o pensamento
racional que busca gerar maior lucro para a empresa pode causar um impacto negativo tanto à sociedade quanto aos seus funcionários, mesmo que de
forma não intencional, como Morgan descreve na seção “A face repulsiva: as
organizações como instrumentos de dominação” (Morgan, 2006: 301-342).
Segundo o autor essa “metáfora cria um novo nível de consciência social e uma
compreensão do porquê as relações entre grupos exploradores e explorados
podem ficar tão polarizadas” (Ibid: 301).
A partir do paradigma funcionalista podemos observar que Morgan destacou cinco metáforas para pensar o modo de atuação na organização que
a emprega. Ainda no sentido horário, a da “máquina”, segundo Morgan,
“ilustra como o estilo mecanicista de pensamento marca o desenvolvimento
da organização burocrática” (2006: 27). Esta metáfora tem como alicerce
a teoria clássica da administração e a administração científica. Para Garcia
e Minuzzi, nesta primeira metáfora, os teóricos Taylor e Fayol fizeram
uso da especificação de Weber de que a burocracia seria o ideal para as
organizações. Ou melhor, essas são consideradas mais eficazes quando
estão em ambientes estáveis ou protegidos; ou menos eficazes quando o
ambiente é turbulento e competitivo, como o de hoje.
Na metáfora do “organismo” há comparação entre os organismos vivos e
as organizações, que nos chama a atenção para assuntos como a sobrevivência
e a eficácia organizacional, no que tange as relações sociais no ambiente de
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trabalho. Segundo Morgan, ela “concentra a atenção no entendimento e gestão das necessidades organizacionais e das relações ambientais” (Morgan,
2006: 27). Nessa metáfora, o organismo é visto como uma combinação
de elementos diferentes que procuram sobreviver em um vasto ambiente.
Ou seja, é possível enxergar claramente as semelhanças entre os elementos
da teoria das organizações contemporâneas e o organismo, ainda mais se
for dada ênfase aos sistemas abertos. A partir da crítica à metáfora anterior, Morgan destaca que “a teoria da organização foi enclausurada numa
forma de engenharia preocupada com as relações entre metas, estruturas
e eficiência” (Ibid: 55). Ou seja, a mudança na perspectiva – no lugar de
uma máquina um organismo – nos permite identificar relações que antes
eram deixadas de lado.
A terceira metáfora é a do “cérebro”. Nela traçamos uma comparação
entre o cérebro e a organização, visto que o funcionamento dos dois ocorre
de forma semelhante, porque ambos possuem a mesma capacidade para
processar informações, refletir sobre algum dado, e de reter na memória o
aprendizado. Ou nas palavras de Morgan, “a metáfora chama a atenção para
a importância do processamento da informação, aprendizado e inteligência
e oferece uma estrutura de referência para a compreensão e a avaliação das
modernas organizações nestes termos” (Ibid: 28).
A metáfora do “sistema político” se diferencia das demais visões ao passo
que não observa as organizações como interligadas e racionais perseguindo
um objetivo comum. Ao contrário, as organizações são vistas como uma rede
de pessoas com interesses divergentes, mas agindo de modo interdependente.
Enfim, essa metáfora política dá ênfase, como Morgan descreve, aos “diferentes conjuntos de interesses, conflitos e jogos de poder que determinam as
atividades organizacionais” (Morgan, 2006: 28). Ou seja, nela se explora os
aspectos políticos da vida na organização.
A metáfora da “cultura” está ligada à parte “humana” da organização,
pois dá destaque à acepção simbólica dos vários aspectos da vida organizacional que são compartilhados: “podem ser a linguagem, normas, folclore, cerimônias e outras práticas sociais que comunicam ou expressam
ideologias-chave, bem como os valores e crenças que guiam a ação” (Garcia
e Minuzzi, 2005: 5).
A última metáfora é a de “fluxos de informação”, que nos remete ao
paradigma interpretativista. Ela aborda, segundo Morgan, quatro “lógicas
de mudanças”:
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Uma enfatiza o modo como as organizações são sistemas autoproduzidos que se criam a sua própria imagem. A segunda
chama a atenção para ideias originárias do estudo do caos e da
complexidade, vendo a vida organizacional através de imagens
de padrões de atração concorrentes. A terceira vê a organização
como produto de fluxos circulares de feedback positivo e negativo. A quarta explora como os aspectos da moderna organização
são produto de uma lógica dialética em que cada fenômeno gera
seu oposto (Morgan, 2006: 29).
Podemos observar como o esforço de sistematização de Morgan, acionado
por Garcia e Minuzzi, reforçam, em sua apropriação, uma ideia ainda fragmentada do social ou então uma visão totalizante. Por um lado, binarismos,
oposições e compartimentações tratam o social e a organização por partes,
como se essas fossem isoladas. Por outro, essas partes tendem a ser vistas como
formadoras de um todo. Por um lado, buscam reificar uma visão totalizante,
coerente e estável para o social e para as organizações, e por outro uma abordagem que integre ao mesmo tempo todos os aspectos (políticos, econômicos,
subjetivos, culturais, conflituais, tecnológicos, materiais, simbólicos etc.) que
são vistos e apresentados por partes por esses modelos e metáforas.
O próprio uso da ideia de metáfora, aliás, figura de linguagem que busca representar uma coisa no lugar de outra, parece indicar uma visão algo engessada
de como uma organização seria de acordo com os quatro paradigmas, embora
sejam vistas como “oportunidade de alargar nosso pensamento e aprofundar
nosso entendimento, permitindo-nos ver as coisas de maneiras novas e agir
de maneiras novas” (Morgan, 2006: 21). Por meio da imagem metafórica o
que se faz é ainda permanecer no campo de uma representação que transfere
e projeta, por comparação e analogia, um significado para algo, o que implica
em determinar para esse algo o que ele seria, ou seja, um caráter de verdade.
O que propomos a seguir é pensar as organizações não mais em termos
de uma “metáfora”, mas nos de uma “alegoria”, figura de linguagem muita
usada por Walter Benjamin (2011) e que implica uma outra forma de relação
entre as imagens de que nos servimos para nos remeter a algo. Com a alegoria,
produz-se não um único sentido, mas muitos, nenhum deles literal, de modo
a não se fixar ou determinar um significado a priori para essas imagens e para
a própria relação entre elas. Diferente da metáfora que ilustra por analogia, a
alegoria nos faz pensar a partir das relações entre as imagens que emparelha,
sem determinar de antemão um significado para tais relações.
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O que faremos a seguir é apresentar a noção de “rede” em Latour como
alegoria de um pensamento contemporâneo sobre os processos organizacionais
e de comunicação e como uma figura epistemológica de grande importância.
Por meio dela, o social – e também as organizações – será pensado mais como
movimento permanente de recombinação e reordenamento e menos como
um algo em si a ser explicado e simplesmente gerido por meio de técnicas e
estratégias. Mas, para tanto, será preciso antes definir as condições de possibilidade dessa abordagem, que não quer, diga-se de partida, constituir um
novo paradigma.
Pensando “fora da caixa”
A breve apresentação das metáforas de Morgan e do desdobramento dos
seus paradigmas por Garcia e Minuzzi e de suas apropriações por Fonseca
parecem participar do movimento fecundo de criação de um campo de reflexão
para as práticas e os discursos nas áreas de relações públicas e comunicação
organizacional. Entretanto, nota-se que, colocada nesses termos, as ações de
comunicação organizacional e de relações públicas ainda podem facilmente
ser polarizadas e engessadas, quando não dicotomizadas (objetivo x subjetivo,
determinismo x livre-determinação, homem x tecnologia, organização x funcionário, cliente, imprensa etc.). Ou então resumir-se apenas a uma questão
de técnica e de estratégia, bastando apenas saber adaptar-se à situação, usar e
gerir de forma “correta” os “bons” instrumentos no caso e na hora “certa”.
Tal qual as ações de Ivy Lee, blogs e redes sociais on-line, por exemplo,
também não tiveram seus processos de funcionamento intuídos e sistematizados para poderem hoje ser mobilizados estrategicamente como ambientes
e ferramentas de comunicação? Vemos atualmente a proliferação de profissionais que se especializam na atuação nesses ambientes, em sua gestão
e na mensuração dos resultados dessas intervenções. No entanto, somos
incessantemente surpreendidos por movimentos diversos nesses mesmos
ambientes: pelos rumos, usos e funções de ferramentas e processos que se
reinventam e recombinam a cada dia nas mãos de usuários e empresas; no
ambiente de tecnologias e processos que reorganizam nossos modos de viver, de comunicar e de relacionar; nas dinâmicas rapidamente apropriadas,
adaptadas e redirecionadas pelos profissionais de comunicação e em seguida,
contra-apropriadas pelos públicos; finalmente, somos surpreendidos por
nossa incapacidade de total antecipação e controle.
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Perguntamo-nos justamente então se essas formas de pensar as práticas
de comunicação organizacional e de RP por meio de categorias rígidas, de
explicações por meio de paradigmas ou pela sistematização da experiência
pelos usos de técnicas e estratégias não seria ainda buscar enquadrar tais
práticas dentro de uma perspectiva que pressupõe sistemas de pensamento
redutores, mecânicos e compartimentados que Bruno Latour (2009) identificou como “modernos”.
