AS LEIS ABOLICIONISTAS E A QUESTÃO DE GÊNERO NA

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AS LEIS ABOLICIONISTAS E A QUESTÃO DE GÊNERO NA
AS LEIS ABOLICIONISTAS E A QUESTÃO DE GÊNERO NA
ABORDAGEM DE UM LIVRO DIDÁTICO
Elisabete Rodrigues Moraes
([email protected])
Mestranda em História – Universidade Federal de Rio Grande (FURG)
Resumo: O texto apresenta a análise de um conteúdo do Livro Didático: “Nova História Crítica” do autor Mário
Schmidt, da 7ª série e busca compreender a forma como o autor trata a questão de gênero ao referir-se às Leis
Abolicionistas. As reflexões basearam-se em estudos sobre gênero e livros didáticos. A proposta foi investigar como a
questão foi abordada no livro didático em questão, bem como a influência de tal abordagem na visão do aprendiz com
respeito às Leis Abolicionistas e suas implicações referentes aos escravos, (homens, mulheres, crianças). A pesquisa
faz parte de um projeto maior a ser desenvolvido durante o mestrado em História cujo tema é “Abolição sob o prisma
da imprensa: fontes para o ensino/pesquisa da História.”
Palavras-chave: Gênero; livro didático; leis da abolição; escravidão.
Introdução
Atualmente, devido a sua popularização, o livro didático tem adquirido
relevância entre as pesquisas referentes às abordagens históricas bem como na
construção do saber escolar. Sabemos que o livro didático tem sido em muitos lares a
única fonte para o estudo da História e talvez até um dos únicos meios de
divulgação/formação de consciência histórica para os aprendizes e até mesmo
professores que não tem acesso a outras fontes de pesquisa. Um dos objetivos das
políticas públicas quanto à elaboração e inserção do livro didático no universo escolar é
a formação continuada dos professores e ao mesmo tempo, aprendizagem aos alunos.
Silva, em seu artigo “Ensino de História e Questões de Gênero nos Livros Didáticos”
faz referência a uma citação de Gatti Júnior que caracteriza o Livro Didático como:
Material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num
processo de aprendizagem ou formação; materiais caracterizados pela seriação dos
conteúdos; mercadoria; depositório de conteúdos educacionais; instrumento
pedagógico; portador de um sistema de valores; suportes na formulação de uma
História Nacional; fontes de registro de experiências e de relações pedagógicas
ligados a políticas pedagógicas da época; e ainda como material reveladores de
ângulos do cotidiano escolar do fazer-se da cultura nacional. (2012 apud GATTI,
2004, p.2).
Com todas estas características, podemos observar a importância deste recurso
pedagógico no sentido de que tal instrumento está diretamente ligado à formação de
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.370
jovens e crianças, futuros cidadãos. Com base nesta abordagem, podemos constatar que
há uma necessidade urgente de avaliarmos através de pesquisas mais profundas, a forma
como certos temas de História estão sendo abordados nos livros didáticos bem como a
sua contribuição na formação de identidades sociais.
Miranda e Luca, ao referirem-se ao livro didático, apontam para questões que
vão além do ponto de vista normativo quando afirmam:
o livro didático é um produto cultural dotado de alto grau de complexidade e que
não deve ser tomado unicamente em função do que contém sob o ponto de vista
normativo, uma vez que não só sua produção vincula-se a múltiplas possibilidades
de didatização do saber histórico, como também sua utilização pode ensejar
práticas e leitura muito diversas.(MIRANDA; LUCA, 2004, p. 124.)
Sendo assim, tal objeto escolar, não constitui apenas mais uma ferramenta
pedagógica, mas um material elaborado a partir de um conjunto de fatores que
envolvem desde a lógica do mercado consumidor para o qual é produzido até os saberes
transmitidos aos aprendizes. Desses saberes, emanam as preocupações dos professores/
historiadores: - Como determinado conteúdo está sendo abordado? Que valores ele quer
transmitir? Como ocorrerá a assimilação ou receptação de tal abordagem pelos
aprendizes? De que forma esse conteúdo contribuirá na formação da consciência
histórica do educando?
