Bioética, Direitos Humanos e o Infanticídio e Morte Intencional de

Transcrição

Bioética, Direitos Humanos e o Infanticídio e Morte Intencional de
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Valéria Trigueiro Santos Adinolfi
BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E O INFANTICÍDIO E MORTE INTENCIONAL
DE CRIANÇAS EM GRUPOS INDÍGENAS BRASILEIROS
monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Bioética da Universidade Federal de Lavras como requisito parcial
para a obtenção do título de Especialista em Bioética
orientadora: Profa Ms. Ana Paula Pacheco Clemente
LAVRAS
2008
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DEDICATÓRIA
A Deus
à memória de João Gonçalves Fidalgo, avô-presente, exemplo de vida
à minha família: meu marido, Alessandro; minha mãe, Glória; minha irmãzinha, Helen
aos pais e mães que lutam por seus filhos, e aos que os auxiliam nessa luta: Muwaji
Suruwahá, Paltu Kamaiurá, Yakuiap Kamaiurá, Regina Sarti, Kamiru Kamaiurá, Suzuki e
Márcia, Eli Ticuna, Divanete Kajabi, Pajé Kajabi, Iré Kajabi, Keila Pinezi, Marité e Tximagu
Ikpeng, Henrique Terena, Liz Abad Maximiano, Kasiuma Suruwahá, Henrique Afonso
aos sobreviventes: Haziu Suruwahá, Mayutá Kamaiurá, Amalé Kamaiurá, Hakani, Sheila
Kamaiurá, Edson Bakairi, Iganani Suruwahá, Tititu Suruwahá, Lulu Kamaiurá, Pipi
Jamyaurá, Kanhu Raka Kamaiurá, Harani Suruwahá, os trigêmeos Ragal, Katiparu e Piatari
Ikpeng, os gêmeos Matu e Mayri Kuikuro, Kawana Kamayurá
e à memória dos que sucumbiram, como Niawi. Que seu choro e suas vozes sejam ouvidos
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SENHOR, tu me sondas e me conheces
Sabes quando me sento e quando me levanto;
de longe percebes os meus pensamentos.
Sabes muito bem quando trabalho
e quando descanso;
todos os meus caminhos são bem conhecidos por ti.
Antes mesmo que a palavra me chegue à língua,
tu já a conheces inteiramente, SENHOR.
Tu me cercas por detrás e pela frente, e pões a tua mão sobre mim.
Tal conhecimento é maravilhoso demais
e está além do meu alcance; é tão elevado que não o posso atingir. Para onde poderia eu escapar
do teu Espírito?
Para onde poderia fugir da tua presença?
Se eu subir aos céus, lá estás;
se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás.
Se eu subir com as asas da alvorada
e morar na extremidade do mar,
mesmo ali a tua mão direita me guiará
e me susterá.
Mesmo que eu diga que as trevas
me encobrirão,
e que a luz se tornará noite ao meu redor,
verei que nem as trevas são escurar para ti.
A noite brilhará como dia, pois para ti as trevas são luz.
Tu criaste o íntimo do meu ser
e me teceste no ventre da minha mãe.
Eu te louvo porque me fizeste
de modo especial e admirável.
Tuas obras são maravilhosas!
Digo isso com convicção.
Meus ossos não estavam escondidos de ti
quando em secreto fui formado
e entretecido como nas profundezas da terra.
Os teus olhos viram o meu embrião;
todos os dias determinados
para mim
foram escritos no teu livro
antes de qualquer deles existir.
Como são preciosos para mim
os teus pensamentos, ó Deus!
Como é grande a soma deles!
Se eu os contasse, seriam mais
do que os grãos de areia.
Se eu terminasse de contá-los,
eu ainda estaria contigo.
...
Sonda-me, ó Deus,
e conhece o meu coração;
prova-me, e conhece as
minhas inquietações.
Vê se em minha conduta algo
te ofende,
e dirige-me pelo caminho eterno.
(Salmo 139 1-18, 23,24 Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2004)
4
AGRADECIMENTOS
Ao Deus Pai, Filho e Espírito Santo. A Ele toda a gratidão, para sempre
Aos presentes que Deus me concedeu, por Sua Graça: meu marido Alessandro, maravilhoso e
imerecido parceiro de frescobol, amigo e amante, companheiro de sonhos e lutas, de alegrias e
tristezas; minha mãe, eterna mestra, insuperável exemplo de serviço a Deus e ao próximo;
minha irmãzinha Helen, exemplo de competência e empenho.