Latour localiza o cerne do pensamento moderno na separação da experiência em domínios distintos e opostos, como natureza e cultura, indivíduo e
sociedade, objetivo e subjetivo, humano e não-humano, a partir de princípios
do racionalismo e do iluminismo. Ora, Latour defende que uma dinâmica
de conexão, afetação mútua e transformação entre esses domínios – que ele
chamou de “rede” ou “tradução” – sempre existiu, de uma forma ou de outra,
mas que tal movimento era rompido, freado ou negado através do que ele
chamou de operação de “purificação” (Latour, 2009: 16). Por meio desta operação, convencionou-se pensar e organizar a vida nos termos das dicotomias
mencionadas acima, que nos fazem crer, por exemplo, que ciência nada tem
a ver com política, que política nada tem a ver tecnologia, que por sua vez
nada tem a ver com subjetividade, que nada tem a ver com cultura e assim por
diante. Talvez por isso a prevalência de concepções mecanicistas e organicistas
das organizações e da comunicação, como se as organizações nada tivessem
a ver com objetos, apenas com pessoas, como se objetos nada tivessem a ver
com natureza, como se natureza nada tivesse a ver com tecnologia, como se
a tecnologia nada tivesse a ver com política etc.
Essa articulação e afetação entre elementos diversos de naturezas distintas
corresponde ao conceito de “redes sociotécnicas” em Latour (2009, 2012a),
considerado como um processo de mediação ou de tradução6. Nesse sentido,
o que Latour chama de “rede” não se confunde com a acepção comum do
termo “rede” no sentido de internet ou de redes sociais on-line, no contexto
das TIC. Em Latour, esse conceito diz respeito a processos e redes de relações
entre pessoas e coisas, onde um elemento não apresenta, a priori, maior importância ou capacidade de produzir uma ação ou mudança do que o outro.
Nesta concepção, as relações na sociedade são construídas tanto a partir da
ação de humanos como de não-humanos, considerados com igual capacidade
de interferência num dado contexto.
Eis o princípio de sua “antropologia simétrica” (Latour, 2009), concebida juntamente com Michel Callon, seu companheiro de estudos de
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sociologia da ciência e da tecnologia. Segundo seu princípio de “simetria
generalizada”, a natureza e a sociedade devem ser tratadas sob um mesmo plano e nunca separadamente, já que também não haveria entre elas
diferença em espécie, apenas de grau.
Seria preciso considerar, portanto, que existe no mundo uma espécie
de transversalidade, de correspondência e de uma afetação recíproca entre
elementos heterogêneos. Do ponto de vista dessa transversalidade, o pensamento de Latour permite ver o quanto afetamos e somos também afetados
por imagens, marcas, produtos, práticas e discursos institucionais, tecnologias,
comunicólogos, gestores, imprensa, funcionários etc. Esses e outros elementos
constituem de forma imbricada uma “rede” cujo funcionamento não pode
ser entendido de forma rígida, isolada ou hierarquizada.
Segundo este modo de entendimento, as TIC não podem, de forma alguma,
ser consideradas determinadoras dos modos de vida das organizações e de sua
comunicação, embora participem ativamente dos processos organizacionais.
Tecnologias não são neutras nem meros instrumentos a serviço da vontade do
homem. Enquanto um agregado de relações, objetos e instituições também
têm “subjetividade” (Latour, 2012a: 313). Não no sentido de ser a expressão de
um sujeito, mas de carregarem e transportarem consigo princípios culturais e
históricos, visões de mundo e questões de poder próprios a sujeitos e grupos.
Pela mesma razão, Michel Serres (1995) denominou as invenções dos homens
de “quase-sujeitos técnicos”: objetos que pensam por eles, com eles e entre
eles, não podendo ser reduzidos a simples “coisas”. Portanto, sem pensar nas
tecnologias como meras extensões do homem, podemos concebê-las como
formas de pensamento que se individuam ou concretizam na relação entre
homem e máquina, entre indivíduo e sociedade.
A proposição não é nova. No século XX, diversos autores parecem ter
seguido estas pistas. Nos anos 1960, Gilbert Simondon (1999), por exemplo,
propunha uma natureza híbrida para os objetos técnicos, na medida em que
a técnica “media” as relações do homem com seu entorno social. Para ele,
nenhum objeto técnico é puro, sempre tem uma natureza híbrida, ao mesmo
tempo social e técnica. Para Simondon, longe de ser meramente instrumental,
a técnica é fruto de um processo contínuo de autoafetação entre, de um lado, a
aquisição de saberes técnicos e habilidades cognitivas, e de outro, os contextos
e regras de usos, aplicações, subversão e inovação desses conhecimentos por
meio das vivências dos sujeitos. Um pouco mais tarde seria a vez de Deleuze
afirmar que uma máquina nunca é simplesmente técnica; ela só o seria “en-
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quanto máquina social” (Deleuze, 1977: 118), na medida em que nos enreda
em suas engrenagens tanto quanto outros objetos, discursos e práticas sociais.
Mas, como observou Deleuze, as conexões nos levam à “desmontagem
da máquina”, mas não a explica. Assim como não basta simplesmente estar
conectado ou interagir para comunicar algo ou produzir mudança, estudar
apenas as conexões em si não ajuda a entender ou a explicar um fenômeno.
É preciso seguir as conexões e ver o que elas produzem, transportam e transformam nesse movimento, como propõe Latour.
Daí ser inútil, neste gênero de abordagem, estudar os “impactos” das
tecnologias, por exemplo, nas interações sociais sem levar em conta as redes
em que se inserem e que elas próprias ajudam a construir. É certo que no
contexto organizacional e da comunicação, as tecnologias criam lógicas, modos
de vida e situações que impelem à ação, mas não o fazem fora de uma política
organizacional, de códigos culturais nem de interesses econômicos e políticos,
que a ordene, sustente e legitime. Também não surgem sem CEOs, profissionais, comunicação face a face e suas formas de intervenção e de controle.
Só há comunicação em ambientes digitais ou usos estratégicos das TIC pelas
organizações porque há agregados e rede de relações entre humanos e não-humanos que são manejadas. As TIC e seus ambientes relacionais existem
e atuam em conjunto com outros atores. Em determinadas circunstâncias,
podem ter um papel primordial, mas, em outros, elementos diferentes podem ter mais importância. Seus usos se dão juntamente com outros usos.
Conectados, produzem encontros que mediam ou traduzem ações de coisas
e pessoas, que ao afetarem-se mutuamente constroem realidades discursivas e
não-discursivas. Os usos das tecnologias na comunicação não são uma solução
em si mesmas, mas uma questão que cabe sempre investigar (Gonçalves, 2002).
Elas fazem parte da trama que garante à comunicação organizacional uma
complexidade irredutível tanto à sofisticação das técnicas ou das estratégias
quanto à capacidade de adaptação ou da gestão de riscos, dada sua natureza
de híbrido sociotécnico.
Contribuições da teoria-ator rede para pensar
a comunicação nas organizações
Nas palavras de Bruno Latour, a teoria do ator-rede (TAR) ou sociologia
da tradução ou das associações consiste em uma abordagem que se propõe
a redefinir o que se entende atualmente como “ciência do social” e retomar
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aquela que seria sua tarefa primeira, a saber: “rastrear as associações” ou “conexões” e não, dar “explicações sociais” sobre os fenômenos que investiga.
Para Latour, a sociologia pagou um determinado preço para tornar-se uma
disciplina: o de angariar para si o estatuto de ciência positiva que se afastou
da metafisica para alinhar-se às demais ciências estabelecidas no século XIX.
A TAR seria “alternativa” no sentido não de desistir da sociologia, mas no de
recuperar algumas concepções que foram abortadas logo em seu surgimento:
particularmente a perspectiva de Gabriel Tarde (2007) do socius como rede de
fluxos e de transformações contínuas, ao invés de um domínio específico e
próprio – o social –, estabilizado, coisificado, que pode ser percebido, representado e explicado a partir de uma mecânica ou de uma engenharia social,
como propunha Durkheim. Nesse sentido, a TAR constitui uma renovação
das concepções que definem a natureza e o escopo das ciências sociais.
Ainda que arriscando ser simplista, o argumento de Latour poderia ser
apresentado da seguinte forma: aquilo que é tomado como “social” seria
na verdade uma espécie de configuração estabilizada de elementos e forças
diversas que indicam menos uma realidade acabada do que um estado de
coisas em constante mudança7. Essa perspectiva exigiria necessariamente
do cientista social uma outra forma de observar e de investigar o mundo
e suas relações e, certamente, de produzir problemas e de conduzir pesquisas. Mas por “rastrear as conexões” ou formular uma “sociologia das
associações” Latour vai entender também um modo de suspeitar daquilo
que chamamos de ciência e de sociedade. Para tanto, vai recuperar do
projeto da sociologia do infinitesimal de Tarde sua crítica à razão moderna
e sua concepção de que tudo o que existe emerge de encontros fortuitos
e inumeráveis, de séries infinitas de relações. Para Latour, trata-se de
perceber e investigar essas séries de relações, no lugar mesmo onde elas
ocorrem e se afetam, gerando outras relações, forças e configurações. Eis
a base do pensamento da TAR.
O que parece ser pouco objetivo e menos palpável não é, porém, menos
observável empiricamente. Só o é de outra forma. O propósito de tratar a
sociedade como “domínio próprio” e como “coisa” – passível de ser explicada
como tal a partir de deciframentos, interpretações generalizantes e/ou dados
objetivos – foi certamente importante para o estabelecimento da sociologia
como ciência moderna. Hoje, porém, este projeto evidencia seu caráter precário. Latour argumenta, no entanto, que isso se deve em grande parte ao
desenvolvimento e sucesso das próprias ciências sociais, que ao multiplicar
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teorias, discursos e métodos “científicos” capazes de tudo explicar, passaram
não raro a valer mais do que o próprio objeto ou a sobrepor-se a ele, esvaziando
seu poder e sua sensibilidade de auscultação do mundo.
