Páris Épico, Páris Trágico - PPGHC

Transcrição

Páris Épico, Páris Trágico - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
PÁRIS ÉPICO, PÁRIS TRÁGICO
Um estudo comparado da etnicidade helênica entre
Homero e Eurípides (séculos VIII e V a.C.)
Renata Cardoso
Rio de Janeiro
setembro de 2014
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
Páris Épico, Páris Trágico:
Um estudo comparado da etnicidade helênica entre Homero e
Eurípides (séculos VIII e V a.C.)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada do Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa
Rio de Janeiro
setembro de 2014
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
Páris Épico, Páris Trágico:
Um estudo comparado da etnicidade helênica entre Homero e
Eurípides (séculos VIII e V a.C.)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada do Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre.
__________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa (orientador)
__________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes
__________________________________________________________
Profª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante
Rio de Janeiro
setembro de 2014
2
3
Agradecimentos
Repito em minha dissertação as mesmas palavras que coloquei em minha monografia:
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje, só os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly. Assim, você, que sabe que participou
da minha vida e não está aqui, não se sinta excluído: eu tenho a consciência de que você
participou dela.
Devo essa dissertação, primeiramente, ao meu orientador, Fábio de Souza Lessa, que
acreditou em mim desde o 3º período da graduação, quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciação Científica sem nem saber o que eu queria estudar.
Agradeço também aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificação e da minha
dissertação, a Prof. Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof. Dr. Alexandre Santos
de Moraes, que deram contribuições preciosíssimas para o desfecho dela.
Também foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele: Leila Rodrigues da Silva,
Wagner Pinheiro Pereira, Silvio de Almeida Carvalho Filho, André Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira. Ao professor José D’Assunção Barros, que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teórico-metodológicas e a ver outras possibilidades dentro do meu próprio
trabalho.
Deixo meu agradecimento também aos amigos e amigas, colegas de academia ou não,
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histórica (literalmente) e que aturaram o
Páris até o fim: Bruna Moraes da Silva, Danielle Vasconcellos, Jéssica Gomes, Jessyca
Rezende, Beatriz Vasconcellos, Joselita de Queiroz Nascimento, Michelle Moreira Gonçalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimarães Neto.
Às professoras de Grego (Ático e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Lucília Brandão. Se eu consegui ler um artigo em grego, se eu consegui ler alguma coisa da
Ilíada na língua original, ou se consegui escrever esta pequenina frase... foi graças a elas! À
professora Carole Anaïs que, com sua paciência infinita, conseguiu fazer com que, em dois
anos, eu conseguisse ter domínio suficiente do francês para conseguir ler minha bibliografia.
Aos meus professores de Graduação e Ensino Fundamental e Médio: só sou o que sou
hoje devido à educação que tive nos colégios e na Universidade. Agradeço sobretudo aos
meus professores de História e, especialmente, à Queila: nunca vou esquecer do primeiro dia
4
de aula de História da antiga 5ª série, quando ela pediu que escrevêssemos na primeira página
do caderno “HISTÓRIA É VIDA”.
À todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada, sobretudo
minha mãe (Eliane), irmã (Roberta), avó (Carmelita) e prima (Sylvia), por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira.
E, por último, mas não menos importante, aos “Homeros” que compuseram a Ilíada e
a Odisseia e a Eurípides: sem eles que, aí mesmo, não haveria dissertação alguma.
5
Resumo
Pretendemos analisar, de forma comparada, a representação de Páris, herói cujo ato e
átē (perdição) causaram a Guerra de Troia (c. 1250-1240 a.C.), na Ilíada, de Homero, e nas
tragédias Alexandre (fragmentária), Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Helena, Ifigênia
em Áulis e Orestes, de Eurípides, de modo a compreender quais são e como se
desenvolveram as fronteiras étnicas helênicas. Utilizaremos para a análise desse processo
histórico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne, expressa em sua obra
Comparar o Incomparável, e, para a análise do nosso corpus documental, a Análise de
Discurso Francesa, presente nas obras teóricas de Eni P. Orlandi, Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau.
Palavras-chave: História Comparada; Análise de Discurso; Homero; Eurípides; etnicidade.
6
Abstract
We aim to analyze, on a comparative basis, the representation of Paris, hero whose act
and átē (perdition) caused the Trojan War (c. 1250-1240 b.C.), in Homer’s Iliad and in
Euripides’ tragedies Alexander (fragmentary), Andromache, Trojan Women, Hecuba,
Helen, Iphigenia in Aulis and Orestes, in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed. We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne, expressed in his Comparing the
incomparable, and, to analyze our corpus , the French Discourse Analysis, present in Eni P.
Orlandi, Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeau’s theoretical works.
Keywords: Comparative History; Dicourse Analysis; Homer; Euripides; ethnicity.
7
Sumário
INTRODUÇÃO -----------------------------------------------------------------------------------------p. 09
CAPÍTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURÍPIDES: DOIS ESTILOS DE COMPOSIÇÃO -------------p. 24
CAPÍTULO 2 | PÁRIS, O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p. 50
CAPÍTULO 3 | PÁRIS, O HERÓI ----------------------------------------------------------------------p. 76
CONCLUSÃO -----------------------------------------------------------------------------------------p. 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERAÇÃO --------------------------------------------------------p. 105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ------------------------------------------------------------------p. 107
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p. 107
DICIONÁRIOS E GRAMÁTICAS ------------------------------------------------------------p. 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p. 109
8
INTRODUÇÃO | TEMA, PROBLEMAS, METODOLOGIAS
“O conhecimento revisitado das tradições da história e literatura
da Guiné-Bissau poderá funcionar, dessa forma, como um
Outro que nos complementa, ajudando-nos a revisitar
até mesmo a imagem que fazemos de nós próprios”
(SECCO, 2007, p. 16-17).
Vivemos em um mundo plural e, por isso, nos embatemos frequentemente com Outros
que, não necessariamente, habitam um país distante: o diferente mora ao nosso lado, convive
conosco, porque, dentro de uma mesma sociedade, é possível estabelecer uma relação de
alteridade. A cada dia que esbarramos com alguém que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas, nos modificamos também: é como na metáfora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994, p. 29), pois, quando nos relacionamos com as pessoas, conversamos com
elas, nunca permanecemos iguais, fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitação/rejeição, nossas fronteiras de convivência.
Não era diferente na Antiguidade e, em nossa epígrafe, poderíamos muito bem
substituir “Guiné-Bissau” por “Grécia Antiga”: afinal, estamos lidando com pessoas. É o
homem que constrói suas próprias leis, bem como é ele quem faz a história, vivendo-a. À
medida que o homem vive ele deixa indícios de sua vivência. São dessas “pistas”, desses
“rastros”, que nós, historiadores, podemos estudar as sociedades do passado. No presente
estudo se debruça sobre um indício que, até pouco tempo, era desconsiderado pela História
como documentação: a literatura.
Objetivamos não somente analisar os textos que compõem nosso corpus, mas colocalos em comparação. Cremos que a Ilíada, de Homero (VIII a.C.) e as tragédias Alexandre
(fragmentária), Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Helena, Ifigênia em Áulis e Orestes
(século V a.C.) não são apenas produto de uma sociedade, mas que as epopeias influenciaram
na construção da sociedade na qual eram encenadas as tragédias, bem como as tragédias e as
próprias epopeias influenciaram na construção de suas próprias sociedades.
Para estabelecer essa comparação, escolhemos como norte o antropólogo Marcel
Detienne, que, em seu livro Comparar o incomparável lançou uma série de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparações temporais e/ou espaciais. A comparação
é algo intrínseco ao ser humano. Contudo, fazer uma comparação e fazer História Comparada
9
é bem diferente: é a partir dos anos 1920, com as obras de Marc Bloch, que a História
Comparada vai tomando forma. O objetivo dela, para Bloch, é ressaltar diferenças e
semelhanças em processos históricos distintos, tomando como base, preferencialmente, duas
sociedades contíguas (BLOCH, 1998, p. 122-123). No Brasil, é em fins da década de 1970
que esse método comparativo é evidenciado: Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Pérez Brignoli
chamam a atenção para a sua importância nos estudos historiográficos, ressaltando ainda que
não se trata de uma mera catalogação de diferenças e semelhanças, mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO; PÉREZ BRIGNOLI, 1983, p. 418).
Entretanto, no início do século, a História Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado à História Cruzada: o historiador Jürgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar, que método comparativo deve ser associado à histoire croissée (KOCKA, 2003, p.
44), mas Michael Werner e Bénédicte Zimmerman já veem a História Comparada como algo
problemático: em seu artigo Beyond comparison: histoire croisée and the chalenge of
reflexivity eles definem um método de História Cruzada e mostram razões pelas quais a
História Comparada não seria uma metodologia tão adequada, pois seu uso é binário
(semelhanças/diferenças) (WERNER; ZIMMERMANN, 2006, p. 33).
É no bojo dessas discussões que surge a proposta de Marcel Detienne: ele critica a
ideia de que só se pode comparar sociedades contíguas, ressaltando a ideia de que se pode
“comparar o incomparável”, pois as sociedades espalhadas pelo mundo, embora plurais,
compartilham algumas instituições (DETIENNE, 2004, p. 10 e 47): o casamento, a fundação,
a morte etc. Embora Detienne seja ácido em suas críticas, visto que Marc Bloch não excluía a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaço (BLOCH, 1998, p.
121), é ele que melhor define um método comparativo, fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teórico.
Assim, partindo de uma categoria1 (etnicidade), definimos como comparável2: a
representação de Páris, tanto na epopeia homérica quanto nas tragédias de Eurípides. Essas
representações serão devidamente analisadas em sua intrinsecidade através da Análise de
Discursos, cabendo a nós, pesquisadores de História Comparada, colocar essas experiências
variadas lado a lado para contrastá-las e/ou aproximá-las. Temos em mente que o método é
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir é que orienta a escolha dele
1
A categoria é um “traço significativo, uma atitude mental” que faz parte de “um conjunto, uma configuração”
(DETIENNE, 2004, p. 57).
2
Os comparáveis são “mecanismos de pensamento observáveis nas articulações entre os elementos arranjados
conforme a entrada: ‘figura inaugural que vem de fora’, ‘não-início’, ou outras. [...] são orientações, essas
relações em cadeia, essas escolhas”. (DETIENNE, 2004, p. 57-58).
10
(ANDRADE, 1998, p. 38) e, visto que queremos estudar um processo ideológico de definição
de fronteiras étnicas que tem como recorte temporalidades distintas, a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente.
Para ler nosso corpus documental, adotamos como metodologia de leitura analítica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Análise de Discurso: Princípios &
Procedimentos. Identificamo-nos com a Análise de Discurso francesa3 por dois motivos: pela
natureza do nosso corpus e pela proposta sócio-histórica desse método. Nossa documentação
é formada por textos; cada um deles é a unidade analítica do discurso, entendido como um
processo em curso (ORLANDI, 2012, p. 39). Assim, tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Eurípides como partes de um processo discursivo mais amplo.
A Análise de Discurso trata de um sistema que envolve não apenas o discurso em si,
mas a relação entre língua, ideologia e história, tendo em vista a produção de sentidos. O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso: é ela que produz sentido,
pois “se materializa na linguagem” (ORLANDI, 2012, p. 96). A linguagem, por sua vez, “é
linguagem porque faz sentido. E [...] só faz sentido porque se inscreve na história”
(ORLANDI, 2012, p. 25 – grifos nossos). A história é o sentido, visto que o sujeito do
discurso “se faz (se significa) na/pela história” (ORLANDI, 2012, p. 95).
A fim de chegarmos à compreensão desse processo discursivo, é necessário cumprir três
etapas: a partir da dessuperficialização 5 da superfície linguística (corpus documental)
selecionado (a), obtemos o objeto discursivo (b), que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formação ideológica daquele objeto.
CORPUS
DOCUMENTAL
(a)
dessuperficialização
OBJETO
DISCURSIVO
(b)
ideologia
PROCESSO
DISCURSIVO
(c)
3
A A.D. francesa é diferente da A.D. anglo-saxã: enquanto aquela é oriunda da linguística e privilegia discursos
escritos, esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais. Além disso, a francesa destaca os mais
propósitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU, 1997, p. 16).
4
Defendemos que a ideologia em Homero é a própria paideía: “Por ideologia, entendemos um conjunto de
representações dos valores éticos e estéticos que norteiam o comportamento social. No caso da sociedade
ateniense, os valores estéticos estão representados pela proporção, justa medida, equilíbrio, enquanto os valores
éticos, pela paideía (educação, cultura) – falar a língua grega, comer o pão, beber vinho misturado com água,
cultuar os deuses, lutar na primeira fila de combate, obediência às leis, cuidar dos pais e fazer os seus funerais,
manter o fogo sagrado, ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida política” (LESSA, 2010, p.
22).
5
O processo de dessuperficialização consiste na “análise do que chamamos materialidade linguística: o como se
diz, o quem diz, em que circunstâncias etc.” (ORLANDI, 2012, p. 65).
11
A Guerra de Troia (1250-1240 a.C.) é um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por nós hoje em dia. Enquanto para nós essas histórias são mitos, não existiram
de verdade, para os gregos ela existiram de fato. O passado que se reapropriava era um
passado verídico, de um tempo pretérito, e a sua função era extremamente didática: com os
heróis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem. Homero ou Eurípides, ao
comporem seus textos, não questionavam a materialidade histórica desses personagens e
mesmo Tucídides, um historiador, utilizava a memória desses heróis do passado em sua
História da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido.
Páris, Helena, Heitor, Menelau, podem não ter sido de “carne e osso”, mas
permanecem no nosso imaginário: muitos filmes, séries de televisão e mesmo livros de ficção
são escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo. Essa reapropriação do material mítico
não é, contudo, exclusividade do mundo contemporâneo: tragediógrafos e poetas dos períodos
arcaico, clássico e helenístico também manejavam esses mitos para compor suas próprias
histórias. Do mesmo modo que podiam modificar as histórias, modificavam também o caráter
dos personagens.
A imagem de Páris como um completo covarde está arraigada em nosso imaginário.
Se tivermos em mente o desempenho de Páris no Canto III da Ilíada, essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO. Ilíada III, vv. 21-37). Tal episódio nos chamou a atenção: o
herói foge (algo que ele não deveria fazer, pois é um herói). Contudo, Páris decide retornar
para a luta (III, vv. 68-70). Em Eurípides não temos cenas assim: Páris é apenas mencionado.
No nosso corpus documental, apenas em Aléxandros ele é de fato personagem (com falas
etc.).
Assim, como pretendemos analisar a sua representação? Através da análise dos
adjetivos/epítetos que adornam sua caracterização e dos comentários dos outros personagens
acerca dele. Catalogaremos esses elementos e, inserindo-os no âmbito do discurso, iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa. A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estão fora do palco) também desempenham papéis
importantes, denotando a ideia de que “‘contar’ não precisa ser menos impressionante do que
‘mostrar’” (DE JONG, 2011, p. 389).
A Ilíada e as tragédias euripidianas mostram momentos distintos da Grécia Antiga: o
Período Arcaico (VIII-VII a.C.), no qual a poesia grega floresceu, com Homero e Hesíodo,
dois aedos que lançaram as bases temáticas para o gênero trágico, o qual nasceu e entrou em
crise no Período Clássico (V a.C.) e foi imortalizado por três grandes tragediógrafos: Ésquilo,
12
Sófocles e Eurípides. Ao recortarmos nossa pesquisa neste último trágico, referimo-nos a
Atenas, visto que seu cenário de composição era nesta pólis.
Em relação a Eurípides, não temos problemas de datação: sabemos que ele é, de fato,
do século V a.C. Entretanto, com relação a Homero, esbarramos com esse problema. Não
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita, mas podemos chegar
a um consenso? A maioria dos helenistas coloca a épica homérica no século VIII a.C., porém,
há discordâncias. O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadêmicos: a) “os poemas dizem respeito ao momento em que foram compostos”;
b) “os poemas dizem respeito ao momento em que foram fixados”; c) “os poemas dizem
respeito ao período que tentaram retratar”; d) “os poemas dizem respeito ao passado recente,
alcançado na tentativa de atingir um passado ainda mais distante” (OLIVEIRA, 2012).6
Os defensores de (a) creem que a Ilíada e a Odisseia são o reflexo da sociedade do
período em que eles foram compostos e o historiador vê nisso um problema, pois é necessário
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda não temos
comprovação exata do período em que a épica homérica foi composta. Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no século VIII a.C.
Recentemente, até mesmo a genética se debruçou sobre esse tema: esses pesquisadores
acreditam que a língua é como um DNA e as palavras, genes. Esses “genes” vão passando de
uma língua para outra, criando raízes etimológicas semelhantes, como acontece na palavra
água (do proto-germânico watōr derivaram-se wato – gótico –, water – inglês –, wasser –
alemão –, vatten – sueco – etc.) (ALTSCHULER; CALUDE; MEADE; PAGEL, 2013, p.
417). Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita, o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a época em que se desenvolveram) e o grego homérico e, através de uma
frequência de cadeia de Markov7, chegam à conclusão que a antiguidade do grego da Ilíada é
de cerca de 2.720 anos, ou seja, que seria mais ou menos de 707 a.C. Com a margem que eles
põem nesse método, os textos homéricos são datados de entre 760 a 710 a.C.
O objetivo desses pesquisadores é mostrar que a “linguagem pode ser usada, como os
genes, para ajudar na investigação das questões históricas, arqueológicas e antropológicas”
(ALTSCHULER; CALUDE; MEADE; PAGEL, 2013, p. 419) e eles afirmam que, como
6
Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniões, consultar o artigo de Gustavo Oliveira, intitulado
Histórias de Homero: um balanço das propostas de datação dos poemas homéricos (consultar Referências
Bibliográficas).
7
Essa cadeia funciona do seguinte modo: temos um objeto x do qual não conhecemos nada, mas também temos
dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum. Assim, através de uma
fórmula fixa, conseguimos chegar ao resultado do nosso x. Aqui, no caso, o x seria o grego homérico, o y e o z o
hitita e o grego moderno.
13
esses textos são oriundos de uma tradição oral, fica difícil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita. A importância desse estudo é
também mostrar como esse é um problema que não intriga somente a nós, cientistas humanos,
mas aos cientistas das áreas de Exatas e Biológicas também, aumentando o leque de diálogo
transdisciplinar. Desse modo, cremos que sua menção é essencial para chamar a atenção para
outras perspectivas de trabalho.
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito à sociedade que os fixou na
escrita, fazendo com que a datação fique mais imprecisa ainda. Não há como chegar num
consenso, como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada. Já os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Período Palaciano (XVII-1100
a.C.), pois fazem referência a esse passado, quando teria se desenrolado a Guerra de Troia.
Essa proposta não é tão bem aceita, embora alguns estudiosos admitam que há múltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA, 2012, p. 133).
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de datação acreditam que os épicos
referem-se ao período da desestruturação palaciana (1100-IX a.C.). Um dos principais
defensores dessa ideia é o historiador Moses Finley: ele afirma que “[O mundo de Ulisses]
Era muito mais ‘simples’ na sua organização social e política; era iletrada [sic] e a sua
arquitetura não era verdadeiramente monumental, quer se destinasse aos vivos quer aos
mortos” (FINLEY, 1982, p. 45). É, juntamente com (a), uma das principais perspectivas.
Claude Mossé a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionário da Civilização Grega
(2004, p. 171-172), mas admite que, mesmo assim, a datação permanece um enigma para nós.
Gustavo Oliveira afirma que “o maior problema com essa tendência de associar os poemas
homéricos com o período da Idade das Trevas está, justamente, na falta de documentação que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 135).
Do mesmo modo, o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussão em
sua tese de doutorado, afirmando ser o período entre os séculos X a IX a.C. o ideal para se
colocar o que a Ilíada e a Odisseia mostram: a sociedade homérica seria a sociedade da época
de desestruturação palaciana. O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da datação de Homero no século VIII a.C.,
desconstruindo muitos de seus argumentos. A épica homérica não deve ser considerada
oriunda de um período no qual surge a escrita, pois pertence à tradição oral, bem como não
podemos atribuir a Homero a criação de um sistema políade: muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da pólis em Homero.
14
Essa última ideia é problemática: a épica já traz o termo pólis, mas ele não diz respeito
à organização política, social, econômica e administrativa que encontramos no Período
Clássico. O centro do poder, em Homero, é ainda o palácio, embora possamos encontrar
estruturas que estarão presentes na pólis, como a assembleia. Nesses poemas, há uma
miscelânea temporal muito grande, não podendo nós delimitarmos um único período sem
sermos arbitrários. O próprio Finley afirma que “é com alguma liberdade que o historiador
fixa nos séculos X e IX a.C. o mundo de Ulisses” (FINLEY, 1982, p. 46).
Devido a essa polêmica, é muito difícil para o historiador tomar uma posição acerca da
data da composição das epopeias. Escolhemos o século VIII a.C. à medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito já a um movimento de conquista de apoikíai,
como defende o historiador Irad Malkin. Mas é fato que a ancoragem histórico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo, visto que ele pertence a uma tradição oral. O
que vai mais nos interessar, em nossa pesquisa, é que a epopeia pertence a um tempo anterior
às tragédias.
Sendo períodos e gêneros distintos, cada um tende a representar Páris de uma maneira.
Nosso problema diz respeito a um processo, que começa com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gêneros literários: trata-se de um processo de elaboração
de um código de conduta social através da prática da paideía8, o qual irá definir, também, as
bases do que é grego e do que não é. Desde Homero há um discurso de alteridade. Assim,
indagamo-nos: o que é grego9? O que não é? Era mais fácil para os gregos responderem à
última pergunta: definia-se o não-grego para se definir o grego.
Ao longo de toda a Odisseia, o herói Odisseu toma contato com Outros; todavia, é no
episódio dos ciclopes em que se terá o contato com o grande representante da alteridade
helênica, o qual será recuperado, por exemplo, no drama satírico Os Ciclopes, de Eurípides.
Odisseu os descreve assim: “destituídos de leis, que confiados nos deuses eternos, não só não
cuidam de os campos lavrar, como não plantam nada” [ἀθεµίστων / ἱκόµεθ᾽, οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν / οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO.
Odisseia IX, vv. 107-108 – grifos nossos).
O que importa, nessas sequências, não é a caracterização dos ciclopes, mas a definição
daquilo que, definitivamente, não é helênico. Pela descrição de Odisseu, podemos caracterizar
8
Literalmente, paideía significa “criação de meninos”. Ela se constitui na transmissão de saberes e práticas
helênicas. Para melhor definição, ver o capítulo 1 de nossa dissertação (Entre Homero e Eurípides: dois estilos
de composição).
9
Vale ressaltar que “grego” aqui é uma conveniência. Há um intenso debate em torno do termo “heleno”: ele é
usado em Homero para designar determinado povo, não todos os povos gregos, como será no Período Clássico.
15
os gregos: eles vivem sob um código de leis, sua principal fonte de subsistência é a
agricultura, eles vivem em comunidade, cultuam os deuses, o pão é o seu principal alimento e
possuem características humanas, sendo, inclusive, belos10.
Por isso, preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augé propõe. Para ele,
a identidade é produzida pelo reconhecimento de alteridades, colocando em cena um Outro
(AUGÉ, 1998, p. 19 e 20), que pode ser: a) o Outro exótico, que é definido a partir de um nós
homogêneo; b) o Outro étnico homogêneo – como é o caso dos gregos em relação com os
bárbaros; c) o Outro social (a mulher, a criança, o transgressor) e o Outro íntimo, pois temos
várias identidades (AUGÉ, 2008, p. 22-3) .
Segundo esse antropólogo, “não existe afirmação identitária sem redefinição das relações
de alteridade, como não há cultura viva sem criação cultural” (AUGÉ, 1998, p. 28).
Identidade e alteridade não se opõem, não se excluem: formam um par, complementando-se,
visto que são “categorias [...] que a constituem [a sociedade] e definem” (AUGÉ, 1998, p.
10). Ele trabalha, especificamente, com a questão da alteridade nos mitos, na mídia e no
contato entre os colonizadores e os nativos.
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropológica: o contato com
outras culturas é imbuído de choques. Contudo, Charles Mugler aponta que a noção de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia: alteridade deriva do latim alter, outro. Mas,
em Homero mesmo, já podemos ver o papel que o vocábulo állos, “outro”, desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER, 1969, p. 1). E, se pararmos para pensar, o conectivo
adversativo “allá”, que, até hoje, significa “mas” para os gregos, tem uma origem nesse
vocábulo (BAILLY, 2000, p. 82; CHANTRAINE, 1968, p. 63-4): o “outro” assemelha-se ao
“mas”, ao adverso.
Assim como o conceito de alteridade, o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropológico. Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e,
mais ainda, o que é uma fronteira étnica e um grupo étnico, conceitos-chave para
entendermos sua abordagem. Embora seja um texto clássico, Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade, ou seja, um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social, sendo que esse discurso não vem do nada, mas sim da relação com outros
grupos.
10
O termo utilizado pelos helenos para designar o belo é kalós, que tem tanto uma conotação de beleza externa
quanto interna (virtude), podendo inclusive, dependendo do contexto, ser traduzido como “bom”, bem como o
seu antônimo, kakós, pode ser traduzido por “feio” ou “mau”.
16
O termo etnia vem de um outro, éthnos, que é “toda classe de seres de origem ou de
condição comum” (BAILLY, 2000, p. 581). Ele pode designar tanto um bando de animais
(éthnea – nominativo épico jônico plural – HOMERO. Ilíada II, 459, para gansos; II, 469,
para moscas; Odisseia XIV, v. 73, para porcos) quanto um conjunto de pessoas. O termo
éthnos aparece, geralmente, ligado a uma estrutura formulaica, como “ἂψ δ' ἑτάρων εἰς
ἔθνος ἐχάζετο κῆρ' ἀλεείνων” (“mas de volta ao grupo – éthnos – dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗr”) ou “ἐπεὶ ἵκετο ἔ θνος ἑταίρων” (“depois voltou ao grupo
– éthnos – de companheiros”11), visto que se repetem algumas vezes ao longo da Ilíada (a
primeira estrutura mais do a segunda).
O conceito de etnicidade começou a ser debatido recentemente: desde a década de 1970
que esse debate se destaca.
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a década de 1970 por uma
abundante bibliografia que, se enriqueceu de modo considerável o conhecimento
empírico das situações interétnicas atuais em todas as partes do mundo, não chegou
verdadeiramente até hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 120).
Contudo, a heterogeneidade do debate não permitia que se chegasse a uma definição
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituação ainda não havia sido elaborada.
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos “raça” e “etnia”, que se configuram em
instâncias diferentes: a etnia diz respeito às relações sociais entre o “nós” e o “eles” e a raça
diz mais respeito às configurações biológico-fenotípicas que diferenciam um grupo do outro.
Obviamente, o argumento racial será utilizado algumas vezes para essa diferenciação
dicotômica, mas isso quer dizer que ele tem relação com o conceito de etnicidade, não que
seja sinônimo deste.
Assim, Glazer & Moynihan defendem que “a etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traços tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima da noção
de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, o que a torna próxima da noção
de raça” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 86). Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formação de um povo, com a adequação comportamental
das pessoas às normas sociais de um grupo ou às representações que condensam a pertença a
um grupo (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 86).
11
Esses versos são de tradução própria.
17
Como pudemos ver, as definições são diversas. Houve uma tentativa de juntar todas
essas definições para compor o conceito de etnicidade em fins da década de 1978 (Burgess),
mas que acabou por generalizá-lo. No âmbito da História Antiga, o historiador americano
Jonathan M. Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas:
(1) A etnicidade é um fenômeno mais social do que biológico. É definida mais por
critérios social e discursivamente construídos do que por indícios sociais.
(2) Traços culturais, genéticos, linguísticos, religiosos ou comuns não definem
essencialmente o grupo étnico. Esses são símbolos que são manipulados de
acordo com fronteiras atribuídas construídas subjetivamente.
(3) O grupo étnico é distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da
associação com um território específico e um mito de origem compartilhado.
Essa noção de descendência é mais putativa do que atual, e julgada por
consenso.
(4) Os grupos étnicos são frequentemente formados pela apropriação de recursos
por uma seção da população, ao custo de outra, como resultado de uma
conquista ou migração de longa data, ou pela reação contra tais apropriações.
(5) Os grupos étnicos não são estáticos ou monolíticos, mas dinâmicos e fluidos.
Suas fronteiras são permeáveis até certo grau, e elas podem ser produto de um
professo de assimilação e diferenciação.
(6) Os indivíduos não precisam sempre agir em termos de sua pertença a um grupo
étnico. Quando, contudo, a identidade do grupo étnico é ameaçada, sua
internalização como identidade social de cada um de seus membros implica
numa convergência de normas e comportamentos de grupo e a supressão
temporária da variabilidade individual no esforço por uma identidade social
positiva.
(7) Tal convergência comportamental e saliência étnica é mais comum entre (ainda
que não exclusiva a) grupos dominados e excluídos.
(8) A identidade étnica só pode ser constituída em oposição a outras identidades
étnicas. (HALL, 1997, p. 33).
A definição de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen, autores que nos chamaram a atenção. Desse modo, propomos nos debruçar sobre as
ideias deles dois, visto que ambos nos chamaram a atenção ao tratar da etnicidade. No
entanto, escolhemos apenas um como norte teórico: o antropólogo norueguês Fredrik Barth.
Para esse autor, o grupo étnico não é sinônimo de sociedade ou cultura. Essa é uma premissa
fundamental, visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo código
de conduta social. Barth afirma que “a identidade étnica é associada a um conjunto cultural
específico de padrões valorativos” (BARTH, 2011, p. 209): esse “conjunto cultural” seria
justamente a paideía com o código de conduta que ela transmite.
Além disso, ele enfoca justamente nos limites desse grupo étnico, a partir da definição
de fronteira étnica: esse grupo não é estático, mas muda conforme entra em contato com
outros grupos, justamente a fim de manter a sua própria etnicidade. Assim, “os traços
18
culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar, e a cultura pode ser objeto de
transformações, sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade étnica”
(LUVIZOTTO, 2009, p. 31). Segundo Barth, “se um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios
para tornar manifesta a pertença e a exclusão” (BARTH, 2011, p. 195).
A etnicidade é, desse modo, relacional: é a partir do contato com os Outros que ela se
define e é a partir desse contato que ela também se mantém. “O campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidade”, afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, é aquele
que estuda “os processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
são identificados pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir de
traços culturais que se supõe derivados de uma origem comum e realçados nas interações
raciais” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 141).
A etnicidade também implica na construção de representações sociais, pois “a
identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implica compartilhamento
de critérios de avaliação e julgamento” (BARTH, 2011, p. 196), pois assim se tem a ideia de
que se “joga o mesmo jogo”, nas palavras mesmo de Barth. Essas representações são
fundamentais para manter as características do grupo, visto que a comunicação é o locus
privilegiado de inculcação delas.
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade, encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenção: o antropólogo iraquiano Abner Cohen. Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporâneas, mostrando como os costumes influenciam a política e
como o discurso étnico define relações de poder entre grupos étnicos. Assim como Barth,
Cohen também crê que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
étnicos: “um grupo étnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que são compartilhados com outros grupos”
(COHEN, 1969, p. 1).
Além disso, o antropólogo afirma que
Os diferentes grupos étnicos organizam essas funções [normas culturais, valores,
mitos e símbolos] de modos diferentes, de acordo com as suas tradições culturais e
circunstâncias estruturais. Alguns grupos étnicos fazem uso extensivo dos idiomas
religiosos organizando essas funções. Outros grupos usam a descendência [kinship],
ou outras formas de relações morais, em vez disso. No curso do tempo, o mesmo
grupo pode mudar de um princípio articulador para outro como resultado de
mudanças dentro do sistema político encapsulado de ou outros desenvolvimentos
ambos dentro ou fora do grupo (COHEN, 1969, p. 5-6).
19
Contudo, esbarramos no pensamento desse antropólogo quando este afirma que “de
acordo com o meu uso, um grupo étnico é um grupo de interesse informal cujos membros são
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedade” (COHEN, 1969, p. 4).
Isso seria aplicável somente à Ilíada, visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que está sob um mesmo código de conduta), embora sejam membros de
diferentes grupos étnicos. Entretanto, na realidade de Eurípides, em que a dicotomia grego/
bárbaro está bem mais definida (e em crise), essa observação não se aplica: a sociedade grega
é diferente da sociedade bárbara.
Especificamente tratando da Antiguidade Grega, alguns autores se debruçaram sobre a
questão da etnicidade e da alteridade. O mais antigo registro bibliográfico que trazemos em
nossa discussão é o da helenista Helen Bacon: Barbarians in Greek tragedy (1955). Em seu
doutorado, ela faz uma análise dos elementos que caracterizam o bárbaro nas tragédias de
Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Tanto o vestuário, como o modo de falar ou as ações definem
um personagem bárbaro, mas, dependendo do autor, um ou outro elemento é enfatizado.
Em 1989, Edith Hall publicou a sua tese doutoral, Inventing the barbarian: Greek
self-definition through tragedy, que teve grande repercussão no meio acadêmico.
Praticamente todos os livros que trazem a questão da alteridade/etnicidade mencionam o
trabalho de Hall, que se destina à análise da poesia trágica também. Sua hipótese principal é a
de que quando os gregos escrevem sobre os bárbaros, eles estão fazendo um “exercício de
auto-definição”, pois eles são opostos, e que essa “invenção” teria começado a partir das
Guerras Greco-Pérsicas (490-479 a.C.). Além disso, ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocêntrico do que helenocêntrico. Com relação a Homero, ela
afirma que não existe uma polarização entre gregos e bárbaros no poema, embora essa
diferenciação existisse nessa época, admitindo que a Guerra de Troia, originalmente, seria
entre duas comunidades (HALL, 1989, p. 23). Contudo, ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciação clara entre gregos e troianos.
Em 1993, a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall: Les barbares dans la pensée de la Grèce classique. Ela chama a atenção
para o fato de que, mais do que inventar o bárbaro, os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY, 1993, p. 3). A autora reforça a ideia de que essa dicotomia é mais política do que
racial, embora admita que os gregos se liguem também pelo critério da raça.
