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Assunto Especial – Doutrina
Provas no Direito Previdenciário
Concessão do Benefício de Prestação Continuada à Criança
Portadora de Retardo Mental Severo Congênito e Quadro Psicótico
Compatível com Autismo Infantil
TATIANA SADA JORDÃO
Procuradora Federal, Pós-Graduada em Direito Público e Direito Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj/Unesa, Mestranda em Política Social pela
Universidade Federal Fluminense – UFF.
RESUMO: O presente trabalho aborda o benefício de prestação continuada, programa de transferência de renda que busca dar efetividade ao exercício da cidadania para uma parcela da sociedade
que se encontra desamparada. Procura demonstrar que o Juizado Especial Federal, órgão do Poder
Judiciário onde tramita a maioria das ações sobre benefício assistencial, representa uma forma de
concretizar o acesso à justiça, na medida em que possui mecanismos capazes de proporcionar uma
rápida e efetiva prestação jurisdicional. E, para tanto, analisa o caso de um menor, com cinco anos
de idade, portador de retardo mental severo congênito e quadro psicótico compatível com autismo
infantil, que teve seu benefício negado na esfera administrativa, razão pela qual ingressou com ação
judicial no Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro.
PALAVRAS-CHAVE: Benefício de prestação continuada; acesso à justiça; Juizado Especial Federal.
ABSTRACT: This paper discusses the Continuous Cash Benefit, income transfer program that seeks
to give effect to the exercise of citizenship for a portion of society that is rendered helpless. It seeks
to demonstrate that the Special Federal Courts, the State Court which clears most of the action on
assistance benefit, represents a way of achieving access to justice, in that it has mechanisms to
provide a quick and effective adjudication. And for that analyzes the case of a minor, a five-year-old
with severe congenital mental retardation and psychotic compatible with infantile autism, which had
its benefits denied at the administrative level, which is why filed a lawsuit in Special Federal Courts
of Rio de Janeiro.
KEYSWORDS: Continuous cash benefit; access to justice; Special Federal Courts.
SUMÁRIO: 1 Assistência social como política de proteção social; 2 Breves considerações sobre o benefício de prestação continuada; 3 O acesso à justiça e o Juizado Especial Federal; 4 O caso concreto
do menor portador de deficiência; Considerações finais; Referências.
1 ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO POLÍTICA DE PROTEÇÃO SOCIAL
A Constituição da República de 1988, no art. 194, conceitua seguridade
social como o conjunto de ações dos Poderes Públicos e da sociedade, tendentes a garantir três tipos de direitos: saúde, assistência social e previdência social.
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A saúde tem o atributo da universalidade, é um direito de todos e dever
do Estado. A previdência será devida mediante contribuição. Por sua vez, a
assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição. Verifica-se, portanto, que a assistência social tem como principal
característica a gratuidade, vale dizer, ela é prestada gratuitamente aos necessitados.
Para Marcelo Leonardo Tavares (2005, p. 17), “a assistência social é política social destinada a prestar, gratuitamente, proteção à família, maternidade,
infância, adolescência, velhice e aos deficientes físicos (art. 203 da CR)”.
O direito à assistência social é um direito fundamental social, fazendo
parte da estrutura fundamental do Estado. Corroborando com esse entendimento, Tavares (2005, p. 18) nos ensina que a assistência social deve garantir prestações sociais mínimas e gratuitas, ficando a cargo do Estado prover pessoas
necessitadas de condições dignas. Trata-se de um direito social fundamental
do cidadão, sendo certo que, para o Estado, é um dever a ser realizado através
de ações diversas que visem atender às necessidades básicas do indivíduo, em
situações críticas da existência humana.
Alexandre de Moraes (2002, p. 202) comunga do mesmo entendimento,
ao afirmar que os direitos sociais são direitos fundamentais, consagrados na
Constituição como fundamento do Estado Democrático de Direito, tendo por
finalidade a melhoria de condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, sendo de observância obrigatória em um Estado
Social de Direito.
Como política de proteção social, a assistência social deve acolher os
cidadãos em situação de vulnerabilidade social.
No “Manual de Capacitação e Informação sobre Gênero, Raça, Pobreza
e Emprego: ampliar a proteção social”, elaborado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), consta que:
Proteção social é aquela que responde ao conceito moderno de “risco social”,
entendido como todo acontecimento de realização incerta que afeta a plenitude
das faculdades físicas e mentais de uma pessoa, diminui seus recursos econômicos ou determina seu desaparecimento.
