Não à clonagem humana

Transcrição

Não à clonagem humana
ENTREVISTA
Julian Nida-Rümelin
Não à clonagem humana
FOTO: DIVULGAÇÃO COPPE/UFRJ
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Especialista em ética e ciências políticas, o Ministro da Cultura e de Mídia da
Alemanha, Julian Nida-Rümelin, tem uma
posição muito bem definida com relação à clonagem reprodutiva humana: é
absolutamente contra. “Decidir a constituição genética dos filhos é uma carga
de responsabilidade que as pessoas
não podem ter”, afirma. Professor de
filosofia na Universidade de Göttingen
desde 1993, ele só admite a pesquisa
com clones desde que seja desenvolvida estritamente com fins terapêuticos. “Qualquer tentativa de clonagem
reprodutiva representa uma ameaça aos principais valores e interesses humanos”, declara.
Membro da Academia Européia de Ciências e Artes, Nida-Rümelin esteve no Rio de Janeiro
em agosto, ocasião em que proferiu a palestra ‘Técnica e ética na engenharia genética’ na
Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Em entrevista exclusiva a Ciência Hoje, o ministro alemão
destaca a necessidade de estabelecer limites éticos para a nova tecnologia. Em sua opinião,
a humanidade precisa de tempo para absorver as novidades da engenharia genética.
ENTREVISTA CONCEDIDA A JÚLIA DIAS CARNEIRO (CIÊNCIA HOJE/RJ) E ALICIA IVANISSEVICH (CIÊNCIA HOJE/RJ)
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O senhor acha que a clonagem
humana deve ser feita?
Na minha opinião, a clonagem humana deveria
ser proibida sem qualquer exceção. A clonagem
com fins exclusivamente terapêuticos poderia
ser permitida, desde que ela não estimulasse
nem desencadeasse a clonagem reprodutiva humana.
Quais seriam os principais limites éticos
para a clonagem humana?
Uma sociedade que permite métodos contraceptivos que destroem o óvulo fecundado em seus primeiros dias, como é o caso da sociedade alemã, não
pode, ao mesmo tempo, coibir a manipulação de
células embrionárias nos primeiros dias após a fertilização. Assim, os limites éticos devem ser estabelecidos de acordo com os interesses e os valores
humanos. A clonagem reprodutiva humana – se
realmente puder ser realizada tecnologicamente –
ameaçaria interesses e valores humanos essenciais.
A possibilidade de se fazer a clonagem reprodutiva,
ou seja, a possibilidade de se produzir outro ser
humano com o mesmo (ou quase o mesmo) código
genético de uma pessoa viva provavelmente mudaria o espectro de propriedades genéticas profundamente. Ninguém sabe se essa mudança seria compatível com a ampla diversidade natural que hoje é
característica do ser humano. Esse é um argumento contra a clonagem reprodutiva humana com re-
do também com os perfis psicológicos de cada um.
Imagine a criança crescendo, vendo fotos do pai ou
da mãe quando era da sua idade e sabendo praticamente como ela vai ser no futuro. Porque um clone
nada mais seria do que um gêmeo univitelino separado por algumas décadas do ser que lhe deu origem. Se já é suficientemente difícil crescer e construir a própria identidade, essa situação tornaria
esse processo ainda mais complexo. Além disso,
acho que querer que os filhos sejam cópias idênticas dos pais é, no mínimo, uma atitude de extrema
vaidade por parte deles.
Mas, a seu ver, quais seriam os argumentos
contrários à clonagem humana?
Vamos supor que clonar seres humanos seja realmente possível e relevar o aspecto da pesquisa em
si e de todos os questionamentos éticos envolvidos
nesse processo. Então eu pergunto: existe algum
ponto positivo na clonagem reprodutiva? Não consigo ver qualquer argumento convincente a seu
favor que não possa ser refutado. Mesmo quando
se consideram esses casos individuais. Vamos imaginar, por exemplo, um casal que perdeu um filho
e que queira reproduzir essa criança. Eu acho inaceitável que se crie a ilusão de que essa outra criatura, com a mesma constituição genética daquela que morreu, seja uma reprodução da outra. Mesmo geneticamente idêntica, trata-se de uma nova
pessoa, com outra identidade.
Vamos imaginar um casal que perdeu um filho e queira reproduzir essa
criança. Acho inaceitável que se crie a ilusão de que essa outra criatura,
com a mesma constituição genética daquela que morreu, seja uma
reprodução da outra. Mesmo geneticamente idêntica, trata-se de uma
nova pessoa, com outra identidade
lação à humanidade como um todo. Mas existem
também argumentos específicos para situações individuais que apontam para a proibição dessa
tecnologia.
O senhor poderia exemplificar
com algum caso?
