algumas reflexões para a intervenção profissional

Transcrição

algumas reflexões para a intervenção profissional
Assistência Social e Trabalho: algumas reflexões para a intervenção
profissional
Érica T. Vieira de Almeida 1
[email protected]
Modalidade de trabalho:
Eixo temático:
Palavras- Chaves:
Resultado de pesquisa
Políticas Sociais e desenvolvimento no contexto
neoliberal e os desafios para o serviço social
“questão social”, assistência social, trabalho, precarização,
neoliberalismo e direitos sociais
Introdução:
Resultado de pesquisa de iniciação científica desenvolvida no município de
Campos dos Goitacazes/RJ, a partir de 2005 2, o trabalho em tela tem como finalidade
problematizar o significado atual da Política de Assistência Social, como política de
enfrentamento da pobreza e garantia dos direitos sociais (LOAS/93), considerando os
limites estruturais (de natureza econômica, política e cultural) impostos pelo padrão atual
do capitalismo mundializado e avanço da hegemonia neoliberal, especialmente na
desconstrução da idéia de cidadania e, ainda, pela permanência, no país, de uma cultura
política refratária à participação popular e à lógica da universalização do direito. Muitas
vezes ignoradas ou desconsideradas no exercício profissional do Assistente Social, a
crise mundial do emprego e o crescimento vertiginoso das variadas formas de
precarização do trabalho, combinando superexploração da força de trabalho, flexibilização
dos direitos trabalhistas e baixíssimas remunerações, são determinantes na reprodução
social precária dos trabalhadores pauperizados e suas famílias. Tal fato tem patrocinado
posturas ingênuas e a-críticas, estéreis do ponto de vista da afirmação do projeto ético –
político - profissional do Serviço Social, sobretudo no que se refere à defesa da autonomia
e do protagonismo político destes trabalhadores. Nesse sentido, este trabalho pretende
contribuir com algumas reflexões necessárias ao debate sobre os limites, alcances e
desafios da Assistência Social, tema que retorna à cena brasileira em virtude da
1
Assistente Social, Doutora em Serviço Social pela UFRJ, Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social do
Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da UFF em Campos dos Goytacazes/RJ, Brasil e membro
do NETRAD – Núcleo de Estudos em Trabalho, Cidadania e Desenvolvimento. Ponencia presentada en el XIX Seminario
Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos para su
formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de
octubre 2009.
2
Intituladas “O enfrentamento da “questão social” no município de Campos dos Goitacazes: impasses e desafios à
implementação da Política de Assistência Social” (2006) e As “portas de saída da Assistência Social: problematizando o
direito ao trabalho e à renda (2007 e 2008), estas pesquisas contaram com a participação de alunas de graduação de
Serviço Social com bolsas de Iniciação Científica apoiadas pelo sistema FENORTE/TECNORTE.
1
aprovação e implementação da PNAS/Política Nacional de Assistência Social e, por
conseguinte, do SUAS/Sistema Único de Assistência Social a partir de outubro de 2004.
Numa conjuntura mundial marcada pela reatualização do conservadorismo
econômico e político, o que no campo dos direitos sociais implica a sua supressão ou
flexibilização, parece inadiável a problematização da trajetória mais recente da
Assistência Social brasileira pós-LOAS, com ênfase nos seus programas de
enfrentamento à pobreza e de inclusão produtiva, considerando a tendência de
homogeneização de um padrão de intervenção profissional que vem negligenciando as
determinações histórico-estruturais em favor da psicologização da pobreza, da
culpabilização dos indivíduos e, mais recentemente, da valorização do empreendedorismo
e de formas precárias de inclusão no mercado de trabalho.
Não obstante os avanços na Política de Assistência Social a partir de 2003, com o
Governo Lula, em especial aqueles relativos à construção do SUAS, permanecem
inalteradas as condições de reprodução social dos trabalhadores pauperizados e
precarizados, sujeitos desta Política. Ainda que o governo Lula tenha melhorado os
índices do emprego formal e recuperado o poder aquisitivo do salário mínimo, a
manutenção do superávit primário e da política monetária destrói as possibilidades de
construção de um projeto nacional com feições populares e ancorado na valorização da
força de trabalho. Ao não investir na valorização do salário-mínimo, na eliminação do
subemprego e das formas precárias de auto-emprego, na expansão do emprego decente
e protegido e na promoção de uma rede de proteção social universal e de qualidade, sem
nenhuma forma de distinção e discriminação, o Estado brasileiro esvazia o conteúdo
constitucional da Política de Seguridade Social, eliminando qualquer possibilidade de
reverter o grave quadro de desigualdade social em que o país se encontra e de oferecer
perspectivas de futuro, sobretudo para os mais jovens.