Latour questiona se diante dos avanços técnico-científicos haveria hoje
ainda relações suficientemente específicas para serem chamadas de “sociais”
e “naturais”. Ou se seria ainda possível verificar com precisão os ingredientes
que entrariam na “composição do social”. Paralelamente, pergunta-se qual
a natureza da especificidade da disciplina sociológica e do próprio dizer ou
do fazer cientifico hoje. Daí propor examinar os conjuntos/configurações
(“agregados”), suas lógicas de formação e seus modos de funcionamento,
não a partir de categorias pré-definidas, mas de uma “empiria cega”, do
rastreamento das relações que constituem esses conjuntos e das relações
que eles próprios realizam.
Nesta perspectiva, a ordem social não teria nada de específico; não
existiria “dimensão social” de nenhum tipo, nenhum “contexto social”
capaz de explicar o social, nem nenhum domínio específico da realidade
ao qual possamos colar uma etiqueta de “social” ou de “sociedade”. Tampouco existiriam “forças sociais” que expliquem aspectos residuais que
os outros domínios não conseguem dar conta; não há vínculos sociais
específicos que revelam a presença oculta de forças sociais específicas. O
que há é redes de relações que produzem fatos circunstancialmente e que
eventualmente se cristalizam, estabilizam e desestabilizam conforme as
mudanças em curso.
Na TAR, vai-se deixar de pensar em disciplinas para pensar-se em agregados. Agregados químicos, fisiológicos, subjetivos, organizacionais, políticos, econômicos, jurídicos, tecnológicos. Esses agregados são eles próprios
formados de elementos heterogêneos que podem, por sua vez, ser reagrupados constantemente e formar outros compostos, outras configurações, nos
ajudando a entender a evolução dos fenômenos em nossas sociedades. Uma
especificidade da TAR é não reduzir a feitura dos fatos em análise à observação
dos vínculos e das interações sociais, mas em acentuar a ação, o trabalho de
fabricação e de transformação presente nessas interações.
Para Latour, longe de uma hipótese inconcebível, essa seria uma forma
de “confrontar o rosto desconcertante do social”. Ele afirma que todos os
elementos heterogêneos precisam ser reunidos numa dada circunstância, ao
invés de serem tratados isoladamente como especialidades:
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Uma nova vacina está sendo preparada, uma nova descrição de
tarefa está sendo oferecida, um novo movimento político está
sendo criado, um novo sistema planetário está sendo descoberto,
uma nova lei está sendo votada, uma catástrofe está ocorrendo.
A cada instância, precisamos reformular nossas concepções daquilo que estava associado, pois a definição anterior se tornou
praticamente irrelevante (Latour, 2012a: 23).
Para cada ocorrência seria preciso reordenar os modos como observamos e
entendemos o que está em jogo, pois em que medida pode-se traçar fronteiras
precisas entre os elementos que participam desses fenômenos, seus papéis,
ou pensar em graus de determinação e causalidade desses elementos? Não é
esta lição que as manifestações que eclodiram nas ruas de todo país em 2013
ensinaram aos cientistas políticos e a todos nós? Não que não haja especificidades ou fronteiras, papéis ou intencionalidades, mas essas são vistas dentro
de um conjunto de relações sendo elas próprias como algo a ser investigado.
Tais elementos não são a resposta ou a explicação, mas parte da pergunta que
os fenômenos nos colocam.
Assim, por exemplo, não se deveria considerar as organizações e suas formas de comunicação como algo que deve ser explicado a partir da “estrutura
social”, do “contexto” ou da época em que vivemos, como se fossem algo
dado, estático, e capaz de permitir explicar a lógica das práticas comunicativas
no presente. Não é porque vivemos na “era digital” ou “no interior” de uma
cultura digital que as organizações usam redes sociais para comunicar. Antes,
é porque uma organização encarna uma determinada lógica organizativa que
redes sociais e blogs podem ser empregados em uma escala mais ou menos
abrangente na gestão de crise, no relacionamento com stakeholders ou na criação
de uma experiência com a marca, podendo ser modificadas ou durar no tempo.
Pensar as próprias organizações como tramas ou redes sociotécnicas (Law,
1992; Latour, 2009; 2012a), implica pensá-las como nem puramente humanas
ou nem apenas materiais, nem somente como realidade objetiva ou subjetiva
ou natural ou política ou discursiva. O que propomos aqui é uma visão das
organizações como coletivo composto ao mesmo tempo de pessoas e coisas,
práticas e discursos capazes de produzir realidade ao se entrecruzarem e se
afetarem mutuamente. Tal perspectiva, que em si não é necessariamente nova,
permite, porém, que certas premissas que vêm norteando a comunicação organizacional sejam problematizadas, especialmente no contexto da chamada
cibercultura ou cultura digital.
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Com a TAR percebemos que não se trata simplesmente de celebrar uma
comunicação do tipo “todos-todos” ou de saber mensurar e gerir as redes
sociais on-line como antes se buscava mensurar e controlar a opinião pública,
mas perceber o quanto “redes sociais” e “opinião pública” são e sempre foram
entidades feitas de pessoas e coisas, ao mesmo tempo abstratas e construídas,
objetivas e discursivas. Nesse sentido, o que as tecnologias de comunicação
e informação nos permitem perceber talvez não seja tanto o que e o quanto
podemos nos comunicar mais eficazmente para atingirmos determinados fins,
mas o que implica comunicar como comunicamos e que tipos de relações e
realidades produzimos quando lidamos no contexto dessas e de outras entidades presentes hoje na vida das organizações.
Mais que uma teoria, na verdade a TAR é uma abordagem que se apoia
na cartografia como método8 para tornar visível o trabalho das mediações,
seguindo-as e descrevendo-as como princípio analítico. Isso quer dizer que
com a TAR a cartografia e a descrição das mediações apresentam um caráter
não-hermenêutico, e sim “material” dos fatos. À luz da perspectiva da TAR,
uma pesquisa não se coloca como objetivo avaliar resultados ou promover explicações ou interpretações sobre os fenômenos que estuda, por considerá-los
em constante mudança, em função das relações heterogêneas que os organizam. Tampouco busca emitir interpretações sobre os atores que compõem o
processo, enquadrando os acontecimentos numa moldura teórica qualquer.
A TAR se presta a observar os processos de mediação por meios empíricos e
não apenas quando já estão “prontos”.
Nessa abordagem, o interesse do pesquisador consistirá em descrever o
trabalho de fabricação dos fatos, dos sujeitos, dos objetos; fabricação que se faz
em rede, através de alianças entre atores humanos e não-humanos. “Descrever” implicará deixar o “objeto falar” e vir na frente da análise, ditar o ritmo
do texto. Mas a descrição não é um relato burocrático do que se observa. É
propriamente uma narrativa que recorta coisas do vivido e as entrelaça com
as questões que esse vivido traz, conectando-o assim a uma cadeia de outros
fatos e enunciados, incluindo a própria experiência do pesquisador.
Como se pode imaginar, o tema da descrição na TAR, como princípio
metodológico, é complexo e desafiador. Não se trata apenas de reproduzir
em detalhe o que se observa no campo, mas de observar fluxos e produzir
narrativas capazes de evidenciar o trabalho das mediações, ou seja, os momentos em que as operações produzem sentido para as interações, práticas e
discursos que observamos. Descrever tais ações em fluxo não é tarefa simples
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e exige como já afirmaram outros pesquisadores que adotam a perspectiva
etnográfica na comunicação, como Janice Caiafa (2007), todo um trabalho
muito denso e ao mesmo tempo muito sutil com a escritura, que não exclui
nem mesmo o pesquisador e seu modo de estar no campo.
Embora a TAR tenha sido acolhida pelo menos desde os anos 1990 nas
ciências ditas exatas9, constituindo mundialmente um campo de estudos
chamado de STS (sigla em inglês para Science, Technology and Society),
apenas mais recentemente se difundiu nas ciências humanas e sociais. No
Brasil, além das áreas de ciências da computação e de engenharia de sistemas,
a psicologia social10 e a administração11 foram as primeiras áreas a estudá-la. Só
em meados dos anos 2000 começaram as primeiras pesquisas em comunicação
social, particularmente nos estudos da chamada cibercultura, embora não de
forma exclusiva12, pois a TAR não trata apenas de “tecnologia”, mas a aborda
em suas imbricações com a ciência e a sociedade e com as formas coletivas
de construção do conhecimento.
Os estudos das organizações e da administração, aliás, antes mesmo dos da
comunicação, vêm se servindo das ideias da TAR para discutir criticamente a
própria noção de organização e suas teorias. Além do próprio Latour, outros
sociólogos como John Law vêm se ocupando desse diálogo.
Em um texto publicado em 2012 intitulado “What’s the story? Organizing
as a mode of existence”, Latour, que durante alguns anos foi professor visitante
no departamento de sociologia da London School of Economics, pergunta-se,
por exemplo, se antes de falarmos de organizações no sentido de corporações,
não deveríamos falar primeiro em termos da ação de organizar. Para ele, o ato
de organizar criaria padrões de comportamento (formas de planejar, executar e
avaliar, de adaptar-se a mudanças, de gerir riscos, pessoas, recursos materiais),
que atravessariam a vida daquilo que conhecemos como “organizações”.