Com estas premissas em mente, buscamos através deste artigo, trazer a público,
apenas como reflexão e ponto de partida para pesquisas mais aprofundadas, um estudo
de caso, ou seja, a análise de como o Livro Didático “Nova História Crítica” 7ª série, do
autor Mário Schmidt, trata a questão de gênero ao referir-se às Leis Abolicionistas.
Adotamos como concepção de gênero para este estudo, a referência dos
Parâmetros Curriculares Nacionais que versa:
O conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações sociais e culturais
construídas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto o sexo diz respeito
ao atributo anatômico, no conceito de gênero toma-se o desenvolvimento das
noções de “masculino” e “feminino” como construção social. (PCN/ Temas
Transversais. 1998)
Assim, ao nos referirmos a “gênero”, estaremos trabalhando a forma como o
autor Mário Schmidt abordou ou não as implicações das Leis Abolicionistas sobre
homens e mulheres escravas, no texto analisado. Tal estudo é relevante para a
compreensão da importância do conteúdo do livro didático no espaço escolar, haja vista
que é neste ambiente que os gêneros, masculino e feminino, se percebem como tal e se
reconhecem como seres atuantes de sua própria história.
Escolhemos o conteúdo sobre as leis abolicionistas, por tratar-se de parte de
nossas pesquisas na pós-graduação e no mestrado, bem como na relevância das mesmas,
como mote para o estudo da questão afro e suas implicações na formação da identidade
nacional, questão esta, por muito tempo, relegada a segundo plano nos livros didáticos.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.371
Tal concepção é apontada por Bittencourt quando se refere à figura do negro como:
omitida nas obras escolares e apenas começou a surgir após a Abolição, associada à
Abolição dos Escravos. A partir desse momento significativo de mudanças, as
explicações da nacionalidade voltaram-se para as raças formadoras do povo
brasileiro. O colonizador, ariano, impunha civilização e ordem às camadas
inferiores formadas por negros, índios e mestiços. (Bittencourt, 2010, p. 200.)
Segundo a mesma autora, a História do Brasil, ao ser ensinada nas escolas,
baseou-se na idéia de um “passado único e homogêneo”, desconsiderando as
desigualdades e diferenças sociais. Para ela,
A teoria da democracia racial, é preciso salientar, foi criada para fundamentar uma
homogeneização cultural e omitir as diferenças e desigualdades sociais. Serviu para
fortalecer a ideia de uma História Nacional caracterizada pela ausência de
conflitos, porque, afinal, não somos e nem fomos um povo guerreiro (a própria
Independência foi pacífica, assim como a libertação dos escravos) e internamente,
vivemos sem problemas decorrentes de racismos, preconceitos étnicos, ou ainda,
discriminações, exclusões. (Bittencourt, 2010, p. 199.)
Por muito tempo a história tradicional valeu-se da teoria da Democracia Racial
para negar as diferenças raciais e até mesmo de gênero com o objetivo de fundamentar
uma ideologia de que possuímos uma cultura homogênea e que vivemos em uma
sociedade livre de conflitos e desigualdades. “Somos todos iguais”. Isso contribui para a
aceitação por parte dos indivíduos do status quo, bem como acarreta certo
“conformismo” com a situação social.
Aqui entra também as questões de gênero que pretendemos analisar no
conteúdo do livro didático citado anteriormente. Como abordar questões referentes à
escravidão, como as leis abolicionistas nos livros didáticos relegando a segundo plano a
condição da mulher, da criança e do homem escravo? Como transferir tal conteúdo para
a atualidade sem incorrer ao erro de omitir a grande diversidade cultural formadora da
sociedade brasileira? De que forma o livro didático tem abordado a escravidão apenas
utilizando o termo “escravos”, referindo-se tanto ao gênero masculino quanto ao
feminino? Não podemos desconsiderar também que mesmo a história tendo sido escrita
por homens na perspectiva androcêntrica, somente no final do século passado passou-se
a pensar a questão do gênero masculino relacionando-o com ideologias, organizações
sociais, etc. Ou seja, construindo uma outra visão de masculino desligada da visão
universalizada de até então.
