Philippa ppag.qxd - A Esfera dos Livros

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FILIPA DE LENCASTRE
A RAINHA QUE MUDOU PORTUGAL
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Isabel Stilwell
FILIPA
DE LENCASTRE
A RAINHA QUE MUDOU PORTUGAL
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A Esfera dos Livros
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© Isabel Stilwell, 2007
© A Esfera dos Livros, 2007
1.a edição:
Capa:
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Paginação: Segundo Capítulo
Revisão:
Impressão e Acabamento:
Depósito legal n.°
ISBN
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ÍNDICE
I PARTE
PHILIPPA, PRINCESA DE INGLATERRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
II PARTE
FILIPA, RAINHA
DE PORTUGAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Para a minha mãe,
uma autêntica Philippa of Lancaster do século XX
– nasceu na mesma região de Inglaterra, veio
para Portugal por amor, foi mãe de oito filhos
e guiou-se sempre, e acima de tudo, pelas suas
convicções religiosas.
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I PARTE
PHILIPPA, PRINCESA DE INGLATERRA
«o meu destino, escrevo-o eu!»
(1360 – 1386)
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Burford Castle, 20 de Maio de 1364
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hilippa não conseguia adormecer. Naquela cama grande que lhe
era estranha, estava frio, os lençóis húmidos, e nem as mantas de
peles com que a ama a enfaixara como se fosse um bebé, lhe traziam
o calor necessário para permitir que o sono a tomasse. Esta cama do
castelo de Burford não era a sua, e hoje, ainda por cima, faltava-lhe
o corpo quente da ama, Maud, que a pretexto de adormecer a sua
menina acabava sempre por passar a noite abraçada a ela. Há quatro anos que era assim, desde que com segundos de vida no último
dia de Abril tinha sido posta ao seu peito, a que se agarrara com
uma sofreguidão imensa, como ainda hoje se prendia a qualquer
colo que a acolhesse.
Philippa gostava da noite. Gostava dos rituais que marcavam as
horas do fim do dia, e se repetiam, imutáveis, indiferentes ao facto de
terem como cenário os luxuosos aposentos do Savoy em Londres, na
ala dos Lancasters em Windsor, no aconchego de Kenilworth, nas torres de Bolingbroke, ou como agora, no castelo dos primos, em Buford.
Philippa nem sequer se perguntava por que andavam sempre com a
casa às costas, nem lhe passaria pela cabeça indagar porque é que o
pai, John, ou o avô, Edward, não pareciam capazes de assentar arraiais
onde quer que fosse. Mas Maud, nascida e criada em Leiscester, de
onde só saíra aos dezasseis anos, depois do desgosto de ver o seu filho
morrer-lhe nos braços, para entrar ao serviço como ama-de-leite da
princesa Philippa, achava tudo aquilo excentricidades de loucos, e consolava-se, tanto como a sua princezinha, com a organização e disciplina que impunha no seu território: os aposentos da primogénita.
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Para Philippa estes hábitos certos davam-lhe a segurança de sentir
que se tudo mudava lá fora, tudo permanecia igual cá dentro, desde
que Maud, e sobretudo a mãe, estivessem por perto.
As criadas que a serviam arrastavam dos fogões da cozinha para
o quarto de brinquedos, baldes de água quente para encherem a
grande tina de madeira polida. Maud enfiava-a na água e ensaboava-a devagarinho, enquanto lhe contava as últimas novidades do dia,
ou esquecendo-a, tagalerava com as criadas. Depois tirava-a do
banho – era tão delicada que a ama continuava a pegar-lhe como se
fosse um bebé – e enrolava-a em toalhas de linho, sentando-a num
pouf de carneira frente à lareira, que estava sempre acesa mesmo nestes dias em que a Primavera já tomava conta das árvores, enchendoas de folhas verde-alface.
Os cabelos de Philippa eram cor de trigo, mas lisos e baços, sem
qualquer sombra de graça, e mesmo os caracóis que em bebé lhe
tinham rodeado a cara magra e estreita haviam desaparecido há
muito. Maud embebia-os em leite de cabra, para que Philippa não
lhe furasse os tímpanos com guinchos sempre que a escova se prendia ao penteá-los. A ama gostava de os deixar soltos, e em cada
madeixa de cabelo revivia as doenças que a tinham deixado alerta
noite e dia à cabeceira daquela criança sempre frágil e enfermiça, a
ansiedade que lhe causava a timidez da menina, que preferia manter-se agarrada às suas saias a brincar com as primas, sobretudo quando
toda a família se reunia.