É possível afirmar que o sistema de proteção social é uma forma de transferência de renda desenvolvido com o objetivo de amparar os membros da
sociedade que se encontrem em situação de risco e vulnerabilidade.
De um lado, temos os programas de transferência de renda que objetivam garantir renda mínima a toda a população pobre. De outro lado, os programas que visam aportar recursos às populações reconhecidas como incapazes
ou dispensadas de arcar com sua sobrevivência pelo próprio trabalho. Nesse
último grupo se inclui o benefício de prestação continuada.
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Cabe destacar que pesquisas realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome (MDS) – órgão responsável pela coordenação, supervisão, controle e avaliação dos programas de transferência de renda – demonstram que tanto a pobreza como a desigualdade social vêm diminuindo no
Brasil, a partir da adoção desses programas.
Segundo Silva e Silva, Yazbek e Giovanni (2007, p. 16), de um modo geral, é possível afirmar que um dos traços mais definidores das formas e sistemas
de proteção social acarreta sempre numa transferência de recursos sociais, seja
sob a forma de esforço ou trabalho, seja sob a forma de bens e serviços, ou,
ainda, sob a forma de dinheiro.
A proteção social é prestada por diversos tipos de instituições. Contudo,
como, não raro, o Estado não tem conseguido promover o desenvolvimento
econômico e social, a sociedade civil assume esse papel. Assim, a proteção
social acaba sendo prestada por instituições públicas e privadas.
De acordo com Márcia Pastor (2007, p. 224), utilizando-se do discurso
de que o Estado, por si só, não tem condições de garantir o desenvolvimento
social e econômico, deixando significativa parcela da população excluída do
atendimento básico compatível com a dignidade da pessoa humana, um forte
apelo foi feito à sociedade civil no sentido de que também assumisse a função
de dar uma solução aos problemas decorrentes das desigualdades sociais através da livre iniciativa e da mobilização de grupos de pessoas, de instituições, de
organizações não governamentais e de empresas.
Contudo, Silva e Silva, Yazbek e Giovanni (2007, p. 16) advertem que,
no mundo atual, predomina a participação do Estado como provedor, produtor,
gestor e regulador das transferências de recursos destinados à proteção social,
sem que a tradição e o mercado deixem de estar presentes.
Góis, Lobato, Senna e Moraes (2008, p. 82) nos ensinam que, nas duas
últimas décadas, houve um movimento de expansão do sistema de proteção
social brasileiro, ampliando-se o número de organizações públicas e privadas
que atuam na área socioassistencial. No entanto, o acesso a esse sistema não
pode ser tomado como algo líquido e certo para os beneficiários do benefício
de prestação continuada.
2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA
O benefício de prestação continuada é um programa de transferência de
renda coordenado pelo órgão gestor da assistência social, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), por intermédio da Secretaria
Nacional de Assistência Social (SNAS), responsável pela implementação, coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação. O benefício é
operacionalizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a quem cabe
a seleção dos beneficiários. Atualmente são 3,5 milhões (dados de agosto de
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2011) beneficiários do BPC em todo o Brasil, sendo 1,8 milhões pessoas com
deficiência e 1,7 idosos1.
Esse benefício busca dar efetividade ao exercício da cidadania para uma
parcela da sociedade que se encontra desamparada. Em termos gerais, é possível desdobrar a cidadania em três níveis: direitos civis, direitos políticos e
direitos sociais. Com a Constituição da República de 1988, esses direitos adquiriram uma amplitude, ainda que limitada, nunca antes atingida. Isso fica
visível, quando se observa que a Constituição, em seu art. 203, V, nas disposições relativas à assistência social, garantiu o pagamento de um salário-mínimo
às pessoas portadoras de deficiência e às pessoas idosas que comprovem não
possuir meios de prover sua subsistência ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei.
Contudo, somente cinco anos depois, com a edição da Lei nº 8.742/1993,
o benefício de prestação continuada foi regulamentado, passando a legislação
a dispor sobre os requisitos para a concessão do benefício, sendo certo que sua
implementação se deu apenas em 1995.
Exige-se, em primeiro lugar, para a concessão do benefício assistencial,
que o beneficiário seja portador de deficiência ou idoso com 65 anos ou mais.
Em segundo lugar, a pessoa deve comprovar que a renda per capita familiar é
inferior a 1/4 do salário-mínimo vigente. Por fim, o requerente não pode ser beneficiário de qualquer outro benefício existente no âmbito da seguridade social
ou de outro regime, salvo o da assistência médica.