Nesta perspectiva, pensar a Assistência Social como lugar de garantia de direitos e de
construção de protagonismo dos seus “usuários”, implica priorizar o debate sobre as
formas precarizadas e subalternizadas de inserção dos trabalhadores pauperizados na
economia de mercado, na medida em que se não é exclusivamente pela garantia do
direito ao trabalho- decente, seguro e protegido, capaz de prover as necessidades sociais
de uma família - que se avança no enfrentamento da pobreza e das demais seqüelas da
questão social, a negação ou a negligência com este direito social fundamental, não pode
gerar senão miséria, subalternidade e clientelismo.
2
Desenvolvimento:
Sabe-se que o desemprego e a precarização constituem as principais expressões da
“questão social” contemporânea
3
. Estima-se em 150 milhões o número de
desempregados no mundo, um número que pode crescer muito, se considerarmos as
formas disfarçadas de desemprego (o trabalho precário e o subemprego). O processo de
mundialização do capital a partir dos anos 70, caracterizado pela adoção de inovações
tecnológicas poupadoras de força de trabalho, aliada à desregulamentação e liberalização
dos mercados de capitais, financeiros e de trabalho, aprofundou ainda mais as
desigualdades socioeconômicas entre os países centrais e periféricos e no interior
desses. Além disso, nas sociedades periféricas e semi-periféricas, a concorrência pelo
oferecimento de mão-de-obra a custos decrescentes, em função do agravamento do
desemprego estrutural no mundo, vem intensificando ainda mais o processo de
precarização do trabalho. Para Barbosa (2007), a informalidade, assim como a
precarização, associados às formas pré-capitalistas e atrasadas, constituem relações
funcionais ao capitalismo contemporâneo que se caracteriza pelo aumento das taxas de
lucro dos grandes oligopólios em detrimento da reprodução social da força de trabalho,
corroborada pelo aumento do desemprego e da flexibilização dos direitos trabalhistas.
A promoção de diversas políticas de ajuste econômico, sobretudo a partir de 1990 com
a adoção do receituário neoliberal, aprofundou o quadro de estagnação da renda per
capita acompanhado pela desaceleração na abertura de novas vagas assalariadas
formais, abrindo maior flanco para elevação do desemprego e de postos de trabalho
precários. (POCHMANN, 2004). Segundo o Mi nistério do Traba lho, e ntre 1990 e 98, as
ocupações mais qualificadas caíram e as não-qua lificadas cresceram em 14,2%,
envo lve ndo, principa lme nte, mulheres, crianças e jovens pauperizados. Cerca de 30%
dos postos de trabalho abertos foram por conta própria, sem remuneração e
empregadores, ratificando a tendência de crescimento da precarização, isto é, das formas
disfarçadas de desemprego, um subproduto tanto das formas “atrasadas” e précapitalistas quanto daquelas mais modernas e atuais vigentes no mundo capitalista. Entre
os jovens de 15 a 24 anos, o desemprego passou de 5,39% para 14,63%, no período de
1989 a 1998. Atualmente, 54% da mão-de-obra desempregada no Brasil têm menos de
3
A “questão social” é compreendida como o conjunto das expressões da desigualdade social fundada na apropriação
privada dos meios de produção e, por conseguinte, na produção da mais-valia por meio da subsunção do trabalho ao
capital. Nesse sentido, a sua dinâmica está diretamente vinculada ao desenvolvimento do capitalismo e suas novas
expressões, sejam de natureza econômico-social, política, cultural, de gênero, étnico –racial, dentre outras.
3
25 anos de idade (PNAD/IBGE,2005). Em 2005, o desemprego entre os jovens alcançou
a marca de 17,1%. Entre os adultos com mais de 26 anos ela é de 5,8%. No entanto, se
considerarmos a taxa de desemprego entre os jovens mais pobres, ela salta para 31,5%,
indicando claramente a necessidade de investimento, bem como de ações integradas e
universais voltadas para a proteção social dos jovens brasileiros.