Um filho ou uma filha com o mesmo código genético que o de seu pai ou sua mãe provavelmente sofreria uma grande pressão para se tornar pareci-
O médico italiano Severino Antinori defende
a clonagem humana como solução para casais
incapazes de ter filhos e que não querem
recorrer a um doador.
Você concorda com essa idéia?
A clonagem humana pode ser admitida
para situações específicas como essa?
Não, clonagem reprodutiva humana não deve ser
permitida em hipótese alguma, nem mesmo para
situações específicas como essa.
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outubro de 2001 • CIÊNCIA HOJE • 9
Se a pesquisa nessa área fosse proibida,
isso não atrasaria o progresso científico,
evitando os benefícios que a nova tecnologia
poderia trazer?
Isso é de fato muito provável. Se a clonagem com fins
terapêuticos tiver realmente o potencial que muitos
cientistas acreditam que ela tenha, talvez possa vir a
salvar milhares de vidas. Mas existe uma grande diferença entre esse potencial terapêutico e as propostas do médico italiano Severino Antinori. Por isso,
para desenvolver esse potencial, são necessárias medidas éticas, sociais e jurídicas que assegurem que a
clonagem reprodutiva humana não seja realizada.
Só assim seria eticamente aceitável desenvolver
a clonagem para tratar doenças severas.
Apesar de a Alemanha ter sido um dos primeiros
países a regulamentar a engenharia genética,
pesquisas mostram que a maior parte de sua população
é contra o uso dessa tecnologia. Levando-se em
consideração a história alemã, essa posição pode ser
relacionada às impressões deixadas pelo nazismo?
O mau uso da ciência durante os tempos do nazismo é certamente um motivo para que assuntos como
esses sejam vistos com mais hesitação e temor na
Alemanha do que em outros países.
Em que áreas o senhor considera que a pesquisa
na engenharia genética deveria continuar?
A pesquisa científica deve ser o mais livre possível,
desde que continue sendo compatível com os valores
A pesquisa científica deve ser o mais livre possível, desde que continue sendo compatível com os valores básicos humanos. Não vejo problemas, por
exemplo, em fazer um rastreamento genético nos casos de fertilização in
vitro que envolvam risco, como quando a mulher já tem uma certa idade
Qual é a posição da Alemanha com relação
à clonagem humana e à produção
de clones em geral?
Difere de outros países europeus?
Até agora não existe algo que possa ser chamado
de “a posição da Alemanha”. Na área jurídica, existe uma lei (Embryonenschutzgesetz – lei de proteção ao embrião) que garante proteção completa à
vida humana a partir do momento da fertilização,
não permitindo qualquer forma de pesquisa com
material embrionário. Já a Grã-Bretanha autorizou a clonagem de embriões humanos com fins
terapêuticos no período anterior à nidificação
(fixação na parede do útero), ou seja, até o 14° dia
após a fecundação. Eu, entretanto, me pronunciei
contra esse posicionamento por temer que ele
levasse à clonagem reprodutiva. Não seguiremos
esse exemplo, pelo menos até que tenhamos certeza de que as experiências com clones apresentam apenas finalidades terapêuticas. Quanto à população alemã, acho que devemos ter paciência e
permitir que a sociedade pense sobre o assunto
por alguns meses. Creio que a maioria do público
tem suas ressalvas com relação ao uso excessivo
da engenharia genética.
10 • CIÊNCIA HOJE • vol. 30 • nº 176
básicos humanos. Não vejo problemas, por exemplo,
em fazer um rastreamento genético nos casos de fertilização in vitro que envolvam risco, como quando a
mulher já tem uma certa idade. Mas esse rastreamento só é admissível se for aplicado estritamente para
detectar doenças genéticas severas. Não pode virar
uma prática social. Se os pais que desejam ter filhos
geneticamente mais saudáveis começam a fazer esse
rastreamento para selecionar sua prole, escolhendo
as características que consideram melhores, então
eu discordo completamente. Nós não temos qualquer
critério ético para otimizar a natureza. Decidir a constituição genética dos filhos é uma carga de responsabilidade que os pais não devem ter.
Como o senhor avalia o crescente progresso
da engenharia genética?
Existem três vertentes de pesquisa na engenharia genética: a verde, que estuda as plantas, a vermelha, relativa a carnes e animais, e a medicinal, centrada nos
seres humanos. Enquanto já se alcançaram grandes
progressos na pesquisa básica de plantas, animais e
seres humanos, os resultados práticos da engenharia
genética na agricultura e na medicina ainda são bastantes modestos. Mas isso pode mudar em breve. ■

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