Pensadas menos como micro ou macroentidades no interior de uma
determinada realidade ou ordem social e mais como uma rede sociotécnica
conectada a outras redes performatizando papéis e ações, as organizações
podem ser pensadas como “formas de existência”. Maneiras de produzir
efeitos; de incluir e de excluir, de inventar, de lembrar e fazer esquecer, de
dar visibilidade a práticas, discursos, pessoas e objetos: maneiras coletivas
de ser e de agir, encarnadas em empresas privadas, universidades, governos,
instituições religiosas, do terceiro setor etc. e que produzem, por sua vez,
igualmente formas de existência e visões de mundo.
Mas como explicar que “formas de existência” de empresas como a IBM
tenham sido tão relevantes nos anos 1970 e 1980, entrado em crise nos 1990,
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quando assistimos à ascensão da Microsoft de Bill Gates, que por sua vez
perdeu o trono para a Apple de Steve Jobs nos anos 2000, que, por sua
vez, perdeu o cetro atualmente para a Google, arqui-inimiga da Facebook?
Evolução tecnológica? Jogada de marketing? Caprichos do mercado? Mudança de comportamento no consumo global? Falta de competência para
se adaptar às mudanças de cenário? Crise financeira mundial? Que fio de
Ariane permeia essas histórias complexas, misto de tecnologia, economia,
política e... celebridades?
Quando pensamos nessas tramas, não há como separar hardware de software
de dispositivos móveis e smartphones e esses das estratégias de consumo e de
marketing; nem mecanismos de busca na internet, sistemas autogerados de
“web semântica” e de “cultura do amador” de crowdfunding e da gestão de redes
sociais e nem das políticas governamentais e corporativas de distribuição da
informação. No entanto, ainda assim, ficamos sem entender o que faz com
que produtos, estratégias e ferramentas que funcionaram num certo momento
entrem em crise, percam a consistência e eficácia.
Organizações como rede e “modos de existência”
Dentro de sua abordagem da TAR, o sociólogo inglês John Law (2005)
vai enfatizar o aspecto “político” dos processos de mediação, o que nos
parece muito pertinente para estudar as organizações e também suas formas de comunicação. Interessa a Law perceber como numa organização
determinados elementos que as constituem são mobilizados, conectados e
se mantêm unidos. Para Law, uma das principais contribuições da TAR à
sociologia das organizações é explorar a relação entre os aspectos materiais
e os aspectos estratégicos da vida organizacional. Ele se pergunta: como um
gerente gerencia? Como cálculos são traduzidos em ações? Quais são os tipos
de elementos criados e mobilizados para gerar os efeitos organizacionais?
Como são superadas as resistências?
É assim que em seus estudos de gestão, Law percebeu como elementos
como “empreendimento”, “gestão”, “vocação” e “visão” em uma dada empresa operavam coletivamente para gerar agentes multiestratégicos, arranjos
organizacionais e transações interorganizacionais. O argumento de Law é
que uma organização pode ser vista como um agregado de tais elementos
que funcionam como elementos ordenados estrategicamente para gerar
“complexas configurações de durabilidade, mobilidade espacial, sistemas de
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representação e calculabilidade – configurações que têm o efeito de gerar as
assimetrias centro-periferia e as hierarquias características das organizações
mais formais” (Law, 2005: s/p).
Law também se interessa em entender como, nas organizações, esses
processos reticulares de ordenamento e de orquestração são de certa forma
naturalizados, tornados invisíveis ou então confundidos com atores específicos que seriam tomados por tais processos. É que Law chamou de “efeito
de pontualização” e que é correlato do que Latour, ao tratar dos híbridos,
chamou de purificação. Como quando há um acidente, fracasso ou falha e tais
“erros” tendem a ser tratados como questão de técnica ou de planejamento ou
logística, deixando de fora outros elementos que intencionalmente, ou não,
tomaram parte do processo.
O documentário Carne, osso13 que circulou através de um vídeo na internet
em 2011 nos mostra com nuggets de frango podem ter a ver com o INSS. O
filme conta que no oeste catarinense cerca de 80% do público atendido pelo
INSS vêm de frigoríficos da região. Trata-se de pedidos de seguro-doença,
aposentadoria, indenizações por danos físicos e psicológicos, efeitos da “tradução” de uma rede sociotécnica envolvendo empresas, seus trabalhadores,
acidentes de trabalho, máquinas, precarização das relações laborais, governo,
justiça, entre outros atores.
Creditar a causa do problema apenas às empresas seria, usando o vocabulário de Law, uma “pontualização”, quando na verdade, é preciso seguir
os rastros dos atores humanos e não-humanos para se dar conta da existência de toda uma cadeia de acontecimentos que participam da fabricação
desses fatos. Acidentes acontecem, mas não ocorrem isolados de políticas
públicas de segurança e de prevenção a acidentes e com políticas internas
de proteção ao trabalhador. Empresas têm práticas lesivas, mas isso não
ocorre sem falta de efetiva fiscalização pública e da própria empresa, de
denúncias e da ação de sindicatos.
Mais uma vez, é da organização como modo de existência que se fala,
não apenas da organização como entidade concreta e geograficamente
localizada. Pensar a organização como origem ou causa única de suas
práticas comunicativas ou as tecnologias como fator de eficácia para tais
práticas seria um efeito de pontualização, tomar toda uma rede pela ação
de alguns de seus atores. Portanto, a questão que nos moveu aqui não foi
a dos usos dessas tecnologias como ferramentas de comunicação, mas as
lógicas que organizam esses usos – em termos históricos, culturais, cog-
128
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nitivos, econômicos e políticos –, lógicas que reorganizam nossas formas
de percepção e de ação no âmbito das relações entre organizações e TIC.
Como afirma Latour (2012b), falar de uma organização em si significa perder a dimensão de que ela constitui e é constituída por algo
mais amplo: modos de vida, visões de mundo, lógicas e interesses que
mobilizam e ordenam pessoas e coisas de um certo modo. Falar de modos de organização é falar de como conjunto de funcionamentos que se
encadeiam podem expressar maneiras de viver em sociedade e encarnar
formas de ação que produzem fatos concretos. O que o vídeo Carne, osso
nos mostra é precisamente isso.
A rede sociotécnica como alegoria de um pensamento contemporâneo
sobre as relações entre as organizações e as TIC pode nos ajudar a refutar
esse efeito de pontualização nas análises organizacionais e dos processos
comunicativos. Nesse sentido, uma das grandes contribuições da TAR é
possibilitar um recuo em relação às visões tecnicistas e midiáticas do fenômeno comunicativo. Assim como as organizações não se caracterizam
apenas pelo que fazem, mas principalmente por como fazem o que fazem,
também um pensamento sobre a comunicação não deve confundi-la com
suas ferramentas e estratégias. A partir da alegoria da rede, também as
práticas comunicativas nas organizações podem ser concebidas para além
dos elementos imediatos que as constituem.
Finalmente, talvez seja esta a maior contribuição da TAR para os estudos
da comunicação organizacional no contexto da chamada cultura digital:
fornecer senhas para nos relacionarmos de outra forma com nosso próprio
tempo e tornarmo-nos o que Agamben chamou de “contemporâneos”.
Para o filósofo italiano, o contemporâneo é aquele que não se cola demasiadamente a seu próprio tempo, aquele que não tece nem uma relação
nostálgica com o passado, nem demasiado entusiasta com o presente, mas
um movimento singular de adesão e de distância que permita “manter
fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro”
(Agamben, 2009: 62). Ser capaz de enxergar as “trevas” de seu próprio
tempo, ou seja, vislumbrar suas questões e seus desafios e não apenas suas
claridades, suas supostas transparências e verdades. Ser capaz de interpelar
o presente e, quem sabe, transformar-se.
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Notas
1. Texto adaptado do trabalho apresentado no Seminário Comunicação organizacional: dimensões teóricas, humanas e discursivas. UFMG, PPGCOM-UFMG, 27 a 29 de novembro de 2013.
2. O termo paradigma é geralmente usado para descrever os fundamentos das concepções básicas
coexistentes nas teorias. Pode ser entendido como a visão de mundo aceita amplamente em uma
disciplina e que determina a direção e os métodos de seus pesquisadores. Significa dizer que é um
conjunto de visões relacionadas ao homem, à sociedade e à maneira de agir para se alcançar a verdade.
3. Uma boa descrição desses fatos foi feita por Hebe Wey, em O processo de relações públicas, e
também por Cecília Peruzzo, em Relações públicas no modo de produção capitalista, ambos publicados
pela editora Summus, em 1986.
4. Disponível em: http://www.portal-rp.com.br/historia/parte_13.htm. Acesso em 12/12/2012.
5. Os quatro paradigmas propostos por Burrel e Morgan são: funcionalista, interpretativista,
humanista radical e estruturalista radical.
6. “Mediação” é processo de transformação que desloca e organiza as ações, discursos e forças
presentes num certo contexto de conexões e de trocas entre pessoas e coisas (Latour, 1994, 2008).
7. Em suas palavras: “vou definir o social não como um domínio específico, mas como um
movimento muito particular de recombinação e reordenamento” (p. 14).
8. A cartografia como método é discutido por Latour basicamente em termos de observação
através de trabalho de campo e do relato etnográfico da antropologia, que têm o papel de fornecer uma descrição da construção dos fatos através de uma escrita “densa” de seus processos.