O benefício tem caráter temporário, de modo que a revisão para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem (idade, deficiência e
renda) é realizada a cada dois anos, observando-se a legislação vigente à época
da renovação. Esse processo de revisão é um importante instrumento para determinar a manutenção do benefício, mas serve também para subsidiar o planejamento de ações e serviços para idosos e portadores de deficiência.
Acredita-se que o processo de revisão do benefício assistencial tenha
servido de subsídio para a elaboração do recente Plano Nacional dos Direitos
da Pessoa com Deficiência (Plano Viver sem Limites), criado pelo Decreto nº
7.612/2011, que abrange uma série de medidas governamentais no âmbito tributário, urbanístico, educacional, assistencial e da saúde e buscam reduzir a
situação de desequilíbrio de participação social.
Nos últimos anos, o benefício assistencial vem sofrendo grandes mudanças conceituais e estruturais, o que impõe uma nova concepção para fazer refletir os novos critérios para a concessão do benefício.
No que se refere ao conceito de núcleo familiar, este sofreu sensível mudança com a Lei nº 12.435/2011, passando a adotar o critério da coabitação
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Segundo dados do MDS previstos em www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc
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efetiva, na perspectiva de buscar a identificação do grupo familiar mais compatível com a realidade familiar. Nesse viés, para fins de concessão do benefício
assistencial, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro,
os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob
o mesmo teto.
Com relação ao conceito de deficiência, a partir da adoção pelo Brasil da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas.
Nesse sentido, o conceito de deficiência, utilizado pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que hoje se encontra
expressamente previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), deixa de
ser estático e unidimensional de incapacidade laborativa ou de incapacidade
para os atos da vida independente a partir de critérios exclusivamente médicos. Esse conceito exige uma percepção dinâmica da inserção da pessoa como
deficiente no meio social, de modo que sejam verificadas as eventuais barreiras sociais, econômicas, bem como familiares. Por sua vez, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) efetivou a revisão da Classificação Internacional de
Deficiências, Incapacidades e Limitações (ICIDH), aprovando a criação de uma
nova linguagem padronizada: a Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF). Dentro desse contexto, a classificação passou a ser
um instrumento capaz de identificar, de maneira global, o que constitui saúde.
Houve uma verdadeira mudança de paradigma para se pensar a deficiência e a incapacidade. Não se deve mais avaliar a incapacidade para a vida
independente apenas quando o usuário é incapaz de desempenhar as atividades relacionadas ao autocuidado, considerando apenas a capacidade de fazer
a higiene pessoal, comer e vestir-se. A nova avaliação deve obrigatoriamente
incluir o indivíduo no contexto biopsiquicossocial.
Para tanto, faz-se necessário que a perícia médica seja realizada em conjunto com a perícia social, permitindo, assim, a avaliação de eventuais barreiras sociais ou pessoais que representem impedimentos ao desempenho de
atividade laborativa ou à participação social plena e efetiva em igualdade de
condições com os demais cidadãos. Essas perícias devem avaliar a existência
de impedimento de longo prazo, sendo certo que impedimento de longo prazo
é aquele que produz efeitos pelo prazo mínimo de dois anos.
Assim, os médicos peritos e os assistentes sociais, quando da avaliação
da incapacidade para a vida independente, para fins de concessão do benefício
assistencial, devem utilizar a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e a CIF, considerando a realidade brasileira.
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3 O ACESSO À JUSTIÇA E O JUIZADO ESPECIAL FEDERAL
É bastante difícil, embora estimulante, a tarefa de definir o conceito de
“acesso à justiça”. Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1998, p. 8) mencionam
que a expressão “acesso à justiça” é de difícil definição, “mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico”. Em primeiro lugar, esse
sistema deve ser igualmente acessível a todos. Em segundo lugar, o sistema
jurídico deve produzir resultados individual e socialmente justos; é a ideia de
justiça social.
O acesso à justiça deve ser considerado pressuposto básico e inafastável
de todo e qualquer sistema jurídico que tenha por objetivo garantir o exercício
de direitos por todos os cidadãos – já que a titularidade de direitos, por si só,
sem que venha acompanhada de mecanismos para garantir o seu exercício, não
faz o menor sentido.
Em diversos países, surgiu uma ampla discussão acerca do acesso à justiça, na vertente do acesso efetivo à justiça, não como mero acesso ao Poder
Judiciário, mas acesso à ordem jurídica justa e efetiva. E a principal motivação
dessa discussão reside no fato de que os sistemas jurídicos existentes já não
estavam solucionando a contento os conflitos de interesses.