Não obstante o conjunto de medidas relativas à regulamentação das relações de
trabalho 4, à recuperação e ampliação dos direitos civis e políticos e aquelas referentes
aos direitos sociais, mais precisamente, à introdução da idéia de seguridade social5, a
“Constituição Cidadã”, como ficou conhecida a Constituição Brasileira sancionada em
1988, conciliou duas lógicas contraditórias – a da universalização dos direitos sociais e a
da lógica corporativa. Enquanto a primeira inclui indistintamente, a segunda hierarquiza e
fragmenta a classe trabalhadora entre trabalhadores formais (segmento contributivo que
goza de plenos direitos trabalhistas e previdenciários) e os demais trabalhadores e nãotrabalhadores (desempregados). A presença da lógica corporativa foi a grande
responsável pela vinculação dos direitos sociais aos direitos do trabalho (formalmente
reconhecido), e não aos direitos do cidadão, na acepção de Marshall (1967). Isso é uma
indicação clara da ausência do princípio da eqüidade na Constituição de 88, o que, por
sua vez, ameaça a concepção de cidadania enquanto o direito de “todos” participarem do
conjunto de bens e serviços produzidos por uma nação.
Passados 20 anos, uma grande parte da classe trabalhadora continua sem a
“proteção” concedida aos trabalhadores formalmente integrados. São eles: - os
trabalhadores informais, autônomos ou por conta própria, os desempregados, os idosos
(sem direitos previdenciários e que também não têm renda per capita inferior a ¼ do
salário-mínimo), os deficientes, as mulheres, os jovens e etc. Todavia, como já
4
Referimo-nos à redução da jornada semanal de trabalho, liberdade de associação e organização sindical, unicidade
sindical, proteção contra despedida arbitrária, sem justa causa e em face da automação, direito de greve, salário família,
licença à gestante, licença – paternidade e proteção ao trabalho da mulher e do adolescente.
5
A partir da CF de 88 a Seguridade Social é apresentada como Política de Proteção Social do Estado brasileiro e, portanto,
como direito do cidadão, passando a integrar as Políticas de Previdência, de Saúde e de Assistência Social. Embora restrita
se comparada à concepção de Seguridade Social nos países de Welfare-State e com níveis diferenciados de proteção em
virtude da natureza distinta de cada uma das Políticas que a constitui (contributiva, universal e não-contributiva), a
introdução da noção de seguridade na CF/88 significa uma ruptura parcial, mas importante com o padrão de “cidadania
regulada” que caracterizou a cidadania brasileira até então. A inclusão dos trabalhadores rurais na Previdência Rural com a
equiparação dos seus benefícios aos trabalhadores urbanos e de ambos ao salário mínimo vigente foi um dos principais
mecanismos de equidade social, tornando a Previdência Social brasileira uma das maiores e mais importante ação de
distribuição de renda da América Latina, cobrindo uma população de 75 milhões de pessoas. De acordo com o sindicato
dos auditores da Previdência com a aposentadoria rural, a RMV e o BPC (após a LOAS), 21 milhões de pessoas saíram da
situação de indigência (1/4 do salário mínimo mensal). Todavia, ainda são 32 milhões de trabalhadores desprotegidos:- 29
milhões (16 e 59 anos) e 3,3 milhões (acima de 60 anos). Cabe lembrar ainda que foi a CF/88 que ampliou as fontes de
financiamento da Seguridade Social, incluindo para além das contribuições previdenciárias de empregadores e
empregados, o CONFINS e a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CLL). Cabe lembrar que o Orçamento da Seguridade
Social brasileira em 2008 ultrapassou os 340 bilhões de reais. Esses recursos são administrados pelo Tesouro Nacional e
deslocados tanto para o superávit primário quanto para os diversos Ministérios.