No mesmo ano, Barbara Cassin, Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros, com cinco ensaios das autoras
20
sobre a questão da alteridade na Grécia Clássica, especificamente, apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares. Elas
analisam, sobretudo, como a pólis lidava com os seus Outros, categorizando e caracterizando
o estrangeiro. A documentação principal reside na historiografia helênica, sendo Heródoto,
Tucídides e Xenofonte os mais trabalhados. Elas mostram como os gregos são gregos por
cultura, não por natureza, e como eles podem voltar a ser bárbaros através do desrespeito dos
códigos de valores helênicos (CASSIN; LORAUX, 1993, p. 10).
Um ano depois, Pericles Georges escreveu um livro que aborda não só o Período
Clássico, mas também o Arcaico: Barbarian Asia and the Greek experience: from the
Archaic Period to the age of Xenophon. Sua proposta no livro é mostrar como os gregos
estereotiparam o bárbaro e qual a origem disso, evidenciando como essa definição ajudou a
construir a identidade grega. No tocante a Homero, ele também não crê haver diferenciação
entre gregos e troianos, mas admite que a Ilíada já traz uma diferenciação entre o nós e o eles,
sobretudo ao se referir aos cários e lídios.
Antonio Mario Battegazzore escreveu, em 1996, um artigo interessante sobre essa
polarização grego versus bárbaro: La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica:
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocêntrica. Seu trabalho é interessante, pois
corrobora a ideia de que os gregos têm dois tipos de leitura sobre os bárbaros: uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geográfico-cultural em relação aos outros
povos) e uma vertical (os gregos são evoluídos, pois o passado bárbaro ficou para trás: os
bárbaroi de hoje são atrasados, visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE, 1996, p.
23). Ele não admite a possibilidade de diferenciação entre troianos e gregos na Ilíada,
analisando essa dicotomia no Período Clássico.
O historiador Irad Malkin, em 1998, escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo: The returns of Odysseus: colonization
and ethnicity. Ele analisa os nostoí, heróis que cruzam regiões tentando voltar para casa, na
mitologia grega e os relaciona à definição da identidade helênica a partir do contato com
Outros. O autor defende, por exemplo, a ideia de que Odisseu, na verdade, seria uma metáfora
para a colonização helênica, que acontecia, sobretudo, no século VIII a.C., sendo, assim, um
“herói proto-colonial” (MALKIN, 1998, p. 3). Em 2001, Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego: Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity, aquecendo os debates sobre o tema.
21
Em 2002, dois trabalhos se destacaram no tocante à questão da etnicidade helênica: o
de Jonathan M. Hall (Hellenicity: between ethnicity and culture) e a coletânea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians). Hall já havia escrito um livro, em 1997, sobre a questão
étnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro, na verdade,
é um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados. Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras étnicas helênicas, os
quais já apontamos aqui em nossa introdução. O livro de Harrison traz vários ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciações entre gregos e bárbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais, que vão desde a literatura até a cultura material
helênica.
A helenista Lynette Mitchell, em 2007, publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece. Ela tenta definir o que é esse pan-helenismo,
estendendo a análise para o Período Arcaico e defendendo que essa ideia não é apenas cultural
ou política, mas, necessariamente, possui ambas as conotações. Dois anos depois, o classicista
P. M. Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology, no qual analisa o vocabulário étnico
desde Homero até Bizâncio. Ele mostra como o termo éthnos mudou ao longo do tempo, indo
da simples designação de uma coletividade até uma demarcação bem nítida do nós/eles, bem
como relaciona a ele outros termos (como génos e pólis) que desempenham essa marcação
étnica.
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota, pois se debruça
especificamente sobre Eurípides: The Greek/Barbarian interaction in Euripides' Andromache,
Orestes, Heracleidae: a reassessment of Greek attitudes to foreigners. Ele mostra como nas
tragédias euripidianas a dicotomia grego versus bárbaro está cada vez mais fluida, visto que o
tragediógrafo testemunha a “barbarização” dos próprios gregos. Para o autor, essa ideia de
que o bárbaro é um oposto entra em crise, não sendo difícil encontrar em suas tragédias
gregos agindo como bárbaros.
O historiador grego Kostas Vlassopoulos, em seu Greeks and barbarians (2013),
tentou desconstruir a ideia de que o grego é diametralmente oposto ao bárbaro, analisando
como gregos e bárbaros conviviam no espaço mediterrânico. Esse é o principal argumento do
seu livro. Os gregos, num plano discursivo, procuraram diferenciar o bárbaro de si, a fim de
fundar sua própria identidade, mas, na prática, os gregos dialogaram bastante com os nãogregos, através de trocas culturais as quais não diziam respeito somente à imposição, mas à
circulação mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterrâneo. Essas trocas tiveram como
22
principal palco o mundo das apoikíai, as “colônias” gregas, as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organização políade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos, adaptando-os aos seus contextos.
Nosso trabalho propõe analisar, comparativamente, os elementos que definiam as
fronteiras étnicas em Homero e em Eurípides, sobretudo a partir da análise do herói Páris,
visto, por nós, como o Outro por excelência na Ilíada e nas tragédias do ciclo troiano.
Dividimos nosso trabalho em três capítulos: o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias épica e trágica, dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho. Já o segundo trata de um aspecto recorrente na representação de Páris, nossa
comparável: ele como sendo um causador de males. Vamos ver como Homero e Eurípides
tratam disso, destacando como essa característica engloba uma série de elementos que
definem fronteiras étnicas tanto na epopeia quanto na tragédia. No terceiro capítulo, nos
debruçamos sobre um Páris guerreiro e como a sua representação como tal corrobora a
definição desse personagem como sendo um Outro, bem como Homero e Eurípides lidam
com essa alteridade dos troianos.
23
CAPÍTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURÍPIDES: DOIS ESTILOS DE
COMPOSIÇÃO
“[...] a epopeia [de Homero] é aqui construída
como uma tragédia”
(ROMILLY, 2013, p. 47)
Nesse capítulo, vamos trabalhar a literariedade da epopeia homérica e a tragédia
euripidiana, ou seja, o que faz dessas obras textos literários (ANDRADE, 1998, p. 27), que
são “objeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humana” (ANDRADE, 1998, p. 31). Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaço discursivo, bem como a construção delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helênica. Por isso, a epígrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importância para abrirmos nossa discussão: ela acredita que a
epopeia homérica se constrói à maneira de uma tragédia. Obviamente, Homero não previu a
existência dos trágicos, fazendo um poema que parecesse com uma tragédia futura. Contudo,
a afirmação da helenista francesa implica na ideia de que as tragédias foram influenciadas
pelas epopeias.
Os textos homéricos são arquitextos12 não somente para Eurípides, mas para toda a
tradição literária grega posterior, sendo que tanto Homero quanto Eurípides são hoje, ambos,
arquitextos: eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos, visuais,
orais etc.). Tanto a epopeia quanto a tragédia fazem parte do mesmo espaço discursivo 13: o
material mítico homérico serviu aos tragediógrafos; a utilização de epítetos e comentários
para caracterizar um personagem é tomada emprestada dessa tradição épica, bem como a
utilização de algumas fórmulas conhecidas do público.
Desse modo, podemos dizer que poesia épica e trágica fazem parte de uma mesma
tradição mito-poética. No entanto, não podemos afirmar que o mito se desenrola na tragédia
da mesma maneira que em Homero. Se fosse assim, dificilmente as peças de teatro atrairiam a
atenção do público ateniense do século V a.C.: afinal, ninguém quer ver a mesma história
contada do mesmo modo diversas vezes. Nenhum texto, embora influenciado por outros, é
12
O arquitexto designa “as obras que possuem um estatuto exemplar, que pertencem ao corpus de referência de
um ou de vários posicionamentos de um discurso constituinte” (MAINGUENEAU, 2008, p. 64).
13
“O ‘espaço discursivo’, enfim, delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas
formações discursivas que, supõe-se, mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos
considerados” (MAINGUENEAU, 1997, p. 117).
24
igual a esses predecessores: eles possuem um interdiscurso, que é esse diálogo com tradições
literárias posteriores, mas nunca são cópias puras e simples.
Homero mesmo, embora seja um arquitexto, não pode ser considerado o início de um
processo discursivo: ele faz parte desse processo, visto que nos seus textos já existe um
interdiscurso. Homero é um dos aedos que circulavam pela Grécia naquela época e ainda
havia outros como ele antes dele. Além disso, ele é influenciado por várias tradições literárias
que já existiam. Um exemplo disso é a utilização do contexto intralinguístico da poesia
iâmbica para compor alguns personagens, como o próprio Páris (SUTER, 1984): esse tipo de
verso era utilizado para acusar alguém de algo. Assim, a composição de algumas sentenças
relativas à Páris, sobretudo quando o sujeito enunciador é um personagem da Ilíada (como
Príamo ou Heitor), conservam esse ato de linguagem14 iâmbico.
Escolhemos dois gêneros15 discursivos, para trabalhar com Páris: a epopeia de
Homero e as tragédias de Eurípides. Antes de apresentarmos as análises comparadas do
nosso herói em cada um deles, é mister discorrermos sobre a natureza da composição desses
dois textos, pois trabalhamos com a Análise de Discurso como método de leitura deles. Para o
analista, é importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo,
sobre o qual, enfim, nos debruçamos com fins analíticos.
Essa dessuperficialização consiste em dirigir aos textos perguntas que vão ancorar
nossa leitura em um determinado tempo, espaço e sociedade: “Quem escreveu?”, “Quando
escreveu?”, “Onde escreveu?”, “De onde essa pessoa veio?”, “Para quem ela escreve?”, “O
que ela defende?”, “Qual o gênero do texto?” são perguntas que devemos fazer antes de
começar a analisar qualquer documentação.
Esse processo tem a ver com a própria classificação do gênero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso: “O fato de que um texto seja destinado a ser cantado, lido
em voz alta, acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo, que circule de
determinada maneira e em certos espaços..., tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existência semiótica” (MAINGUENEAU, 1997, p. 36). O gênero é tão importante na
construção do discurso que, na Grécia Antiga, ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composição dos textos, como a linguista britânica Anna Morpurgo Davies nos
explica:
14
O ato de linguagem é uma sequência linguística com um valor ilocutório, ou seja, dotado de uma determinada
força (no caso da poesia iâmbica, de acusação), que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformação.
15
Podemos classificar os gêneros de diferentes maneiras de acordo com suas condições comunicacionais (como
fala, onde fala etc.) e estatutárias (quem fala, para quem fala, qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc.).
25
O verso épico é escrito em alguma forma de jônico. A tragédia ática é escrita em
ático, exceto pelos coros, os quais estão em uma forma dórica modificada. A poesia
lírica pode estar em eólico; a prosa literária não. Em um número de instâncias, a
escolha do dialeto é independente da origem do autor: Píndaro era de Tebas, mas
não escreve em beócio. Hesíodo era também da Beócia, mas compôs em uma
linguagem épica, i.e., em uma forma compósita de jônico (DAVIES, 2002, p. 157).
A Ilíada não era encenada, do mesmo modo que as tragédias não se restringiam a uma
récita: as performances épica e trágica eram diferentes. Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboração de nossas hipóteses, devemos observar não somente as
semelhanças e diferenças, mas também quais as peculiaridades que cada gênero discursivo
nos traz. Diferentemente da Ilíada, as tragédias não são tão extensas: para termos uma noção,
a maior das tragédias que vamos estudar (Orestes, com 1.693 versos) corresponde a somente
10,78% da Ilíada (que possui 15.693 versos). As récitas aédicas e rapsódicas eram
episódicas: a Ilíada e a Odisseia não eram cantadas de uma vez só, selecionando-se apenas
episódios. Essa prática está presente na documentação mesma: no Canto VIII da Odisseia (vv.
266-369), Demódoco conta o episódio da traição de Afrodite e Ares.
Outra diferença a se sublinhar é o próprio modo de compor: o aedo não escrevia seus
poemas, ao contrário do trágico. O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu público, utilizando uma mnemotécnica16. Desse modo, vemos se repetirem fórmulas como
“Assim que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina” [ἦµος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epítetos (como theoeidḗs, relativo a Páris), que equivaliam a uma
pausa necessária para o cantor se lembrar do que falará a seguir e para ele poder compor,
através do manejo do hexâmetro dactílico, os seus versos.
Eurípides escreveu as suas tragédias e cada ator (em sua época, três17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco. Surge aqui, então, mais um elemento que distingue o
gênero épico do trágico: a forma do texto. Em Homero há diálogos entre personagens, espaço
para eles falarem; contudo, isso se dá através do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18. Nas tragédias, esse narrador desaparece: o discurso é direto, mesmo quando se
trata do coro, e os narradores são sempre personagens. Os diálogos exerciam um papel muito
16
A mnemotécnica seria a arte, no caso do aedo, de lembrar e improvisar, se preciso, os versos a serem
recitados. A título de aprofundamento do tema, ver o capítulo II de Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, de
Marcel Detienne (consultar Referências bibliográficas).
17
É atribuído a Sófocles a introdução do terceiro ator. Até então, as tragédias eram interpretadas por apenas dois
atores. Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produções trágicas e, a partir de 449 a.C., havia não só
competições de tragédias em si, mas de atores também (SCODEL, 2011, p. 53-54).
18
O narrador onisciente é aquele que conhece passado, presente e futuro da história e o íntimo de cada
personagem, mas que não participa da trama.
26
importante: em determinadas tragédias mesmo o falar da personagem já mostrava a que
âmbito social ela pertencia, como acontece com o frígio de Orestes (que é marcadamente um
bárbaro) ou com Páris em Alexandre, cuja desenvoltura no falar denuncia que ele não é um
pastor comum e excede aos outros.
Além disso, não é o autor que interpreta suas peças19: ele delega essa função aos
atores. A encenação trágica não corresponde somente à tragédia em si: havia esses atores (no
caso de Eurípides, três20) que representavam os personagens. O figurino, as máscaras,
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconhecível ao
público: eles deveriam saber quem era o mensageiro, o deus, o ancião, o herói, a mulher e
assim por diante. Diferentemente, o aedo é, ele mesmo, narrador de sua história.
Outro elemento é o espaço da performance: a récita aédica ocorre geralmente em
banquetes, enquanto as encenações trágicas têm o espaço do odéon (teatro) para se desenrolar.
Isso não significa, contudo, que o público do aedo seja mais restrito do que o do trágico.
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaço do banquete
aristocrático21, a tragédia se encenava no espaço da pólis, custeada pelos cidadãos ricos e
aberta a toda a população (ROMILLY, 1997, p. 16) e, por isso, o alcance dela era maior22.
Contudo, não podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante, fazendo suas epopeias
chegarem a vários lugares da Grécia. Essa é uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes, que ressalta:
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palácios e ambientes
aristocráticos homéricos não deve enublar nossas leituras. [...] quando
encontramos o aedo iliádico Tamíris, que viajava para competir com outros
aedos, ou mesmo o identificado no Hino Homérico a Apolo, que solicitara
às donzelas délias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali
passassem, chegamos à conclusão de que esse sedentarismo nada mais era do
que uma condição momentânea. [...] A errância, portanto, não é apenas
adequada a esses aedos: é provável que tenha sido um meio indispensável
para a ampliação de seu repertório e a aquisição de novos materiais e
canções (MORAES, 2012, p. 73 – grifos nossos).
Quando vamos estudar os mitos gregos “convém ter em conta essa fragmentariedade
das relíquias e a facilidade de variação que oferecem os relatos dos poetas” (GUAL, 1996, p.
19
Segundo Ruth Scodel, no início, os tragediógrafos poderiam ter sido, eles mesmos, atores em suas tragédias
(SCODEL, 2011, p. 45).
20
Atribui-se a Sófocles o mérito de ter elevado de dois para três o número de atores. Na época de Ésquilo,
existiam somente dois (ROMILLY, 1999, p. 33).
21
Também havia récitas em concursos, mas essas eram feitas por rapsodos, que reproduziam versos de aedos.
22
Embora os cidadãos mais pobres pudessem assistir às tragédias através de um financiamento governamental
(theōriká), a maioria do público no teatro advinha da elite (SCODEL, 2011, p. 53).
27
24). Os mitos, em si, são bastante variáveis: existem mitos que não têm uma única versão.
Afrodite, por exemplo, é filha de Zeus em Homero (Ilíada V, v. 131) e filha de Uranos em
Hesíodo (Teogonia, vv. 180-200). Os mitos eram passados de geração para geração pela via
oral, tanto pelos poetas quanto pelos próprios ouvintes, que passavam as histórias adiante.
Além disso, como vimos, esses mitos circulavam, mesmo na época trágica: as peças poderiam
ser apresentadas em localidades outras além de Atenas. Por isso que os mitos possuíam uma
variação muito grande de região para região, sobretudo antes de terem sido escritos, como na
época arcaica. O poema “original” (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificações conforme passa de uma pessoa para outra.
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos séculos: durante a denominada
Idade Média, os manuscritos épicos, trágicos e historiográficos serviam para o ensino do
grego. Os copistas reproduziam determinados textos gregos, conforme o gosto de quem os
encomendava. Devido a isso, muito se pensou que durante a Idade Média as obras da Grécia
Antiga se perderam; entretanto, isso é inverificável, visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possíveis as edições impressas que temos hoje.
Por causa dessa circulação intensa dos épicos e das tragédias, existem as
interpolações, versos inseridos a posteriori. Em relação a Homero, desde a Antiguidade23
seus poemas são como o pomo da discórdia, pois muita tinta foi derramada e muitos autores
já debateram tanto sobre sua verossimilhança, quanto pela sua autoria, conteúdo ou forma.
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto, já cristalizados pela escrita24. O trabalho com
as obras de Homero, assim, esbarra com a Questão Homérica. Ela se constitui de uma série de
debates acerca da autoria, da veracidade e da unidade dos poemas e muito já se escreveu sobre
ela desde o século XVIII. De fato, um Homero parece não ter existido, mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas, que lhes dão unidade, é a própria ideologia que os perpassa. Não
se comprovou ainda a existência da Guerra de Troia: conjectura-se que, se ela ocorreu,
provavelmente foi entre 1250-1240 a.C., quando a região de Wilǔsa estava em disputa. No
entanto, é fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histórica.
23
Robert Aubreton elenca os críticos de Homero que são conhecidos: Demócrito de Abdera, Hípias de Élis,
Estesímbroto de Tasos, Hípias de Tasos, Aristóteles, Cameleão, Heráclides Pôntico, Filotas de Cós, Zenódoto de
Éfeso, Neoptólemo de Pário, Aristófanes de Bizâncio e Aristarco.
24
É comum a ideia de que Pistístrato, tirano grego, no século VI, mandou que se colocassem por escritos os
poemas homéricos, graças aos escritos de Wolf, que, a partir de documentação oriunda da Antiguidade, concluiu
isso (WHITMAN, 1965, p. 66). Contudo, o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia é
impossível, pois “os dois grandes épicos nacionais dos gregos – se ‘nacional’ é colocado para significar panhelênico ou pan-ateniense e, de certo modo, são os dois – nunca poderia ter nascido de um programa cultural
engendrado por um tirano [despot]” (WHITMAN, 1965, p. 74). Ele mostra uma série de outras origens para o
épico, mostrando que é mais plausível diversas versões tivessem existido
28
Como mostramos em nossa introdução, os poemas homéricos foram compostos no
século VIII a.C., mas referem-se ao século XIII a.C. Desse modo, elas imiscuem dois
períodos: o Palaciano (XVII-XII a.C.) e o Políade Arcaico (VIII-VII a.C.). A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constatação e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso. Por exemplo, em Homero há a presença de duas práticas funerárias:
a inumação e a incineração. Aquela era mais comum na época dos palácios: as escavações em
Cnossos e Micenas revelaram vários túmulos escavados ou com cúpula (thóloi). A prática de
incinerar os mortos começa a surgir na época micênica, mas se difunde ao longo do período
políade. A metalurgia do ferro não era comum na Grécia na época dos palácios: o bronze era
o metal predominante. Já na época de composição dos poemas, ela era largamente praticada.
O poeta mistura elementos de um tempo pretérito e de um presente, a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar à sua audiência.
Estrabão (c. 64/63 a.C. – 24 a.C.), geógrafo grego, resgata o debate entre Políbio (203120 a.C.) e Eratóstenes (c. 276/273 a.C. – 194 a.C.) acerca dos poemas homéricos. Este
último acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu público com uma história
fantasiosa, desprovendo seus poemas de quaisquer informações verídicas. Políbio reconhece
que o relato homérico é imerso em fantasia, mas evidencia “a existência de dados históricos e
geográficos corretos” (GABBA, 1986, p. 38). Estrabão se inclina para essa última opinião,
reconhecendo que tanto a Ilíada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram,
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu, do mesmo modo que afirma serem os dados
geográficos e topográficos de uma grande precisão (GABBA, 1986, p. 39).
Hoje, nos debruçamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz é um termo
extremo para designar as narrativas homéricas. Verossímil, talvez, à medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Ilíada e a Odisseia não estão
completamente fora nem do tempo em que foram compostas, nem do tempo a que se referem.
Não podemos, contudo, negar essa materialidade dos poemas, porque ele possui uma
ancoragem social, espacial e temporal.
O texto literário é o “objeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humana” (ANDRADE, 1998, p. 31 – grifos
nossos) e é essa “realidade humana” que vai nos interessar tanto no estudo da poesia épica
quanto da trágica, sendo esses dois gêneros discursivos profícuos para o estudo da época que
esses textos foram compostos. As epopeias e as tragédias não representam a sociedade
29
palaciana (do período da Guerra de Troia), mas a sociedade políade arcaica e a clássica, em
que o aedo e o tragediógrafo compuseram, respectivamente.
No caso da tragédia, essas interpolações também existem: a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigênia em Áulis, por exemplo, tem partes que não foram escritas por
Eurípides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro não estava na
tragédia original (SCODEL, 2011, p. 6). A exclusão do nosso corpus da tragédia Rhesus
deveu-se, dentre outros motivos, ao fato de não sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragediógrafo. A Antiguidade é um período da História que possui escassez de documentação
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega. Além disso, esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima. Nesse
sentido, a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer à luz a cultura material da época, bem
como o faz a Filologia, ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos.
O papel desse último ramo das Ciências Humanas é particularmente importante no
caso de um de nossos textos: o fragmento trágico Alexandre, de Eurípides. Essa tragédia é
peculiar nesse estudo, pois apenas fragmentos dela chegaram até nós. Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) são perecíveis e, no caso de Alexandre, além da maior parte
da tragédia ter se perdido no tempo, muitas palavras e até mesmo a indicação de sujeitos
enunciadores desconhecemos: no fragmento 54, por exemplo, o personagem que fala pode ser
tanto Páris quanto um mensageiro. No fragmento 62a há várias lacunas no início de alguns
versos (vv. 4, 6, 11-14, 16 e 17), devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro, que levou
para sempre o que estava escrito ali.
No entanto, algumas sentenças são passíveis de serem reconstituídas e especialistas em
língua grega constantemente se debruçam sobre esse tipo de documentação para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioração do material. Como são várias as pessoas
que se dedicam a isso, vários podem ser os resultados finais desses preenchimentos. Abaixo,
um exemplo de como três estudiosos podem fazer essa reconstituição de maneira diferente:
Reconstituição do
Reconstituição do argumento
Reconstituição do
30
argumento (test. iii, l. 17-
(test. iii, l. 17-18) de W.
argumento (test. iii, l. 17-
18) de R. A. Coles (1974)
Luppe (1977)
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
...... ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ....ω [.] .... π[1-2]ρειτο καὶ
στο[υ] τ[ι]µωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
στου ....ω[.]......[.(.)]ρειτο καὶ
[...].
[...].
[...].
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicação de que havia algo ali que foi perdido. Assim como Collard e Cropp às
vezes dão certeza de algo que, em Coles e Luppe, estava indicado como uma suposição (como
no caso da palavra dynástou).
Desse modo, esse tipo de documentação está sempre em modificação, embora, como
David Kovacs reconhece (KOVACS, 2002, p. 48), o assunto do texto em si não se modifique
(aqui, no caso do argumento, a ideia da existência de um agón, que é o próprio tema da peça
em si, uma vez que ela trata da disputa entre Páris e Diomedes pela vitória nos jogos
realizados por Troia). No caso de Alexandre, o argumento25, encontrado apenas
posteriormente à descoberta dos restos da tragédia em si, foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas léxicas e de indicações dos sujeitos enunciadores.
Essa tragédia, provavelmente, era a primeira de uma tetralogia (tragédia 1 + tragédia 2
+ tragédia 3 + drama satírico) que se constituía dela mesma, de Palamedes (também
fragmentária), de As Troianas e de Sísifo (desaparecida). Há questionamentos acerca dessa
ideia, mas é inegável que as três tragédias têm muito em comum: a ação de Alexandre
começa na montanha (monte Ida), Palamedes se desenrola nas planícies (a cidade em si) e As
Troianas é ambientada na praia (acampamento grego), o que denota uma organicidade na
composição da trilogia e um movimento progressivo, sobretudo porque a própria Atenas era
assim constituída espacialmente (MARISCAL, 2003, p. 214 e p. 444).
A helenista Lucía Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenção pelo fato de ela mostrar como o tema da peça é
extremamente influenciado pelos acontecimentos da época, bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Páris) a Alcibíades, cidadão ateniense que ajudou os
25
O argumento é uma anotação feita por estudiosos copistas que antecede a tragédia. Ele a resume e pode dar
algumas informações importantes no tocante à sua apresentação.
31
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e que possuía ambições tirânicas.26
Ruth Scodel chama atenção ao fato de que essas correlações são comuns, mas que sempre
encontram questionamentos.
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
tragédias a um acontecimento da época, geralmente relativo à Guerra do Peloponeso,
afirmando que elas não representam a vida cotidiana de Atenas, mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL, 2010, p. 168; 1997, p. 94). Concordamos em parte com essa afirmação:
estamos lidando com um discurso, no qual a ideologia dominante está presente, visto que se
trata aqui de uma legitimação dos valores ideais que um cidadão deve possuir. No entanto,
Eurípides, quando escreve suas peças, não é completamente indiferente aos acontecimentos da
sua época, pois, como vimos, todo texto literário representa o ponto de vista do autor, sua
visão de mundo. De fato, seria uma imprudência acadêmica querer encaixar cada tragédia
num acontecimento específico, forçando uma correspondência falaciosa, mas é possível
reconhecer dilemas intrínsecos às discussões acerca da guerra em algumas tragédias:
Alexandre, veremos, parece ter conexão latente com o episódio da peste em Atenas, bem
como Eurípides parece mostrar com As Troianas sua opinião acerca da invasão de Melos ou
Siracusa.
O contexto histórico ateniense de Andrômaca (c. 426 a.C.) não é o mesmo que o de
Orestes (c. 408 a.C.), pois esta é encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
início. Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graças, sobretudo, ao relato de
Tucídides, conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da época. Do mesmo
modo, algumas tragédias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo específico:
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia. Ele toma emprestado de Estesícoro e
Heródoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia, em vez de ter
estado lá o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL, 2011, p. 162; HALL, 2010,
p. 279). Um eídolon teria sido colocado em Troia e, na verdade, a rainha estaria esperando por
seu esposo, Menelau, no Egito. A Guerra de Troia, afinal, teria sido causada por uma ilusão,
por nada. Isso reforça o discurso “pacifista” euripidiano: em suas tragédias troianas,
geralmente ambientadas num cenário pós-guerra, a ideia de que a guerra traz mais prejuízos e
sofrimentos do que benefícios está sempre presente (JOUAN, 2000, p. 5).
Esse episódio nos mostra também como o mito pode ter uma atualização ética: Helena
deixa de ser a má esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da época, pois
26
Vamos aprofundar essas ideias no capítulo seguinte (Páris, o causador de males).
32
traz a ideia da fidelidade ao marido. O próprio Páris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que é bárbaro, como defendemos. Isso tem a ver,
diretamente, com a própria época em que se compõe: a dicotomia “grego versus bárbaro” no
século V a.C. se consolida ao mesmo tempo em que, em Eurípides, entra em crise, sendo
necessário reiterar aos cidadãos atenienses a ideia do que é o bárbaro.
Não é correto afirmar que as Guerras Greco-Pérsicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helênica (HALL, 1989, p. VLASSOPOULOS, 2013, p. 163), pois desde
Homero, como estamos vendo, isso é verificável. O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenção para esse debate:
Acadêmicos modernos têm frequentemente interpretado esse fenômeno [dos
troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no
tempo de Homero (o século oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente
[inchoate] e a justaposição de todos os não-gregos como bárbaros não tomou lugar.
Essa é uma interpretação histórica que induz ao erro [misleading] [...]; mas também
é uma interpretação literária dos épicos homéricos que induz ao erro. Não devemos
subestimar a sofisticação poética desses épicos [...]. Quando ele descreve como o
líder dos cários barbarophonoi [sic] “veio para a guerra todo decorado com oureo,
como uma garota, bobo que ele era”, o tema da luxúria efeminada bárbara e a
desaprovação grega disso está claramente presente (VLASSOPOULOS, 2013, p.
171).
Do mesmo modo, não é correto dizer que os gregos só começaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso: muitos gregos lutaram contra gregos já nas Guerras GrecoPérsicas (VLASSOPOULOS, 2013, p. 55). As póleis não eram tão unidas quanto geralmente
se pensa que elas são: “os gregos não tinham nenhum centro ou instituição em torno da qual
se poderia organizar sua história; as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterrâneo e elas nunca alcançaram uma unidade política, econômica ou social”
(VLASSOPOULOS, 2007, p. 91). Ainda segundo Kostas Vlassopoulos, o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes: marinheiros, comerciantes, soldados,
intelectuais, todos criavam uma rede de circulação de pessoas, produtos e ideias que unia
essas póleis, assemelhando-se à nossa globalização moderna (termo, inclusive, que o
historiador usa para se referir a esse fenômeno na Antiguidade grega).
Segundo o historiador britânico Frank William Walbank, o que unia os gregos era
justamente a religião e a cultura em comum (2002, p. 245). Essa ideologia era compartilhada
por todas as póleis, mas elas particularizavam-na. São conhecidas as peculiaridades de
Esparta, Atenas, Corinto, e, principalmente, das póleis que ficavam em regiões de apoikíai
(colônias): essas regiões eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
33
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS, 2013, p. 277). O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um herói protocolonial, visto
que por todos os lugares que ele passa, ele vai deixando sua “marca”, embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN, 1998, p. 2). O
próprio mar era um ambiente propício ao encontro com alteridades, muitas vezes hostis
(LESSA; SOUSA, 2014, p. ).
Debruçar-nos sobre as obras literárias a fim de comprovar as descobertas
arqueológicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia, seja a do
Peloponeso) ou se os heróis de míticos existiram de verdade é uma veleidade. Contudo, não é
impossível relacioná-las com o momento de sua composição. Portanto, é mais profícuo: 1)
tentarmos compreender as representações de Páris levando em conta os elementos de
ancoragem histórica e social da obra, relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguísticos; e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representações sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras étnicas através da
análise das práticas discursivas. O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relação a Homero:
Em qualquer caso, e contemplando separadamente a investigação sobre os poemas e
a análise da realidade histórica dos feitos descritos, o aproveitamento histórico da
obra homérica será seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos
como família, vida social e política, instituições e normas, princípios éticos,
comportamento religioso, cultura material, ou fatores econômicos. Os símiles entre
os poemas são, em suma, particularmente reveladores (GABBA, 1986, p. 45 – grifos
nossos).
Os costumes apresentados na Ilíada, na Odisseia e nas tragédias são modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem às encenações: todo o modo de conduta social dos
heróis é trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloì kaì agathoí, ou seja, os
“belos e bons”, os aristocratas. Esses homens eram o público do aedo (CARLIER, 2008, p.
15; AUBRETON, 1968, p. 138) e, mais tarde, serão os dos trágicos. O aedo cantava aquilo
que o público queria ouvir. Temos exemplo disso até mesmo na própria Odisseia, pois,
quando a canção de Demódoco, aedo da Feácia, não agrada mais, mandam-lhe parar de tocar:
[...]
Δηµόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρµιγγα λίγειαν:
οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόµενος τάδ᾽ ἀείδει.
ἐξ οὗ δορπέοµέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός,
ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο
ὁ ξεῖνος: µάλα πού µιν ἄχος φρένας ἀµφιβέβηκεν.
34
ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ µὲν σχεθέτω, ἵν᾽ ὁµῶς τερπώµεθα πάντες,
ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος, ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως:
[...]
não mais ressoe a cítara o cantor Demódoco,
pois sua poesia não agrada a todo ouvinte.
Assim que nos pusemos a cear e o aedo
começou, o hóspede não mais reteve o pranto,
a angústia circum-envolveu seu pericárdio.
Demódoco, já basta! Que anfitriões e o hóspede
possam unir-se na alegria! (Odisseia VIII, vv. 537-543).
Os trágicos não tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem: eles
escreviam as suas tragédias, as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL, 2011, p. 43). Além disso, havia os juízes responsáveis por decidir qual peça
merecia o primeiro prêmio. Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peça
que não foi do gosto dos jurados27. Quando vamos estudar as tragédias, é importante termos
em mente quais peças ganharam, pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideológico políade. No caso de Eurípides, apenas duas tragédias suas ganharam o primeiro
prêmio (Ifigênia em Áulis e Hipólito); Orestes ganhou o segundo. Na realidade, sua fama foi
póstuma, pois seu estilo de composição influenciou bastante as gerações posteriores de
tragediógrafos: Sêneca, por exemplo, para compor sua As Troianas, inspirou-se n’As
Troianas e na Hécuba de Eurípides. Além disso, suas tragédias foram bastante reencenadas
em períodos posteriores, nos quais Atenas já tinha perdido toda a sua glória e esplendor
(SCODEL, 2011, p. 43).