E enquanto Maud invariavelmente pensava no passado, Philippa
olhava o fogo e procurava encontrar o futuro nas formas das labaredas. O futuro próximo, que se resumia a um só desejo: que a mãe viesse
rezar com ela as orações da noite, lhe passasse as mãos pelos cabelos,
e entalando os cobertores à sua volta, lhe fizesse por fim uma pequena
cruz na testa, a cruz que a protegeria dos fantasmas da noite e a encomendaria a Deus Nosso Senhor, até que o sol voltasse a nascer…
As orelhas de Philippa quase cresciam nesse desejo de ouvir o
menor sinal, o menor ruído: os camareiros a abrir as portas, as criadas numa roda viva, os saltos da mãe nos degraus das escadas, a porta
da nursery a ranger, as argolas da cortina de tapeçaria que tapava a
pequena porta, sob o arco de pedra, a deslizarem no varão para um
dos lados, deixando entrever a mãe, os seus cabelos loiros brilhantes
presos numa trança imensa em redor da cabeça, coberta por uma rede
de pequenas pérolas e brilhantes.
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Philippa dava voltas e voltas na cama. Já se destapara e voltara a
tapar, já chamara pela ama, mas sem obter resposta, já martelara as
almofadas para lhes fazer um ninho para a cabeça, mas não conseguia
adormecer. Hoje olhara para o fogo como sempre e fizera figas atrás
das costas:
– Philippa, deixe-se dessas heresias, menina, reze aos santos se quer
favores, não me cruze os dedos como se fosse uma miúda da rua –
dizia-lhe Maud quando a apanhava de dedinhos minúsculos torcidos
com força, escondidos do seu olhar.
Fizera figas com mais força do que o costume e espevitara os ouvidos como nunca, mas não lhe chegaram nem sons de portas a ranger,
nem tão-pouco o toc-toc das polainas da mãe nos degraus do torreão,
nem muito menos a cortina a deslizar. Hoje a mãe não viera e a ama
Maud não respondera às perguntas com que a metralhara ao jantar.
– Coma, princesa, não faça essas bolas na boca, que não tem sorte
nenhuma, há-de comer tudo ou não me chame eu Maud de Leiscester, uma terra temente de Deus. Farta de a velar à beira da cama estou
eu, e não quero a sua mãe a chamar-me a atenção. Coma, que se não
comer, amanhã ainda aqui está, e o fogo apaga-se e a menina tirita de
frio que não sou eu que a meto na cama.
Comera depressa, só ela sabia com quanto custo fizera passar na garganta aquele pedaço de vianda, e aqueles legumes cozidos, bebera a taça
de cidra quente, dobrara o guardanapo no tabuleiro imenso, tudo para
que quando a mãe chegasse os criados já tivessem levado as memórias
do detestável jantar, e no quarto de brinquedos estivesse só ela e a
lareira. A cortina cederia por fim, a mãe entraria com o seu sorriso
quente, e viria sentar-se no banquinho de flores bordadas a petit-point,
chegando-o para mais perto da filha. E depois de lhe perguntar pelas
brincadeiras e pelas orações, estenderia as suas mãos finas cor de pérola
e deixaria que a palma da mão passasse suave entre os cabelos soltos
que Maud desembaraçara, e Philippa sentir-se-ia a pessoa mais feliz do
universo. Fizera tudo certo, tudo bem feito, mas a mãe não chegara.
Philippa sabia que não era tão bonita como a mãe Blanche of Lancaster. Herdara dela o cabelo loiro e os seus olhos cor de mar, mas as
feições, diziam os criados, as aias, as damas e toda a gente com que se
cruzava, eram os da Casa dos Plantagenet, a casa real inglesa, ou seja,
as do pai: o nariz comprido e afiado, as maçãs do rosto salientes, os
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olhos pequenos, um pouco perdidos em arcadas fundas, a boca marcada, no caso do pai, muito marcada e sensual.
– Mas ninguém pode ser tão bonita como a minha mãe, porque
toda a gente diz que a minha mãe é a mulher mais bonita de Inglaterra. Chaucer até diz que ela é mais bonita do que a rainha-avó, e a
Maud garante que, só por dizer uma coisa dessas, o homem pode ficar
sem cabeça! – consolava-se a si mesma vezes e vezes sem conta.