Atualmente a questão referente a gênero tem sido mais debatida na
historiografia, entretanto, até a década de 60, Araújo & Aleixo apontam que:
No âmbito da produção historiográfica observamos a emerção dos estudos de
gênero a partir da década de 1960, acompanhados da nova dimensão adquirida
pelos movimentos sociais que, a partir desse período, passaram a ganhar maior
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dimensão no contexto da sociedade civil organizada e, por conseguinte, no
processo de maturação acerca das políticas públicas que viriam a respaldar tais
questionamentos. Assim, a figura feminina, bem como a discussão de temas antes
relegados aos “porões da história” passam a emergirem como sujeitos participantes
e atuantes da escrita da História. (ARAÚJO; ALEIXO, Segundo Seminário
Nacional: Gênero e Práticas Culturais, p. 8)
Nota-se que tais questionamentos são recentes considerando anos de
experiências vivenciadas desde o surgimento da humanidade. Partindo deste
pressuposto, podemos dizer que apenas iniciamos uma caminhada que tem como
referência valorizar a história daqueles que foram excluídos da história oficial.
Por outro lado, os estudos sobre gênero se acentuaram no Brasil a partir da
década de 1990. Neste momento surgem discussões sobre mulheres, crianças, meio
ambiente, direitos humanos que propiciam uma abordagem mais específica sobre
gênero. Até então tínhamos uma historia dos homens escrita por homens. As mulheres
apareciam como heroínas ou estavam invisíveis na História.
Podemos citar os
estudos de Proto & Silveira sobre a evolução dos debates referentes a tais questões nos
meios acadêmicos:
Os debates acadêmicos acerca dos gêneros se consolidaram no Brasil na década de
1990. Novos saberes e reflexões sociológicas, antropológicas e históricas nos
permitiram situar os gêneros enquanto construções históricas, superando assim a
visão naturalizante que os atrelavam a composição física dos sujeitos. Não
obstante, essas reflexões ainda passam longe do saber histórico apresentadas pelos
livros didáticos trabalhados nas escolas brasileiras (PROTO; SILVEIRA, 2012, p.
102).
Como afirmam os autores acima citados, embora tenhamos avançado no que
diz respeito às abordagens acadêmicas sobre gênero, ainda carecemos de livros
didáticos que abordem estes debates e que incluam o aluno na conscientização do que
representam tais questionamentos para sua própria formação.
Proto & Silveira, ainda refletindo sobre isso afirmam que:
Muito embora o material didático de história dos nossos dias apresente melhoras
significativas se comparado àqueles de viés economicista e ou meramente
factualista de outrora, as identidades de gênero seguem quase ignoradas. Aliás,
seguem dentro da trivialidade homens contra mulheres. Nossas primeiras
constatações apontam para um material sustentado por uma narrativa
majoritariamente androcêntrica (o homem é o único agente da história) que
naturaliza os gêneros e os locais que cada um ocupa em uma sociedade. Soma-se
a isso, o fato de que esse material se abstém de análises mais complexas capazes de
revelar a textura das relações de poder e seu papel na construção daquilo que
normalmente é entendido como masculino e feminino ((PROTO; SILVEIRA, 2012,
p. 102).
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Em concordância com estes autores, podemos dizer que o livro didático ainda
precisa adequar-se às novas tendências no estudo da História, no que se refere a valorar
a participação de todos os indivíduos, sem omitir a historicidade das relações de poder e
das condições sociais que levaram a tais relações. Entretanto, ao analisarmos o conteúdo
referente às leis abolicionistas no livro de Schmidt, podemos avaliar se o autor
enquadra-se ou não nesta tendência historiográfica.
Ainda dentro desta perspectiva, SILVA destaca a questão da necessidade da
abordagem das questões de gênero na sala de aula:
Entende-se que a inserção da temática transversal de gênero no processo de
escolarização é mais do que necessário para se discutir o respeito à diversidade
cultural e violência contra mulheres no Brasil. (SILVA, 2012, p. 4).
