esgotar as palavras... rachar o pensamento

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esgotar as palavras... rachar o pensamento
ESGOTAR AS PALAVRAS... RACHAR O PENSAMENTO
Profa. Dra. Angela A. Donini 1
“O desejo não é o que permanece sempre
impensado no coração do pensamento?” 2
1. Imagem e espaço em Beckett
Não remeter mais a linguagem a objetos enumeráveis e combináveis, tampouco a vozes
emissoras, produzir deslocamentos que processem limites imanentes que “não cessam de
deslocar, hiatos, buracos ou rasgões dos quais não se daria conta, atribuindo-os ao simples
cansaço, se eles não crescessem de uma vez, de maneira a acolher alguma coisa que vem de
fora ou de outro lugar.” 3
“Hiatos para quando as palavras desaparecidas. Quando não há mais como. Então tudo
visto como então somente. Desobscurecido. Desobscurecido de tudo o que as palavras
obscurecem. Tudo assim visto não dito.” 4
No texto “O esgotado”, a partir das obras de Beckett, o que Deleuze vai convocar é que
esse algo, visto, ou ouvido, chama-se imagem, visual ou sonora, desde que liberada das
cadeias em que as duas outras línguas a mantinham. Não se trata de imaginar um todo a partir
de uma língua, que ele vai chamar de língua I, que seria de imaginação combinatória e
manchada de razão e, nem de inventar histórias ou inventariar lembranças com o que ele vai
chamar de língua II que seria a imaginação manchada de memória.
Estamos portanto, diante do despedaçar de todas as aderências da imagem para atingir o
ponto “Imaginação Morta Imaginem”. E Deleuze destaca o difícil que é criar uma imagem
pura, não manchada, apenas uma imagem, para se chegar ao ponto em que ela surge em toda
sua singularidade sem nada guardar de pessoal, nem de racional.
“A imagem é um pequeno ritornelo, visual ou sonoro, quando é chegada a hora: ‘a hora
preciosa...’. Em Watt, as três rãs misturam suas canções, cada uma com sua cadência própria,
Krak, Krek e Krik. As imagens-ritornelo percorrem os livros de Beckett. Em Premier amour,
ele vê um pedaço de céu estrelado balançar, e ela canta baixinho. É que a imagem não se
define pelo sublime do seu conteúdo, mas por sua forma, isto é, por sua “tensão interna”, ou
pela força que mobiliza para esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras,
interromper a manifestação de vozes, para se desprender da memória e da razão, pequena
imagem alógica, amnésica, quase afásica, ora se sustentando no vazio, ora estremecendo no
aberto.” 5
Algo que não é um objeto, mas um processo. Não se sabe a potência de tais imagens,
por mais simples que sejam do ponto de vista do objeto. É o que Deleuze vai chamar de
língua III na obra de Beckett, não mais dos nomes ou das vozes, mas das imagens, sonantes,
colorantes. Para ele, o que há de entediante na linguagem das palavras é que ela está
sobrecarregada de cálculos, de lembranças e de histórias. E, “no entanto, é preciso que a
imagem pura se insira na linguagem, nos nomes e nas vozes. Às vezes será no silêncio, por
um silêncio comum, no momento em que as vozes parecem ter se calado. Mas às vezes
1
Departamento de Filosofia e Ciências Sociais – UNIRIO.
Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
3
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010, p. 78.
4
Beckett, Samuel. Cap au pire. Paris, Minuit.
5
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”, op. cit. p. 81.
2
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também será pelo sinal de um termo indutor, na corrente da voz, Bing. ‘Bing imagem quase
nunca um segundo tempo sideral azul e branco do vento.’”
A língua III pode reunir as palavras e as vozes, são as quatro peças de Beckett para a
televisão. Segundo Deleuze, essa língua não procede apenas por imagens, mas por espaços, e
Beckett vai esgotar duas vezes o espaço e duas vezes a imagem. Ele suportou cada vez menos
as palavras.
