Consequências da utilização de elementos pianísticos na
Transcrição
Consequências da utilização de elementos pianísticos na
Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Études de Jeanne Demessieux para a técnica organística por: Domitila Ballesteros Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Música - Curso de Pós Graduação Profa Orientadora: Dra. Miriam Grosman Rio de Janeiro 2002 Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística ii Para Lincoln Amazonas por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística iii Agradecimentos Gostaria de expressar minha gratidão àqueles que me acompanharam durante a realização deste trabalho. A meus pais, Calixto e Deoca, pelo amor que me dedicam constantemente, A meus filhos, Cláudio e Virgínia, garantia do propósito, À Miriam Grosman, que aceitou o desafio, À Cláudia Miranda, pelos ouvidos pacientes, À Márcia Dias, pelas inúmeras revisões, Ao Sr e Sra.. Jean Louis, por possibilitarem o acesso ao único livro biográfico de Jeanne Demessieux, Aos Srs. Stephen Pinel e Kevin Bowyer, amigos internáuticos, cuja generosidade permitiu o envio de material impresso decisivo na confecção deste trabalho, A Editions Leduc, pela autorização dos exemplos musicais da obra de Marcel Dupré e de Jeanne Demessieux. A Fritz Hofer (in memoriam). por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística iv Resumo Este trabalho tem por objetivo investigar como a linguagem pianística dos estudos de Chopin e Liszt se apresentam, ainda que transfigurados, no processo composicional dos estudos de Jeanne Demessieux. Para corroborar esta hipótese, iremos ressaltar dois pontos. Primeiro, a ênfase da técnica pianística adotada pela pedagogia da Escola Moderna Francesa de Órgão, que tem em Marcel Dupré, mestre de Jeanne Demessieux, seu maior paradigma. Segundo, a grande influência do estudo e prática pianísticas, recebidos por Jeanne Demessieux. em sua formação. No intuito de fundamentar propriamente o assunto proposto, desejamos apresentar ainda as características do gênero estudo, de modo a efetuar posteriormente uma comparação, entre o uso que dele fazem Chopin e Liszt ao piano e o utilizado por Jeanne Demessieux em suas composições organísticas. por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística v Abstract This dissertation aims to investigate how the pianistic language of the studies of Chopin and Liszt present themselves, although transfigured, in Jeanne Demessieux´s composition process. In order to corroborate this hypothesis, we shall stand out two points. First, the emphasis on the pianistic technique adopted by the French Modern Organ School Pedagogy, which has in Marcel Dupré, Jeanne Demessieux´s master, its greater paradigm. Second, the great influence of piano practice and study, received by Jeanne Demessieux on her formation. On the way of properly grounding our proposed subject, we want to present furthermore the characteristics of the study gender, in order to perform subsequently a comparison, between its use by Chopin and Liszt at the piano, and the one Jeanne Demessieux utilizes on her organistic compositions. por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística vi “Il semble impossible d’entreprendre l’étude de l’orgue sans posséder une technique pianistique suffissante.” Jean e Marie-Louise Langlais por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística vii Sumário 1 Introdução 1 2 O gênero estudo e a técnica pianística 11 Diferenciamento entre a técnica pianística e de teclados 11 A Escola Vienense e a Escola Inglesa 12 O nascimento do estudo romântico 13 O estudo como coadjuvante do desenvolvimento do pianismo 16 O estudo segundo vários mestres 16 Os estudos de Chopin 17 Os estudos de Liszt 22 3 A Escola Moderna de órgão na França 26 Órgão e liturgia 26 O órgão e a Revolução Francesa 30 O Período da Reconstrução e as novas tendências expressivas 32 Cavaillé-Coll e o órgão sinfônico 35 O órgão e a fundação do Conservatório de Paris 37 Métodos e tratados de órgão na França do século XVII 41 Widor, Guilmant e a moderna Escola de órgão francesa 46 4 Jeanne Demessieux e os Six Études 51 A formação musical de Demessieux 51 A pedagogia de Marcel Dupré 52 Os precursores dos Six Études: os Estudos de Marcel Dupré 56 por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 5 Os elementos pianísticos e os Six Études viii 65 Características específicas do órgão 65 Propriedades expressivas do órgão 66 A respeito da constituição física do órgão 66 O processo de transformação nos Six Études 68 Primeiro estudo: Pointes 68 Segundo estudo: Tierces 80 Terceiro estudo: Sixtes 85 Quarto estudo: Accords Alternés 88 Quinto estudo: Notes Répétées 95 Sexto estudo: Octaves 100 6 Conclusão 110 por: Domitila de Lima Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 1 1- Introdução Foi na pesquisa de obras que trouxessem alguma contribuição significativa do ponto de vista da técnica do pedal, que ouvimos por primeira vez falar nos estudos de Jeanne Demessieux. A informação recebida dava conta de que se tratavam de estudos “muito difíceis” observação que, uma vez diante das partituras, nos pareceu deveras otimista porque Demessieux concedia ao pedal tratamento semelhante aos manuais, tratando-o sem qualquer tipo de concessão. Para a execução de tais obras, seriam necessários ao organista mais que os quatorze dedos de Widor1. Passamos então a investigar se e como, os Six Études, escritos já em meados do século XX, se equiparavam aos estudos de piano, escritos no século anterior. Como forma de enfocar o estudo como gênero musical, partiu-se inicialmente da concepção geral do termo para em seguida estabelecer, dentro das peculiaridades e composicionais de cada compositor, de que maneira cada um deles imprimiu sua marca pessoal. Limitações se impuseram no decorrer do trabalho tornando-se imprescindível circunscrever o espectro de nossa pesquisa. Uma dupla motivação nos levou então a delimitar nossas comparações aos estudos de piano compostos por Liszt e Chopin. A primeira delas refere-se ao fato de que as obras destes compositores se constituíam como quesitos fundamentais do currículo de piano do Conservatório de Paris no início do século XX. Demessieux, durante seu curso de piano no Conservatório, teve Chopin e 1 Widor, um dos criadores da Escola Moderna de Órgão Francesa, afirmava que o organista tinha nos pés quatro dedos (ponta e calcanhar do dois pés) os quais formavam sua terceira mão. "The organist has fourteen fingers, ten on his hands, and four on his feet. Here is the only rational way to constitute the supplementary hand represented by the two feet;” Louis Vierne, “Memoirs of Louis Vierne; his life and Contacts with famous men.” Translated by Esther E. Jones. The Diapason. USA, november, 1938 p. 11. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 2 Liszt como mestres através da performance de suas composições. Seu professor de órgão, Marcel Dupré, considerava que o desenvolvimento da técnica organística não se viabilizava antes de uma sólida formação pianística e frisava a necessidade do organista em praticar as principais obras do repertório romântico, entre elas, as obras de Liszt e Chopin. O segundo motivo, que aqui se apresenta como dogma, se refere à idéia amplamente aceita de que Chopin e Liszt foram os fundadores da técnica moderna do piano2. Como este trabalho prevê a ambientação de características consideradas próprias ao piano em um universo organístico, à guisa de alcançar uma melhor compreensão de nossos objetivos, é mister que se defina o que aqui entendemos por elementos pianísticos. Esta expressão de pronto poderia apontar para uma singela tentativa de se encontrar semelhanças composicionais entre os Six Études e os estudos de piano citados anteriormente. Contudo, ousamos pretender algo mais. Gerd Kaemper3, definiu como básicas e distintas entre si: a escrita, a técnica e a tecnologia pianísticas. Embora Kaemper se referisse especificamente ao piano suas idéias podem ser lidas tendo-se em mente o órgão como objeto, sem prejuízo qualquer de seu conteúdo. A escrita pianística, diz ele, “designa o conjunto de procedimentos utilizados para adaptar um conteúdo musical de acordo com os procedimentos específicos do piano e de sua forma de tocar”. ["désigne l'ensemble des procédés utilisés pour adapter un contenu musical selon les exigences spécifiques du piano et de son jeu"]4. A escrita, como parte do processo composicional, está atrelada à linguagem e às características próprias, de acordo com as limitações e possibilidades do instrumento a 2 “(...) a técnica começou a se desenvolver com Clementi até alcançar seu florescimento com Liszt, (...)” [“la technique s’est développée à partir de Clementi pour ateindre son plein épanouissement avec Liszt”]. (AAU, p.8) 3 Kaemper, op. cit.. 4 Hans Hering apud Kaemper, op. cit. p. 6 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 3 que se destina. Quanto à técnica, Kaemper afirma que ela “designa o conjunto dos movimentos do pianista. Assim, fala-se da técnica pianística de um Cortot, ou de um Gieseking, mas jamais da de um compositor”. [“(...) désigne l'ensemble des mouvements du pianiste. Ainsi, on parle de la technique pianistique d'un Cortot... mais jamais de celle d'un compositeur.” ] 5. A distinção entre técnica e escrita didaticamente falando é bastante eficaz até o momento em que a figura do compositor passa a coincidir com a figura do intérprete. De fato, a intimidade do compositor com o instrumento para o qual compõe, pode se refletir em sua habilidade em aproximar sua escrita da linguagem, e do estilo do próprio instrumento. É, portanto, completamente plausível supor que a habilidade virtuose do instrumentista interferirá em sua tarefa como compositor, pois sua atividade composicional será matizada por sua experiência pessoal de intérprete. Como bem observou Chiantore, trata-se de “(...) estender à dimensão técnica a problemática do “texto original” e do “som original”, do Ur-Text e do Ur-Ton, em busca de uma Ur-Technik que, longe de qualquer dogmatismo, nos permita comprender que tipo de execução se esconde por trás da escrita de cada compositor.” [“(...) extender a la dimensión técnica la problemática Del “texto original”y de “sonido original”, del Ur-Text y del Ur-Ton, en busca de una Ur-Technik que, lejos de cualquier dogmatismo, nos permita comprender qué tipo de ejecución se esconde detrás de la escritura de cada compositor.”]6 Os estudos de Jeanne Demessieux constituem-se em um bom exemplo do que pode ocorrer quando compositor e intérprete virtuoso encarnam a mesma pessoa. Os Six 5 Kaemper, op. cit., p. 7. Chiantore, Luca. Historia de la técnica pianística: Un estudio sobre los grandes compositores y el arte de la interpretación en busca de la Ur-Technik, p. 14. 6 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 4 Études podem ser encarados como um mostruário daquelas questões técnicas que o autor, por seu próprio talento, intuição ou experiências, já adquiriu. Outro argumento também válido, e é este que aqui adotamos, é que antes de se propor como enigma, a escrita como proposta de execução da obra, pode fornecer importantes pistas acerca da aquisição da virtuosidade do compositor enquanto intérprete. Estas pistas, quando decodificadas, se constituiriam naquilo que Kaemper chamou de tecnologia, ou seja, a teoria da técnica, que tem por objetivo explicar cientificamente aquilo que os “grandes pianistas fazem por instinto” 7. Os elementos pianísticos aos quais aqui nos referimos, são a resultante do processo de conjugação desses três conceitos apresentados: escrita, técnica e tecnologia. A pesquisa bibliográfica para a realização deste trabalho, enfrentou alguns obstáculos. Deparamo-nos com a escassez de livros escritos sobre Jeanne Demessieux, pois podemos afirmar com segurança que apenas um livro foi publicado sobre esta compositora. Trata-se do livro biográfico escrito por Christiane Trieu-Colleney 8 , contendo inúmeras partes do diário que Demessieux mantinha. Dada sua solitária existência no cenário literário demessiano, indubitavelmente, este livro se constitui em referência obrigatória. Além desse livro, tivemos acesso a três artigos de jornal. Um trata especificamente dos Six Études, outro aborda as três turnês realizadas por Demessieux aos Estados Unidos e ainda um terceiro, que menciona a relação pedagógica entre a Jeanne e Dupré. Devido à carência de material específico muito do que inferimos a respeito de Jeanne Demessieux enquanto aluna, professora e instrumentista, veio por intermédio do cruzamento dos dados do livro de Trieu-Colleney 7 “La technologie est la théorie de la technique, do, domaine du savant, qui explique en théorie ce que les grands pianistas ont fair par insticnt”. (Kaemper, op. cit., p. 8). 8 Trieu-Colleney, Jeanne Demessieux, Une vie de luttes et de gloire. Avignon: Les Presses Universelles, 1977. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 5 com as informações contidas nos livros escritos sobre a vida e a obra de Marcel Dupré, seu professor de órgão. Outro entrave bibliográfico que enfrentamos se deveu ao fato de que muitas das obras, cuja leitura julgávamos imprescindível, encontravam-se esgotadas, o que dificultou em muito sua aquisição. Especificamente no caso da obra de Trieu-Colleney, a localização bem como a obtenção deste livro biográfico de Demessieux praticamente se transformou em um exercício detetivesco. A utilização das obras escritas por e para Marcel Dupré como fontes importantes de consulta para este trabalho extrapola o fato dele ter sido seu professor de órgão. Foi por sugestão do próprio Dupré que Jeanne Demessieux escreveu seus estudos para órgão, publicados em 1946 e a ele dedicados. Dupré nutria grandes expectativas com relação aos estudos de Demessieux9. É interessante notar que a produção de estudos para órgão durante o século XIX aconteceu de forma qualitativa e quantitativamente muito diferente que para o piano, sobretudo na França. Poucos foram os compositores que naquele período se dedicaram a escrever estudos para órgão 10 e, considerando a maneira pela qual o gênero evoluiu, uma grande parte destas obras se assemelhavam mais a exercícios técnicos. Por motivos que fogem ao escopo deste trabalho, o gênero também foi pouco adotado em outros países da Europa. De forma geral, pode-se afirmar então que enquanto que na tradição pianística os estudos foram e são até os dias de hoje peças constantes do repertório para este instrumento, os estudos para órgão não desempenham o mesmo papel dentro na prática organística. É através deste argumento 9 Em março de 1945 Jeanne Demessieux pediu que Dupré aceitasse que ela lhe dedicasse os Six Études, ao que ele respondeu: “Você não conhece a extensão de seus estudos. (...) eles levarão meu nome à posteridade.” [“Vous ne savez pas la portée de vos etudes. (...) elles porteront mon nom à la postérité”] .Trieu-Colleney, op. cit. p. 172. 10 Para a pesquisa da literatura organística publicada sob o nome de Estudos foram utilizadas as seguintes fontes: (a) “Guide de la Musique d’Orgue” (1991) sous la direction de Gilles Cantagrel Librairie Arthème Fayard, (b) http://www.bodensee-musikversand.de/. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 6 que inferimos que o estudo enquanto gênero musical se encontra mais próximo do piano que do órgão. Dentre esta parca literatura organística encontram-se estudos, que embora sejam atualmente executados ao órgão, foram escritos originalmente para piano pédalier. Este é o caso dos Six Études en forme de canon op. 56 de Schumann, que, como o nome já indica, estão construídos debaixo de um molde estritamente contrapontístico e Quatre Esquisses op. 58, às quais Sabatier denominou de “impromptus de estrutura A B A”.11 O piano pedalier foi também alvo das composições de Charles Valentin Alkan. De toda a sua obra publicada, apenas uma foi escrita especificamente para órgão 12 . Entretanto, ele publicou várias outras peças para o piano pedalier. Dentre elas se encontram os Douze Études pour les pieds seulement13, publicada por S. Richault em Paris, em fins de 1860. Dotadas de um grau de dificuldade incomum para a época, a performance destas obras requerem uma técnica de pedal muito avançada14. Para fins de nossa investigação, essas composições adquirem destaque porque mesmo não tendo sido escritas originalmente para órgão, foram objeto do interesse pedagógico de Marcel Dupré. Para ele, a performance dos Estudos de Alkan não podia ser alijada da formação 11 “Contemporains des canons, ces quatre impromptus destructure A B A (...)” François Sabatier, “Robert Schumann”. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991, p. 717. 12 Trata-se de Petit Préludes sur les huit gammes du Plain-Chant, obra que dispensa a utilização da pedaleira. 13 A nomeação da obra como Douze Études d’Orgue ou de Piano à Pédales pour les pieds seulement foi provavelmente um imperativo comercial e de responsabilidade dos próprios editores (François Sabatier, Robert Schumann. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991, p. ). 14 Segundo Kevin Bowyer, os Estudos de Pedal de Alkan, não obstante os grandes avanços da técnica pianística, essas obras contém ainda hoje passagens de grande dificuldade técnica. (prefácio da re-edição dos Études.) Os estudos foram escritos guardando as possibilidades do piano-pedalier cuja pedaleira tinha 32 notas, com a extensão de lá até mi, ou seja, uma terça menor abaixo da pedaleira do órgão. A re-edição da Sphinx de 1999, apresenta em apêndice, os estudos transpostos para uma terça menor acima, o que possibilita a execução ao órgão destes estudos em sua íntegra, embora, como diz o próprio Bowyer no prefácio, “em muitos casos, a transposição aumente a dificuldade da música”. (Bowyer in, CharlesValentin Alkan. 12 Études d’Orgue ou de Piano à Pedales pour lês Pieds seulement. Hertsfordshire: Sphinx, december 1999) por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 7 de uma técnica virtuose de primeira classe 15 e por isso ele mesmo havia orientado Jeanne16 que os estudasse17. Como pianista virtuose que era, Alkan incluiu em seus estudos senão todas, praticamente todas as fórmulas e figurações típicas dos estudos de piano do século XIX. Dignos de nota são, entretanto dois estudos. O quinto estudo, de notas repetidas, em cuja seção intermediária, Alkan agrega notas duplas no pé direito e o décimo estudo, composto exclusivamente sobre poliritmias (figuras 1 e 2). Para órgão, ainda na França, Charles-Alexis (1837-1871) escreveu XV Études Préparatiores aux oeuvres de Bach (Sabatier), que como o próprio título sugere, destinam-se para a performance da obra organística bachiana. 15 Em fevereiro de 1942, em sua casa em Meudon, Marcel Dupré afirmou à Jeanne Demessieux: “En somme, pour faire une technique de virtuose de première classe, il suffit de trois séries de gammes, des Etudes d’Alkan et de celles que je suis en train d’écrire...” Trieu-Colleney, op. cit. p.131. 16 “(...) je n'ai jamais si bien joué son orgue. (...) je sens que ma technique part. Le Maître m'encourage... Il me prête un recueil d'Etudes de pédales d'Alkan dont l'édition est épuisée.” (Trieu-Colleney, op. cit. p. 126) 17 Devido à questão levantada anteriormente a respeito das diferenças de extensões entre as pedaleiras do órgão e do piano-pèdalier não é do nosso conhecimento como Marcel Dupré orientava a performance destes Estudos, nem como Jeanne Demessieux “resolveu” os problemas que advinham disto. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 8 Na Itália, o interesse pelo gênero parece ter sido ainda menor, pois a única referência que encontramos a esse respeito vem de Marco Enrico Bossi (1861-1925), que escreveu o Etude Symphonique op.78. Na Alemanha, foram três os compositores, que segundo é do nosso conhecimento, se dedicaram a escrever para o órgão composições desse gênero. Sigismond Neukomm (1778-1858) escreveu seus 25 Grandes Études pour l’Orgue entre 1832 e 1834 numa tentativa de desenvolver para o órgão um gênero que já se havia estabelecido no piano 18 . A coletânea foi publicada por Johann Baptist Cramer, compositor que já no início do século tinha publicado seus próprios estudos para piano. Os Estudos de Neukomm se bem que escritos com finalidade pedagógica evidente estão longe de apresentar características virtuosísticas: “esses estudos se tornam ‘grandes’ mais por causa de seu tamanho que por sua dificuldade”. [“(...) these studies are made “grand” more by their length than by their difficulty”]. 19 Julius Schneider (1805-1885) compôs dois cadernos intitulados Studien für die Orgel (zur Erreichung des obligaten Pedalspiels) 20 , os quais apresentam exercícios indicados ao desenvolvimento e aprimoramento das técnicas do pedal tais como substituição e cruzamento de pés. Estes estudos, na verdade, se apresentam mais como exercícios, pois são formados basicamente pela presença de células contendo uma determinada dificuldade a ser superada, que se reproduzem em progressão no decorrer de cada peça (figura 3). 18 Sabatier in: Sigismond Neukomm. 25 Grandes Études pour Orgue. Édition par François Sabatier et Nanon Bertrand-Tourneur. Paris, France: Éditions Publimuses, 1991. 19 Sabatier in: Neukomm, op. cit. p. 22. 20 “Estudos para órgão: para obtenção das técnicas obrigatórias de pedal”. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 9 O mesmo pode ser dito dos estudos de Thomas onde fórmulas pré-determinadas e fixas são trabalhadas no terceiro sistema. Cada uma dessas composições está dirigida ao treinamento de uma determinada figuração, que é trabalhada no decorrer de toda a obra nas mais variadas alturas. São escalas diatônicas e cromáticas, arpejamentos, notas duplas, ornamentos, oitavas simultâneas e partidas. No século XX Thomas Daniel Schlee publicou os 13 Studies by Contemporary Composer (1957), coletânea onde apenas duas peças foram individualmente batizadas sob o título específico de estudos. Estas são o Etude pour le pédalier Orgelpedalsolo (1957) do próprio Schlee, e Contrepointes. Etude pour le pédalier, do suíço Lionel Rogg, (1936). Jean Langlais escreveu os 7 Études de Concert pour pédale seule” (1983), onde cada uma dos estudos aponta ao aprimoramento de uma técnica específica. Ainda levando em conta obras nomeadas estritamente pelo termo estudo, encontram-se ainda Four Etudes (1922), de Lukas Foss, Etude de concert (1963) de Anthon van der Horst, Concert Etude for Organ (1941) de Anthony Newman, Deux Etudes (1934), de Sigfried Thommessen, Etudes for Pedals, (1964) de Roy Harris, Variations-Etudes I- sur une berceuse, op. 48 (1920) de Rolande Falcinelli, Etudes pour Agresseurs (1945), de Alain Louvier, Study in Densities und Durations (1932) de Alan por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 10 Stout, Ten Pedal Studies, - Air and Variations on the Belgian Folk Tune “Le petit pêcheur ruse” (1925), de Flor Peeters, por exemplo. Há que se considerar que embora alguns destes estudos tenham sido escritos em anos anteriores aos estudos demessianos, a proximidade cronológica, bem como as distâncias entre os países e as Escolas, diminuem as chances de uma provável influência. Talvez os Six Études não se constituam um empreendimento original do ponto de vista cronológico, porém representam um marco decisivo como o epítome da Escola Moderna Francesa de Órgão. Como sintetizou Marcel Dupré em setembro de 1944, “Fui eu quem começou a evolução do órgão, e será você quem a completará.” [“C’est moi qui ai commencé l’évolution de l’orgue, et vous, vous la finirez...”]21 21 Trieu-Colleney, op. cit., p. 168. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 11 2. O gênero estudo e a técnica pianística O desenvolvimento da técnica pianística vincula-se intimamente às sucessivas transformações pelas quais este instrumento passou. O piano despontou no gosto popular numa época em que suas características sonoras e expressivas coincidiram com as demandas estéticas emergentes do Romantismo: o século XIX transformou o piano de Cristofori 22 em um instrumento muito diferente 23 . Algumas das modificações estruturais pelas quais o instrumento passou terminaram por ampliar de forma importante suas possibilidades sonoras transformando-o em um veículo poderoso de expressão para o intérprete. O piano se tornou o instrumento romântico por excelência, servindo de laboratório de experimentação sonora e tímbrica, de onde novas escolas de execução e técnicas de composição brotaram. Diferença entre a técnica pianística e demais instrumentos de teclado Em 1780 o piano despontou com grande popularidade no cenário musical europeu onde até então predominavam o órgão, o clavicórdio, o cravo e seus similares pinçados, a espineta e o virginal. A praxis dos instrumentos de teclas já se realizava sob um razoável conjunto de regras e procedimentos, embora se sistematizasse lentamente em teoria. A falta da existência de um consenso entre certos pontos fundamentais da técnica suscitava divergências importantes no tocante à performance24. 22 O piano do século XIX se tornara muito diferente do pianoforte de Cristofori. Sebastien Erard patenteou em Londres em 1808, o mecanismo de repetição e, em 1821, o escapamento duplo que possibilitava que uma mesma nota fosse tocada rapidamente várias vezes seguidas. Ainda nesse mesmo ano, a substituição da antiga armação de madeira pelo cepo de metal em uma única peça aliado ao cruzamento das cordas, trouxe inúmeras transformações quanto às possibilidades tímbricas e dinâmicas. O piano tornou-se um instrumento “(...) capaz de produzir um som pleno e firme a qualquer nível dinâmico, de responder em todos os aspectos às exigências de expressividade e do mais extremo virtuosismo.” (Donald J Grout.; PALISCA, Claude V. O século XIX: música instrumental. In: História da Música Ocidental. Lisboa, Portugal: Gradiva, , 1997, p.590) 23 Para fins de simplificação, utilizar-se-á neste trabalho este vocábulo para designar o piano em qualquer que seja sua fase de desenvolvimento. 24 Valha como exemplo o fato de a utilização do polegar como pivô, conquista definitiva para o desenvolvimento da velocidade, ainda não estar completamente consolidada. Czerny afirmava que por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 12 Tais discrepâncias, contudo, não eram suficientes para anular as semelhanças existentes entre os procedimentos necessários à execução dos instrumentos de teclado. Foi do genérico para o particular, que os tratados teóricos para teclado se desenvolveram, caminhando rumo à especialização somente a partir do século XIX 25 . Portanto, foi durante o processo galopante de transformação e aperfeiçoamento do piano e da paulatina ampliação do grau de exigência para a performance deste instrumento, que a técnica pianística propriamente dita pôde se diferenciar e consolidar. Distintas formas de tocar nasciam e se desenvolviam, ao passo que em movimento análogo, a evolução da técnica abriu caminho ao descobrimento de possibilidades composicionais inéditas. A compreensão gradual da real natureza do piano, com suas características estruturais tão inovadoras, contribuiu para o estabelecimento de uma técnica peculiar e puramente pianística. Conceitos como toque e sonoridade passaram a existir em um instrumento cujo resultado sonoro era completamente subordinado à força empregada no acionamento das teclas. Os movimentos de braço, punho, ombro e cotovelo, dispensados e até mesmo evitados pelos cravistas e clavicordistas lentamente começaram a ser admitidos e mesmo a ser bem-vindos em um instrumento que se afirmou como dependente da multiplicidade de toque e diversidade de ataques. O nascimento do Estudo romântico Beethoven enfatizava a utilização do polegar como forma de explorar ao máximo todas as possibilidades do legato. Ainda segundo Czerny, “Durante as primeiras lições, Beethoven me obrigou a praticar exclusivamente as escalas em todos os tons, e me mostrava (algumas vezes o que naquela época ainda era desconhecido para a maioria dos pianistas) a única posição correta das mãos e dedos, e, em particular, como usar o polegar, regra de grande utilidade que eu não aprendi a apreciar inteiramente até muito tempo depois. Então ele passava aos estudos relacionados a esse método e, especialmente me chamava a atenção para o legato, o qual ele mesmo controlava em um grau incomparável, e o que naquela época, todos os outros pianistas consideravam tarefa impossível de ser executada no fortepiano, pois mesmo depois da época de Mozart, a maneira picada, curta e destacada de tocar estavam na moda.” (Percy A Scholes. Pianoforte playing. In: The Oxford Companion to Music. London: Oxford University Press, 9a. edição reimpressa, 1967, 1967, p. 806-7) 25 Chiantore, op. cit. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 13 No âmbito composicional, a forma Sonata, que no Classicismo era mola mestra da música instrumental, já não atendia aos ideais românticos constituindo-se em um entrave para a manifestação das sucessivas mudanças pelas quais passava a linguagem pianística 26 . Com o desajuste que começava a ocorrer entre a forma Sonata e as necessidades expressivas românticas, a preferência dos compositores românticos voltouse para as formas abertas, onde era possível se obter o efeito da improvisação27. Entre 1830 e 1850 houve um aumento significativo quanto ao número de composições escritas para teclado as quais eram baseadas nas pequenas formas ou gêneros de único movimento28. Como pequena forma, no início do século XIX surgiram os estudos, um gênero musical comprometido com o desenvolvimento e aprimoramento da técnica pianística. A originalidade dessas obras não residia em seu caráter didático, visto que já se havia escrito música para teclado com este fim desde o século XVI29, intituladas de Leçons, Kavierübung ou Essercizi. Uma das peculiaridades dos primeiros estudos românticos era que estas composições tinham como ponto de partida, um pequeno motivo, que carregava em si um elemento da técnica, e que ia sendo trabalhado sob as mais diversas 26 A forma Sonata começou a ser duramente questionada, e deixada de lado por alguns compositores. Schumann, que produziu não mais que três sonatas, exclamou em 1839 que a Sonata tinha esgotado todas as suas possibilidades, e devia, pois ser considerada tão somente como um “tipo de exercício acadêmico”, vez que se constituía um obstáculo ao impulso criativo: “Most sonatas of this type should be regarded as kinds of academic exercise, as studies in form; they are scarcely products of strong inner impulse. (...) On the whole it seems as though, as a form, the sonata has run its course, and this is in the nature of things; instead of a century of repetitions we should turn our thoughts to something new”. (Schumann Apud Kahl, op. Cit, p.239) 27 Charles Rosen, Formas de Sonata. España: SpanPress Universitaria, 1998. 