No universo escolar constituído por tantos indivíduos e com tantas práticas
culturais diversas, torna-se urgente que as questões de gênero passem a ser trabalhadas
de forma sistemática visando a aceitação e tolerância das diferenças. O livro didático
pode ser o veículo pelo qual a escola alcance este objetivo.
No que se refere à escolha do livro didático “Nova História Crítica” para a
realização desta análise, podemos dizer que nos baseamos em dois critérios: ser voltado
para o ensino fundamental, séries finais que é nossa área de atuação; ser um dos livros
não aprovados pelo PNLD. O livro, por sua vez, no que se refere à apresentação
didática, é organizado a partir da história integrada, ou seja, os capítulos de História
Geral são intercalados com os de História do Brasil. Aliado a isso, o autor busca ao final
de cada conteúdo levar o aprendiz a posicionar-se criticamente e o remete a questões de
sua época relacionando-as ao fato passado, trazendo a importância do estudo da história.
O livro didático em questão faz parte de uma coleção de quatro livros editados pela
editora “Nova Geração”. Cada volume é dedicado a uma série, ou seja: volume 1, quinta série;
volume 2, sexta série; volume 3, sétima série e volume 4, oitava série. Trabalhamos com o
volume 3, 2ª edição de 2002, livro do professor. Em 2007 a coleção foi rejeitada pela avaliação
do MEC sob a acusação de fazer propaganda ideológica do socialismo. No “Manual do
Professor” inserido no final do livro, página 13, o autor refere-se à sua obra da seguinte
forma: “Em nosso livro, dentro dos limites de seu escopo, esforçamo-nos para
incorporar as novas tendências historiográficas, o novo pensamento na área da história
das mentalidades, do cotidiano, dos marginais, da leitura, da cultura material, do corpo,
da ciência, das mulheres, a micro-história, a história oral.” Acreditamos que esta citação
apresenta de forma geral a linha seguida por Schmidt na elaboração da referida coleção.
Análise do conteúdo didático
No capítulo intitulado “Abolição da Escravatura,” Mário Schmidt aborda várias
temáticas tais como: o processo abolicionista, o fim do tráfico, o Bill Aberdeen, o
tráfico interprovincial, a imigração européia, as vantagens do trabalho livre, a transição
para o capitalismo, o cativeiro da terra, a transição do Nordeste, o movimento
abolicionista. O conteúdo estende-se da página 282 a 296. Nesta última, o autor dedica
uma página inteira sobre as leis abolicionistas.
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Inicia abordando a questão da inevitabilidade da abolição e da necessidade dos
senhores de escravos tornarem-na um processo lento e gradual a fim de se adaptarem na
substituição da mão-de-obra. Isso justifica a criação das leis referentes à Abolição que
tinham como principal objetivo retardar o processo e ao mesmo tempo “conter” os
grupos abolicionistas. Percebe-se que o autor segue a linha da maioria dos historiadores
como Emília Viotti que diz:
As leis emancipadoras aprovadas pelo Parlamento tiveram um resultado
psicológico importante, pois condenaram a escravidão a desaparecer gradualmente.
Isto forçou os proprietários de escravos a pensarem em soluções alternativas para o
problema da mão-de-obra. Mas foi apenas quando os escravos decidiram
abandonar as fazendas em números cada vez maiores, desorganizando o trabalho,
que os fazendeiros se viram obrigados a aceitar, como inevitável, a Abolição.
(COSTA, 1998, p. 12).
O parágrafo seguinte (segundo parágrafo) é dedicado à análise da Lei do Ventre
Livre de 1871. O autor chama atenção para o fato de que “ela não libertava o bebê. O
garoto nascido a partir daquela data ficaria com seu senhor até completar 8 anos de
idade. Então o senhor o libertaria e receberia do governo uma indenização de 600
contos de réis.”