Porque não era só a beleza de Blanche que apaixonava os cavaleiros e os poetas da corte, fazendo correr a sua fama na boca do povo.
Blanche tinha uma suavidade imensa, uma serenidade que aparentemente nada abalava, uma forma de captar o olhar que se cruzava com
o seu e de o reter, deixando o interlocutor entontecido como que subitamente promovido a alguém muito especial. A mãe mantinha presa
a si a atenção do pai, John, e Philippa já ouvira vezes sem conta as
damas a murmurar que «reter o coração do duque» era uma tarefa
impossível para qualquer outra mulher, pelo menos da forma permanente e indelével como ela o fizera. Gostava de as ouvir falar assim
dos seus pais. Divertia-se a passear silenciosamente entre as tias, as
damas e as camareiras, com a consciência perfeita de que os adultos
nunca se lembram de que as crianças têm ouvidos.
Quando repetia a Maud o que escutara, a ama abanava a cabeça,
zangada, e vocifrava:
– Quanto mais cabeleiras e chapéus usam na cabeça, menos lá têm
dentro! Então não sabem que os duendes pequenos são aqueles que
têm as orelhas mais compridas?
Numa família de segredos e traições, Maud temia que um dia a sua
pequenina Philippa ouvisse alguma coisa que a pudesse magoar. Maud
vivia há tempo suficiente naquela casa, naquela corte, para saber aquilo
de que as pessoas eram capazes! Mesmo quando tinham perfeita consciência de que podiam estilhaçar o coração de uma criança tão inocente
como a sua menina. Mesmo quando o que estava em causa era o seu pai.
Decididamente a fé de Maud na lealdade da humanidade já não era
forte, mas esmorecia de vez quando se tratava da metade descendente de
Adão. E desaparecia por completo quando o homem era John of Gaunt.
Philippa de repente teve uma ideia: saiu da cama como uma flecha
e voltou para dentro dos cobertores com a mesma rapidez, um espelho de tartaruga na mão. À luz da lareira e das velas que ardiam em
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redor do seu quarto circular, ou não fosse o maior e o mais alto
daquela torre, olhou para a sua imagem reflectida no espelho que a
madrinha de baptismo lhe dera e que fazia parte do cortejo de objectos que a seguiam por onde fosse.
– Algum dia vou ser parecida com a minha mãe? – perguntava de vez
em quando a Maud. A ama estava sempre preparada para a pergunta:
– A menina já é linda e vai ser linda como a sua mãe, se comer a
sopa toda e deixar que essas bochechas ganhem carne e os seus cabelos se tornem mais fortes, com a força que lhe vem da fruta – respondia, devolvendo-lhe invariavelmente a maçã que ficara intacta, apenas
com uma marca dos seus dentes pequeninos.
E Philippa prometia a si mesma devorar tudo o que viesse nos pratos e nas malgas de estanho.
Mas hoje Maud não respondia quando a chamava. E o espelho
parecia hesitante em responder-lhe com a mesma certeza da sua ama.
Philippa disse alto, falando sozinha:
– Quando me levarem à sala num dia de festa, uma daquelas amigas da mãe vai dizer, julgando que não oiço, «ai, vê-se mesmo que
aquela é a filha mais velha de Blanche, é igualzinha a ela»!
O som da sua própria voz e a imitação que fizera da dama afectada, deram-lhe vontade de rir, aquele riso em que só os mais próximos sabem detectar uma gota de amargura: nunca seria como a mãe,
porque não havia ninguém como ela, nem sequer naquele reino longínquo de Castela de que o pai voltava sempre com um sorriso largo
e a pele tisnada pelo sol.
Por pensar nele, lembrou-se. O pai hoje estava em casa. Quando,
naquela tarde, ajudava Maud a dobar lã na sua salinha, tinha ouvido
as trombetas soar, sinal de que o senhor da terra e daquela casa
estava a chegar. Atirara ao ar o novelo e correra para a janela, e só
não tinha sido repreendida por um gesto tão impulsivo porque Maud
fizera o mesmo.
Ao ver o séquito aproximar-se a galope, e os portões a abrirem-se
de par em par Philippa sentia que lhe faltava o ar – todos vestiam as
mesmas capas vermelhas e no ombro esquerdo ressaltava a rosa encarnada dos Lancaster, que tinha o condão de a comover sempre.