No teatro, era a pólis que estava sendo representada, desde os ritos que precediam a
encenação trágica28 (inscrita num espaço religioso, pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisíacas e das Leneias) até todo o espaço do odéon (incluindo o palco, através das
encenações que colocavam em destaque as instituições e valores políades, e os assentos do
público (theátron), que eram organizados de modo tal que os cidadãos podiam não só
enxergar uns aos outros como também podiam reconhecer, através do lugar que se ocupava,
aqueles mais proeminentes dentro da pólis ateniense). É a síntese da ideia da publicidade das
ações, que existe desde a poesia épica e atinge seu ápice durante a democracia: uma
publicidade direcionada aos interesses políades.
27
Sobre detalhes desse julgamento, ver o tópico Finances and Contests, do capítulo 3 do livro An Introduction
to Greek Tragedy, de Ruth Scodel (consultar Referências Bibliográficas).
28
Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competições trágicas, ver o tópico The Festivals, no
capítulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy, de Ruth Scodel (consultar Referências Bibliográficas).
35
No entanto, é inviável dimensionar a opinião dos sujeitos receptores: não podemos
especular sobre a recepção das peças em relação a todos os espectadores, ainda mais quando
temos em mente que essas peças podiam circular pelas outras póleis e regiões de colonização,
as quais possuíam um público bem mais heterogêneo do que o ateniense (HALL, 2006, p. 29).
O mesmo acontece com as epopeias de Homero: não temos como precisar a recepção dos
poemas, que também tinham uma audiência bem heterogênea. Desse modo, cabe a nós,
historiadores, observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinatários ao se compor
esses textos.
A Ilíada, único poema homérico que trata de Páris, nos conta a história da ira de
Aquiles (ROMILLY, s/d, p. 18). Por causa dessa temática comum aos Cantos e da proto-panhelenicidade do poema (MITCHELL, 2007, p. 54), cremos que a Ilíada tem uma unidade
intrínseca. Contudo, essa opinião não é uma unanimidade: no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema: havia duas escolas filológicas, a de Alexandria e a de Pérgamo
(surgidas por volta do século IV a.C.), as quais possuíam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero. A primeira praticava a atetese: tudo o que se cria não pertencer à Ilíada
original se suprimia. Já a segunda preferia a exegese, ou seja, a crítica do texto, sem omitir
versos.
Em 1795, F. A. Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum, o qual deu início à
“questão homérica” e a uma série de trabalhos denominados analistas: neles, procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos, apontando para
as contradições, as dissonâncias entre Ilíada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhança na obra. Em contraponto a essas teses, há os unitaristas, que defendem a
unidade dos poemas. Ainda existem os neo-analistas: eles não desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruências das epopeias, mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras, oriundas de uma tradição anterior ao poeta, o qual, com sua
genialidade, teria reunido e composto um texto único.
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homéricos possuem uma unidade
intrínseca porque derivam dessa tradição épica precedente. A própria Telemáquia (Cantos IIV da Odisseia), as narrativas de retorno dos nóstoi, os relatos de batalhas singulares entre
heróis são temas anteriores à composição da Ilíada e da Odisseia. Homero, ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias, conhecia tais histórias e se baseou nelas para compor as
suas próprias.
36
O que chama atenção é o que configura o sentido do discurso do aedo: as noções de
alḗtheia e lḗthē (“esquecimento”). A função do poeta é rememorar os feitos de deuses e
homens, não deixando que se esqueça deles. Para a sociedade, isso é fulcral: o homem morre
fisicamente, mas sua memória é imortal se ele assim merecer. Para ganhar essa glória
imorredoura, ele precisa ser reconhecido pela sua própria sociedade e, assim, ser cantado por
gerações. Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um herói.
Dentre alguns valores, ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante: a aretḗ
(excelência), a timḗ (honra), kléos/kŷdos (glória), kalòs thánatos (bela morte) e alkḗ/andreía
(coragem).
Eurípides é influenciado por essa tradição poética homérica e esses valores também
perpassam as suas obras: o herói homérico não se diferencia tanto do herói trágico, pois há
muita tenuidade entre eles, como veremos. Contudo, na tragédia, a ideia da falha, do erro,
hamartía, é muito mais forte, embora na epopeia exista uma ideia semelhante, a qual traz à
tona um questionamento sobre a infalibilidade do herói: a átē (perdição), que tem estreita
ligação com desígnios divinos. A tragédia traz o herói falho e as situações que o envolvem
servem de catarse para o público: é assistindo àqueles personagens que o cidadão políade
toma consciência dos problemas da sociedade e de si mesmo. Ao mesmo tempo, a tragédia
implica em permanência e mudança: ela legitima os valores (pan-)helênicos e os critica, a fim
de estimular essa mudança e, desse modo, manter viva a sociedade.
Além da forma29, um dos pontos que tornam a tragédia um gênero discursivo (visto
que há semelhanças entre uma tragédia e outra) é a utilização do material mítico cultural.
Essas histórias se passavam em “um passado que já era remoto para a audiência da Atenas
antiga” (SCODEL, 2011, p. 3). Para os gregos, os heróis e deuses existiram de verdade: eram
parte de sua história. Aquiles, Páris ou Heitor existiram para eles. Como vimos, o mesmo
mito é contado e recontado nos palcos, mas o que vai diferenciar os tragediógrafos de Homero
e, por sua vez, um tragediógrafo do outro, é: 1) o modo como o mito é contado (figurino,
máscaras, diálogos entre os personagens); 2) as modificações no mito que os autores fazem, a
fim de servirem a seus propósitos; 3) as atualizações éticas desses mitos e 4) as alusões aos
acontecimentos contemporâneos.
29
“A tragédia era um tipo específico de drama. Era encenada por atores (em Atenas, não mais que três) e um
coro de doze, depois quinze, que cantavam e dançavam, auxiliados por um tocador de aulós, um instrumento de
sopro [reeded wind instrument]. Na maioria das partes, os atores usavam um verso falado, principalmente o
trimetro iâmbico, ou recitativo, enquanto os coros cantavam entre cenas, mas o líder do coro poderia falar pelo
grupo durante as cenas dos atores, enquanto os atores poderiam cantar, ambos em resposta ao coro e em
monódio [both in responsion with the chorus and in monody]” (SCODEL, 2011, p. 3 – traduzido do original em
inglês por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva).
37
Esse passado mítico é um dos elementos que constituem a fronteira étnica helênica. O
antropólogo Christian Karner chama atenção para o fato de que a etnicidade é “amplamente
associada à cultura, descendência, memória/história coletivas e língua” (KARNER, 2007, p.
17). Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith, que
seria um grupo restrito a um determinado espaço que se designa sob um etnômio, com mitos e
elementos culturais em comum, uma memória histórica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER, 2007, p. 18). Essa ideia dialoga bastante
com a noção de grupo étnico de Fredrik Barth, a qual delineamos em nossa Introdução.
Portanto, os gregos se constituíam num grupo étnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras étnicas e, desse modo, garantir a sua existência. No âmbito
textual, Homero é o responsável por tentar fixar essas fronteiras: ele traz à memória as
histórias dos heróis do passado e dos deuses do presente, bem como ressalta a importância dos
ancestrais, visto que um indivíduo é sempre reconhecido por sua filiação. Aquiles é o Pélida
(filho de Peleu), Diomedes é o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus, um deus, tem como um
dos epítetos “Crônida” (filho de Cronos).
Eurípides apresenta constantemente o tema da destruição da linhagem familiar como
um grande problema não somente para o indivíduo, mas para a comunidade: em nosso corpus
documental, Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Ifigênia em Áulis e Orestes trazem
episódios de desmantelamento da família. A primeira tragédia mostra o sofrimento de
Andrômaca ao tentar proteger seu filho da fúria de Hermíone, sendo que a personagem
mesma já sofrera com a morte de Astýanax, seu primogênito, que é abordada em As
Troianas. A filha de Helena, por sua vez, amargura-se por não conseguir ter um filho com
Neoptólemo, seu marido: sem filhos não há herdeiros de bens materiais e imateriais, como a
memória da linhagem. É como se o nome da família morresse na memória social, pois os
filhos são responsáveis por mantê-la viva. Na Ilíada, um dos maiores medos expressos é o de
perder o filho na guerra e não ter a quem deixar a herança ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V, vv. 152-158).
Em As Troianas, além do sofrimento de Andrômaca vemos o de Hécuba, que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifício. A rainha de Troia sofre também em
Hécuba a perda do filho, Polidoro, morto brutalmente pelo trácio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado. Ifigênia se dará ao sacrifício, assim como Polixena, em Ifigênia em
Áulis, levando ao desespero sua mãe, Clitemnestra. Embora a preferência seja por filhos do
sexo masculino, eram as filhas as responsáveis pelos funerais dos mortos: as mulheres
38
exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL, 1997, p. 106). As
tragédias mesmas nos mostram isso, como é o caso de Antígona, de Sófocles: o tema central
da peça é o esforço da personagem homônima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmão que, por ter assassinado o próprio irmão, é condenado a ficar aos corvos, sem enterro.
Agamemnon, pai de Ifigênia, amaldiçoa Páris por ter causado toda a situação de sua
família: não fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada, a filha estaria a salvo.
Contudo, a sorte do rei de Micenas está traçada de uma vez por todas, pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra. Com a família desmantelada, Orestes, filho do casal,
desencadeará uma vingança desmesurada: mata a mãe e tenta matar Helena em Orestes,
atraindo para si a fúria das Erínias, divindades responsáveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos, sobretudo o assassinato de familiares.
Edith Hall mostra como “a vida familiar de um cidadão era um componente da sua
identidade política” (HALL, 1997, p. 104): público e privado se misturavam. A experiência
social é fundamental para que um indivíduo se sinta pertencente a um grupo étnico e ajude a
manter essas fronteiras. Desse modo, os espaços públicos de convivência (o banquete, a
ágora, o templo, o ginásio, o teatro) são loci importantes dentro do grupo étnico helênico,
bem como a publicidade das ações: um grego é um homem essencialmente público. Ele está
exposto aos olhares do seus ísoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos: o homem
grego não é somente o homem do ser, mas também é o homem do fazer.
Para ser social, o homem grego deveria se instruir: a educação tinha um papel muito
importante dentro da Hélade. Devia-se conhecer os códigos de conduta e, principalmente,
praticá-los. Segundo a filóloga Carmem Soares, “a tragédia é um gênero literário regido por
uma poética didático-hedonista” (SOARES, 1999, p. 16), ou seja, ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento, educa. Essa não é uma característica exclusiva dela: a poética
didático-hedonista advém da poesia épica, que contava, com deleite, as façanhas dos heróis e
dos deuses. Sua função é imortalizar esses seres extraordinários, conservando suas memórias
para as gerações vindouras tomarem-nos de exemplo.
Os mitos, as histórias desses heróis do passado, servem de advertência aos vivos,
àqueles que as ouvem. A epopeia e a tragédia compilam toda uma tradição mítica e o mito,
por excelência, tem justamente a função de “revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a
educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1972, p. 13 – grifos nossos). Ele “possui o
espantoso poder de engendrar as noções fundamentais da ciência e as principais formas da
39
cultura” (DETIENNE, 2008, p. 34): sua difusão constitui uma prática de paideía. Assim, os
poemas homéricos possuem uma função paidêutica (VIEIRA, 2002, p. 14), bem como as
tragédias de Eurípides.
Paideía é um termo que aparece pela primeira vez na documentação no século V
30
a.C. , em uma tragédia de Ésquilo (JAEGER, 2010, p. 335). Traduzir esse termo é muito
difícil: literalmente, significa criação de meninos (paîs significa “criança”); comumente,
traduz-se como educação, mas esse termo não contempla todo o significado da paideía
(MOSSÉ, 2004, p. 107-108): ela se constitui na transmissão de saberes e práticas helênicas.
Ela “acaba por englobar o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais, que
formam a kalokagathia, no sentido de uma formação espiritual consciente” (JAEGER, 2010,
p. 335). A paideía se configura num aspecto ideológico da sociedade, como nos explica o
historiador Fábio de Souza Lessa:
Por ideologia, entendemos um conjunto de representações dos valores éticos e
estéticos que norteiam o comportamento social. No caso da sociedade ateniense, os
valores estéticos estão representados pela proporção, justa medida, equilíbrio,
enquanto os valores éticos, pela paideía (educação, cultura) – falar a língua grega,
comer o pão, beber vinho misturado com água, cultuar os deuses, lutar na primeira
fila de combate, obediência às leis, cuidar dos pais e fazer os seus funerais, manter o
fogo sagrado, ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida política
(LESSA, 2010, p. 22).
Assim, preferimos explicar aqui o sentido de paideía e deixar a palavra sem tradução
para o português: ela se constitui da transmissão de saberes e práticas culturais. Os poemas
são loci de paideía, porque contam mitos: eles trazem uma série de modos de conduta caros à
sociedade helênica, que vão servir para formar o kalòs kagathós e, no século V a.C., o politḗs
(cidadão). Esses homens vão se inspirar nos heróis e nas suas façanhas, nos seus atos, que são
passados às gerações futuras por intermédio da poesia, seja ela épica, lírica ou trágica:
[...] para que a honra heroica permaneça viva no seio de uma civilização, para que
todo o sistema de valores permaneça marcado pelo seu selo [o do herói], é preciso
que a função poética, mais do que objeto de divertimento, tenha conservado um
papel de educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine, se atualize
na alma de cada um este conjunto de saberes, crenças, atitudes, valores de que é feita
uma cultura. (...) a epopeia desempenha o papel de paideía, exaltando os heróis
exemplares, assim como os gêneros literários ‘puros’ como o romance, a
autobiografia, o diário íntimo o fazem hoje (VERNANT, 1978, p. 42 – grifos
nossos).
30
Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideía que vão ser desenvolvidos no século V a.C. se
baseiam em práticas educativas muito anteriores (JAEGER, 2010, p. 1).
40
Esses heróis seguem esse modo de conduta social, que é expresso pelas suas ações.
Quando eles se desviam desse código, são submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na tragédia) são vítimas de reviravoltas às vezes incontornáveis em suas
vidas. Páris, como veremos, erra ao fugir da batalha, mas, quando acusado pelo seu irmão de
ser covarde, retorna, para recuperar sua honra. Já Édipo, herói da trilogia tebana de Sófocles,
mancha a honra da sua família ao casar-se com sua própria mãe e dessa hamartía
desencadeiam-se uma série de episódios fatídicos que culminam na desgraça de sua linhagem.
Seu destino mesmo já estava (mal) traçado quando seu pai se apaixonou por um homem: a
pederastia era uma prática educacional comum na Grécia, na qual um erastés (mais velho)
ficava responsável por iniciar um erómenos (mais novo) na vida adulta. Contudo, relacionarse sexualmente com um homem era vetado.
Essas normas ajudam a reforçar essas fronteiras étnicas helênicas, que são
constantemente abaladas pelo contato com os Outros. Enquanto em Homero essas fronteiras
estão sendo formadas, em Eurípides elas estão turvas. Em Andrômaca, As Troianas,
Hécuba, Ifigênia em Áulis e Orestes, vemos que o grego é passível de se barbarizar,
sobretudo quando esse grego é um espartano. Na primeira tragédia, Hermíone (uma
espartana) tem atitudes controversas e é mostrada usando muito ouro (v. 147), mas não chega
a ser comparada a uma bárbara. Ela ainda é porta-voz de valores helênicos, reforçando a ideia
de que Andrômaca é a bárbara (v. 261). Ela afirma que “Não há nenhum Heitor aqui, /
nenhum Príamo ou seu ouro: essa é uma cidade grega” [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε, / οὐ
Πρίαµος οὐδὲ χρυσός, ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv. 168-169). Ela ainda afirma que: “Esse é o
modo como os bárbaros são:/ pai dorme com filha, filho com mãe / e irmã com irmão, gente
próxima / assassina gente próxima e não tem lei para prevenir isso” [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος: / πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε µητρὶ µείγνυται / κόρη τ᾽ ἀδελφῷ, διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι / χωροῦσι, καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόµος] (vv. 173-176).
Percebamos a caracterização do bárbaro por ela nessa passagem: ela critica aqueles
que mantêm relações sexuais dentro do núcleo familiar (pai, filho, filha, mãe, irmãos) e o
assassinato entre phíltatoi31. O tema da trilogia tebana, de Sófocles, gira em torno disso:
Édipo se casa com a mãe e seus netos se matam entre si. É interessante o resgate desse tema,
31
Essa palavra é de difícil tradução. Em sua raiz está phílos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocábulo
para que possamos ter uma tradução de phíltatos. Contudo, essas palavras não têm o mesmo significado: há uma
razão para Eurípides escolher phíltatos em vez de phílos. Contudo, quando traduz Phíltatos (nome próprio),
coloca que é, literalmente, “bem-amado” [bien-aimé] (BAILLY, 2000, p. 2083). Cremos que “gente próxima” é
o que mais se aproxima do sentido dessa palavra, visto que phílos designa essa ideia: são pessoas que se
conhecem, que são próximas, que se assassinam.
41
pois Tebas era inimiga de Atenas, sendo a pólis que teria começado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia, região de domínio ateniense. Não podemos afirmar que Eurípides tinha isso
em mente quando compôs Andrômaca, pois não podemos ir além do que a documentação
nos mostra, mas mostrar como sendo algo bárbaro hamartíai de heróis tebanos é, no mínimo,
curioso.
Menelau, nessa peça, é quem recebe as críticas mais duras, vindas de Peleu, durante
um agón entre os dois personagens: o ancião o critica por ter deixado um frígio levar sua
esposa de sua própria casa (vv. 590-609) e afirma que os espartanos são só bons de guerra
mesmo, que, em outras matérias, são inferiores (vv. 724-726). O homem espartano é
inferiorizado. Em Orestes, Menelau já é comparado a um bárbaro: Tíndaro o acusa de ter se
tornado um bárbaro por ter estado entre bárbaros (v. 485). Em Andrômaca, os espartanos
ainda não são diretamente “barbarizados”, como acontece em Orestes; aquela tragédia foi
encenada praticamente no início da Guerra do Peloponeso, enquanto esta foi no final, quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram, paulatinamente, sendo
deixados de fora da fronteira étnica helênica, tornando-se Outros.
Ainda em Orestes, Pílades, Electra e seu irmão são capazes de ações condenáveis em
nome da vingança. Em Ifigênia em Áulis, vemos Agamemnon, um grego, levar sua filha ao
sacrifício e em As Troianas e Hécuba os gregos se comportam de maneira condenável em
relação às cativas troianas, piorando a situação deplorável em que já se encontram com o fim
de Troia. As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temática vencedor/perdedor são
expressas na produção textual da época: assim como hoje em dia é impossível ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam, Eurípides também não conseguiu fazê-lo em
sua época. A obras literária em si é um “artefato fonomorfossintático; é universo semântico; é
campo sintomatológico da história, do social e da consciência; numa palavra: é
presentificação imagética do homem em ação” (ANDRADE, 1998, p. 15).
Embora ambientadas em Troia, essas tragédias traziam temas caros à realidade
ateniense. São comuns peças que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de “roteiros de deslocamento” [displacement plots]), onde a etnicidade e os direitos de
cidadania são contestados (HALL, 1997, p. 98). Os troianos, como vimos, eram um exemplo
de barbárie, mas, frequentemente, eram representados como vítimas dos gregos, ganhando
uma certa “simpatia” de Eurípides. Hall acredita que “se a representação trágica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos ‘bárbaros’ e assimilá-los ao arquétipo do persa arrogante,
42
então os ‘atenienses’ desse mundo mítico, contudo paradoxalmente, pode ser a vítima troiana
da agressão espartana” (HALL, 1989, p. 214).
A helenista Casey Dué coloca que a representação dos troianos dessa maneira
“convida a audiência a transcender as fronteiras étnicas e políticas que dividem as nações na
guerra. Desse modo, os atenienses podem explorar suas próprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros, inclusive de suas próprias vítimas” (DUÉ, 2006, p. 116). Não podemos
negar que a exposição do sofrimento alheio é um apelativo para chamar a atenção acerca do
próprio sofrimento ateniense: a viúva, os órfãos, os prisioneiros de guerra são categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses, visto que se está em uma
época de guerra. Do momento que ele mostra os malefícios da guerra através desses
personagens, ele está colocando sua visão acerca dos prejuízos desencadeados por ela, bem
como questionando a legitimidade dela. Embora não participasse efusivamente da política
como Ésquilo e Sófocles, ele era uma pessoa de opinião na época. Se ele pudesse mostra-la
nos palcos, um dos lugares para onde os olhares da pólis se voltavam, ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar também essa guerra.
Contudo, acreditamos que a intenção não era “universalizar” o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si, mas mostrar que o espartano é tão condenável que até o
bárbaro era melhor. Afirmamos isso porque o troiano, embora visto dessa maneira piedosa,
não deixava de ser bárbaro, devido à sua caracterização. As fronteiras étnicas, como vimos,
são borradas em Eurípides, mas não é por caracterizar “melhor” o troiano, mas por assimilar o
espartano (grego) a ele, o exemplo de bárbaro. Além disso, como defendemos aqui, essa
caracterização do troiano (que é compartilhada com o persa, o egípcio etc.) já vem dos
poemas homéricos.
Geralmente, quando falamos de identidade/alteridade em Homero, pensamos
primeiramente na Odisseia. Esse poema é marcado pelo embate com Outros, visto que
Odisseu viaja por terras longínquas e, às vezes, hostis. É emblemático o encontro desse herói
com o Cíclope, personagem-síntese daquilo que é não ser grego. Odisseu, enquanto “aedo de
si mesmo”, conta o que viu quando chegou à terra dos Cíclopes:
ἔθνα δ'ανὴρ ἐνιαυε πελώριος, ὅς ῥα τὰ µῆλα
οἶος ποιµαίνεσκεν ἀπόπροθεν· οὐδὲ µετ' ἄλλους
πωλεῖτ', ἀλλ' ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεµίστια ᾔδη.
καὶ γᾶρ θαῦµ' ἐτἐτυκτο πελώριον, οὐδὲ ἐῴκει
ἀνδρί γε σιτοφάγῳ, ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι
ὑψηλῶν ὀρέων, ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπ'ἄλλων.
43
dormia um ente gigantesco, que pascia
a rês sozinho nos confins. O ser longínquo
não convivia com ninguém, sem lei, um ímpio.
Dissímile de um homem comedor de pão,
o monstro colossal mais parecia o pico
da cordilheira infinda, sem vizinho à vista.
(HOMERO. Odisseia IX, vv. 187-192).
Polifemo, é descrito como um monstro: é “gigantesco”, “colossal” (pelṓrios), parece o
“pico da cordilheira” (hypsēlôn oréōn). Ele não parece um “homem comedor de pão” (andrí
ge sitophágo): vive sozinho e em estado de athemistía, sem (a-) leis (thémistes). Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos: o homem grego é, idealmente, um homem público.
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenção de sua comunidade. Do
mesmo modo, a lei, nómos, é o que diferencia o homem do animal, que vive no âmbito da
phýsis, natureza, e do ágrios, selvagem.
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles começam a
comer seu queijo (demonstrando, até, pouca educação, visto que os hóspedes devem esperar
que o anfitrião lhes ofereça algo para comer). Quando o Cíclope chega, Odisseu lhe faz uma
súplica, a qual é respondida com aspereza:
νήπιός εἰς, ὦ ξεῖν', ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας,
ὅς µε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίµεν ἢ αλέασθαι·
οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν
οὐδὲ θεῶν µακάπων, ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰµεν·
οὐδ' ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάµενος πεφιδοίµην
οὔτε σεῦ οὔθ' ἑταρων, εἰ µὴ θυµός µε κελεύοι.
Ou és um imbecil ou vens de longe, estranho,
rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os,
pois Zeus porta-broquel não chega a preocupar
Cíclopes, nem um outro olímpico: somos bem
mais fortes. Não te acolheria, nem teus sócios,
para poupar-me da ira do Cronida. O cor
é meu tutor.
(HOMERO. Odisseia IX, vv. 273-278).
O Cíclope, aqui, desliza duas vezes: primeiramente, nega uma súplica. Isso gera um
estado de átē: “a recusa [da súplica] resulta em perdição” (MALTA, 2006, p. 61), sendo que
“a oposição plural-singular, litaí-áte, ‘súplicas-perdição’, que parece indicar uma significativa
oposição entre coletividade, entendimento e reconhecimento, de um lado, e isolamento,
44
teimosia e cegueira, de outro [devemos destacar]” (MALTA, 2006, p. 58-9). Essa súplica é a
do xénos, aquele que se hospeda em um lugar.
Assim, em segundo lugar, ele nega um costume que, factualmente, não é somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido “exclusivizado” pelos helenos ao longo do
tempo), mas é difundido por todo o Mediterrâneo: a hospitalidade (xénia), que é
[...] um código de conduta, uma convenção não escrita que atravessava as fronteiras
do Mediterrâneo oriental. Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida,
em que havia troca de presentes e festivais, e sua origem estava na xenuia da Idade
do Bronze tardia [...] que surge nas tábuas de Linear B [...]. A xenuia governaria, na
verdade, o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palácios do Peloponeso
no século XIII a.C. [suposto século da ocorrência da guerra de Troia] (HUGHES,
2009, p. 188).
Páris também transgride a xénia, configurando-se num Outro. Tem-se admitido que os
troianos são o Outro estrangeiro: conjectura-se que Troia, na verdade, nunca fez parte da
Hélade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo óbvio
e natural. Claude Mossé mostra que a Ilíada “conserva a memória de uma grande expedição
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troia” (MOSSÉ, 2000, p. 10),
embora “helenos” designe apenas uma parte da Grécia em Homero (HALL, 2002, p. 129) e o
termo “Europa” tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL, 2007, p. 20). Hillary Mackie
crê que essa diferenciação nesses termos se dá porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguístico (uma de elogio e outra de acusação).
Kostas Vlassopoulos, ao analisar a glocalização do não-grego na Grécia, ou seja, os
modos pelos quais os gregos “adotam e adaptam”32 repertórios estrangeiros, ele fala que em
Homero já acontecia isso, visto que os heróis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS, 2013, p. 167). Para justificar essa ideia, o historiador afirma que
[...] no lado aqueu do Catálogo das Naus enumera um sem-número de comunidades
de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a liderança de
Agamemnon, enquanto o catálogo dos aliados troianos enumera várias pessoas
falando outras linguagens (allothrooi) [sic], que mandam suas tropas para ajudar os
troianos, incluindo os lícios, os cários, os trácios, os paflagônios, os frígios, os
mísios e os peônios (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171).
32
Essa é uma expressão muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro.
45
Os cários são denominados barbaróphōnos33 (Ilíada II, v. 867), não os troianos. “Mas
outras são as línguas dos outros homens que se espalham ao longe” [ἄλλη δ’ ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II, v. 804) no exército troiano, mas isso não significa
que o troiano esteja falando outra língua: seus aliados eram de regiões não-gregas.
Discordamos dessas posições: não há, na Ilíada, nenhuma referência ao caráter
estrangeiro de Troia. Contudo, também não é adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos, como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Grèce?: “entre os dois
[troianos e aqueus], como Zeus mesmo, Homero tem a balança igual. [...] Homero ignora tal
oposição [Europa vesus Ásia]” (ROMILLY, 2013, p. 38 e 39). Ela afirma que Homero não os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando, e os valores da humanidade se
sobrepõem aos do grupo étnico: “ele não marca as diferenças entre indivíduos e, tampouco,
entre os povos. Do lado troiano como do lado aqueu, são ‘mortais’ que se afrontam”
(ROMILLY, 2013, p. 37).
Antonio Mario Battegazzore mostra que “entre gregos e troianos estão faltando
elementos, mesmo que mínimos, de distinção: a alimentação e o vestiário, bem como os
princípios morais, são idênticos para todos; os cultos, as habitações, o modo de combater
valem para um como para outro” (1996, p. 17). Ele concorda com Edith Hall ao dizer que não
existe uma distinção entre Europa e Ásia na Ilíada (HALL, 1989, p. 39; BATTEGAZZORE,
1996, p. 17). De fato, Homero não traz esses termos geográficos, mas não podemos dizer que
não exista diferenciação alguma, como John Heath corrobora:
Os troianos de Homero são notoriamente difíceis de ser distinguidos dos gregos: eles
cultuam os mesmos deuses, lutam com táticas idênticas e compartilham formas
equivalentes de habitação, comida, vestimenta, funerais e parentesco. Mesmo as
diferenças – poligamia oriental, por exemplo – são minimizadas. Os principais
protagonistas da guerra, um da Europa e outro da Ásia, até falam a mesma língua.
Os troianos não aparentam, ao menos para muitos leitores modernos, mostrar os
principais defeitos da psicologia do bárbaro que veio a caracterizá-los no quinto
século: tirania, luxúria imoderada, emocionalismo irrestrito, afeminação, crueldade e
servilidade. De fato, Homero é frequentemente admirado hoje em dia por sua
descrição equânime de gregos e não-gregos, especialmente quando os épicos são
comparados com a literatura ateniense da época pós-Guerras Greco-Pérsicas. Essa
interpretação positiva dos troianos era uma exceção na antiguidade, contudo, e ainda
há críticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raça na Ilíada.
33
Ele é composto de duas palavras: o substantivo phōnḗ, “voz”, e a onomatopeia bar bar, analógico ao nosso
“blá blá”, que designa uma linguagem incompreensível. Assim, o barbaróphōnos é aquele de quem não se
compreende a fala. Desse modo, se dos cários só se ouve “bar bar”, isso significa que eles não falam o grego, ou
o falam mal (JANSE, 2002, p. 334-5). Como a língua é um dos traços marcantes de uma cultura (AUGÉ, 1998,
p. 24-5), desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega: o termo barbarophónos acaba designando
um povo estrangeiro. No sumério e no babilônio já existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico
para definir o estrangeiro: barbaru. J. Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim, com o termo
balbutio, e no inglês, com o termo baby: são palavras compostas de sons repetitivos (HALL, 1989, p. 4, n. 5).
46
Essa leitura está errada, eu acredito, e entende mal tanto as convenções épicas e as
maiores preocupações poéticas de Homero (HEATH, 2005, p. 531).
Os troianos são regidos pelo mesmo código de conduta dos gregos; contudo, eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde. Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Príamo, a maioria dos arqueiros no exército troiano etc.), ele não deve ser jamais
minimizado: tem um porquê de o poeta colocar aquilo ali e simples explicações, como “é para
preencher a métrica” ou “é uma interpolação posterior”, não nos é suficiente para
compreender uma produção tão complexa.
De fato, Homero não distingue os troianos de modo a caracterizá-los como bárbaros:
essa é uma denominação inexistente nos poemas, embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaróphōnos). Contudo, aqueus e troianos não são iguais: se dentro de um mesmo
exército, temos heróis diferentes, por que de um exército para outro não haveria mudanças?
Os habitantes de Troia são caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus.
Defendemos que os troianos são um outro grupo étnico: eles são regidos pelo mesmo código
de conduta grego, mas o uso que eles fazem desses costumes é diferente. E, como veremos no
capítulo seguinte, muitos dos elementos de caracterização dos troianos, sobretudo a de Páris,
serão utilizados pela tragédia para caracterizar os bárbaros. Um grupo étnico é definido não na
total, mas na sutil diferença:
A fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta
última tomada em seu conjunto. Dois grupos sociais vizinhos, muito parecidos
culturalmente, podem chegar a considerar-se completamente diferentes e
excludentes do ponto de vista étnico, opondo-se com base em um único elemento
cultural isolado, tomado como critério (CARDOSO, 2005, p. 11-2).
Jonathan Hall não crê, contudo, que possa haver etnicidade na Ilíada:
[…] a evidência de uma diferenciação étnica de fato entre gregos e troianos na
Ilíada não é totalmente convincente. Os troianos usam a onomástica grega, cultuam
os mesmos deuses que os gregos, possuem a mesma organização cívica dos gregose
são retratados pelo poeta de forma não menos (e talvez até mais) simpática que os
gregos. É admitivelmente verdade que Troia é retratada como extraordinariamente
abastada e que alguns de seus ocupantes – notavelmente Páris – adota uma vida de
luxúria doentia. Também há indícios de que os troianos são retratados como um
tanto excitáveis e um pouco desordenadamente em comparação com o campo grego
(HALL, 2002, p. 118 – grifos do autor).
O discurso é o mesmo: os troianos são quase iguais aos aqueus e esse “quase” não é
suficiente para haver uma diferenciação de fato entre os dois exércitos. Lynette Mitchell
47
escreve o mesmo: “os aqueus não são qualitativamente diferenciados dos troianos”
(MITCHELL, 2007, p. 44), mas afirma que os gregos já tinham uma noção do que não era
grego e do que era, colocando, mais uma vez, na Odisseia sua análise acerca disso
(MITCHELL, 2007, p. 49-50).
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciação Eu/Outro em Homero: “os
temas e motivos que mais tarde se tornarão o instrumental [stock-in-trade] das descrições
gregas do Outro estavam claramente presente na época de Homero e também estão presentes
no poema [Ilíada]” (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171). Contudo, retorna à questão dos
costumes iguais: “aqueus e troianos são retratados cultuando os mesmos deuses, falando a
mesma língua, aceitando o mesmo código moral e valores sociais” (VLASSOPOULOS, 2013,
p. 171).
No tocante aos costumes, poderíamos argumentar, com base na própria obra de
Vlassopoulos, que os valores difundidos na Ilíada e na Odisseia não eram exclusivos dos
gregos, mas eram universais. Esse autor afirma que “Mas como a Ilíada, o poeta da Odisseia
não está geralmente interessado em explorar as diferenças culturais e étnicas; em vez disso, o
poema opta por salientar instituições como a troca de presentes e hospitalidade [guestfriendship] que juntam pessoas de diferentes lugares” (VLASSOPOULOS, 2013, p. 172).