28 Tanto é assim que Mendelssohn escreveu várias dezenas de peças breves, de um único movimento reunidas sob o título genérico de Canções sem Palavras, contra apenas três sonatas que produziu no início de sua vida; Chopin e Schumann por sua vez, escreveram não mais que três sonatas cada um (Kahl, op. Cit.). 29 Concebidas com o intuito do treinamento do estudante, são as Toccatas de Diruta, que estão em O Transilvano. Dialogo sopra il vero modo di sonar organi, et istromenti di penna (1593). Exemplos dessas composições são os 30 Essercizi per cravicembalo (1738) de Domenico e L’art de toucher le clavecin (1716) de François Couperin. Bach compôs o Clavier-Übung (1731-42) além de boa quantidade de música para órgão e cravo destinada à educação de sua prole: onze de seus prelúdios do Cravo bem temperado e suas Invenções a duas e três vozes, foram compilados em um único livro, o Clavier-Büchlein, o qual estava destinado à educação de seu filho de 10 anos. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 14 formas. Os compositores isolavam em uma pequena célula um problema a ser superado, e a partir dele um estudo era construído. Os estudos almejavam dissecar e equacionar um obstáculo mecânico em particular, ao tempo em que a reunião dos vários estudos em um compêndio que cuja performance pretendia fornecer a chave para a aquisição da técnica pianística como um todo, eliminando assim os obstáculos que freqüentemente se interpunham entre o intérprete e a possibilidade de uma performance acurada. Muitas obras deste gênero foram escritas na aurora do século XIX, mas os pioneiros desse gênero foram as composições publicadas por Cramer entre 1804 e 1810, as partes mais recentes do Gradus ad Parnassum de Clementi (1817, 1819, 1825-6), os Estudos de Moscheles op. 70 (1826) e as muitas coleções de Czerny30. Entretanto, claro está que a restrição temática não se constituía no único ponto de referência dos estudos, porque caso contrário, poder-se-ia incluir neste gênero métodos como Hanon, Beringer e mais posteriormente, o livro de exercícios de Brahms. “O estudo é uma idéia romântica. Ele apareceu no início do século XIX como um novo gênero: uma peça curta em que o interesse musical provém quase inteiramente de um mero problema técnico. Uma dificuldade mecânica gera diretamente a música, seu charme e seu pathos. Beleza e técnica estão unidas, mas o estímulo criativo é a mão, com sua conformação de músculos e tendões, sua característica pessoal.”31 O papel da música, na segunda metade do século XVIII havia se modificado sobremaneira, e os primeiros estudos, embora conservassem um caráter eminentemente didático, aspiravam a apreciação pública dos concertos e recitais32. A música havia se tornado mais sociabilizada: era a época a do estabelecimento dos concertos públicos, do 30 Howard Ferguson. Study. In: SADIE, Stanley, editor. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: Macmillan Publishers limetd, 1980. 31 Charles Rosen. A Geração Romântica. São Paulo, Brasil: EDUSP, 2000, p. 494. 32 Se no barroco tardio, as obras didáticas, como por exemplo os volumes dos Kavierübung de Bach, eram destinados ao estudo privado, com o desenvolvimento progressivo do público de concerto, no Romantismo se transformam em peças para performance pública. (Rosen, 2000, op. cit). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 15 público de concerto, da preocupação com o lucro e venda de partituras, do interesse pelo músico amador uma vez que a classe media urbana agora almejava aceder às artes, privilégio outrora de poucos33. O estudo como coadjuvante do desenvolvimento do pianismo Em algo mais que cem anos, um pouco antes do encerrar do século XVIII, quando eclodiu na preferência do gosto musical europeu, até inícios do século XX, o piano foi freneticamente transformado pela modificação de sua estrutura e inclusão dos mais diversos dispositivos. Não é de se estranhar, portanto, que o estilo dos estudos34 variasse também com tanta velocidade e intensidade de compositor para compositor, de década para década35. Concomitantemente ao surgimento do piano e de seu processo de transformação, uma técnica especificamente pianística foi se delineando. Os estudos enquanto gênero musical, também sofreram transformações importantes à medida que o século XIX avançava, e é por isso que, embora conservassem como ponto comum a presença da virtuosidade técnica, apresentassem tantas variações de compositor para compositor. As diferenças eventualmente encontradas quanto ao estilo ou quanto à função entre estudos escritos por diversos compositores, reforçam o argumento de que estas obras serviram como um ponto de partida para pesquisa sonora de um instrumento em expansão. Os estudos românticos se constituíram em uma ferramenta importante para familiarização dos elementos pianísticos existentes nas composições da época para teclado, vindo a se situar como um colaborador fundamental na consolidação da técnica pianística. 33 Rosen, 1998, op. cit. Evidentemente, não foram apenas os estudos enquanto gênero que foram afetados pelo desenvolvimento deste instrumento, mas a grande maioria do repertório concertístico que surgiu durante esse período (Chiantore, op. cit). 35 Chiantore, op. cit. 34 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 16 O estudo segundo vários mestres Os primeiros estudos românticos constituíram um meio, através do qual os pianistas alcançavam as habilidades necessárias para vencer os desafios das sonatas de Mozart e Beethoven36. “Durante a primeira parte do século XIX, os estudos de Clementi, Cramer e Czerny – repletos de escalas, arpejos, notas repetidas e terças - deram aos pianistas as habilidades necessárias para vencer os desafios das sonatas de Mozart ou Beethoven” [“During the first part of the 19th century it was the studies of Clementi, Cramer, and Czerny – crammed as they were with scales, arpeggios, repeated notes, and thirds – that gave players the skills necessary to approach the challenges of a Mozart or Beethoven sonata.”]37. Duas ou três décadas depois, a situação se modificou porque com o surgimento dos estudos de Liszt e Chopin, os estudos que até então se constituíam como meio para o alcance da técnica, se transformaram em um fim em si mesmos. A possibilidade de realizar musicalmente estas obras era um indicador inequívoco da transcendência da técnica. Considerados inventores da moderna técnica pianística38. Porém, não obstante as inúmeras semelhanças biográficas entre Liszt e Chopin, a abordagem do piano e, por conseguinte o estilo composicional desses compositores diferiu significativamente. Os Estudos de Chopin 36 Theodore Eddel . Rhythm Riddles. Piano & Keyboard, november/december, 2000. Ibid., p. 35. 38 Barda BARDA, William. Les études pour piano: A travers Bach, Chopin, Listt, Rachmaninov, Scriabine et Debussy. Ecole Polytechnique. Serveur des Eleves. X-PASSION n°24. s/d Disponível em: http://www.polytechnique.fr/eleves/binets/xpassion/numeros/xpnumero24/xpnum24pdfsi/etudespiano24.p df 37 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 17 A carreira de Chopin se desenvolveu nas esferas da performance, composicional e pedagógica. Em fevereiro de 1832, Chopin, ainda um desconhecido recém chegado a Paris, tomou parte em um recital na Salle Pleyel. O sucesso foi retumbante e, mesmo contando com a presença de um número reduzido de pessoas, o recital representou para o jovem polonês a afirmação naquela cidade de sua fama como pianista e compositor entre os músicos profissionais do lugar39. Chopin diferia dos grandes pianistas da época que se deleitavam em realizar concertos públicos: sua preferência residia nos salões privados, freqüentados por pequenas platéias compostas por aristocratas ricos e homens de negócios. As constantes críticas quanto à sua insuficiente sonoridade, serviram de um argumento extra a seu desinteresse em realizar viagens, convencendo Chopin a desistir da vida de virtuoso peregrino. Ele alcançou popularidade entre os amadores e a classe média por intermédio da publicação de suas obras 40. A fama de Chopin se difundia pelos salões da aristocracia local onde era muito bem-vindo por sua elegância e refinamento. Entre os amadores e a classe média ele era conhecido sob a forma publicada, especialmente as obras que tecnicamente exigiam menos do instrumentista, como as mazurcas, valsas e noturnos. No final de 1832, ele havia se transformado no professor favorito de Paris, embora a pedagogia não representasse um talento natural em Chopin, que tinha muitas dificuldades em transmitir suas idéias a seus discípulos 41 . Some-se a isso, o fato de que, tirando pouquíssimas exceções, seus alunos com algum talento musical eram muito escassos42. Ele de fato foi um grande professor, não no 39 Joseph Regenstein Library, Frédéric Chopin and his Publishers. University of Chicago Library. An exhibition in the Department of Special Collections, on view February 2 through April 10, 1998. Disponível em: http://www.lib.uchicago.edu/e/su/music/musex.html. 40 Ibid. 41 Chiantote, op. cit. 42 “Esta situación, que se repite a menudo en la actividad didáctica de los grandes protagonistas de la historia del piano, se agrava, en el caso de Chopin, debido al nível sorprendentemente bajo de su alumnado, que casi nunca poseía la preparación y el talento necesarios para entender la trascendencia de sus palabras” (Chiantore, op. cit. p.310). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 18 sentido tradicional, mas sim como um gênio musical capaz de ensinar através de suas performances e composições, as numerosas e inéditas possibilidades que um instrumento em desenvolvimento, no caso o piano, podia oferecer. Os estudos opus 10 começaram a ser escritos em 182943, e sua primeira edição saiu em 1833, um pouco antes da chegada de Chopin a Paris. O segundo conjunto, que forma o opus 25, foi composto entre 1832 e 1836 e publicado no ano seguinte, 1837. A qualidade musical manifesta dessas obras é testemunha de que aos 21 anos, Chopin já tinha seu estilo pessoal definido 44 . Chopin não tinha qualquer intenção pedagógica ao escrever os estudos até porque, conforme já foi dito, dentre seu discipulado eram raros os que tinham condições técnicas de sustentar a execução destas obras 45 . Na verdade, seus estudos são mais o resultado de sua técnica e de suas explorações sonoras de um instrumento em expansão, um curso avançado nas inovações ocorridas na técnica pianística46. Considerar seja os estudos seja qualquer outra obra de Chopin dentro de uma ótica puramente tecnicista, importa em incorrer no grave erro de se perder o foco daquelas que foram suas qualidades e virtudes supremas. Todas as figurações, escalas, acordes arpejados, acordes, trinados e notas duplas, presença típica nos estudos de Hummel e Clemente foram por ele reinventadas47, transformando-se em veículo para de idéias musicais 48 . A inventividade chopiniana reside antes de qualquer coisa, e 43 Chopin compôs neste ano os estudos de número 8, 9 e 10. Os últimos estudos desta coleção, dedicada a Liszt, terminaram de ser escritos em 1832. Neste mesmo ano, o segundo caderno de estudos, o opus 25, já estava sendo composto, tendo sido concluído quatro anos depois, em 1836. 44 Ao contrário do que ocorreu com Haydn, Beethoven, Mozart e Schubert, não se encontra na produção musical chopiniana posterior aos estudos, obras mais audaciosas, nem mesmo modificações radicais quanto ao estilo (Rosen, 2000, op. cit.). 45 Ibid. 46 L, Willi Kahl. Romantic piano music: 1830-1850. In: Romanticism (1830-1890). New York: Oxford University Press, 1990. 47 Exemplo disso é a utilização abundante de intervalos de décima obrigando o pianista a grandes esforços musculares e a introdução de escalas cromáticas dedilhadas com apenas três dedos da mão direita (op. 10 no. 5) acarretando modificações importantes dentro da prática pianística. (Kahl, op. cit). 48 Tristan Lauber. Chopin: As Seen by a Pianist. La Scena Musicale - Vol. 5.5 - February 2000. Disponível em: http://www.scena.org/lsm/sm5-5/Chopin-en.htm. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 19 principalmente acima de tudo, na busca, no descobrimento e no desenvolvimento de sonoridades tipicamente pianísticas. Tendo em vista esse princípio, é que se pode começar a vislumbrar de forma mais objetiva o por quê, e em o quê os estudos de Chopin, se constituem como uma categoria de estudos distintos dos estudos escritos até então. Chopin era um grande admirador da música do compositor italiano de óperas Vincenzo Bellini e como tal, foi por suas composições profundamente influenciado. Para os argumentos que aqui tratamos, não se considera relevante decidir se esse apreço já era um reflexo de suas disposições mais íntimas ou se na verdade influenciou seu gosto. O que aqui de fato importa é a existência da correspondência entre a produção musical de Chopin e as melodias bellinianas. A afinidade entre o caráter melódico dos Noturnos chopinianos e as árias de Bellini está registrada em seus estudos porque sua concepção do piano era acima de tudo vocal antes que orquestral49 A influência vocal no piano de Chopin é uma marca distintiva importante quando se compara seus estudos com os estudos de Moschelles ou Crammer e também com as obras homônimas de Liszt e Thalberg. “Este é o motivo [a concepção vocal da sonoridade do piano] pelo qual, a despeito da natureza virtuose dos Estudos, ele [Chopin] evitou os dispositivos flamejantes como oitavas alternadas trovejando e cordas batendo tão valorizadas para seus contemporâneos Thalberg e Liszt.” (..) [“This is why, despite the virtuoso nature of the Etudes, he eschewed such flashy devices as the thundering alternating octave and crashing chords so dear to the Thalbergs and Liszts of his day.”]50 49 Chopin aconselhava seus alunos a escutar com atenção os grandes cantores a fim de descobrir a verdadeira arte de cantar ao piano. (Lauber, op. cit). 50 Lauber, op. cit. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 20 A ópera e as melodias de Bellini não representaram as únicas fontes de inspiração chopiniana, mas também os ritmos, harmonias e experiências de sua nativa Polônia além da música de Johann Sebastian Bach. A música do compositor alemão foi para Chopin51 o ponto de partida para sua educação musical. O aprendizado das obras bachianas representou para Chopin, como bem argumenta Rosen52, muito mais do que apenas um ponto de partida para o estabelecimento de sua relação com o instrumento. Chopin aprendeu contraponto com Bach e foi com ele que aprendeu a extrair muitas vozes de uma, transformando tal capacidade em uma poderosa ferramenta de trabalho. O que Chopin reproduz de Bach não é a estrutura teórica do papel, não é o estabelecimento de motivos melódicos que se apresentam ora nessa, ora naquela voz mas o que ele apreende da experiência auditiva. Rosen estabelece uma diferenciação entre o contraponto lido, o contraponto da partitura, de onde se pode observar e acompanhar inequivocamente cada entrada e o desenrolar das vozes daquele contraponto que o ouvido humano através da audição, pode apreender. O contraponto chopiniano é textural, resultante da contraposição das cores, o que pode ser apontado como outra característica que diferencial entre seu estilo composicional e o de Liszt. Enquanto este último busca efeitos imitativos de folhas, sinos, instrumentos, o outro cria tão somente sons pianísticos, sonoridade pianística abstrata 53 . Avesso como era à música descritiva, ou de obras procedentes de fontes literárias, as vozes de seu contraponto são as diferentes texturas que os diversos sons que Chopin extrai de seu instrumento. Seus sons não são materiais, “mas uma estrutura de sutis gradações, 51 Não somente para ele, mas para toda uma geração de músicos do início do século XIX. O pianoforte e em seguida o piano, instrumentos que absolutamente não fizeram parte da vida de Bach, serviram nas mãos de muitos românticos de veículos para as inúmeras performances de O Cravo Bem Temperado. 52 Rosen, 2000, op. cit. 53 Ibid. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 21 camadas de sonoridades, um contraponto de cor” 54 . Os maiores problemas técnicos dessas peças estão muito intimamente relacionados ao toque e ao equilíbrio sonoro: ao mesmo tempo que aumentam a força e a flexibilidade da mão, também desenvolvem a escuta do intérprete. Chopin metamorfoseia o exercício digital em jogo sonoro, em um jogo de cores que alcança seu apogeu nos estudos, composições onde a natureza contrapontística dessa imaginação colorística melhor se evidencia55. Os estudos de Liszt Liszt escreveu dois conjuntos de estudos 56 : os Douze Études d’exécution Transcendante e os Études d’arprès Paganini, os quais provavelmente constituem o alfa e o ômega da técnica pianística57. Aos quinze anos, Liszt escreveu, sob o título de Études pour le piano-forte em quarante-huit exercices dans tous les tons majeurs et mineurs, o que Rosen 58 chama de primeiro estágio dos Estudos Transcendentais. Publicada por primeira vez em 1826 a coletânea continha doze estudos cuja dificuldade técnica e valor artístico se aproximavam aos exercícios de Cramer ou Czerny. O segundo estágio surgiu em 1837, com a publicação dos Doze Grandes Estudos para Piano. Embora tomando por base o mesmo material temático da versão dos exercícios da adolescência, o novo estágio veio acompanhado de uma modificação radical da sonoridade com o conseqüente aumento da dificuldade técnica. De simples exercícios acadêmicos, os Estudos se transformaram em composições cuja execução beiravam o limite do impossível. A segunda versão dos Estudos assumiu um tal grau de dificuldade que se tornou, provavelmente com uma ou outra exceção, completamente inexeqüível. 54 Id. Ibid.. 56 Liszt escreveu também os Trois Études de Concert que foram publicados orinalmente sob o título de Caprices Poétiques, e que estão, portanto, fora do alcance desta pesquisa. 57 Barda op.cit.. 58 2000. 55 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 22 O terceiro e definitivo estágio foi publicado em 1851 e com a retirada dos excessos se tornou, em relação à versão anterior, mais fácil. Considerado o criador da moderna técnica do piano, Liszt instituiu uma nova forma de fazer soar este instrumento59. Os trêmolos, arpejos e oitavas a serem executadas em velocidades alucinantes, os saltos vertiginosos, os longos trechos em notas duplas, elementos abundantes nos estudos lisztianos, refletem uma técnica pianística avançada. Não se trata de virtuosismo cultivado por si mesmo60, mas da técnica a serviço da música61, representando para a história no estilo de teclado uma verdadeira revolução sonora. A virtuosidade lisztiniana não se esgota em si mesma, mas coloca como meio à obtenção de novos efeitos sonoros. Sua verdadeira originalidade consiste em desenvolver outros meios de expressão sonora priorizando o desenvolvimento da textura e da coloração. A sonoridade do piano em Liszt se modificou tanto em quantidade, através do aumento de sua sonoridade, como em qualidade: “A real invenção [de Liszt] diz respeito à textura, densidade, coloração e intensidade – ou seja, os vários ruídos que podem ser feitos com o piano – e isso é surpreendentemente original. O piano foi pensado para realizar novos tipos de som. Esses sons em geral não se conformaram a um ideal de beleza, quer clássica, quer romântica, mas ampliaram o sentido da música, tornaram possíveis novos meios de expressão”62. Como outros compositores românticos, Liszt fascinou-se pela figura de Nicolo Paganini, o violinista infernal, fonte de inspiração não apenas pela coincidência quanto 59 François-René Tranchefort. Liszt. In: La musique de piano et de clavecin. Sous la direction de François-René Tranchefort. França: Librairie Arthème Fayard, 1987. 60 “Si le piano de Liszt n’était que ‘virtuose’, diabolique au sens paganinien du terme (...), il serait passablement oublié. De la virtuosité cultivée pour elle-même, son contemporain Thalberg a fait les frais au regard de l’histoire: on ne joue plus Thalberg. Liszt, lui, est resté. (…)” (Tranchefort, op. cit). 61 Rostand apud em Tranchefort, op. cit. 62 Rosen, 2000, op. cit p. 654. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 23 à aptidão e valorização da virtuosidade, mas e, sobretudo, pela forma da abordagem ao instrumento. Ambos comungaram do gosto em explorar ao máximo as possibilidades sonoras de seus instrumentos. E foi justamente esta capacidade de pesquisa e arrojo, aliada à criatividade e genialidade que abriu caminho à descoberta de meios fascinantes e inéditos para realizar sonoramente a idéia musical. Seis dos 24 Caprices de Paganini serviram como matéria prima ao compositor húngaro para os Six études d’après Paganini. Sejam estes considerados adaptações ou réplicas63, transcrições ou paráfrases musicais 64 , Liszt se apropria dos efeitos destes estudos para violino. Antes que o aproveitamento do material temático de Paganini, o fundamental na criação dos Six Études é o contágio pela extravagância sonora, a extrapolação do lugar comum da técnica. Compostos em 1838, estes estudos já possuíam todos os elementos pianísticos característicos da escrita lisztiniana65. “Logo à primeira vista, a extensão máxima no âmbito do teclado permite explorar simultaneamente os registros extremos, alcançar novas apresentações de acordes, de diversificar consideravelmente as cores harmônicas; em seguida, uma gama de efeitos que nesse caso em particular – se inspiram na técnica violinística, mas se tornarão para Liszt constantes de um estilo pianístico, que ofuscará seus contemporâneos e influenciará profundamente seus sucessores: são os saltos rápidos sobre amplos intervalos, os trêmolos e as repetições de notas aceleradas, os ataques martelados, os glissandos e pizzicatos, a utilização das duas mãos em trilos ou as escalas em oitavas...” [“Au premier chef une extension maximale de l'ambitus du clavier permettant d'explorer simultanément les registres extrêmes, de réaliser de nouvelles présentations d'accords, de diversifier considérablement les couleurs harmoniques; ensuite une gamme d'effets qui dans le cas particulier - empruntent à la technique violonistique, mais deviendront 63 Tranchefort, op. cit. Rosen, 2000, op. cit.. 65 Rostand, apud Tranchefort, op. cit. 64 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 24 chez Liszt constitutifs d'un style pianistique qui éblouit les contemporains et devait influencer profondément ses successeurs: ainsi les bonds rapides sur de vastes intervalles, les trémolos et les répétitions de notes accélérées, les attaques martelées, les glissandos et pizzicatos, la répartition aux deux mains des trilles ou des gammes em octaves (...)]66. A importância das obras de Chopin e Liszt, aqui representadas por seus estudos, é indiscutível. Porém, não somente na construção da moderna técnica de piano, essas obras serviram também como um ponto referencial importante no estabelecimento da Moderna Escola de Órgão Francesa, e, posteriormente dentro da própria formação pianística de Jeanne Demessieux, como se demonstrará nos capítulos seguintes. 66 Rostand, apud Tranchefort, op. cit. p. 455. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 3. 25 A Escola Moderna de órgão na França Órgão e Liturgia O desenvolvimento e evolução do órgão como instrumento musical é um fenômeno que só pode ser compreendido à luz de sua íntima relação com a Igreja e com sua fundamental participação dentro da liturgia. A construção do órgão em igrejas, um fenômeno descrito já no século X67 e sua utilização pela cristandade ocidental, explicam o porquê da maior parte da literatura organística estar até bem pouco tempo atrás direta ou indiretamente vinculada ao serviço religioso. Baseado nisso, Higginbottom (1998) argumenta que a escuta da música para órgão está impregnada pelo conhecimento dos fatores contextuais relativos à determinada composição: “Nossa apreciação da música para órgão é profundamente colorida pelo conhecimento do contexto da composição e performance, incluindo inevitavelmente as condições litúrgicas que lhe conferem propósito e forma. Sem tal conhecimento, certas peças do repertório podem tornar-se ininteligíveis, e muitas delas menos ricas em significado.” [“Our critical appreciation of organ music is deeply coloured by a knowledge of the context of its composition and performance, including inevitably the liturgical conditions which gave it purpose and shape. Without such knowledge some of the repertory can be unintelligible, and much of it less rich in significance”]68. A fonte mais antiga que se tem acesso em nossos dias para a compreensão da utilização do órgão na Igreja Católica Romana é o Faenza Codex69, onde se pode atestar a existência de Kyries70 e Glorias, partes da missa que foram claramente concebidas 67 The Organ in the Middle Ages http://bsc.edu/~jhcook/OrgHist/history/hist002.htm Edward Higginbottom, Edward. Organ music and liyurgy. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press, 1998, P. 130. 69 O Faenza Codex é um manuscrito de canções da alta idade média com transcrições de partituras para teclado de obras sacras e profanas de origem francesa e, sobretudo, italiana. Embora o próprio Codex seja datado do século XV, ele contém muitas de suas músicas são do século anterior. http://www.lib.latrobe.edbu.au/AudioVisual/Stinson/mss/fa.htm e http://www.lemur.stanford.edu/albumdbase/Choral_:_Classical/31.comments.html 70 É possível ouvir um trecho do Kyrie gratuitamente na Internet em http://www.cdnow.com/cgibin/mserver/redirect/leaf=switch/from=sr-1693501/target=buyweb_purchase/ddcn=SD-3009+8553618+2 68 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 26 para serem utilizadas alternando órgão e vozes. Esse método denominava-se alternatim71 e possibilitava a divisão do texto em versets transformando o órgão num parceiro indispensável para a apresentação do texto que era repartido entre voz e instrumento, diminuindo a fatiga dos fiéis que eram dispensados de recitar os longos textos em sua íntegra. A participação do órgão na Igreja Católica era antes baseada na prática de improvisar versets a partir de um determinado gregoriano, que servia de material básico à improvisação. Dado o relacionamento intrínseco do órgão com a Igreja, a modificação substancial da liturgia ocorrida após a Reforma de 1571 se refletiu evidentemente nos rumos que a história do instrumento tomou. Dentro deste ponto de vista, o exame de movimentos religiosos como a Reforma e Contra-Reforma, bem como as transformações internas sofridas pela Igreja Católica e posteriormente pelas Igrejas Reformadas, são etapas imprescindíveis para a compreensão da evolução do instrumento, de sua literatura e de sua técnica. Uma das modificações que a Igreja Luterana introduziu em sua liturgia foi a prática de entoar hinos estróficos. O choral foi a maior contribuição musical da Igreja Luterana72, servindo de substância prima para a elaboração de grande parte da literatura organística dos séculos XVI e XVII. Para familiarizar a congregação com a melodia coral, bem como para servir de introdução ao cântico, os organistas improvisavam prelúdios, baseando-se na melodia do hino, que de certa maneira passou a servir como um cantus firmus trabalhado polifonicamente entre as diversas vozes. “A principal tarefa do organista do Norte da Alemanha do século XVII era tocar os corais e cantos em conjunção com o coro e/ou congregação, executando de antemão os 71 O alternatim consistia em apresentar o texto litúrgico de forma semelhante à prática ainda mais antiga de cantar antifonalmente os salmos. 72 Grout, op. cit., p. 278 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 27 prelúdios, fornecendo versos ao órgão solo, ou mesmo improvisando floreios entre cada linha de um verso cantado. A arte era essencialmente a da improvisação (...)”. [“The principal duty of the north German organist of the seventeenth century was to play chorales and chants in conjunction with the choir and/or congregation, either preluding beforehand, or providing verses on the organ alone, or even improvising flourishes between each line of a sung verse (…)”]73. No final do século XVI, a importância dos corais74 dentro do serviço religioso era tal que eles formavam o próprio corpo da música litúrgica 75 . O dever mais significativo do organista luterano residia na execução do prelúdio coral: a extensão de sua utilização sugere uma analogia com a vinculação do organista católico com a prática do alternatim. Organistas católicos e reformados necessitavam, portanto de grandes habilidades de improvisação76 Rumo distinto ocorreu com a participação do órgão na liturgia das Igrejas Reformadas na França. Estas ficaram sob a influência das idéias de Calvino, que objetava quanto à utilização de instrumentos musicais no culto. Os calvinistas baniram o órgão de seus serviços só admitindo o canto dos Salmos a cuja versão métrica para a língua francesa era acrescentado uma melodia. Diferentemente de Lutero, que apreciava o cântico dos corais harmonizados, Calvino, insistia que os Salmos fossem cantados em uníssono. A mesma situação ocorreu na Inglaterra, onde os seguidores de Calvino foram chamados de Puritanos. Conclui-se daí que a Reforma, considerando-se o desenvolvimento da literatura e técnica organística, ocasionou situações muito distintas quando comparadas Alemanha e França. Em ambos países, a forte ligação entre órgão e Igreja prosseguiu, embora no caso da França, permanecesse praticamente restrita à 73 Geoffrey Webber. The north German organ School. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press,1998, p.222. 74 Referimo-nos aqui ao hino coral estrófico, Choral, e não à formação de um grupo vocal. 75 Grout, op. cit. 76 Higginbottom, op. cit. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 28 liturgia da Igreja Católica. Para a Alemanha, entretanto, o Luteranismo significou o surgimento de novas possibilidades para o desenvolvimento organístico em geral. Às vésperas do século XVIII, a situação do órgão na França era bastante distinta de seu vizinho país germânico. Havia muitas diferenças quanto à técnica, literatura, utilização e constituição do órgão entre os dois países. Geralmente, os órgãos construídos no Norte da Europa possuíam geralmente vários manuais, ao contrário daqueles oriundos no Sul. Os instrumentos da França, bem como Itália, Inglaterra e Península Ibérica, nesta época raramente apresentavam mais de um manual, porém eram dotados de um número muito grande de registros. A pedaleira típica da Alemanha era constituída de teclas longas o que, possibilitava a utilização de pontas e calcanhares. Já na França, embora houvesse pedaleiras de grande extensão, estas possuíam teclas curtas e levemente inclinadas para cima, o que, por sua qualidade desconfortável, não eram propícias ao desenvolvimento da técnica do pedal. As publicações de obras para órgão se dirigiam especialmente ao uso litúrgico, e, sem exceção, destinadas à prática do alternatim 77 . No sul da Alemanha, se destacaram as obras de estilo virtuosístico e contrapontístico como as tocatas, fantasias e ricercares, predominando antes o desenvolvimento digital, em detrimento da técnica do pedal78. A Alemanha do Norte, por sua vez, caracterizou-se pelo alto nível de desenvolvimento da técnica da pedaleira, pelas composições que se baseavam no Choral: o Chorale verset79 e o choral fantasia80, 77 Higginbottom, op. cit. Patrick Russill, Catholic Germany and Austria 1648-c1800. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press, 1998. 79 Para um determinado choral, eram compostos versets, ou seja, improvisações, variações sobre o hino escolhido. 80 Composições baseadas num determinado choral, porém com texturas ricas e cadências extravagantes. 78 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 29 os prelúdios com cantus firmus81, influência das composições de Sweelinck82. A Escola do Norte da Alemanha encontrou em Bach seu maior e mais ilustre representante. O órgão e a Revolução Francesa Dramáticas mudanças ocorreram na Igreja e na música litúrgica com o advento da Revolução Francesa. O clero perdeu seus privilégios, sendo obrigado a prestar juramento de submissão à constituição civil. Os bens e propriedades eclesiásticas foram confiscados ao governo que pretendeu substituir o culto da Igreja Católica pelo o Culto ao Supremo Ser. As igrejas foram transformadas em Templos da Razão, auditórios para realização de Festivais, encontros cívicos e até em depósitos de armas. Inúmeros órgãos foram destruídos por vandalismo, leiloados e ainda muitos outros tiveram seus tubos de metal vendidos como matéria prima bélica. Dado o vínculo entre o órgão e a Igreja, o papel do organista83 mudou drasticamente, visto que o início da Revolução provocou uma súbita suspensão de suas atividades 84 . No intuito de manter suas posições e proteger seus instrumentos, muitos organistas se colocaram a serviço da Revolução, participando de solenidades cívicas e em festivais, cuja finalidade era antes política que artística. O órgão, por suas características particulares, foi um instrumento de grande utilidade aos interesses revolucionários. A música começou a ser usada como uma ferramenta política de extraordinária eficácia, porque alcançava as massas em uma época onde ainda não havia a amplificação e porque funcionava como uma excelente 81 O cantus firmus era muitas vezes colocado na voz do tenor, sendo executado na pedaleira, com registro de 4’. 82 Webber, op. cit 83 Até então, os cargos de organistas eram vitalícios, alguns deles chegando a passar como uma herança, de geração em geração, como foi o caso do reinado da família Couperin, que durou 173 anos no órgão de Saint-Gervais. 84 “Le début de la Révolution avait provoqué une suspension soudaine de l'activité des organistes, les églises étant désaffectées et utilisées comme casernes ou entrepôts” (Nicolas Gorenstein. L’orgue postclassique français: Du Concert Spirituel à Cavaillé-Coll. Paris: Editions Musicales Chanvrelin, 1993, p.40) por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 30 forma de distrair a população do que ocorria ao seu redor. Como bem afirmou Barrett Benson 85, nesse sentido, a música programática serviu-se bem a este propósito, pois agradava em muito ao público em geral 86. Para que a música tivesse volume o suficiente para ser ouvida, compreendida e ainda, memorizada, requisitos como potência, clareza e simplicidade, eram bem-vindos e até mesmo indispensáveis. A capacidade sonora do órgão tornava conveniente a presença deste instrumento nas cerimônias cívicas, enquanto que simplicidade e clareza eram atributos vinculados tanto à natureza das técnicas composicionais, quanto à nova estética que surgia. O gosto musical da virada do século tendia a rejeitar a complexidade do contraponto barroco, associado como música da aristocracia, e a adotar um estilo claro, simples e elegante. A simplicidade das melodias acompanhadas e a presença do Baixo de Alberti, características do estilo galante se apresentavam como novas tendências prontas a substituir o contraponto e o excesso de ornamentação, dominantes até então na música para órgão. Logo no primeiro ano do século XIX foi restabelecida a paz com a Igreja Católica e, a partir de 1802, “O restabelecimento da cultura musical na França por Napoleão depois de 1802, conduziu a um novo estilo operístico de música eclesiástica, linhas melódicas em terças, notas do baixo em staccato executadas no contratempo, etc. A música de órgão havia adquirido um estilo pianístico, com frases curtas repetidas e cadências suspensas seguidas por codas”. 85 s/d Um exemplo disso na música para órgão foi a obra de Jacques-Marie Beauvarlet-Charpentier (17661834), “Victoire de l’Armée d”italie ou Bataille de Montenotte”, dedicada a Bonaparte, cujas partes se intitulavam “amanhecer”, “toque de alvorada”, “reunião das tropas”, “partida para a batalha” e assim por diante. No dizer de Brooks, (1998), algo que soa aos nosso ouvidos como precursor da música para filme mudo. 86 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 31 [“Napoleon’s reinstatement of musical culture after 1802 led to a new operatic style of church music, melodic lines in thirds, staccato bass notes with off-beat chords, etc. Organ music was in a pianistic style, with short repeated phrases and interruped cadences followed by codas”]87. O bloqueio temporário causado pela Revolução Francesa serviu como uma espécie de alavanca para a mudança de rumos da música para órgão que se praticava na Igreja francesa: o impedimento não determinou o surgimento, mas criou condições que facilitaram o desenvolvimento de um tipo de música que já existia. Não obstante as circunstâncias políticas induzissem a uma adaptação musical, ainda havia organistas que durante a era revolucionária preservavam a tradição do antigo regime de compor fugas88. A preferência do público, contudo, apontava para as obras inspiradas no Te Deum, construídas basicamente sob a técnica da improvisação e para os Noëls com suas inúmeras variações. Além disso, havia as fanfarras, cujas características rítmicoinstrumentais já se apresentavam no século anterior através do estilo austríaco, e como resultado do incremento da música militar devido às campanhas da República, posteriores à Revolução89. O período da Reconstrução e as novas tendências expressivas Durante a Reconstrução ocorrida nos anos seguintes ao acordo entre o Papa Pio VII e Napoleão90, a retomada do culto católico na França e a reconstrução das Igrejas e órgãos foi acompanhada pela secularização da música na Igreja e pelo conseqüente declínio da música polifônica. Conviviam na França de meados do século XIX duas linhas organísticas distintas, as quais determinaram duas condutas performáticas 87 Gerard,Brooks, BIOS REPORTER. The French Symphonic Tradition. The British Institute of Organ Studies. January 2001, Volume XXV, No.1 s/d. 88 Guillaume Lasceux (1740-1831) escreveu Douze Fugues, Jean-Jacques Beauvarlet-Charpentier, (17341794), Six Fugues, Nicolas Séjan (1745-1819) 89 Gorenstein, op. cit, p.40. 90 No ano de 1801. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 32 também diferentes. Alexandre-Pierre-François Boely, organista que, inconformado com as novas tendências musicais da época, era o representante de um estilo que se usou denominar “severo”. Boely se tornou “um pioneiro na França, no estudo das obras de Bach e no estudo da técnica de pedal 91 . Em contrapartida encontrava-se Lefébure- Wely, cujas composições delineadas dentro do estilo galante92, se baseavam, sobretudo na improvisação: ele era um “organista de efeitos”93, a serviço da criação de música de programa 94 . Delineavam-se, portanto, duas correntes, “uma popular, leve, de entretenimento e, basicamente homofônica por um lado, e outra séria, digna e basicamente contrapontística”95. Havia muitas críticas dirigidas tanto a uma quanto à outra escola. Boely, que renegava o gosto popular da época, era admirado apenas por uma minoria que repudiava as novas tendências que emergiam na música de igreja. Por outro lado em 1856, François-Joseph Fétis, musicologista, crítico, professor e compositor que exerceu grande influência na Europa durante o século XIX, publicou um artigo intitulado “O órgão mundano, ou a música erótica na Igreja” (“L’orgue mondain ou la musique érotique à l’église”). Nele, assim Fétis se refere a Léfebure e seu defensor, o abade Lamazou “A inferioridade radical dos organistas franceses ocorre precisamente por causa primeira da moda que eles denominam de improvisação. Nenhum deles tem aquilo que se pode chamar de formação organística. Nenhum deles seria capaz de tocar com 91 Riley, Vickie Hale, apud Laurie Barrett-Benson, The effects of the Revolution on the organ mass in France. Roger Wagner Center Online! California State University, Los Angeles. s/d . Acesso em setembro, 2001.s/d. 92 “Lefébure-Wélys success was phenomenal. (...). Danjou abhorred his flamboyant style but knew the crowd would love whatever Lefébure-Wély’s fingers played;)” (Douglass, 1999, p. 75) 93 Clarence Eddy apud Orpha Ochse,. Organists and organ playing in nineteenth-century France and Belgium. Indiana, USA: Indiana University Press, 2000, p. 61) 94 Composições denominadas “Storm” eram muito comuns à época e se assemelhavam em muito às peças revolucionárias que descreviam batalhas. (Ochse, op. cit, p. 48). 95 “(...) the popular, light, entertaining, and primarily homophonic on one side, and the serious, dignified, and primarily contrapuntal (...)” (Ochse, op. cit p. 33). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 33 maestria as grandes obras de Bach, nenhum deles sabe o que é que estilo e não poderia distinguir uma época de outra”. (o grifo é nosso). [“L’infériorité radicale des organistes français a précisément pour cause première la manie de ce qu’ils appellent l’improvisation. Aucun d’eux n’a ce qu’on peut appeler l’éducation de l’organiste. Aucun d’eux ne serait capable de jouer en maître les grandes pièces de Bach; aucun d’eux ne sait ce que c’est que le style et ne pourrait distinguer une époque d’une autre”]96. O grifo introduzido no texto, (“qu’ils appellent l’improvisation”) visa chamar a atenção para o fato que Fétis não abominava a improvisação, mas sim algo que considerava uma deturpação da técnica de improvisar. O que as entrelinhas de Fétis provavelmente revelam é o seu repúdio às novas tendências estéticas. E para esse novo estilo que surgia, as características dos antigos órgãos se mostravam insatisfatórios. Chamados a reconstruir os órgãos danificados durante a Revolução, os organeiros assumiam as tendências da época, dotando os novos instrumentos de um estilo mais orquestral. Essa virada estética, contudo, havia se iniciado já no século anterior, com a instituição do Concert Spirituel 97 , manifestação musical pública completamente inédita na França98, contribuindo para a formação de novas atitudes por parte dos compositores francses, instrumentistas e consumidores de música do século XVIII 99. 96 Brigitte François-Sappey,. Louis James Alfred Lefébure-Wely. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991. 503-7. 1991, p. 504)) 97 O Concert Spirituel, fundado em Paris por André Danican Philidor em 1725, foi um empreendimento de concertos públicos, que ocorriam nos feriados religiosos, quando a Académie Royale de Musique estava fechada. Inicialmente, eram especializados na execução de música sacra francesa, mas, em 1734, a Académie assumiu o controle, e os concertos começaram a enfatizar mais e mais a música instrumental. A partir dos anos de 1780, a música instrumental passou a assumir um papel cada vez mais proeminente nos concertos. Durante os anos de 1780, foram sendo mais e mais dominados pelas sinfonias de Haydn, “que se tornou para a música francesa de orquestra o compositor de referência”. Os concertos cessaram em 1789 por causa da Revolução Francesa. (Gorenstein, op. cit, p. 11). 98 Gorenstein, op. cit, p.7 99 New Groves online, Concert Spirituel 2002. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 34 Durante os 66 anos de existência do Concert Spirituel, a performance de música sinfônica estrangeira trouxe muitas modificações na orquestra francesa que por sua vez acarretou grandes consequências para o órgão100. “Com tudo isto, a arte dos organistas, vai se ressentir, como se pode ver, a todos os níveis: escrita, registração, estilo; (...). A arte do órgão será ligada, daí em diante, e cada vez mais intensamente à arte sinfônica (...)”. “[De tout cela, l'art des organistes va se ressentir, comme on va le voir, à tous les niveaux: écriture, registration, style; (...) L'art de l'orgue sera lié désormais, et de façon sans cesse croissante, à l'art symphonique (...)]”101. Cavaillé-Coll e o órgão sinfônico A instalação do órgão construído por Cavaillé-Coll102 na igreja real de St Denis no norte de Paris em 1841, marcou o início do estilo sinfônico de construção de órgãos na França tornando-se o ponto de partida da grande Escola Francesa de composição e de performance de órgão103. A concepção de órgão sinfônico não partia propriamente da proposição de copiar o som da orquestra, mas antes permitir à musica de órgão a mesma versatilidade que a grande orquestra romântica produzia ao executar música sinfônica. O nome de Cavaillé-Coll predominou na França como organeiro 104 durante o século 100 Gorenstein afirma que antes do advento dos Concert Spirituel, na orquestra clássica francesa, diferentemente das alemãs e italianas, o contrabaixo era visto como um instrumento dispensável, sendo a viola da gamba ou o violoncelo como suficientes para guarnecer os baixos. A partir de 1750, entretanto, a orquestra francesa adotou definitivamente dois contrabaixos em sua formação. “O uso cada vez mais difundido dos contrabaixos, que terminaram por se tornar indispensáveis, mudaram os hábitos auditivos dos franceses – e dos ouvintes de órgão em particular”.[“L'usage de plus en plus répandu des contrebasses, qui vont devenir indispensabels, vont donc changer les habitudes d'oreille françaises - et celles des auditeurs d'orgue en particulier”.] (Gorenstein, op. cit, 9.) 101 Gorenstein, v, p. 7-8. 102 Cavaillé-Coll (1811-1899) construiu cerca de 600 órgãos, a maioria deles em território francês. 103 William Leslie Sumner. The Organ, Its evolution, Principles of construction and Use. New York: St. Martin’s Press, Inc., 1962. 104 Embora o nome de Cavaillé-Coll tenha predominado como organeiro durante todo o século XIX, outros construtores de órgãos de igual modo exerceram seu ofício com gênio inovador podendo também por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 35 XIX105. Cada uma de suas inovações tornava cada vez mais o órgão um instrumento capaz de atender à demanda da estética musical romântica. Uma delas foi o dispositivo de Barker, “o mais importante [acontecimento] na história da construção de órgãos românticos”106. O organeiro eliminou as flutuações que produziam oscilações no som melhorando o sistema de foles, aumentou o récit e passou a adotar o pedal de expressão e caixa expressiva. Além disso, aproveitando a idéia de um sistema outrora criado por seu pai, inventou um dispositivo que permitia a mudança de registros por um simples movimento dos pés sem que as mãos precisassem ser retiradas do teclado. Dessa forma, o pédale de combinaisons capacitava o organista a mudar com rapidez a registração sem necessitar parar ou requerer um assistente para fazê-lo. Do ponto de vista dos registros, ocorreu um escurecimento da paleta sonora em virtude uma tendência acentuada de supressão das mixtures em favor de um poderoso som de fundos, multiplicação das trombetas e das flautas. Cavaillé-Coll transformou o positif em um segundo grande órgão: o uso do plein-jeu, registração imprescindível para execução da música francesa para órgão até o século XVIII, declinou. Esses implementos ampliaram e, sobretudo, alteraram substancialmente a natureza do instrumento. O órgão de Cavaillé-Coll permitia ao organista realizar grandes mudanças de dinâmica (caixa expressiva), alterar a qualidade do som introduzindo ou retirando registros, (pédale de combinaisons) e ainda permitir o desenvolvimento de uma técnica digital mais veloz (dispositivo de Barker). Cada uma dessas novas características assemelhava o órgão sinfônico ao piano, o qual, na virada ter estimulado muitos compositores. (Michae Murray l. French Masters of the Organ. New Haven, London: Yale University Press, 1998, p.19) 105 Brooks, op. cit 1998. 106 Fenner Douglass, Cavaillé-Coll and the French Romantic Tradition. London: Yale University Press, 1999, p.17. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 36 do século XIX, havia sobrepujado a espineta no gosto popular. Nessa época,o piano se tornou o representante das qualidades expressivas desejáveis do Romantismo. “Os instrumentistas [pianistas] se encantavam com a gama de expressão oferecida [pelo piano], de súbitas nuances até grandiosos efeitos dramáticos. Quando os organeiros buscaram formas de dar ao órgão possibilidades expressivas similares, esse interesse não representou um acontecimento isolado, mas uma resposta ao gosto contemporâneo. Foi uma corrida para ver quem melhor combinaria o controle da dinâmica do piano com o som prolongado do órgão.” [“Performers were delighted with the range of expression it offered, from subtle nuances to grandiose dramatic effects. When organ builders searched for ways to give the organ similar expressive possibilities, theirs was not an isolated interest but a response to contemporary taste. It was a race to see who could best combine the piano’s control of dynamics with the organ’s sustained tone”] 107. A importância de Cavaillé-Coll para a Escola de órgão francesa se observou ainda em um movimento em direção à padronização dos arranjos na consola instrumento. Este fato se refletiu na esfera composicional, pois os compositores a partir de então sabiam exatamente para qual tipo de instrumento estavam escrevendo música108. Por volta de 1850, Lemmens e outros convenceram Cavaillé-Coll de que a performance da música de Bach para órgão requeria manual dotado de cinquenta e cinco notas e pedaleira de trinta. A partir de então, Cavaillé-Coll passou a adotar esses parâmetros em seus instrumentos109. Napoleão III, logo após o sucesso da inauguração do órgão de St. Denis ordenou que “os órgãos das Catedrais de toda a França deveriam ser reconstruídos, (...) e sugeriu que o trabalho deveria ser dado a Cavaillé-Coll” · . 107 Ochse, op. cit, p.27. Sumner, op. cit, p.224 109 Antes desse episódio, Cavaillé-Coll havia construído órgãos cuja pedaleira começava por fá ou lá. (Michael Murray,. Op. cit.) 108 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 37 Não obstante a organeria francesa estivesse sendo alvo de uma grande revolução, foi somente nas obras de César Franck que a tradição sinfônica na música para órgão, se solidificou. Belga de nascimento, Franck obteve sua formação organística no Conservatório de Paris, instituição cuja fundação importou em mudanças decisivas para a pedagogia organística francesa. O órgão e a fundação do Conservatório de Paris Criado em 1795, O Conservatório de Paris tinha por finalidade suprir a lacuna deixada na educação musical a partir da Revolução com o fechamento das maîtrises110. Até o século XVIII, o ensino de música na França estava a cargo principalmente dessas escolas, que eram vinculadas às catedrais e Igrejas 111 . Pela primeira vez na França, iniciou-se um processo de padronização da educação musical, garantido pela criação de um currículo que deveria ser aplicado a toda a nação. O caráter hegemônico do Conservatório evidenciou-se ainda mais através da implementação entre 1800 e 1814 de tratados e métodos devotados aos instrumentos, voz e harmonia, escritos por professores da Instituição112. Na virada do século XIX, a França estava oficializando pela primeira vez um sistema de educação musical 113. A comparação entre a situação pedagógica do piano e do órgão nessa época revela alguns pontos interessantes. Referências sobre a existência de um órgão no Conservatório antes de 1818 são vagas. Sabe-se, no entanto, que Séjan, embora arrolado 110 Até por volta de 1792, ano em que foram fechadas, havia cerca de 500 maîtrises espalhadas por toda a França (Jean Mongredien,. French Music: from the Enlightenment to Romanticism, 1789-1830. Oregon, USA: Amadeus Press, 1996). 111 Mongredien, op. cit, p.11. 112 Mongredién, op. cit, p.22. 113 Mongredién, op. cit. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 38 como o primeiro professor de órgão, ensinou solfejo114 e piano no Conservatório até 1802, ano de sua demissão. A partir desta então, o órgão foi excluído do currículo do Conservatório que permaneceu sem professor para esse instrumento até 1819, ano em que François Benoist assumiu o posto. Em contrapartida tão logo foi fundado, o Conservatório tinha em seu quadro sete professores lecionando piano115, número esse que chegou a onze três anos depois em 1798116. Mais significativo ainda é o fato de que Séjan, organista e professor oficialmente contratado pelo Conservatório para lecionar órgão fosse considerado o fundador da Escola de piano francesa117. Benoist, era por sua vez considerado um organista medíocre cuja formação era, sobretudo pianística118. Tal característica seguiu de fato, as determinações da administração do Conservatório quanto ao que deveria se constituir as qualidades do professor de órgão a ser contratado: “(...) a pessoa a preencher o posto de professor de órgão deveria ser ‘um excelente pianista, organista, bom harmonizador e bom compositor’” (grifo nosso) [“(...) that the person filling the post of organ professor should be “an excellent pianist, organist, good harmonist, and good composer”’]119. Note-se que os atributos que expressam excelência para o cargo, não estão vinculados à especialidade da cátedra em si. Requeria-se destreza em vários atributos, porém não necessariamente no órgão: o professor de órgão no Conservatório, havia que “ser excelente pianista”, bastando, porém, tão simplesmente “ser organista”. Louis Adam chegou a ser proposto como um candidato, vez que “ele tinha sido um professor de piano do Conservatório desde 1797, era o autor 114 Séjan já havia ocupado o posto de professor de órgão na Ecole royale de chant, escola que precedeu o Conservatório de Paris. Porém, como a Ecole não pöde adquirir um órgão “por causa dos problemas causados pela Revolução”, Séjan lá ensinava apenas solfejo. (Ochse, op. cit, p. 13) 115 Para ver a relação dos professores de piano que lecionaram no Conservatório de Paris entre 1795 e 1998 consulte Timbrell, op. cit, p. 275. 116 Charles Timbrell. French Pianism – A Historical Perspective. Oregon, USA: Amadeus Press, 1999, p. 28. 117 Brooks, op. cit, 1998. 118 Guy Bourligueux,. François Benoist, un maître nantais oublié. Musica et Memoria s/d. 119 Ochse, op. cit, p.148. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 39 de um famoso método de piano e parecia satisfazer todos os requisitos para o posto”120. Do ponto de vista do ingresso no corpo discente de teclado do Conservatório, exigia-se que o aluno tivesse “completado sua educação geral e adquirido considerável proficiência no piano”121 . Em se tratando de estudante de órgão, deveria ter além, habilidades em harmonia e contraponto, bem como capacidade em improvisação122. A contribuição de Benoist para a construção da história da música do órgão reside antes na manutenção da prática da improvisação que no aprendizado da técnica instrumental123. Foi durante seus 53 anos como professor de órgão do Conservatório de Paris, que se originou o que Murray124 denominou a primeira das duas Escolas de órgão surgidas no século XIX, liderada por dois alunos de Benoist: Saint-Saens e Franck. Enquanto o piano avançava na definição de uma técnica própria, o órgão ainda tateava na França embora sua origem se antecipasse em vários séculos. Foram praticamente 25 anos de distância entre a inclusão do piano e do órgão no currículo do Conservatório. Com relação à adoção de um método de ensino padrão, a diferença cronológica entre os dois instrumentos foi ainda maior, pois foi somente a partir de 1890 um método de órgão foi implementado no Conservatório de Paris125. É possível que hoje em dia, a relevância da padronização do ensino através da eleição de um único método de ensino, seja um ponto a ser discutido. Contudo, há que se levar em consideração a importância desta decisão nos inícios do século XIX, quando se iniciou a sistematização do ensino de música na França. Nesse sentido, o valor da 120 “He had been a professor of piano at the Conservatory since 1797, was the author of a well-known piano method, and seemed to satisfy all the requirements for the position.” (Ochse, op. cit, p.148). 121 Ochse op. cit 145 o grifo é nosso. 122 Ochse, op. cit. 123 Sabatier, apud Bourligueux, op. cit.. 124 “First, two schools, not one, emerged in France in the nineteenth century” (Murray, op. cit, p.19) 125 Ochse, op.cit,, p.186. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 40 publicação e adoção pelo Conservatório em 1802 do método de piano de Louis Adam126 adquire um status de maior relevância, porque se coaduna com a tendência da época quanto à busca de um intensivo treinamento técnico. Com relação ao órgão, a situação foi bastante diferente. Benoist, e em seguida César Franck, seu aluno e sucessor no posto de professor do Conservatório a partir de 1872, tinham suas atenções voltadas pedagogicamente para o treinamento da improvisação. Como organista, Franck, à semelhança de seu mestre, “(..) suscitava numerosas reservas. Era lamentável sua técnica pianística inoportunamente aplicada ao órgão (...) Assim Marcel Dupré pôde sinalizar que ele tocava seu instrumento ‘como se tocava na França à sua época: legato aproximativo, observância aproximativa das durações’” (...)” [“(...) a suscité de nombreuses réserves. On a déploré sa technique de pianiste inopportunément appliquée à l'orgue, (...) Ainsi Marcel Dupré a-t-il pu signaler qu’il touchait son instrument “comme on jouait en France à son époque: legato approximatif, observance approximative des durées (...)”]127. Como professor, “era algo negligente com os problemas técnicos. (...) Acreditava que um aluno admitido, [na classe de órgão do Conservatório de Paris] já tinha alcançado o nível desejado” [“Franck négligeait quelque peu les problèmes techniques. Estimant qu’un élève admis avait atteint le niveau souhaité (...)”]128. E ainda segundo Widor, “Como organista, a técnica do instrumento pouco lhe inquietava: ele se concentrava de fazer um curso de improvisação livre, sobre um imutável plano andante”. 126 O Méthode de Piano du Conservatoire, de Louis Adam, foi amplamente utilizado por alunos de piano e alunos de órgão que estudavam piano no Conservatório de Paris. O referido método trazia entre seus exercícios, diversos tipos de dedilhados, substituição (em uma, duas notas) terças, sextas e oitavas e associava o legato com o estilo vocal de legato. (Ochse, op. cit). 127 Sabatier, op. cit, p.357 128 Ibid.p. 358. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 41 [“As organist, the technique of the instrument troubled him little; he was satisfied to give instruction in free improvisation on an immutable plan of andante”. ]129 A inexistência de um método adotado oficialmente pelo Conservatório não significou a ausência de métodos de órgão circulando pela França durante o século XIX. Pelo contrário, foram muitos os métodos e tratados que circularam pelos meios musicais da França novecentista. Métodos e tratados de órgão na França do século XVIII Na França, o processo de desenvolvimento da pedagogia organística ficou seriamente defasado, sobretudo em relação à Alemanha como conseqüência do cenário político estabelecido entre o final do século XVIII até meados do século XIX130. Não é de se estranhar, portanto, que na retomada do desenvolvimento da tradição organística muitos métodos que surgiram no decorrer do século XIX na França tivessem sido importados da Alemanha, onde a tradição organística tinha prosseguido sem interrupções significativas. Métodos alemães 131 foram traduzidos e re-impressos na França, como foi o caso do Orgelschule de Johann Gottlob Werner, publicado na Alemanha entre 1805 e 1824, e do Praktische Orgelschule de Johann Christian Heinrich 129 Widor, apud Ochse op. cit p. 184. Fétis explicava a situação de inferioridade que a técnica organística francesa se encontrava em relação à alemã devia-se ao fato que a “grande tradição da Franca no tempo de Titelouze até Couperin tinha se perdido, primariamente porque os organistas franceses deram toda atenção à improvisação, raramente tocando música escrita. Então, os artistas de real talento não deixaram musica para o futuro, nem qualquer composição nem a técnica progrediu” (Fétis apud, Ochse, op. cit, p.175). 