Atravessara a sala a correr, em direcção ao patamar de onde partiam
as escadas de caracol, desceu-as o mais depressa que pôde, a saia presa
numa das mãos a outra no corrimão para não cair, até chegar ao varandim da escadaria de onde podia ver a entrada principal. Sentou-se, ofe17
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gante: não queria perder nada. Procurou a mãe, como ponto de referência, direita e sorridente no topo da escadaria, como estava sempre
que o pai chegava a casa. Mas desta vez não viu ninguém. E o pai nem
se deteve surpreendido, entrando pela galeria em passo de corrida.
O ruído das suas botas cardadas não conseguia abafar totalmente um
som distante e indistinto, que a Philippa pareceram gemidos.
Subitamente uma mão segurou-a com força pela gola do vestido:
– O que é que a menina Philippa acha que faz aqui? – Era Maud.
Philippa agarrou-se a ela com todas as forças que tinha, desesperada
por acalmar a ansiedade que crescia dentro de si, e perguntou numa
voz que procurou manter firme:
– Maud, por que é que a minha mãe não estava à espera do meu pai?
Maud fugiu-lhe com os olhos, mas a voz não denunciava nada:
– Porque hoje tem coisas mais importantes a fazer!
Philippa sossegou, mas mesmo assim fez figas quando ao fim da
tarde olhou a lareira e esperou que os compromissos da mãe, estivessem resolvidos antes da hora de lhe vir dar um beijo de boas noites.
Mas pelos vistos as suas figas idiotas não serviam de nada. Até a ama
lhe dera o banho e o jantar a despachar, para desaparecer também…
– Maud – gritou mais uma vez. Mas de Maud, nada.
Philippa estava farta de estar ali deitada. Se nem Maud respondia,
e a mãe não aparecia, ninguém podia zangar-se com ela por sair da
cama, pois não? A camisa de noite de linho grosso não era quente,
mas Philippa cobriu-se com o manto forrado das viagens e ainda
colocou por cima uma das mantas de pele que a ama lhe deixara
sobre a cama. Pensou ir acordar uma das aias, porque não conhecia
muito bem este castelo, mas mudou de ideias. Havia de encontrar o
caminho, seguindo as vozes e as tochas acesas. Quando, à saída do
quarto forrado de tapetes grossos, pôs pela primeira vez os pés nas
lajes geladas, deu um grito e um salto para trás, onde o calor do
tapete a protegia. Voltou e procurou os chinelos que atirara algures
para debaixo da cama. Enrolou-se de novo nas peles e saiu para o corredor – estranho, nem uma criada a cuidar das lareiras, nem uma aia
entretida com um bordado por acabar, decididamente esta noite não
era como as outras.
Uma noite estranha que lhe fazia lembrar uma outra, já há muito
tempo, em que deixara de ver a mãe por uns dias, para depois ser
levada ao seu quarto, onde deitada e muito pálida, Blanche se agarrara a ela num silêncio profundo e magoado. Philippa era pequenina,
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mas mesmo então tivera a certeza de que se a mãe não fosse a duquesa
de Lancaster, casada com o terceiro filho do rei de Inglaterra, se não
tivesse sido educada para esconder as lágrimas, teria chorado e soluçado. Nesse dia em que a mãe a segurara tão perto de si, o medalhão
que tinha sempre ao pescoço a roçar-lhe no cabelo, Philippa pressentira nela uma enorme tristeza, que não conseguira partilhar, tal a felicidade de se ver estreitada nos seus braços e, surpresa das surpresas,
autorizada a esgueirar-se para dentro dos seus lençóis ficando ali tão
imóvel e quieta quanto conseguia.
– Se não respirar – pensara a princezinha –, nem a mãe, nem ninguém, se vai lembrar de que aqui estou. Se não me virem, vão deixar-me aqui para sempre, e para sempre, e para sempre…
Mas estragaram-lhe os sonhos. Philippa ficara a odiar a camareira
que dera por ela e, com um grito de horror, a arrancara do calor da
cama da mãe e a devolvera, esperneando de fúria, a uma ama, um
bocadinho enciumada:
– O raio da gaiata, sempre colada à mãe. Que é mãe, é certo, mas
foi do meu leite que bebeu – murmurava Maud enciumada para si
mesma, para logo se envergonhar.
Quando a retiraram do quarto que o pós-parto obrigava a ser mergulhado na mais completa escuridão, Philippa ficou cega pelo cintilar
das tochas. Tão cega que não reconheceu imediatamente aquele homem
no canto, com os ombros descaídos em desânimo. Como podia ser o seu
pai, sempre tão direito, e tão forte, de gargalhada sempre pronta?