4
assinalamos, a promoção das políticas de ajuste econômico a partir da década de 90 com
a adoção do receituário neoliberal não só aprofundou o quadro de estagnação da renda
per capita, como também inibiu o crescimento de novas vagas assalariadas formais,
contribuindo para o avanço da precarização do trabalho e, por conseguinte, do
empobrecimento. Segundo o IBGE, entre 2003 e 2004, para cada emprego formal criado
apresentaram–se mais 10 no segmento da informalidade 6. Além disso, cabe destacar que
a “informalidade não é mais transitória, como era considerada ao tomá-la como excedente
de mão-de-obra” (BARBOSA, 2007), assim como o desemprego também não o é. Ambos
são expressões do atual padrão de acumulação que se consolidou mundialmente a partir
dos anos 70, assentado na expansão dos grandes oligopólios mundiais, no crescimento
da financeirização e das taxas de lucro em detrimento da valorização da força de trabalho
(baixos salários, flexibilização dos direitos, precarização, trabalho feminimo e infantojuvenil, dentre outros).
Segundo Mota (1995), contraditoriamente, ao mesmo tempo em que a seguridade
brasileira pós-88 aponta para a inclusão de segmentos antes excluídos do sistema de
proteção social, pela via da assistência social (voltada para os segmentos mais
vulneráveis da população), ela aponta para a expulsão gradual dos trabalhadores
assalariados de melhor poder aquisitivo para o mercado de serviços, consolidando a
tendência de mercantilização dos serviços essenciais (saúde, educação e previdência),
iniciada na década de 70, sob a ditadura civil-militar, como também visa a introduzir uma
nova distinção entre os cidadãos: os “cidadãos – consumidores” e “cidadãos – pobres e
assistidos”. Enquanto os “cidadãos-consumidores” são alvo da iniciativa privada, os
“cidadãos pobres e assistidos” continuam sob a tutela e a proteção do Estado, porém, de
maneira diferente. Enquanto os primeiros permanecem cobertos pelo conjunto das leis
trabalhistas e previdenciárias, os segundos, os “assistidos” (aqueles trabalhadores que
não possuem vínculos legais com o mercado de trabalho), compõem, com os idosos, as
crianças e os adolescentes, os deficientes e os demais segmentos considerados
vulneráveis, o conjunto dos usuários da assistência social pública.
Além da hierarquização que impede que trabalhadores formais, informais,
desempregados e idosos gozem da mesma proteção perante o Estado, a introdução e
manutenção de mecanismos de focalização na Assistência Social - os critérios de renda -,
6
A OIT designa como trabalhadores informais aqueles por conta própria, exceto profissionais liberais, os familiares não–
remunerados, os que realizam serviços domésticos, os empregadores e empregados de pequenas empresas. Ver:
BARBOSA, Rosângela Nair de Carvalho. A economia solidária como política pública: uma tendência de geração de
renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007.
5
tem impedido que uma parcela expressiva dos trabalhadores em situação de pobreza e
excluídos
da
Previdência
Social
tenha
acesso
aos
programas
e
benefícios
sócioassistenciais. Além da fixação dos critérios de renda e da intensa fiscalização sobre
os seus “usuários”, os programas de assistência social, especialmente os de transferência
de renda, vêm introduzindo as chamadas condicionalidades ou contrapartidas dos
usuários. De maneira geral as contrapartidas referem-se à freqüência escolar das
crianças e adolescentes, ao atendimento básico de saúde, acompanhamento do cartão de
vacinação das crianças e pré-natal. Alguns programas exigem também a participação dos
beneficiários dos programas nas ações de geração de trabalho e renda, na maioria das
vezes, cursos que capacitação.
Cabe destacar que ao responsabilizar os trabalhadores e sua família pelo
cumprimento das chamadas condicinalidades, o Estado brasileiro desloca o foco da
discussão sobre a responsabilidade pela efetivação dos direitos sociais, eximindo-o e, ao
mesmo tempo, culpabilizando os trabalhadores pauperizados pela situação de negação
dos direitos, traduzindo as ambigüidades e os dilemas desta Política em tempos de
hegemonia neoliberal e de crise do padrão de enfrentamento da “questão social”.