Observa-se aqui que, o autor, atem-se apenas a questão referente à condição da
criança escrava em relação aos aspectos econômicos e legais que a envolvem. Ignora a
situação da mãe escrava, suas expectativas ao engravidar a partir desta lei, seus
sentimentos em relação ao filho que talvez fosse separado dela. Em relação à criança, o
autor não faz uma reflexão mais profunda sobre o trabalho infantil, na época, a situação
da criança na sociedade escravista, a ruptura no relacionamento pais e filhos nos
momentos de afastamento devido ao trabalho intenso ou até mesmo a venda dos
escravos. Obviamente que a História não deixou registros específicos sobre tais
conjecturas, entretanto o historiador/professor pode procurar entender também o que
não foi registrado, o motivo pelo qual não foi registrado, ou ainda as entrelinhas do que
foi dito.
Voltando a questão da condição da mãe escrava, segundo Araújo & Aleixo:
Assim, no período atinente à colonização e constituição do Brasil Imperial
observamos a completa invisibilidade concernida ao gênero feminino como um
todo, agravando-se ainda mais no que versa às representações sobre mulheres
negras, de forma a suscitar a completa inexistência de menção à sua condição,
ultrapassando a lógica sexista/racista que tende a relegar as mulheres/negras à
condição de amantes, existindo apenas para satisfação hedonista masculina.
( ARAÚJO; ALEIXO, p. 10).
Constata-se assim que o autor do livro didático em questão, e no conteúdo
analisado, seguiu a tendência da historiografia tradicional, quando não abordou as
implicações da Lei do Ventre Livre no que diz respeito à mulher escrava e nem mesmo à
condição da criança escrava. Obviamente que seu interesse aqui era falar sobre as leis
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abolicionistas especificamente, entretanto, ao “ignorar” a condição da mulher escrava,
abre mão da oportunidade de levantar questões mais aprofundadas sobre temas
relacionados ao gênero feminino, ao mesmo tempo que coloca a mulher escrava na
condição apenas de “portadora do ventre” que irá parir o bebê que será beneficiado com
a lei.
Seguindo a linha de pensamento dos autores Araújo & Aleixo, referindo-se aos
livros didáticos da atualidade, afirmam:
Na maioria deles, despreza-se a participação das minorias étnicas, especialmente
mulhees, índios e negros. Quando aparecem nos livros didáticos, seja através de
textos ou ilustrações as mulheres ainda aparecem vinculadas a figuras masculinas,
numa condição de submissão e passividade. Essa condição se agrava na medida em
que a questão representativa versa acerca das mulheres negras, dada a presença
ainda, e infelizmente presente de concepções racistas que talvez não ganhem
visibilidade na esfera da punição pública, mas efetiva-se institucionaliza-se no
âmbito do privado. (ARAÚJO; ALEIXO, p. 10).
Ao não explicitar a condição da mulher escrava em relação à Lei do Ventre
Livre, o autor do livro didático agiu de acordo com a citação acima, ou seja, vinculou as
mulheres escravas às figuras masculinas, não abordando a questão de gênero feminino,
masculino. Ao tê-lo feito, poderia relacionar tal condição à realidade atual e trazer uma
reflexão sobre a violência contra a mulher em nossos dias, o baixo índice de
escolaridade das mulheres negras em relação às mulheres brancas, o preconceito contra
mulheres negras.
A seguir, o autor dialoga sobre a questão da indenização prevista na referida lei
e que beneficiava os senhores de escravos e cita o fato de que, outra alternativa seria
“utilizar o garoto como escravo até os 21 anos.” Então, faz referência ao fato da lei
ajudar os donos de escravos a se “adaptarem aos novos tempos ao mesmo tempo que
diminuía os ataques abolicionistas’. Conclui que a partir de 1880 o abolicionismo
ganha novo vigor e deixa entender que tal situação dará margem para a criação de uma
nova lei.