Nessa perspectiva, Cappelletti e Garth (1998, p. 31) elencam três soluções práticas para os problemas de acesso à justiça, denominadas de “ondas
renovatórias”, que têm por objetivo exatamente garantir um efetivo acesso à
ordem jurídica justa. A primeira “onda” se refere à assistência judiciária para os
pobres; a segunda, à representação jurídica para os interesses difusos; a terceira,
à ampliação do acesso à justiça, com um novo enfoque das estruturas e procedimentos para processar ou prevenir os litígios.
No Brasil, o Juizado Especial de Pequenas Causas remonta à criação do
Conselho de Conciliação e Arbitramento no Rio Grande do Sul. Os Magistrados
gaúchos, ao perceberem que a prestação jurisdicional não estava sendo realizada de maneira ideal, instalaram esse conselho.
Essa experiência inovadora e bem-sucedida foi se difundindo até o advento da Lei nº 7.244/1984, que regulamentou a criação e funcionamento dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas, como órgão do Poder Judiciário, nos
Estados, Distrito Federal e territórios.
O Juizado de Pequenas Causas, como forma alternativa de solução dos
conflitos, representou verdadeiro avanço na prática forense, que foi muito bem
acolhida pelos cidadãos. Prova disso é que a Constituição Federal de 1988, em
seu art. 98, inciso I, determinou a criação pelos Estados-membros e pela União
(no Distrito Federal e nos territórios), dos juizados especiais.
Com efeito, em 1995 foi editada a Lei nº 9.099, que disciplina os Juizados Especiais. Essa legislação excluiu expressamente da competência dos Juiza-
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dos Especiais as causas de interesse da Fazenda Pública. No entanto, a Emenda
Constitucional nº 22/1999 acrescentou parágrafo único ao art. 98 da Constituição, prevendo a criação de Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal,
cujos órgãos jurisdicionais julgam, na maioria das vezes, causas de interesse da
Fazenda Pública Federal.
Nessa perspectiva, de criar meios eficazes e alternativos de solução dos
conflitos, a Lei nº 10.259/2001 instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, aos quais se aplica, naquilo que não conflitar, o disposto na Lei nº
9.099/1995. Os Juizados Especiais Federais julgam ações cujos valores em discussão não excedam a sessenta salários-mínimos, nas causas em que a União,
entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas.
As ações que tenham por objeto o benefício de prestação continuada,
como regra, tramitam perante o Juizado Especial Federal, tendo em vista que o
valor desse benefício é de um salário-mínimo e dificilmente o valor da causa irá
extrapolar sessenta salários-mínimos.
Verifica-se que a Lei dos Juizados Especiais contempla um elenco de práticas que possibilitam uma rápida e efetiva prestação jurisdicional. Isso pode ser
visto ao examinarmos os princípios que informam esses Juizados. O princípio
da oralidade significa que deve predominar a palavra falada sobre a escrita. O
princípio da simplicidade, como o próprio nome sugere, objetiva que o procedimento do Juizado seja simples, sem ostentação, para que as partes e os terceiros se sintam à vontade para se expressarem. O princípio da informalidade preconiza o desapego às solenidades, permitindo, assim, que a parte compreenda
o desenvolvimento do processo. Esse princípio assume fundamental relevância
na hipótese em que a parte comparece ao Juizado pessoalmente, sem que esteja representada por um advogado. A presença de um advogado é dispensada
nas causas não excedentes a vinte salários-mínimos. O princípio da celeridade
sugere que a solução da lide deve se dar da forma mais rápida possível. Por sua
vez, o princípio da economia processual estabelece que o processo deve buscar
o máximo de resultado com o mínimo possível de atividades processuais.
Na sistemática da Lei nº 9.099/1995, existe entendimento no sentido de
que esses princípios servem de fundamento para não se admitir a prova pericial no procedimento dos Juizados Especiais Cíveis. Dentro dessa linha de
raciocínio, a prova pericial é excluída do conjunto probatório ao argumento
de que sua efetivação impõe rito complexo e demorado, indo de encontro aos
princípios acima destacados. Contudo, de acordo com o melhor entendimento,
que privilegia o acesso à justiça, é possível produzir esse tipo de prova perante
os Juizados Especiais Cíveis, que, no entanto, seguem regras distintas daquelas
previstas no Código de Processo Civil. No microssistema processual dos Juizados Especiais Cíveis, “a prova pericial sempre se produzirá sem a apresentação
do laudo pericial escrito” (Câmara, 2008, p. 116). O perito limita-se a depor na
audiência de instrução e julgamento.