Aos colegas do curso de Pós-Graduação da UFLA, companheiros de trajetória e discussões.
Viva o Bioetikim!
Aos colegas, monitores e conferencistas de cursos onde pude discutir o tema em questão, e de
quem recebi valiosíssimas contribuições: o 33rd Bioethics Intensive Course, do Kennedy
Institute/ Georgetown University, Bioética Clínica y Social, da RedBioética/UNESCO,
Direitos Humanos: Teoria e Prática, da FGV
À Ana Paula, orientadora
5
RESUMO
Este trabalho proposta discute a prática de infanticídio e morte intencional de crianças em
grupos indígenas brasileiros, e os desafios que isso representa para uma Bioética baseada em
Direitos Humanos universais que incluam diferenças culturais, e as possibilidades e a
oportunidade de intervenções dialogadas, respeitosas e apropriadas nesses contextos.
Infanticídio e morte intencional de crianças não são prática isolada, singular, típica de apenas
uma cultura, mas isto acontece redor do mundo em várias culturas, e as vítimas são os mais
vulneráveis membros da comunidade humana: as crianças.
palavras-chave: bioética, direitos humanos, infanticídio, morte intencional de crianças
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ABSTRACT
This work discuss the infanticide and intentional killing of children in indigenous Brazilian
groups, and the challenges that this represent for an universal Human Rights based Bioethics
that includes cultural differences, and the possibilities and opportunity of dialogged,
respectful, appropriated interventions at theses contexts. Infanticide and intentional killing
children aren't an isolated practice, singular, typical of just one culture, but it happens around
the world at a lot of cultures, and the victims are the most vulnerable human community
members: the children
key-words: bioethics, human rights, infanticide, intentional killing children
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................8
CAPÍTULO 01 - BIOÉTICA INTERVENCIONISTA E POSSIBILIDADES DE AÇÃO EM
CASOS DE INFANTICÍDIO E MORTE INTENCIONAL DE CRIANÇAS..........................10
CAPÍTULO 02 - INFANTICÍDIO E MORTE INTENCIONAL DE CRIANÇAS ENTRE
GRUPOS INDÍGENAS BRASILEIROS.................................................................................14
CAPÍTULO 03 - O DEBATE HISTÓRICO E MORAL SOBRE O INFANTICÍDIO E A
MORTE DE CRIANÇAS.........................................................................................................24
CAPÍTULO 04 - PLURALISMO, RESPEITO À DIVERSIDADE, DIREITOS HUMANOS
E BIOÉTICA.............................................................................................................................37
CONCLUSÃO..........................................................................................................................45
REFERÊNCIAS CITADAS......................................................................................................51
OUTRAS REFERÊNCIAS.......................................................................................................55
ANEXO 01 - Carta aberta do movimento contra o infanticídio indígena.................................58
ANEXO 02: Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena – Folha de São Paulo,
06/04/ 2008...............................................................................................................................61
ANEXO 03: O garoto índio que foi enterrado vivo – Revista IstoÉ, 20/04/2008...................63
ANEXO 04: Crimes na floresta – Revista Veja, 15/08/2007...................................................66
ANEXO 05: Bebês indígenas marcados para morrer – Revista Problemas Brasileiro,
maio/junho de 2007...................................................................................................................70
ANEXO 06: Girl survived tribe's custom of live baby burial. Daily Telegraph, 22/06/2007...75
ANEXO 07: Morreram 104 crianças yanomami em 2004......................................................78
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INTRODUÇÃO
Convive-se atualmente tanto com significativo aumento da expectativa de vida e a diminuição
da mortalidade infantil quanto com o aumento da concentração de renda, exclusão social e
pobreza. A Bioética é fruto direto dessas inquietações, das grandes transformações sociais e
das mudanças na vida pública, de lutas sociais como as protagonizadas pela população
indígena, feminina e afro-descendente em busca de direitos civis1. O respeito à
vulnerabilidade e a preservação da integridade da pessoa humana estão na raiz da Bioética, a
partir da luta pelos Direitos Humanos fundamentais e universais.