Principal Programa de Enfrentamento à Pobreza no Governo Lula, o Programa de
Transferência de Renda Bolsa-Família 7 considerado por muitos especialistas como um
importante mecanismo de inclusão social, na medida em que possibilitou uma melhor
distribuição da renda do trabalho e o acesso de segmentos significativos da população em
situação de pobreza ao consumo ainda não conseguiu promover o acesso dos seus
“usuários” às políticas públicas fundamentais. Segundo estudos do próprio Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a garantia dos direitos sociais fundamentais
às famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família continua sendo um desafio. Cabe
destacar que além dos problemas relativos ao valor do benefício recebido pelas famílias
7
Instituído pela Medida Provisória n. 132, em outubro de 2003, o Bolsa Família é um programa federal de transferência
direta de renda destinado às famílias em situação de pobreza, isto é, com renda per capita mensal entre R$60,01 e R$120
reais e em situação de extrema pobreza com renda per capita mensal de até R$60 reais. Para aquelas famílias em
situação de pobreza é transferido um benefício variável no valor de R$20 reais por criança e adolescente com até 15 anos
de idade (no máximo de três benefícios por família) e também o benefício variável vinculado ao adolescente (16 e 17 anos),
de R$30 reais (máximo de dois benefícios por família). O benefício básico, de R$ 62 reais, é pago às famílias consideradas
extremamente pobres, mesmo que elas não tenham crianças, adolescentes ou jovens.Em dezembro de 2008 o Programa
Bolsa Família atendia a mais de 10 milhões de famílias, enquanto o BPC (benefício de prestação continuada da LOAS)
atendia no mesmo período a aproximadamente 3 milhões de pessoas, entre deficientes e idosos. Juntos, esses gastos
representam mais de 20 bilhões de reais por ano, confirmando a afirmativa de Lavinnas de que aumentou
consideravelmente os gastos com assistência social no Governo Lula. Ver: LAVINAS, Lena. Transferência de renda: o
“quase tudo” do sistema de proteção social brasileiro.In: SICSÚ (org). Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para
onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007. pp.51-68.
6
que atendem aos critérios de renda definidos pelo Ministério, o Programa não tem
conseguido resultados positivos no que se refere à expansão da rede de direitos sociais,
sobretudo àqueles relativos à moradia, ao saneamento básico, à educação e à saúde e
ao trabalho decente e protegido.
Segundo pesquisas recentes sobre o orçamento federal, estaduais e municipais
(LAVINAS, 2007) ao mesmo tempo que os governos (federal, estaduais e municipais)
investem em assistência social, leia-se Programas de Transferência de Renda, os
investimentos púbicos em saúde, educação, emprego, previdência, habitação e
saneamento decresceram, comprometendo os investimentos e os resultados realizados
em assistência social, na perspectiva da garantia dos direitos sociais.
De acordo com Mota (2008), para realizar-se enquanto política pública de acesso
aos direitos sociais (LOAS/93) é necessário que a Assistência Social venha acompanhada
das demais políticas estruturantes e universais, em especial, daquela que promove a
geração de trabalho, concebido como um direito fundamental. O movimento contrário, isto
é, o crescimento dos gastos com a política de assistência em detrimento dos gastos com
a universalização das políticas públicas não é capaz de enfrentar as seqüelas do já
conhecido padrão de desigualdade nacional, agravado pelo desemprego e pelas
diferentes formas de precarização do trabalho que associam baixíssima remuneração à
superexploração da força de trabalho.
Descolada das suas determinações sócio- históricas, a pobreza é confundida
muitas vezes com a “questão social” 8, obscurecendo os vínculos entre esta última e o
padrão de acumulação capitalista, sobretudo, com o padrão que se consolida a partir das
últimas
duas
décadas
do
século
passado
(caracterizado
pela
financeirização,
concentração e centralização do capital e pela hegemonia da doutrina neoliberal), quando
o processo de valorização do capital alcançou índices jamais conhecidos na história. O
aumento da pobreza assim como da violência urbana e de outras mazelas oriundas do
processo de industrialização e urbanização realizados sob a lógica do valor de troca não
deve ser compreendido de per si, mas como sintomas de uma modernização que se
recusou a estabelecer parâmetros de reciprocidade, na medida em que interdita a
cidadania como “igualdade de participação na distribuição da riqueza socialmente
produzida”. (MARSHALL, 1967)
8
A “questão social” é compreendida como o conjunto das expressões da desigualdade social fundada na apropriação
privada dos meios de produção e, por conseguinte, na produção da mais-valia por meio da subsunção do trabalho ao
capital. Nesse sentido, a sua dinâmica está diretamente vinculada ao desenvolvimento do capitalismo e suas novas
expressões, sejam de natureza econômico-social, política, cultural, de gênero, étnico –racial, dentre outras.