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Já no procedimento dos Juizados Especiais Federais, com o objetivo de
ampliar ainda mais o acesso à justiça, na perspectiva de criar um novo enfoque
das estruturas e procedimentos para processar ou prevenir os litígios, admite-se
a produção da prova pericial através da apresentação de laudo escrito.
Nas ações que tenham por objeto a concessão de amparo social à pessoa
com deficiência, diferentemente do amparo social ao idoso, é imprescindível
a realização de prova pericial, que se caracteriza como um elemento de prova
decisivo. E é exatamente o caso que iremos analisar a seguir.
4 O CASO CONCRETO DO MENOR PORTADOR DE DEFICIÊNCIA
Nesse contexto, vamos examinar a trajetória de um menor, com cinco
anos de idade, portador de retardo mental severo congênito e quadro psicótico
compatível com autismo infantil, que teve seu benefício de prestação continuada negado na esfera administrativa, razão pela qual ingressou com ação judicial
no Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro.
É possível afirmar que o Juizado Especial Federal representa uma forma
de concretizar o acesso à justiça, na medida em que possui mecanismos capazes de proporcionar uma rápida e efetiva prestação jurisdicional para as chamadas causas de menor complexidade ou de pequena expressão econômica. A
fala da entrevistada ajuda a reforçar essa percepção:
A amiga da minha vizinha falou que tinha entrado no juizado de pequenas causas para pedir o benefício da filha dela. Aí falou que eu também podia entrar para
pedir pro meu filho. Falou que era tudo tranquilo, que era só levar a papelada na
defensoria, pouca coisa, tipo carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento. Ela me deu o endereço e eu fui lá.
Na visão da entrevistada, realmente o Juizado criou condições para que
a população possa buscar uma solução para seus litígios, conhecidos como de
pequenas causas, em um ambiente menos formal e de maneira mais rápida, mas
não menos eficaz:
O meu processo foi muito rápido e fácil. Eu levei a papelada pro defensor e ele
cuidou de tudo. Não demoro nadinha de nada. De repente já tavam depositando
o dinheiro no banco. Você acredita que nem teve audiência com juiz? Só tive que
levar meu filho lá no médico do juiz. A tal da perícia. Ah, já ia me esquecendo,
teve também um homem lá em casa fazendo umas perguntas e pronto, logo depois passei a receber.
O demandante, assistido pela Defensoria Pública da União e representado no processo por sua mãe, relata que reside com esta, o padrasto e mais
seis irmãos em uma casa modesta de reduzidos cômodos e em péssimo estado
de conservação, com mobiliários e eletrodomésticos precários, já que a renda
familiar não lhe permite a subsistência digna a contento. Afirma, ainda, que,
diante da situação de penúria e do seu quadro clínico, requereu o amparo social
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à pessoa portadora de deficiência junto ao INSS, porém seu pedido restou indeferido sob a alegação de que “não há incapacidade para a vida independente
e para o trabalho, conforme previsto no § 2º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993”,
a despeito de possuir gastos essenciais atrelados à saúde e subsistência, que
comprometem consideravelmente a renda auferida pela família, além de ser
portador de enfermidade incapacitante.
Com efeito, o juiz responsável pelo processo determinou a realização de
perícia judicial, intimando a parte autora a comparecer em data e hora designadas, com o documento de identidade e todos os demais documentos comprobatórios da alegada doença, tais como laudos de exames médicos e laboratoriais, radiografias, tomografias, ressonâncias magnéticas, que possam auxiliar
o exame pericial.
A perícia judicial deve revestir-se de conteúdo que seja claro e compreensível, permitindo o debate sobre os elementos que servirão ao convencimento do Magistrado, em homenagem aos princípios do contraditório, da ampla de
defesa e do devido processo legal.
É bem verdade que “o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo
firmar sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos” (art.
436 do Código de Processo Civil). Contudo, é indiscutível que a prova pericial
consubstancia prova decisiva nos processos em que se quer constatar a existência de deficiência. Nesse tipo de processo, que tem por objeto a concessão de
amparo social à pessoa com deficiência, “o perito substitui o juiz na percepção
e análise das fontes de prova, e contribui, com isso, para investigação dos fatos”
(Didier, Braga e Oliveira, 2007, p. 231).