“...E sabia, desde o início, a razão pela qual devia suportá-las cada vez menos: a
dificuldade particular de ‘esburacar’ a superfície da linguagem para que finalmente aparecesse
‘o que se esconde atrás’” 6.
O de fora da linguagem não sendo apenas imagem, mas a vastidão, o espaço. A língua
III vai proceder por imagens e espaços, e, da mesma maneira que a imagem deve ter acesso ao
indefinido, o espaço deve ser sempre um espaço qualquer, sem função, ou que perdeu a
função.
“O espaço qualquer é povoado, percorrido; é ele, inclusive, que povoamos e
percorremos, mas ele se opõe a todas as nossas extensões pseudoqualificadas e se define ‘sem
aqui nem ali de onde nunca se aproximarão nem se afastarão um milímetro todos os passos da
terra’.” 7
Do mesmo modo que a imagem aparece àquele que a cria como um ritornelo visual ou
sonoro, o espaço aparece àquele que o percorre como um ritornelo motor, posturas, posições e
maneiras de andar. Todas essas imagens compõem-se e se decompõem.
A forma de andar de Watt, “que vai em direção ao leste, girando o busto em direção ao
norte e jogando a perna direita em direção ao sul, e depois, o busto em direção ao sul e a
perna esquerda em direção ao norte” 8 é uma maneira de andar exaustiva, que envolve todos os
pontos cardeais, o quarto ponto sendo a direção de onde se vem sem se afastar, cobrindo todas
as direções, e no entanto em linha reta. “Igualdade entre a reta e o plano, entre o plano e o
volume.” 9 E aqui, com essa consideração do espaço temos um novo sentido e um novo objeto
ao esgotamento: “esgotar as possibilidades de um espaço qualquer” 10.
Em Beckett a língua III das imagens e dos espaços permanece em relação com a
linguagem, mas vai se erguer ou se estirar em seus buracos, seus desvios ou seus silêncios. O
esgotado é o exaustivo, o estancado, o extenuado, o dissipado. E essa língua pode operar em
silêncio, ou servir-se de uma voz gravada que “força as palavras a se tornarem imagem,
movimento, canção, poema” 11.
2. A ruptura com o sensório motor
Kuniichi Uno vai até o bergsonismo de Gilles Deleuze em seu Cinema, onde há a
identificação de que a imagem-ação no cinema implica na elaboração do esquema sensóriomotor sob formas muito variadas, mas que, finalmente, conduzem a uma imagem-ação
puramente física ou relacional. E seguindo, como se os fios estivessem frouxos, nesse tipo de
imagem-ação, extremamente sofisticada, as imagens (a imagem ótica, a imagem sonora) se
desprenderão de todas as lógicas orgânicas: não há mais vínculo para uni-las nem apertá-las.
É onde o entreimagens ou o interimagens vai se tornar cada vez mais sensível. Os
signos da imagem-tempo emergem nos interstícios das imagens sonoras e óticas.
6
Gilles Deleuze. “Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado”, op. cit. p. 108.
Idem. p. 83.
8
Ibidem p. 84.
9
Ibidem. p. 84.
10
Ibidem. p. 84.
11
Ibidem. p. 85.
7
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De movimentos anteriores ao contorno humano, que em algum momento foram
monopolizados pelo esquema sensório-motor, as mutações imperceptíveis invadem e se
infiltram no cerne da organização desse esquema para revelar figuras de tempo que não mais
pertencem ao movimento sensório-motor e ao corpo organizado a partir da medida deste
movimento. Para Uno, esse tempo é vivido e experimentado por diferentes tipos de corpos
sem órgãos.