7
Ao conceber a Assistência Social como a política capaz de enfrentar a pobreza e
as demais sequelas da “questão social”, sobretudo na configuração que ela assume no
início deste século, implica em atribuir-lhe um significado que ela não pode realizar
sozinha. Segundo Mota (2008), trata-se da “fetichização da Assistência”, um fenômeno
reincidente no debate do Serviço Social e que tem como conseqüência mais grave, limitar
a ação do Estado nos níveis da administração da pobreza e não na perspectiva da sua
superação. Aliás, essa tem sido a tendência das chamadas políticas de nova geração
(MAURIEL, 2006), na medida em que não se destinam a erradicar os mecanismos que
produzem e reproduzem a desigualdade social no país. Ao não operar no campo da
redistribuição da riqueza, como já chamavam a atenção os velhos keynesianos nos anos
30 e 40, as novas modalidades de intervenção social acentuam a sua natureza residual e
focalizadora, reforçando o seu papel compensatório e afastando–se do seu significado
sócio-político original, qual seja, o de minimizar as seqüelas da desigualdade de classe,
promovendo ao mesmo tempo a reprodução social da força de trabalho (direitos sociais
universais) e a valorização do capital (acesso ao mercado de consumo de massa). A
defesa das políticas sociais de origem social-democrata não implica a defesa da idéia de
retorno ao Estado de Bem–Estar Social e nem a de que ele continuaria a figurar como
uma possibilidade para os países periféricos. Ao contrário, a referência a esta experiência
histórica faz-se necessária para afirmar o esgotamento de um padrão de acumulação,
restrito aos países de capitalismo central, que combinou ampliação das taxas de lucro
com ampliação de direitos9.
Implementados a partir da década de 90 pelos últimos governos os Programas de
Geração de Trabalho e Renda (PGTR) vem sendo apresentados como as principais
estratégias de enfrentamento ao desemprego, sobretudo, quando se refere aos
trabalhadores mais empobrecidos. Voltados para a inserção e re-inserção de jovens e
adultos no mercado de trabalho, através da “capacitação profissional”, esse Programa
demonstra uma análise equivocada do fenômeno do desemprego atual, além da adoção
de uma perspectiva conservadora que responsabiliza e culpabiliza os trabalhadores pelo
seu desemprego e/ou subemprego. Daí a sua ênfase na qualificação da força de trabalho
9
Considerando a insuficiência de espaço para o tratamento mais aprofundado deste debate, faz-se necessário deixar claro
que a defesa do padrão de intervenção social construído no pós-Segunda Guerra Mundial, nos países de capitalismo
central, assentado no pleno emprego, na valorização do salário e na criação de uma rede ampla e universal de direitos
sociais, não significa desconsiderar as suas determinações histórico-estruturais ( a crise de acumulação), as suas tensões
e, nem tampouco, os seus limites do ponto de vista dos avanços da cidadania ativa. Os choques com a lógica do
capitalismo tardio foram inevitáveis e a sua débâcle a partir da ascensão do neoliberalismo corrobora o seu reformismo
insuficiente. Todavia, a construção dessa experiência não pode ser desconsiderada como uma construção que contou com
o protagonismo dos aparelhos de hegemonia dos trabalhadores, sob pena de retirarmos a dimensão política e subjetiva da
história.
8
e não nas estratégias macro-econômicas que poderiam amenizar a situação do
desemprego no país.
Presente na LOAS (1993) e na nova PNAS(2004), as estratégias de inclusão
produtiva, restritas aos cursos de capacitação e, mais recentemente no Governo Lula, à
Economia Solidária10 carecem não só de diagnóstico, como também de um profundo
debate
teórico-político,
sobretudo
nos
municípios
onde
têm
sido
amplamente
implementadas, de modo a rever o sentido conservador impresso nestas iniciativas.
Transformadas em cursos de capacitação profissional, com vistas à produção e
comercialização de produtos artesanais e voltados prioritariamente para as mulheres,
essas estratégias não fazem mais do que promover a inserção subordinada e precarizada
ao mercado de trabalho. A ausência de um deba te público sobre o te ma do desemprego,
be m como das suas características regionais, tem produzido e ntre os gestores e técnicos
da Assistência Social uma concepção de que o desempre go é um proble ma indivi dua l,
responsabili zando o próprio traba lhador pe la sua situação social. Essa psicologização do
social acaba joga ndo á gua no moi nho neo li beral e reforçando a tese da desresponsabili zação social do Estado. Além de contribuir para o embaçame nto do pa pe l do
Estado no enfrenta mento da “questão social”, esta idéia exi me o Estado brasileiro da sua
função de pri ncipa l condutor da Po lítica Econô mica nacional e , porta nto, de pri ncipa l
responsável pe la criação ou destruição dos postos de tra balho.