131 A Alemanha foi profícua na criação de tratados e métodos de órgão. A grande maioria dos métodos de órgão citados como mais conhecidos à época pelo Musik-Lexikon de Hugo Riemann, são de origem alemã: “Les méthodes d’orgue les plus connues sont celles de J. H. Knecht (1795-98), (…) Rinck (1818, red. Par Diemel et Volckmar), Fr. Schneider (1830), Volckmar (1858), A. G. Ritter (Kunst des Orgelspiels). R. Palme (Orgelschule, op. 57), Kothe, (…) Herzog (1890), Merkel (op. 177), (…) Hesse, Bönicke (Kunst des Orgelspiels), H. Sattler, Fr. Zimmer, C. H. Strube, Fr. W. Schütze, ArmbrustTiemann (Technische Studien für das Pedalspiel, avec l’exposé d’un nouveau procédé pour le jeu de la pédale), (…) G. Rietschel, Die Aufgaben der Orgel im Gottesdienste, etc. (1893), et Die Aufgabe der Orgel im evangelischen Gottesdienst, etc (1893), et Die Aufgabe der Orgel im evangelischen Gottesdienst (1894); A. Schering. Studien zur Musikgeschichte der Frührenaissance (1914); O. Kinkeldey. Orgel und Klavier in der Musik des 16., Jahrh. (1910); Heinrich Schmidt, Idie Orgel unserer Zeit (1904); (…) (Riemann, 1946.) 130 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 42 Rinck132, ambos contando com publicação francesa já em 1833. Esses métodos eram amplamente utilizados na Institution Royale de Musique Classique et Religieuse 133 , dirigida por Alexandre Choron. Outros métodos alemães, nem todos traduzidos ou reimpressos na França, foram igualmente referendados, servindo de base para alguns compêndios escritos por compositores franceses. O Orgelschule de Justin Heinrich Knecth, método publicado em 1790 na Alemanha serviu como modelo para o École d’orgue de Jean Paul Martini, publicado na França em 1804, enquanto que Adolphe Mine agregou ao seu Manuel simplifiée de l’organiste de 1835 as Leçons d’orgue de Kegel134. Os tratados alemães em uso na França depositavam uma grande ênfase na conexão das notas, o que também se estendeu aos métodos franceses surgidos então. A grande tendência consistia na tentativa de "explorar novas dimensões do legato" através de exercícios de substituição, glissando, cruzamento dos pés e alternância de pontas135. A importação dos tratados alemães e o aumento no interesse pelos assuntos relacionados à técnica organística indica que em meados do século XVIII havia se estabelecido uma atitude crítica com relação à situação da performance dos organistas franceses. Além disso, o aumento das possibilidades para os organistas demonstrarem sua arte em inaugurações e concertos e o incremento da arte organeira francesa, instalou por essa época, um mecanismo de feedback, colocando o interesse pela técnica 132 Foi publicado sob o nome de L’École pratique d’orgue. Em 1825, Etienne-Alexandre Choron em 1825 fundou a Institution royale de musique religieuse que pretendia a reviver a época das maîtrises fechadas pela Revolução. Nesta instituição, música antiga e música coral, especialmente Palestrina, recebiam particular atenção, embora o ensino de órgão não fosse inteiramente negligenciado. (Ochse, op. cit, p.205). 134 William Petterson,. J. Lemmens, his École d’orgue, and Nineteenth-Century Organ Methods. In: ARCHBOLD, Lawrence; PETERSON, William J. French organ music from the Revolution to Franck and Widor. New York, USA: University of Rochester Press, 1999. 135 A técnica de alternância de pés já havia sido descrita no Kleine Pedalschule de Hesse, considerado "herdeiro"da tradição bachiana. Os métodos de Werner, Rinck, e Martini (...) possibilitou aos organistas franceces a compreensão plena da técnica de pedal alemã, a qual sintetizava a técnica da tradição pósBach. (Ibid). 133 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 43 organística em plena efervescência 136 . Os tratados alemães serviram de modelo e estímulo para o surgimento de outras obras similares escritas em solo francês. Em 1873 foi publicado o Méthode d’orgue, d’harmonie et d’accompagnement de Félix Clément. O título, acompanhado de seu subtítulo, “compreendendo todos os conhecimentos necessários para tornar-se um organista hábil” [“comprenant toutes lês connaissances nécessaires pour devenir um habile organiste”]137, sintetiza a idéia de que o entrelaçamento do órgão com a Igreja encontrava ainda em plena vigência. Através de seus cinco capítulos, o método incursiona por temas como estudo do órgão de tubos e do harmônio, harmonia, contraponto, fuga, princípios de transposição, acompanhamento e transposição do plain-chant, ratificando a importância do papel do organista como improvisador. Na introdução de seu método, através da crítica voraz à qualidade dos organistas franceses, “os quais carecem de uma formação adequada e condizente com seu ofício”, é que Clément justifica a necessidade de um método como o seu 138 . Clément aborda a diferença, no caso funcional, entre o piano e o órgão. Segundo ele, a 136 Até mesmo a técnica para o harmônio, denominado orgue expressif, muito apreciado por atender as necessidades expressivas da época, foi alvo do interesses de compositores. Foi o caso do Méthode d’orgue Harmonium op 78 (Paris : H. Lemoine, n. D.) de Battmann, J. L. e do Méthode théorique et pratique pour le poikilorgue (Paris : Canaux, n. D.) de Lefébure-Wély, James-Alfred. (Peterson, op. cit). 137 Félix Clement, Méthode d’orgue: d’harmonie et d’accompagnement: comprenant toutes les connaissances nécessaires pour devenir un habile organiste. Deuxième partie: Études de mécanisme. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1873. 138 (...) para tocar o órgão convenientemente, (...) é indispensável saber encadear os acordes, no mínimo improvisar algum prelúdio, fazer um acompanhemento a um canto dado; e que, até mesmo para executar a música escrita, se só tiver o dedilhado e a técnica do piano, sem saber dar às notas seu valor proporcional não se poderá expressar o pensamento dos mestres, não tomando um bom partido do instrumento.Isto é evidente. Porque então se encontram tão poucos organistas verdadeiros entre as numerosas pessoas que gostam e cultivam o órgão? (...) A resposta é esta: é que na França, normalmente não se dá ao trabalho de aprender os elementos da harmonia, da composição e do acompanhamento, enquanto que pelo menos há dois séculos este ensino elementar é derramado em quase todas aldeias da Alemanha)”.[“(...) pour toucher l'orgue convenablement, (...) il est indispensable de savoir enchaîner des accords, improviser au moins quelques préludes, faire un accompagnement à un chant donné; que, même pour exécuter la musique écrite, si on n'a que le doigté et le mécanisme du piano, si on ne sait pas donner aux notes leur durée proportionnelle, on ne peut exprimer la pensée des maîtres, on ne tire aucun bon parti de l'instrument. Cela est évident. Pourquoi donc rencontre-t-on si peu d'organistes véritables parmi les nombreuses personnes qui aiment et cultivent l'orgue? (...) La réponse est celle-ci: c'est qu'en France, on ne se donne généralement pas la peine d'apprendre les éléments de l'harmonie, de la composition et de l'accompagnement, tandis que depuis deux siècles au moins, cet enseignement élémentaire est répandu dans presque tous les villages de l'allemagne.”] (Clement, op.citi)., p. VI). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 44 técnica pianística não bastava para um bom desempenho organístico139. “O órgão não comporta o mesmo gênero de música que o piano” dizia ele140. As palavras de Clément são o reflexo de uma transformação qualitativa que já estava ocorrendo entre a diferenciação do órgão enquanto instrumento de teclado. Para fins de nossa investigação, a parte mais interessante é descrita mais adiante, onde, no capítulo intitulado “estudo do mecanismo”, onde Clément faz uma clara distinção entre a posição da mão e do braço no órgão e no piano. “A posição do corpo favorece uma boa execução. (...). O banco deve estar disposto de tal maneira que os cotovelos estejam ao nível das notas pretas do teclado. Isto é importante para facilitar a articulação dos dedos e do antebraço. Para a execução do piano, a articulação do punho desempenha um papel considerável. É conveniente então, que ele [o pianista] se sente um pouco mais elevado. Porém, que se reflita sobre a diferença do mecanismo dos dois instrumentos e do gênero de música que é própria a cada um deles”. (o grifo é nosso)141 Clément vai mais adiante, quando faz referência à diferença existente no ataque de um e outro instrumento: “No piano, o staccato, os acordes em blocos e quebrados, os arpejos volantes, o deslocamento perpétuo das mãos, a maior ou menor força no ataque do toque que 139 “É uma vergonha para nosso país constatar que (...) nas capelas dos conventos, nas Igrejas do país e das cidades, ob os dedos delicados das mais distintas pessoas, acostumadas a executar concertos de piano, as Sonatas de Mozart, Haydn e Beethoven, ou os acompanhamentos brilhantes das árias das óperas, ouvese, eu digo, os mais detestáveis acordes, de sons dissonantes e retumbantes para o ouvido. É vergonhoso que depois de dez anos de estudo de piano, um aluno não possa achar o baixo de um kyrie ou um tantum ergo, acompanhar corretamente uma canção popular, recolocar corretamente o acompanhamento ausente de uma melodia.” [“Il est honteux pour notre pays d'avoir à constater que (...) dans les chapelles des couvents, dans les églises des campagnes et des villes, sous les doigts délicats des personnes les mieux élevées, habituées à exécuter des concertos de piano, dês sonates de Mozart, d’Haydn et de Beethoven, ou lês accompagnements brillants dês airs d’opéras, on n’entende, dis-je, que les plus détestables accords, des sons discordants et rebutants pour l'oreille. Il est honteux qu'après dix années de leçons de piano un élève ne puisse trouver la basse d'un kyrie ou d'un tantum ergo, accompagner correctement un chant populaire, remplacer l'accompagnement absent d'une mélodie quelconque.”] (Clement, op. cit, p. VIII). 140 Clement, op. cit, p. VIII. 141 “La position du corps favorise une bonne exécution. (...) Le banc doit être disposé de telle sorte que les coudes soient au niveau des touches noires du clavier. Ceci est important en raison de la facile articulation des doigts et de l'avant-bras. Pour l'exécution au piano, l'articulation du poignet joue un rôle considérable. Il convient donc que le siége soit un peu plus élevé. Mais qu'on réfléchisse à la différence du mécanisme des deux instruments et du genre de musique qui est propre è chacun d'eux.” (Clement, op. cit). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 45 determina a qualidade do som e da expressão, tudo isso não pode se produzir sem o movimento das articulações do punho e do ante-braço. Ao contrário, a utilização destas articulações é e deve ser nula ou quase nula na performance organística.”142 Publicado em 1862, onze anos antes do tratado de Clément, o École d’Orgue de Lemmens transformou-se no método mais reconhecido e utilizado na França no século XIX 143 . Por primeira vez, com a admissão de Widor como professor de órgão no Conservatório de Paris, implementou-se um método de órgão no Conservatório de Paris, o método de Lemmens 144 . A notoriedade que este método alcançou o situa como coadjuvante no estabelecimento da Escola moderna de órgão francesa e assumindo por isso, uma decisiva importância histórica. Há que se indagar sobre o porquê de o L’École ter alcançado tamanho destaque, com relação aos outros muitos métodos surgidos no decorrer do século. Widor, Guilmant e a moderna Escola de órgão francesa Como afirma Mongredien 145 , é realmente muito difícil determinar atualmente em que medida como, há um século atrás, um método poderia ter ajudado de fato no treinamento de músicos. Contudo, o resgate contemporâneo das entrelinhas do método de Lemmens, fica parcialmente garantido pelos depoimentos historicamente registrados de Widor, aluno de Lemmens em 1863. 142 “Dans le piano, le staccato, les accords frappés et brisés, les arpéges volantes, le déplacement perpétuel des Mains, le plus ou moins de force dans l’attaque de la touche qui détermine la qualité du son et l’expression, tout cela ne peut se produire qu’au moyen des articulations du poignet et de l’avant-bras. Au contraire, l'usage de ces articulations est et doit être nul ou presque nul dans le jeu de l'orgue.” (Clément, op. cit). 143 O método de Lemmens foi publicado em várias edições e serviu de base para os quatro volumes do Cours d’orgue de Clement Loret, publicado entre 1860. Aluno de Lemmens no Conservatório de Bruxelas, Loret ao terminar seu curso de órgão em 1853 instalou-se em Paris e de 1858 até o final de sua vida lecionou órgão na escola de música de Louis Niedermeyer. 144 Ochse, op. cit, p.186. 145 Op. cit.. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 46 “Ninguém compreendeu melhor o método de Lemmens que Charles-Marie Widor”146. Aluno de Lemmens em Bruxelas em 1863 ele publicou uma nova edição do Método de Lemmens em 1924, em cujo Prefácio explicita características da técnica do organista belga. Dentre alguns conceitos de Lemmens, Widor destacava : “(...) que a eliminação de todo movimento desnecessário era importante para precisão na execução. Mãos e pés deveriam ser mantidos tão juntos das teclas do manual e do pedal quanto possível, e os joelhos e calcanhares deveriam ser mantidos juntos (os joelhos até o intervalo de uma oitava, e os calcanhares para o intervalo de quinta). Quando Lemmens tocava, ele [Widor] dizia, que era como se seus joelhos e calcanhares estivessem amarrados juntos” [“that the elimination of all unnecessary motion was important for precision in playing. Hands and feet should be kept as close to the manual and pedal keys as possible, and the knees and heels should be kept together (the knees up to the interval of an octave, and the heels to the interval of a fifth). When Lemmens played, he [Widor] said, it was as if his knees and heels were tied together.”] 147 “Para corrigir as imperfeições de nossa técnica, ele começava por nos mostrar a postura adequada do corpo ao teclado, nos proibindo não somente os gestos ridículos, improdutivos, assim como deselegantes, mas também todos os movimentos inúteis, não importando quão mínimos fossem.” [“ [“To correct the imperfections of our technique he began by showing us the proper position of the body at the keyboard, forbidding us not only ridiculous gestures, fruitless as well as unaesthetic, but also all useless motions, no matter how slight.”]148 A virtuosidade organística de Lemmens, absolutamente fora dos padrões franceses novecentistas foi demonstrada em suas antológicas apresentações parisienses em 1850 e 1852, funcionando provavelmente como o maior agente de propaganda seu 146 Ochse, op. cit. Ochse, op. cit, p.179. 148 Widor apud Vierne, op. cit , p. 11. 147 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 47 método149. Lemmens era um exemplo vivo e potente do que sua técnica podia fazer por um organista. Sua técnica de pedal altamente desenvolvida para os padrões franceses, aliada a seu repertório basicamente contrapontístico, causou sensação. Lemmens executava principalmente os prelúdios e fugas de Bach e certas obras de Mendelssohn, repertório que reflete a influência da Escola Alemã de sua formação. No Conservatório de Bruxelas foi aluno de Girschner, oriundo de Berlin e de Hesse 150 , organista e pedagogo alemão conhecido pela Europa como representante da “tradição de Bach”. A leitura do prefácio do Kleine Pedalschule151, tratado sobre a técnica de pedal, escrito por Hesse em 1831, informa sobre a natureza da técnica com a qual Lemmens se deparou quando discípulo de Hesse152. A formação de Lemmens incluía piano, em meados de 1800, era frequente atuar como pianista executando obras de Bach, Handel, Mozart, Beethoven Weber e Chopin, tanto em Bruxelas como em Paris153. No prefácio de seu École d’Orgue, afirma que “Nós aconselharíamos enfaticamente a todo aquele que deseja tornar-se um organista que inicie pelo estudo do piano.”154. Quando Widor assumiu a classe de órgão, os alunos sofreram um verdadeiro baque. Louis Vierne, que havia sido também aluno de Franck afirmou que “a grande reforma que Widor trouxe para o ensino de órgão dizia respeito principalmente à 149 “His performances in Paris in 1850 and 1852 undoubtedly did much to promote his Journal there and to enhance his image back home in Brussels” (Ochse, op. cit, p. 174) 150 Lemmens viajou a Breslau a fim de estudar com Hesse, grandemente admirado por ser reconhecido como o herdeiro da tradição de Bach e por possuir uma técnica de pedal prodigiosa. (Petterson, op. cit, p. 61). 151 Adolph Hesse, Kleine Pedalschule mit Uebungsstücken und mehrstimmigen Beispielen. Leipzig, Verlag von F. E. C. Leuckart s/d. 152 Petterson, op. cit, p. 61. 153 Ochse, op. cit, p. 55. 154 “We should strongly advise all who wish to become organists to begin by studying the pianoforte.” Jacques Nicholas Lemmens,. École d’Orgue. Paris: Durand, 1920, Notice). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 48 performance” 155: sua admissão ao Conservatório acarretou uma mudança no enfoque pedagógico. Widor dava precedência à razão sobre o puro instinto, ao racionalismo sobre o empirismo156, o que se manifestava na preocupação de manter sob controle os mínimos detalhes. Era extremamente detalhista, obcecado pela precisão do ataque e liberação da tecla. Assim como Lemmens, enunciava regras para a articulação de notas repetidas157, valorizava a necessidade de precisão rítmica do stacatto ao mesmo tempo em que apregoava a exatidão da conexão entre notas no legato. Enfatizava a importância do ritmo na performance organística: “o princípio da agógica reinava necessariamente acima de tudo”158. Widor demonstrava que determinados efeitos, associados até então como exclusivos da execução pianística, podiam também ser alcançados no órgão através do ritmo. "Particularmente no órgão, todos os acentos, todos efeitos dependem dele [do ritmo].Você pode pressionar o teclado com toda a sua força, com toda força dos seus ombros - você não conseguirá nada com isso. Mas atrase por um décimo de segundo o ataque de um acorde, ou prolongue esse mesmo acorde por um instante e avalie o efeito produzido! Em um manual desprovido de uma caixa expressiva, pode-se obter um crescendo sem a ajuda de qualquer tipo de mecanismo: pela simples aumentação da duração tendo em vista sucessivos acordes ou frases separadas. Para se tocar órgão, é necessário negociar com valores cronométricos." (grifo nosso). [“Particularly with the organ, all accents, all effects are dependent upon it. You may bear upon the keyboard with the weight of pounds, with all the strength of your shoulders - you will gain nothing by it. But delay by a tenth of a second the attack of a chord, or prolong this same chord the very least, and judge of the effect produced! Upon 155 “The great reform brought by Widor to organ instruction dealt especially with performance” Vierne, translated from the French by Esther E. Jones. Third Installment. The Diapason, november 1, 1938, p. 10. 156 Vierne, op. cit. p10-11. 157 Genericamente falando, Widor afirmava que “Notas repetidas eram separadas por uma pausa específica cujo valor era determinado pela duração da nota e pelo tempo da peça”. (“Repeated notes were separated by a specific rest whose value was determined by the length of the note and the tempo of the piece.”) Ochse, op. cit, p.186. A regra foi provavelmente sistematizada em método por Marcel Dupré, nas coletâneas cuja revisão das obras completas de Bach, Schumann, Mendelssohn e Franck assinou. 158 “The agogic principle necessaril ruled supreme”. (Murray, op. cit, p.96). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 49 a manual not provided with a swell-box one may obtain a crescendo without the aid of a mechanism of any kind: by the simple augmentation of the duration allowed successive chords or detached phrases. To play upon an organ is to deal with chronometric values."]159 Em 1896 deixou a classe de órgão para ensinar contraponto e a partir de então, Alexandre Guilmant assumiu o posto até o ano de sua morte, 1911. Embora houvesse algumas diferenças quanto à registração e repertório, Widor e Guilmant eram, adeptos da mesma linha de ensino. Ambos haviam estudado com Lemmens, eram seguidores de sua técnica e ambos comungavam do mesmo ideal de criar uma Escola Francesa de órgão da mais alta categoria. Por este motivo, a substituição dos professores não acarretou uma alteração fundamental quanto à técnica da performance160. Após a morte de Guilmant, Eugène Gigout ocupou de 1911 a 1926 a cadeira de professor de órgão do Conservatório. Gigout havia estudado órgão na Escola Nidermeyer161 com Clément Loret que por sua vez havia estudado no Conservatório de Bruxelas com Lemmens. Mantendo-se fiel aos seus ensinamentos, utilizou inicialmente com seus alunos o École d’Orgue e, posteriormente, seu próprio método, o qual foi inteiramente inspirado no método de Lemmens. Gigout, entretanto, adotava uma linha pedagógica que enfatizava a improvisação e o acompanhamento do canto gregoriano. Gigout permaneceu naquele posto até 1926, ano de sua morte. Naquele mesmo ano, Marcel Dupré foi nomeado para o cargo, dando prosseguimento à Moderna Escola de órgão que Widor e Guilmant, tinham estabelecido dentro dos preceitos dos ensinamentos de Lemmens. 159 Widor Apud, Ochse, 2000, p. 187. Vierne, op. cit. p. 9. 161 A Escola de Niedermeyer foi criada em 1853 e destinava-se sobretudo à educação de músicos para as igrejas. 160 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 50 4. Jeanne Demessieux e os Six Études A formação musical de Demessieux Jeanne Demessieux foi apresentada a Marcel Dupré em 1936, aos 15 anos de idade, e a partir de então se tornou sua aluna, primeiro no Conservatório, e a partir de 1941 até 1946, em sua casa em Meudon162. Desde muito cedo Demessieux deu mostras de seu talento incomum163. Nascida em 1921 em Montpellier, França, iniciou seus estudos de piano aos três anos. Precoce, entre os cinco e sete anos tinha em seu repertório pianístico as Partitas e os Prelúdios e Fugas de Bach, os quais últimos ela se entretinha em transportar para todos os tons através de um método que ela própria inventara. Em 1932, toda a família se mudou para Paris a fim de que Jeanne pudesse se preparar para o concurso de ingresso ao Conservatório de Paris. Ingressou no Conservatório em 1933 na classe de piano de Santiago Riera, e paralelamente com Lazare-Lévy, que a tinha preparado para o concurso de admissão. Durante este período, estudou a fundo as obras de Chopin, Beethoven, Liszt, Schumann e quase a totalidade do repertório pianístico romântico, além de grande parte das obras do início do século XX, em especial aquelas de Maurice Ravel. Aos 16 anos, em 1937, interpretou de memória o Concerto em mi bemol maior de Liszt, 1939 ganhou o primeiro prêmio de Piano executando a Fantasia de Chopin. 162 A despeito da guerra, sob ataques aéreos e outros transtornos, desde 1941 até 1946, Jeanne viajou à Medon, subúrbio de Paris onde se localizava a residência de Dupré para suas aulas regulares. 163 Conta-se que quando tinha apenas três anos, Jeanne Demessieux foi levada por seus pais para assistir a uma récita noturna da ópera Orfeu e Euridice, de Glück Na volta à casa, Jeanne pediu que seu pai se deitasse no chão enquanto ela, de joelhos, cantava a ária “Eu perdi minha Eurídice”. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 51 Jeanne já era uma grande pianista quando foi apresentada a Dupré. Ele percebeu se tratava de “um fenômeno164”, e logo suspeitou que Jeanne seria “o sucessor fidedigno de seu ideal165” que há tempos buscava. Ressoavam dentro dele a seqüência dos nomes de Guilmant, Widor, Dupré, Demessieux: a tradição da escola de órgão francesa seria ampliada166. Jeanne transformou-se na “mais digna, mais respeitosa, mais obediente, mais fiel dos alunos, (...) a melhor aluna” de Dupré 167. Conforme resumiu Dupré a Jeanne, “Eu farei por você o que Widor fez por mim” [“Je fais pour vous ce que Widor a fait pour moi.”] 168. A pedagogia de Marcel Dupré A nomeação de Dupré para o posto de professor de órgão no Conservatório representou a concretização da previsão de Widor e de Guilmant de que ele, Marcel, seria o herdeiro da tradição organística estabelecida por Lemmens 169 . Tanto Albert Dupré, seu pai e primeiro professor de órgão e piano, como Guilmant, de quem foi aluno posteriormente, haviam estudado com Lemmens. Albert também comungava da idéia de seu professor que o estudo de piano era parte indispensável da formação organística: estabeleceu um método de trabalho bem definido, onde para cada quarenta e cinco minutos estudados de piano, Marcel poderia estudar outros quinze de órgão170. 164 Trieu-Colleney, op. cit., p. 24. “(...) le fidèle continuateur de son idéal.” (Ibid, p. 25) 166 Id,. p. 25 167 O diário de Jeanne Demessieux registra com data de 14 julho de 1945 as seguintes palavras: “Une fois encore, le Maître. [Marcel Dupré] me parle de telle façon que je ne peux oublier ses paroles... ‘Vous êtes la plus digne, la plus respectueuse, la plus obéissante, la plus fidèle des élèves. (...) la meilleure élève de Dupré - que l'on entendra, c'est: - Vous’ - ...” (Id,., p.176-7) 168 Id. 169 Em 1922, quatro anos antes de assumir o cargo de professor de órgão do Conservatório, Widor já havia aconselhado a Dupré adquirir sua independência financeira para que pudesse ser livre para tomar o lugar de Gigout. (Michael Murray, Marcel Dupré: The Work of a Master Organist. Boston, Massachussetts: Northeastern University Press: 1985, p.115) 170 “I can really practice the organ now, since I don’t need the piano anymore” -“Don’t you believe it!” said Albert. “your proficiency as an organist depends on your profiency as a pianist. You may spend fifteen minutes at the organ for every forty-five at the piano.” (Ibid. p.38). 165 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 52 Como estudante, logo nos primeiros anos do século XX, Marcel Dupré foi admitido no Conservatório de Paris na classe de Louis Diémer171, conduzido por Guilmant, seu então professor particular de órgão. Entre os 15 e 19 anos, embora conservasse suas aulas com Guilmant, Dupré chegou a estudar até 10 horas de piano por dia, quando explorou grande parte do repertório pianístico. Durante essa época estudou todas as sonatas de Haydn, Mozart, Beethoven, muito das obras de Schubert, Schumann, Liszt, além de decorar cerca de três quartos das obras de Chopin 172 . As palavras de Lemmens ressoavam através de Guilmant e Widor quando declaravam que “o quanto mais perfeitamente um aluno cultivasse seus músculos e fibras ao piano, mais próximo ele estaria de obter o perfeito controle sobre os movimentos da performance organística”173. Em junho de 1906, quando contava com vinte anos, depois de ganhar o primeiro prêmio de piano, Dupré entrou oficialmente para a classe de órgão de Guilmant no Conservatório. Todos os ensinamentos que recebeu em sua formação organística, Dupré não somente manteve, como também desenvolveu. Era adepto da economia de movimentos174. Recomendava o estudo diário de piano para manter a técnica em dia o que ele próprio seguiu à risca até o dia de sua morte. Todo o dia pela manhã estudava pelo menos uma hora de piano. Acreditava que a boa forma do organista dependia da prática diária no piano das “escalas maiores e menores em oitavas, décimas, terças duplas e sextas duplas; arpejos em quatro e cinco espécies, escalas cromáticas em 171 Diémer dono de uma técnica cintilante e capaz de uma precisão surpreendente, tinha sido aluno do legendário Marmontel. 172 Marcel Dupré apud Murray, 1985, Op. Cit. p. 36. 173 “(...)the more exquisitely a pupil cultivated his muscles and fibers at the piano, the closer he would come to perfect control over the motions of organ-playing “. (Murray, Ibid, p. 36) 174 Dupré aconselhava que nos Trios Sonata de Bach, o organista deveria estabelecer uma registração que possibilitasse a mudança de manual em cada movimento, de forma a evitar a fatiga dos braços. Tal procedimento poderia parecer exagerado quando se considera a execução de uma peça isoladamente, entretanto, a medida se constituía em um meio muito eficiente para um organista como ele, acostumado a grandes tournées onde a quantidade de performances era elevada. (Murray, Ibid, p.121). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 53 oitavas duplas, bem como das obras de Beethoven Liszt and Chopin175. Dupré dizia a seus alunos que, “(...) o organista segue pelo caminho errado quando não se entrega passional e intensamente por vários anos ao estudo do piano. Além disso, é ingenuidade do organista evitar praticar oitavas para desenvolver seu pulso, sob o pretexto de que o uso de oitavas destacadas é raro no órgão. O organista necessita dominar os estudos de Chopin e os Estudos Transcendentais de Liszt tanto quanto o pianista”.