Exemplos concretos desse modo de descrição não se encontram, porém, no livro em que Latour
introduz e sistematiza a TAR, mas em obras anteriores como Ciência em ação e vida de laboratório,
nas quais, como sociólogo das ciências, Latour atua como etnógrafo e descreve a construção dos
fatos científicos como fatos culturais, criados através de redes de relações heterogêneas cujos
elementos incluem, além de ciência, economia, política e história, entre outros.
9. No Brasil, o grupo de pesquisa NECSO (Núcleo de Estudos de Ciência & Tecnologia e
Sociedade) foi um dos pioneiros no estudo da TAR. O grupo é responsável inclusive pela
criação de cursos e disciplinas sobre história social da ciência e da tecnologia nos programas
de pós-graduação em informática do Núcleo de Computação Eletrônica do departamento
de Ciência da Computação do Instituto de Matemática da UFRJ e do programa de pós em
Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ.
10. Um exemplo de estudo de TAR desenvolvido no campo da psicologia social na interface
com a comunicação é a tese de doutoramento de Patrícia Azambuja intitulada “Cognição e
mediação técnica: passagem analógico-digital da recepção de TV sob a ótica da Teoria Ator-rede”, defendida no programa de pós-graduação em psicologia social da UERJ em 2012.
11. Rafael Alcadipani e Cesar Tureta são alguns pesquisadores que buscam desenvolver um
diálogo entre a TAR e a administração. Cf. Alcadipani, R.; Tureta, C. (2009). “Teoria ator-rede
e estudos críticos em administração: possibilidades de um diálogo”.
Disponível online: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v7n3/a03v7n3.pdf. Acesso em 15/12/12.
12. Pesquisas em comunicação fora do campo da cibercultura têm sido desenvolvidos com
a abordagem da TAR, por exemplo, no campo da imagem e da arte como práticas sociais e
de comunicação, como é o caso das realizadas desde 2009 por um dos autores deste artigo,
Fernando Gonçalves, do programa de pós-graduação em comunicação da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.
13. http://portogente.com.br/noticias/meio-ambiente/ambiente-em-foco/a-carne-o-osso-e-o-nugget-de-frango
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132
Comum 36 - jul./dez. 2014
Resumo
O presente texto tem como objetos a análise crítica das concepções dos
paradigmas que embasam as atividades de comunicação organizacional e de
relações públicas e as contribuições da teoria do ator-rede (TAR) de Bruno
Latour e busca contribuir para aprofundar as reflexões acerca das relações
entre organizações e as tecnologias de comunicação e de informação (TIC).
O que propomos pensar é que não se trata apenas de saber adaptar-se aos
novos tempos, de reposicionar-se no presente ou de lançar mão das TIC para
obter legitimação e reconhecimento como área de exercício profissional e de
conhecimento. Provavelmente, um de nossos maiores desafios é tornarmo-nos capazes de problematizar as maneiras como entendemos e formulamos
nossas práticas e discursos na atualidade. O texto argumenta que a TAR pode
trazer algumas importantes pistas para pensar tais questões.
Palavras-chave
Comunicação organizacional – Teoria do ator-rede – TIC.
Abstract
This paper has as subjects the critical analysis of the concepts of paradigms
that underpin the activities of Organizational Communication and Public
Relations and the contributions of Actor-Network Theory by Bruno Latour
and aims to contribute to depth the reflections on the relationship between
organizations and Communication Technologies and Information (ICT).
What we suggest here is that the matter it is not only about knowing how to
adapt to new times, or to repositioning itself in the present neither of making
use of ICT for PR to get legitimacy and recognition as an area of professional
practice and knowledge. Probably one of our biggest challenges is to become able to discuss the ways we understand and formulate our practices and
discourses today. This a discussion for which ANT can probably give some
important clues.
Keywords
Organizational Communication – Actor-Network Theory – ICT.
Comum 36 - jul./dez. 2014
133
O repensar da área de relações públicas
e o projeto do curso de RP da FACHA
Anderson Ortiz
Charbelly Estrella
Cláudio Cotrim
Maria Helena Carmo
Ricardo Benevides
O momento das comemorações dos 100 anos da atividade de relações públicas no Brasil favorece a reflexão sobre como a profissão se desenvolveu no país,
para além de sua história de exercício nas organizações públicas, privadas e do
terceiro setor ou da visão dos indivíduos que a abraçaram em sua trajetória de
vida. Os esforços para investigar a evolução da área foram numerosos até aqui,
merecendo destaque obras como as de Gurgel (1985), Kunsch (1997) e Moura
(2008). Tanto quanto, e não apenas no caso de relações públicas, com frequência
veremos estudos nos quais o pensamento sobre uma atividade profissional está
vinculado às especificidades de projetos de ensino, posicionando as práticas da
revisão conceitual na esfera acadêmica. É bem verdade que os cursos universitários não têm qualquer exclusividade sobre a análise evolutiva de uma carreira,
nem sobre as definições de suas funções e desempenhos. Muitos organismos se
detêm sobre o tema – órgãos de classe, entidades não-governamentais, órgãos de
regulação governamental, grupos autônomos de pesquisa, entre outros. Também
não se deve desconsiderar que o próprio segmento de atuação profissional pode
contribuir ativamente para a visão e revisão de uma determinada formação.
Mas, voltando ao caso de relações públicas, a autorreflexão da área sobre sua
dimensão histórica – que contempla o ato de revisitar seus episódios mais marcantes,
compreender sua inserção no contexto social, político e econômico do Brasil após a
primeira década do século XXI, permitindo fazer projeções para o futuro – encontra
Comum - Rio de Janeiro - v.16 - nº 36 - p. 134 a 147 - julho / dezembro 2014
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Comum 36 - jul./dez. 2014
na homologação de novas diretrizes curriculares para a profissão, pelo Ministério da
Educação (2013), uma oportunidade bastante significativa. Os procedimentos empreendidos pela comissão de especialistas que propôs esta atualização dos princípios
basilares de relações públicas foram muito diversos. Após audiências públicas, consultas virtuais e a participação de entidades, profissionais e docentes do país inteiro,
fixou-se um documento que tem a pretensão de orientar as reformas curriculares
e o ensino da carreira, procurando dar conta das demandas mais contemporâneas.
Entre os princípios gerais que norteiam o documento, merece destaque
o trecho no qual são mencionadas as linhas de formação e regionalização:
Em seus projetos pedagógicos, as instituições de ensino ofertantes
poderão definir suas linhas de formação específicas, apresentando
identidade mais precisa e marcada para o profissional de relações públicas. Observando as diretrizes, as instituições podem adotar linhas
de formação condizentes com suas demandas sociais, sua vocação
e sua inserção regional e local (Ministério da Educação, 2013: 10).
Está claro para o órgão regulador que, sendo o Brasil um país de dimensões
continentais e complexo em suas especificidades regionais, deve-se reconhecer
o aspecto político de certas escolhas na construção dos saberes de um curso,
para acomodar questões locais e características fundamentais de cada contexto
de inserção, sem perder de vista o espírito norteador daquele documento. Mas,
parece ainda mais importante atentar para a passagem que sugere a possibilidade
de uma instituição de ensino buscar, com essas linhas de formação, uma “identidade mais precisa e marcada”. A expressão de uma “vocação” pode aparecer
em papel central no projeto pedagógico, sendo respeitadas estas diretrizes.
Não estivesse o ensino de relações públicas instado a se repensar por uma
circunstância histórica (os 100 anos), o documento do Ministério da Educação já
forçaria esse exercício. Nesse aspecto, cabe discutir então que papel pode ter a história
e a cultura de uma instituição de ensino na construção de sua matriz curricular, na
elaboração de seu projeto político-pedagógico. A questão parece emergir justamente
da possibilidade de haver uma “vocação institucional” como fruto de algo representativo na trajetória e na singularidade cultural de uma organização de ensino.
Ao nos referirmos à cultura organizacional, não devemos esquecer que
o conceito é amplo e comporta muitos significados. Elliot Jacques (apud
Marchiori, 2008: 78) classifica a ideia como uma “forma costumeira de fazer
as coisas, compartilhada em proporção maior ou menor entre todos os mem-
Comum 36 - jul./dez. 2014
135
bros e sobre a qual os novos devem aprender a, pelo menos, aceitar”. Frost
acrescenta elementos simbólicos que podem ser essenciais para determiná-la:
(...) falar sobre cultura organizacional parece que significa falar
sobre a importância para as pessoas do simbolismo – dos rituais,
mitos, estórias e lendas – e sobre a interpretação de eventos,
ideias e experiências que são influenciadas e moldadas pelos
grupos nos quais elas vivem (apud Marchiori, 2008: 85).
Maryan Schall (apud Freitas in: Kunsch, 2001: 44) sugere que a própria
organização é um fenômeno de comunicação “e sua cultura se estabelece, se
modifica e se cristaliza por meio da comunicação”, lançando luz sobre o fato
de que toda experiência cultural vivida é, de alguma forma, fruto de algum
tipo de representação ou, noutro sentido, mediada por alguma linguagem.
Mas se a cultura organizacional também é fruto de uma rede de interações
bastante complexa que depende das visões de mundo e das percepções de seus
membros, é inevitável pensar que ela também está relacionada aos valores
compartilhados, os princípios que, ao menos hipoteticamente, estão inseridos
naquela dimensão cultural. Sidinéia Gomes Freitas lembra que “valores não
são criados aleatoriamente. Eles já existem na cultura organizacional e são
substituídos em determinados estágios” (in: Kunsch, 2001: 44).