Concordamos em parte: tanto eram valores universais que, até hoje, a Ilíada e a
Odisseia são atuais, sendo adaptadas, sobretudo, para o público infanto-juvenil, nossos paîdes
contemporâneos. Na Ilíada, os costumes são os mesmos: mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles é diferenciada. Algo parecido acontece na Canção de Rolando (XI d.C.): por
exemplo, o costume de nomear as espadas é inerente ao francos. As espadas quase que têm
uma anima própria: Rolando conversa com sua Durindana e, quando está a ponto de morrer,
tenta quebra-la para que ninguém mais a possua, mas não obtém êxito, visto que ela não quer
se quebrar (vv. 2338-2354). Marcúlio, emir muçulmano (inimigo épico dos francos), nomeia
não só sua espada (Preciosa), mas também sua lança (Maltet). O exagero (nomear espada e
lança, animando em demasia os objetos) é o que diferencia o muçulmano (o Outro) do franco.
Assim, o casamento é comum a gregos e troianos; mas Príamo (rei troiano) é polígamo.
A assembleia é comum a gregos e troianos; mas o modo de convoca-la e conduzi-la é
diferenciado, sendo simplificado do lado troiano (MACKIE, 1996, p. 22). O catálogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra; mas há mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano: o catálogo troiano é bem mais
simplificado. Além disso, alguns costumes (como a xénia), no plano do discurso, foram
48
colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo, sobretudo após as Guerras
Greco-Pérsicas. E é também no plano do discurso que vemos algumas diferenças entre os
troianos e os aqueus: aqueles têm um modo de falar diferente, como enfatiza Hilary Mackie,
bem como os símiles utilizados por Homero na composição dos troianos revelam que, em
batalha, eles são os animais caçados, não os caçadores: eles estão em desvantagem na Ilíada.
Os troianos, portanto, são um Outro: mas não quer dizer que eles são o Outro
estrangeiro, que não é grego. Eles compartilham de um mesmo código de conduta, mas o
reapropriam, constituindo-se de um outro grupo étnico. A ideia de que os troianos são
estrangeiros surge a posteriori, como vamos observar nos próximos capítulos, sobretudo a
partir da caracterização de Páris.
49
CAPÍTULO 2 | PÁRIS, O CAUSADOR DE MALES
“Páris, na Ilíada, tanto herói quanto arqueiro, não é nem
um homem completo, nem um guerreiro completo”
(LISSARAGUE, 2002, p. 115).
Assim Páris é visto pelo historiador francês François Lissarague: nem um homem,
nem um guerreiro completo. É comum encontrarmos designações não tão heroicas a Páris
vindo de helenistas contemporâneos. Ele é geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como “vaidoso”, “frívolo”, “cômico”, “luxuriante”, “geralmente uma figura
não heroica” (RUTHERFORD, 1996, p. 33 e 83), “afeminado”, “frouxo” (LORAUX, 1989, p.
93), “playboy”, “patético” (HUGHES, 2009, 219), “egoísta”, “superficialmente atrativo”
(SCHEIN, 2010, p. 22 e 24), “tolo” (CARLIER, 2008, p. 100), “não heroico”, “o mais
desmerecido dos filhos de Príamo” (REDFIELD, 1994, p. 113 e 114), “almofadinha” [fop]
(GRIFFIN, 1983, p. 8), “antagonista [...] de Aquiles” (NAGY, 1999, p. 61),
“fujão”/“desertor”, “covarde” (AUBRETON, 1956/1968, p. 168/202) ou “idiota” (CLARKE
apud SUTER, 1984, p. 7).
No entanto, isso não acontece apenas com os autores contemporâneos: tanto Homero
como Eurípides trazem um Páris constantemente sendo rechaçado. O motivo principal é o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia, mas Homero traz, além disso, a ideia dele não ser um
guerreiro tão bom assim, o que gera reprimendas também. Nesse capítulo, vamos ver como
nosso herói é visto como um causador de males dentro desse espaço discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta. Tanto a épica quanto a tragédia trazem essa
ideia acerca desse personagem e há uma relação entre ela e nossa comparável, pois é
importante para definir alguns critérios de etnicidade. Entretanto, em Homero ainda não há a
ideia de Páris como um bárbaros, como já há em Eurípides: ele é alguém a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Páris tem a ver com o discurso iâmbico).
34
Segundo E. R. Dodds, a Grécia possui uma cultura de vergonha [shame-culture], não uma cultura de culpa
[guilt-culture]: esta tem mais a ver com o que o indivíduo pensa de si mesmo, não do que os outros pensam dele.
Assim, dizer que Páris é alguém a quem se pode causar vergonha é mais apropriado do que dizer que Páris é
alguém a quem se pode culpar. Nesse ponto, discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do
personagem: “blame” (culpa) não é cabível para designar o discurso iâmbico, sendo preferível, pois,
“acusatório”.
50
Na Ilíada, quando Páris recua ante a fúria de Menelau, Heitor o repreende (III, vv. 3945). Quatro qualificações são utilizadas pelo poeta, através das palavras do seu irmão, para
nosso herói: dýsparis (literalmente, “dis-Páris”), eîdos áriste (“melhor forma”), gynaimanés
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutá (enganador). Dýsparis é uma qualificação
interessante; ela é composta de um prefixo e um substantivo: dýs- é um prefixo de negação e
Páris o próprio nome do herói aqui tratado. Pode ter dado origem ao termo latino dispare,
que, por sua vez, originou nosso “díspar” (diferente, dessemelhante). “Páris funesto” é a
tradução que Carlos Alberto Nunes dá a esse termo, a qual é adequada ao seu significado,
visto que essa expressão denota as contrariedades do personagem e os maus presságios que
ocorreram antes de seu nascimento. Embora menos próxima ao sentido original, a tradução de
Haroldo de Campos mantém a alusão, jogando com o ritmo das palavras: “Páris mal-parido”.
Eîdos (forma) áriste (de áristos, “melhor”) denota a beleza física de Páris, a qual
deveria ser pressuposto, segundo Heitor, para seu bom desempenho no campo de batalha: por
ser o mais belo troiano, deveria ser também o melhor guerreiro. Contudo, essa denominação
tem uma peculiaridade: esse epíteto só é utilizado para mulheres (SUTER, 1984, p. 72). De
homens, apenas Heitor e Páris são denominados dessa maneira e essa fórmula só aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no âmbito militar. Por estar no vocativo (o
nominativo é eidos áristos), é designativo de um insulto.
Em Eurípides, há algumas alusões à beleza física de Páris. Entretanto, as palavras
usadas são diferentes: em Alexandre (fr. 61d, v. 8), o coro diz que Páris possui “formas que
se diferem dos outros” (morphê diapher[ ). É uma designação menos específica do que “eîdos
áriste”, utilizada por Homero. Além disso, sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro, às roupas que ele usa. É uma beleza acessória, externa, (literalmente)
bárbara, que causou a desgraça de muitos. Em Eurípides e em Homero, sua beleza se liga: a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Páris é diferente das pessoas comuns, por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinção social e é a partir dela e de suas façanhas,
incompatíveis com um doúlos – escravo – que se desconfiará da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) à ruína que ela causou (Hécuba, na peça homônima de Eurípides, deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Páris).
Nosso herói é um gynaimanés na Ilíada. Essa é uma qualificação formada por dois
substantivos: gynḗ (mulher) e mánē (loucura), palavra que deriva do verbo maínomai (desejar
ardorosamente, loucamente – ISIDRO PEREIRA, 1951, p. 113; “ser louco por” [esser pazzo]
– NAZARI, 1999, p. 223; ficar/deixar [rendre] louco – BAILLY, 2000, p. 1217 – ver µαίνω).
51
Anatoille Bailly traduz essa palavra por “fou des femmes” (louco por mulheres) (2000, p. 422
– ver γυναικοµανής). Carlos Alberto Nunes, como vimos acima, traduz como “sedutor de
mulheres”; Haroldo de Campos, por “mulherengo”.
Ann Suter nota que esse mesmo epíteto é utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984, p. 74), traduzindo-o como “he who drives women mad” (“aquele que
deixa as mulheres loucas”) e criticando aqueles que traduzem a palavra por “women crazy”
(“louco por mulheres”). Assim, enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
tradução
que
denota
o
aspecto
ativo
do
adjetivo
(Páris
como
agente
da
sedução/enlouquecimento), Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Páris como vítima dessa loucura). “Deixar louco as mulheres” ou “ser louco por
mulheres” não altera, enfim, a ideia de que Páris é um homem relacionado a essa esfera da
sedução, do amor, da paixão.
Ēperopeutá não é traduzido por Carlos Alberto Nunes: ele une esse vocábulo a
gynaimanés sob a denominação de “sedutor de mulheres”. Haroldo de Campos traduz como
“impostor”, denotando sua acepção, ligada à enganação. O Le grand Bailly mostra duas
traduções, ligadas ao verbo ēperopeúō: “enganador” e “sedutor” (BAILLY, 2000, 906). Ann
Suter evidencia que esse epíteto é utilizado também, na tradição poética, para Hermes e
Prometeu, dois dos maiores enganadores da mitologia (1984, p. 75-76), sendo “enganador”
sua melhor tradução. Esse epíteto dialoga, então, diretamente com theoeidḗs, epíteto utilizado
para Páris em vários cantos, no que toca a esfera da dissimulação.
Theoeidḗs – que significa, literalmente, “de forma divina” (theoí – deuses; eîdos –
forma exterior, aspecto – BAILLY, 2000, p. 584; NAZARI, 1999, p. 146) –, denota a escassa
relação de Páris com o ambiente bélico. Theoeidḗs acompanha mais Páris que outros
personagens. É como o “de pés velozes”, de Aquiles, ou o “de muitos ardis” de Odisseu:
acaba se transformando em um epíteto quase que exclusivo para o herói. Esse é um adjetivo
que denota a beleza física de um personagem (FONTES, 2001, p. 95). Ann Suter chama a
atenção para a própria etimologia da palavra, da sua formação: ter a “forma de um deus” é
problemático, visto que os deuses sempre se disfarçam. Assim, ser theoeidḗs é ser, de certo
modo, falso: você aparenta ser uma coisa que não é (SUTER, 1984, p. 63).
Além disso, segundo ainda Ann Suter, theoeidḗs é um epíteto não-bélico:
Aqueles aos quais esse epíteto é aplicado com alguma frequência, pois, são notáveis
por serem todos homens, mas nenhum guerreiro: Teoclímeno, o vidente; Telêmaco,
muito jovem para lutar; Príamo, muito velho para lutar. De fato, os quarto
52
pretendentes e Alcínoo compartilham também essa característica comum a esse
grupo (SUTER, 1983, p. 60-1).
Não só esse epíteto se repete frequentemente, mas também as quatro palavras que
analisamos: elas fazem parte de uma fórmula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιµανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador. São palavras
que Heitor dirige a Páris a fim de censurá-lo, de constrangê-lo e de, através da némesis35,
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento. Os heróis vivem sob a sombra do
aidṓs, comumente traduzido como “vergonha” ou “respeito”, mas que, de fato, “é o medo da
desaprovação ou da condenação pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamente”
(SCHEIN, 2010, p. 177). Essa noção de aidṓs corrobora o caráter agonístico da sociedade
helênica, se configura numa “vulnerabilidade à norma ideal expressa pela sociedade”
(REDFIELD, 1994, p. 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iâmbica (acusatória).
Heitor fala, em sua reprimenda a Páris no Canto III, que o exército inimigo ri da
atitude de Páris (v. 43); há poucos risos na Ilíada, como observou James M. Redfield, e,
segundo esse autor, em todas as situações ele “é a marca da liberação da tensão social”
(REDFIELD, 1994, p. 286). A seguir, Heitor continua sua reprimenda, lembrando a Páris que
foi ele quem causou a guerra, devendo, pois, ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau.
O herói ainda lembra o irmão de que “Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a
beleza / não te valeram de nada ao te vires lançado na poeira” [οὐκ ἄν τοι χραίσµῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης / ἥ τε κόµη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι µιγείης] (III, vv. 46-55). Os
cabelos de Páris (kómē), a cítara (kítharis) – instrumento musical –, os dons de Afrodite (dōra
Aphrodítēs) – relacionados ao amor e à beleza – e a sua forma física (eîdos), não lhe servem
para o campo de batalha: ali é o domínio da força (bíē), da coragem (alkḗ), não da música, da
beleza e do amor. Aqui também Páris serve de khárma, um motivo de divertimento para os
outros. É alguém acusável, vergonhoso, que necessita ser repreendido com palavras.
Mesmo Helena não fica satisfeita com as atitudes de Páris: primeiramente, recusa-se a
ir encontrá-lo, dizendo à Afrodite (que estava disfarçada): “Não voltarei para o tálamo, pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito; as Troianas, sem dúvida, haviam/ de murmurar; já
sobejam as dores que na alma suporto” [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶµι: νεµεσσητὸν δέ κεν εἴη:/
35
Némesis “é uma ira mediada pelo sentido social; um homem não somente sente isso, mas se sente correto em
sentir isso” (REDFIELD, 1994, p. 117). Ainda segundo esse autor, némesis se contrapõe ao aidṓs: os dois se
relacionam à censura, mas este seria uma censura interna (você vê que está errado, sente vergonha de si mesmo e
faz o certo) e aquele uma externa (alguém vê que você está fazendo algo errado, censura, você sente vergonha e
faz o certo).
53
κείνου πορσανέουσα λέχος: Τρῳαὶ δέ µ᾽ ὀπίσσω/ πᾶσαι µωµήσονται: ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυµῷ] (III, vv. 410-412 – grifos nossos). Helena teme a némesis das troianas, mas o
medo de desagradar aos deuses é maior: Afrodite lhe ameaça e ela acaba indo encontrando-se
com Páris (III, vv. 413-420).
Ao se defrontar com nosso herói, Helena, assim como Heitor, o reprova por ter
voltado para o palácio e o instiga a retornar para combater Menelau:
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον
ἐξαῦτις µαχέσασθαι ἐναντίον: ἀλλά σ᾽ ἔγωγε
παύεσθαι κέλοµαι, µηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ
ἀντίβιον πόλεµον πολεµίζειν ἠδὲ µάχεσθαι
ἀφραδέως, µή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαµήῃς.
Vai provocar, então, logo, o discípulo de Ares potente,
para, outra vez, vos medirdes em duelo. Aliás, aconselho-te
a que não faças tamanha tolice, pensando que podes
com o louro herói Menelau contender numa luta corpórea,
que em pouco tempo sua lança potente há de ao solo postrar-te (III, vv. 428-436).
Na Ilíada, Helena é a única mulher mortal que repreende um homem, um anḗr, sendo
o homem repreendido justamente Páris. Isso seria um absurdo: temos a ideia, por causa de
uma construção historiográfica simplista e de uma documentação oriunda, em sua maioria, do
Período Clássico Ateniense, de que a mulher não possuía voz na Grécia Antiga (LESSA,
2010, p. 15-6). Contudo, a própria documentação do Período Clássico nos mostra “brechas”
nesse ideal de comportamento: as mulheres não eram completamente passivas
A tragédia, nesse sentido, exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto. Em Eurípides, Helena, Andrômaca e Ifigênia culpam Páris pela situação em que se
encontram: a elas é dada voz para expressar essa ideia. Segundo o historiador Fábio de Souza
Lessa,
as tragédias [...] são suportes de informação importantes para a compreensão da
dinâmica políade e, em especial, do comportamento feminino; isto porque, em cena,
a pólis refletia sobre si mesma, havendo uma abordagem de problemáticas
totalmente atuais na Atenas do século V, além de permitirem ascender as
contradições inerentes à consolidação da mulher na pólis democrática. [...] Para
Richard Buxton, a tragédia é o lugar do conflito, das tensões e rupturas; sendo as
mulhetes, neste espaço, agressivas, dominadoras, ativas e seres visíveis (LESSA,
2004, p. 80).
54
As tragédias do ciclo troiano de Eurípides não tratam da Guerra de Troia em si36: ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentação). É nas tragédias que se passam depois da guerra que as mulheres em questão
enunciam essa responsabilidade do Páris pelos seus destinos e a voz feminina aqui é
imprescindível: são as mulheres e as crianças que mais sofrem com a guerra. Elas ficam sem
seus esposos e pais, tornam-se cativas do inimigo, veem suas vidas ruírem. Antes da
encenação das tragédias, algumas cerimônias se desenrolavam, como a apresentação dos
tesouros da cidade e dos órfãos de guerra: as crianças cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela pólis e eles deveriam continuar – pelos seus pais, pelo seu nome e pela
sua cidade – a lutar.
Sendo a Ilíada um texto que circulava bastante no Período Clássico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideía, o fato de Helena reprimir Páris é
significativo. Tanto esse poema quanto a Odisseia também trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado, que muito influenciou na própria construção do
modelo clássico. Penélope é o grande exemplo: a mulher tecelã, fiel ao marido, submissa ao
filho homem, que utiliza a métis para urdir, literalmente, a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu.
Em Homero, a representação de Helena denota algo que acontece também no Período
Clássico: “a sociedade políade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da ação
masculina, mas ao memso tempo concedeu-as a função de policiar as ações dos cidadãos, isto
é, de vigiar o comportamento masculino” (LESSA, 2004, p. 77 – grifos do autor). Helena,
nesse excerto do poema homérico, é a responsável por vigiar o comportamento de Páris,
reprimindo-o. O helenista australiano Christopher Ransom crê que Páris não se deixa afetar
pela némesis nem pelo aidṓs (RANSOM, 2011, p. 55); mas é através da némesis de Helena e
de Heitor que o herói sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra, o que invalida sua
afirmação. Entretanto, essa reprimenda não surte efeito de pronto: somente no Canto VI o
herói retornará para a guerra (e dela não se ausentará mais).
Páris é mostrado frequentemente também como causador de grande desgraça para os
combatentes, tanto em Eurípides quanto em Homero. No Canto XXII da Ilíada, quando
Heitor diz que não vai recuar da luta singular com Aquiles, dando Helena e os bens do palácio
“que o divo Páris nas côncavas naus para Tróia nos trouxe – causa, que foi, inicial desta
36
À exceção de Rhesos, a qual tem a autoria de Eurípides questionada e não incluímos em nosso corpus
documental.
55
guerra funesta” [µάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν / ἠγάγετο Τροίηνδ᾽, ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv. 115-116 – grifos nossos). A ideia de que Páris foi o princípio de
tudo também se encontra presente no Canto V, quando é mencionado: relata-se que Féreclo,
artífice, foi quem fabricou os navios nos quais Páris foi atrás de Helena, “que tinham sido o
princípio da grande desgraça dos Teucros/ e dele próprio, por ter desprezado os orác’los
divinos” [ἀρχεκάκους37, αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο / οἷ τ᾽ αὐτῷ, ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V, vv. 63-64 – grifos nossos). Aqui, a arkhekákos dos troianos foi a própria
partida de Páris, que é denominado como causador de uma méga pêma aos seus conterrâneos.
A expressão se repete no Canto VI, quando Heitor diz: “Um fautor de desgraças fez
nascer o Olimpo / para o magnânimo Príamo, os filhos e o povo Troiano. / Se concedido me
fosse assistir-lhe à descida para o Hades, / esquecer-se-ia minha alma, por certo, dos males
presentes” [µέγα γάρ µιν Ὀλύµπιος ἔτρεφε πῆµα / Τρωσί τε καὶ Πριάµῳ µεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν. / εἰ κεῖνόν γε ἴδοιµι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω / φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI, vv. 280-285 – grifos nossos). Aqui, a alusão a Páris como
causador da guerra, de grandes desgraças (méga pêma), aparece novamente. Ainda nesse
Canto, quando Heitor repreende Páris, essa ideia também se repete e o herói acrescenta que
“Tu próprio, quiçá, te indignaras, / caso encontrasse alguém que fugisse à defesa da pátria [σὺ
δ᾽ ἂν µαχέσαιο καὶ ἄλλῳ, / ὅν τινά που µεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέµοιο] (VI, vv. 329330).
Durante essa reprimenda (VI, vv. 326-342), Páris é interpelado por Heitor como
daimóni’ (vocativo masculino singular de daímōn), palavra que designa uma relação íntima
entre os interlocutores, bem como “é costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereçado a mudar aquele comportamento ou atitude” (SUTER, 1984, p. 59). Comumente
traduzido por “demônio”, muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero.
Essa tradução implica numa concepção cristã (ou seja, posterior ao tempo ao qual nos
referimos), além de ser, pela conotação da palavra, uma solução pouco cabível, pois o daímōn
não é ruim. O termo designa uma divindade qualquer e, nesse caso, é uma interpelação: o
vocativo corrobora essa ideia.
Heitor, assim, exorta Páris à batalha, chamando a atenção para o fato de ele ter
causado a guerra. Ele, por sua vez, acalma Heitor, dizendo que ele está se preparando para a
batalha, visto que ele já havia sido exortado pela própria Helena, a qual lamenta não lhe ter
sido destinado um homem melhor, que sentisse vergonha pelos seus atos. A reprimenda de
37
Arché é o princípio; kakós é tanto o mau quanto o feio.
56
Helena, enfim, surtiu efeito, e Páris de fato vai ao encontro de Heitor, que ocorre ainda no
Canto VI (vv. 503-525).
No entanto, ele não retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena: ela volta a
criticar o herói, afirmando que ele “nunca teve firmeza, nem nunca há de tê-la” [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔµπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω / ἔσσονται], (VI, vv. 352-353) . Fica claro, nessa
passagem, que a átē de Páris foi o motor da guerra. Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palácio, ele cometeu uma infração: desrespeitou a hospitalidade
(xénia), prática cara aos helenos. Essa transgressão foi uma das engrenagens da átē (cegueira)
de Páris: visto que a átē se dá de três momentos (princípio, estado/ato e consequência), o
“rapto” de Helena é o “estado/ato” que teve como princípio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequência (MALTA, 2006, p. 78).
Em Eurípides, a maioria esmagadora das menções a Páris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra. Alguns personagens, como Agamemnon e Ifigênia em Ifigênia em Áulis
(vv. 467-468, vv. 1283-1311), ou Andrômaca e Helena em As Troianas (vv. 919-934, vv.
940-943, vv. 597-600), culpam-no diretamente pelas suas ruínas, mas, geralmente, é o coro
quem o faz (As Troianas, vv. 780-781; Hécuba, vv. 629-656, vv. 905-951; Helena, vv.
1110-1120; Andrômaca, vv. 274-300; Ifigênia em Áulis, vv. 573-589). É importante
frisarmos a importância do coro, pois ele é uma espécie de arauto da pólis:
O coro era elemento fundamental. No desempenho cumprido por ele, vertia-se uma
grande quantidade de comentário social, instrutivo e cheio de ponderação, que
continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade, as atitudes e
atributos aceitos e estimados. Os diálogos tomaram da retórica homérica o seu estilo
exortativo: aconselham, comentam, orientam, exortam, denunciam, mostram
arrependimentos, expõem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado,
dando expressões a reações extremas, dramatizando seus castigos e suas
recompensas (CODEÇO, 2010, p. 72).
Além disso, o coro está, aqui, exercendo um papel que sua natureza intralinguística
desempenha: ele canta em versos iâmbicos (ROMILLY, 2013, p. 227), de natureza
acusatória. É de comum conhecimento que Páris causou a guerra e o coro faz questão de
lembrar disso. Em Helena, a personagem homônima se acusa, dizendo que seu démas (beleza
do corpo) causou a ruína de Troia (vv. 384-385), mas o coro, na mesma tragédia, vem
lembrar: “sobre o mar cinza, com remo bárbaro / o homem que veio, que veio trazendo aos
filhos de Príamo / você, Helena, como sua esposa da Lacedemônia / Páris, o fatalmente
38
Phrén, como já vimos, é o músculo diafragma; émpedos significa firme. Robert P. Keep, traduzindo do alemão
o dicionário homérico de Georg Autenrieth, denomina essa expressão (phrénes émpedoi) por “unimpaired”, que,
por sua vez, significa algo que não tem sua força reduzida.
57
casado” [ὅτ᾽ ἔδραµε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ /ὅτ᾽ ἔµολεν ἔµολε, µέλεα Πριαµίδαις
ἄγων / Λακεδαίµονος ἄπο λέχεα/ σέθεν, ὦ Ἑλένα, Πάρις αἰνόγαµος] (vv. 1117-1120).
Aqui, Páris é denominado ainógamos, adjetivo composto da palavra ainós (terrível) e gámos
(casamento), o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua átē homérica. O mesmo
acontece em As Troianas: Menelau culpa Helena (As Troianas, vv. 1037-1038), mas o coro
vem lembrar de quem é a culpa (vv. 780-781).
Mesmo em Alexandre, Páris aparece como alguém que tem uma responsabilidade em
relação às origens da guerra. Isso, contudo, fica implícito: Lucía Romero Mariscal defende
que a representação de Páris nesse fragmento é feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais: a) a população rural de Atenas, que, durante a Guerra do Peloponeso, é
responsabilizada por ter levado a peste à cidade (MARISCAL, 2003, p. 169) e b) com os
týrannoi, cujas presenças assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante à
manutenção da democracia (MARISCAL, 2005, p. 14).
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a pólis e
ter matado, inclusive, um de seus principais membros: Péricles. Lucía Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposição entre o espaço
político da cidade e o espaço apolítico da montanha [o Ida, onde Páris foi criado],
entre os sujeitos que habitam ditos espaços contrapostos e entre as convenções que
assim o delimitam, Eurípides aborda um dos temas que o pensamento político
tradicional havia já explorado ao longo de sua história e que durante a guerra do
Peloponeso se converteu em uma experiência trágica similar a que se representa em
Alexandre sob a fábula mítica que deu pé à guerra troiana. Como assinala Ph.
Borgeaud, “Convém recordar, com a tradição grega, que é uma guerra que há na
origem da tomada de consciência da oposição entre o rústico e o cidadão”. [...] é
sobretudo ao princípio da guerra do Peloponeso, quando a tensão entre os habitantes
da cidade e os do campo se faz mais traumática, ao abrir a cidade de Atenas as suas
portas a uma ingente massa de população rural e agreste que a duras penas se integra
na cidade e a contamina, com os terríveis resultados da virulenta propagação da
peste que descreve Tucídides no segundo livro de sua História da Guerra do
Peloponeso (MARISCAL, 2003, p. 168-169 – grifos nossos).
Segundo a autora, é Páris que traz consigo a crise para a cidade, pois insiste em
participar dos jogos sabendo que não é um nobre (MARISCAL, 2003, p. 165). O tema de
Alexandre gira em torno do agôn (disputa) esportivo ganhado por Páris, na época um pastor
ainda, cuja descendência nobre era desconhecida. Era inconcebível que um doûlos (escravo)
ou látris (servo) ganhasse as provas esportivas, nas quais os aristoí deveriam sobressair-se.
Aliás, já era inconcebível a concessão dessa participação de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento: Príamo já cometera um erro aí, ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos. A sua participação “quebrará a ordem da cidade
58
e provocará uma cadeia de transgressões que teriam lugar em todos os âmbitos da mesma. Sua
pretensão de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade, a ocupar um lugar
que não lhe pertence” (MARISCAL, 2003, p. 165).
Desse modo, Deífobo, irmão de Páris, é quem vai pedir providências acerca disso:
exige que o pastor seja morto pela sua audácia e, vendo que o pai não lhe daria suporte, pede a
Hécuba que o faça. Na iminência da morte dele, o pastor que acolheu o herói chega para
impedir que isso aconteça, mostrando as roupas que vestiam Páris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnórisis (reconhecimento) se desenrola: o látris é reconhecido como aristós e
reintegrado à família troiana.
Frequentemente, em Eurípides, Páris está relacionado a um ambiente ágrios
(selvagem): ele é denominado algumas vezes boúkolos (pastor); em Helena, a personagem
homônima fala do passado de Páris, quando ele se sentava junto com seu gado (vv. 358-359);
em Andrômaca (v. 706), Peleu se refere a Páris não como “Páris de Troia”, mas como “Páris
do [Monte] Ida”. Marcar sua pertença a um ambiente selvagem é revelador no que toca a
construção de sua representação na tragédia, gênero no qual é recorrente sua denominação
como bárbaros. O próprio mito que envolve Páris (sua exposição no Monte Ida, seu
acolhimento pela ursa e, depois, pelo pastor, pessoa em contato constante com o ágrios)
denota que em Páris coabitam duas instâncias: o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponês ligado ao ambiente do selvagem.
Esse nobre, contudo, é um tirano. Na Atenas Clássica, esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia: os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democrático eram marcados em ostrákai
(pedaços de cerâmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas. Lucía
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant, que, ao analisar a representação de Édipo, chama
atenção para a ideia de que a criança exposta ao nascer e que retorna à sua região natal para
reivindicar seus direitos é, geralmente, ligada à figura do týrannos (MARISCAL, 2005, p. 14,
n. 9).
Lucía Mariscal também nos lembra que em 417 a.C., Alcibíades, “um homem, como
Alexandre, extraordinariamente bonito, popular, e que por essas datas vai ganhando um
discutido poder” (MARISCAL, 2005, p. 17) vence competições atléticas, assim como Páris.
Esse mesmo Alcibíades vai liderar os atenienses em uma invasão a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa pólis. Ele também passa um tempo em Esparta, auxiliando o inimigo, para
depois retornar a Atenas. Assim, “O certo é que Alexandre compartilha com Alcibíades o
59
traço mais singular [señero] de ambos personagens: a beleza. Uma beleza extraordinária que
se entende como um sinal de excelência, mas que pode, contudo, malograr-se” (MARISCAL,
2005, p. 19).
Mesmo no campo de batalha, quando luta, Páris é repreendido. No Canto XI da Ilíada,
como vimos, Diomedes o reprime por tê-lo atingido:
‘τοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα
εἰ µὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης,
οὐκ ἄν τοι χραίσµῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί:
νῦν δέ µ᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως.
οὐκ ἀλέγω, ὡς εἴ µε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων:
κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο.
ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐµεῖο, καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ,
ὀξὺ βέλος πέλεται, καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι.
τοῦ δὲ γυναικὸς µέν τ᾽ ἀµφίδρυφοί εἰσι παρειαί,
παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί: ὃ δέ θ᾽ αἵµατι γαῖαν ἐρεύθων
πύθεται, οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκες.’
Fútil frecheiro, de cachos frisados, espião de mulheres,
se te atrevesses, armado, a lutar, frente a frente, comigo,
nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inúmeras.
Só por me haveres riscado no pé fazes tanto barulho,
ao que dou tanto valor como a tiro de criança ou de moça.
Vã, sempre, é a flecha que um ser desprezível e imbele dispara.
Bem diferente se dá com meus tiros que, embora de leve
o dardo atinja o inimigo, sem mais, da existência o despoja;
as róseas faces não cessa, na dor, de arranhar a consorte;
órfãos, os filhos lhe ficam, e, o solo tingido de sangue,
a apodrecer, tão-só abutres atrai, não mais belas mulheres (XI, vv. 385-395)
Isso se dá porque Páris é um arqueiro (que, como veremos no capítulo seguinte, é
desvalorizado) e porque não há paridade na luta: ele, na escala hierárquica do campo de
batalha, é inferior a Diomedes. Além de “arqueiro” (toxóta), Páris é também designado como
um patife / malfeitor, (lōbētḗr) e um espião de mulheres (virgens) (parthenopîpa). Lōbētḗr
designa um “comportamento ultrajante [...] ofensivo às regras da sociedade heroica” (SUTER,
1984, p. 79). Não é um epíteto exclusivo de Páris; Tersites, por exemplo, é denominado desse
modo também (Ilíada II, v. 275), por Odisseu.
Suter argumenta que foi uma denominação desnecessária por parte de Diomedes (e aí
é Diomedes quem é chamado de “frívolo”), visto que ambos estão equiparados socialmente:
não seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites, no qual este seria um membro inferior da
sociedade. Socialmente, não: ambos são da elite, um do lado troiano, outro do lado aqueu;
60
contudo, no campo de batalha, sim, eles estariam desequiparados: como vimos, Páris é das
tropas ligeiras. Diomedes seria membro das tropas pesadas: ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homéricos. Páris deveria procurar alguém do seu estatuto bélico para lutar, não
com alguém que está hierarquicamente acima de sua posição no campo de batalha.
Parthenopîpa (párthenos – virgem, mulher que ainda não é casada – acrescida do
verbo opipeúō – “olhar com inquietude” (BAILLY, 2000, p. 1389), observar curiosamente,
segundo Ann Suter, é um epíteto que demonstra covardice na batalha (1984, p. 84). Associado
com a totalidade das outras denominações do verso, é, de fato, desmerecedor: em uma batalha
o que menos importa é desejar mulheres.
Kéra aglaè é uma denominação bastante ambígua. Literalmente, significa “cornos
brilhantes” (kéras, “cornos”; aglaós, brilhante). Pode referir-se tanto ao seu arco, pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais, quanto a um penteado, a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER, 1984, p. 82). Carlos Alberto Nunes prefere essa última acepção, traduzindo
essa expressão como “de cachos frisados”, bem como Haroldo de Campos, que traduz apenas
como “de cachos” (“sórdido sagitário de cachos”). Referindo-se ou à beleza ou ao arco, a
acepção negativa em relação à batalha é a mesma.
Ainda nesse excerto, Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Páris com o de
uma criança (páïs) ou mulher (gynḗ). É a segunda vez que Páris é infantilizado na Ilíada: a
primeira, que se dá indiretamente (visto que ele não é mencionado, mas, por ser filho do rei de
Troia, a denúncia vale para ele também), é quando Menelau afirma que “os seus filhos [de
Príamo] soberbos não são de confiança [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]” (III, v.
105) e que o ancião deve presenciar o acordo.
Anatoille Bailly, ao traduzir hyperphíalos em seu dicionário, coloca que “en parl. des
Troyens” (falando de troianos), significa “orgulhoso, arrogante”, denotando uma distinção de
vocabulário ao se referir aos gregos. Contudo, o classicista John Heath coloca que essa
palavra não denigre todos os troianos, mas certos indivíduos, como Páris, que causou a
guerra, defendendo que “não há nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente ‘contaminados’ [‘tainted’]” (HEATH, 2005, p. 534). Cremos que há a
possibilidade de distinção no uso do vocábulo, pois os troianos, afinal, são os inimigos na
guerra.