(O grifo é nosso) "[(...) the organist takes a wrong path if he does not consecrate himself passionately and intensely, for several years, to piano study. It is naïve, furthermore, for the organist to shun practicing octaves to develop his wrist, under the pretext that the use of detached octaves is rare at the organ... The organist has no less need than the pianist to master the Études of Chopin and the Transcedentel Études of Liszt".]176 Ampliando a técnica do pedal do qual foi herdeiro, Dupré estendeu ou transcreveu parte da técnica digital aos pés, provavelmente inspirado pela afirmação de Widor: “o organista tem quatorze dedos177”. Tal qual fazia com o desenvolvimento da articulação do pulso na mão, Dupré enfatizava a articulação do tornozelo nos pés. A “chave da infalibilidade”, dizia, “reside na flexibilidade do tornozelo, uma flexibilidade que deveria ser cultivada da mesma forma que a do pulso no piano”178. As escalas eram também para ele um ponto chave no aprimoramento da técnica do pedal, recomendando por isso o estudo e domínio de todas as escalas maiores e menores, em notas simples e depois em terças e sextas, aproveitando sempre ao máximo a extensão da pedaleira. 175 “(...) major and minor scales in octaves, tenths, double thirds, and double sixths; of arpeggios in four and five species; of chromatic scales in double octaves; and of the works of Beethoven Liszt and Chopin.” (Murray, op.cit, p.122) 176 Dupré apud Murray, 1985, p. 36 177 Aos dez dedos da mão, Widor considerava a ponta e o calcanhar de cada pé, como outros quatro dedos. 178 (...) “the key to infallibility, he would say, lies in the suppleness of the ankle, a suppleness one must cultivate like that of the wrist at the piano”. (Murray, op. cit, p.122) por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 54 Dupré frisava a importância da técnica, baseando-se na idéia de que o organista deveria estar livre de toda preocupação com a mecânica. “(...) [Marcel Dupré] acreditava que a integridade da concentração do artista deveria ser reservada para a essência da peça que ele estava executando; somente através de uma técnica sem falhas que o executante poderia se abandonar de forma a estabelecer um canal pleno de comunicação com a música. Um artista deveria, ele acreditava, ser livre no que diz respeito à técnica. Ele deveria ser espontâneo e automático, e nunca deveria interferir com uma importante questão na performance: a música”. [“(…) believed that the entirety of na artist’s concentration should be reserved for the essence of the piece he was playing; only through a technique so flawless that one could totally forget it could the fullest artistic communication of the music itself be made. An artist must, he believed, be free of concern about technique. It should be spontaneuous and automatic, and should never interfere with the important matter at hand in performance: the music”]179 Esse foi o Marcel Dupré que assumiu a tarefa da formação organística de Jeanne. Dona de uma técnica digital irrepreensível, tão logo iniciou suas aulas de órgão, Demessieux foi apresentada às grandes obras do repertório organístico180. O diário de Demessieux revela que “Dupré não hesitou em lhe entregar todos os seus segredos, sobretudo aqueles concernentes ao pedal” [“Dupré n'hésita pas à lui livrer tous ses "secrets", notamment ceux concernant la technique de pédale.”]181. De fato, uma das maiores características distintivas de Jeanne Demessieux como organista, senão a maior delas, era sua técnica virtuosística de pedal. Em inúmeras ocasiões Dupré a exaltou dizendo que “nenhuma organista mulher jamais executou o pedal como você” 182 , e 179 Michael Murray, Toward Perfect Technique. Music, march, 1974, p. 36. Trieu-Colleney, op. cit, p.26. 181 Trieu-Colleney, Ibid, p.26). 182 Em agosto de 1941 (Ibid p. 127) 180 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 55 “nenhuma mulher, nenhum homem tocou os pedais com tal virtuosidade”183. A natureza da relação pedagógica que se fundou foi decisiva para todo o processo de aprendizado de Jeanne Demessieux junto a Marcel Dupré. Os precursores dos Six Études, os Estudos de Marcel Dupré Em 1941, Marcel Dupré iniciou a composição de uma série de estudos para Jeanne184 cuja performance se constituía, segundo o próprio autor, em um dos requisitos fundamentais para a aquisição de uma “técnica virtuose de primeira classe 185 ”. Seu diário registra, durante uma aula em Meudon no dia 20 de julho de 1941, o seguinte diálogo: [Jeanne Demessieux:] “Eu sinto que minha técnica deslancha. O Mestre me encoraja... (...) [Marcel Dupré:] Eu vou escrever, (...) uma série de Estudos onde eu passarei a você os manuscritos progressivamente.” “[Jeanne Demessieux:] (...) je sens que ma technique part. Le Maître m’encourage... (...) [Marcel Dupré:] Je vais écrire, dit-il, une série d’Etudes dont je vous passerai les manuscrits au fur et à mesure...” ]186 De fato, à medida que ia finalizando cada estudo, Dupré o entregava à Jeanne para que ela posteriormente os apresentasse em aula. Se os estudos tinham a finalidade de ampliar a técnica de Demessieux187, poderse-ia deduzir a existência de uma intenção pedagógica nestas composições. Há, entretanto uma diferença crucial entre a proposta pedagógica entre certas obras que 183 Anotação feita no diário de Jeanne Demessieux em março de 1942 (Trieu-Colleney, op. cit) “M. Dupré me dit encore: ‘ Je les ai écrites pour vous’” . (Ibid., p.157) 185 Id, p.131 186 Id., p.126) 187 Id., p. 131. 184 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 56 Dupré destinou à educação organística188, e os estudos. Tal qual ocorria com os estudos de Chopin, e Liszt, os estudos de Dupré se instituíam antes de tudo como um fim, e não como um meio de se alcançar a técnica. A execução dos estudos de Liszt, Chopin ou Dupré requer, pressupõe a transcendência da técnica. Os doze estudos iniciais foram escritos para Jeanne Demesieux, uma aluna acima de quaisquer padrões, formada e apta a executar qualquer obra da literatura organística ou pianística. Os estudos serviriam como coroação, como consolidação de tudo aquilo que uma técnica primorosa e eficiente era capaz de realizar. O processo de composição das doze obras terminou em julho de 1943 e dois meses depois, a série completa foi executada diante de Dupré por Demessieux. No entanto, no início de 1944, o Mestre decidiu que seus “grandes estudos” não seriam mais publicados 189 . Ele havia resolvido “modificar o título e os apresentar em três grupos – Números de opus diferentes” 190. A transformação dos estudos de Dupré em outras peças não aconteceu através da simples re-nomeação das obras. Houve, na verdade, uma reorganização de todo material. Terminada a reorganização, os doze estudos compostos inicialmente, se transformaram em nove peças agrupadas em três números diferentes. Parte dos estudos de Dupré se transformaram na Suite opus 39 (1944), subdividida por sua vez em Allegro Agitato, Cantabile, Scherzo e Final. Outros estudos foram reestruturados em Offrande a la Vierge (1944) op. 40, que por sua vez contém Virgo Mater, Mater Dolorosa e Virgo Mediatrix. Re-escreveu também duas 188 Este foi o caso dos 79 Chorales, nos quais Dupré pretendia fornecer um estudo preparatório para os prelúdios corais de Bach, empregando os corais usados por Bach. 189 Segundo o diário de Jeanne Demessieux, reproduzido em parte no livro de Trieu-Colleney, Marcel Dupré em 25 de fevereiro de 1944 teria dito “(...) je regrette beaucoup que de grandes Etudes ne soient pas publiées” "(...)J'ai décidé, comme vous savez, de modifier la présentation des Etudes. Il y en a quelques-unes dans lesquelles il n'est pas nécessaire que j'apporte une grande modification pour qu'elles deviennent ... ce que je veux. Pour les autres, je ne peux pas me résoudre à les transformer tellement; il faut, il faut, il faut que ce soit... autre chose...” (Ibid, p.157) 190 Ibid, p. 156 “(...) je décide de modifier le titre et de les présenter en trois groupes - Numéros d'opus différents”. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 57 obras, Esquisse em mi menor e Esquisse em si menor, as quais foram numeradas como opus 41. Um terceiro estudo, cuja publicação póstuma, data de 1975, suscita reserva dado o fato de o próprio Dupré ter optado por excluí-lo de publicação. Adotando a postura de Steed 191, quando comenta sobre a dificuldade de “escrever objetivamente sobre uma obra que nunca deveria ser publicada” o estudo póstumo fica excluído da discussão neste trabalho. Aparentemente nem todas as novas obras mantiveram o caráter transcendental da técnica. Quatro peças, quase a metade, apresentam indicações de andamentos lentos o que poderia sugerir que carregam um grau de dificuldade menor quando comparadas às de andamentos vivos. Contudo, argumenta-se aqui, que a reformulação dos doze Estudos de Dupré, originou obras que ainda preservavam o caráter virtuosístico original. Nestas obras, Dupré confirma sua concepção do virtuosismo organístico porque sua técnica, bem como a pedagogia que aplicou e defendeu durante toda sua vida se resumem em Offrande à la Vierge, Suite e Esquisses. Estas obras são a condensação do que Marcel Dupré vislumbrou como a essência da virtuosidade para o órgão, sua concepção particular de virtuosidade. Os tópicos que ele definiu como pré-requisitos indispensáveis da técnica organística transparecem nessas obras, embora nem sempre se trate de uma virtuosidade acrobática, ou que Rosen chamou de “exercício atlético”192. O foco da questão recai sobre a forma pela qual Dupré enxergava o órgão. Quais eram para ele seus atributos, suas qualidades? Quais suas limitações? O que e, principalmente como fazer para tirar partido de suas características? 191 Graham Steed,. “Dupré and Demessieux: the master and the pupil.” The American Organist.1999:127. 192 Charles Rosen, (1995), ao se referir à prática dos estudos de Chopin ou Liszt diz: “Praticar um estudo de Chopin ou Liszt é um exercício atlético: alarga as mãos, desenvolve os músculos, aumenta a flexibilidade, amplia a capacidade física” por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 58 Marcel Dupré193 enfatizava que a natureza polifônica do órgão o transformava num instrumento onde a clareza era um atributo essencial para a execução das texturas polifônicas, ainda mais porque a maioria dos órgãos se situa em Igrejas, onde a acústica se constituía em um fator complicador adicional194. “Esta claridade repousa primeiramente sobre a observância quase matemática dos valores. Sem este rigor, a sobreposição das notas umas sobre as outras, neste instrumento de som que se prolonga, conduz à confusão. A frase (...) é determinada, não pela fantasia, mas pelas regras da polifonia clássica”. “[Cette clarté repose d'abord sur l'observance quasi mathématique des valeurs. Sans cette rigueur, le chevauchement des notes les unes sur les autres, sur cet instrument au son tenu, aboutit à la confusion. Et la phasé (...) est déterminé, non par la fantaisie, mais par les règles de la polyphonie classique.”]195 Dupré na verdade expandiu os conceitos de claridade e precisão matemática do toque, que Widor já havia enunciado anteriormente, estabelecendo regras que chamou de “Leis de Execução do Órgão” 196 . Dupré acreditava que a clareza musical não advinha apenas do ritmo, mas da escolha de uma registração adequada. “A clareza mais ainda consiste em saber como identificar os diferentes níveis de uma obra. Dado os níveis de massas tonais que o organista deveria administrar” cada nível deveria ser muito bem definido através da registração. 197 Abundância contrapontística e simplicidade na registração são as marcas características da virtuosidade do Cantabile 193 “O intérprete ao órgão”, dizia Dupré, “não pode se deixar levar pelo capricho. Tocando freqüentemente em amplas edificações, ele deve lutar contra uma ressonância algumas vezes excessiva, e adaptar aos monumentos o tempo das obras que ele executa ” [“L'interpréte, à l'orgue, ne peut se livrer au caprice. jouant le plus souvent dans de vastes édifices, il doit luttes contre une résonance parfois excessive, et adaptes aux monuments le tempo des oeuvres qu'ìl exécute.” 193.] 194 (Dupré apud Bernard Gavoty: Marcel Dupré. Les grands Interprètes. Genève, Éditions René Kister, 19551955, p. 28) 195 Op. cit,. p:28 196 Datando de 1927, essas leis foram posteriormente publicadas no Méthode d’Orgue. 197 Murray, 1998, Op. cit. p. 152-3 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 59 da Suite (figura 5), assim como das três composições contidas em Offrande à la Vierge, (figura 6). No primeiro caso, a natureza do contraponto é vocal e no segundo, textural. Ambas Esquisses têm indicações de andamentos vivos, mas a diferença entre a natureza dos obstáculos determina dificuldades diversas. Grande parte da dificuldade da primeira Esquisse é digital. As seis notas em movimento descendente do tema, estão entremeadas de notas repetidas (figura 6). O problema técnico que surge de imediato reside justamente na execução das notas repetidas em alta velocidade: “A única forma de obter a boa repetição é mudar os dedos para todas as notas repetidas” [“The only way to obtain good repetition is to change fingers for all repeated notes”]198. Quanto ao pedal, há trinta compassos que se caracterizam por um grau elevado de dificuldade técnica (figura 7). O problema que os trechos propõe, entretanto, derivam basicamente da velocidade, visto que não há saltos, nem grandes deslocamentos de membros superiores ou inferiores, muito menos dificuldades digitais importantes. 198 Steed, op. cit. p. 125. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 60 Bastante diferente é a situação da Esquisse em si menor. Esta obra traz à baila a questão a técnica das oitavas, que se faz presente tanto nos manuais, quanto nos pedais. Embora, quando analisado do ponto de vista puramente digital não apresente grandes dificuldades quando comparada a outros estudos de oitavas, escritos para piano. O obstáculo da Esquisse em si menor advém do desafio da simultaneidade das oitavas entre pés e mãos. Nesta obra, Dupré comprova a dupla necessidade do organista de desenvolver seu pulso na prática de oitavas, bem como a flexibilidade do calcanhar. A dificuldade que a peça apresenta é progressiva. Os saltos oitavados do pedal do início são substituídos no final da obra por escalas em oitavas que se coadunam com longos trilos nos manuais, também em oitavas (figura 8). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 61 As escalas se constituíram mesmo no objeto constante do interesse pedagógico de Marcel Dupré.Em Allegro Agitato, primeira peça da Suite opus 39, elas aparecem sob as mais variadas formas. São escalas em graus conjuntos, cromáticos ou não; em terças, sextas e oitavas presentes tanto no manual quanto no pedal (figura 9). Ainda na Suite, sobretudo em Scherzando, Dupré tratou com ênfase a questão das relações intervalares, seja através da apresentação de intervalos, seja pela inclusão de notas duplas no pedal e nos manuais (figura 10). A gênese dos Six Études de Demessieux encontra-se completamente vinculada a essas composições de Marcel Dupré. Quando Dupré abandonou a idéia de publicar seus estudos, entregou à Jeanne Demessieux a tarefa de escrever os estudos para órgão199. Marcel Dupré declarou a Demessieux: “Como é estranha a história dos estudos... (...) Fui eu quem resolveu escrever doze estudos para você, com a idéia de eles fossem por 199 “(...) nous avons décidé, avec Bornemann, que vous allez en écrire...” (Trieu-Colleney, op. cit,, p.157). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 62 você executados em primeira audição...”.[ “Comme c’est étrange, dit-il, l’histoire des Etudes... C’est moi qui décide d’en écrire douze pour vous, avec l’idée qu’elles soient données en première audition par vous...”]200 O primeiro estudo em mi menor ficou pronto poucos meses depois, em abril de 1944. Em outubro seguinte, Demessieux apresentou para Dupré todos os seus seis estudos, de memória e pela ordem em que foram compostos. 201 Marcel Dupré viu em Jeanne Demessieux algo mais que nele próprio. Com respeito à técnica e/ou performance, admitiu que ela tinha adquirido um nível estágio superior ao dele202. Embora, segundo os relatos publicados da biografia de Demessieux, Dupré não tenha utilizado o termo “transcendental203” para se referir a seus próprios estudos, ele o fez com relação aos estudos de Demessieux. Em 1944 fez uma alusão direta ao termo, quando comparou a técnica de Jeanne Demessieux com a de Nicolo Paganini, virtuose cuja obra inspirou tantos estudos de virtuosidade para o piano: “Seus estudos”, disse Dupré, “são equivalentes aos Transcendentais” [“Vos études vont être l’équivalent des Transcendantes”]204. Seis meses depois, Dupré convidou Jean Gallon205 para ouvir os Six Études de Jeanne. Eles “discutiam a respeito da originalidade de minha música”, diz o diário de Jeanne206. E prossegue reproduzindo o diálogo entre Gallon e Dupré: 200 Trieu-Colleney, op. cit, p. 160) Ibid, p.:169 202 Em 17 de setembro de 1943, Marcel Dupré após ouvir Demessieux tocar disse: “Eu não digo mais: mulher alguma tocou o órgão como você, eu digo: ninguém toca o órgão como você...” (grifo nosso). [“Je n edis plus: aucune femme n’a joué de l’orgue comme vous, j edis: on ne joue pás de l’orgue comme vous...”] (Id, p. 152). 203 Steed (op. cit) atribuiu o termo aos estudos de Dupré. 204 Trieu-Colleney, op. cit. p. 164 205 Jean Gallon era o professor de harmonia do Conservatório de Paris, com quem Jeanne tinha estudado quando aluna daquela instituição. 206 Trieu-Colleney, op. cit. p. :170 201 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 63 “Jean Gallon: ‘Só se vê algo assim duas vezes em um século’. Dupré gracejou: (...) 'alguém teria o direito de se perguntar, se como Paganini, ela vendeu a alma a Mephisto em troca de sua técnica!’” [“Jean Gallon: ‘On ne voit cela que deux fois par siècle...’ Dupré plaisante: (...) ‘on aurait le droit de se demander si, comme Paganini, elle n'a pas vendu son âme à Méphisto en échange de sa technique!’ ”] 207 As expectativas de Dupré com relação aos estudos de Demessieux eram grandes. Ele acreditava que aquelas obras marcariam época 208 . Em março de 1945, quando Jeanne anunciou que gostaria de dedicar seus Estudos ao Mestre ele respondeu: “Você não conhece a extensão dos seus Estudos... (...) Eles levarão meu nome à posteridade.” [“Vous ne savez pas la portée de vos Etudes. (...) Elles porteront mon nom à la postérité”.] 209 Em janeiro de 1946 Jeanne Demessieux assinou seu primeiro contrato com Bornemann para a publicação de seus Six Études, com condições inesperadas para uma jovem210. Considerando-se a literatura organística e pianística no gênero, os estudos de Jeanne Demessieux se colocam como um marco cuja importância é dupla. Por um lado, as características virtuosísticas dos Six Études representa a leitura organística que Jeanne Demessieux fez dos ideais pianísticos novecentistas de transcendência da técnica. De igual modo, os Études de Jeanne Demessieux correspondem a uma grande inovação dentro das composições existentes para órgão, pois até 1946 nada similar havia sido publicado na França ou alhures. 207 Trieu-Colleney, op. cit, p. 170 Ibid, p. 157 209 Id., p. 172 210 Id., p.184. 208 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 64 5. Os elementos pianísticos e os Six Études A origem da influência do piano na carreira, de Jeanne Demessieux já foi abordada nas páginas anteriores. Resumidamente ela provém de sua própria formação no instrumento, iniciada precocemente aos três anos de idade, e desenvolvida com requintes de genialidade. Além disso, a importância do piano para sua formação organística foi enfatizada pelo próprio Dupré, seu professor de órgão, quem abertamente defendia o estudo do instrumento como um ponto de importância capital para a performance de órgão. Neste capítulo, analisamos como os elementos pianísticos se transformaram no órgão e suas conseqüências para a técnica organística. Características específicas do órgão A apropriação de elementos pianísticos na composição dos Six Études significou em muitos sentidos a criação de um trabalho bastante original se consideramos o referencial organístico. Um olhar superficial mostra que, quando observadas do ponto de vista da técnica digital, estas obras se encontram muito aquém de inúmeros estudos românticos para piano. O caráter transcendental dos estudos de Jeanne Demessieux não pode ser vislumbrado através da ótica pianística, porque sua performance requer antes de tudo, uma técnica distinta e inconfundível. Trata-se da técnica organística: o órgão, embora mantendo semelhanças com o piano, tem uma constituição típica, que o torna um instrumento com características próprias. Para uma melhor compreensão de nossa proposta, classificamos tais características em duas categorias, uma relacionada aos aspectos sonoros, e outra com as questões que se relacionam ao seu aspecto físico. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 65 Propriedades expressivas do órgão A despeito dos avanços do órgão sinfônico quanto às possibilidades sonoroexpressivas, uma grande diferença pode ser observada entre estes dois instrumentos cujo som se produz, se transmite e se propaga de formas tão diferentes. Ao contrário do que aconteceu com o piano romântico, onde a produção sonora depende fundamentalmente da ação muscular do pianista, o órgão, sem o acionamento de registros 211 , é um instrumento mudo. Dos registros acionados dependem ainda o timbre (cor) e o volume do som (dinâmica) que se pode obter. Segue-se daí que do ponto de vista da qualidade e da quantidade sonora, a registração de uma obra se constitui numa ferramenta condição si ne qua non.. Do ponto de vista da produção sonora existe ainda a questão da sensibilidade do toque, decisiva no piano, porém praticamente irrelevante no órgão. Conforme já abordamos no capítulo II quando tratamos da pedagogia da Escola Moderna de Órgão na França, a performance organística depende, sobretudo da liberação da tecla, ou, melhor dizendo, da relação entre liberação de uma nota e ataque da nota seguinte. A respeito da constituição física do órgão O simples olhar já permite ao observador perceber que a constituição física do órgão é bem diferente do piano. A presença da pedaleira indiscutivelmente é um fator diferenciador de grande impacto e que assume uma significação fundamental. Caso contrário, bastaria a aquisição de uma técnica pianística acurada para a formação de um bom organista. 211 Incluem-se aqui também os acopladores. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 66 “(...) o altíssimo desenvolvimento da performance pianística dos dias atuais promove, de uma forma geral, uma execução rápida nos manuais do órgão, com resultados que poderiam ser chamados de satisfatórios caso os pedais nunca tivessem sido inventados, e Bach e Handel jamais tivessem existido” . [“(…) the highly developed piano-playing of the present day promotes, in a general way, rapid execution on the manuals of the organ, with results that would be called pleasing if the pedals had never been invented, and Bach and Handel had never lived; (...)”] 212 A utilização determina consequências que necessitam ser analisadas para que se possa compreender a verdadeira natureza da técnica organística. Antes do advento da pedaleira 213 , os pontos fundamentais de apoio dos instrumentistas de teclado eram os quadris e pés que se constituíam sua base de sustentação corporal. A utilização dos pés na performance organística veio a causar uma modificação da relação espacial do organista com seu instrumento, produzindo o deslocamento do eixo gravitacional do instrumentista (figuras 11 e 12). O desenvolvimento da pedaleira e da arte do pedal214 acarretou a perda de um ponto de grande relevância na manutenção do equilíbrio corporal refletindo-se evidentemente na postura corporal na performance. Em suma, a utilização da pedaleira se constitui numa fonte de desestabilização corporal permanente, impelindo o organista a encontrar outros pontos de apoio de compensação. 212 Nilson, Lars. A System of technical studies in pedal playing for the organ. 1904. A pedaleira foi inventada por Bernard, the German, cerca de 1450. (Nilson, op. cit). 214 Entende-se que a palavra pedaleira faz referência ao móvel, ao teclado dos pés enquanto objeto. Já o vocábulo “pedal”, diz respeito à utilização da pedaleira. Portanto, falar da “arte do pedal” implica numa menção subjetiva da técnica dos procedimentos necessários na performance, bem como das questões relacionadas à própria literatura organística. (Nilson, op. cit.) 213 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 67 Mas não somente as questões concernentes ao equilíbrio corporal se estabeleceram com avanço da técnica de pedal, mas também aqueles referentes à habilidade de movimentar coordenadamente os membros inferiores, e mais especificamente os pés. Surgem daí duas dificuldades. A primeira delas diz respeito à própria movimentação dos membros inferiores enquanto que a segunda engloba os problemas advindos da simultaneidade na utilização do corpo em sua totalidade. Ambos situações vinculam-se ao desenvolvimento de uma grande capacidade de coordenação motora, visto que o organista precisa realizar movimentos de alta complexidade de forma sincrônica e funcional com os pés. Além da pedaleira, o órgão possui vários manuais e registros os quais, dependendo do caráter expressivo-musical, devem ser manuseados no decorrer da execução. A modificação da registração e a mudança de manuais durante a performance geram alterações importantes na postura do organista. O processo de transformação nos Six Études Primeiro estudo: Pointes Aludindo a fórmulas e figurações tipicamente pianísticas, os títulos dos estudos de Jeanne Demessieux são talvez a característica mais evidente da apropriação do universo pianístico. Apenas o título do primeiro estudo, Pointes remete a uma questão estritamente organística. A utilização do calcanhar na técnica do pedal não foi uma prática contemporânea ao nascimento da pedaleira. Esta, em seus primórdios, era formada por pedais curtos, pouco se prestando a esta forma de utilização. Existem métodos de órgão escritos no século XVIII e XIX em muitos lugares da Europa, onde a utilização do calcanhar foi indicada com certa parcimônia. Seja por coincidência ou não, por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 68 foi utilizando esta técnica tão “antiga” e conhecida que Demessieux decidiu iniciar sua coletânea. Mas, como então poderia essa técnica tão primordial da literatura organística estar relacionada a uma linguagem pianística e ao mesmo tempo contribuir significativamente para a técnica organística no século XX? Inicialmente, a possibilidade de traçar um paralelo entre a utilização das pontas e alguma característica tipicamente presente nos estudos românticos nos parecia remota. Foi de Charles Rosen que nos veio a inspiração para a resolução deste impasse. Em A Geração Romântica ele discorre a respeito da resposta sonora do piano quando da utilização dos dedos 2 e 4 indicados por Liszt para a execução do estudo Mazeppa. O dedilhado também foi utilizado por Liszt na variação VI do Estudo VI sobre um Tema de Paganini (figura 13). A utilização deste dedilhado coloca no piano a articulação do pulso em evidência, da mesma forma que a pedalização de Pointes põe a articulação do tornozelo em destaque: a cada nota marcada com estas indicações corresponde a um ataque215 (figura 14) o que acarreta dispêndio extra de energia muscular. 215 A utilização exclusiva das pontas, no órgão representa um aumento do esforço muscular ao passo que, a utilização de ponta seguida de calcanhar representa uma economia significativa na energia empregada no movimento. Consideremos duas notas a serem executadas. Se a pedalização indicar que a primeira deve ser tocada com a ponta e a outra com o calcanhar do mesmo pé, isto corresponde que o organista necessitará realizar dois movimentos. No primeiro, abaixará a ponta do pé causando uma natural elevação do calcanhar. Repare que em seguida, o movimento que terá de realizar para soltar a nota corresponde ao movimento que é necessário ao acionamento do pedal com o calcanhar. Entretanto, se a indicação da por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 69 Essa interpretação encontra respaldo nas palavras de Dupré, que enfatizava que a importância da articulação do tornozelo deveria assumir para o organista a mesma dimensão que a articulação do pulso para o pianista216. Haveria, não fosse o intuito de se alcançar uma resposta sonora particular, formas muito mais econômicas de proceder à marcação dos mesmos trechos 217 . A paridade entre os movimentos citados ocasiona uma resposta sonora semelhante, embora respeitando as características de cada instrumento. Se o efeito martelado acontece no piano como decorrência do ataque de cada nota, no órgão, este efeito ocorre da utilização das pontas numa figuração constante em semicolcheias a serem executadas em alta velocidade. O efeito sonoro produzido tem pouco a ver com o som legato218 pedalização determinar que se tratam de duas notas a serem executados por pontas, os organistas necessitará fazer três movimentos, pois quando o movimento que no exemplo anterior servia tanto para soltar a primeira nota quanto para acionar a segunda, aqui já não é suficiente. O instrumentista deverá acionar a tecla, elevar a ponta do pé para então poder executar a segunda nota também com pé. Já em Mazeppa, por exemplo, a seção Animato, onde Liszt reproduz a mesma fórmula inicial, a utilização de apogiaturas digitalizadas com 3-2/1-4 na mão direita significa uma diminuição do esforço muscular visto que, para a execução do mesmo grupo de notas, é necessário apenas um impulso muscular. 216 “A chave da infabilidade, (…) reside na flexibilidade do tornozelo, uma flexibilidade que deve ser cultivada como a do pulso no piano.” [“The key to infallibility (…) lies in the suppleness of the ankle, a suppleness one must cultivate like that of the wrist at the piano”]. (Murray, 1985, p.122). 217 Levando-se em conta o aspecto puramente digital, as figuras sobre a qual recai a indicação do dedilhado 2-4 no estudo de Liszt seria, muito mais facilmente executada sob outras condições. O mesmo pode ser dito com relação à Pointes. Neste estudo, em um sem número de passagens, a inclusão na pedalização do calcanhar indubitavelmente seria muito mais compreensível, caso a compositora não tivesse em mente outras questões. 