No próximo parágrafo (quarto parágrafo), o autor começa mencionando a Lei
dos Sexagenários, de 1885. Diz que a mesma determinava o fim das chibatadas e
libertava o escravo aos 60 anos. Então lança a dúvida em forma de pergunta: “quantos
deles conseguiam chegar vivos até essa idade?”, sugerindo que a condição de vida no
cativeiro proporcionava a poucos o privilégio de chegar aos 65 anos. Deixa a pergunta
para o aluno pensar, mas não aprofunda a questão. Então, ressalta que outra alternativa
seria libertar o escravo aos 60 anos e deixá-lo trabalhando mais três como forma de
indenização ao seu dono. Além de tratar a questão do gênero utilizando a palavra
“escravo” para referir-se tanto a homens como a mulheres, o autor não menciona o fato
de que tal lei beneficiava os donos de escravos na medida em que tirava de seus ombros
a obrigação de alimentar a conservar consigo escravos velhos e doentes. Neste aspecto,
a condição do homem e da mulher escrava na velhice poderia ter sido mais explorada no
sentido de levar o leitor a compreender a real situação dos mesmos na sociedade
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escravista e suas relações com o racismo e preconceito na sociedade atual. Mais uma
vez trabalharia a questão de gênero masculino e feminino, porém relacionado à terceira
idade tão falada em nossos dias.
Após traçar um breve cenário do país referindo-se à intensificação do
movimento abolicionista e das rebeliões e fugas de escravos, Schmidt, no mesmo
parágrafo, passa a falar sobre a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, segundo ele: “uma lei
simples que determinava a abolição completa e imediata da escravidão, sem nenhuma
indenização.” Nas entrelinhas sugere a ideia da lei ter sido assinada em virtude de não
haver outra opção senão esta e cita o nome da Princesa Isabel como responsável por sua
assinatura na ausência do pai, D. Pedro II que se encontrava fora do Brasil para
tratamento de saúde.
A seguir, refere-se ao fato de que a referida lei “não previa nenhuma proteção
social. As propostas de doação de terras para os ex-escravos foram arquivadas. A ideia
de indenizar os escravos foi ignorada. De escravos, os negros e os mulatos passaram a
trabalhadores muito pobres, com poucas chances de progredir numa sociedade
dominada por latifundiários cheios de preconceito.” Segue então, encerrando o conteúdo
indagando ao leitor se a situação atual mudou.
Mais uma vez a palavra “escravos” é utilizada pelo autor generalizado tanto
homens quanto mulheres, como se ambos os sexos tivessem sofrido as mesmas
dificuldades numa sociedade altamente preconceituosa. A condição da mulher negra
nesta abordagem reveste-se de completa invisibilidade. O autor, ao não mencioná-la,
coloca-a na mesma condição do homem, como se fossem ambos um só, compactuando
exatamente das mesmas vicissitudes da vida. Ignora que são gêneros distintos e que
tiveram cada um seu papel único na História. Também não se refere à situação da
criança descendente de escravos a qual lhe é negado o direito à educação. Poderia ter
feito uma relação entre tais constatações e a forma, como a partir deste momento
histórico foi construída a imagem do homem e da mulher negros, ex-escravos, através
do tempo.
Por outro lado, ao mencionar a questão da não proteção social aos ex-escravos
após a Abolição, o autor está se referindo a falta de um programa que visasse inserir o
escravo na nova ordem social. Isso implica tanto a situação do homem quanto da
mulher, embora se perceba ausência de análise de cada caso, o autor é coerente com os
historiadores que abordam tais aspectos, como por exemplo, Alves que diz:
Assim, o processo abolicionista não significou uma ruptura absoluta nas estruturas
sócio-econômicas e políticas vigentes e a liberdade dos escravos sempre esteve
condicionada a possíveis alternativas para a questão da mão-de-obra, bem como à
eliminação de qualquer perigo à ordem estabelecida. Esse contexto de
inalterabilidade integral do status que serviu para um profundo agravamento da
difícil incorporação do elemento negro nas sociedades da América Latina, num
fenômeno social que se fez sentir, com evidência até a presente época. (ALVES,
1995, p. 41)
Interessante que no início do tema sobre as Leis Abolicionistas, o livro didático
analisado apresenta uma caricatura com a representação de vários senhores de escravos,
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.377
bem vestidos, festejando a Abolição. Uns bebem, outro dança com uma mulher branca.