Se a cultura de uma organização prevê o compartilhamento de valores,
tomando-se a instituição de ensino como exemplo, é natural supor que sua
identidade seja influenciada por esses princípios em muitos aspectos de sua
atuação. Eis que podemos avançar e discutir sobre como certos valores presentes
na cultura organizacional das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA)
são absorvidos no projeto político pedagógico de seu curso de relações públicas.
A FACHA ofereceu seus primeiros cursos de nível superior em 1971, o de
RP entre eles – portanto apenas quatro anos depois de a Escola de Comunicação
e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo lançar pioneiramente o seu curso
de RP. Estava em vigor o regime militar no Brasil e, ainda que as demandas
sociais atrelassem o desenvolvimento do país ao investimento em educação de
nível superior, a conjuntura de repressão à liberdade de pensamento não favorecia a constituição de espaços acadêmicos em seu sentido pleno. Ainda assim,
nesse contexto de conflito, os cursos da FACHA foram concebidos de modo a
garantir espaços a divergências de opinião, tendo como fato marcante a decisão
de acolher em seu quadro docente professores perseguidos pelo regime.
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Comum 36 - jul./dez. 2014
A partir de então, outros dados peculiares do cotidiano acadêmico da instituição passaram a apontar para a existência de uma cultura organizacional realmente singular. Prática ainda não tão comum às organizações de ensino privadas,
adotou-se o sistema de eleição de coordenadores por voto direto do colegiado
de professores. Foram estabelecidas garantias como liberdade de cátedra e a
consequente autonomia dos docentes no processo de avaliação, evitando-se
qualquer tipo de interferência das coordenações nas decisões de sala de aula.
A influência desses princípios no dia a dia da instituição viria a impregnar
– como é frequente na dinâmica cultural do compartilhamento de valores – o
alunado em seus pontos de vista sobre direitos fundamentais e democracia.
Relatos de ex-docentes da FACHA dão conta de que, nos anos 1980, seus
estudantes promoveram movimentos contra o aumento de mensalidades,
chegando ao extremo ato simbólico de organizar uma queima de carnês no
pátio da instituição. Em outro momento à frente, pressionaram a mantenedora
da instituição a realizar o investimento em aparelhos de ar condicionado para
as salas de aula. Queremos ver essas circunstâncias não como fatos isolados,
mas como resultado da construção de um ambiente acadêmico no qual a liberdade de expressão e posicionamento político foi sempre algo a ser zelado.
Ao longo de mais de 40 anos de existência, a instituição foi frequentemente
reconhecida por sustentar uma política de demissão cautelosa, registrando
baixa rotatividade de professores. Sem dúvida, isto contribuiu para estabelecer
o ambiente de liberdade de opinião e tolerância às divergências. Também pode
ter influenciado na política de contratação que buscou sempre a diversidade, a
pluralidade de pensamento e, noutro sentido, o perfil do docente mais voltado à
reflexão que a qualquer outro aspecto. Reflexo disso se faz sentir na importância
que historicamente se atribui na FACHA às disciplinas do chamado ciclo básico
da formação em comunicação social, não apenas em sua variedade como também
na estrutura curricular que lhe garante significativa carga horária.
Estes aspectos da cultura FACHA são espelhados na constituição de um
projeto político-pedagógico e se fazem sentir de muitas maneiras.
Teoria e prática formam o mesmo elemento
Tanto quanto o aspecto institucional que embala a vocação do curso de relações
públicas historicamente, o que se reflete em sua política de ensino e convívio com
os públicos, há outra dimensão que se impõe no planejamento pedagógico da FACHA: a realidade revelada pelo perfil do corpo discente, via sucessivas pesquisas
Comum 36 - jul./dez. 2014
137
institucionais, apresentando um aluno interessado em inserir-se no mercado de
trabalho, sem com isso negligenciar ou ignorar o traço de reflexão crítica que a
boa formação acadêmica propõe e assume como compromisso a priori.
Unir teoria e prática tem sido uma constante no planejamento pedagógico institucional. Aliás, se há um consenso entre o grupo de professores da instituição, é que
sempre fez pouco sentido separar “teoria” e “prática” como dimensões estanques,
quando a própria ciência caminha para o reconhecimento dos híbridos como tradutores mais plausíveis da realidade. Trata-se de duas dimensões presentes em todos
os fenômenos da comunicação e qualquer explicação que isole exclusivamente uma
das dimensões assume riscos epistemológicos, por vezes impossíveis de superar.
É verdade que os alunos que buscam os cursos de RP da instituição enxergam no seu programa uma dimensão técnica que os insira no mercado de
trabalho, aparelhados das habilidades requeridas do profissional de comunicação social. Isso se reflete, entre outras variáveis, na demanda sensível do
curso noturno em detrimento dos outros turnos possíveis.
Mas, também é possível perceber que os alunos de RP se identificam com
as discussões que ajudam a amadurecer sua reflexão sobre as características
das organizações, locus por onde boa parte já circula ou deseja atuar. Isso
porque o que se obtém de tais análises em sala de aula, laboratórios, projetos
de pesquisa, eventos e extensão contribui para aprimorar a capacidade de interpretar os ambientes de organização que tendem, cada vez mais, a modelos
contemporâneos (cf. Kunsch, 2003), seja pelo viés da prática real ou do fetiche
pelas novas formas de gestão organizacional em voga.
É da natureza de organizações contemporâneas o convívio em ambientes de
trabalho onde o indivíduo já deve trazer amadurecida uma série de concepções
mentais, fruto do próprio investimento pessoal, atributos necessários para: julgar
equilibradamente situações ambíguas; motivar-se mesmo em momentos adversos;
mediar interesses conflitantes; trabalhar sem hierarquia formal, mas dentro de um
senso de missão; compor equipes de trabalho transversais, reunidas ou geograficamente dispersas; engajar-se nos projetos que desenvolve, com efetividade na
entrega e qualidade no acabamento; participar na construção de clima favorável,
tanto desenvolvendo trabalhos que moldam a cultura e compartilham os objetivos
da instituição quanto se comportando, ele próprio, como evidência desse bom
ambiente laboral; entre vários outros atributos que as organizações contemporâneas
esperam que o indivíduo já traga em sua “caixa de ferramentas”, quase pronto.
Essa expectativa naturalizada no ideário da atualidade, aliás, também encontra eco entre detratores importantes, como as análises de Sennett (2008)
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sobre a combalida questão da lealdade que esses traços transformados atuais
impõem aos indivíduos que desejam permanecer “interessantes” aos seus
possíveis contratantes. O investimento na formação desse perfil ficou agora
todo a cargo do postulante à vaga de um emprego.
E dominar tais conceitos tem sido positivo para os alunos, como forma de
inserção e progressão no trabalho, muitos deles já egressos de cursos outros
na comunicação ou demais setores das ciências sociais, tais como jornalismo,
publicidade e propaganda, radialismo, história, serviço social, psicologia, administração, relações internacionais, entre outras áreas. Tem sido recorrente a
manifestação de que “dentro do curso de RP, finalmente nomeiam-se uma série
de circunstâncias da dinâmica cotidiana da Comunicação em seus domínios
de trabalho que explicam o que está acontecendo”, o que outros repertórios
acadêmicos não têm espaço ou interesse em fazer.
É na dimensão das relações públicas que as teorias estão produzindo sentido para as práticas transformadas de gestão de organizações, que se refletem
necessariamente na forma como os projetos que dependem da comunicação
vão se estruturar. O que equivale a dizer: praticamente tudo o que lida com a
dinâmica e o processo de gestão organizacional de empresas, governos e máquina estatal ou entidades sem fins lucrativos, já que a comunicação adquire
caráter transversal e estratégico na forma como se administra.
Teoria e prática revelam-se, portanto, dimensões imbricadas, fruto da experiência refletida, daquilo que se observa no cotidiano e pode ser lido explícita ou
implicitamente nos autores pioneiros; como também daquelas situações que,
transformadas ou novas, exigem novas abordagens teóricas, métodos inovadores de análise, técnicas diferenciadas de conhecer o “objeto” da comunicação.
Nesse sentido, a FACHA tem reunido um corpo docente com caráter diferenciado: professores que caminham de forma consistente tanto no “mercado”,
quanto na “academia”. E a pergunta retoricamente merece ser colocada: será que
verdadeiramente existe uma separação entre as discussões que se estabelecem no
“mercado” e aquelas que são objeto de ciência na “academia”? A atuação dupla da
equipe de professores tem prestado um serviço aos alunos nesse sentido. Não apenas são trazidos os depoimentos da forma técnica com que se planejam e executam
os projetos da comunicação, posto que os vivem no espaço do mercado. Como
também, por outro lado, obrigam-se a investir na formação acadêmica tradicional
para refletir o que vivenciam tecnicamente, sem perder a capacidade de crítica, de
intervenção, de transformação e de compartilhamento dessa experiência a partir
das instâncias e etapas do fazer científico (cf. Lopes, 2005).
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Trata-se, assim, de uma nova safra de “profissionais-professores”, que de forma
dinâmica reúnem às dimensões “teórica” e “prática” sua própria experiência de vida,
fazendo suas trajetórias com os pés em ambos os espaços, os mercadológicos e os
acadêmicos, de forma concomitante. Algo, talvez, que as gerações anteriores à atual
tenham tido dificuldade de fazer. Não à toa, parece que as boas vagas em relações
públicas, logo depois da regulamentação da carreira em 1967, foram devidamente ocupadas e esses profissionais se afastaram por completo da missão reflexiva na academia.