Lembrava-se de ter perguntado: O que é que aconteceu ao meu pai
e à minha mãe? Vão morrer? A minha mãe vai morrer?
Falar de concepções, gravidez e partos, do período em que uma
mulher tem de combater a impureza fechada num quarto longe de
todos, até que o sangue pare de correr, não eram conversas para ter
com crianças, que viam chegar os irmãos ao quarto de brinquedos
como se a cegonha os tivesse trazido. Mas Maud teve pena da aflição da princesa:
– O bebé que a senhora duquesa trazia na barriga, morreu ao nascer, paz à sua alma – disse benzendo-se.
E a criança percebeu que, tragédia das tragédias, o irmão era um
rapaz, John of Plantagenet, herdeiro do ducado de Lancaster, o herdeiro tão esperado. Respirara ainda uns segundos, para se ficar nos
braços da parteira, cuja sabedoria de anos não fora suficiente para
o salvar.
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Nessa outra noite quase esquecida, Philippa tinha sonhado com
duelos e espadas, como via nos torneios, e imaginara-se a trespassar
o coração de um menino loiro como a mãe, a quem todos faziam uma
vénia. Esquecidos dela. Dela, que nascera antes dele…
Assaltada por tantas memórias, Philippa abanou o cabelo solto e
tentou afastá-lo para longe. Agora o importante era encontrar o caminho por entre estes corredores labirínticos e gelados de Burford. Foi
seguindo o ruído das vozes de uma corte privada, que preferia, sem
dúvida, o barulho ao silêncio. Espreitou por detrás dos reposteiros
para o salão nobre de mesas corridas, onde o ruído das facas contra os
pratos de estanho era ensurdecedor, e o levantar das canecas entre o
clamor de saudações, tornava impossível perceber sequer o que se celebrava. Mas as cadeiras no topo da mesa estavam vazias. O seu veludo
carmim ressaltava a ausência do pai e da mãe. Nem Blanche nem John
presidiam a este jantar e Philippa não sabia onde encontrá-los.
Gelada, hesitava sobre o que fazer a seguir quando viu Maud passar apressada, um tabuleiro de vime com roupas dobradas nas mãos,
e uma pressa nos pés que era raro ver-lhe. Philippa seguiu-a. Escondendo-se atrás das colunas e das estatuetas, conseguiu, sem saber
bem como, esgueirar-se pela porta entreaberta para dentro do quarto
onde a ama Maud entrara também. O fogo ardia forte na lareira de
pedra e desta vez o pai não era uma sombra descaída e triste, mas um
homem aparentemente satisfeito, que sem grandes exuberâncias
comemorava qualquer coisa com os seus amigos mais próximos. E foi
um deles que, rindo, apontou para uma Philippa de cabelos desgrenhados, a cara pálida e estreita, uma Plantagenet sem tirar nem pôr
e exclamou:
– Sir John, a princesa Philippa veio dar as boas vindas à nova irmã!
John virou-se na direcção do dedo apontado, e os seus olhos
encontraram a filha, embrulhada em peles, o rosto de quem não sabe
se deve fugir ou ficar. Uma das suas gargalhadas fortes, daquelas que
lhe vinham da alma, encheu o quarto, e estendendo os braços, prendeu-a e atirou-a ao ar, rindo: «Princesa, tens o coração forte e a força
dos leões dos Plantagenets, para andares por aí nos corredores frios e
escuros, completamente sozinha!»
E a princesa sentiu que, afinal, não queria ser parecida com a mãe,
mas forte e determinada como o pai, para que ele se orgulhasse sem20
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pre dela. Queria que John não se importasse, nem um bocadinho, que
o John pequenino tivesse morrido, porque seria ela a herdeira que o
pai desejara, a força onde poderia depositar a sua confiança.
Naquela noite, nascera Elisabeth, e o seu nascimento parecia-lhe
merecer uma grande celebração
– Uf, pensou com alívio – esta não vem ocupar o meu lugar –, é só
mais uma rapariga, e logo a segunda, para quem o pai nem vai olhar.
Quando Maud a levava de regresso aos lençóis, depois de a mãe lhe
ter dado um beijo rápido, deixando-a espreitar a irmã a chuchar no
peito de uma ama de leite, Philippa adormeceu nos seus braços, pelo
caminho. E dormiu a noite toda, sem pesadelos nem corações trespassados por espadas. Esses viriam depois.
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