A terceira vez, também indiretamente, é quando Príamo denomina os filhos restantes
de “crianças más que causam aflição” (kakà tékna katēphónes), (XXIV, v. 253). Isso é uma
61
desvalorização deles, uma diminuição de valor dessa pessoa que é comparada a uma criança,
pois a sociedade homérica é patriarcal, onde o anḗr é quem detém o poder familiar, político.
Além disso, ele é comparado a uma mulher. Christopher Ransom analisa a efeminação
de Páris, mostrando que “isso é útil e informativo para analisar o ‘outro’, o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressões e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem ‘real’ pode ser
estabelecida” (RANSOM, 2011, p. 35). Ademais, a criança e a mulher são um Outro também:
o Outro social (RANSOM, 2011, p. 36). Cremos que Páris não deixa de ser um personagem
paidêutico, não por mostrar como não agir, mas, justamente, por mostrar como agir.
Mesmo quando Páris parece engrenar na luta, Heitor, já desconfiado, acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado: “Páris funesto, de belas feições, sedutor
de mulheres, / onde se encontra Deífobo, e Heleno, senhor poderoso? / Onde Ásio, de Hírtaco
o filho? Adamante, gerado por Ásio? / Que é de Otrioneu? Do fastígio a altanada cidade dos
Teucros / hoje desaba, envolvendo-te, alfim, a precípite Morte” [‘Δύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιµανὲς ἠπεροπευτὰ / ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος / Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάµας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός; / ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς; νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης /
Ἴλιος αἰπεινή: νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθρος’], (XIII, vv. 769-773).
No Canto XXIV (vv. 247-262), quando Príamo censura seus filhos, indiretamente
Páris é insultado também. O ancião fala que só restaram os filhos dignos de censura
(elénkhea), os mentirosos (pseûstai), os dançarinos (orkhéstai) e os que cantam e dançam
(khoroitypíēsin áristoi); ou seja, filhos que não estão aptos para entrar na guerra. No campo de
batalha, valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira, em detrimento da dança
e do canto. Mas isso não quer dizer que essas práticas não são valorizadas na sociedade grega:
estes são valorizados fora de um contexto bélico. Pelo contrário, faz parte da paideía.
Entretanto, ligar o Outro ao domínio das artes musicais não é incomum nas tragédias:
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes, de Ésquilo, somente os bárbaros cantam
(HALL, 1989, p. 130). Em Eurípides não é diferente: em Ifigênia em Áulis, Páris é mostrado
“tocando melodias asiáticas [bárbaras] na sýrinx,/ imitando na sua flauta / o aulós frígio do
Olimpo” (vv. 576-578). Assim, nos parece que não é todo instrumento musical que serve à
paideía.
É interessante perceber que sýrinx e o aulós são tipos de flautas, instrumentos que
deformam a face quando tocados, pois temos que inchar as bochechas. Essa deformação é
uma metáfora para a própria deformação na caracterização do personagem. No período
62
clássico, Platão, Alcibíades e Aristóteles viam no aulós um instrumento com “efeitos maléficos à formação do caráter do cidadão” (CERQUEIRA, 2013, p. 62). A lira, a cítara, pelo
contrário, são instrumentos bem vistos para a educação do cidadão: por isso que o Páris de
Homero toca-a. Ele está desempenhando ainda um exemplo a ser seguido, algo que não
acontece na tragédia: como vimos, Páris ou é o pastor (ligado ao domínio o ágrios, do
selvagem), ou o escravo (o Outro social por excelência do kalós kagathós) ou o bárbaro. No
entanto, ser um músico profissional não era bem visto na Atenas Clássica:
um músico de ofício, portanto, era visto como alguém inepto à vida cívica e relapso
na condução de assuntos particulares. Ele compartilhava da covardia feminina. Esses
foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Eurípides, na tragédia Antíope, para
desqualificar o lirista Anfião – suspeita de feminilidade, incompetência militar e
déficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA, 1997, p. 126).
A música fazia parte da paideía, mas ser um músico profissional esbarrava num
estereótipo semelhante ao do bárbaro, implicando em uma alteridade social: o músico é
covarde, é efeminado, não serve para a guerra. Tendo em mente que Páris tem em sua
caracterização esse elemento já na Ilíada, isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira étnica, um Outro.
Como pudemos perceber, duas coisas desencadeiam reprimendas a Páris na Ilíada: a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de não a ter terminado (mesmo que por um
desígnio divino) e b) seu jactar-se, desencadeado pelo ferimento de Diomedes. Não somente
Heitor, seu irmão, o repreende, mas outros heróis, Príamo e mesmo Helena, a mulher por
quem ele luta. Na tragédia, ele é lembrado, majoritariamente, como aquele que causou a
guerra. Por ser o causador da desgraça de muitos, o seu caráter Outro precisa ser bem
delineado.
Essas reprimendas que Páris sofrem, contudo, não passam em branco para ele: ele
sempre as responde. Quando Páris foge do embate com Menelau, recuando para dentro do
exército troiano, Heitor lhe cobre de reprimendas. No entanto, elas não ficam sem resposta:
Ἕκτορ ἐπεί µε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν:
αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς
ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ
νήϊον ἐκτάµνῃσιν, ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν·
ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί·
µή µοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης·
οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα
ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν, ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο·
63
É justo, Heitor, o que dizes; contrário à razão não discorres.
Teu coração é tão duro quanto o aço: semelha ao machado
que, manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco
mui facilmente penetra, talhando-o para o uso das naves.
Resolução tão intrépida encerras, assim, no imo peito.
Não me censures por causa dos mimos da loura Afrodite,
pois desprezíveis não são os presentes valiosos que os deuses,
de seu bom grado, concedem; que, à força, ninguém os alcança. (III, vv. 59-66).
Páris divide a responsabilidade pela guerra: não fora somente ele quem a causou, mas
Afrodite também, ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado.
Essa afirmação, entretanto, não parece diminuir a parte que cabe ao herói: Heitor, mais a
frente, se refere a ele como sendo o “fautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]”,
fórmula que se repetirá várias vezes para Páris ao longo da Ilíada.
Esses versos também mostram uma outra qualidade de Páris: a habilidade com as
palavras. A importância dessa habilidade retorna em Alexandre, de Eurípides, quando Páris
deixa claro que “Frequentemente um homem em desvantagem pela ineloquência/ perde para
um eloquente, mesmo que seu caso seja justo” [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ /
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr. 56). O aglóssos (literalmente, “sem língua”) não
tem chance contra o euglóssos (literalmente, “de boa língua”) e Páris, tanto na Ilíada quanto
em Alexandre (textos em que ele é personagem) demonstra ser ótimo com as palavras.
Sempre que ele é censurado por Heitor ou por Helena, faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor, ora atribuindo a responsabilidade da guerra não apenas a ele,
ora se propondo a entrar na batalha, ora defendendo-se quando acusado de desserviço por
Heitor num momento em que ele está, de fato, lutando nas batalhas. Essa é uma habilidade
que não tem tanto valor na guerra quanto a força física e a estratégia militar: a Ilíada, por ser
um poema bélico, tem mais cenas de batalhas longas do que de diálogos longos. Contudo, ter
uma boa retórica, clareza na fala, enfim, ser um hábil orador é uma virtude do anḗr.
Os troianos são ótimos falantes. Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan: speech and community in the Iliad. Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio), enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilização). Ela mostra como os troianos, muitas vezes, conseguem dissuadir seus
inimigos da luta, como acontece com Glauco e Diomedes (Ilíada VI, vv. 120-238): aquele
conta a este sua genealogia, lembrando-o de que seus pais foram xénoi, hóspedes um do outro.
Eles, então, decidem não lutar e trocar presentes, transportando a xénia para o campo de
batalha.
64
A autora também sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros. Quando há a interpelação, eles utilizam epítetos de elogio, não de
reprimenda (MACKIE, 1996, p. 83). Heitor não dá tréplicas (como acontece nessa repreensão
seguinda da defesa do Páris – ele não replica) e seu discurso é introspectivo e reflexivo,
bastante poético e construído esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE, 1996, p.
115). Além disso, os troianos são os únicos heróis que suplicam pela vida em batalha.
Destarte, podemos perceber que Páris é um típico troiano nesse aspecto: ele é hábil com as
palavras. E, se as palavras são como flechas (MACKIE, 1996, p. 56), esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que, como vimos, a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia é oriunda dos troianos).
Ainda ligado à questão do discurso de Páris, no Canto III (v. 60) há um símile
interessante e incomum na epopeia: a comparação de um humano (Heitor) com um objeto
(machado – pélekys). Seth Benardete afirma que:
O símile que Páris usa é único em muitas coisas. Em nenhum outro lugar um herói é
comparado a algo feito pelo homem; nem a palavra technê é recorrente na Ilíada
(bastante comum, contudo, se estivesse na Odisseia); nem erôê é usada comumente
para um homem, mas para o arremesso de uma lança. Heitor não é o madeireiro,
mas o machado, ou ainda madeireiro e machado; seu coração multiplica sua força;
ele é autossuficiente. Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder. Ele é
todo arma. (BENARDETE, 2005, p. 51).
Isso torna seu discurso diferenciado: Homero e seus personagens utilizam símiles que
comparam o homem aos animais, que são seres animados. Páris compara um humano a um
ser inanimado. Essa é mais uma particularidade desse personagem, que, esse excerto, é
mostrado pela primeira vez falando, dialogando, na epopeia.
Essa não é a única vez que Páris responderá Heitor: no Canto VI, Páris responde às
acusações do herói e lhe acalma, afirmando que Hécuba não trouxe ao mundo um análkydos
(sem-glória), (vv. 332-341). Também quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra, Páris responde (XIII, vv. 774-788). Do mesmo modo, não será só seu irmão que
ouvirá resposta de Páris: Helena também ouve (III, vv. 438-446). Assim como se sucedeu
com Heitor, Páris acalma o seu interlocutor através das palavras, do mýthos – amenizando a
situação –, e atribui o acontecido a um deus: ele não é o responsável sozinho pelo
malsucedido. Afrodite é quem lhe dá Helena de presente, não podendo ele negar; Athená
ajudou Menelau, por isso que ele venceu: não foi por causa de sua inabilidade guerreira.
65
Só há uma pessoa que Páris não responde depois que é interpelado de modo agressivo:
Diomedes. Sendo assim, nosso herói só retruca troianos e a “Helena” que está em Troia. Esses
jogos interessantes de palavras e comparações são comuns em Homero. Por isso que é
interessante nos debruçarmos sobre esses símiles de animais que envolvem Páris. Eles são
muito frequentes na Ilíada. Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles têm uma função
específica no épico:
Explicar [rendre compte], valorar, dar a medida, aqui está umas funções
fundamentais. Na aproximação analógica, o animal dá a ver as virtudes dos heróis
aos quais ele se refere: ele sugere, ele enfatiza [met un valeur], ele retorna uma
imagem amplificada e seletiva, como um espelho sutilmente deformado. [...] ele é
signo, mensagem, presságio; [...]. Portador do sofrimento humano, [...]; ator de uma
reversão indizível, [...]; elemento fundamental de uma definição social do indivíduo,
[...] (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 11).
Os símiles de caça são bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte. Segundo Michael Clarke, “o contraste entre predador e caça é um padrão nas
falas [dos heróis que comparam homens a animais], onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta, ou aqueles que ele vê, a bravos ou covardes animais” (CLARKE, 1995, p. 9). O
narrador da Ilíada também utiliza bastante esses símiles, tendo como o leão o animal caçador
por excelência (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 39-40), encarnação dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 50). Quando Menelau
resolve enfrentar Páris, no início do Canto III, o leão é o símile que corresponde a Menelau.
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος
ἐρχόµενον προπάροιθεν ὁµίλου µακρὰ βιβάντα,
ὥς τε λέων ἐχάρη µεγάλῳ ἐπὶ σώµατι κύρσας
εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα
πεινάων: µάλα γάρ τε κατεσθίει, εἴ περ ἂν αὐτὸν
σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί:
ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα
ὀφθαλµοῖσιν ἰδών: φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην:
αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαµᾶζε.
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς
ἐν προµάχοισι φανέντα, κατεπλήγη φίλον ἦτορ,
ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων.
ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη
οὔρεος ἐν βήσσῃς, ὑπό τε τρόµος ἔλλαβε γυῖα,
ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν, ὦχρός τέ µιν εἷλε παρειάς,
ὣς αὖτις καθ᾽ ὅµιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων
δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής.
Logo que o viu Menelau, o guerreiro discípulo de Ares,
como avançava com passo arrogante na frente do exército,
muito exultante ficou, como leão esfaimado que encontra
um cervo morto, de pontas em galho, ou uma cabra selvagem;
66
avidamente o devora, ainda mesmo que cães mui ligeiros
lhe venham vindo no encalço e pastores de aspecto robusto:
dessa maneira, exultou Menelau quando Páris, o belo,
teve ante os olhos, pensando que iria, por fim, castigá-lo.
Rapidamente do carro pulou, sem que as armas soltasse.
Quando o formoso Alexandre, que um deus imortal parecia,
o viu à frente dos outros, sentiu conturbar-se-lhe o peito
e para o meio dos seus recuou, escapando da Morte.
Como se dá quando alguém nos convales dos montes estaca
em frente de uma serpente, a tremerem-lhe as pernas e os joelhos,
e retrocede de um salto, com o rosto sem cor, todo medo:
por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes
Páris, o divo Alexandre, do filho de Atreu temeroso. (III, vv. 21-37).
Chama-nos atenção os símiles utilizados. Primeiramente, um que remete à caça (leão
versus cervo ou cabra); depois, um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente, humano versus selvagem). Páris é assemelhado à cabra e ao veado.
Ambos são animais que possuem relação com o deus Dioniso (SUTER, 1984, p. 111). Além
disso, são a caça do leão. Este sobrepuja em força o veado e a cabra, bem como está no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem. O símile no Canto XIII (vv.489-495) também é
revelador: o exército troiano é composto de carneiros, animal que serve de caça.
Outro símile relacionado ao nosso herói nessa passagem é o do pastor que teme a
serpente. Este é peculiarmente interessante: a serpente é o símbolo de Zeus, que, sob o epíteto
Xénios, garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xénia). Levando em consideração
que Páris desrespeitou a xénia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta,
há bastante razão para ele temer a “serpente”: a ira de Zeus recai sobre Páris, mesmo que, no
momento, Zeus esteja do lado dos troianos. A transgressão do nosso herói se sobressai.
Quando Páris entra em batalha, ele está vestindo uma pele de leopardo, comum nas
representações dos arqueiros citas na imagética (LISSARAGUE, 2002, p. 104 e 105).
Segundo Aristóteles, esse animal é comum na Ásia Menor (lugar onde fica Troia), sendo um
animal muito selvagem (ARISTÓTELES. História dos Animais VIII, 27, 9). O leopardo é
um animal associado a Dioniso e está presente frequentemente em suas representações
(COHEN, 2012, p. 462). A associação de Páris com esse deus é trabalhada por Ann Suter em
sua tese, visto que ela mostra como a poesia iâmbica39 (uma blame poetry, “poesia
acusatória”) está ligada à construção da representação de Páris por Homero. A Ilíada não é o
início de um processo discursivo, mas parte dele: outros gêneros poéticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composição da épica homérica. Ann Suter ressalta que nos versos
39
A partícula “-amb-” (-αµβ-) está ligada aos cultos dionisíacos e “designa canções e danças em sua honra”
(SUTER, 1984, p. 105), como o dithýrambos, o thríambos e o íthymbos.
67
em que Príamo insulta seus filhos “o vocabulário necessário para elogio e acusação é usado
aqui: νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]” (SUTER, 1984, p. 96). Esses verbos aparecem no
aoristo (neíkesse / ḗnēs’): Páris causa neíkos pelo seu ainós a Afrodite. Desse modo, tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture), quanto a de
que Páris é um personagem acusável (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilização de ambos vocabulários pelo poeta.
Outro símile nos chama atenção, quando Páris volta ao campo de batalha:
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόµοισιν,
ἀλλ᾽ ὅ γ᾽, ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ,
σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς.
ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ
δεσµὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων
εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταµοῖο
κυδιόων: ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει, ἀµφὶ δὲ χαῖται
ὤµοις ἀΐσσονται: ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς
ῥίµφά ἑ γοῦνα φέρει µετά τ᾽ ἤθεα καὶ νοµὸν ἵππων:
ὣς υἱὸς Πριάµοιο Πάρις κατὰ Περγάµου ἄκρης40
τεύχεσι παµφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει
καγχαλόων, ταχέες δὲ πόδες φέρον: αἶψα δ᾽ ἔπειτα
Ἕκτορα δῖον ἔτετµεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔµελλε
στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί.
Páris, também, não ficou muito tempo na estância elevada,
mas, tendo as armas de bronze vestido, de fino trabalho,
corta, apressado, a cidade, nos rápidos pés confiado.
Como galopa um cavalo habituado no estábulo, quando
pode do laço escapar e, fogoso, a planície atravessa
para ir banhar-se, impaciente, na bela corrente do rio,
cheio de orgulho, soleva a cabeça; por sobre as espáduas
bate-lhe a crina, agitada; consciente da própria beleza,
levam-no os pés para o prado, onde os outros cavalos se reúnem:
Páris, o filho de Príamo, assim, desde do alto da Acrópole
da sacra Pérgamo, envolto em couraça que a vista ofuscava.
Vem exultante; seus rápidos pés o conduzem em pouco
tempo aonde Heitor se encontrava, o divino guerreiro, que tinha
precisamente deixado o local em que à esposa falara (VI, vv. 503-517).
Páris é mostrado como um cavalo dentre cavalos: assim ele se encaminha para a
batalha. O cavalo é um símbolo de destaque social (é um animal muito caro, difícil de se
manter, demanda bastante recursos) e de auxílio (ele desloca o guerreiro na guerra, bem como
serve à competição esportiva – SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 169). Além disso, é
um animal que representa o troiano, como é frequentemente perceptível em Homero.
Eurípides também destaca essa característica deles, denominando-os phílippoi (literalmente,
40
O termo “acrópole” (akrópolis) não aparece no original; trata-se do alto mesmo de Troia. Contudo, a raiz dos
dois termos é a mesma.
68
“amigos dos cavalos”; Alexandre, fr. 62f). Esse símile aparece justamente quando Páris
retorna para o campo de batalha: ele está disposto a auxiliar seus ísoi. O cavalo também é um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON,
1981, p. 162), corroborando o caráter theoeidḗs de Páris e a ideia, defendida por Ann Suter, de
que Páris é um nome que tem relação com o divino: Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele, antes de compará-lo a um cavalo.
Alguns personagens (como Astýanax, que também é chamado de Skamándrios) teriam
nomes duplos: um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais, dentro de
grupos especiais, este último relacionando-se à esfera do divino. Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R. Lazzaroni, que mostra que existe, na epopeia, uma “linguagem dos deuses”
e uma “linguagem dos homens” (SUTER, 1984, p. 28). O nome Páris, que é menos comum
na Ilíada do que Aléxandros, é utilizado apenas pela família e “em contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade, nesse caso, como uma fonte de inspiração para um guerreiro
em combate” (SUTER, 1984, p. 31). Páris também teria conexão com a ilha de Paros, um dos
lugares de culto a Dioniso.
Quando Heitor já está morrendo, diz a Aquiles que “O coração tens de ferro;
impossível me fora dobrá-lo./ Que isso, porém, contra ti não provoque a vingança dos deuses,/
quando tiveres de a vida perder, muito embora esforçado,/ das Portas Céias em frente, aos
ataques de Páris e Apolo” [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυµός. / φράζεο νῦν, µή τοί τι
θεῶν µήνιµα41 γένωµαι / ἤµατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων / ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII, vv. 357-360). Aqui, novamente, Páris é usado
num sentido divino, pois remete à sua ligação com o deus Apolo, arqueiro, como ele, e que
lhe auxilia a atingir sua glória máxima ao matar o melhor dos aqueus, Aquiles.
Em Alexandre (fr. 42d), Eurípides coloca que “Quando ele (Páris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza / e força, a ele foi dado um segundo nome,
Alexandre, / porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanho” [γενόµενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε / καὶ ῥώµῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοµάσθη, λῃστὰς
/ ἀµυνόµενος καὶ τοῖς ποιµνίοις ἀλεξήσας]. Assim, aqui “Aléxandros” é um distintivo, um
41
Mênin (de mênis) é a primeira palavra da Ilíada: significa “ira”. O ultraje feito à timḗ de Aquiles por
Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um géras, privilégio, que lhe foi destinado: Briseida) gera
nele uma mênis, a qual causa pêma a todos ao longo da guerra. A Ilíada é a história da ira de Aquiles e suas
consequências, como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY, s/d, p. 18). A palavra mênis, ao longo do
poema, é utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles, segundo Gregory Nagy (NAGY, 1999,
p. 73 e 74), e isso, nesta passagem, se verifica.
69
segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras. Em As Troianas, Helena usa
Páris e Alexandre sem distinção:
πρῶτον µὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν,
Πάριν τεκοῦσα: δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε
Τροίαν τε κἄµ᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος,
δαλοῦ πικρὸν µίµηµ᾽, Ἀλέξανδρόν ποτε.
ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει.
ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν:
καὶ Παλλάδος µὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις
Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι,
Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους
τυραννίδ᾽ ἕξειν, εἴ σφε κρίνειεν Πάρις:
Κύπρις δὲ τοὐµὸν εἶδος ἐκπαγλουµένη
δώσειν ὑπέσχετ᾽, εἰ θεὰς ὑπερδράµοι
κάλλει. [...]
ἦλθ᾽ οὐχὶ µικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ µέτα
ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ, εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις
ὀνόµατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν:
ὅν, ὦ κάκιστε, σοῖσιν ἐν δόµοις λιπὼν
Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα.
Primeiro, essa aí gerou as origens dos males,
Páris tendo gerado: depois, o velho
destruiu Tróia e a mim, ao não matar o bebê,
acre imitação de um tição – Alexandre, então.
A partir daí, o restante escuta como é.
Aquele julgou um triplo jugo de três deusas:
bem, o dom de Palas para Alexandre era
despovoar a Hélade, comandando frígios;
Hera jurou que sobre a Ásia e os limites da Europa
Páris, se a escolhesse, teria a soberania;
Cípris, com minha aparência se estonteando,
prometeu dá-la, se ultrapassasse as deusas
em beleza. [...]
[Páris] Veio trazendo uma deusa não miúda consigo
O nume vingador42 dessa aí, se queres
Chamar-lhe de Alexandre, ou se de Páris:
Deixando-o em tua casa, ó maldito43,
De navio partiste de Esparta rumo a Creta.
(As Troianas, vv. 919-931; 940-943 – grifos nossos).
O helenista Michael Lloyd chama a atenção para esse uso indistinto de Páris e
Alexandre em Eurípides (LLOYD, 1989, p. 77), mas ele também crê que esse uso é indistinto
em Homero, o que discordamos: mostramos, com a análise de Ann Suter, que é possível que
Páris seja um nome divino e Alexandre um nome comum. Cremos que essa indiferença se dá
em Eurípides porque nosso herói, em suas obras, não representa tanto um exemplo a ser
seguido, mas porque ele é um bárbaros. Páris perde o caráter helênico e helenizante que ele
42
Alástōr é um gênio mau (“mauvais génie”; BAILLY, 2000, p. 73), o que reforça a ideia de Páris como um
causador de males.
43
Kákiste (vocativo de kákistos) seria “o pior de todos”. Aqui a palavra kakós (que indica tanto o feio quanto o
mau) aparece com o sufixo –istos, que indica superlativo.
70
apresenta na Ilíada, sendo, aqui a súmula da alteridade completa: ele tanto é o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade.
Quando começamos nossa pesquisa de graduação, não tínhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Páris especificamente. Conforme fomos pesquisando referências
bibliográficas, descobrimos uma pequena discussão filológica sobre essa dupla denominação
de Páris, a qual é interessante recuperarmos. Aliás, sobre Páris, especificamente, apenas a
filologia debruçou-se.
John A. Scott (1913) crê que Aléxandros é uma tradução para o grego de Páris. De
etimologia imprecisa, este seria um nome estrangeiro; já aquele, formado pela composição do
verbo aléxō (proteger, defender) e do substantivo andrós (homem, varão), seria grego porque
ambas as palavras que o formam são gregas. Além disso, esse autor crê que Páris é o grande
herói da tradição mítica, em detrimento de Heitor, seu irmão. Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Páris, personagem o qual, por
motivos morais, não poderia ser representado de maneira tão heroica. O nome Héktōr já
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to), escrita da época dos palácios (XVII-XI a.C.),
(CHADWICK, 1970, p. 98), mas não sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo já era um parte da tradição mítica, sendo recuperado por
Homero.
Samuel E. Bassett (1920) não concorda nem discorda de John Scott, mas mostra que há
pesquisas as quais apontam que Aléxandros poderia ser derivado do nome Alaksandu, um
príncipe de Wilǔsa, região que seria a própria Troia, incluindo, assim, os avanços da
Arqueologia. Hititologistas defendem que Troia não é nada mais que a região denominada
Trūiša44.
Na contracorrente dessa hipótese de Scott veio Ann Suter (1984), com sua tese de
doutorado Paris/Alexandros: a study in Homeric technique of characterization, com a
qual nós concordamos em muitos pontos. Ela afirma que Páris é mais utilizado num contexto
íntimo (pela família, ou seja, troianos) sim, mas que Aléxandros também é usado pela sua
família, sendo o nome mais recorrente para denomina-lo. Ela atribui esse fato à ideia de que
Páris seria um nome divino, utilizando a ideia de R. Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6
A partícula -iša é um sufixo; dividindo a palavra (Trū-iša), temos como raiz o elemento trū-. Em grego, Troia é Troíē
(Τροίη) e, provavelmete, deriva de um vocábulo mais antigo, Trṓē (Τρώη), Trṓ-ē. Como os hititas não conheciam o
som de “ō” (ω), o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST, 2013, p. 46). Assim, a Troíe de Homero era a Trūiša
hitita, assim como o Aléxandros de Homero era o Alaksandu hitita. Para mais informações, ver sessão V – Hipóteses.
71
e a linguagem dos deuses em Homero. Assim como inúmeros outros personagens da tradição
mítica e das obras homéricas, o segundo nome (mais incomum) do nosso herói seria aquele
que o eleva à condição de um ser divinizado, visto que está em constante relação com
Afrodite e com Helena (que, na tradição mítica, transforma-se em uma divindade após a
morte).
A autora também defende que Páris não é um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira): poderia ser derivado de Paros, uma ilha grega que tem
estreita relação com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam através da
récita de versos iâmbicos. A poesia derivada do iâmbico é de caráter “culpabilizante” (blame
poetry), na qual se culpa alguém por algo, disforizando essa pessoa. Arquíloco, expoente
desse tipo de poesia, era ele mesmo conhecido como Arquíloco de Paros.
Além disso, ao observar que Páris tem menos epítetos que Aléxandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominação é precário em detrimento desta (o que não
deveria acontecer, pois Páris é um nome que melhor se encaixa no hexâmetro dactílico), ela
chega à conclusão de que aquela denominação é mais recente do que Aléxandros, sendo
impossível esta denominação ser uma tradução daquela.
Irene J. F. de Jong (1987) vai de encontro à tese de Scott, argumentando que Páris é um
nome utilizado no contexto troiano e Aléxandros em um contexto grego, para ressaltar o
caráter “estrangeiro” (DE JONG, 1987, p. 127) do personagem. Segundo de Jong, “O poeta da
Ilíada, ao manter o nome ‘troiano’ ‘Páris’, pode ter intencionado introduzir um elemento
‘realista’ na representação dos troianos como falantes de uma língua estrangeira” (DE JONG,
1987, p. 127). Assim, ela concorda com John Scott, pois Aléxandros continua sendo uma
tradução de Páris. Contudo, ela confessa, em uma nota de rodapé, não ter lido a tese de Ann
Suter, embora a conheça (1987, p. 127, n. 4).
Discordando de todos os autores acima elencados, Michael Lloyd (1989) argumenta que
não há uma utilização consciente de Homero de Páris e Aléxandros, afirmando que não há
distinção no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a análise a Eurípides. Na
tragédia, Páris é utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo, em As
Troianas, utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD, 1989, p. 78). Ele conclui,
assim, que “A nacionalidade do falante não tem nada que ver com qual nome é usado”
(LLOYD, 1989, p. 77).
Essa discussão é importante porque, conforme o que os autores defendem, pode-se
estabelecer uma relação entre a denominação dupla e o caráter diferenciado de Páris na Ilíada
72
como representante de uma alteridade. Entretanto, acreditamos que essa dupla denominação
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definição étnica,
pois concordamos com a análise de Ann Suter. A definição do caráter díspar de Páris como
um representante da alteridade e como um personagem-síntese das fronteiras étnicas que
separas aqueus e troianos está mais ligada ao discurso do poeta, imbricado de uma ideologia,
acerca dele e de seu grupo étnico do que a escolha de um nome. Esta está mais ligada à
percepção de Páris como um representante da aristocracia heroica.
No século V a.C., não há dúvidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra,
de que eles são bárbaroi. Contudo, não podemos afirmar o mesmo para Homero. Como
vimos, muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro já nas epopeias. Eles
são um Outro, mas ainda não deixam de partilhar um código de conduta, mesmo que com
suas reapropriações, grego. São essas reaprorpiações que configuram os troianos num grupo
étnico distinto dos aqueus. A ideia de que os troianos são estrangeiros surge a posteriori,
quando são “frigianizados” (HALL ,1989, p. 39). Um exemplo claro dessa “frigianização”
está no diálogo entre Orestes e o frígio em Orestes (vv. 1506-1519 – grifos nossos).
ΟΡΕΣΤΗΣ
ποῦ 'στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόµων τοὐµὸν ξίφος;
ΦΡΥΞ
προσκυνῶ σ᾽, ἄναξ, νόµοισι βαρβάροισι προσπίτνων.
ΟΡΕΣΤΗΣ
οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν, ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί.
ΦΡΥΞ
πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ µᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν.
ΟΡΕΣΤΗΣ
οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροµεῖν;
ΦΡΥΞ
σοὶ µὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀµύνειν: ἀξιώτερος γὰρ εἶ.
ΟΡΕΣΤΗΣ
ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο;
ΦΡΥΞ
ἐνδικώτατ᾽, εἴ γε λαιµοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν.
ΟΡΕΣΤΗΣ
δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ, τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν.
ΦΡΥΞ
οὐ γάρ, ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυµήνατο;
ΟΡΕΣΤΗΣ
ὄµοσον — εἰ δὲ µή, κτενῶ σε — µὴ λέγειν ἐµὴν χάριν.
73
ΦΡΥΞ
τὴν ἐµὴν ψυχὴν κατώµοσ᾽, ἣν ἂν εὐορκοῖµ᾽ ἐγώ.
ΟΡΕΣΤΗΣ
ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος;
ΦΡΥΞ
ἄπεχε φάσγανον: πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον.
ORESTES:
Onde está aquele que fugiu do palácio à minha espada?
FRÍGIO:
(prosternando-se diante de Orestes) Eu te saúdo, senhor, prostrando-me segundo os
modos bárbaros.
ORESTES:
Aqui não estamos em Ílion, mas em terra argiva.
FRÍGIO:
Em toda parte, é mais doce viver do que morrer, para os homens sensatos.
ORESTES:
Não gritaste, por acaso, para que socorressem Menelau?
FRÍGIO:
Eu?... Pelo contrário, para que defendessem a ti! É que tu mereces mais.
ORESTES:
Foi então com justiça que a filha de Tindáreo morreu?
FRÍGIO:
Com toda a justiça! Tivesse ela, ao menos, três gargantas para morrer.
ORESTES:
Por covardia, procuras agradar com a língua, mas não pensas assim no teu íntimo.
FRÍGIO:
Pois não foi essa mulher a que arruinou a Hélade, e com a Hélade os próprios
frígios?
ORESTES:
Jura – se não, mato-te – que não falas para me agradar.
FRÍGIO:
Pela minha vida juro, que é coisa por que farei jura sincera.
ORESTES:
Também, em Troia, tinham assim medo do ferro, os frígios todos?
FRÍGIO:
Afasta o gládio! Porque, estando perto, reflete uma morte terrível.
Aqui o frígio demostra ser um completo covarde: prosterna-se, grita. Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida, e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassiná-lo;
74
parece com o que se sucede no episódio de Glauco e Diomedes, no qual o embate fatal é
adiado. E, assim como Glauco, o troiano de Orestes consegue que o príncipe o deixe vivo. A
covardia, a prosternação e o grito são traços comuns de diferenciação étnica nas tragédias e
aqui aparece mais um elemento que já se encontra na Ilíada: a dissuasão pela fala.
Páris, além de ser um troiano, é o causador da Guerra de Troia, que fez perecer toda
uma linhagem de heróis. Em uma época de guerra, ele é a metáfora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos. Nas tragédias de
Eurípides, mesmo os espartanos são representados de maneira pouco louvável: a fronteira
entre o que é grego e o que não é também se encontra em crise e os espartanos (gregos) são
comparados a bárbaros em suas tragédias. O referencial de comparação, muitas vezes, é o
troiano, como acontece em Orestes. Tíndaro, pai de Helena, ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes, matricida, fala: “Tornaste-te bárbaro, por teres estado muito tempo entre os bárbaros
[os troianos]” [βεβαρβάρωσαι, χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURÍPIDES. Orestes, v. 485).
Em Eurípides, as questões acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras, em detrimento da Ilíada: esse tragediógrafo já denomina os
troianos de bárbaroi, termo que inexiste em Homero, como vimos. Eurípides encena suas
peças no século V a.C., num contexto no qual a pólis dos atenienses se encontra consolidada,
mas já entrava em crise, em virtude da Guerra do Peloponeso. Segundo Karl Reinhardt, o
teatro euridipiano é exatamente o termômetro da crise. A geração jovem se coloca contra a
antiga, mas ambas têm a chance de falar, quase simultaneamente, através de seus poetas –
Eurípides e Sófocles –, pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT, 2011, p. 20).