O objetivo desse trabalho é apresentar uma contribuição ao debate acerca a partir da Bioética,
dos documentos nacionais e internacionais relativos aos Direitos Humanos, Direitos do Povos
Indígenas e Direitos da Criança e dos discursos indígenas acerca do assunto. Especificamente,
visa construir alternativas de intervenções oportunas e dialogadas que promovam o encontro
entre as necessidades dos povos indígenas – em especial, das mulheres e crianças indígenas –
a partir da perspectiva da universalidade dos Direitos Humanos, e de sua aplicação a sujeitos
históricos, concretos, que têm tido a sua voz calada e a sua dignidade vilipendiada pela
negação do acesso pleno a serviços de saúde, por desigualdade e vulnerabilidade social – o
caso das mulheres e crianças indígenas atingidas pelo sofrimento gerado pela naturalização de
uma situação histórica, que se dá pela falta de perspectiva de qualidade de vida para as
crianças nascidas nas circunstâncias específicas mencionadas anteriormente (nascimento de
gêmeos, portadores de necessidades especiais, morte de um dos genitores etc.). O infanticídio
e morte de crianças não é um ato pacífico para essas mães, é circunstância de intenso
sofrimento, e não fruto de crueldade ou descaso para com as crianças. Buscamos com esse
trabalho contribuir para que essa situação tenha um fim que inclua o respeito, a valorização
das mulheres, a proteção à vida das crianças indígenas acima de tudo.
O referencial teórico desse trabalho é a Bioética Intervencionista, entendida como uma
variante do principialismo (conforme Bernardo Kucinski, 2006,21 ), que amplia as
possibilidades de atuação em direção a uma Bioética que efetivamente proteja os Direitos
1 CALLAHAN, em REICH, W. T. (ed.). Encyclopedia of Bioethics. Rev. ed. New York: Macmillan, 1995. 5
volumes
9
Humanos dos mais vulneráveis, a partir de intervenções dialogadas. Afirma-se a possibilidade
de diálogo entre as diferentes culturas, e da construção de soluções que passem pela
preservação da vida da criança indígena em sua plenitude (ou seja, com qualidade e
significado) e também pelo respeito à cultura. Considera-se, como Hans Jonas,
que as
crianças de todas as culturas expressam a vulnerabilidade da condição humana, passando o
futuro de uma comunidade pela proteção de suas frágeis vidas. Entende-se que os Direitos
Humanos não são prerrogativa de algumas comunidades, mas são importantes instrumentos
de promoção de igualdade e dignidade de todas as pessoas, e que o desafio é exatamente
passar da consideração de um sujeito abstrato à efetiva proteção de sujeitos históricos,
concretos, com suas peculiaridades e culturas. Essa perspectiva é apresentada no capítulo um,
em que se discute quais a possibilidades de intervenção numa perspectiva de Bioética e
Direitos Humanos nos casos de infanticídio e morte intencional de crianças em grupos
indígenas.
O capítulo dois resulta de uma revisão bibliográfica sistemática em livros, periódicos e anais
de eventos publicados no período entre 2000 e uma historicização da ocorrência o infanticídio
nas no Brasil. Em seguida, o capítul três procura delinear o debate histórico e moral sobre o
infanticídio na Bioética, desde as diversas definições de infanticídio, as práticas similares
(feticídio, filicídio), as ocorrências em outras culturas e as diferentes visões da Bioética a
respeito do assunto. No capítulo quatro procurou-se debater o significado da universalidade
dos Direitos Humanos e sua validade,considerando-se a diversidade cultural dos povos, suas
tradições, o relativismo cultural, a tolerância, o pluralismo e sua relações com a Bioética.
Procedeu-se a um exame da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e de
como ela enfrenta os desafios para uma Bioética de alcance global que respeite as diferenças
culturais, além de outros documentos nacionais e internacionais relativos aos direitos das
crianças e direitos indígenas. Por fim, defende-se uma ação de intervenção dialogada e
respeitosa à pluralidade e diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros, com especial
ênfase ao acesso à informação e à saúde, preservando acima de tudo a vida das crianças
indígenas.