A perícia foi realizada, tendo o perito judicial chegado a seguinte conclusão:
O periciado é portador de retardo mental severo congênito e quadro psicótico
compatível com Autismo infantil. CID 10: F72 + F84. É totalmente incapacitado,
e o será permanentemente para reger a sua pessoa, exercer qualquer atividade
laborativa e para administrar bens e rendimentos de quaisquer naturezas. Não
apresentou intervalos de lucidez desde que nasceu. Patologias incuráveis e irreversíveis. Não poderá vir a ser responsabilizado por seus atos civis.
Posteriormente, foi realizada verificação socioeconômica, efetuada por
Oficial de Justiça. Este servidor público afirmou que o demandante possui cinco
anos de idade, reside com sua genitora, com seu padrasto, que aufere renda
mensal de R$ 700,00 (setecentos reais), e com seis irmãos todos menores de
idade. A única renda familiar pertence ao padrasto, sendo certo que nem o demandante nem os demais membros da família recebem qualquer benefício previdenciário ou assistencial. Em relação ao imóvel, certifica o Oficial de Justiça
que a casa em que a família reside pertence aos tios da genitora do demandante
e que a família lá reside de favor. Afirma tratar-se de imóvel construído em alvenaria e em mau estado de conservação, sendo que os móveis que o guarnecem
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também se encontram em precárias condições. Certifica, ainda, o Oficial de
Justiça que a família sobrevive com quantia irrisória de dinheiro, quase todo ele
utilizado para as necessidades mais básicas.
O Magistrado, em sua sentença, ressalta que a incapacidade para o trabalho constitui uma consequência natural da menoridade, não se podendo admitir
que o menor possa desenvolver atividade laborativa para prover seu sustento.
Assim, afirma que, para se aferir se o demandante tem direito ao benefício assistencial, faz-se necessário constatar se o grau de deficiência que o atinge impede
de praticar os atos da vida independente, dentro do contexto da sua respectiva
faixa etária, e se restou configurada a condição de miserabilidade.
Por fim, conclui o Magistrado que, diante das considerações do perito
judicial e do Oficial de Justiça, o demandante preenche os requisitos legais para
obtenção do benefício assistencial, pois, além de viver em condições precárias,
com renda familiar inferior a 1/4 do salário-mínimo, o grau de sua deficiência
o impede de praticar os atos da vida independente, dentro do contexto da sua
faixa etária, razão pela qual julgou procedente o pedido, determinando a implantação imediata do amparo à pessoa portadora de deficiência, no valor de
um salário-mínimo a contar da data da entrada do requerimento administrativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, a seguridade social se caracteriza como um conjunto de
ações dos poderes públicos e da sociedade, tendentes a garantir três tipos de
direitos: saúde, assistência social e previdência social. A assistência social é um
direito fundamental social garantido a quem dela necessitar, independentemente de contribuição.
O benefício de prestação continuada integra a política de assistência
social e se caracteriza como importante instrumento de proteção social aos
cidadãos que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco social. Esse
benefício, ao garantir o pagamento de um salário-mínimo às pessoas com deficiência e às pessoas idosas que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção nem de tê-la provida por sua família, busca dar efetividade
ao exercício da cidadania para essa parcela da sociedade que se encontra desamparada.
No caso do amparo social à pessoa com deficiência, além da avaliação
socioeconômica, é indispensável a realização do exame pericial, sendo certo
que esse tipo de prova assume a posição de prova decisiva para a concessão
do benefício.
Verifica-se que, de um tempo para cá, o Estado brasileiro passou a criar
minimamente condições para que a população possa buscar uma solução para
seus litígios conhecidos como de pequenas causas em um ambiente menos
formal e de maneira mais ágil, mas não menos eficaz. Assim, é possível afirmar
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que o Juizado Especial Federal representa uma forma de concretizar o acesso
à justiça.
Isso foi visto ao examinarmos o caso de um menor com cinco anos de
idade, portador de retardo mental severo congênito e quadro psicótico compatível com autismo infantil, que teve seu benefício de prestação continuada negado na esfera administrativa e ingressou com ação judicial no Juizado Especial
Federal do Rio de Janeiro. Na fala “O meu processo foi muito rápido e fácil.
Eu levei a papelada pro defensor e ele cuidou de tudo. Não demoro nadinha
de nada. De repente já tavam depositando o dinheiro no banco”, está explícita
a ideia de que, para a entrevistada, mãe do beneficiário, realmente o Juizado
Especial representa um meio eficaz de solução dos conflitos que viabiliza o
acesso à justiça.
REFERÊNCIAS
CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais e federais. Uma abordagem
crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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