O interessante é perceber que algumas características troianas vão se perpetuar na
configuração dos personagens, sendo utilizadas para designar os bárbaros em geral, o Outro
homogêneo grego, sobretudo os persas, outro por excelência. O desrespeito à hospitalidade,
comum ao Ciclope da Odisseia e a Páris na Ilíada, retornará na tragédia como sinal de
barbárie. Quando Menelau chega ao Egito, diz: “Nenhum homem tem um coração tão
incivilizado / a ponto de não me dar comida ao ouvir meu nome” [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας, / ὃς ὄνοµ᾽ ἀκούσας τοὐµὸν οὐ δώσει βοράν] (EURÍPIDES. Helena vv.
501-502). Será comum, por exemplo, atribuir aos persas o domínio do arco e contrastá-lo com
o modo grego de fazer guerra, o tradicional face a face (HALL, 1989, p. 85). É sobre esse
aspecto, o modo de fazer guerra, que nos debruçaremos em nosso próximo capítulo.
75
CAPÍTULO 3 | PÁRIS, O HERÓI
“Eu estarei com você
Todas as vezes que contar a minha história
Por ser tudo o que eu fiz”
(Remember Me – James Horner)
Vamos analisar, nesse capítulo, como Páris é representado como herói e guerreiro e
como essa representação se liga à nossa comparável. Defendemos que Páris é um exemplo de
como se agir na Ilíada, visto que essa é a característica primordial do herói homérico e, em
Eurípides, o seu estatuto heroico é afetado, pois ele é visto mais um “pastor” (boukólos; v.
Ifigênia em Áulis, v. 574), “escravo” (doúlos; v. Alexandre, fr. 48), “músico” (Ifigênia em
Áulis, vv. 576-577) e, principalmente, “bárbaro”, designações comuns a ele na poesia trágica
que destoam da construção da personalidade heroica ideal. Isso não significa, contudo, que a
caracterização feita por Homero não influencie na construção de Páris em Eurípides, visto que
defendemos que já em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos.
Se o filme Troia (dir. Wolfgang Petersen, EUA, 2004) não ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poética em relação à história da Ilíada, essa epígrafe
da música-tema do filme, Remember Me, escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska , pelo contrário, traz algo intrínseco à caracterização do herói: ele é
tudo o que ele faz em batalha. São as façanhas heroicas que dão dinamicidade à epopeia, que
são, de fato, o material sobre o qual elas se debruçam. Na tragédia, essas façanhas e os dramas
76
dos heróis míticos são o material catártico o qual o tragediógrafo utiliza para compor suas
tramas. Os atos dos heróis são exemplares para aqueles que os ouvem, não os heróis per se.
Essa ideia já se encontra na Ilíada e, para tratarmos de Páris, essa noção nos é
fundamental, pois ele é um herói à medida que demonstra, através dos seus atos, como um
homem deve agir. O locus privilegiado de atuação de um herói, nesse poema, é a batalha: o
tema mesmo da Ilíada é a Guerra de Troia em si, com os heróis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente. Esse cenário bélico encontramos somente na Ilíada, pois em
Eurípides, não existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Páris como um
combatente: ele não é mostrado como um nas suas tragédias. Aliás, todas as tragédias do ciclo
troiano que analisamos não se desenrolam na guerra: Alexandre se passa antes da guerra,
enquanto todas as outras se passam depois.
Isso denota uma preferência de Eurípides por mostrar um ambiente pós-bélico: ele
trabalha com as consequências de uma guerra para um povo. Assim, são comuns temáticas
que dizem respeito ao dilaceramento do núcleo familiar, da escravização daquele que era
livre, privilegiando às vezes certos tipos de personagens que, à primeira vista, não mereceriam
um destaque em uma obra trágica, como, por exemplo, as escravas troianas. É por esse motivo
que muitos autores afirmam que Eurípides dá voz a esses personagens “marginais” (SAÏD,
2002, p. 62), pois a degradação que separa os extremos sociais (grego/bárbaro; livre/escravo)
é bem mais temível em uma sociedade em guerra: a esposa do cidadão pode virar a concubina
do inimigo. É só Atenas perder a guerra.
A definição do caráter heroico muda ao longo dos séculos, sendo o herói trágico
semelhante, mas não igual ao homérico. Gÿorgy Lukács, filósofo alemão, crê que o herói
trágico traz um “brilho renovado” sobre o homérico, explicando-o e transfigurando-o
(LUKÁCS, 2000, p. 33). Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento é intrínseco ao
herói trágico: “Para ser trágico, o herói deve sofrer. [...] no espírito mesmo do gênero trágico,
a necessidade de pintar heróis imperfeitos e atormentados, em uma palavra, de toma-los –
eles, as exceções – como paradigma da condição humana e de seus males” (2013, p. 210).
Na tragédia, a noção de hamartía (falha) se torna mais latente e o herói é justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama: por exemplo, Páris, em Alexandre, é o
camponês, é o habitante do ambiente selvagem (a montanha – PELOSO, 2002, p. 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual, a priori, não lhe seria adequado
(os prêmios oriundos da vitória nos jogos troianos). Graças aos erros de Clitemnestra e
Orestes, os Átridas sofrem uma desestruturação familiar que vai se desenrolar em Orestes.
77
O herói homérico também é falho, mas essa falha está ligada à átē (perdição): se
ocasiona uma situação de desequilíbrio e o herói tem que fazer por onde revertê-la. Páris e
Aquiles se assemelham nesse ponto: ambos incorrem em átē. A causa da perdição de Páris é o
desrespeito da ética hospitaleira, retirando Helena do palácio de seu esposo, e a consequência
direta é a própria Guerra de Troia. Já a causa da perdição de Aquiles é a recusa da súplica:
Agamêmnon reconhece seu estado de átē, causado pela privação do géras (privilégio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno à guerra, através de uma
litḗ (súplica), mas este a ignora. Impedir que a átē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma súplica acaba gerando um estado de átē no próprio Aquiles.
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (herói) muda de acepção
ao longo tempo: primeiramente, essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
públicos extraordinários, executores de façanhas mais extraordinárias ainda, os quais se
configuravam nos personagens principais das histórias contadas pelas epopeias. Com o passar
dos séculos, essa designação foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstícios da sociedade e da vida privada. Segundo Jones, isso não é uma decadência,
tampouco uma ressignificação do termo, visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que têm poder no pós-morte, mesmo numa acepção cristã. O que acontece é a difusão
e a continuidade da utilização de hḗrōs, possibilitada pelo processo de expansão da cultura
helênica, o qual culmina no helenismo (c. IV-I a.C.).
O termo passa a designar não somente os heróis da mitologia, mas também as pessoas
que se destacam na vida pública, sobretudo “aqueles que caíram na guerra, ou deram suas
vidas a serviço de suas comunidades de outras maneiras” (JONES, 2010, p. 1). Para Jones, os
heróis homéricos são todos aqueles que lutaram em Troia, seja grego ou troiano, e têm mais a
ver com uma acepção ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior). No entanto, como
vimos, é na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor: um senhor é, necessariamente,
um guerreiro no mundo homérico. Jones, entretanto, mostra uma resistência da Atenas
Clássica em designar um morto comum de hḗrōs, o que significa que eles mantêm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heróis mitológicos como hḗrōes (JONES, 2010, p. 3,
4 e 21).
Em nossa pesquisa, esbarramos sempre com a ideia de que Páris, na verdade, seria um
anti-herói, pois ele apresenta uma série de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde, medrosa etc. Em primeiro lugar, é necessário termos em mente que os heróis
não são uma massa indistinta: eles constituem um grupo social fechado, com um código de
78
conduta modelar, mas não podemos nos esquecer de que uma sociedade é composta de
indivíduos, cada um com sua personalidade específica. O eu não se anula por causa do nós,
ele se agrega ao nós, contribuindo com sua singularidade ao todo.
Vários autores se debruçaram, de algum modo, sobre os heróis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla, tentando defini-los: Joseph Campbell, Robert Aubreton,
Cedric Whitman, Karl Kerényi, Gregory Nagy, Seth L. Schein, María Cecilia Colombani,
Anastasia Serghidou, David J. Lunt e Christopher Jones. À exceção de Campbell, Kerényi,
Serghidou e Lunt, geralmente eles dão destaque aos heróis homéricos. É interessante perceber
que não há divergência de opiniões, mas complementaridade.
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heróis: seu estudo é de fins da década
de 1940. Muito influenciado pela Psicanálise, procura delinear o perfil do herói em geral em
O herói de mil faces. Ele cria uma tipologia, através de um estudo comparado de várias
mitologias, que abrange todos os heróis, de todas as épocas e tradições epopeicas; afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estágios em sua vida: ela é permeada por
ritos de passagem. Campbell não fala de um herói específico ou de uma determinada tradição
heroica: ele conceitua o herói, o vê como um homem que morreu como um “homem
moderno”, mas que, como um “homem eterno”, ou seja, “aperfeiçoado, não específico e
universal”, renasce para “retornar ao nosso meio transfigurado, e ensinar a lição de vida
renovada que aprendeu” (CAMPBELL, 2007, p. 28). Desse modo, ele corrobora o valor
educacional que um herói possui para aqueles que o rememoram, além de pontuar o seu
caráter mortal.
Na década de 1950, Robert Aubreton escreveu um livro introdutório sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heróis. Esse autor crê que haja uma psicologia em Homero,
afirmando que a representação deles é tão humana que “acabamos por considerá-lo não mais
como herói sobre-humano, mas como homem igual a nós que, por sua virtude e piedade,
chega a se superar” (AUBRETON, 1968, p. 188). Essa “psicologia homérica” consiste,
sobretudo, na consideração do herói não apenas em seu caráter coletivo, mas em sua
individualidade, em sua especificidade. Desse modo, Aubreton divide esse capítulo o qual ele
dedica aos heróis de acordo com sua análise de cada um daqueles que ele crê serem
importantes nas epopeias: Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Heitor, Páris, Menelau,
Andrômaca, Helena, Odisseu, Penélope, Telêmaco, Nausícaa e Eumeu. Observemos que ele
inclui as mulheres (“heroínas”, segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleção,
79
aumentando a gama de possibilidades de definição do herói: ele é um(a) personagem mítico,
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que é o hḗrōs na épica.
Enquanto Aubreton publicava seu livro, Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition, lançado em 1958 e bem recebido: quase todos os autores que trabalham com
heróis mencionam seu trabalho em seus próprios. Ele tenta compreender a Ilíada à luz das
noções que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relação existente entre os
heróis e essa sociedade). Para esse autor, a Ilíada já apresenta um discurso bem próximo do
trágico, no qual a humanidade dos heróis é representada de modo mais acentuado e a
demonstração de sentimentos (como raiva, amor, compadecimento) é comum. Whitman
também trabalha com a noção do herói como modelo, como aquele que passa todas essas
noções aos ouvintes da epopeia, construindo um estudo de caso de Aquiles.
No mesmo ano, Karl Kerényi publicou o seu Os Heróis Gregos; o livro é o segundo
volume da série Mitologia Grega, cujo primeiro volume trata dos deuses gregos. A proposta
do livro é apresentar os heróis gregos a leitores acadêmicos ou não, debruçando-se não
somente sobre os relatos escritos sobre eles, mas também a cultura material, tratando também
da questão do culto ao herói e de sua historicidade. Para Kerényi, os heróis se mostram
“entrelaçados com a história, com os acontecimentos, não de um tempo primevo, que está fora
do tempo, mas do tempo histórico [...]. Eles surgem diante de nós como se tivessem, de fato,
existido” (KERÉNYI, 1998, p. 17). Ao escrever sobre a guerra de Troia, mais uma vez
Aquiles é o grande destaque da análise, assim como faz nosso próximo autor.
Gregory Nagy, em seu livro The best of the Achaeans: concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979), trata dessa tradição anterior à composição dos épicos,
defendendo que sua unidade se dá justamente por essa origem em comum deles. Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles, o qual ele considera o principal herói da Ilíada, comparando-o
com outros heróis (Heitor e Neoptólemo), e resgata do épico uma série de noções (como
kléos, ákhos, pénthos, timḗ) imprescindíveis tanto para a compreensão da função das epopeias
quanto dos cultos heroicos. Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente à composição
dos épicos e que os jogos “de coroa” (Olímpicos, Ístmicos, Délficos e Nemeios) são oriundos
da prática de jogos fúnebres, possuindo, pois uma estrita relação com o próprio culto ao herói.
Nas epopeias, no entanto, não há a menção ao culto dos heróis pelo fato de esse culto ser
estritamente local: ele defende que já existe uma conotação pan-helênica nelas e colocar uma
prática religiosa que destoe da religião olímpica comprometeria esse caráter.
80
Seth L. Schein, em The mortal hero: an introduction to Homer’s Iliad (1984),
aproxima-se muito da análise de Nagy com relação ao culto heroico: ele não existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas, definida
pela representação apenas do culto aos deuses olimpianos. Ele não faz um estudo de caso de
nenhum herói, tentando abordá-los de maneira a tentar defini-los dentro da Ilíada. Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o herói sob a ótica acentuada do humano,
comparando o discurso das epopeias ao discurso trágico: ele enfatiza o fato da morte ser a
única certeza que se tem acerca do destino de um herói. A própria etimologia da palavra,
hḗrōs, denotaria isso:
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē, “estação”. [...]
em Homero hōrē significa, em particular, a “estação da primavera”, e um “herói” é
“sazonal” quando ele chega ao seu esplendor, como flores na primavera, só para ser
cortado uma vez e para sempre. (SCHEIN, 2010, p. 69).
María Cecilia Colombani dedica dois pequenos tópicos aos heróis em seu livro
introdutório sobre Homero (2005). Eles tratam da lógica aristocrática e da função da
soberania. Colombani aborda uma série de noções caras à aristocracia guerreira e que
perpassam todo o código de conduta dessa sociedade que Homero representa. Ela faz das
palavras de Louis Gernet, que na década de 1960 publicou seu Anthropologie de la Grèce
Antique, as suas: “Os heróis formam uma espécie aparte entre os deuses e os homens: seus
representantes são efetivamente homens, mas homens que, depois da morte, adquiriram uma
condição e estatuto sobre-humanos” (GERNET apud COLOMBANI, 2005, p. 58). Esses
homens, segundo Colombani, são representantes de valores sociais (COLOMBANI, 2005, p.
60) e são rememorados pela sociedade políade como exemplos a serem seguidos.
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o herói trágico, especificamente, no livro
Héros et heroïnes dans les mythes et les cultes grecs, organizado por Vinciane PirenneDelforge e Emilio Suárez de la Torre. Ela acredita que ele é “fundado sobre a ideia de uma
divinização impossível”, sendo a imagem do herói na tragédia “semelhante ao homem mortal,
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadão”
(SERGHIDOU, 2000, p. 1). A autora trabalha com a imagem do herói decaído (héros déchu),
colocando em primeiro plano a análise da dicotomia livre versus escravos. O herói é o homem
livre, construído em contraposição ao escravo, e está mais perto dos humanos do que os heróis
de outrora.
81
David J. Lunt, em sua tese Athletes, heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010), também retorna à questão do culto aos heróis, aproximando-se também da
abordagem de Nagy, embora não o mencione em sua discussão bibliográfica. Seu destaque
está em mostrar como o herói homérico serviu de exemplo para os homens da pólis, sobretudo
para os atletas. Para isso, ele delineia com mais precisão o que seria um herói para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados, começando pelos heróis homéricos, passando
por Teseu, os Dióscuros (Castor e Pólux) e Héracles, até chegar nos heróis de “carne e osso”,
que foram rememorados nas competições atléticas através das récitas em sua homenagem
No mesmo ano, Christopher Jones lança New heroes in Antiquity: from Achilles to
Antinoos, livro cujo objetivo, como vimos, é mostrar como o termo hḗrōs (herói) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar não mais aqueles grandes heróis do passado, mas também
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade, ressaltando como a difusão
dessas histórias míticas foram imprescindíveis para que essa definição penetrasse nos
interstícios das sociedades do período clássico. Assim, sua análise perpassa desde o herói
homérico (mítico) até o herói “heroicizado”, no caso, o romano Antínoo, que morreu em 130
d.C.
Em virtude dessa revisão bibliográfica de tratamento do herói, podemos concluir que: a)
a mortalidade do herói é constantemente reforçada; b) eles não estão ligados apenas a um
plano mortal, mas a um divino também, seja por terem parentescos com deuses, seja por
serem protegidos de um, seja por serem cultuados como divindades após suas mortes; c) o
herói é exemplar, pois é portador de um código de conduta no qual as suas aretaí estão
sempre postas à prova, sobretudo, na batalha, e, assim, os mortais comuns querem chegar o
mais próximo possível dessa glória heroica, seja associando um herói à sua família, seja sendo
vitorioso em suas atividades; d) eles têm uma materialidade histórica, pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam; e) o herói trágico é mais falho do que o
homérico, o qual sempre procura restabelecer sua posição de destaque com suas ações.
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heróis fazem um estudo
específico de comparação entre os heróis homéricos e trágicos ou sobre Páris, seja na poesia
épica, seja na poesia trágica. Contudo, essas obras aqui mencionadas serão fulcrais para a
análise de Páris, pois ele pertence à categoria dos heróis.
Na Ilíada Páris é o herói da paixão: seus epítetos não são bélicos, como os de outros
personagens, e ele não é o melhor guerreiro troiano, como veremos. Também não é um
personagem belicoso. Como lembra Aubreton, “Homero faz de Páris o homem amoroso por
82
excelência, e que não pode resistir à paixão que os deuses lhe inculcaram” (AUBRETON,
1968, p. 202).
Enquanto o nosso herói se arma para a guerra, é designado por dîos (divino,
semelhante aos céus – “sky-like” (SUTER, 1984, p. 59), epíteto comum a outros personagens,
como seu próprio irmão. Também aparece outro epíteto recorrente de Páris: “marido de
Helena cacheada” (Elénēs pósis ēykómoio), reforçando sua relação com Helena. Ann Suter
chama a atenção que essa construção formulaica aparece somente em relação a Zeus e Hera
(1984, p. 68) e que, das cinco vezes que aparece, quatro são dentro do campo de batalha
(1984, p. 70). Isso significa, para a autora, que “a sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόµοιο
é aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro. [...] Talvez Páris não se sinta em casa
no campo de batalha por natureza, mas quando ele de fato luta, é por causa de sua relação
com Helena” (1984, p. 70-1). É o que Robert Aubreton afirma:
Tendo conquistado a sua “deusa” [Helena], nada mais interessa a Páris senão
conservá-la. Para tanto, são-lhes necessárias a vida e a salvaguarda de Tróia. Ele só
luta em caso extremo, quando Troia corre perigo, quando, por conseguinte, seu amor
está ameaçado. É hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a
Menelau aquela que lhe arrebatou. (AUBRETON, 1956, p. 169).
Essa relação intrínseca de Páris com a paixão (seja pelos seus epítetos, seja pela
relação protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relação latente com a sua
própria atuação na batalha: como excelente herói do amor, ele deixa a desejar como herói
bélico. Amor e guerra não combinam. Páris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III, v. 35): ele fica ôkhrós, pálido.
Ainda na Ilíada, a makhlosýnē, a luxúria, de Páris aparece como a engrenagemprincípio dessa átē cuja consequência é a própria guerra (visto que se remete à escolha de
Afrodite), (XXIV, vv. 25-30). Em Eurípides, essa ideia de que o enlace amoroso entre Páris e
Helena é o causador da guerra retorna (As Troianas, vv. 398-399; vv. 780-781; Ifigênia em
Áulis, vv. 467-468; Helena, vv. 25-30; vv. 223-224; vv.666-668), embora o tragediógrafo
oscile, dependendo da obra e de quem é o enunciador (se grego ou troiano), em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palácio.
No Canto VII da Ilíada (vv. 354-365), os troianos se reúnem em assembleia. Antenor,
um conselheiro, afirma que o que se deve fazer é devolver Helena e os tesouros aos gregos.
Páris, no entanto, descarta essa possibilidade, não se opondo, no entanto, a entregar os bens
materiais. O problema é Helena: ele jamais a devolverá. Páris não faz questão das riquezas, as
83
quais, parece, não lhe faltam: no Canto XI, ele, inclusive, utiliza-se delas para “incentivar”
Antímaco a fazer oposição contra a devolução da esposa: “[Teucro] Prostra a Pisandro,
depois, e o nas pugnas intrépido, Hipóloco,/ filhos de Antímaco, o sábio, que, mais do que
todos, fazia/ oposição para Helena não ser restituída ao marido –/ fruto de belos presentes por
parte de Páris, muito ouro” [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον µενεχάρµην / υἱέας
Ἀντιµάχοιο δαΐφρονος, ὅς ῥα µάλιστα / χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγµένος ἀγλαὰ δῶρα
/ οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόµεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI, vv. 122-125 – grifos nossos). Fica claro
que Páris “compra” a opinião de Antímaco com “aglaá dôra” e “málista khrysòn”.
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia é recorrente em Eurípides. Em
Hécuba (vv. 10-12) Polidoro relata que Príamo “comigo muito ouro enviou” [πολὺν δὲ σὺν
ἐµοὶ χρυσὸν ἐκπέµπει – grifos nossos] para o trácio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro). Novamente (vv. 492-493), os troianos são mostrados
possuindo muito ouro, quando Taltíbio pergunta se a mulher que ele vê é Hécuba, a “rainha
dos frígios de muito ouro” [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν]. Em As Troianas, no
agṓn entre Hécuba e Helena, a primeira ressalta que a segunda “Vislumbrando-o [Páris], com
trajes bárbaros, /e com ouro luzindo, teu espírito desvairou-se” [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήµασι / χρυσῷ τε λαµπρὸν ἐξεµαργώθης φρένας – grifos nossos] (vv. 991-992).
Em Helena, o adjetivo polykhrýsos (no acusativo plural, polykhrýsous) é usado para
designar os dómoi (construções) troianos. Em Ifigênia em Áulis, Agamemnon comenta o
princípio da guerra, quando “O homem que julgou as deusas/ (assim é a história que os
homens contam)/ veio da Frígia para a Lacedemônia vestido roupas de cores vibrantes/ e
brilhando com joias de ouro, a luxúria dos bárbaros” [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς/
κρίνων ὅδ᾽, ὡς ὁ µῦθος Ἀργείων ἔχει,/ Λακεδαίµον᾽, ἀνθηρὸς µὲν εἱµάτων στολῇ/
χρυσῷ δὲ λαµπρός, βαρβάρῳ χλιδήµατι] (vv. 71-74). Esse excerto revela que o ouro é a
“luxúria dos bárbaros”: a predileção pelo ouro é um costume do Outro e o distingue dos
gregos. A helenista Helen Bacon afirma que Eurípides é menos detalhista que Sófocles e
Ésquilo ao descrever as vestimentas bárbaras, embora o embate com o bárbaro esteja mais
presente em suas obras, mas que o ouro em excesso, a riqueza das roupas, é um elemento
distintivo do bárbaro (BACON, 1955, p. 87, 123 e 124), servindo, assim, como um marcador
étnico. Muito ouro é sinal de excesso; por isso é que os bárbaros são caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL, 1989, p. 80).
Em Andrômaca, esse adjetivo (no dativo, polychrýsō) é novamente utilizado para
designar os troianos (v. 2). Contudo, a própria Hermíone (v. 147-154), uma grega, usa muito
84
ouro e a própria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Páris, como vimos no excerto de As
Troianas. Não podemos deixar de observar que Hermione é uma espartana.
Os espartanos, nas obras de Eurípides, são representados como pessoas que se
assemelham aos bárbaros, como fica claro, por exemplo, na passagem em que Tíndaro
recrimina Menelau, dizendo-lhe “Tornaste-te bárbaro por teres vivido tanto tempo entre os
bárbaros” [βεβαρβάρωσαι, χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes, v. 485). Eurípides os
representa dessa maneira porque eles são os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso: o grego pode voltar a um estado de barbárie, como acontece com os espartanos.
Assim, representar Hermíone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigênia em Áulis que, inclusive, ganha o primeiro prêmio na competição trágica
em que foi encenada), é representar o espartano como semelhante ao bárbaro porque é digno
de cometer atos bárbaros, sobretudo durante a guerra.
Entretanto, por mais que Eurípides faça essas correlações, dada a natureza “temática e
simbólica” de suas obras (BACON, 1955, p. 124), o troiano ainda é o referencial de barbárie:
em Andrômaca Hermione afirma à personagem-título que “não há nenhum Heitor aqui,/
nenhum Príamo ou seu ouro: essa é uma cidade helênica” [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε,/ οὐ
Πρίαµος οὐδὲ χρυσός, ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv. 168-169), pedindo para que ela não
introduza costumes do seu “bárbaron génos” lá. Em Orestes, a caracterização do frígio como
um homem medroso, covarde, que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domínio dos bárbaros.
Na Ilíada, o excesso de ouro de Troia não designa barbárie, mas, definitivamente,
designa uma alteridade. Somente os troianos são relacionados à posse do ouro (II, vv. 229231) e eles são, justamente, o inimigo na guerra. Embora os heróis homéricos sejam regidos
por um ideal de conduta comum, os troianos são diferentes dos aqueus: o uso que eles fazem
desse código ético é diferenciado às vezes.
Páris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena, desde
suas riquezas até mesmo sua vida: ele só entra em batalha quando se vê a ponto de perde-la.
Por isso ele não possui tantos epítetos ligados à guerra. Heróis como Aquiles, Agamêmnon,
Menelau, Odisseu e o próprio Heitor são qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
bélico. No Canto III da Ilíada, no qual Helena mostra alguns heróis a Príamo, fica evidente
isso. Vejamos os epítetos desses guerreiros em comparação aos de Páris no supracitado
Canto:
85
Agamemnon
“homem de aspecto imponente” (v. 166); “rei poderoso” (v. 178); “tão belo e
de tal corpulência” (v. 167); “tão belo conspecto” (v. 169); “majestade tão
grande” (v. 170); “de Atreu descendente” (v. 178); “tão grande rei, chefe de
homens, quão forte e notável guerreiro” (v. 179); “venturoso” (v. 182); “filho
dileto dos deuses” (v.182).
Odisseu
“de espaldas mais largas de ver e de peito mais amplo” (v. 194); “guieiro
veloso” (v. 197); “astucioso guerreiro” (v. 200); “em toda sorte de ardis
entendido e varão prudentíssimo” (v. 203); “o astucioso” (v. 216); “indivíduo
bisonho que o cetro na mão mantivesse (...)/ imaginara, talvez, ser pessoa
inexperta ou insensata” (vv. 218-220).
Menelau
“de Ares forte discípulo” [areḯphilos] (v. 206).
Ájax
“tão belo e de tal corpulência” (v. 226); “de bem maior estatura e de espaldas
Telamônio
mais largas que os outros” (v. 227); “baluarte dos homens Aquivos” (v. 229);
“gigante” (v. 229).
Heitor
“de penacho ondulante” (v. 83).
Páris
“divo” [theoeidḗs / dîos] (vv. 16, 37, 100, 328, 437), “belo” (v. 27), “de
formas divinas” (v. 58), “de belas feições” (v. 39), “sedutor de mulheres” (v.
39), “Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza” (v. 54), “marido
de Helena de belos cabelos” (v. 328).
Agamemnon é o ánax: ele é o chefe da expedição, rei de todos os reis; é o chefe de
homens, o notável guerreiro: aqui está denotado seu aspecto bélico, sobretudo pela sua
habilidade de comando. Odisseu, com a sua astúcia, também possui um aspecto bélico: isso se
dá porque essa métis não está ligada apenas à dissimulação, à mentira, mas ao planejamento
mesmo necessário a uma guerra. É ele que tem a ideia do cavalo de Troia, que garante a
vitória dos gregos: essa guerra foi ganha pela métis. Menelau é amigo de Ares (areḯphilos),
deus da guerra; e Ájax é o gigante, corpulento, personagem cuja força física sobrepuja, por
exemplo, a força da métis, ligada à inteligência. Do mesmo modo, o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo, que, por sua vez, é parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir à sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos), pois o penacho
lembra a crina desse animal. Como vimos, o cavalo é necessário à guerra, deslocando os
guerreiros no campo de batalha e, às vezes, auxiliando-os nas lutas. Páris não possui epítetos
86
bélicos e o único elemento relacionado à guerra que ele possui é o arco, o qual é
desvalorizado.
Na tragédia, o arco é a arma do bárbaro por excelência, que, por sua vez, se
materializa na figura do persa. Páris é mostrado como um arqueiro duas vezes (Hécuba, vv.
387-388; Orestes, v. 1409) nas tragédias que analisamos, assim como Teucro (Helena, vv.
75-77). A diferença é que tanto em Hécuba quanto em Orestes, o arco de Páris é mencionado
em contexto bélico e, em Helena, Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizá-lo para
matar uma mulher, não um homem. Homero também traz essa ideia de diferenciação de uso
do arco.
Páris entra na guerra com “arco e espada” (tóxa kai xíphos) e “duas lanças na mão”
(dýo kekorythména khalkô). Páris é um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Ilíada.
Se teve uma arma que não mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN, 1995, p.
179), embora variantes tenham surgido (como a besta – crossbow): ele é oriundo do Oriente,
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega através do contato dos
cretenses com a Síria e o Egito (SUTHERLAND, 2001, p. 113).
Na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), os arqueiros ganharam um destaque muito
grande; Marcos Alvito afirma, inclusive, que as forças secundárias (peltastas, arqueiros,
fundibulários e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA, 1988, p. 64),
embora a falange hoplítica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE, 2002,
p. 117). Essa preferência se dá em virtude de uma tradição de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocrática que implica na valorização do combate corpo a
corpo.
Essa valorização já começa na Ilíada: há pouquíssimos arqueiros; e, talvez se todos
eles morressem em batalha, a Guerra de Troia não seria encerrada por causa disso, afinal:
“Aqueus e Troianos se batem / corpo-a-corpo e não ficam à espera de apoio / de flechas ou
de lanças de longe atiradas; / lutando de bem perto” (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε / δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν: οὐδ᾽ ἄρα τοί γε / τόξων ἀϊκὰς ἀµφὶς µένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων, /
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάµενοι), (XV, vv. 707-712 – grifos nossos).
Mencionados, há seis arqueiros na Ilíada: Filoctetes e Teucro do lado aqueu; Páris,
Pândaro, Heleno e Dólon do lado troiano. Tanto Páris quanto Pândaro e Heleno usam o arco
em batalha. Dólon aparece em apenas um Canto da Ilíada, para morrer nas mãos de Odisseu e
Diomedes, e sua função é a de espiar os aqueus, não de lutar contra eles, não chegando a
entrar em batalhas. Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros, que não chegam a
87
entrar em ação. Tampouco o próprio herói o faz: ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia, em decorrência de um ferimento que exalava um odor
terrível.
Há ainda o povo da Lócrida, um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus. É
mencionado uma vez no poema, mas ele não entra em batalha: os lócrios são medrosos
demais para isso (XII, vv. 712-718). Do lado aqueu, Teucro é o único que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena, de Eurípides, portando-o: ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peça. Ele vai parar no Egito, onde está também Helena. O motivo? Ele foi
expulso de sua terra pelo pai. Ser exilado era algo vexatório: o economista Émile Mireaux
mostra que os exilados começam a surgir por volta do século VII a.C., mas que a prática de
um membro de uma comunidade se exilar não era tão incomum antes dessa data:
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles
que uma vingança, um crime, um homicídio, às vezes acidental, obrigaram a deixar
a família e a cidade e a procurar o refúgio da hospitalidade às vezes para sempre.
Pois quando o fugitivo culpado é apenas um bastardo, ou mesmo um simples filho
segundo, raras são as famílias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma
composição para recuperar um membro que, em regra geral, não é senão um encargo
suplementar para o patrimônio familiar (MIREAUX, s/d, p. 255).
Na Atenas Clássica, a prática do ostracismo vem reforçar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos: os cidadãos atenienses escreviam em um
pedaço de cerâmica, óstrakon, o nome de quem deveria ser exilado, por ser perigoso à ordem
democrática. Teucro, em Helena, representa alguém indesejado, o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza. Ser privado de sua pólis era o equivalente a
estar morto (HALL, 1997, p. 97).
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu, não? Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu, objeto que definirá o destino de Penélope no palácio de Ítaca? Justamente: seu arco
está em casa; Odisseu não o utiliza na guerra. Aqui, o arco tem uma função outra, a qual não
se perdera através do tempo: caça e esporte, passatempos comuns da aristocracia. Desse
modo, a maioria do contingente de arquearia é oriundo do lado troiano da guerra.
Os arqueiros não lutam face a face: atiram de longe suas setas. O seu comportamento
na Ilíada é bastante peculiar: eles compartilham de uma comunicação não-verbal e verbal
bastante parecida: escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo, V, vv.
100-106; XIII, vv. 593-597; vv. 712-718). Além disso, fugir e sentir medo é bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo, III, vv. 33-37; XII, vv. 712-718).
88
Esse comportamento não é adequado dentro do código de conduta guerreira, o que torna o
grupo dos arqueiros, de certa forma, marginalizado no campo de batalha, pertencendo a uma
categoria hierárquica inferior à daqueles que usam a lança ou a espada na luta.
Páris aparece na Ilíada pela primeira vez no Canto III: os dois exércitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III, vv. 15-20), quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo. Esse tipo de combate é o que mais acontece nessa
epopeia. Mesmo numa batalha coletiva, em que todo o exército está lutando, são batalhas
singulares que ocorrem: sabemos o nome de quem mata e de quem morre.
Por isso que não podemos dizer que há a valorização somente de um em detrimento do
outro: ambos – morto e assassino – são relembrados. Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennó
Assunção se debruçaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte, utilizando as
mesmas passagens da Ilíada. As suas noções resumem-se nos diagramas abaixo:
No primeiro diagrama, vemos a visão de Vernant: àqueles que morrem em batalha, é
implicada uma série de características que os tornam áristoi (os melhores). É o fato de morrer
em batalha que lhe dá esse estatuto. Para Rennó (segundo diagrama), não é a sua morte que
lhe implica a qualidade de áristos, mas a morte dos outros; matando em batalha que se
consegue angariar para si essas séries de características, configurando-se, pois, em áristoi.