Aqui os centros da percepção, da ação, do afeto se voltam novamente acêntricos, e mais
uma vez, por toda parte, no cinema, aprofundam-se os desvios, os intervalos, os cortes, as
disjunções, que criam, no lugar de centro de percepção, de ação, de afeto, uma nova
consistência cristalina – abertura de uma nova esfera de signos de som- imagem. “As imagens
se articulam cada vez mais com seus interstícios, suas margens numa síntese disjuntiva,
principalmente no cinema que pertence à imagem-tempo.” 12
O projeto de Deleuze para o cinema está em retraçar e reinterpretar a história do cinema
a partir de uma pré-história que vai remontar ao tempo da matéria antes do humano. De onde
podemos arrancar a matéria-imagem-movimento? E não se trata de remontar as imagens a
partir da cena original da matéria porque não há o original da matéria. São variações de
interstícios entre imagens e percepções. Deleuze vai ressaltar a importância da disjunção entre
o som (imagem sonora) e a imagem (imagem ótica).
Para Kuniichi Uno a imagem-movimento vai divergir em imagem-percepção, imagemafeto e imagem-acão ao se humanizar, ao se organizar na direção sensório- motora e, a cada
momento de divergência, a linhagem de vida orgânica será articula de modo diferente da
linhagem de vida não orgânica.
E por que não fazermos essa provocação situando-a no pensamento? E aqui a proposta é
de encontro com as questões que Deleuze traz a partir das “Palavras e as coisas” de Foucault:
“Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do humano desaparecido. Pois esse vazio não
aprofunda uma falta: ele não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Ele é nada mais nada
menos que a desdobra de um espaço onde, enfim, é novamente possível pensar.” 13 No texto
“O homem, uma existência duvidosa” vai considerar que é isso que a análise da finitude nos
convida, a uma nova imagem do pensamento, não uma ciência humana, tratando-se portanto
de um pensamento que não mais se oponha de fora ao impensável ou não-pensado, mas que o
alojaria nele, um pensamento que seria atravessado por uma rachadura sem a qual ele não
poderia se exercer.
“A rachadura não pode ser preenchida, pois ela é o mais elevado objeto do pensamento:
o homem não a preenche e nem recola suas bordas; ao contrário, no homem, a rachadura é o
fim do homem ou o ponto originário do pensamento.” 14
Parece haver uma permanência de Deleuze no tema da rachadura e é interessante
promovermos essa aproximação entre a rachadura do pensamento e a rachadura das palavras
para pensar no que a potência das imagens podem convocar a partir da perspectiva de um
movimento anterior ao pensamento, anterior à linguagem.
E aqui, acompanhando as questões que Deleuze traz acerca do pensamento e do cinema
chegamos ao ponto de pensar a imagem como algo que não se trata de um efeito lógico, mas
como efeito dinâmico que, como síntese, vai atuar sobre o córtex.
A montagem é no pensamento o próprio processo intelectual ou o que frente ao choque
pensa o choque.
Os harmônicos da imagem acompanham a dominante sensível e entram em relações
supra-sensoriais. Trata-se de uma onda de choque ou vibração nervosa tal que não se pode
mais dizer “vejo, ouço”, mas sinto. 15
12
Kuniichi Uno. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo, n-1 edições, 2012.
Michel Foucault. As palavras e as coisas. Op. cit.
14
Gilles Deleuze. “O homem uma existência duvidosa”in: A ilha deserta. São Paulo, Iluminuras, 2006.
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Artaud em “Feitiçaria e cinema” 16 vai dizer que o cinema é um notável excitante, age
diretamente sobre a massa cinzenta do cérebro. E, para ele, o cinema foi feito para exprimir as
coisas do pensamento, e não somente pelo jogo das imagens, mas algo de imponderável que
nos devolve as coisas em sua matéria direta, sem interposições, sem representações. Sendo
insuficiente o pensamento claro, que segundo ele está situado em um mundo gasto e até
fastio. O claro é o imediatamente acessível, mas o imediatamente acessível é aquilo que serve
de casca à vida.
Referências
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BECKETT, Samuel. Cap au pire. Paris: Minuit, 1991.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.
______. O homem uma existência duvidosa. In: A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2012.
15
16
Gilles Deleuze. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo, Brasiliense, 2009.
Antonin Artaud. Linguagem e vida. São Paulo, Perspectiva, 2008.
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