A hipervalorização dos cursos como estratégias de enfrentamento do desemprego
é um outro equívoco que acaba hipervalorizando também as ocupações precárias e
informais, consideradas como as únicas alternativas ao desemprego dos trabalhadores
pauperizados, mesmo quando esse trabalho não gera a superação da condição de
“assistido”. Contribui para a reprodução desses valores e práticas, a ausência de um setor
de ava liação e mo nitora mento , responsáve l pe lo acompanha mento dos resulta dos e
impactos dos progra mas sócio-assistenciais.
As pesquisas demonstraram que embora os gestores e técnicos da Assistência se
mostrem preocupados com a eliminação do assistencialismo e com a tão sonhada
“emancipação” dos “assistidos”, é patente a ausência das determinações econômicas na
compreensão das condições de vida e de trabalho do usuário da assistência. Quando ele
10
Ver BARBOSA, Rosângela Nair de Carvalho. A economia solidária como política pública: uma tendência de geração
de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007. Ainda sobre os empreendimentos solidários,
o diagnóstico realizado pelo IBASE no estado do Rio de Janeiro demonstra as dificuldades e os principais problemas
experimentados por essas atividades. Ver <www.ibase.org.br>
9
não é visto como “aquele que não quer trabalhar” e “dependente” do poder público, ele é
reconhecido simplesmente como “pobre”, sem nenhuma referência a sua trajetória de vida
e de trabalho. A ausência das mediações econômicas tem impedido que o usuário da
Assistência seja reconhecido como um trabalhador, demandando uma mudança radical
na perspectiva que tem orientado tal Política.
Conclusão:
Os desafios postos à Assistência Social como política garantidora dos direitos
sociais para todos os trabalhadores, em especial do direito ao trabalho e à renda
necessária para o provimento das suas necessidades sociais, não são fáceis e, nem
tampouco, se resolvem no campo restrito da Assistência. O enfrentamento do
desemprego e das formas disfarçada de desemprego demanda uma ação trans-escalar e
articulada entre as diversas Políticas Públicas, sobretudo, com a política econômica,
política que tem definido, em última instância, as prioridades de investimento e de
alocação dos recursos públicos.
Não podemos nos esquecer de que o problema do desemprego e da precarização
no Brasil articula elementos históricos da nossa “modernização pelo alto” com aspectos
contemporâneos do capitalismo financeirizado e mundializado. Esta situação exige muito
mais do que as ações voltadas para o desenvolvimento local podem oferecer, ela carece
de uma estratégia nacional de redução da jornada de trabalho aliada à valorização da
política salarial e à universalização dos direitos sociais, iniciativas desafiadoras
considerando a atual conjuntura
econômica
e política mundial
marcada pela
superexploração do trabalho e pelas altas taxas de lucro dos oligopólios e por uma
conjuntura política e social caracterizada pela hegemonia das idéias neoliberais e pelo
consentimento passivo dos trabalhadores.
Foram muitas e desastrosas as consequências de quase 30 anos de hegemonia
neoliberal na América Latina, dentre elas o agravamento do desemprego e do quadro de
desigualdade social, afetando principalmente os mais jovens, principais vítimas da
violência urbana e do crescimento do narcotráfico nas periferias e favelas. No Brasil, a
hegemonia do pensamento neoliberal que culminou com as privatizações e avanço do
processo de mercantilização dos direitos sociais, inclui também a generalização da idéia
de “empreendedorismo” que responsabiliza e culpabiliza o indivíduo pela sua inserção ou
não no mercado de trabalho. O reaparecimento de valores, concepções e práticas já
10
enfrentadas pelo projeto ético-político-profissional a partir dos anos 70 indica uma forte
presença do neo-conservadorismo entre nós assistentes sociais, especialmente, na
política de Assistência Social, lugar histórico do clientelismo e das formas avessas à
cidadania e à participação popular. A psicologização da pobreza, a culpabilização dos
indivíduos, e mais recentemente, a valorização do empreendedorismo e de formas
precárias de inclusão produtiva entre os profissionais que trabalham na Assistência não é
senão a reatualização de um conservadorismo que precisa ser apontado e criticado para
não mistificarmos mais uma vez esta Política e, tampouco, nos limitarmos às iniciativas e
lógicas presentes nas propostas governamentais que quase sempre, respondem às
exigências de agentes do capital transnacional.