218 Isso porque no órgão, conforme já discorremos anteriormente, não é o ataque, mas sim a soltura da tecla constitui-se o responsável por esta diferenciação sonora, mas sim a soltura da tecla e a forma pela qual se encadeia sonoramente com a subsequente. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 70 enquanto que o aumento necessário da movimentação podálica produz uma agitação prevista pela escolha do termo indicador do andamento da peça: Allegro agitato. Os estudos lisztinianos citados não são os únicos exemplos onde se observa a criação de um dedilhado com a finalidade de produzir uma sonoridade em particular. Este também se constitui o propósito do estudo op. 10 no.2, de Chopin, cujo dedilhado idiossincrático, no dizer de Rosen, 219 faz uso dos três dedos considerados fracos na realização da escala cromática. A execução deste dedilhado tão inovador, que visa a produção de um som igualmente original, depende de uma alteração importante da relação da mão e dedos com o teclado do piano. Através deste estudo, como bem observa Chiantore, é possível se compreender algo a respeito da idéia do ponto de apoio, sobre qual estava fundamentada sua técnica220. Segundo o autor, trata-se de “(...) uma idéia que partia de uma observação de desconcertante simplicidade: se o peso do braço é mais que suficiente para provocar a descida da tecla, o dedo pode utilizar o teclado como uma superfície que permita aos dedos ir transladando a mão de nota a nota”. [ “(...) uma idea que partia de uma observación de desconcertante simplicidad: si el peso Del brazo es más que suficiente para provocar el descenso de la tecla, el dedo puede utilizar el teclado como una superficie que permita a los dedos ir trasladando la mano de nota a nota.”]221 Para a execução do dedilhado do estudo op. 10 no.2, será necessário que se efetue uma ligeira rotação externa da mão (supinação) o que terminará por levar a uma modificação do ponto de apoio no teclado. “No estudo op. 10 no. 2, a principal dificuldade reside precisamente na necessidade de renunciar ao tradicional levantamento do dedo em favor de um ininterrupto deslocamento do ponto de apoio. Qualquer outra opção supõe um inútil e perigoso 219 Rosen, 2000, op cit, p. 496. Chiantore, op. cit, p. 338. 221 Ibid, p. 312. 220 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 71 desgaste de energias, sobretudo diante da estratégica presença dos acordes picados, curiosa versão pianística do acrobático pizzicato com a mão esquerda de Paganini”. [ “En el Estudio Op. 10 no 2, la principal dificultad reside precisamente en la necesidad de renunciar al tradicional levantamiento del dedo a favor de un ininterrumpido desplazamiento del punto de apoyo. Cualquier otra opción supone un inútil y peligroso desgaste de energías, sobre todo ante la estratégica presencia de los acordes picados, curiosa versión pianística des acrobático pizzicato con la mano izquierda de Paganini.222]. À possibilidade de realização de um dedilhado tão inovador encontra-se atrelado um aspecto fundamental da técnica de Chopin. O teclado, antes de se constituir como um obstáculo, ao dedo, lhe serve como uma alavanca da qual se podem extrair diversas propriedades.223 O conceito de ponto de apoio encontra correspondência na técnica organística uma vez que na performance, a organista lida permanentemente com a tarefa de encontrar formas de manter seu equilíbrio, impossibilitado como está de encontrar uma base para seus pés224. Considerando a utilização da pedaleira e as mudanças de manuais e registração, a performance de órgão implica na movimentação de membros superiores e inferiores, o que gera uma movimentação corporal constante. No decorrer da performance, o centro de gravidade225 do instrumentista é alterado e por isto, caso não 222 Chiantore, op. cit, p. 337. Ibid, p. 316. 224 É certo que existem composições para órgão que não requerem a participação do pedal e os pés podem procurar apoio no banco ou na própria console do órgão. Para nossas investigações, entretanto, se toma como referência as composições para órgão em cuja concepção inclui para sua performance o pedal. 225 De acordo com Lapierre, (1974), “Se chama entro de gravidade de um corpo sólido e rígido ao ponto de aplicação da resultante de todas as forças exercidas pela atração terrestre sobre as diferentes partículas do corpo. A definição é bem precisa quanto a ‘corpo sólido e rígido’, porque o ponto de aplicação da resultante não depende somente da inércia própria de cada partícula, mas também da posição relativa de estas distintas partículas entre si. O centro de gravidade do corpo humano, corpo articulado capaz de múltiplas atitudes, não pode, por tanto, ser um ponto fixo/ depende da posição relativa dos diferentes segmentos e se pode dizer que varia a cada momento.” [“Se llama centro de gravedad de un cuerpo sólido y rígido al punto de aplicación de la resultante de todas las fuerzas ejercidas por la atracción terrestre sobre las diferentes partículas del cuerpo. La definición precisa bien ‘cuerpo sólido y rígido’, porque el punto de aplicación de la resultante no depende solamente de la inercia propia de cada partícula, sino también de la posición relativa de estas distintas partículas entre sí. El centro de gravedad del cuerpo 223 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 72 existissem formas de compensação, o organista terminaria por tombar para frente ou para trás. Na prática, o que ocorre é que no decorrer da performance, diversos tipos de apoios se estabelecem, combinam, e, acima de tudo, se modificam, segundo as características e demandas existentes na própria obra. As mãos, ou seus dedos isoladamente podem se transformar em um potente recurso estabilizador no equilíbrio do organista durante a performance. Nos primeiros compassos de Pointes, o polegar, e em seguida outros dedos da mão direita, poderão servir a este propósito (figura 14). Mas a utilização das mãos como recurso estabilizador fica mais evidente quando advém de sua utilização quase como “garras” na execução de acordes sustentados, que além de apoio proporciona uma base para o impulsionamento do corpo na direção necessária para a performance da pedaleira em suas extremidades. (figura 15). Curiosamente, estas idéias se sintonizam com as observações de Chiantore, sobre o estudo das oitavas de Chopin, o estudo op. 25 no 10 (figura 16). “Mas, ainda mais significativas são, em este Estudo, [o Estudo op. 25 no. 10] as notas sustentadas das seções rápidas, capazes não somente de propor um desenho preciso rítmico, se não também de dirigir a mão em direção a uma atitude técnica muito humano, cuerpo articulado capaz de múltiples actitudes, no puede, por tanto, ser un punto fijo; depende de la posición relativa de los diferentes segmentos y se puede decir que varía a cada momento”]. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 73 concreta. Essas notas sustentadas nos obrigam a concentrar nosso apoio nos tempos fortes, nos convidando a manter uma posição constante reduzindo ao mínimo os movimentos” (...) o grifo é nosso). [“Pero aún más significativas son, en este Estudio, las notas tenidas de las secciones rápidas, Capaces no sólo de proponer un preciso diseño rítmico, sino también de dirigir la mano hacia una actitud técnica muy concreta. Esas notas tenidas nos obligan a concentrar nuestro apoyo en los tiempos fuertes, nos invitan a mantener una posición constante reduciendo al mínimo los movimientos (...)”]226. Embora no particular possam apresentar distinções quanto ao produto final, o princípio geral, comum nos dois estudos, é o da existência de um pivô que fornece um ponto de orientação física aos movimentos básicos da performance. No estudo de Chopin, os dedos sustentam aproximam e guiam a mão no teclado. Nos estudos de Demessieux, aos dedos é dada a incumbência de auxiliar no equilíbrio corporal e de funcionar como ponto fixo que alavanca o corpo nas viradas necessárias à performance das extremidades do pedal. Em Pointes o comprometimento da estabilidade do corpo decorre da complexidade da parte do pedal 227, com sua figuração em semicolcheias, 226 Chiantore, op. cit, p. 331. Lembramos que a técnica de pedal não pode ser compreendida apenas como o conjunto dos movimentos necessários à execução da pedaleira, porque uma vez que a performance do pedal acontece, via de regra, concomitantemente com a performance dos manuais, os movimentos daí decorrentes apresentam maior complexidade. 227 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 74 construída sobre intervalos das mais variadas amplitudes. A escrita do pedal neste estudo foi um fator decisivo para a exploração do teclado dos pés em toda sua extensão. Esta é também uma característica que observamos nos estudos de Liszt e Chopin onde, cada um, dentro de seu próprio estilo, fez do aproveitamento do teclado um ponto de partida para a criação sonora. Falar na utilização do teclado na totalidade de sua extensão implica em considerar a necessidade de deslocamento motor da mão ou das mãos. Independentemente de como se processe tal deslocamento, (arpejos, escalas, saltos, etc), ele dependerá da capacidade de precisar distâncias. Como um ponto fixo de inserção dos dedos, a mão e o pulso fornecem um referencial importante para o cálculo automático das distâncias intervalares. São vários os estudos de Chopin, onde o pulso e mão desempenham um importante papel na previsão do cálculo das distâncias intervalares. É o caso do estudo op. 10 no. 10 onde as constantes mudanças de acentuação são garantidas pelos também constantes deslocamentos do ponto de apoio da mão, intermediados pelo movimento lateral do pulso. O mesmo acontece no antológico estudo de saltos, o Op. 25 no.1, e no estudo Op. 10 no. 9. No órgão, a técnica do pedal não pode depender de automatismos, pois ao contrário do piano onde a extensão do teclado e a distância entre as teclas é sempre a mesma, a pedaleira apresenta diferentes configurações228 A observação das figuras 17 e 18 e 19 permite visualizar como a distância entre as teclas pode variar de um modelo de pedaleira para outro. 228 Para maiores informações a respeito deste assunto, leia o capítulo XXI de Audsley, “The art of organbuilding – A comprehensive Historical, theoretical, and practical treatise”, Dover Publications, New York, Vol II, pp.121-160. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 75 Dificilmente, portanto, poderíamos conceber o resultado eficiente na execução dos intervalos e saltos no pedal a mercê de automatismos. No prefácio da edição dos Six Études, Marcel Dupré escreveu que: “Pontas alternadas tende a desenvolver, por um lado, a igualdade da duração estrita entre os dois pés, e, por outro lado, o instinto de espaçamento entre os diferentes intervalos” (o grifo é nosso). [“Pointes alternées – tend à faire acquérir, dùne part, l`égalité de durée stricte entre les deux pieds et, dàutre part, l’instinct de l’écartement dês différents intervalles.”] 229 As palavras de Marcel Dupré remetem a um dos aspectos mais evidentes de Pointes. São estes os inúmeros e variados saltos, que levam a viradas bruscas e repentinas do corpo, necessárias para alcançar as extremidades do pedal. Contudo, nos 229 Préface dos Six Études de Jeanne Demessieux. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 76 parece um tanto bizarro que Dupré tenha se servido do termo instinto para aludir a uma questão tão crucial da própria técnica do pedal. Em um instrumento onde os automatismos nem sempre são bem vindos 230 , pouco coerente seria ele se viesse a construir sua técnica a partir do puro instinto. Meticuloso e dono de uma técnica impecável, pouco interessado em deixar-se levar pelos benefícios da sorte em suas performances, Dupré não se cansava de apregoar que a técnica era um necessário veículo, fonte da liberdade com toda preocupação com a mecânica. A técnica do pedal era um constante alvo do interesse de um Dupré intérprete e professor, que legou a Jeanne todos os seus conhecimentos231. A formação organística de Marcel Dupré e de Jeanne Demessieux estava baseada nos ensinamentos de Lemmens, os quais através de Guilmant e Widor se consolidou como a base da Moderna Escola Francesa de Órgão. De acordo com os fundamentos da técnica do pedal desta Escola, “(...) os joelhos, os calcanhares e as pontas devem se tocar. Dessa forma, o máximo de estiramento dos pés (joelhos e calcanhares juntos) alcança uma quinta; o maior alongamento das pernas (joelhos juntos) alcança uma oitava”. [“(...) generally the knees, the heels and the toes must be touching. Then the greatest stretch of the toes (knees and heels joined) gives a fifth; the greatest stretch of the legs (knees joined) gives an octave”.] 232 Quando joelhos, pontas e calcanhares são mantidos juntos, o organista estabelece para si próprio algumas medidas fixas, visto que provém de seu próprio corpo e, portanto, não variam segundo o instrumento em que se encontra. Assim, independentemente do tamanho ou o formato da pedaleira, o intervalo obtido do 230 Dificilmente o organista encontra instrumentos idênticos, seja do ponto de vista da consola, disposição dos registros, altura do banco, formato da pedaleira, etc. É por isto que a prática contínua e repetida no mesmo instrumento reforça o hábito e os automatismos, dificultando futuras acomodações. Por isso, idealmente, quanto mais o organista se exercita em órgãos distintos, maior desenvolve sua capacidade e habilidade de adaptação. 231 Conforme consta no diário de Demessieux, “Dupré não hesitou em lhe entregar todos os seus ‘segredos’, notadamente aqueles concernentes à técnica do pedal.” [“Dupré n'hésita pas à lui livrer tous ses ‘secrets’, notamment ceux concernant la technique de pédale.” (Trieu-Colleney, op. cit,p. :26). 232 Vierne, op. cit, p. 11. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 77 espaçamento das pernas com os joelhos juntos, o espaçamento máximo dos pés com os calcanhares juntos, bem como a informação entre a distância entre as pontas juntas é invariável. Podemos a partir disto estabelecer uma analogia entre o papel que o pulso e joelho desempenham no cálculo das distâncias intervalares. O estabelecimento destes padrões é um recurso importante para a execução acurada dos intervalos no pedal, porém se mostra insuficiente se consideramos que muitas vezes em prosseguimento ao salto, o tronco deve assumir uma nova direção. Isto acontece quando durante a performance deve-se alcançar dois pontos do pedal muito distantes entre si em um espaço de tempo muito curto. Como exemplo da necessidade da rápida torção do tronco em direção à outra extremidade do pedal citamos a passagem do compasso 118 para o compasso 119 (figura 15). Em questões que envolvem este tipo de situação, citamos as palavras de Ritchie e Stauffer: “As pernas são giradas por meio de um empurrão pequeno - ou umas séries de empurrões pequenos – dado por um dos pés enquanto toca. Quando a passagem é ascendente, as pernas precisam ser giradas à direita, e o empurrão é dado pelo pé esquerdo. Quando a passagem é descendente, e as pernas necessitam ser giradas para a direita, o empurrão é dado pela perna esquerda.” [“The legs are pivoted by means of a small push - or a series of small pushes – made by one of the feet as it plays. When the passage is ascending and the legs need to be pivoted to the right, the pushing is done by the left oo. When the passage is descending and the legs need o be pivoted to the left, the pushing is done by the right foot.”]233 Podemos destacar um procedimento análogo na prática pianística dos saltos que também se vincula à utilização de um ponto fixo como apoio. conceito já enunciado acima, o que se traduz na prática em economia de esforço e precisão do movimento. Citamos como referência, o oitavo estudo transcendental de Liszt, Chasse Sauvage, 233 Ritchie, George. Stauffer, George B.Organ technique: modern and early. New York: Oxford University Press, 2000, p. 89 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 78 onde a performance da seção “A”, construída basicamente sobre muitos acordes entremeados de escalas, depende de uma grande familiaridade com esta técnica. Para a realização destes grandes saltos principalmente em altas velocidades, o movimento de ataque da nota deve ter finalidade dupla, pois, “(...) não há tempo material para que o movimento lateral do braço comece após o ataque do acorde; ao contrário, se utilizamos o fundo da tecla como superfície de apoio, o empuxe produzido para pulsar essa última nota nos permite transladar imediatamente o braço em direção à posição sucessiva, facilitando ao mesmo tempo - devido à tendência da mão a se levantar após o impulso – a caída do braço na oitava seguinte” [“(...) no hay tiempo material para que el movimiento lateral del brazo empiece tras el ataque del acorde; en cambio, si utilizamos el fondo de la tecla como superficie de apoyo, el empuje producido para pulsar esa última nota nos permite trasladar inmediatamente el brazo hacia la posición sucesiva, facilitando al mismo tiempo – debido a la tendencia de la mano a levantarse tras el impulso – la caída del brazo en la octava siguiente.”] A figura 20 mostra em esquema, o procedimento descrito por Chiantore. Movimento da mão no salto B A A Extensão do teclado A seta “A”indica o movimento da mão abaixando as teclas. A seta “B”mostra que a mão ao mesmo tempo em que libera a tecla, já inicia o percurso em direção ao outro ponto do teclado. Figura 20 Segundo estudo: Tierces No início do século XIX, quando os métodos de órgão se ocupavam sobretudo com a substituição de dedos, a preocupação com o treinamento de terças, sextas e notas repetidas já se fazia presente nos estudos recém publicados de Cramer. Símbolo da técnica mecanicista do piano, presença constante nos estudos novecentistas para este por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 79 instrumento, essas figurações de igual modo serviram de pretexto inspirador para os estudos de Demessieux. Se fôssemos levar em conta apenas a dificuldade digital que estas fórmulas e figurações apresentam, encontraríamos que estes estudos se encontram muito aquém das obras homônimas de Liszt ou Chopin. Em contrapartida, se considerarmos que a dificuldade destas obras se encontra no tratamento dado a estas fórmulas no pedal, estaremos também provendo uma resposta insatisfatória a esta questão porque quando comparadas a outras obras escritas para pedal solo, a parte do pedal nos estudos de Jeanne Demessieux depende de uma técnica muito menos arrojada234. O segundo estudo de Jeanne Demessieux recebe o nome da figuração sobre a qual está construída a obra. A presença constante das terças dobradas em semicolcheias no pedal faz que durante a execução os dois pés estejam sempre e, o que é mais importante, simultaneamente em atividade na pedaleira. Providência indispensável para essa empreitada de forma econômica e eficiente é que se promova ao máximo a liberação das articulações dos tornozelos, o que só é possível pelo aumento da tração das coxas e joelhos que reduz o peso dos pés e pernas. Esta atitude motora poderia então contribuir para uma resposta sonora observando os parâmetros de ligeireza e clareza indispensável à performance obra. Estes dois conceitos, “leveza” e “clareza”, nos remetem ao amplamente conhecido termo pianístico, jeu perlé. Sobre o jeu perlé, Kaemper afirma que: “Para levar a leveza e a agilidade aos limites extremos o pianista retém quase todo o peso do braço deixando somente o mínimo de forma que a articulação dos dedos não precise reagir em direção ao alto. Liberados de uma carga pesada, e necessitando apoiar 234 Como exemplo deste tipo de composição citamos os “7 Études de concert pour pedale seule”, de Langlais, e os treze estudos contidos na coletânea editada por Martin haselböck e Thomas Daniel Schlee: “Pedals Only. 13 Studien zeitgenössischer Komponisten”. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 80 um peso suavizado e quase desprezível, os dedos praticamente não pressionam a tecla até o fundo.” [“Pour pousser la légèreté et l’agilité à leur extrême limite le pianiste retient presque tout le poids du bras laissant le juste minimum pour que l’articulation des doigts ne puisse pas le repousser vers le haut. Libérés d’une lourde charge et n’ayant à supporter qu’un poids allégé et tout à fait négligeable, les doigts n’arrivent même pas au fond de la touche”]235 Ainda do texto de Kaemper, apreendemos que para que se possa executar seu trecho musical com a clareza e a velocidade típicas do jeu perlé, o pianista precisará despender ao braço uma carga mínima236, promovendo a liberação das articulações dos dedos. Quase seria desnecessário lembrar, que Chopin e Liszt fornecem um sem número de exemplos nos quais, sem a liberação das articulações digitais, a obtenção do efeito perolado associado às altas velocidades, típico deste toque se tornaria uma tarefa inexequível. Dentre estes exemplos, destacamos em Liszt, as escalas repletas de cromatismos e as numerosas figurações em notas duplas do estudo transcendental Feux Follets (vide figura 21). A analogia que propomos reside no fato de que pelo aumento da tração, as articulações são liberadas: no órgão, as do tornozelo enquanto que no piano, as dos 235 236 Kaemper, op. cit,, p. 125-6. Kaemper aqui adotou o conceito de Tetzel de “carga mínima do braço”. (Kaemper, op. cit,, p. 125). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 81 dedos. Por este mesmo processo se promove um efeito físico semelhante, mas que determina ocasiões que não são idênticas. É preciso lembrar que a possibilidade de se obter daí efeitos sonoros no piano através do toque não se aplica ao órgão. Porém, se no órgão a questão do toque fica a cargo do ritmo, ou melhor dizendo, da administração das medidas rítmicas entre os sons, sem a liberação das articulação do tornozelo seria impossível associar os conceitos de clareza e ligeireza ao legato do pedal. O aumento da tração dos membros inferiores 237 faz com que em Tierces a desestabilização corporal tenda a ser maior. Mas note-se que neste estudo a existência de uma grande quantidade de acordes de longa duração que se constituem uma eficiente forma de apoio bem como também proporcionam uma base para impulsionar o corpo nas viradas que levam os pés aos extremos do pedal (figura 22) O emparelhamento destes acordes dá origem a uma massa sonora que se desloca harmonicamente através de certas notas que não se ligam umas às outras e se modificam de compasso a compasso. O papel contrastante desta linha na obra nos permite invocar o conceito de contraponto colorístico, desenvolvido por Rosen, onde as partes são constituídas por vozes texturais 238 . É curioso notar que a aplicação desta idéia aos 237 Referimo-nos, especificamente apenas às coxas e pernas. “A invenção colorística de Chopin encontra seu apogeu nos Estudos, e em nenhum outra parte é mais evidente que essa imaginação colorística é fundamentalmente contrapontística – ou melhor, que o 238 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 82 estudos de Demessieux encontra um importante respaldo quando lembramos que o próprio Dupré se referia ao órgão como um instrumento basicamente contrapontístico 239 . Além das terças e da sequência de acordes, interage ainda uma terceira voz, notadamente melódica que surge por primeira vez à altura do compasso 17 e se sobressai às outras vozes por receber uma registração contrastante (figura 23). Comparemos, pela própria natureza do material utilizado, o segundo estudo de Demessieux, com o estudo de terças de Chopin, o op. 25 no. 6 (figura 24). O tratamento das terças em movimentação cromática e constante em ambas obras determina uma linha textural nítida, que vem a se constituir como uma das partes do contraponto. Em Chopin também se estabelece este jogo sonoro, quando ao cromatismo das terças, sotto voce, contrapõe-se uma segunda voz com “duas espécies contraponto é fundamentalmente colorístico, é o entrelaçamento de diferentes espécies de textura” (Rosen, 2000, op. cit, p.515). 239 Conforme já foi dito no capítulo anterior, para Marcel Dupré, o organista tinha como uma de suas principais tarefas, saber administrar por intermédio da registração os diferentes níveis de massa tonal de uma obra. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 83 diferentes de legato”240. Este resultado composicional é um dos fatores que diferencia os estudos de Chopin e Demessieux de outros estudos que priorizavam o treinamento muscular. Como muitos estudos de fins do século XVIII e inícios de XIX, estes estudos, Tierces e o op. 25 no. 6, estão fundamentados na repetição insistente de determinadas fórmulas. Contudo, fórmulas aparentemente simplórias e insistentemente repetitivas, presença típica das composições da aurora do Romantismo e que serviam antes de tudo a uma abordagem mecanicista, nas mãos de Demessieux e Chopin, galgaram a um outro patamar transformando-se em elemento de interlocução sonora. Terceiro estudo: Sixtes Aqui, como em Tierces, foi dada ao pedal a tarefa de desenvolver a figuração que serve de título ao estudo. As sextas por sua atividade continua e simultânea dos pés demandam para execução da obra, um dispêndio de energia muscular importante. Podemos supor que como herdeira da tradição Lemmens-Widor, Demessieux fosse adepta do princípio da economia de movimentos241, e como tal, é provável lançasse mão de algum recurso capaz de diminuir o esforço muscular aumentando a eficiência da execução. Marcel Dupré, no prefácio que escreveu para os Six Études, invocou a recomendação de Widor, segundo a qual os joelhos e/ou calcanhares deveriam ser mantidos juntos. 240 Rosen, 2000, op. cit, p. 516. Widor dizia a seus alunos que “Todo movimento injustificado é nocivo, porque se constitui numa perda de tempo e de força. Antes de decidir que um movimento é inevitável, você deve testar sua utilidade durante o período de prática lenta. (...) Com o pedal assim como com os manuais, a economia de movimento deve dirigir a escolha da pedalização. Isso significa que se várias possibilidades se apresentam, deve-se optar por aquela que requer o mínimo de movimento”. [“All injustified movement is harmful, because it is a loss of time and of strength. Before deciding that a movement is inevitable you must have tried out its utility during the period of slow practice. (...) With the pedal as with the manuals economy of movement must direct the choice of pedaling. This means that if several possibilities present themselves one must choose the one that requires the least motion”]. (Widor apud Vierne 1938, p. 11). 241 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 84 Dupré advertia que o afastamento das pernas jamais deveria acarretar qualquer tensão muscular, mesmo sendo as pernas mais suscetíveis à rigidez que os braços242. A manutenção desse esperado relaxamento muscular durante a performance poderia ser alcançado justamente pela junção dos joelhos. Uma perna apóia ou transfere seu peso para outra de forma que o ponto de junção dos joelhos se transforma em agente ergonômico do movimento. Porém, a esta antológica recomendação widoriana pode ser atribuída ainda outra função, vez que na execução das longas sequências de acordes simultâneos, o contato das pernas e/ou dos joelhos contribui para a manutenção da estabilidade corporal. A compreensão desta idéia fica facilitada se consideramos o fato inverso. Para o indivíduo que está sentado, e que não pode apoiar seus pés, o afastamento dos membros resulta em um fator desestabilizante, porque acarreta uma modificação importante do eixo gravitacional243. A união dos joelhos promove uma centralização da massa corporal, por isso facilita o equilíbrio. As sextas também foram alvo do interesse de Chopin, constituindo-se substância básica do estudo op. 25 no. 8 e de onde podemos observar certos aspectos que vêm de encontro a nosso interesse. O primeiro deles reside no fato de que em ambos os estudos, as sextas obedecem à divisão rítmica idêntica, representada pelos terços de tempo do 242 Marcel Dupré, quando enfatiza que a execução do pedal do estudo das sextas não deve produzir qualquer tipo de tensão muscular frisa o papel importante da junção dos joelhos “genoux joints, naturellemtne”, sobretudo porque “não se pode perder de vista que os músculos das pernas estão mais sujeitos à contração que aqueles dos braços...” [ “Il ne faut pas perdre de vue que les muscles des jambes sont encore plus sujets à la contraction que ceux des bras...(...)”] (Dupré in: Prefácio da Edição dos Six Études de Jeanne Demessieux, 1946). 243 Uma experiência simples pode ser feita para comprovar tal afirmativa. Sentado em uma cadeira e com os pés apoiados nos chão, mantenha as pernas e joelhos próximos. Se estes forem afastados mantendo-se o apoio dos pés, aumenta-se a estabilidade, porque o polígono de sustentação (quadril e pés) aumentou consideravelmente. Porém se a mesma experiência for realizada com os pés afastados do chão, ou seja, levantados, a estabilidade do tronco será gravemente alterada à medida que as pernas e joelhos vão sendo afastados. O afastamento dos membros inferiores desloca o centro de gravidade e distribui a massa corporal, sem que haja, no entanto, um aumento do polígono de sustentação, já que os pés flutuam. Nesse caso então, tronco tenderia a cair para frente. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 85 compasso 6/8. Poderíamos temer em cair num perigoso simplismo se, baseando-nos tão somente na escolha do compasso, apontássemos o estudo de Chopin como inspirador de Jeanne Demessieux. A comparação entre estes estudos ganha força quando lembramos que também a composição de Tierces contou com o mesmo compasso e com a mesma divisão rítmica que o estudo das terças de Chopin, o op. 25 no. 6. Na concepção destes dois estudos, – Tierces e Sixtes, o tratamento dos acordes simultâneos associados a registração sugerida pela compositora resultou em um resultado bastante interessante do ponto de vista da sonoridade. Desvinculada do ataque das teclas, a produção sonora no órgão depende em grande parte da escrita, pela inclusão da indicação expressa da registração a ser utilizada na performance. Portanto, muito sobre uma obra para órgão pode ser inferido desta intervenção objetiva do autor, como o é a indicação tímbrica e a indicação da dinâmica que advém da indicação dos registros. A análise da registração que Jeanne Demessieux claramente indicou em seus estudos, reforça a idéia de que os Six Études, tal qual os estudos chopinianos, possuem uma concepção basicamente contrapontística. Em Sixtes, a registração indicada por Demessieux, bem como as características da própria escrita, revelam que existem no início do estudo e até o compasso 38 três planos sonoros bem definidos (figuras 22 e 25). A conjugação destes dois fatores, escrita e registração aponta, na performance, para um fenômeno sonoro curioso. As colcheias da mão esquerda soam uma oitava mais grave (Bourdon 16’), produzindo uma impressão auditiva que poderia ser interpretada como advindo do próprio pedal. Enquanto isto, as sextas, estas sim, soando do teclado dos pés, recebem pela registração um tratamento sonoro cujo resultado é a semelhança com o som produzido nos manuais. Essa espécie de inversão sonora está também proposta em Tierces, onde, a performance fornece algo como uma ilusão auditiva, vez que sem a visualização da partitura o por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 86 ouvinte teria dificuldades em localizar os sons vindos das terças, simultâneas como provenientes do pedal. A conjugação da registração que oitava ou super-oitava o pedal e das figurações fluidas, repletas de cromatismos, confere a estes dois estudos (Tierces e Sixtes), uma delicadeza sonora que é típica da sonoridade de muitos estudos chopinianos. Os sons que Demessieux buscou reproduzir nos estudos em Sixtes, e, sobretudo em Tierces, pode ser dito como um som basicamente pianístico. Paradoxalmente, é justamente mediante esta característica, a apropriação de um “som de piano” pelo órgão, que podemos construir um paralelo entre estes dois estudos demessianos e os estudos de Liszt. A inventividade sonora de Liszt no piano obedece a um padrão que é basicamente imitativo, o que inclui a imitação de instrumentos da orquestra. Valha como exemplo as flautas e cornos do Etude d’apres Paganini no. 5, La Chasse e a sonoridade eólica da página inicial do Etude d’apres Paganini no. 1. À natureza deste processo imitativo não se resume a um mero arranjo das alturas associado à exposição das harmonias subjacentes ou latentes. Antes, o fenômeno acústico que surge da metamorfose lisztiniana dos Caprices de Paganini, é resultado daquilo que Rosen 244 chamou de “paráfrase sonora”: através da reinvenção do som, o piano é convidado a soar como o violino de Paganini. 244 Rosen, 2000, op. cit, p. 511 e 663. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 87 Quarto Estudo: Accords Alternés Os Estudos Transcendentais de Liszt oferecem um grande número de exemplos da utilização dos acordes alternados apresentados sob as mais variadas formas. Desde os raros modelos que requerem para a performance uma exigência técnica mais modesta (figura 26), até versões, estas sim em grande quantidade, cujo arrojo desafia o mais virtuose pianista (figura 27), os acordes alternados são uma marca característica da escrita lisztiniana. E é justamente este um dos principais procedimentos da moderna escola do piano, que Demessieux utiliza na composição de Accords Alternés245. Embora dizendo respeito a uma questão notadamente pianística, a alternância de acordes se destaca pela 245 Dupré afirma no prefácio dos Six Études de Jeanne Demessieux que “Accords alternés, - applique à l’orgue um dês principaux procédées de l’Ecole moderne du piano (...)” . por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 88 maneira original pela qual a compositora desenvolveu no órgão sua proposta. Concebido para ser executado em um instrumento de pelo menos três manuais, as registrações indicadas dão conta de que os acordes devem se alternar em manuais diferentes (figura 28). Do distanciamento vertical entre as mãos decorre uma importante alteração postural proveniente da localização da mão direita no primeiro e da esquerda no terceiro manual. Este desnível dos membros superiores é, sem dúvida, um fator extra de dificuldade, ainda mais porque se trata de uma obra cuja principal característica reside na acurada capacidade de coordenação entre as mãos e na absoluta precisão de ataque para o equilíbrio e igualdade sonora da performance. Talvez tenha sido justamente por estes motivos, que Marcel Dupré, ainda no Prefácio, dos Six Études tenha enfatizado que, “(...) baseado na flexibilidade do pulso a qual assegura absoluta igualdade dos movimentos entre as duas mãos. Agora, ao órgão, ainda mais que ao piano, é importante que ocorra um rigoroso legato entre os acordes, e que não haja nem solução de continuidade, nem atraso entre as mãos. Todos os movimentos devem ser reduzidos ao mínimo.”246 [“(...) basé sur la souplesse du poignet qui assure l’égalité absolue de temps entre les deux mains. Or, à l’orgue, encore lus qu’au piano, il importe que le legato entre les 246 Dupré in: Prefácio da Edição dos Six Études de Jeanne Demessieux, 1946). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 89 accords soit strict et qu’il n’y ait ni solution de continuité, ni retard entre les mains. Touts les mouvements doivent être réduits au minimun.” ]247 Realmente, neste caso, à atividade do pulso recai mais do que nunca a tarefa de minimizar o impacto causado com a significativa diferença de altura entre o primeiro e o terceiro manual. Sem isso, qualquer tentativa de realizar com a rapidez e sincronismo necessários os movimentos para performance de Accords Alternés, acabaria por sobrecarregar significativamente a musculatura da mão ou braço. Chama a atenção, de fato, a decisão da compositora em determinar a localização das mãos em manuais tão distantes, visto que não haveria nenhum motivo imediato para esta opção. Se, tomamos como pressuposto que provavelmente esta não se constitui uma decisão aleatória ou desprovida de significado, ousamos argumentar que através desta particularidade, Demessieux tinha por objetivo transcrever para o órgão o lado mais desafiador da alternância de acordes lisztiniana. No estudo transcendental no. 2 encontramos a alternância de acordes sob as mais variadas formas. A comparação entre os exemplos seguintes mostra três tipos de escrita que apontam na prática para a necessidade de três intervenções também distintas. Na figura 29, as mãos permanecem próximas, o que facilita a execução248, enquanto que na figura 30, nota-se que a escrita demanda um discreto afastamento das mãos durante a performance. Mas é dos figuras 31 e 32 que encontramos alguns subsídios, os quais, acreditamos, apontam para uma possível compreensão da forma pela qual Demessieux logrou expressar sua concepção pianística dos acordes alternados no órgão. Estes trechos mostram a necessidade de grandes deslocamentos não apenas de uma, (figura 31), mas de ambas as mãos (figura 247 Para exemplificar como Dupré levava à sério essa questão da economia de movimentos, existe uma estória que da conta que quanto ele tovaca os Trio Sonata de Bach em um recital, ele era capaz de fazê-lo com qualquer combinação dos manuais, trocando as mãos de teclado entre um e outro movimento da obra, para evitar a fatiga nos braços. (Murray, op. cit 1985: 121). 248 O contato entre as mãos fornece através do tato informações sensoriais o que facilita a coordenação motora a precisão do ataque na alternância de acordes. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 90 32), onde à alternância de acordes se soma a necessidade dos saltos. A essa altura, poderia haver quem perguntasse, porém, por que Jeanne Demessieux buscaria outras formas para a expressão dos acordes alternados no órgão? Por que ela não manteve nos teclados do órgão a fórmula original pré-existente em Liszt, ainda mais em se tratando de ser esta uma questão notadamente digital? Se nos lembrarmos a respeito da diferença entre a extensão do teclado piano e do órgão249, de pronto poderíamos admitir que uma limitação física já poderia ser considerada como um entrave para a escrita tal qual Liszt a concebeu. Mas isto não é tudo. Ora, já não expressamos anteriormente que a importância da tarefa de Jeanne Demessieux nos Six Études residiu na transformação da linguagem do piano em linguagem organística? Nada pode ser considerado mais dentro da realidade do órgão que a capacidade de se trabalhar com esses desnivelamentos físicos e até mesmo sonoros, resultantes da performance em vários manuais. 249 A extensão do teclado do órgão, como é amplamente sabido, é muito menor, quando comparada à do piano. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 91 A exemplo dos estudos de Chopin bem como de todo o conjunto dos Six Études, Accords Alternés está dividido em três seções, de acordo com o modelo A-B-A`. Em Accords Alternés, a seção intermediária se inicia no compasso 35 enquanto que a última seção começa em 64. Entendemos que este seccionamento adquire mais sentido quando observado à luz de uma concepção que é puramente textural. Ocorre um fenômeno interessante à medida em a massa sonora resultante da versão organística-digital dos acordes alternados da primeira seção dá lugar nos manuais em “B” ao que antes havia se constituído como o tema do pedal. Enquanto isso, o terceiro pentagrama da segunda seção poderia ser encarado como a transcrição de um procedimento até então puramente pianístico, para os domínios do pedal (ver figura fazer gráfico textural figura 33). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística Figura 33 Accords Seção A 92 Alterneés Seção B Seção A’ Textura dos Manuais: Textura do pedal O argumento de que Demessieux apresenta na segunda seção sua versão podálica para a alternância de acordes se mostra ainda mais contundente quando verificamos o desenho resultante da superposição as notas do pedal duas a duas. Vemos com isto que se forma um desenho muito similar àquele que é apresentado como tema do estudo. (figura 34). Accords Alternés é o primeiro dos seis estudos demessianos que demanda a utilização de pontas e calcanhar alternadamente. Grosso modo, poderíamos dizer que enquanto Tierces, Sixtes e Octaves valorizam a simultaneidade e simetria da movimentação podálica, Accords Alternés, Pointes, e Notes Répétées mantém o foco sobre a alternância de pés. Mas, pese estas semelhanças, a contraposição da parte do pedal de Pointes e de Accords Alternés, revela certas diferenças básicas na escrita, que se refletem na própria prática em si. A utilização do calcanhar, agora permitida em Accords Alternés resulta em uma maior complexidade de movimentos podálicos pela por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 93 necessidade de uma movimentação lateral e vertical dissociada do tornozelo250. A outra diferença, diz respeito ao pedal das seções A e A’ de Notes Répétées, que, devido à utilização dos dois pés para a repetição das notas, valoriza os intervalos mais próximos. Esta ênfase necessária na proximidade intervalar dá margem a uma espécie de aglomeração dos pés visto, tal qual os movimentos que decorrem quando da execução da alternância de acordes situados muito proximamente (figura 29). Podemos ver então, que a realização dos acordes alternados depende uma movimentação das mãos onde atributos tais quais a proximidade, rapidez e precisão, se encaixam ao de alternância. Estamos, com isso, incluindo este procedimento dentro de um princípio mais geral, e com isso, descrevendo uma situação, um modus operandi, capaz de explicar como uma técnica tão tipicamente digital, pode assim, se encontrar ao alcance dos pés, tão mais limitados em movimentos e sensibilidade que as mãos. É de acordo com essa ótica que poderemos também demonstrar como este procedimento tão listizniano, gerador de efeitos tão variados, pode ser apontado no próximo estudo. Quinto Estudo: Notes Répétées O procedimento de fazer soar notas repetidas com grande velocidade no piano é transposto neste estudo para os domínios do pedal. De pronto verificamos que se no piano a repetição de notas implica no revezamento digital, no que pedal, este procedimento toma lugar de duas maneiras distintas. A primeira delas, que se apresenta na seção inicial deste estudo, se refere à utilização alternada dos dois pés sobre a mesma tecla. Isto só se torna possível quando 250 Ness, Marjorie. Six Etudes, Op. 5 of Jeanne Demessieux. The Diapason, USA, august, 1987. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 94 um dos pés se suspende sobre o outro de forma a que apenas a ponta do pé toma lugar na tecla da pedaleira. Neste caso, os calcanhares devem se voltar ligeiramente para fora251. “É o tornozelo que mantém o pé suspenso, embora próximo às teclas do pedal, da mesma forma que no piano, o pulso assegura a suspensão da mão” [“C’est la cheville qui tient le pied en suspens, quoique tout près de la note, à la façon dont, au piano, le poignet assure la suspension de la main.”]252. Os movimentos gerados na repetição de notas pela substituição das pontas, gera uma atitude de cavalgamento dos pés, o que pode ser interpretado como uma versão podálica da alternância de acordes. Na técnica digital, essa procedimento é comum justamente na execução de acordes alternados, como é o caso da performance do trecho exemplificado na figura 29. A outra forma de substituição na repetição de notas ocorre na segunda seção do quinto Estudo de Jeanne Demessieux, onde o calcanhar cede lugar à ponta do mesmo pé (figura36). 251 Sem que a rotação externa dos calcanhares, a localização de um dos pés na mesma tecla da pedaleira só seria possível caso um dos pés se posicionasse bem para trás. Isto inviabilizaria a execução rápida da parte do pedal por um motivo da Física. Se lembrarmos que cada tecla do pedal funciona como uma alavanca cujo ponto fixo está localizado onde se dá sua inserção da console, verificaremos que quanto mais distante do ponto onde se fixa for realizado o ataque, maior deverá ser a força empregada na performance. Portanto, ao pé que estivesse muito a frente caberia o emprego de uma força muitíssimo menor do que ao pé que se localizasse para trás. Não há a necessidade de nos alonguemos mais para que possamos demonstrar a natureza das dificuldades que este procedimento viria a gerar. 252 Marcel Dupré, in: prefácio dos Six Études de Jeanne Demessieux, 1946.. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 95 De pronto verificamos que é o calcanhar que é substituído pela ponta, e não vice-versa, o que origina um movimento cuja análise nos interessa. Para abandonar a tecla e ceder lugar à ponta, a articulação do tornozelo deve realizar um movimento que permita que a ponta ocupe seu lugar na tecla ao tempo que o calcanhar se eleva. Neste caso, mais uma vez a importância da articulação do tornozelo é similar à do pulso na técnica digital quando a performance das notas repetidas requer a rápida substituição dos dedos (4-3-2-1). Compositores como Cramer, Heller e Czerny dedicaram alguns de seus estudos para piano, destinados ao treinamento das notas repetidas. (figura 37) A versão que Chopin ofereceu das notas repetidas no estudo op. 10 no. 7 é bastante mais sutil, pois a figuração em questão é parte de uma linha textural bem definida. Apenas os dedos indicador e o polegar da mão direita estão envolvidos, uma vez que os outros três dedos se ocupam da parte superior da sequência de notas superiores (figura 38). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 96 No entanto, é no estudo de Liszt, La Campanella, aonde iremos nos deparar com os subsídios mais expressivos no tocante aos nossos propósitos comparativos. Os primeiros compassos desta composição funcionam como uma introdução das intenções de Liszt. O Estudo é a demonstração da nova dimensão que Liszt deu à concepção da repetição de notas, vigente nos primórdios do Romantismo. La Campanella pode ser considerado como um tema (figura 39) seguido de variações, geradas a partir da idéia lisztiniana de trabalhar este tipo de figuração a partir de um atributo que o próprio título insinua: a repetição253. A apresentação das notas repetidas de acordo com o esquema tradicional de substituição de dedos pode ser vista na figura 40, e que pode ser comparada ao pedal da seção segunda do estudo de Demessieux, (figura 36) ainda mais se consideramos que em ambos as oitavas são utilizadas. 253 Palavra italiana que significa campainha, sineta. (Michaelis – Soft, italiano português. Dicionário virtual, encontrado em http://uol.com.br, e acessado em 05 de julho de 2002.) por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 97 Neste estudo de Liszt, há também notas que ora são repetidas na mesma altura, e intercaladas por notas do tema (figura 41), ora são reproduzidas em seqüência, porém em diferentes alturas (figura 42). As opções são muitas, porém, o que aqui nos importa é ressaltar que a expansão do conceito lisztiniano de notas repetidas depende uma outra habilidade pianística. Não fosse isto verdade, de que forma poder-se-ia executar o estudo La Campanella sem uma razoável capacidade de resolução dos saltos? Isto porque na técnica digital a importância dos saltos assume uma importância que é capital, dado que eles permeiam muitos dos procedimentos pianísticos utilizados atualmente. Dentro da performance os saltos tanto podem se constituir como um fim, como podem estar incluídos em outras técnicas, como foi o caso dos acordes alternados. De igual modo, a performance organística também é extremamente dependente de uma técnica de saltos bem desenvolvida, seja nos manuais, seja nos pedais. As dificuldades que o organista enfrenta por causa das diferentes pedaleiras que, somadas à por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 98 ênfase que Jeanne Demessieux deu à parte do pedal, assume grande importância em qualquer um dos Six Études. Sexto estudo: Octaves Oitavas destacadas254 e escalas255, pontos fundamentais da pedagogia organística francesa moderna, sobretudo a partir de Marcel Dupré, e se constituem neste estudo como matéria básica. Na literatura para órgão encontramos apenas dois estudos que têm por base esta figuração256: a Esquisse em si bemol mineur de Marcel Dupré, do qual falamos no capítulo anterior, e o 20.me Étude de Clement Loret257. Neste último estudo, escrito na segunda metade do século XIX, o pedal se desenvolve em oitavas, o que, considerando as características dos órgãos e da técnica de então, se constituiu como uma grande ousadia (figura 43). 254 Dupré sempre frisava a necessidade do organista exercitar oitavas para desenvolver seu pulso. (Murray, op. cit. 1985). 255 Aos seus alunos de órgão, “Para salvaguardar a técnica, Dupré recomendava a prática diária no piano das escalas maiores e menores em oitavas, décimas, terças duplas, sextas duplas; de arpejos em quatro ou cinco espécies de escalas cromáticas em oitavas duplas; (...) Para o aperfeiçoamento da técnica do pedal, Dupré recomendava o completo domínio “de todas escalas maiores e menores, primeiro em notas simples alcançando toda a extensão da pedaleira (a escala de sol maior, por exemplo, deveria começar com o dó grave) e então em terças e sextas ”. [“To safeguard technique, Dupré recommended daily practice at the piano of major and minor scales in octaves, tenths double thirds, and double sixths; of arpeggios in four and five species; of chromatic scales in double octaves; (…). Al of the major and minor scales, first in single notes extending the full range of the pedal board (the G major scale, for instance, would commence on low C), then in thirds and sixths”]. Murray, op. cit 1985, p. 122. Ele mesmo, todos os dias, antes do café da manhã, cumpria uma rigorosa agenda ao piano que incluía escalas em terças e sextas dobradas, escalas cromáticas dobradas em terças maiores e menores, escalas cromáticas dobradas em quartas justas e aumentadas, escalas cromáticas dobradas em sextas maiores e menores, escalas cromáticas dobradas em oitavas, escalas cromáticas em oitavas alternadas em alta velocidade. Ele estudava ainda arpejos em acordes perfeito maior e menor, arpejos em acordes de sétima em três espécies, arpejos dobrados em acordes perfeito maior e menor ,arpejos dobrados de acordes de sétima emtrês espécies e, por fim, arpejos em movimento contrário. Quando o tempo permitia, tocava ainda algumas obras selecionadas do repertório romântico que mais gostava. No dia de sua morte, aos 85 anos, Dupré havia cumprido sua rotina, estudando meia hora de piano pela manhã. (Murray, op. cit 1974, p. 36). 256 Segundo Dupré, as oitavas destacadas se constituíam como um tema pouco frequente na literatura organística. (Murray, op. cit, 1985). 257 Cours d’Orgue em quatre parties, p. 61 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 99 As oitavas começaram desde muito cedo a fazer parte da vida de Demessieux. “Aos quatro anos, ela termina o Méthode Rose, e suas mãos, que cresciam muito, necessitavam de exercícios de consolidação, os quais ela cumpria sem reclamar. A essa idade, embora tivesse mãos pequenas, graças as inúmeros exercícios, ela já alcançava uma oitava.” [“A quatre ans, elle termine la Méthode Rose, et ses mains qui grandissent beaucoup exigent dês exercices de consolidation dont elle sàcquitte sans jamais se plaindre. A cet age, bien que possédant encore de petites mains, grace à ces multiples exercices, elle atteint l’octave.”]258 Aos 16 anos, a técnica digital de Demessieux havia chegado a um desenvolvimento tal, que ela já executava obras lisztinianas de grande dificuldade devido à utilização de oitavas259. Liszt não foi tão explícito na utilização das figurações em seus estudos como outros compositores românticos, e é por isso que, embora desempenhando um papel tão fundamental em sua obra, não encontramos um estudo que ele tenha dedicado especificamente às oitavas. Porém, no Estudo Transcendental Mazeppa verificamos uma grande diversidade quanto à utilização das oitavas. São oitavas alternadas (compassos 60-61), oitavas que conduzem o tema seja de forma grandiosa (7-24, 3159), cristalina (80-91) ou oitavas em escalas e arpejos (25-28). 258 259 Trieu-Colleney, op. cit., p. 15-6. Com esta idade, Demessieux executou o Concerto em mi bemol maior de Liszt. (Ibid). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 100 Distinguimos, inerentes a estas várias abordagens, duas questões que vêm de encontro ao propósito de nossas investigações. Uma delas diz respeito à utilização generosa da articulação do pulso na performance das oitavas destacadas. O que aqui nos interessa não é tanto discutir a forma pela qual Liszt executava as oitavas, mas sim as prescrições de Marcel Dupré, muito enfáticas com relação a este assunto260. Por outro lado, e é esse o segundo aspecto que queremos considerar é que a performance das oitavas destacadas conduz a outro ponto da técnica pianística que diz respeito aos saltos. Na técnica digital, três são os fatores fundamentais para a resolução acurada dos saltos: a visão, os automatismos e o tato. A importância da visão é relativa. A performance dos saltos, no caso, dos estudos de Chopin e Liszt, pode ser auxiliada pela visão panorâmica do teclado que o campo visual pode fornecer, mas não pode depender do foco direto do olhar, caso contrário se tornariam uma tarefa inexeqüível (figura 44)261. Os automatismos se constituem como uma prática que pode vista como proveitosa, dado que existe uma padronização para a largura e forma das teclas do 260 Dupré atrela a importância do desenvolvimento do pulso para que o organista alcance o domínio necessário dos estudos de Chopin e os Estudos Transcendentais de. (Dupré apud Murray, op. cit 1985, p. 36) 261 Gostaríamos de fazer um parêntesis para lembrar que a importância do sentido da visão não se restringe à possibilidade de enxergar. A visão, juntamente como sistema labiríntico e o cerebelo, colabora para a manutenção do equilíbrio. Assim, na performance pianística, e ainda mais na performance organística, a visão desempenha um papel auxiliar importante na manutenção da estabilização corporal. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 101 piano. Quanto ao tato, basta lembrar que é na mão onde o a capacidade humana para o tato bem como para as mais variadas capacidades motoras está presente262. Jeanne Demessieux não apenas compôs seus estudos, mas costumava incluí-los em suas apresentações. Pelo menos foi o que ocorreu nas turnês que realizou nos Estados Unidos nos anos 50 263, onde foi admirada por sua alto nível na técnica do pedal264. Diante disso, podemos nos perguntar se havia algum fator distintivo na técnica de Demessieux que fazia dela uma virtuose do pedal, e quais seriam estes fatores. Sabemos que, como dona de uma memória prodigiosa, tinha por hábito memorizar as obras que executava 265, o que podemos considerar como um ponto favorável para a 262 Basta verificar na figura abaixo, o “Homúnculo motor de Penfield” a extensão da representação de cada parte do corpo no cérebro. A figura diz respeito à área motora, porém, o hemisfério cerebral oposto encontram-se da mesma forma dispostas as áreas responsáveis pela sensibilidade. Note que a mão, mesmo se constituindo uma parte pequena do corpo, tem uma representação cortical que é praticamente insuperável. Isto explica a inigualável capacidade da mão para o tato bem como a possibilidade de realizar movimentos em quantidade e qualidade espantosa. (http://www.acm.org/sigchi/chi97/proceedings/paper/rb2.htm) 263 Ellis Laura. The American Recital Tours of Jeanne Demessieux. The Diapason, USA, october, 1995. p.14-18. 264 Jeanne Demessieux impressionava por sua técnica de pedal. À época de sua turnê pelos Estados Unidos, em 1953, Buhrmann em seu artigo intitulado “Jeanne Demessieux Recital,” na revista American Organist escreveu que “Miss Demessieux tem pernas e não se envergonha delas. Elas são bem torneadas e elas dançam na pedaleira sem nunca errar.” [“Miss D has legs and she's not ashamed of them/ they're shapely, and they dance around the pedalboard with never a miss.”] (Apud Ellis, op. cit, p. 14). 265 Paul V. Beckley, em “Organist Plays 1000 to 2000 works by Heart” matéria publicada no New York Herald Tribune, em 1 de fevereiro de 1953 por ocasião da série de apresentações que Demessieux fez nos Estados Unidos em 1953, escreveu que, “Ela aprendeu de memória a toda a literatura escrita para órgão de Bach, , Franck, Menselssohn, Liszt e Handel, e ainda toda, exceto as duas últimas composições de Dupré, um total entre 1000 e 2000 obras. Não somente seu repertório era vasto, mas ela confiava tão plenamente na sua habilidade que deixou todas as suas partituras na França!”. [“She had learned from memory the entire organ literture of Bach, Franck, Menselssohn, Liszt, Handel, and all but the last two por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 102 técnica de saltos. O sentido da visão nos possibilita não apenas, ver o ponto focado, mas também seu entorno. Ocorre que na performance do órgão, o organista lida com pelo menos três patamares físicos distintos. No mais inferior estão a pedaleira, os pedaletes e os pedais de expressão e de aumentação. Os manuais e os registros se localizam numa região intermediária, que se emparelha com o tórax do organista. No nível mais alto, encontra-se a estante, que no órgão tem uma altura bem mais elevada do que a do piano por causa dos manuais. Por isso, a fixação dos olhos para a leitura da partitura determina a exclusão da pedaleira do campo visual, por causa da elevação da cabeça. Por outro lado, ao dispensar a utilização da partitura, o organista está também, diminuindo de três para dois os patamares que precisa dar conta na performance. A eliminação do plano da estante permitia a Jeanne Demessieux um posicionamento da cabeça tal, que tanto manuais quanto pedaleira ficam incluídos em seu campo visual. Como aluna favorita de Dupré, Demessieux deve ter estabelecido sua técnica organística de acordo com a tradição Lemmens-Widor e, por isso, é muito provável que se utilizasse do princípio da manutenção dos joelhos no cálculo das distâncias na execução dos saltos do pedal. Embora não se constitua como uma prova definitiva, a figura 45 mostra Jeanne Demessieux sentada ao órgão da igreja La Madeleine, aparentemente durante a performance de uma obra, guardando a referida postura. compositions of Dupré, a total of between 1000 and 2000 works. Not only was her repertoire vast, but she was so confident in her ability that she left all of her scores in France!”].(Beckley Apud Ellis, op. cit, p. 14). por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 103 Figura 45 Falcinelli, em seu método, Initiation a l’Orgue 266 , considerou que o “antigo procedimento”267 de calcular as distâncias preconizados por Widor eram insuficientes, visto que a distância entre os pés e as pernas sofria variações de indivíduo a indivíduo268 Contemporânea de Demessieux, aluna de Marcel Dupré à mesma época, Falcinelli, a partir de 1955, substituiu o mestre como professora do Conservatório de Paris. Ela também pensava que: “A atitude requisitada [joelhos e/ou tornozelos juntos] só se torna possível no centro da pedaleira; entretanto, deve-se ser capaz de localizar, muito rapidamente, qualquer nota, seja em qualquer lugar, sobre toda a extensão da pedaleira.”. 266 1971. “Vieux procédé” (Falcinelli, Rolande. Initiation a l’orgue. França, Paris: Editions Bornemann, 1971. 1971, p. 15) 268 É verdade as diferenças físicas individuais fazem com que essas distâncias entre as pontas dos pés e as pernas variem de pessoa a pessoa. Porém, não se pode negar, conforme já foi abordado na página XXXX, que o procedimento tem valor, na medida em que proporciona para o próprio organista, uma medida sua, particular e permanente, independente do órgão que esteja utilizando. 