Quando esses guerreiros implacáveis, esses áristoi, morrem é que se dá a bela morte, pois foi
a morte de pessoas honoráveis. Cremos que tanto Vernant quanto Rennó não são visões
díspares, mas complementares acerca da bela morte. Tanto uma concepção quanto outra está
presente na Ilíada: Homero “equilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o páthos
(sofrimento) dos assassinados” (SCHEIN, 2010, p. 72).
Nesse embate singular contra Menelau, ele se veste antes (vv. 328-339). A descrição é
longa, porque no próprio vestir-se há um processo e uma estrutura formulaica: 1) cnêmides
(“caneleiras”); 2) couraça; 3) espada; 4) escudo; 5) elmo e 6) lança. Aqui, está, basicamente,
89
todos os apetrechos necessários a um guerreiro e os quais estarão presentes na armadura do
hóplita. Isso é interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para nós. Não há, por exemplo, registros arqueológicos de cnêmides no período de
desestruturação palaciana (1100-IX a.C.), como há no Políade Arcaico; mas isso não impede
que elas não fossem feitas naquele período em um material perecível (ZANON, 2004, p.
136). O mesmo acontece com as couraças, mas nada também impede que elas fossem
derretidas para a reutilização do metal (ZANON, 2004, p. 137).
A espada (xíphos) que Páris traz, com cravos de prata, tem correspondente
arqueológico de origem minoica: esse tipo de espada não era muito forte e quebrava, saindo a
lâmina do cabo. Assim, o guerreiro ficava desarmado (ZANON, 2004, p. 139). Embora não
saibamos como é a espada de Menelau (só nos é dito que esse herói se armou do mesmo
modo que Páris), ela se quebra no decorrer da luta singular. Isso mostra que o poeta da Ilíada
possuía um conhecimento da cultura material palaciana. Contudo, esse tipo de espada não
servia para corte (como acontece na epopeia), apenas para perfuração. Espadas que cortam e
perfuram só apareceriam por volta de 1200 a.C. (ZANON, 2004, p. 140).
Esse é mais um exemplo de mistura periódica: a espada corta e perfura, como é de
conhecimento da audiência homérica, mas o aspecto dela é o de uma espada palaciana.
“Homero”, segundo a arqueóloga brasileira Camila Aline Zanon, “juntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia, que somente com o surgimento da Arqueologia é que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas épocas” (2004, p.
146). Isso denota, também, que ele não ignorava as práticas bélicas, o que nos ajuda a
compreender mais a representação de Páris. Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraça que Páris veste não é sua: é de Licáone, seu irmão. Nosso herói não possui sua
armadura completa, corroborando a sua habilidade como arqueiro: esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras, não das pesadas. Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa, pesada, para poder exercer sua função na guerra: perseguir o inimigo. Eles
geralmente eram pessoas de menor condição financeira, que não podiam arcar com um
armamento completo, ou, até mesmo, mercenários estrangeiros. Eram fundibulários, peltastas,
arqueiros: essas armas são muito mais baratas.
As batalhas singulares seguem uma ordem também: primeiro, há o tiro de lanças; só a
partir daí que o embate corpo a corpo, com espadas, se desenrola (III, vv. 346-360). Aqui, o
tiro de Páris não fere nem mesmo a armadura de Menelau, enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn, sua túnica por baixo da armadura. Páris se encurva, impedindo que algo
90
pior lhe aconteça. A luta continua e Menelau passa a atacar Páris com a espada, que se
quebra. Issonão é atribuída à sua fragilidade, mas a um desígnio dos deuses. Contudo, como
vimos, era passível de isso acontecer.
Afrodite, vendo a desvantagem desse herói, o retira do campo de batalha, colocando-o
no tálamo, à espera de Helena. Não fosse a intervenção da deusa, Menelau teria alcançado
alto kŷdos: ele é o valor que os deuses atribuem ao homem. Nas palavras da filósofa argentina
María Cecilia Colombani, “se kûdos [sic] descende dos deuses, kléos ascende até eles”
(DETIENNECOLOMBANI, 2005, p. 52). Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um “poder especial conferido por um deus que faz um herói invencível” (KURK
apud LUNT, 2010, p. 64). Se um homem não demonstra ser digno desse valor, ele morre
áphantos (invisível) e nṓnymnos (sem nome, sem glória).
No Canto VI (vv. 521-525), Heitor, ao ver nosso herói, afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimáō) seus “trabalhos na guerra” (érgon mákhēs), mas que não
quer os exercer, gerando aískhos (vergonha). Esse verbo (atimáō) é composto de duas partes:
o prefixo de negação a- e o verbo timáō (valorizar), que dá origem à palavra timḗ, uma das
noções mais caras ao guerreiro: ela é o valor de uma pessoa. Para um guerreiro, o campo de
batalha é o locus privilegiado de demonstração desse valor, de sua honra. Desse modo, como
vimos, é na Ilíada, mais do que na Odisseia, que os heróis têm a sua timḗ posta a prova.
Richard B. Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Grécia antiga:
No coração do sistema de valores dos heróis de Homero está a honra, τιµή, expressa
pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangíveis – tesouros,
presentes, mulheres, um lugar honorável no banquete. Em tempo de guerra é
inevitável que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha, habilidade
como um líder e um lutador. Outras qualidades são também admiradas – habilidade
como orador, piedade, bom senso e conselho, lealdade, hospitalidade, gentileza, mas
essas são secundárias e a última poderia de fato estar sem lugar no combate
(RUTHERFORD, 1996, p. 40).
Segundo Redfield, a timḗ é a medida de um homem em relação ao outro, implicando
numa comparação de um indivíduo com outro. Isso só é possível se esses homens estão
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das ações45, ou seja, na qual se
verifique uma união do que entendemos hoje como vida privada e vida pública. O valor de um
45
A sociedade grega é uma sociedade agonística. Esse termo não existe na língua portuguesa: é um adjetivo
derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimológica é a palavra ágon (competição). Foi
utilizado para caracterizar a sociedade helênica no que diz respeito à noção de competição: o indivíduo está
sempre sob o olhar do público, sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos
(vergonhosos)
91
homem se lhe era atribuído não por ele mesmo, mas por outros homens. Esse reconhecimento
é o que configura a kléos, a glória (ou reputação)46. Esta é a glória dada pelos homens àqueles
que se destacam. Enquanto a vida tem um fim, a kléos é imortal, pois ela se dá através da
rememoração desses mortos grandiosos, seja através da oralidade – o canto do aedo ou a
narração de mitos47 –, seja através da construção de túmulos. Na Ilíada, uma passagem chama
atenção para isso; trata-se de uma fala de Heitor (VII, vv. 81-91).
É no Canto VII também (v. 516) que Páris recebe uma designação interessante, hyiòs
Priámoio. Ann Suter chama atenção para ela, pois está numa passagem que “implica numa
total reversão da caracterização, de covarde para herói, de mulherengo [womanizer] para
guerreiro” (1984, p. 71). Páris, como veremos, depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge, retornando, depois, para um combate singular. Afrodite
ainda o retira da guerra e ele só volta a ela no Canto VII. Justamente aqui, no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno, tanto no plano semântico quanto no linguístico ocorre o
turning point de Páris.
No Canto VII, também, Páris mata seu primeiro adversário na Ilíada (vv. 8-10). Ele é
Menéstio, um korynḗtēs, guerreiro que porta maça, uma espécie de porrete; ou seja, não
utiliza as armas convencionais de guerra homérica (espada ou lança). Ele também faz parte
das tropas ligeiras do exército aqueu, assim como Páris, que é arqueiro do lado troiano. Há,
portanto, uma equiparidade na luta: o toxótēs lutando contra o korynḗtēs. No Canto seguinte,
No Canto VIII, Páris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro: ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII, vv. 80-84).
Páris também retorna à ação no Canto XI. É nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Páris mais se mostra um guerreiro ativo, utilizando sua arma principal: o arco e flecha.
Ele fere Macáone, afastando-o da luta, e depois Eurípilo, que estava retirando a armadura de
Apisáone, morto em batalha (XI, vv.504-509; vv. 581-584). Outro alvo seu é Diomedes (XI,
vv. 369-395). Nosso herói sai de um esconderijo (lókhos) e jacta-se. A fórmula utilizada é
“eukhómenos épos ēúda”, típica dessas situações de vanglória (MARTIN, 1989, p. 29). Esse é
46
“Para os gregos antigos”, segundo David Lunt, “a imortalidade heroica consistia em dois componentes, glória
e fama (kléos) e honras cultuais (timḗ)” (LUNT, 2010, p. 83). O culto ao herói não é mostrado na Ilíada; a
arqueologia já mostrou que ele já existia na época de Homero (JONES, 2010, p 14). A explicação de Seth L.
Schein para o aedo da Ilíada e da Odisseia exclui-lo estaria no caráter pan-helênico das obras: “[...] a religião
olimpiana de Homero é pan-helênica. [...] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na
poesia uma unidade religiosa que não existia historicamente” (SCHEIN, 2010, p. 49). Christopher P. Jones já
afirma o contrário: Homero influenciou o culto aos heróis (JONES, 2010, p. 14).
47
David Lunt, ao mostrar a etimologia da palavra kléos, mostra também que ela tem uma estreita ligação com
essa cultura oral: klýein é ouvir. Assim, a “kléos só pode ser possuída se alguém a proclama e alguém a escuta”
(LUNT, 2010, p. 88).
92
o comportamento típico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereça muitos insultos.
A qualidade de Páris como arqueiro (toxótēs) é desprezada: “arco e flecha, embora praticado
por certos indivíduos como Páris e Teucro, é o mais longe possível marginalizada, e o termo
‘arqueiro’ pode ser até mesmo usado como um insulto” (RUTHERFORD, 1996, p. 38).
Páris segue sua participação em batalha, liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII, v. 93). Eneias, herói troiano de quem já falamos em nossa introdução, chama ao
seu auxílio Páris e outros guerreiros (XIII, vv. 489-495). Ainda nesse Canto, Páris mata outro
grego, o coríntio Euquénor, estimulado pela perda de um amigo, Harpalião (XIII, vv. 660663; 671-672). Esta é a única vez em que um arco mata um aqueu. Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco, apenas Teucro, arqueiro aqueu, mata com o arco. É
interessante perceber que o único arqueiro em atividade do lado aqueu se chama “Troiano”:
“Teucro” é outra denominação para o troiano. Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
típica desse exército. Geralmente, o arco apenas fere, causando, na maioria das vezes, uma
reprimenda daquele que é atingido àquele que atinge, como é o caso de Diomedes e Páris (e
ainda de Diomedes e Pândaro).
No Canto XV, Páris atinge por trás [ópisthe] Deíoco, quando este se retirava da luta
(XV, vv. 341-342). Esta é sua última ação em batalha: a partir daí, ele só é mencionado. Aqui,
em seu último ato bélico, nosso herói faz algo que não é bem visto. Afinal, o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro. Matar ou ferir pelas costas é
desonroso: você não deu oportunidade da pessoa se defender, nem dela ver quem a matou.
Aqui aparece uma outra faceta da caracterização do guerreiro Páris, a qual parece ser
exclusiva a ele, mas que é mais comum em batalha do que poderíamos imaginar. Em várias
passagens, Páris é mostrado sentindo medo. Ele foge do embate singular quando vê que
Menelau de fato lutaria com ele (III, vv. 21-37). Sua fuga é inadmissível: ele causou a guerra.
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e, ao se deparar com Menelau, recuar de medo,
mexe mais com os nervos de Heitor do que o próprio fato de ele simplesmente fugir. O
aristocrata, que é um guerreiro, deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga é condenável.
Ainda no Canto III (vv. 39-45), Heitor ressalta que Páris tem todas as qualidades
fenotípicas necessárias aos kaloì kagathoí, mas que seu comportamento não estava
condizendo com o de um. Carece-lhe força (bíē phresìn) e coragem (alkḗ). A alkḗ é o traço
distintivo do guerreiro, junto com a andreía, a coragem varonil, cara ao gênero masculino.
Cremos que ela é o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situações-problema; é a justa medida entre insegurança e convicção exacerbada. Ela é uma
93
característica intrínseca do ser humano, mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indivíduo consoante três aspectos: a) predisposição no caráter, na índole do mesmo; b)
incitação por parte de outra pessoa ou c) motivação por parte de um outro sentimento.
No caso de Páris, a coragem se manifesta pela incitação de outrem, bem como pelo
medo de perder Helena: veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta, mas se nega a devolver a consorte. Quando passamos por essas situaçõesproblema, podemos encará-las imediatamente, ou podemos recuar diante delas, a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar, como é o caso de Páris
também.
O ato corajoso desse herói é mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha. O valor de um kalòs kagathós consiste na sua
coragem. O valente é sempre o nobre, o homem de estatuto social elevado. A vitória é para
ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida. Do mesmo modo se dá com os atletas:
a vitória é essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honorífico semelhante ao
de um herói, que, ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta, à medida que é conduzido
“pelo medo da vergonha” (BALOT, 2004, p. 416)48. Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura, não pela sua fraqueza.
Contudo, por mais que o herói deva ser intrépido, isso não implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo: ele é intrínseco e não é incomum um guerreiro
amedrontar-se na Ilíada. Até mesmo Aquiles, o melhor dos aqueus, sente medo. Nicole
Loraux mostra que “na epopeia, não há guerreiro que não tenha tremido alguma vez [...]. Não
existe o grande guerreiro que não tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror.
Como se o medo fosse a prova que qualifica o herói” (LORAUX, 2003, p. 97). Isso se dá
porque eles são humanos: o homem é passível de sentir medo, mas isso não o qualifica como
um completo covarde. Pelo contrário: “O medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensão do perigo que ele enfrente, e que o engrandece” (FONTES, 2001, p. 103).
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indivíduo. Este é corajoso à
medida que a coragem sobrepuja o medo; é covarde quando o medo sobrepuja a coragem. Nas
palavras de Simon Blackburn, “a coragem não é a ausência de medo (...), mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medo” (BLACKBURN, 1997, p. 80). Assim, é incorreto afirmar
que o medo é diametralmente oposto à coragem, bem como que um herói é totalmente
48
Ryan Balot ainda afirma que a coragem é “a qualidade ou disposição do personagem que faz um indivíduo
superar o medo a fim de atingir um objetivo pré-concebido” (BALOT, 2004, p. 407).
94
destemido. Ser covarde não é sinônimo de sentir medo: a covardia implica, também, na recusa
total à batalha e o não retorno numa situação de fuga.
Contudo, é fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele está associado a outras características devalorativas. Por isso que
Páris será sempre reprimido, como veremos, mas sem deixar, contudo, de ser um exemplo:
além das qualidades aristocráticas que ele porta, quando ele recua em batalha, ele retorna,
matando guerreiros inimigos, liderando colunas, incitando os companheiros à luta. Destarte,
isso não significa uma contradição da Ilíada, como afirmou Moses Finley (FINLEY, 1982, p.
43)49, mas um aspecto paidêutico: como ser humano, tem-se o direito de sentir medo, de
recuar. Ter medo também é comum, como vimos; recuar, entretanto, é uma atitude desonrosa.
Por isso que Páris retorna à batalha. Contudo, ele o faz depois de a) ser motivo de graça
[khárma] para os inimigos, que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena: ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude é internalizada como sendo algo indigno de um
anêr. Aqui, a némesis de Heitor desencadeou aidṓs em Páris. Nessa censura, Heitor afirma
que este carece de bíē (força) e alkḗ (coragem). Contudo, no Canto VI, o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Páris é corajoso (álkimos) e tem valor (timḗ).
O código de conduta do guerreiro, seja ele de qual lado da batalha for, é o mesmo,
bem como a representação dele. Tanto aqueus quanto troianos estão sob esse mesmo código e
são representados da mesma maneira, com as mesmas vestimentas em batalha: armam-se do
mesmo jeito, como já pudemos ver, com os mesmos tipos de metal, com as mesmas armas.
Isso acontece também na imagética, como nos mostra François Lissarague: grego e bárbaro é
representado da mesma maneira (LISSARAGUE, 2002, p. 113-114). O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu é justamente o tipo de arma valorizada, não o valor do guerreiro,
bem como se enfatizará que mesmo o melhor guerreiro troiano não é páreo para o melhor
guerreiro aqueu (Ilíada XXII, v. 158).
O problema de Páris é a demora em entrar no campo de batalha, esquivando-se o
quanto for possível (“Mas, voluntário te escusas, não queres lutar”). Mas nunca ele a
abandona completamente. Essa lição é de extrema importância para os futuros politḗs,
guerreiros da pólis, que aprendem a Ilíada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu próprio ideal e têm como máxima a sentença “hamarteîn eikòs anthrṓpous”, errar
é humano (EURÍPIDES. Hipólito, v. 615).
49
“Muitas vezes o próprio material apresentava contradições internas (...). [Páris] (...) aparece simultaneamente
como um desprezível covarde e como um verdadeiro herói” (FINLEY, 1982, p. 43).
95
Destarte, a Ilíada, assim como a Odisseia, configura-se num discurso de legitimação
da etnicidade helênica, além de um discurso paidêutico. Aliás, é através da paideía que essa
ideologia será passada, de geração em geração, até chegar ao ponto de formar os kaloì
kagathoí, aqueles bem-nascidos que virão a governar a pólis e a vencer os jogos helênicos
como atletas. Até mesmo durante a Idade Média essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas, segundo Carlier, pelo seu caráter de texto
religioso. Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homéricas poderia ser
um convite ao questionamento da Bíblia, que também é um texto religioso e de função
modelar (no entanto, inserido em uma outra ética, diferente da sociedade de Homero),
(CARLIER, 2008, p. 13).
Alguns autores, como Robert Aubreton e Richard B. Rutherford, defendem que a
Ilíada demonstra preferência pelos troianos. Os argumentos giram em torno de três questões,
praticamente: a) a representação familiar do lado troiano e de toda a “sensibilidade” daí
oriunda (como a cena entre Heitor e Andrômaca, ou de Hécuba e Heitor); b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Ilíada terminar com os funerais de Heitor,
configurando-o, pois, como o grande herói dessa epopeia.
Há problemas nesses argumentos: a “cidade” grega é improvisada, enquanto a troiana
é a “cidade” de fato (MACKIE, 1996, p. 1). Isso se dá porque os gregos são os invasores e os
troianos são os invadidos. As esposas, pais, filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palácios: quem vai à guerra é o anḗr. Assim, é inviável entre os gregos cenas relativas ao
oîkos, ao domicílio.
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego: Aquiles pede
para sua mãe, a deusa Tétis, que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas, a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta.
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Ilíada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a própria narrativa dessa epopeia diz respeito à ira desse herói e das
suas consequências.
O funeral de Heitor encerra a Ilíada; o de Aquiles, contudo, nem aparece nela. Seria
um indicativo de que aquele herói é mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema. O problema é que a Ilíada não era cantada num dia inteiro para o
público: primeiro porque sua récita não demoraria só um dia, visto que ela tem 15.693 versos;
segundo, porque esse poema era cantado em episódios nas competições e nos banquetes.
Assim, podia se cantar só o episódio da luta entre Menelau e Páris, ou só o episódio em que
96
Helena descreve os guerreiros aqueus, ou só o episódio em que Páris atira em Diomedes e ele
o rechaça, e assim por diante. Nem mesmo a divisão em Cantos, como conhecemos, havia
sido feita: somente os sábios alexandrinos fariam isso, muitos séculos depois da cristalização
do poema na escrita. Desse modo, não podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da récita: era o grande fim desse episódio. Não há o famigerado the end cinematográfico
na Ilíada.
Também existem as considerações acerca da bela morte por Teodoro Rennó
Assunção, que exploramos em nosso trabalho. O que importa é o que o herói faz em vida: sua
morte é o fim de suas façanhas, incluindo o matar. Por isso que Aquiles não precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado. O que corrobora o valor de Aquiles na Ilíada pode ser
justamente o funeral de Heitor: assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII, vv. 81-91), Aquiles o será pela morte de Heitor. Comparando
hipoteticamente, se Aquiles viesse a morrer na Ilíada, o valor de Páris, seu assassino, seria
corroborado. E Homero não queria mostrar isso: Páris, embora exemplo, ainda é um
transgressor das leis da xénia, valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterrâneo
(VLASSOPOULOS, 2013, p. 90), e causador de uma guerra que fez perecer uma geração de
hemítheoi, semideuses (os heróis).
Em virtude do apresentado nesse capítulo, pudemos ver que os heróis, embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria, não se constituem de uma massa indistinta,
homogeneamente constituída: cada herói tem a sua peculiaridade. A de Agamêmnon é a sua
liderança, a de Odisseu sua métis, a de Ájax sua força física e a de Páris... sua beleza. Homero
consegue construir personagens diferentes, que não agem da mesma maneira, embora sejam
arautos de um mesmo código de conduta.
Entretanto, embora sejam regidos por esse ideal de conduta, os troianos são diferentes
dos aqueus: o uso que eles fazem desse código ético é diferenciado às vezes. Páris mesmo é
um transgressor e, embora tente consertar seus erros, continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados. Ele ainda está em estado de átē. Por isso, seu valor
bélico é diminuído: como destacar alguém que causou uma guerra? John A. Scott vê isso
como uma inovação de Homero: Páris seria o principal guerreiro troiano, mas, como
desrespeitou a xénia, causando a Guerra de Troia, perdeu seu posto para Heitor, que seria um
personagem inventado para receber todas as características as quais teriam pertencido ao
próprio Páris na tradição mítica (SCOTT, 1913).
97
Essa ideia, contudo, não possui argumentação suficiente para comprovação, até
mesmo porque o nome de Heitor já constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK, 1970,
p. 98). Não podemos ir além da documentação e afirmar que esse ou aquele personagem é
uma criação exclusiva de Homero, visto que a Ilíada e a Odisseia são o resultado de inúmeras
tradições orais posteriores à composição das obras. Assim como Eurípides reelabora os mitos
da tradição épica em suas tragédias, Homero também o faz em suas epopeias: “os materiais
que o poeta utiliza para recordar são versáteis, móveis, feitos de fórmulas, de episódios e de
um repertório de informações variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
às conveniências poemáticas e melódicas” (NUÑEZ, 2011, p. 239).
É por essa razão que os poemas homéricos não foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruçamos, sendo “obras musicais [...] [que] formam um todo
orgânico no qual poesia e música se interpenetram e intercambiam significados” (NUÑEZ,
2011, p. 239-240 – grifos nossos). Do mesmo modo, Eurípides ainda está longe de ser a
última etapa desse processo: a poesia épica e trágica influencia nosso próprio modo de
escrever, permanecendo ainda viva na nossa memória social. E, assim como a poesia, o herói
é, ele mesmo, um todo orgânico (LUKÁCS, 2000, p. 66) no que diz respeito ao seu código de
conduta, mas particularizado como indivíduo, pois um herói nunca é igual a outro herói.
Desse modo, a representação de Páris não é, em hipótese alguma, a representação de
um anti-herói. Primeiramente, porque é anacrônico denomina-lo desse modo: Massaud
Moisés nos mostra em seu Dicionário de Termos Literários que a ideia de anti-herói é
intrínseca ao romance do século XVIII. Para ele, “o anti-herói não se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras, ou comete delitos e crimes, mas a que possui
debilidade ou indiferenciação de caráter, a ponto de assemelhar-se a toda gente” (MOISÉS,
1999, p. 29). Além disso, “o herói eleva e amplifica as ações que pratica, o anti-herói as
minimiza ou rebaixa” (MOISÉS, 1999, p. 29).
Os heróis de Homero e de Eurípides não são comuns a todas as pessoas: eles
representam um passado mítico anterior àqueles que ouvem as epopeias e assistem às
representações teatrais. São “imagens limites” (ROMILLY, 2013, p. 31), que representam o
extremo das ações e emoções, visto que são paidêuticos. O herói, como vimos, é um
hemitheós, alguém acima do homem comum e inferior aos deuses, pois é mortal, como nós,
como o público dos poetas, possuindo atitudes semelhantes (visto que são humanos também),
mas, definitivamente, com um estatuto diferenciado dos brotoí comuns. Páris, na tragédia,
quando personagem, ainda exerce esse papel: ele não se torna “menos herói” por ser um
98
doúlos, um boukólos, visto que essas histórias acerca de Troia pertencem também à mitologia
grega e a ambientação em Troia também é uma estratégia para provocar catarse: as vítimas da
Guerra de Troia estão sendo sempre comparadas às vítimas da própria Guerra do Peloponeso.
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helênica, definindo suas fronteiras étnicas:
Mesmo com a pluralidade étnica da tragédia e o seu interesse em heróis e
comunidades espalhadas por distâncias vastas pelo mundo conhecido, o foco
ateniense, o “atenocentrismo” da tragédia, é manifestado de muitos jeitos. [...]
mesmo peças com nenhum foco óbvio em Atenas incluem frequentemente um aition
[sic], uma explicação pelo mito, das origens dos costumes atenienses: [...] os
tragediógrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para
autodefinição étnica; o mundo bárbaro frequentemente funciona na imaginação
trágica como o lar dos vícios (por exemplo, o despotismo persa, a falta de lei dos
trácios, a efeminação e a covardice orientais) concebidas como correlativos às
virtudes democráticas atenienses idealizadas: liberdade de fala, equanimidade diante
da lei e coragem masculina (HALL, 1997, p. 100).
O bárbaro é a matéria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras étnicas: é
observando-o que eles constroem a si mesmos. Claude Mossé corrobora esse aspecto, ao
afirmar que “essa alteridade do bárbaro, entretanto, não é necessariamente negativa; é apenas
o avesso da civilização encarnada pelo grego” (MOSSÉ, 2004, p. 55). Entretanto, esse
processo de classificação não é exclusivo ao século V a.C.: já em Homero podemos ver um
esforço de definição dessas fronteiras, quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Páris) para desenvolver uma caracterização que implica numa diferenciação pautada ao
mesmo tempo na valorização do inimigo, o qual não pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitória, e na marcação de alteridades em relação a ele.
99
CONCLUSÃO
“Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber”.
(Ítaca – Konstantinos Kaváfis)50
Em virtude do apresentado, pudemos compreender que a análise da Ilíada, da
Odisseia e das tragédias do ciclo troiano de Eurípides vai além da simples tentativa de
comprovação de feitos heroicos, da existência de uma guerra, da existência do próprio aedo e
da correlação simplista com eventos da “realidade histórica”. É mais profícuo buscar a
compreensão das estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas e institucionais
da época em que os poemas foram compostos, traçando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras étnicas de forma dinâmica.
Além disso, a rememoração dos heróis e de suas façanhas é importante para a
configuração de todo um código de conduta helênico, corroborando a ideia de uma função
paidêutica das obras homéricas e trágicas. No tocante à historicidade desses heróis, ela está
ligada, por um lado, ao papel que suas personalidades desempenham na vida do público
50
Tradução de José Paulo Paes. Disponível em http://www.org2.com.br/kavafis.htm.
100
helênico – que os rememoram e os cultuam – e, por outro, à ligação inextricável entre o autor,
que compôs os textos, e o seu contexto histórico, fazendo com que a trama e os heróis sejam
constituídos com base na própria sociedade na qual eles vivem e conhecem.
Lembremo-nos de que a Ilíada, por ter sido composta posteriormente, diz respeito
mais as características deste período do que do período no qual se travou a guerra de Troia, a
época palaciana. No contexto da pólis, as características caras à personalidade de Páris não
serão preteridas na paideía. Pelo contrário: Aristóteles, no século IV, dedica um espaço em
sua Política a considerações sobre o ensino da música e da ginástica, a qual objetiva, dentre
outras coisas, a manter o equilíbrio físico do cidadão.
No tocante ao nosso objeto principal, Páris, concluímos que ele, como personagem da
Ilíada, desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia. Isso se dá porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um herói, ou seja, o protagonista desses poemas
de exaltação das façanhas desses seres extraordinários, que viveram numa época precedente à
época dos simples humanos, que vivem à sombra desse passado glorioso.
Devemos ter em mente que Páris, mesmo não demonstrando muita destreza na guerra,
não deixa de ser um herói: ele possui essas características intrínsecas a eles. Heitor, ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III, irá reconhecer que ele possui coragem, no Canto
VI, como já vimos em uma citação anterior. Quando Páris comete um ato indecoroso, procura
corrigi-lo, a fim de reaver a sua honra; assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna à guerra no Canto VI. Páris também tem a sua bela morte, seja falecendo
no campo de batalha, seja matando.
A Ilíada, como influenciadora do discurso trágico, mostra um herói humano e,
portanto, em sua singularidade e em sua relação com a sociedade na qual ele está inserido.
Essa sociedade o reconhece como um áristos, um melhor, aquele que deve liderar; contudo,
para isso, ele deve demonstrar, pelas suas atitudes, que é digno de seu posto: deve zelar para
que sua timḗ, sua honra, não seja manchada através de ações que ponham em xeque sua aretḗ,
sua virtude, causando a némesis da sociedade e seu próprio aidṓs.
Um herói pode fraquejar, tremer, sentir medo, mas este não deve sobrepujar o ímpeto
de ficar e lutar. Quando ocorre a fuga, o retrocesso, este deve ser corrigido, a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu não seja alvo da némesis dos seus ísoi. É isso o que
acontece com Páris, que é muito mais do que uma simples “contradição da epopeia”: ora ele
se mostra corajoso, ora ele se mostra temente, pois é a representação de um ser humano. Ele
101
recua e retorna à batalha, configurando-se num exemplo de como se agir, mas, de fato, ele é
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta.
Isso se dá devido à problemática da alteridade, da qual tratamos no capítulo sobre
Homero: Páris será representado como um modelo de conduta, mas também como um
estereótipo do Outro. Inúmeros heróis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fuga/retorno, mas um herói troiano é escolhido. Aliás, a maioria dos heróis que fogem na
Ilíada é troiana. O caso de Páris se configura num problema de alteridade interna, tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas, inclusive,
universais (no caso a xénia, ou seja, a hospitalidade).
Este modo de caracterizar Páris, ao longo do tempo, vai cada vez mais sobrepujar-se à
sua representação como um kalòs kagathós helênico e, gradativamente, esse personagem
deixará de ser o theoeidḗs para ser o bárbaros, sobretudo na tragédia. Mas essa questão não
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Ilíada, um poema
composto cerca de três séculos antes desse gênero teatral ser cristalizado culturalmente nas
póleis. Em Eurípides, o herói não perde uma dimensão paidêutica, mas está mais ligado à
ideia do erro: o herói erra e aprendemos com esses erros. Páris não deixa de ser um herói, pois
pertence à tradição mítica, mas se torna na tragédia, de uma vez por todas, o bárbaro.
Tivemos por objetivo, com essa dissertação, analisar a representação de Páris na épica
homérica e nas tragédias de Eurípides, perscrutando as mudanças sociais e culturais que estão
presentes nos textos literários. Defendemos que a Ilíada já traz a ideia de
identidade/alteridade helênica, mostrando um discurso étnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciação influencia na construção do
bárbaro na poesia trágica. Também mostramos como a epopeia e a tragédia pertencem a um
mesmo espaço discursivo, tornando profícua a nossa análise e utilizando a Análise de
Discurso francesa para tal.
Acreditamos que essa diferenciação entre gregos e troianos, em Homero, não diz
respeito a uma diferenciação entre o grego e o bárbaro, ou entre o grego e o estrangeiro, mas
entre dois grupos étnicos: um que está no Peloponeso e outro que se encontra na Ásia Menor,
reapropriando o código de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas nãohelênicas. Mas, historicamente, são os troianos gregos?
Não podemos afirmar com certeza absoluta. Primeiramente porque as datas são
fluidas: convenciona-se, através de estudos arqueológicos e filológicos que Homero compõe
no século VIII a.C. Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no século XIII a.C.
102
Além disso, lidamos com um problema caro à História Antiga: documentação. Ela é escassa e
nas escavações poucos materiais escritos foram encontrados. Achou-se um selo com
hieróglifos luvitas no sítio arqueológico de Hissarlik (antiga Troia, hoje na Turquia), o qual
data provavelmente do segundo milênio antes de Cristo; entretanto, como podemos ter certeza
de que ele foi produzido lá? Sendo um nó comercial importante, vizinha do Helesponto, o que
garante que aquele selo não foi parar em Troia através de comerciantes?
Segundo o hititologista holandês Alwin Kloekhorst, a hipótese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que é mais provável que a língua
falada em Troia nessa época fosse o lêmnio, oriundo da região de Lemnos e que deu origem
ao etrusco. Ele também mostra que Troia, na época da guerra, provavelmente não era grega:
Trūiša (uma região de Wilǔsa, que seria Troia), estava sob domínio hitita, embora haja
evidências de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domínio da região na
época. Contudo, a partir do século VIII a.C. (quando Homero compõe seus poemas e os
gregos entram em processo de “colonização”), provavelmente havia “Greek-speakers” na
região onde fora Troia (KLOEKHORST, 2013, p. 48). Ela era parte das apoikíai (“colônias”
gregas)51. O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst, afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 a.C., quando foi povoada por colonos gregos, e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS, 2008, p. 28).
Desse modo, o mundo das apoikíai seria diretamente influenciado pela cultura e língua
gregas. Vlassopoulos coloca que essas “colônias” eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos, bem como, paradoxalmente, ajudaram a consolidar um
modelo forte do que é ser grego:
o processo de criar apoikíai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar
abstrato e canônico: uma comunidade com um corpo de cidadãos divididos entre
tribos, governado por magistrados, conselhos e assembleia, equipado com um tipo
particular de espaço público (agorá) e adornado com um tipo particular de templo e
edifício público (teatro, casa concelhia, ginásio) (VLASSOPOULOS, 2013, p. 277).