Como resultado disso, o campo acadêmico repete infinitamente os poucos
autores e instituições que mantiveram uma produção de alto nível ao longo dos
47 anos de registro legal da profissão, em geral reunidos nos núcleos sul-sudeste
do país. Perdeu-se a dimensão da práxis da produção acadêmica e, junto com ela,
a capacidade de renovação teórica e a descoberta de novos métodos de análise
reflexiva. Chega-se aos 100 anos da profissão, especula-se, à procura de novos
referenciais teóricos que deem conta da realidade transformada. Embora os casos
de relações públicas existam e multipliquem-se como realizações, raramente os
profissionais têm coragem de categorizá-los como ações de RP, o que enfraquece o
campo profissional e dificulta esclarecer os novos comunicadores que se formam.
O objetivo que se coloca tecnicamente é demarcar o espaço das relações
públicas dentro do campo profissional mais amplo da comunicação. Não mais
como aquilo que o profissional de RP pode exclusivamente fazer. Ao contrário, na
gestão administrativa necessária, em ambientes de organização, de projetos amplos
de comunicação, tendo à frente gestores da comunicação que sejam capazes de
diagnosticar, planejar, executar, controlar e mensurar um espectro no qual todas
as áreas de comunicação necessitam ser mobilizados: publicidade e propaganda,
jornalismo, produção editorial, audiovisual, design, marketing, estudos de mídia,
cibercultura, entre outros. Não mais o que é exclusivo de RP, mas sim como se
coadunam todos os demais campos da comunicação para os projetos organizacionais. Eis aí no que os professores da FACHA acreditam: é preciso formar líderes
gestores com especialização na comunicação social, que sejam capazes de mobilizar
qualquer outra vertente das ciências sociais no planejamento e consecução dos
trabalhos. Essa perspectiva tem pautado as escolhas programáticas da instituição.
Por exemplo, na formulação do programa que ora vigora na instituição –
pré-reforma curricular do MEC, registre-se – prevalecem escolhas que lidam
com os distintos modelos de organização; os variados setores de organização;
e as vertentes da comunicação integrada.
Seguindo, então, por três eixos distintos, as disciplinas estão organizadas de
forma a reconhecer, primeiro, a dimensão da realidade atual das organizações, que
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compõem e trocam dentro do sistema capitalista, tendo por base o crescimento
econômico contínuo; a democracia política qualificando a esfera pública; o Estado
de bem-estar social; e a inovação tecnológica como fonte de transformação.
Assim, reconhecer o eixo dos modelos significa articular com as teorias
clássicas que indicam existir organizações tradicionais, modernas e contemporâneas (cf. Kunsch, 2003), cada qual com suas concepções mentais, pontos
fortes e fracos, todas elas capazes de sobreviver, adaptar-se aos novos tempos,
assim como também desaparecerem se não lerem corretamente o ambiente.
Não se acredita que a característica contemporânea seja uma missão teleológica
para toda e qualquer organização, embora muitas delas aceitem isso como
fetiche. Muitas são as que optam pelos sistemas mentais precedentes e, de
tão bem sucedidas e enraizadas culturalmente na forma de pensar e fazer, são
capazes de garantir diferencial, perenidade e estabilidade.
No eixo dos setores, as disciplinas respeitam as necessidades de planejamento
e execução dos assuntos da comunicação e gestão nas organizações públicas
(primeiro setor – governos, estatais e demais aparelhos burocráticos do Estado), privadas (segundo setor – empresas em geral, nacionais, multinacionais
e transnacionais) e entidades sem fins lucrativos (terceiro setor – associações,
instituições de pesquisa, ONGs, organizações sociais e de interesse público, entre
outras). Cada uma exige uma abordagem diferenciada, evitando-se as fórmulas
prontas e reducionistas. Cada qual demanda uma abordagem diferente e formas
distintas de organizar a comunicação, o que exige um quadro de profissionais
que entendam a dimensão técnica, mas também política do que faz.
E na vertente da comunicação integrada, os projetos devem ser contemplados em
suas dimensões externa e interna no repertório mercadológico (espécie de “primo
rico” do sistema); institucional (“gênio dentro da lâmpada”); e administrativo (o “elo
perdido” para outros campos). Cada uma das vertentes, sozinhas, daria azo a uma
análise exclusiva em forma de artigo, o que seria exagerado propor neste espaço.
Articulando-se os três eixos (modelos, setores, vertentes), revelam-se ao menos
27 repertórios distintos de organizações que podem criteriosamente ocupar tais espaços de análise. Além dos incontáveis casos que podem esconder-se nas “dobras”
dos eixos, revelando organizações de todos os tipos. Um empreendimento que,
inclusive, deve ser feito com parcimônia junto aos profissionais da administração,
da tecnologia da informação, do direito, do serviço social, da psicologia social,
entre outros campos na sombra das análises teóricas feitas até aqui.
É dentro desse quadro desafiador que a FACHA mantém por mais de 40 anos
seu curso de relações públicas, inclusive seguindo contra a corrente que, ao longo
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dos anos 1980 e 1990, sentindo a ausência de reflexão da área e a demanda de
novos estudantes, fez com que cursos tradicionais dentro do estado do Rio de
Janeiro fechassem as portas. A despeito das práticas que se avolumavam no
mercado; das mudanças de contexto da comunicação no plano internacional,
em que públicos mais críticos e conscientes mudam o quadro relacional dessas
sociedades; que a comunicação social firma-se, enfim, como um valor para as
esferas públicas de países no Ocidente e no Oriente. O diálogo e a imbricação
institucional, mais do que nunca, são fundamentais para sustentar e transformar
o sistema social. E a FACHA acerta quando continua a enxergar esse quadro.
É por isso que a instituição e seus professores, se por um lado consideram
como positiva a chance proporcionada pelas novas diretrizes da área – qual seja,
repensar continuamente seu projeto de curso –, por outro recebem-nas com
relativa preocupação uma vez que desconsideram parte das expectativas do alunado da comunicação social que precisa trabalhar para sustentar sua permanência
na universidade (pública ou privada). E, além disso, o próprio entendimento
sobre o lugar da comunicação social na estrutura do ensino brasileiro tal e qual
proposta pelo Ministério da Educação pode criar uma ultra segmentação forçada
de campos de saber cuja prática diária, como afirmamos acima, caminha para
uma convergência de campos, com espaços claros para incluir harmoniosamente
todos eles. Por que separá-los, então? Vamos construir barreiras ou pontes?
Conclusões sobre o Projeto de curso de relações públicas da FACHA:
a busca da reflexão permanente com foco na formação do corpo discente
São muitos os desafios que estão implicados na criação, consolidação e manutenção de um curso superior. Não seria diferente com o curso de relações
públicas. Há a responsabilidade de manter um corpo docente qualificado,
que articule muito bem o conhecimento amplo dos mais diversos saberes da
comunicação social e das ciências sociais, fundamentais para formar o “olhar”
do futuro profissional de relações públicas. Mas deve haver também um planejamento pedagógico de longo prazo que procure refletir constantemente sobre
as novas exigências da sociedade contemporânea e das organizações, além de
garantir o compromisso constante em construir laços com alunos, egressos
e entidades parceiras, como o Conselho Regional de Relações Públicas/RJ1,
o movimento Relacione-se, o Observatório da Comunicação Institucional,
empresas, associações ligadas à comunicação empresarial, como a ABERJE, e
mesmo pólos de disseminação de cultura, como o Imperator – Centro Cultu-
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ral João Nogueira2. Enfim, é um projeto pedagógico que tem como objetivo
articular experiências e discussões que propiciem aos atuais e futuros alunos
do curso de relações públicas da FACHA a percepção (e a vivência) de nosso
ponto de vista orgânico sobre a mencionada relação teoria-prática, contribuindo para a formação de profissionais aptos ao exercício de RP e críticos
quanto ao seu papel nas (para as) organizações, ou seja, defensores das boas
práticas comunicacionais.
Em relação aos egressos de relações públicas das Faculdades Integradas
Hélio Alonso, o curso deve continuar apontando para uma formação sólida que
alie forte componente humanístico e visão integrada da comunicação, de modo
a desenvolver competências de análise conjuntural da realidade organizacional,
identificando as dinâmicas socioculturais e ponderações sobre seus impactos
na comunicação institucional. Os métodos de ensino precisam provocar nos
alunos discussões em torno dos estudos de caso e, tanto quanto, contemplar
trabalhos dirigidos para organizações (privadas, públicas e do terceiro setor),
favorecendo o planejamento de políticas e estratégias de relacionamento. Mas
essa vivência deve ultrapassar o ambiente de aula.
Ainda no curso, a expectativa é de que se ampliem as situações reais de mercado
no plano do aprendizado discente de duas maneiras: em atividades realizadas pelo
Escritório de Relações Públicas, o laboratório modelo do curso, e de eventos,
como o Encontro com Relações Públicas3 e a Aula Inaugural, que aproximam os
alunos e os profissionais, entre os quais muitos formados pela FACHA. Tal troca
de experiência, planejada para oferecer ao corpo discente uma ampla gama de
oportunidades de conhecer a área, é fundamental para a integração entre egressos
e estudantes do curso. Essa articulação também deve favorecer a criação de um
ambiente de interlocução com as demais áreas da comunicação.
Mais do que ações pontuais, o curso de RP da FACHA vem estabelecendo
uma política de relacionamento com os egressos, o que, aliás, é uma a premissa das
relações públicas: construir e manter relacionamentos com públicos de interesse.