Fruto da expansão da lógica neoliberal também na sociedade civil brasileira, a
idéia de “empreendedorismo” recupera a máxima liberal do século XVIII, segundo a qual o
indivíduo é o único responsável pela sua felicidade e pelas suas oportunidades,
promovendo uma verdadeira des-economicização e des-politização da história do
capitalismo. Ao eximir o Estado das suas responsabilidades com o enfrentamento das
múltiplas expressões da “questão social”, os neoliberais convocam a sociedade civil,
transformada em “terceiro setor” a assumir as ações no campo da assistência social num
claro retorno à re-filantropização, ou se preferirmos, à re- privatização da “questão social”.
Essas idéias contribuem com o avanço da mercantilização dos direitos sociais,
desafiando a agenda social dos trabalhadores e dos segmentos comprometidos com a
luta dos trabalhadores nesta primeira década do século XXI.
Bibliografia:
ALMEIDA, Érica T.V. de et al.UFF/ESR/NETRAD. Relatório de Pesquisa. As
“portas de saída” da Assistência Social: problematizando o direito ao trabalho e à renda.
2008.
________.Relatório de Pesquisa. As “portas de saída” da Assistência Social:
problematizando o direito ao trabalho e à renda. 2007.
________.Relatório de Pesquisa. O enfrentamento da “questão social” no
município de Campos dos Goytacazes: impasses e desafios à implementação da política
de assistência social. 2006.
11
BARBOSA, Rosângela Nair de Carvalho. A economia solidária como política
pública: uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2007.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Ed. Brasília.
403p.
BRASIL, Política Nacional de Assistência Social, Resolução nº 145, 15 de outubro
de 2004, publicada no DOU de 28 de outubro de 2004.
BRASIL, Presidência da Republica. Lei orgânica da Assistência Social, nº 8.742,
de 7 de dezembro de 1993.
IBGE. Censo Demográfico de 2000.
____. PNAD/2005.
LAVINAS, Lena. Transferência de Renda: o “quase tudo” do sistema de proteção
social brasileiro.In: SICSÚ (org). Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para
onde vão?). São Paulo: Boitempo, 2007. pp.51-68.
MARSHALL, T.H. Cidadania e classe social. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MAURIEL, Ana Paula Ornellas. Combate à pobreza e (des) proteção social:
dilemas teóricos das “novas” políticas sociais. In: Praia Vermelha. No. 14 &15. Políticas
Sociais &Segurança Pública. Rio de Janeiro:UFRJ, 2006. pp. 48-71.
MOTA, Ana Elizabete (org.). O mito da assistência social: ensaios sobre Estado,
política e sociedade. 2ª. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
_______. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da
Previdência e da Assistência Social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo, Cortez,1995.
Incorporar exclusivamente la bibliografía que será referenciada en el texto.
POCHMANN, Márcio.O emprego na globalização.a nova divisão do trabalho e os
caminhos que o Brasil escolheu .Boitempo: São Paulo, 2001.
__________________. Economia Solidária no Brasil: possibilidades e limites.
Cadernos IPEA. Mercado de Trabalho. 2004. pp.23-34.
YASBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo,
Cortez, 1993
12

Documentos relacionados

a assistencialização minimalista das políticas socias no - cress-mg

a assistencialização minimalista das políticas socias no - cress-mg orientadas para o mercado – abertura comercial e privatizações - acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que fortaleça a competitividade da indústria nacional; reforma da Previdência ...

Leia mais

Sistemas de proteção social, intersetorialidade e integração

Sistemas de proteção social, intersetorialidade e integração Para Castel (2005: 92), a proteção social é condição para construir uma “sociedade de semelhantes: um tipo de formação social no meio da qual ninguém é excluído” Para o autor ser protegido do ponto...

Leia mais