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CAPÍTULO 01 - BIOÉTICA E POSSIBILIDADES DE AÇÃO EM CASOS DE
INFANTICÍDIO E MORTE INTENCIONAL DE CRIANÇAS
Este trabalho toma por base a corrente intervencionista da Bioética, desenvolvida
principalmente no Brasil a partir de considerações sobre a insuficiência da bioética
principialista em atender aos e conflitos específicos do nosso contexto. Essa corrente foi
proposta por Volnei Garrafa e Dora Porto, bioeticistas brasileiros, durante o Sexto Congresso
Mundial de Bioética, em Brasília (2002), e visa uma Bioética que forneça mecanismos de
mudanças sociais efetivas, a Bioética de Intervenção (GARRAFA & PORTO, 2002). Essa
corrente parte da distinção entre situações emergentes (clonagem, diagnóstico genético) e
persistentes (pobreza, concentração de poder, marginalização), e entre países centrais (Estados
Unidos e Europa) e periféricos (África, América Latina, Caribe e boa parte da Ásia). Volnei
Garrafa e Dora Porto propõem “um novo arcabouço crítico e epistemológico, dialeticamente
engajado
às
necessidades
das
maiorias
populacionais
excluídas
do
processo
desenvolvimentista” (2002:02). Há uma coincidência entre os países economicamente centrais
e os que produzem a maior parte do material em Bioética, e as diferença sociais e econômicas
entre esses países e os países periféricos se reflete na produção em Bioética, mais voltada às
preocupações dos países do primeiro grupo. O hemisfério sul, com sua realidade, necessita de
uma Bioética que leve me conta as profundas disparidades sociais e a vulnerabilidade de
grande parcela de sua população. Novas categorias são incorporadas à Bioética de
Intervenção: justiça e eqüidade, solidariedade, participação, transformação. Isso se fez
necessário porque, à medida em que a Bioética se consolidou em institutos e centros de
pesquisa a partir dos Estados Unidos e da Europa, prevaleceram como categorias de análise
as situações emergentes em decorrência do avanço tecnológico (terapia gênica, reprodução
assistida, transplantes). Em segundo plano ficaram os países periféricos, as situações
persistentes (desigualdade social e econômica, étnica e de gênero, pobreza, saneamento
básico). Os conflitos morais que originaram a Bioética pouco a pouco foram despolitizados,
com a Bioética assumindo ares de ferramenta metodológica neutra para a leitura e
interpretação de conflitos (GARRAFA & PORTO, 2002: 6-15). Esse modelo de
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institucionalização da Bioética é visto pela Bioética de Intervenção como limitada à
normatização das atividades clínicas e de pesquisa de cientistas e profissionais de saúde,
resguardando direitos individuais. Sève vê em tal abordagem a redução da Bioética a uma
doutrina, na medida em que apenas aspiraria a uma gestão do estado de coisas existentes, sem
colocá-las em questão, como reclama o debate cívico (1994:407). A Bioética Intervencionista
é bastante crítica a esse modelo teórico, preponderante nos países centrais (Estados Unidos e
Europa), considerando que gera uma progressiva biologização e despolitização, confundido-se
muitas vezes com um treinamento deontológico a ser incluído na formação profissional de
cientistas, voltado à produção de leis e resoluções por parte dos Estados e organismos de
classe. Garrafa (2006: 04) reconhece a utilidade e praticidade do principialismo para a análise
de situações clínicas, mas vê limitações quando se consideram situações como a que vamos
analisar, como a prática cultural de infanticídio e morte de crianças em aldeias indígenas do
Brasil e a universalidade dos Direitos Humanos, pois o sujeito universal e abstrato do
principialismo, dotado de igualdade, dignidade e autonomia, herança do iluminismo, não
encontra eco em situações reais, em que pessoas são vulnerabilizadas e excluídas do acesso a
recursos básicos de saúde, enquanto outras, mediante pagamento, exercem a autonomia de
escolher qual, onde, como e com que ter acesso a esses recursos e muito mais. O sujeito com
o qual a Bioética d Intervenção lida é o sujeito concreto, “uma totalidade somática na qual
estão articuladas as dimensões física e psíquica, que se manifestam de maneira integrada nas
inter-relações sociais e nas relações com o meio” (Garrafa, 2005:06) . Um sujeito histórico,
inserido em uma situação desigual de distribuição de poder, Nesse processo, que fortalece
certos grupos em detrimento de outros, a Bioética de Intervenção opta por ficar ao lado dos
historicamente mais frágeis da sociedade (GARRAFA & PORTO, 2002: 03), dos
vulnerabilizados. Não há lugar para a neutralidade, para a gestão do status quo mencionada
por Sève. Assim, a Bioética Intervencionista busca:
a) a análise contextualizada de conflitos que exijam flexibilidade para uma
determinada adequação cultural; b) a abordagem de macro problemas bioéticos
persistentes ou cotidianos enfrentados por grande parte da população de países
com altos índices de exclusão social como o Brasil e seus vizinhos da América
Latina e Caribe2 (GARRAFA, 2005:04)
Garrafa, em sua Bioética de Intervenção, propõe que a Bioética considere o alijamento das
2 Tradução própria, livre
12
classes sociais diante da concentração de poder, a vulnerabilização de grandes parcelas da
sociedade não por questões fisiológicas mas sociais. O autor aponta ainda a relação dialética
entre reflexão e ação, responsabilidade individual e coletiva, pelo impacto que as escolhas dos
indivíduos produzem na realidade.