267 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 104 [“L’attitude requise nést possible que dans le milieu du pédalier; or, on doit être capable de repérer, très vite, n’importe quelle note, quelle que soit as place, sur toute l’étendue du pédalier.”]269 Pelo menos à época da publicação dos Six Études 270 , Marcel Dupré teria discordado destas idéias, pois, segundo ele, no prefácio, a respeito de Notes Répétées, “Um pequeno balanceamento do corpo permitirá às pernas, juntas, alcançarem as extremidades do pedal.” [“Un très léger balancement du corps permettra aux jambes, jointes, dàtteindre sans difficulté les extrémités du pédalier.”]271 Contrapondo à desaprovação que declara aos ensinamentos widorianos 272 , Falcinelli faz uma proposição com vistas a resolver a questão. Diz ela: “É importante se habituar, desde o início, a não olhar para a pedaleira. O único modo válido para servir de guia consiste de utilizar os intervalos compreendidos entre todos os grupos de notas pretas.” [“Il est important de s’habituer, dès les débuts, à ne pas regarder le pédalier. Le seul moyen valable pour se repérer consiste à se servir des intervalles compris entre chaque groupe de touches noires”.]273 De fato, o procedimento proposto praticamente anula a interferência que as diferenças de configuração entre as pedaleiras podem causar sobre a performance. Embora não encontremos, em Initiation a l’Orgue, qualquer registro sobre a origem destas idéias, devemos considerar que para este se torne um procedimento viável, é indispensável que o acionamento da pedaleira ocorra o mais próximo possível das notas negras, recomendação que aliás, já fazia parte das exortações de Widor274. 269 Falcinelli, op. cit, p. 15. Lembramos que os Six Études foram publicados em 1946, enquanto que o método de Falcinelli foi publicado em 1977, quando Demessieux já havia morrido há quase 10 anos. 271 Dupré, apud, Demessieux, 1946, Préface. 272 Devemos lembrar que uma distância de praticamente 30 anos separa a publicação destas idéias dos Six Études. 273 Falcinelli, op. cit, p. 15. 274 Widor dizia que “Comece por colocar seu banco de forma que a ponta de seus pés toque a borda extrema das duas teclas negras no meio da pedaleira. Seus joelhos formarão um ângulo reto com suas 270 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 105 A localização do pé perto das notas negras vem a atenuar de forma contundente os problemas advindos da existência da diversidade de apresentações da pedaleira. Com efeito, ao observarmos a figura 18, veremos que a distância entre duas determinadas notas da pedaleira, (digamos o primeiro dó e o terceiro dó) não varia, tenha sido ela aferida o mais próximo ou o mais afastado possível das notas negras. Contudo, o mesmo já não pode ser dito com relação aos outros dois modelos (figura 17 e 19), porque quanto mais afastados estiverem os pés das teclas negras na performance, menores serão as distâncias, considerando-se os mesmos intervalos. Se agora, tomarmos o mesmo intervalo acima citado como parâmetro, verificaremos um organista em cuja performance do pedal mantém seus pés afastados das teclas negras terá muito maiores problemas alcançar com o cálculo das distâncias na pedaleira. Em outras palavras, quanto mais próximo das teclas negras, menores serão as diferenças intervalares entre as pedaleiras. A utilização dos espaços compreendidos entre as teclas negras como guia para a localização das notas no pedal, dá aos pés uma capacidade que lhe é praticamente inexistente, o tato. A ausência do ressalto das notas pretas, determina ao organista com absoluta exatidão onde estão localizados seus pés. “Ao colocar a ponta do pé (direito ou esquerdo) contra o ré #, então o mi natural está sob o pé, e portanto, o ré natural é vizinho.”[“Placer la pointe du pied contre le ré ainsi le mi naturel est sous le pied, donc le ré naturel est voisin”]275. coxas. (...) Mantenha o pé em constante contato com a borda das duas teclas negras, nunca tocando as notas brancas perto da parte de trás do pedal, exceto nas mudanças de pés ou cruzamentos. (...)” (o grifo é nosso). ["Begin by placing your bench so that when the tips of your toes touch the extreme edge of the two black key in the middle of the pedalboard your knees will form a right angle with your thighs. (...) Keep the feet in constant contact with the edge of the two black keys, never playing the white notes near the back of the pedal except in changing feet or crossing” ] (Widor apud Vierne, op. cit 1938 p. 11) 275 Falcinelli, op. cit, p. 5. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 106 Por fim, pensamos que a semelhança de Mazzepa com Octaves não se restringe ao emprego maciço de oitavas, mas também se estende aos domínios da divisão rítmica. Encontramos no sexto estudo de Demessieux, que a escrita leva a impressões auditivas que poderiam ser consideradas como mudanças de acentuação. É o que acontece quando ouvimos os primeiros 13 compassos, que devido às características da escrita, perdem o caráter de ternário simples, transformando-se em binário composto. (figura 46) Neste trecho, Demessieux escreveu as escalas de 6 notas cada são repetidas 26 vezes, distribuídas ora pelos teclados e pedal, ora somente no pedal, de forma que a tônica da escala vem cobrar seu acento, o que provoca esta sensação auditiva. Comparemos então, a escrita original de Demessieux (figura 46), com duas situações. A primeira delas, representada pela figura 47, que corresponde ao que se ‘deveria’ ouvir, dado que o estudo se encontra sob a égide do compasso ternário simples. No outro caso, que pode ser observado na figura 48, encontra-se o que ‘de fato’ouve-se na performance destes compassos – uma ambigüidade rítmica. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 107 Logo, quando a peça alcança o compasso 14, a situação muda e aí sim, a acentuação corresponde ao que propõe o compasso ¾ (figura 49). Os trechos citados se constituem apenas em um exemplo de mudança de acentuação em Octaves, pois durante toda a peça diversas vezes a divisão rítmica longe da partitura pode fornecer impressões ao ouvinte bastante diversas. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 108 Fenômeno semelhante, porém menos radical ocorre em Mazeppa, onde Liszt vai propondo modificações na subdivisão do tempo, muito embora o tema garanta a divisão binária do compasso (figura 50). Ao término deste capítulo, apenas mais uma consideração, que, julgamos, imprescindível. Em benefício da clareza de nossas idéias, fomos forçados a tratar cada estudo demessiano isoladamente. Para isso, tivemos que subscrever nossas apreciações ora a um, ora a outro estudo conforme o caso. A fim de realizar esta tarefa com um mínimo de prejuízo, não tivemos a menor pretensão de articular todas as possibilidades comparativas de cada estudo, mas antes deles extrair aquilo que nos pareceu mais evidente caso a caso. Claro, portanto está, que as observações feitas a cada estudo aplicam-se muitas vezes e, ousaríamos dizer, quase na maioria das vezes, às demais obras do conjunto. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 109 6. Conclusão “O estudo de órgão sem a aquisição de uma suficiente técnica de piano parece um empreendimento impossível.”[“Il semble impossible d’entreprendre l’étude de l’orgue sans posséder une technique pianistique suffisante”]276. Por que a performance do órgão poderia, ou melhor, deveria depender da técnica de um instrumento tão diferente? Durante o decorrer deste trabalho tivemos que nos defrontar continuamente com estas questões. Como ponto de partida tínhamos alguns conceitos enunciados por Marcel Dupré. Conceitos que falavam sobre suas concepções sobre as diferenças entre o órgão e piano: “Embora seu alvo fosse utilizar o piano meramente como forma de dominar o órgão Marcel aprendeu a amar a beleza particular do piano: sua união peculiar do som percussivo e cantabile, suas variedades de sons prolongados controlados pelos abafadores, sua possibilidade comunicar emoção de uma forma tão íntima. O idioma do piano, ele descobriu, não é mais expressivo que o do órgão - os dois não podem ser comparados - mas mais intrincado em seus matizes, mais sutis em suas nuances. ‘Quando você toca um órgão enorme em uma vasta catedral,’ele dizia, ‘são as grandes linhas que contam na obra’: os grandes ataques, as curvas arquitetônicas, abóbadas, e contrafortes’. No órgão, até mesmo as sutilezas são grandiosas. No piano, o espaço emocional pode ser pintado em detalhes minuciosos.” [“Though his aim was to master the organ, using the piano merely as a means to that mastery, Marcel learned to love the piano’s particular beauty: its peculiar union of percussive with singing tone, its varieties of sustained sounds controlled by the dampers, its ability to convey emotion of an intimate kind. The piano’s idiom, he discovered, is not more expressive than the organ’s – the two cannot be compared – but 276 Langlais, Jean; Langlais, Marie-Louise. Méthode d’orgue. France, Paris: Éditions M. Combre, 1984. 50 p.1 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 110 more intricate in its shadings, more subtle in its nuances. ‘When you play a huge organ in a vast cathedral,’ he was to remark, ‘it is the grandes lignes that count in a work’: the broad strokes, the architectural curves, vaultings, and buttresses. At the organ, even subtleties are grandiose. At the piano, the emotional canvas can be painted in minuscule detail”] No entanto, mesmo considerando as inúmeras diferenças entre os dois instrumentos, Marcel Dupré ainda assim julgava imprescindível a aquisição da técnica avançada do piano para o estudo do órgão. “O perigo de transportar o pianismo para as áreas da performance organística que são exclusivas do órgão, é superado pelas vantagens, ele sentia, pois o treinamento ao piano era essencialmente o treinamento do movimento; O movimento dos músculos da mão, pulso e braço eram mais facilmente aprendidos no piano e o legato, na sua aplicação específica do órgão, poderia sempre ser dominado mais tarde.” [“The danger of carryin pianism into those áreas of organ playing which are unique to the organ was far outweigthed by the advantaes, he felt, for training at the piano was essentially training of motion; The movements of hand, wrist, and arm muscles were most easily learned at the piano, and the legato, in is specific application to the organ, could always be mastered later on”].277 Estas frases de Dupré, durante certo tempo se constituíram fontes de embaraço em nossa pesquisa, porque delas emergiam algumas questões. Quais seriam esses movimentos? Quais os movimentos úteis no órgão, dado que muitos deles eram determinados pela várias possibilidades de ataque que o piano admitia? Exaltando o estudo de piano na formação do organista, Dupré certa vez afirmou que “(...) o organista toma o caminho errado se não se dedica passional e intensamente, por vários anos, ao estudo de piano. É ingênuo, além disso, o organista que evita praticar oitavas para desenvolver seu pulso, sob o pretexto que o uso de oitavas destacadas é raro no órgão (...)” [“(...) the organist takes a wrong path if he does not consecrate himself passionately and intensely, for several years, to piano study. It is naive, furthermore, for the organist to shun 277 Murray, op. cit, 1974, p. 37 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 111 practicing octaves to develop his wrist, under the pretext that the use of detached octaves is rare at the organ (…)”]278 Por que se confere tanta importância às oitavas destacadas na técnica organística, se a própria literatura não legitima tal procedimento nas obras para órgão? Qualquer resposta a estes impasses requer a consideração que a importância da intimidade com a performance pianística não implica necessariamente na utilização literal da técnica pianística no órgão, mas de sua assimilação e conseguinte ampliação para o universo organístico. Encontramos nas palavras de Ritchie e Stauffer algumas pistas para esclarecer estas questões. “No órgão, a expressividade é produzida principalmente através do controle do ritmo e articulação, e não através da força do toque. Uma acurada performance requer movimentos pequenos e econômicos e um controle tátil refinado. Ao contrário da performance do piano, a performance organística normalmente não demanda grande resistência na parte das mãos ou pés. A flexibilidade é mais importante do que a força. Com as mãos, o movimento necessário na performance é feito primariamente pela descida dos dedos. Nos pés, o movimento é feito primariamente desde o tornozelo abaixo. A tarefa é realizar todos estes pequenos movimentos de forma relaxada’” (grifo nosso). [“On the organ, expressiveness is produced chiefly through control of rhythm and articulation, not through strength of touch. Good playing requires small, economical movements and refined tactile control. Unlike piano playing, organ playing normally does not demand great endurance on the part of the hands or the feet. Suppleness is more important than strength. With the hands, the playing motion is made primarily from the finger joints down. With the feet, the playing motion is made primarily from the ankle down. The task is to bring these small movements under relaxed control.”]279 278 279 Murray, op. cit 1985, p. 36. Ritchie e Stauffer op. cit,2000, p. 5. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 112 Essa tão exaltada flexibilidade, de fato, tem muito mais probabilidades de ser alcançada através do domínio da técnica pianística. Isto porque somente o piano, instrumento que admite uma admirável diversidade de ataques, e onde cada mínimo movimento interfere diretamente na realização sonora, pode desenvolver um repertório tão vasto de respostas motoras altamente complexas. Realmente, dizemos agora com Dupré, “o treinamento ao piano é essencialmente, o treinamento do movimento”, um movimento cuja utilidade no órgão não pode, nem deve estar limitado ao desempenho puramente digital. Sendo assim, poder-se-ia afirmar que a técnica organística é devedora da técnica do piano? E quanto ao estudo de piano, seria ele em algo dependente da técnica organística? O objetivo da performance precisa ser levado em conta, para que possamos refletir sobre a existência de uma vinculação de técnicas. Só para citar um exemplo, o contraponto bachiano no piano oferece possilidades de execução que exige reflexões sobre o universo musical de Bach. Não seria o estudo do órgão uma forma razoável de compreensão deste universo? Durante este trabalho, vimos que o piano assumiu um papel de destaque na pedagogia da Escola Francesa de Órgão, que sua técnica e escrita transfiguraram-se dentro da técnica e da literatura organísticas. Podemos agora afirmar, categoricamente, que o domínio do piano é, de fato imprescindível se quisermos tocar a música cuja composição foi influenciada por esta concepção. Trata-se do que o já citado Chiantore afirma sobre a procura da técnica original, através da pesquisa do texto e do som original, para que se possa compreender sem dogmatismo “que tipo de execução se por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 113 esconde por trás da escrita de cada compositor” [“qué tipo de ejecución se esconde detrás de la escritura d cada compositor”]280. Em “A geração Romântica”, Rosen afirmou que “para se conhecer que espécie de compositor era Liszt, deve-se começar com os dois conjuntos de Estudos” 281 . Parafraseando o autor, acreditamos que podemos, ao término deste trabalho, afirmar que o exame dos Six Études se constituem como uma excelente maneira de se aprofundar a respeito da técnica organística de Jeanne Demessieux. E, da mesma forma que dizemos que Liszt apreendeu em seus Études aprés Paganini o universo violinístico, também nos é possível dizer que o mesmo fez Jeanne Demessieux quando transpôs o universo do piano ao do órgão. Devemos ter em mente que, com bastante probabilidade, as motivações fossem em um e outro caso bastante diversas. Liszt não era violinista, mas ficou fascinado pelo que o ‘violinista dos infernos’ era capaz de fazer com e a partir de seu instrumento. Demessieux, por sua vez, dominava o piano e o órgão. Não sabemos se seus estudos já haviam sido planejados anteriormente como em um projeto secreto, entretanto sabemos que a demanda deste empreendimento partiu do editor Bonermann e foi dirigida a Marcel Dupré, que posteriormente declinou da tarefa re-encaminhando-a a sua aluna predileta. Bornemann, à época da publicação dos Six Études, chegou a lamentar que até então ainda não existissem grandes estudos escritos para órgão282. Foi, pois, debaixo da demanda urgente de Dupré, que Demessieux iniciou a composição dos Six Études. Torna-se inevitável a essa altura, refletir a respeito da condição de Demessieux frente à tarefa de compor estudos para órgão, principalmente quando verificamos o montante de suas composições para órgão. Como compositora Jeanne Demessieux não 280 Op. cit, p. 14 2000, op. cit p. 655 282 Trieu-Colleney, op. cit. 281 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 114 teve uma atividade das mais profícuas. Considerando as obras que foram compostas e publicadas entre 1944 e 1969283, estão os Douze Chorals-Préludes, e Répons pour lê temps de Pâques, Te Deum, Sept Méditations sur lê Saint-Esprit, que exploram temas religiosos; dentre aquelas que não possuem uma ênfase sacra estão Poème pour orgue et orchestre, Triptyque, Prélude et fugue dans la mode lydien, além, evidentemente, dos Six Études. Aparentemente, apenas os Douze Chorals-Préludes tinham função pedagógica, tendo sido correlacionados aos Chorals publicados por Dupré em 1931284. Verificamos da comparação destas obras a existência de uma discrepância abismal entre a obra para órgão de Demessieux e Liszt tanto no que se refere à extensão, quanto no que tange à natureza das dificulades técnicas. O grau da dificuldade técnica encontrada nos estudos demessianos não se verifica mais em qualquer outra de suas obras. Justamente o contrário poderíamos dizer a respeito das composições de Liszt, pois ele amava os desafios que advinham da performance acrobática. Um elemento comum aos estudos românticos de piano foi justamente essa tendência ao que Rosen chamou de exercício atlético: “Praticar um estudo de Chopin ou Liszt é m exercício atlético: alarga as mãos, desenvolve os músculos, aumenta a flexibilidade, amplia a capacidade física” 285 . A execução dos estudos chopinianos e lisztinianos aponta dessa forma para um desenvolvimento muscular que se concentra, basicamente nas mãos. De fato, muito da dificuldade técnica dos estudos surgidos a partir do início do século XIX, nos estudos não apenas para piano, mas para outros instrumentos, decorre desta tendência ao virtuosismo atlético. E este é justamente o enfoque que Jeanne Demessieux transfere a seus estudos. O conceito de virtuosismo atlético, porém, uma vez aplicado ao órgão, se amplia em um instrumento cuja 283 Cavanagh, s/d. Sabatier, 1991, p. 319. 285 2000, p. 495. 284 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 115 performance por si só já requer um esforço físico maior. “O órgão é, talvez o mais ‘atlético’dos instrumentos” [“The organ is perhaps the most ‘athletic’of instruments”] 286 . Os estudos de Demessieux não são estudos de pedal, como o são os estudos de Langlais. A performance dos Six Études vem cobrar do organista uma total sintonia com o instrumento. Sintonia de onde pode nascer a verdadeira técnica, capaz de retirar do instrumento com economia e qualidade, a melhor performance. 286 Ritchie, 2000, op. cit p. 4 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 116 6. Referências Bibliográficas Livros CHIANTORE, Luca. Historia de la técnica pianística: Un estudio sobre los grandes compositores y el arte de la interpretación en busca de la Ur-Technik. Madrid, España: Alianza Editorial, 2001. 758 p. DOUGLASS, Fenner. Cavaillé-Coll and the French Romantic Tradition. London: Yale University Press, 1999. 235 p. FERGUSON, Howard. Study. In: SADIE, Stanley, editor. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: Macmillan Publishers limetd, 1980. p. 304-5. FRANÇOIS-SAPPEY, Brigitte. Louis James Alfred Lefébure-Wely. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991. 503-7. GAVOTY, Bernard. Marcel Dupré. Les grands Interprètes. Genève, Éditions René Kister, 1955, 29. GORENSTEIN, Nicolas. L’orgue post-classique français: Du Concert Spirituel à Cavaillé-Coll. Paris: Editions Musicales Chanvrelin, 1993, 141 p. GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. O século XIX: música instrumental. In: História da Música Ocidental. Lisboa, Portugal: Gradiva, 1997. p. 590-627. ___________. Música sacra no Renascimento tardio. In: História da Música Ocidental. Lisboa, Portugal: Gradiva, 1997. p. 277-306. HIGGINBOTTOM, Edward. Organ music and liyurgy. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press,1998. p. 130-147. KAHL, Willi. Romantic piano music: 1830-1850. In: Romanticism (1830-1890). New York: Oxford University Press, 1990. p. 237-256. KAEMPER, Gerd. Techniques pianistiques. France, Paris: Éditions Musicales Alphonse Leduc, 1968 reimpressão 2001. p. 199. KIMBERLY, Marshall; PETERSON, William J. Evolutionary Schemes: Organists and their Revolutionary music. In: ARCHBOLD, Lawrence; PETERSON, William J. French organ music from the Revolution to Franck and Widor. New York, USA: University of Rochester Press, primeira reimpressão 1999. p. 3-17. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 117 MONGRÉDIEN, Jean. French Music: from the Enlightenment to Romanticism, 17891830. Oregon, USA: Amadeus Press, 1996. 394 p. MURRAY, Michael. French Masters of the Organ. New Haven, London: Yale University Press, 1998. 245 p.. ___________. Marcel Dupré: The Work of a Master Organist. Boston, Massachussetts: Northeastern University Press: 1985. 259 p. OCHSE, Orpha. Organists and organ playing in nineteenth-century France and Belgium. Indiana, USA: Indiana University Press, primeira reimpressão 2000. 270 p. PETERSON, William. J. Lemmens, his École d’orgue, and Nineteenth-Century Organ Methods. In: ARCHBOLD, Lawrence; PETERSON, William J. French organ music from the Revolution to Franck and Widor. New York, USA: University of Rochester Press, primeira reimpressão 1999. p. 51-100. RIEMANN, Hugo. Musik-Lexikon , 1946. RITCHIE, George. STAUFFER, George B.Organ technique: modern and early. New York: Oxford University Press, 2000. 382 p. ROSEN, Charles. A Geração Romântica. São Paulo, Brasil: EDUSP, 2000. p. 946. SCHOLES, Percy A. Pianoforte playing. In: The Oxford Companion to Music. London: Oxford University Press, 9a. edição reimpressa, 1967. p. 805-810. ___________. Formas de Sonata. España: SpanPress Universitaria, 1998. p. 376. RUSSILL, Patrick. Catholic Germany and Austria 1648-c1800. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press, 1998. p. 204-218. SABATIER, François. César Franck. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991. p. 357-371. ___________. Jeanne Demessieux. In Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991, p. 319-320. ___________. Robert Schumann. In: Guide de la musique d’orgue. Sous la direction de Gilles Cantagrel. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1991. p. 715-721. STEED, Graham. The Organ Works of Marcel Dupré. Hillsdale, New York: pendragon Press, 1999. 265 p. SUMNER, William Leslie. The Organ, Its evolution, Principles of construction and Use. New York: St. Martin’s Press, Inc., 1962. 603 p. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 118 TIMBRELL, Charles. French Pianism – A Historical Perspective. Oregon, USA: Amadeus Press, 1999, 2a. edição. 370 p. TRANCHEFORT, François-René. Liszt. In: La musique de piano et de clavecin. Sous la direction de François-René Tranchefort. França: Librairie Arthème Fayard, 1987. p. 453-478. TRIEU-COLLENEY, Christiane – Jeanne Demessieux, Une vie de luttes et de gloire. Avignon: Les Presses Universelles, 1977. 238 p. VAN WYE, Benjamin. Organ music in the Mass of the Parisian Rite to 1850 with emphasis on the contribuitions of Boëly. In: ARCHBOLD, Lawrence; PETERSON, William J. French organ music from the Revolution to Franck and Widor. New York, USA: University of Rochester Press, primeira reimpressão 1999. p. 19-36. WEBBER, Geoffrey. The north German organ School. In: The Cambridge Companion to the Organ. Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber, editores. United Kingdom: Cambridge University Press,1998. p. 219-235. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 119 Revistas e Publicações: EDEL, Theodore. Rhythm november/december, 2000 Riddles. Piano & Keyboard, .............p.35-39. ELLIS, Laura. The American Recital Tours of Jeanne Demessieux. The Diapason, USA, october, 1995. p.14-18. MURRAY, Michael. Toward Perect Technique. Music, march, 1974, p. 36-8. ___________. A Legacy and a Prize. The Diapason, December, 1979, p. 4-5, 8-10. NESS, Marjorie. Six Etudes, Op. 5 of Jeanne Demessieux. The Diapason, USA, august, 1987. p. 9-11. STEED, Graham. Dupré and Demessieux: the master and the pupil. The American Organist. 13:3. VIERNE, Louis. Memoirs of Louis Vierne; his life and Contacts with famous men.” Translated by Esther E. Jones. The Diapason. USA, november, 1938. p. 10-11 por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 120 Artigo de Periódico em Meio Eletrônico BARDA, William. Les études pour piano: A travers Bach, Chopin, Listt, Rachmaninov, Scriabine et Debussy. Ecole Polytechnique. Serveur des Eleves. X-PASSION n°24. s/d Disponível em: http://www.polytechnique.fr/eleves/binets/xpassion/numeros/xpnumero24/xpnum24pdf si/etudespiano24.pdf Acesso em novembro 2001. BARRETT-BENSON, Laurie. The effects of the Revolution on the organ mass in France. Roger Wagner Center Online! California State University, Los Angeles. s/d Disponível em: http://srd.yahoo.com/goo/BARRETTBENSON%2c+Laurie.+The+effects+of+the+Revolution+on+the+organ+mass+in+Fran ce/1/T=1025108843/F=b9398fd4ccc228016f22fcc9297d4119/*http://www.calstatela.ed u/centers/Wagner/organ.htm. Acesso em setembro, 2001. BOURLIGUEUX, Guy. François Benoist, un maître nantais oublié. Musica et Memoria Disponível em http://musicaetmemoria.ovh.org/prix-de-rome.html. Acessado em novembro 2001. BROOKS, Gerard. BIOS REPORTER. The French Symphonic Tradition. The British Institute of Organ Studies. January 2001, Volume XXV, No.1 Homúnculo de Penfield http://www.acm.org/sigchi/chi97/proceedings/paper/rb2.htm CAVANAGH, Lynn. Rhythmic Complexity in Post-1945 French Organ Music: A Study in Selected 20th-Century Metrical Techniques. (Abstract) in: West Coast Conference of Music Theory and Analysis. University of Oregon, USA. http://www.uoregon.edu/~wccmta/Abstracts.html Acesso em junho 2002. GROVES ON LINE –Concert life. http://www.grovemusic.com/shared/views/article.html?section=music.40089.4.2 ___________. Concert Spirituel http://www.grovemusic.com/shared/views/article.html?from=search&session_search_id =1005547528&hitnum=1§ion=music.06257 JOSEPH REGENSTEIN LIBRARY. Frédéric Chopin and his Publishers. University of Chicago Library. An exhibition in the Department of Special Collections, on view February 2 through April 10, 1998. Disponível em: http://www.lib.uchicago.edu/e/su/music/musex.html. Acesso em novembro 2001. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 121 LAUBER, Tristan. Chopin: As Seen by a Pianist. La Scena Musicale - Vol. 5.5 February 2000. Disponível em: http://www.scena.org/lsm/sm5-5/Chopin-en.htm. Acesso em novembro, 2001. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 122 Métodos, compêndios e partituras: ALKAN, Charles-Valentin. 12 Études d’Orgue ou de Piano à Pedales pour lês Pieds seulement. Hertsfordshire: Sphinx, december 1999, 67 p. CLÉMENT, Félix. Méthode d’orgue: d’harmonie et d’accompagnement: comprenant toutes les connaissances nécessaires pour devenir un habile organiste. Deuxième partie: Études de mécanisme. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1873, CHOPIN, Fryderyk . Studies for piano. Poland: Instytut Fryderyka Chopina, 1970, 157 p. CRAMER, G. B. 50 Estudos. Rio de Janeiro, Brasil: Editora Arthur Napoleão, 1960. 131 p. DEMESSIEUX, Jeanne. Six Études. Paris: Editions Musicales Alphonse Leduc, 1946. 58 p. DUPRÉ, Marcel. Deux Esquisses: Mi mineur, si bémol mineur op. 41. Paris: Editions Musicales Alphonse Leduc, s/d, 22 p. ___________. Méthode d’orgue. França, Paris: Alphonse Leduc, 1927, 74 p. ___________. Offrande à la Vierge: Virgo Mater, Mater Dolorosa, Virgo Mediatrix. Paris: Editions Musicales Alphonse Leduc, s/d, 22 p. ___________. Suite op. 39. Paris: Editions Musicales Alphonse Leduc, 1945, 26 p. FALCINELLI, Rolande. Initiation a l’orgue. França, Paris: Editions Bornemann, 1971. 79 p. HESSE, Adolph. Kleine Pedalschule mit Uebungsstücken und mehrstimmigen Beispielen. Leipzig, Verlag von F. E. C. Leuckart. s/d. LANGLAIS, Jean; JAQUET-LANGLAIS, Marie-Louise. Méthode d’orgue. France, Paris: Éditions M. Combre, 1984. 50 p. LEMMENS, Jacques Nicholas. École d’Orgue. Paris: Durand, 1920, 128 p. LISZT, Franz. 12 Estudos Transcendentais. São Paulo, Brasil: Ricordi Brasileira, 1918. 121 p. ___________. Grandes Études d’apres Paganini. http://www.classicala.rchives.com http://www.sheetmusicarchive.net/single_listing.cfm?composer_id=24 NEUKOMM, Sigismond. 25 Grandes Études pour Orgue. Édition par François Sabatier et Nanon Bertrand-Tourneur. Paris, France: Éditions Publimuses,1999. 242 p. por: Domitila Ballesteros Consequências da utilização de elementos pianísticos na composição dos Six Etudes de Jeanne Demessieux para a técnica organística 123 NILSON, Lars. A System of technical studies in pedal playing for the organ. New York: G. Schirmer, inc, 1904. 48 p. SCHNEIDER, Julius. Studien für die Orgel heft II, op. 48. Frankfurt: Peters, s/d, 27 p. por: Domitila Ballesteros