Os troianos são um grupo étnico dentro da comunidade helênica no discurso de Homero,
tendo em Páris a síntese de alteridade, visto que ele desrespeita códigos helênicos. Muitas das
características desse personagem são reapropriados por Eurípides para caracterizar o bárbaro
(inclusive ele mesmo, que já será denominado bárbaros em suas tragédias). Dentre esses
51
Kostas Vlassopoulos explica que não é apropriado atribuir o conceito de “colônia” aos movimentos
expansionistas gregos do século VIII, pois a “colonização” grega é completamente diferente da colonização
moderna (2013, p. 103).
103
pontos de diferenciação estão a predominância do arco como arma de guerra, a capacidade de
se submeter o exército inimigo (como pudemos ver com a análise dos símiles de animais, mas
sem deixar de valorizar esse inimigo, para a vitória ser gloriosa), o excesso de ouro, a
expressão verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo, o esconder-se, o jactar-se), as
vestimentas, o excesso de medo, a lida com as artes musicais, a luxúria, a efeminação (do
aliado cário), a súplica pela vida e a procrastinação para entrar em batalha.
Eurípides, por sua vez, explora ao máximo esses elementos e os troianos já se encontram
completamente frigianizados, ligados à Ásia e sendo mostrado como bárbaros. Os gregos que
agem como bárbaros são comparados aos troianos, bem como eles estão sempre sendo
designados desse modo. Assim, também, a própria fronteira do que é bárbaro e do que é grego
encontra-se cada vez mais turva: há uma crise nessa definição e o grego, em Eurípides, pode
barbarizar-se facilmente, visto que está em meio a uma guerra.
A produção historiográfica acerca da etnicidade helênica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussão. Esperamos, ademais,
que ela contribua para as análises acerca dos poemas homéricos e das tragédias de Eurípides,
que têm sido cada vez menos comuns. Com essa dissertação, objetivamos, também, fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temática. Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega, porque ela foi o norte da sociedade helênica e reverbera até os dias
de hoje, seja em produções fílmicas ou na literatura.
A funcionalidade paidêutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento,
bem como a própria importância desse legado cultural oriundo dos gregos, o qual também se
faz sentir até hoje no modo de pensar, de construir, de escrever. Pudemos ver, com a análise
de Páris, como o autor da Ilíada trabalha com a ideia do herói e como, através de sua
representação, ele define as fronteiras étnicas que perpassam essa paideía a qual está presente
também nas tragédias de Eurípides, que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciação através da construção dos personagens, sobretudo de Páris, o bárbaro.
Outrora, a Grécia possuía uma grande extensão territorial e sua importância política,
econômica e cultural era, grosso modo e com fins assimilativos, tão grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revolução Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial. Hoje, o pequeno país europeu, que aparece nos jornais diariamente devido a
um período de crise e necessidade, ainda exerce uma influência muito grande no que diz
respeito a esse legado, que permanece de pé. A cultura helênica e o estudo acerca desta ainda
não estão em vistas de entrar em crise.
104
Anexo | TABELA DE TRANSLITERAÇÃO
LETRA GREGA
TRANSLITERAÇÃO
α
a
ᾳ
a
β
b
γ
g
δ
d
ε
e
ζ
z
η
ē
ῆ
ê
ῃ
ē
θ
th
105
ι
i
κ
k
λ
l
µ
m
ν
n
ξ
x
ο
o
π
p
ρ
r
ῥ
rh
σ, ς
s
τ
t
υ
y (entre consoantes), u
(em ditongos)
φ
ph
χ
kh
ψ
ps
ω
ō
ῶ
ô
ῳ
ō
Observação sobre os espíritos: o grego antigo possui uma marcação específica, denominada
espírito. Ele vem sobre todas as vogais, o rô (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que
iniciarem a palavra. O espírito pode ser fraco ou forte; quando ele é fraco (’), a vogal se
pronuncia normalmente e quando ele é forte (‘), a vogal é pronunciada de modo aspirado,
como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r). O rô do início das palavras sempre terá
espírito forte, visto que ele já é aspirado, conforme está na tabela. Quando transliteradas, as
palavras com espírito forte possuem um agá (h) na frente. Assim, por exemplo, a palavra
106
οὐρανός (céu) é transliterada como ouranós; ἁµαρτία (falha), como hamartía; ῥῶ (a letra
grega ρ), como rhô, com o agá entre o erre e a próxima letra.
Observação sobre os conjuntos γγ, γκ e γχ: quando aparecem essas consoantes juntas, o
primeiro gama é transliterado como ene (n), pois ele se nasaliza. Assim, por exemplo, ἀγγελος
(mensageiro) é transliterada como ángelos; ἀναγκαία (necessidade), como anankaía;
ἐγχανδής (amplo), como enkhandḗs.
REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
Documentação Textual
ARISTOTE. Histoire des animaux – livre VIII. Trad. J. Barthélemy Saint-Hilaire. Paris:
Hachette, 1883. Disponível em: http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/aristote_hist
_animaux_08/lecture/default.htm. Acesso em: 28/11/2013.
ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988.
EURÍPIDES. Alexander. In: __________. Fragments: Aegeus – Meleagros. Trad., David
Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2008.
__________.
Andromache.
In: __________. Children of
Heracles,
Hyppolytus,
Andromache and Hecuba. Trad. David Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University
Press, 2002.
__________. Duas tragédias gregas: Hécuba e As Troianas. Trad. Christian Werner. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
__________. Hecuba. In: __________. Children of Heracles, Hyppolytus, Andromache
and Hecuba. Trad. David Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2002.
__________. Helen. In: __________. Helen, Phoenician Women and Orestes. Trad. David
Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2002.
107
__________. Iphigenia at Aulis. In: __________. Bacchae, Iphigenia at Aulis and Rhesus.
Trad. David Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2002.
__________. Las Troyanas. In: __________. Tragedias II: Suplicantes, Heracles, Ion, Las
Troyanas, Electra, Ifigenia entre los Tauros. Trad. J. L. Calvo, Carlos García Gual, L. A. de
Cuenca (revisão de Alberto Bernabé). Madrid: Gredos, 2008.
__________. Orestes. In: __________. Helen, Phoenician Women and Orestes. . Trad.
David Kovacs. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2002.
__________. Orestes. Trad. Augusta Fernanda de Oliveira e Silva. Brasília: Editora UnB,
1999.
HESÍODO. Trabalhos e Dias. Trad. Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
__________. Teogonia. Trad. Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2009.
__________. Ilíada – 2 vols. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: ARX, 2001/2002.
__________. Chants I, II, III et IV de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris: Hachette,
1882.
__________. Chants V, VI, VII et VIII de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris: Hachette,
1882.
__________. Chants IX, X, XI et XII de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris: Hachette,
1882.
__________. Chants XIII, XIV, XV et XVI de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris:
Hachette, 1882.
__________. Chants XVII, XVIII, XIX et XX de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris:
Hachette, 1874.
__________. Chants XXI, XXII, XXIII et XIV de l’Iliade. Trad. M. C. Leprévost. Paris:
Hachette, 1895.
__________. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2009.
__________. Odisseia. Trad. Donaldo Schüller. Porto Alegre: L&PM, 2007.
__________. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2012.
[TUROLDO]. Canção de Rolando. Trad. Ligia Vassallo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1988.
Dicionários e gramáticas
108
AUTENRIETH, G. An Homeric dictionary. Trad. Robert Keep. Disponível em:
http://www23.us.archive.org/stream/homericdictiona00aute/homericdictiona00aute_djvu.txt.
Acesso em: 19/02/2012.
BAILLY, A. Le grand Bailly. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Tradução, Desidério Murcho, et al. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de la langue Grecque: histoire des mots –
tome I. Paris: Éditions Klincksieck, 1968.
CHARAUDEAU, P. ; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo:
Contexto, 2012.
ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1951.
LIDDELL,
H.
G.;
SCOTT,
R.
A
Greek-English
lexicon.
Disponível
em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0057:entry=broto/s1&toc
=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aalphabetic+letter%3D*a. Acesso em: 13/05/2008.
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999.
MOSSÉ, Cl. Dicionário da civilização grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
NAZARI, O. Dialetto omerico: grammatica e vocabolario. Torino: Loescher Editore, 1999.
PHARR, C. Homeric Greek: a book for beginners. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1985.
Bibliografia
ALEXANDRE, M. Representação social: uma genealogia do conceito. Comum, Rio de
Janeiro, v. 10, n. 23, p. 122-138, jul./dez. 2004.
ALTSCHULER, E. L.; CALUDE, A.; MEADE, A.; PAGEL, M. Linguistic evidence supports
date for Homeric epics. Bioessays, Oxford, v. 35, p. 417-420, 2013.
ANDRADE, J. Literatulogia. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.
ANDRADE, M. M. A vida comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
ASSUNÇÃO, T. R. Nota crítica à bela morte vernantiana. Clássica, São Paulo, v. 7/8, p. 5362, 1994/1995.
AUBRETON, R. Introdução a Homero. São Paulo: DIFEL, 1956/1968.
AUGÉ, M. A guerra dos sonhos: exercícios de etnoficção. Campinas: Papirus, 1998.
109
__________. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:
Papirus, 2008.
AUGEL, M. P. Os caminhos da motivação, da metodologia, da elaboração. In: __________.
O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau.
Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 19-48.
BACON, H. H. Barbarians in Greek tragedy. (Dissertation). Pennsylvania: Bryn Mawr
College, 1955.
BALOT, R. Courage in the democratic polis. Classical Quarterly, Cambridge, v. 54, n. 2,
2004, p. 406-423.
BARROS, J. A. Sobre a liberdade teórica (mimeo). In: __________. Teoria da História – vol
1: Princípios e Conceitos Fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2011.
BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Ph.; STREIFF-FENART, J.
Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São
Paulo: Ed. UNESP, 1998.
BASSETT,
S.
E.
Paris-Alexander.
The
Classical
Weekly,
New
York/New
Jersey/Pennsylvania/Delaware/Maryland/Columbia, Classical Association of the Atlantic
States, v. 14, n. 3, p. 19-30, out. 1920. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/4388043.
Acesso em: 20/04/2013.
BATTEGAZZORE, A. M. La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica: riflessioni su
cause ed effetti di una visione etnocentrica. Sandalion, Sassari, v. 18, p. 5-34, 1996.
BENARDETE, S. Achilles and Hector: the Homeric hero. South Bend (Indiana): St.
Augustine’s Press, 2005.
BLOCH, M. Para uma história comparada das sociedades europeias. In: __________.
História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998, p. 119-148.
BUBER, M. Eu e tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1977.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2007.
CARDOSO, C. F. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EDUSC,
2005.
__________; PÉREZ BRIGNOLI, H. O método comparativo na História. In: __________. Os
métodos da História. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 409-419.
CARLIER, P. Homero. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2008.
110
__________. Homeric and Macedonian kinship. In : BROCK, R.; HODKINSON, S. (Eds.).
Alternatives to Athens : varieties of political organization and community in Ancient
Greece. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 259-268.
CARPEAUX, O. M. Eurípides e a tragédia grega. In: EURÍPIDES. Medeia. Trad., Trajano
Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 187-190.
CARTLEDGE, P. “Deep plays”: theatre as process in Greek civic life. In: EASTERLING, P.
E. (Ed.) The Cambridge companion to Greek tragedy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1997, p. 3-35.
CASSIN, B.; LORAUX, N.; PESCHANSKI, C. Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e
seus outros. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
CATHARINA, P. P. G. F. Apresentação. In: __________. Quadros literários fin-de-siècle:
um estudo de Às avessas, de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 17-24.
__________. Campo literário e lutas simbólicas. In: __________. Quadros literários fin-desiècle: um estudo de Às avessas, de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.
40-77.
CERQUEIRA, F. V. A imagem do músico face à suspeita de efeminação e à proximidade
com o submundo da prostituição e dos vícios. Phoînix, Rio de Janeiro, v. 3, p. 125-138, 1997.
__________. Apolo e Mársias: certame ou duelo musical? Abordagem mitológica da
dualidade simbólica entre a lýra e o aulós. Classica, São Paulo, v. 25, p. 61-78.
CHADWICK, J. The decipherment of Linear B. Cambridge: Cambridge University Press,
1970.
CHARTIER, R. História Cultural: entre práticas e representações. Algés: DIFEL, 2002.
CLARKE, M. Entre homens e leões: Imagens do herói na Ilíada (traduzido do inglês por
Leonardo Teixeira de Oliveira, 2006). Greek, Roman and Byzantine Studies, Carolina do
Norte, n. 36, p. 137-159, 1995.
CODEÇO, V. F. S. “Eduquemos o grosseirão!”: a função educativa do teatro na Atenas
Clássica (séculos V e IV a.C.) - um estudo de caso em Eurípides. (Dissertação). Rio de
Janeiro: UFRJ, 2010.
COHEN, A. Introduction. In: __________. Custom and politics in urban Africa: a study of
Hausa Migrants in Yoruba Towns. Berkeley/Los Angeles: University of California Press:
1969, p. 1-28.
COHEN, B. The Non-Greek in Greek art. In: PLANTZOS, Dimitris; SMITH, Tyler Jo. A
companion to Greek art – vol. II. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 456-479.
111
COLOMBANI, M. C. Homero | Ilíada: Una introducción crítica. Buenos Aires: Santiago
Arcos Editor, 2005.
__________. Honor, virtud y subjetividad. Las claves de uma ética del dominio de si.
Phoînix, Rio de Janeiro, n. 10, 2004, p. 200-212.
CROALLY, N. Tragedy’s teaching. In: GREGORY, J. (Ed.). A companion to Greek
tragedy. Oxford: Wiley-Blackwell, 2005, p. 55-70.
DAVIES, A. M. The Greek notion of dialect. In: HARRISON, Th. (Ed.). Greeks and
Barbarians. New York: Routledge, 2002, p. 153-171.
DE JONG, I. Three off-stage characters in Euripides. In: MOSSMAN, J. (Ed.). Euripides.
New York: Oxford University Press, 2011, p. 369-389.
DEBMAR, P. Fifth-century Athenian history and tragedy. In: GREGORY, J. (Ed.). A
companion to Greek tragedy. Oxford: Wiley-Blackwell, 2005, p. 3-22.
DESIDÉRIO, B. C.; LIMBERTI, R. C. A. P. As formas de percepção da alteridade: uma
análise da noção de estrangeiro. Anais do VII Congresso Internacional da Abralin,
Curitiba, p. 611-621, 2011.
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Aparecida: Ideias e Letras, 2001.
__________. Os gregos e nós: Uma Antropologia Comparada da Grécia Antiga. São Paulo:
Edições Loyola, 2008.
DUÉ, C. The captive’s woman’s lament in Greek tragedy. Austin: University of Texas
Press, 2006.
EASTERLING, P. E. Constructing the heroic. In: PELLING, C. (Ed.). Greek tragedy and
the historian. Oxford: Clarendon Press, 1997, p. 21-37.
__________. Form and performance. In: __________. (Org.). The Cambridge companion
to Greek tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 151-.
ELIADE, M. A estrutura dos mitos. In: __________. Mito e realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1972, p. 7-23.
ELIAS, N. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
__________. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
FASANO, G. Z. de. Odisea: discurso y narrativa. Buenos Aires: Edulp, 2004.
FIALHO, M. C. Rituais de cidadania na Grécia Antiga. In: FERREIRA, J. R.; FIALHO, M.
C.; LEÃO, D. F. (Orgs.). Cidadania e paideía na Grécia Antiga. Coimbra: Centro de
Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, p. 112-144.
FINLEY, M. I. O mundo de Ulisses. Lisboa: Presença, 1982.
112
FONTES, J. B. O guerreiro covarde. Phaos, Campinas, n. 1, p. 93-103, 2001.
FRASER, P. M. Greek ethnic terminology. Oxford/New York: Oxford Univesity Press,
2009.
GABBA, E. Homero. In: CRAWFORD, M. (Org.). Fuentes para el estudio de la Historia
Antigua. Madrid: Taurus, 1986, p. 38-45.
GEORGES, P. Barbarian Asia and the Greek experience: from the Archaic Period to the
age of Xenophon. Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1994.
GORTÁZAR, I. O. Qué historia comparada. Studia Historica – Historia Contemporánea, v.
X-XI, p. 33-75, 1992-1993.
GREGORY, J. Euripidean tragedy. In: __________. (Ed.). A companion to Greek tragedy.
Malden/Oxford: Blackwell, 2005, p. 251-270.
GRIFFIN, J. Homer on life and death. Oxford: Oxford University Press, 1983.
GUAL, C. G. Enigmático Édipo: mito y tragedia. Madrid: Fondo de Cultura Económica,
2012.
__________. Historia, novela y tragedia. Madrid: Alianza Editorial, 2006a.
__________. Introducción a la mitología griega. Madrid: Alianza Editorial, 2006b.
__________. Mitos, viajes, héroes. Madrid: Taurus, 1996.
HALL, E. Greek tragedy: suffering under the sun. Oxford: Oxford University Press, 2010.
__________. Inventing the barbarian: Greek self-definition through tragedy. Oxford:
Clarendon Press, 1989.
__________. The sociology of Athenian tragedy. In: EASTERLING, P. E. (Ed.) The
Cambridge companion to Greek tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1997,
p. 93-126.
__________. The theatrical cast of Athens: interactions between Ancient Greek drama and
society. Oxford: Oxford University Press, 2006.
HALL, J. M. Ethnic identity in Greek Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press,
1997.
__________. Hellenicity: between ethnicity and culture. Chicago/Londres: University of
Chicago Press, 2002.
HARRISON, Th. General Introduction. In: __________. (Ed.). Greeks and Barbarians.
New York: Routledge, 2002, p. 1-15.
HEATH, J. Are Homer’s Trojans ‘hyper’? Mnemosyne, Leiden, v. 58, n. 4, p. 531-539, 2005.
HUGHES, B. Helena de Tróia: deusa, princesa e prostituta. Rio de Janeiro: Record, 2009.
113
JÁCOME NETO, F. Entre representação e realidade histórica: considerações sobre a
configuração social da sociedade homérica. (Dissertação). Coimbra: FLUC, 2011.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JANSE, M. Aspects of bilingualism in the history of the Greek language. In: ADAMS, J. N.;
JANSE, M.; SWAIN, S. Bilingualism in Ancient society: language contact and the written
text. (Oxford Scolarship Online). Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 332-390.
JODELET, D. El otro, su construction, su conocimiento. In: ABUNDIZ, S. V. (Coord.).
Representaciones sociales: alteridad, epistemología y movimientos sociales. Guadalajara:
Universidad de Guadalajara, 2006, p. 21-42.
__________. (Org.). Representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.
JONES, C. P. New heroes in Antiquity: from Achilles to Antinoos. Cambridge/London:
Harvard University Press, 2010.
JOUAN, Fr. Héros tragique et deus ex machina dans deux pièces perdues d’Euripide. (mimeo)
In: PIRENNE-DELFORGE, V.; DE LA TORRE, E. S. (Dirs.). Héros et heroïnes dans les
mythes et les cultes grecs : actes du coloque organisé à l’Université de Valladolid, du 26 au
29 mai 1999. Liège: Presses Universitaires de Liège, 2000, p. 1-8 (29-39). Disponível em:
http://books.openedition.org/pulg/741. Acesso em: 03/06/2014.
KARNER, C. Ethnicity and everyday life. New York: Routledge, 2007.
KEEGAN, J. The Face of Battle: a study of Agincourt, Waterloo and the Somme. Nova
York: Penguin, 1989.
KERÉNYI, K. Os heróis gregos. São Paulo: Cultrix, 1998.
KLOEKHORST, A. The language of Troy. In: KELDER, J.; USLU, G.; ŞERIFOĞLU, Ö. F.
(Eds.). Troy: city, Homer, Turkey. Amsterdã: WBooks, 2013, p. 46-50.
KOCKA, J. Comparison and beyond. History and Theory, Middletown, v. 42, p. 39-44, fev.
2003.
KONSTAN, D. To Hellēnikon ethnos: ethnicity and the construction of Ancient Greek
identity. In: MALKIN, I. (Org.). Ancient perceptions of Greek ethnicity. Cambridge,
Massachusetts, London: Harvard University Press, 2001, p. 29-50.
LATEINER, D. Sardonic smile: Nonverbal behavior in Homeric epic. Ann Arbor: The
University of Michigan Press, 1998.
LESSA, F. S. Mulheres de Atenas: mélissa – do gineceu à agorá. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010.
__________. O feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
114
LISSARRAGUE, Fr. The Athenian image of the foreigner. In: HARRISON, Th. (Ed.).
Greeks and Barbarians. New York: Routledge, 2002, p. 101-124.
LLOYD, M. Paris/Alexandros in Homer and Euripides. Mnemosyne, Leiden, Brill, 4th
series, v. 42, fasc. 1/2, p. 76-79. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/ 4431780. Acesso
em: 21/04/2013.
LOMAS, Kathryn. The polis in Italy: ethnicity, colonization, and citizenship in the Western
Mediterranean. In : BROCK, R.; HODKINSON, S. (Eds.). Alternatives to Athens : varieties
of political organization and community in Ancient Greece. Oxford: Oxford University Press,
2000, p. 167-185.
LORAUX, N. Crainte et tremblement du guerrier. In: __________. Les experiences de
Tirèsias: le fémenin et l´homme grec. Paris: Gallimard, 1989.
__________. Las experiencias de Tiresias: lo femenino y el hombre griego. Buenos Aires:
Biblos, 2003.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. (Coleção Espírito Crítico). São Paulo: Editora 34, 2000.
LUNT, D. J. Athletes, heroes, and the quest for immortality in Ancient Greece.
Pennsylvania: College of Liberal Arts (Dissertation), 2010.
LUVIZOTTO, C. K. Etnicidade e identidade étnica. In: __________. Cultura gaúcha e
separatismo no Rio Grande do Sul. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 29-36.
MACKIE, H. S. Talking Trojan: speech and community in the Iliad. Lanham/Boulder/New
York/Toronto/Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, 1996.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1997.
MALKIN, Irad. The returns of Odysseus: colonization and ethnicity. Berkeley / Los
Angeles: University of California Press, 2008.
MALTA, A. A selvagem perdição: erro e ruína na Ilíada. São Paulo: Odysseus Editora,
2006.
__________. O resgate do cadáver: o último canto d’Ilíada. São Paulo: Humanitas
Publicações, 2000.
MARISCAL, L. R. Alejandro de Euripides: la configuración literária de un motivo folklórico.
Ágora: estudos clássicos em debate, Aveiro, v. 7, p. 11-23, 2005.
__________. Estudio sobre el léxico político de las tragedias de Eurípides: la trilogía
troyana de 415 a.C. (Tesis). Granada: Universidad de Granada, 2003.
MARROU, H.-I. História da educação na Antiguidade. São Paulo: Editora Herder/EDUSP,
1966.
115
MARTIN, R. P. The language of heroes: speech and performance in the Iliad.
Ithaca/London: Cornell University Press, 1989.
MASTRONADE, D. J. The art of Euripides: dramatic technique and social context.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
McINERNEY, J. Ethnos and ethnicity in early Greece. In: MALKIN, Irad (Org.). Ancient
perceptions of Greek ethnicity. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University
Press, 2001, p. 51-74.
MIREAUX, É. A vida quotidiana no tempo de Homero. Lisboa: Edição Livros do Brasil,
s/d.
MITCHELL, L. Panhellenism and the barbarian in Archaic and Classical Greece.
Swansea: The Classical Press of Wales, 2007.
MORAES, A. S. Curso de vida e construção social das idades no mundo de Homero (séc.
X ao IX a.C.): uma análise sobre a formação dos habitus etários na Ilíada e na Odisseia.
(Tese). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2013.
__________. Marcel Detienne e os caminhos do comparativismo. Revista de História
Comparada,
Rio
de
Janeiro,
v.
3,
n.
1,
p.
1-11,
2009.
Disponível
em:
http://www.revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/125/117.
Acesso em: 03/05/2012.
__________. O ofício de Homero. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
__________. Os sentidos da itinerância dos aedos gregos. Phoînix, Rio de Janeiro, Mauad X,
v. 15, n. 2, 2009, p. 62-73.
MORGAN, C. Ethne, ethnicity, and early Greek states, ca. 1200-480 B.C.: an archaeological
perspective. In: MALKIN, I. (Org.). Ancient perceptions of Greek ethnicity. Cambridge,
Massachusetts, London: Harvard University Press, 2001, p. 75-112.
MOSSÉ, Cl. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.
__________. Ο πολιτής στην Αρχαία Ελλάδα: γένεση και εξέλιξη της πολιτικής σκέψης και
πράξης [O cidadão na Grécia Antiga: gênese e desenvolvimento do pensamento e da prática
políticas]. Atenas: Σαββάλας, 1996.
__________. Οι θέσµοι στην Κλασική Ελλάδα [As instituições na Hélade Clássica].
Atenas: Μεταίχµιο, 2000.
MUGLER, Ch. L’«altérité» chez Homère. Revue des Études Grecques, Paris, tomo 82, fasc.
389-390, p. 1-13, jan./jun. 1969.
116
NAGY, G. The best of the Achaeans: concepts of the hero in Archaic Greek poetry.
Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1999.
NAVARRETE, E. Roger Chartier e a literatura. Revista Tempo, Espaço e Linguagem,
Ponta Grossa, v. 2, n. 3, p. 23-56, set./dez. 2011.
NIPPEL, W. The construction of the ‘Other’. In: HARRISON, Th. (Ed.). Greeks and
Barbarians. New York: Routledge, 2002, p. 278-310.
NUÑEZ, C. F. P. “A Era das Musas”: a música na poesia antiga. Terceira Margem, Rio de
Janeiro, n. 25, p. 233-257, jul./dez. 2011.
OLIVEIRA, G. Histórias de Homero: um balanço das propostas de datação dos poemas
homéricos. Revista História e Cultura, Franca, v. 1, n. 2, p. 126-147, 2012.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. São Paulo: Pontes
Editores, 2012.
PAPADODIMA, E. The Greek/Barbarian interaction in Euripides' Andromache, Orestes,
Heracleidae: a reassessment of Greek attitudes to foreigners. Digressus, n. 10, p. 1-42, 2010.
PELOSO, D. M. Actéon: quando a caça é transgressão. Atenas, V século a.C. In: THEML, N.
(Org.). Linguagem e formas de poder na Antiguidade. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 2755.
PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. (Org.). Honra e
vergonha: valores das sociedades mediterrânicas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,
1965.
__________. A doença da honra. In: CZECHOWSKY, N. (Org). A honra: imagem de si ou
dom de si – um ideal equívoco. Porto Alegre: L&PM, 1992.
POUTIGNAT, Ph.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos
étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Ed. UNESP, 1998.
RANSOM, C. Aspects of effeminacy and masculinity in the Iliad. Antichthon, Canberra, n.
45, p. 35-57, 2011.
REDFIELD, J. Nature and culture in the Iliad: the tragedy of Hector. Durham/London:
Duke University Press, 2004.
REINHARDT, K. The intellectual crisis in Euripides. In: MOSSMAN, J. (Ed.). Euripides.
New York: Oxford University Press, 2011, p. 16-46.
ROMILLY, J. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 1999.
__________. Introdução a Homero. Lisboa: Edições 70, s/d.
__________. La Grecia Antigua contra la violencia. Madrid: Gredos, 2010.
117
__________. Les barbares dans la pensée de la Grèce Classique. (mimeo). Phoenix, Toronto,
v. 47, n. 4, p. 1-10 (283-292).
__________. Pourquoi la Grèce ? Paris: Éditions de Fallois, 2013.
ROSSATTO, N. D. Alteridade, reconhecimento e cultura – o problema do Outro no enfoque
da fenomenologia francesa. In: TOMAZETTI, E. M.; TREVISAN, A. L. (Orgs.). Cultura e
alteridade: confluências. Ijuí: Ed.Unijuí, 2006, p. 80-86.
RUTHERFORD, R. B. Homer. Oxford: Oxford University Press, 1996.
SABINO, C. L. M.; ROCHA, F. B.; CODEÇO, V. F. S. Comparando a construção do ideal de
cidadão na Atenas clássica – o que a poesia, o esporte e o teatro têm a nos dizer? In: LESSA,
F. S. (Org.). Poder e trabalho: experiências em história comparada. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2008, pp. 121-151.
SAÏD, S. Greeks and barbarians in Euripides’ tragedies: the end of differences? In:
HARRISON, Th. (Ed.). Greeks and Barbarians. New York: Routledge, 2002, p. 62-100.
SIDEKUN, A. Cultura e alteridade. In: TOMAZETTI, E. M.; TREVISAN, A. L. (Orgs.).
Cultura e alteridade: confluências. Ijuí: Ed.Unijuí, 2006, p. 52-64.
SILVA, B. M. Thymós e psykhé nas obras homéricas. Anais do I Congresso Internacional
de
Religião
Mito
e
Magia
no
Mundo
Antigo,
2010.
Disponível
em:
http://www.nea.uerj.br/Anais/coloquio/INDEX.pdf.
SILVA, M. F. S. Ensaios sobre Eurípides. Lisboa: Edições Cotovia, 2005.
SCHEIN, S. L. The mortal hero: an introduction to Homer’s Iliad. Berkeley/Los Angeles:
University of California Press, 2010.
SCHNAPP-GOURBEILLON, A. Lions, héros, masques: les représentations de l’animal
chez Homère. Paris: François Maspero, 1981.
SCODEL, R. An introduction to Greek tragedy. Cambridge: Cambridge University Press,
2011.
SCOTT, J. A. Paris and Hector in tradition and in Homer. Classical Philology, Chicago, v. 8,
n. 2, p. 160-171, abr. 1913. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/262449. Acesso em:
20/04/2013.
__________. The choice of Paris in Homer. The Classical Journal, v. 14, n. 5, p. 326-330,
fev./1919. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3288265. Acesso em: 20/04/2013.
SECCO, C. L. T. R. Prefácio. In: AUGEL, M. P. O desafio do escombro: nação, identidades
e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 15-17.
118
SÊGA, R. A. O conceito de representação social nas obras de Denise Jodelet e Serge
Moscovici. Anos 90, Porto Alegre, n. 13, p. 128-133, jul. 2000.
SERGHIDOU, A. Dégradation du héros et politiques de l’exclusion dans la tragédie grecque
(mimeo). In: PIRENNE-DELFORGE, V.; DE LA TORRE, E. S. (Dirs.). Héros et heroïnes
dans les mythes et les cultes grecs : actes du coloque organisé à l’Université de Valladolid,
du 26 au 29 mai 1999. Liège: Presses Universitaires de Liège, 2000, p. 1-11 (41-55).
Disponível em: http://books.openedition.org/pulg/723. Acesso em: 03/06/2014.
SOARES, C. I. L. O discurso extracénico: quadros de guerra em Eurípides. Lisboa: Edições
Colibri, 1999.
SOUZA, M. A. P. A guerra na Grécia Antiga. São Paulo: Ática, 1988.
STRAUSS, B. La guerra de Troya. Barcelona: Edhasa, 2008.
SUTER, A. ∆ύσπαρι, εἶδος ἄριστε... Quaderni Urbinati di Cultura Classica, Pisa, v. 39, n.
3, p. 7-30, 1991. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20547102. Acesso em:
21/04/2013.
__________. Paris/Alexandros: a study in Homeric technique of characterization.
(Dissertation). Princeton (New Jersey): Princeton University, 1984.
SUTHERLAND, C. Archery in the Homeric epics. Classics Ireland, v. 8, p. 111-120, 2001.
Disponível em: http://www.jstor.org/stable/25528380. Acesso em: 21/04/2013.
THEML, N. Introdução – Linguagem e comunicação: ver e ouvir na Antiguidade. In:
__________. (Org.). Linguagem e formas de poder na Antiguidade. Rio de Janeiro:
Mauad, 2002, p. 11-24.
TSURUDA, M. A. L. Apontamentos para o estudo da areté. Notandum, Mandruvá, v. VII, n.
11, 2004, p. 39-56. Disponível em: http://www.hottopos.com/notand11/amalia.htm. Acesso
em: 24/11/2008.
VERNANT, J.-P. A travessia das fronteiras: entre mito e política II. São Paulo: EDUSP,
2010.
__________. As origens do pensamento grego. São Paulo: DIFEL, 1984.
__________. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso, São Paulo, v. 9, 1978.
__________. Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2009.
__________. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
__________. Mito e religião na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
__________; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
119
__________. O universo, os deuses, os homens. Tradução, Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
__________. Ulises/ Perseo: breve conferencia sobre los héroes de la Antigüedad. Buenos
Aires: Paidós, 2010.
VIDAL-NAQUET, P. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VIEIRA, T. Sobre o autor. In: EURÍPIDES. Medeia. Trad., Trajano Vieira. São Paulo: Ed.
34, 2010, p. 179-180.
VILLAR, D. Uma abordagem crítica do conceito de “etnicidade” na obra de Fredrik Barth.
Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 165-192, abr. 2014.
VLASSOPOULOS, K. Between east and west: the Greek poleis as part of a world-system.
Ancient West & East, Leuven, n. 6, p. 91-11, 2007a.
__________. Greeks and barbarians. Cambridge/New York: Cambridge University Press,
2013.
__________. Unthinking Greek polis: Ancient Greek History beyond Eurocentrism.
Cambridge: Cambridge University Press, 2007b.
WALBANK, F. W. The problem og Greek nationality. In: HARRISON, Th. (Ed.). Greeks
and Barbarians. New York: Routledge, 2002, p. 234-277.
WERNER, M.; ZIMMERMANN, B. Beyond comparison: histoire croisée and the chalenge
of reflexivity. History and theory, Middletown, v. 45, p. 30-50, fev. 2006.
WHITMAN, C. H. Homer and the heroic tradition. Cambridge/Massachusetts: Harvard
University Press, 1958.
WINTER, Th. N. The place of archery in Greek warfare. Classics Commons, p. 1-13, 1990.
Disponível em: http://digitalcommons.unl.edu/classicsfacpub/9. Acesso em: 03/05/2013.
YOON, F.
Individuals. In: __________. The use of anonymous characters in Greek
tragedy: the shaping of heroes. Leiden: Brill, 2012, p. 39-120.
ZANON, C. A. Os heróis se armam para a guerra (Ilíada, III, 328-338; XI, 15-48; XVI, 130147; XIX, 367-395). Letras Clássicas, São Paulo, n. 8, p. 129-147, 2004.
120

Documentos relacionados