Por essa razão, a atualização dos contatos com ex-alunos, o mapeamento das áreas
em que atuam no mercado e a visibilidade de suas conquistas contribuíram para o
planejamento de novas ações, como a campanha “Relações Públicas em Alta”, cujos
principais objetivos apontam para a valorização dos egressos e a divulgação para o
corpo discente sobre as potencialidades de atuação da atividade de relações públicas.
Como estratégica de relacionamento também com os egressos e como recurso
para ampliar a comunicação por meio das ferramentas digitais, desde abril de 2013,
o curso de relações públicas criou o perfil do Escritório de Relações Públicas4 para
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divulgar as informações sobre a atividade, as perspectivas profissionais, bem como
ações realizadas pelo próprio curso. O perfil do laboratório modelo traz notícias do
mercado profissional, links para matérias relacionadas às relações públicas e às áreas
afins, material promovido pelo curso e/ou por instituições parceiras, dentre outras.
Na projeção de futuro do curso, o Escritório de Relações Públicas, criado
em março de 2008, deve ter um papel ainda mais fundamental. Sendo um
espaço interdisciplinar para alunos (estagiários de relações públicas e de outras
habilitações da comunicação social oferecidas pela faculdade, como jornalismo,
publicidade e radialismo), pretende ser um ambiente para a vivência da comunicação institucional integrada. Nesse espaço acadêmico, com a supervisão de
professores, os alunos desempenham atividades diversas, como campanhas
institucionais previamente definidas com a coordenação do curso; apoio a
eventos acadêmicos internos (cursos de comunicação, turismo e direito); apoio
a eventos externos correlatos com a carreira de relações públicas; divulgação de
eventos, pesquisas, produções acadêmicas e parcerias relacionadas ao curso utilizando, para isso, diferentes plataformas comunicacionais; suporte prático para
metodologias desenvolvidas nas disciplinas de relações públicas; elaboração de
relatórios de acompanhamento das ações realizadas, custos envolvidos e resultados mensurados; e produção de conteúdo e gestão do Facebook do Escritório.
Essa busca por oferecer ao corpo discente uma formação de qualidade
demanda o repensar contínuo do curso de relações públicas. Para tanto, a
visão que temos envolve a necessidade de um aprimoramento permanente
do corpo docente, no duplo movimento já explicitado anteriormente, recorrendo à formação em nível de pós-graduação para nos manter num caminho
de arejamento de ideias e reflexão e, noutro sentido, procurar circunstâncias
em que a análise das práticas de mercado sirvam aos objetivos da atualização
na área – a participação em comissões julgadoras como a do Prêmio Aberje
de comunicação empresarial pode exemplificar bem esta intenção.
No que diz respeito à produção de conhecimento na área, é preciso admitir
que ela ainda é tímida, e talvez isto seja reflexo de fenômeno regional. Nos 100
anos de existência da atividade no Brasil, o Rio de Janeiro ainda não estruturou
pesquisa acadêmica sobre o tema, embora muitas tentativas tenham surgido ao
longo dos últimos 20 anos. Essa falta não está à altura do que os cursos de formação superior e os profissionais cariocas representam para a profissão no Brasil.
Além do curso da FACHA, a cidade possui outra escola tradicional, pública, a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em ambas ainda observamos a
ausência de linhas de pesquisa que se dediquem integral e exclusivamente ao campo
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das relações públicas. Essa constatação não toma forma na impossibilidade, mas em
desafio para o departamento de relações públicas da FACHA. Esse seria o compromisso institucional inadiável de assumir a dianteira desse processo, para consolidar
a proposta de formação acadêmica que temos buscado para nosso corpo discente.
Sob a forma de um pacto departamental, que inclui nosso corpo discente, a
estruturação de uma linha de pesquisa em relações públicas, para a FACHA, busca,
principalmente, estabelecer um diálogo entre os demais cursos da comunicação
social, assim como reconhecer as emergências nos novos desenhos organizacionais, uma das abordagens fundadoras para a área. Desse pacto deve resultar
uma proposta de pesquisa que traduza a expectativa do corpo discente, com a
iniciação científica, e que ratifique o compromisso institucional e acadêmico da
FACHA na formação da consciência crítica de seu alunado. Assim as relações
públicas assumem seu caráter ético, técnico, estratégico e, principalmente, crítico
às conformações institucionais que se apresentam no mundo contemporâneo.
Mas, acima de tudo, é preciso dar relevância a outros diálogos, como tem sido
feito de maneira interdisciplinar com o curso de direito e os estudos sobre consumo,
consumerismo e relacionamento com cliente. Nessa perspectiva, o curso de relações
públicas da FACHA inicia a definição de uma espécie de vocação acadêmica focada
no diálogo com áreas para além da comunicação e da administração e assume o relacionamento com o cliente nas organizações atuais, considerando as condições de
possibilidade da comunicação digital, em todas as suas formas, práticas e públicos,
como o primeiro passo para consolidar a pesquisa em RP no Rio de Janeiro.
A demanda pela pesquisa se faz em um encontro agendado entre o corpo docente
e discente, com necessidades alinhadas com a expectativa da direção das Faculdades
Integradas Hélio Alonso. Esse alinhamento de interesses pode ser a força motriz da
proposta. A FACHA sempre colocou a formação crítica de seus graduandos como
missão primeira e realizou isso amplamente, em sua história institucional, em seu
corpo docente, na construção de suas grades curriculares e nas ações sociais e políticas que realizou e apoiou. A pesquisa científica é passo inevitável nessa trajetória.
A reflexão e a produção científica estruturada são condições de possibilidade
para repensar e reelaborar as práticas das relações públicas, legitimando sua
renovação. Para além do compromisso institucional, há o soberano compromisso da produção de conhecimento, que envolve não apenas professores
pesquisadores, mas que deve constar na agenda de todos os profissionais da
área. Só a produção de conhecimento, por meio da pesquisa acadêmica, pode
dar condições à formalização de uma verdadeira “escola” de relações públicas
no Rio de Janeiro.
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Enquanto esta intenção não se concretiza, a preocupação constante em
criar e manter vínculos, em gerenciar relacionamentos com alunos, egressos,
professores e instituições parceiras e o comprometimento em manter planos
de ensino atualizados mediante os desafios de prepararmos nosso alunado
para “ler” o macro e micro ambiente organizacional fizeram do curso de RP
da FACHA uma referência de ensino no Rio de Janeiro. Em 2014, a avaliação
institucional externa conduzida por uma comissão de especialistas do Ministério da Educação conferiu reconhecimento a este projeto, atribuindo-lhe
nota quatro (em escala que vai até cinco), sugerindo que o curso caminha na
direção certa. Mas, há muito o que fazer, seja por um ambiente externo que
pressiona constantes reflexões e ajustes ao projeto pedagógico do curso, seja
pelo nosso ambiente interno que nos impulsiona sempre a buscar o melhor
para o curso de relações públicas.
Notas
1. Como resultado de ações conjuntas para divulgar a área de relações públicas, o Escritório de
Relações Públicas, laboratório modelo do curso, ganhou o diploma de Patrono das Relações
Públicas em 2 de dezembro de 2013, Dia Nacional das Relações Públicas do Conrerp/RJ.
2. Exemplo desse tipo de vínculo é a parceria celebrada pela FACHA e o referido centro cultural, que envolve estudantes do curso num procedimento de pesquisa de campo ao longo do
segundo semestre de 2014.
3. Evento realizado semestralmente desde 2013 como parte de uma política de relacionamento
com os egressos a fim de trazer profissionais de Relações Públicas formados pela FACHA para
compartilharem experiências de trabalho com o corpo discente.
4. Endereço: facebook.com/erpfacha
Referências
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KUNSCH, Margarida Maria Krohling. Obtendo resultados com relações públicas.
São Paulo: Thomson, 2001.
GURGEL, João Bosco Serra e. Cronologia da evolução histórica das relações públicas.
Brasília: Linha Gráfica e Editora, 1985.
KUNSCH, Margarida Maria Krohling. Relações públicas e modernidade: novos
paradigmas na comunicação organizacional. São Paulo: Summus, 1997.
__________. Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. São Paulo:
Summus, 2003.
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Pesquisa em comunicação. São
Paulo: Edições Loyola, 2005.
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso
de Relações Públicas. Processo n. 23000.013995/2010-54. Brasília: Conselho
Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior, 2013. DOU, Seção 1,
12/09/2013 (homologação).
MOURA, Cláudia Peixoto de (Org.). História das relações públicas: fragmentos
da memória de uma área. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Resumo
Nos 100 anos de relações públicas no Brasil e em mais de quatro décadas de
cursos de relações públicas na FACHA, propomos, neste artigo, uma reflexão
mais ampla sobre a área em nosso país e como o curso de RP da FACHA vem
se repensando, desde o seu início para desempenhar o seu papel educacional:
proporcionar uma sólida formação acadêmica em que teoria, prática e pesquisa, juntas, contribuam para que o corpo discente seja um ator crítico no
planejamento, execução, coordenação e avaliação das práticas comunicacionais.
Palavras-chave
Relações públicas – Cem anos de RP – FACHA.
Abstract
Over hundred years of Public Relations in Brazil and during more than
four decades of the Public Relations course offered at FACHA, in this article
we propose a broader reflection on the profession in our country and on how
the PR course at FACHA has been rethinking itself, from the very beginning,
to fulfill its educational role: to provide a sound academic education in which theory, practice and research, together, contribute to make our students
critical actors in planning, implementation, coordination and evaluation of
communication practices.
Keywords
Public Relations – Public Relations’ 100th anniversary – FACHA.
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