Os homens negros aparecem vestidos e calçados, mas servindo alimentos, bebidas e
limpando o chão. O que chama atenção na caricatura é a ausência das mulheres negras,
como se não existissem naquele contexto. Enquanto ao homem negro, há um papel a
desempenhar, mesmo que numa condição subalterna que indica a manutenção de seu
status quo, para a mulher negra e ex-escrava, restou o anonimato.
Considerações Finais
Ao realizarmos este trabalho chegamos a algumas conclusões que poderão
servir como base para outras pesquisas referentes à abordagem das questões de gênero
nos livros didáticos. A primeira conclusão é que precisamos, enquanto
historiadores/professores estar mais atentos ao discurso histórico presente nos livros
didáticos que utilizamos em sala de aula. Obviamente que não existem livros completos,
mas ao nos depararmos com certas questões falhas ou ausentes, podemos despertar no
educando a curiosidade para a busca de respostas que o levem a pensar criticamente as
questões de gênero tão importantes na formação e conscientização de sua própria
identidade. Para Rüsen, “os alunos tem uma sensibilidade extrema frente aos problemas
do presente, que os adultos, demasiado envolvidos nos mesmos, não podem nem
querem se permitir ter.“ (p.116 e 117) Tal constatação nos leva a pensar na importância
de avaliarmos o que e como estamos ensinando bem como a forma como nosso aluno
está assimilando o conhecimento compartilhado e fazendo as relações necessárias com a
sua atualidade.
A segunda constatação a que chegamos, é a de que apesar das pesquisas sobre
gênero terem alcançado um estágio relativamente avançado na academia, ainda não
chegaram de forma significativa na sala de aula, haja vista a sua ausência ou
superficialidade com que aparecem nos livros didáticos de história, especificamente
aqui, no artigo pesquisado. Mesmo autores que se dizem portadores de uma história
crítica, revestida de conceitos e teorias atuais, como no caso Mário Schmidt, ainda estão
atrelados a uma história preconceituosa, que ignora homens e mulheres enquanto
sujeitos que fizeram a nossa história. Se nosso aluno tem como base de sua formação
apenas esse conhecimento pautado na omissão de indivíduos que muito contribuíram na
formação de nossa identidade nacional, não podemos esperar que se revista de forma
significativa de uma consciência histórica que o leve a sentir-se como ser participante
da sua própria história.
Referências:
SCHMIDT, Mario Furley. Nova história crítica: 7ª série 2. ed. São Paulo: Nova
Geração, 2002.
ALVES, Francisco das Neves. A Abolição da Escravatura Negra na América Latina:
Desenvolvimento, Modalidades e Heranças. IN: Aspectos da Escravidão na América
Espanhola. Porto Alegre. PUC-RS.1995, p.41.
ARAÚJO, Patrícia Cristina de Aragão & ALEIXO, Ramon de Alcântara. Da (in)
visibilidade do Gênero Feminino no Ensino de História: Uma Análise das
Representações das Mulheres Negras nos Livros Didáticos de História do Ensino
Fundamental. UEPB, p. 8 e 10.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.378
BITTENCOURT, Circe. Identidade Nacional e Ensino de História no Brasil. IN:
KARNAL, Leandro (org). História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São
Paulo: Contexto, 2010. p. 185 a 204.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. Momentos Decisivos. São Paulo,
Brasiliense.6.Ed.1994.
MIRANDA, Sonia Regina & LUCA, Tânia Regina de. O Livro Didático de História
Hoje: Um Panorama a partir do PNLD. IN: Revista Brasileira de História. São Paulo,
v.24, nº 48, p. 123-124, 2004.
PROTO, Leonardo Venicius Parreira & SILVEIRA, João Paulo de Paula. O Gênero no
Livro Didático de História: Arranjos de Poder e Consciência Histórica. IN: Sapiência,
UEG/UnU Iporá, v. 1, n. 1, p. 102-112, 2012.
RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA,
Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. (orgs). Jörn Rüsen e o ensino de História.
Curitiba: Editora da UFPR, 2010.
SILVA, Juliana de Almeida Aguiar. Ensino de História e Questões de Gênero nos Livros
Didáticos. UFS, 2012, p. 4.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.379

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