Dessa forma, re-significa o conceito de Autonomia
vinculando-o à responsabilidade existencial frente à sociedade e à natureza, a
responsabilidade compartilhada da qual fala Sève, levando os sujeitos vulneráveis, sem voz
no cenário histórico, a desenvolverem sua autonomia através de um processo de inserção
social.
A Bioética Intervencionista incorpora como essencial a categoria de Direitos Humanos
universais, e argumenta pelo reconhecimento do direito coletivo à igualdade e pelo direito
eqüidade de indivíduos e grupos sociais, buscando acesso real aos direitos humanos e a
construção da cidadania expandida. Afinal, a partir da expansão da Bioética para os países em
desenvolvimento a vulnerabilidade social enraizada nesses países, os macro-problemas de
saúde pública e o acesso à justiça é precário, “tornou-se indispensável que a Bioética deixasse
de ser um instrumento neutral de leitura e interpretação de conflitos e assumisse uma visão
mais crítica, politizada, e interventiva, capaz de contribuir com a discussão, o
aprimoramento e a consolidação dos direitos humanos e da justiça social”(PAGANI et al,
2007:196)
Da documentação internacional, parte-se da análise da Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos da UNESCO, em sua última versão de 2005, e as possibilidades de
intervenção a partir do diálogo contidas na carta. Também a Convenção nº 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT (Organização Internacional do
Trabalho), regulamentada pelo Decreto 5.051/2004 ao ser ratificado pelo Brasil, e que
assegura povos indígenas o direito de manterem seus próprios direitos e instituições quando
compatíveis com os direitos fundamentais legalmente definidos, tanto nacional quanto
internacionalmente.
As enciclopédias de Bioética, em suas versões disponíveis, também são fonte teórica
importante, na medida em que registram as diversas mudanças no interior da Bioética e a
incorporação de novos elementos, como questões sobre diversidade cultural.
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No que tange a considerações sobre vulnerabilidade, tomou-se principalmente a obra de Hans
Jonas como referência fundamental, pela forma com o esmiúça o problema da
responsabilidade com as gerações futuras e a vulnerabilidade humana, da qual as crianças são
a forma mais expressiva e eloqüente.
Pressupõe-se o diálogo como condição para a intervenção, a partir da leitura de Habermas e
da ética discursiva, na qual a diferença é tida como fator importante e enriquecedor do debate
ético, e não impeditivo.
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CAPÍTULO 02 - INFANTICÍDIO E MORTE INTENCIONAL DE CRIANÇAS ENTRE
GRUPOS INDÍGENAS BRASILEIROS
A terceira edição da Encyclopedia of Bioethics define infanticídio como a prática de morte
intencional de recém-nascidos humanos (1995, p. 1236). Etimologicamente, o termo se
origina da palavra latina infante, cujo significado é não-falante – daí a distinção entre
infanticídio, aborto (a morte do feto ainda no ventre da mãe) e felicídio, que a Encyclopedia
of Bioethics define como morte de crianças maduras o suficiente para falar e o dicionário
Michaelis, de português,
registra apenas como ato de matar o(a) filho(a) – significado
etimologicamente mais próximo do original. Ou seja, a rigor, a morte de crianças maiores
tecnicamente não é infanticídio, mas filicídio (se cometido pelos genitores) ou simplesmente
homicídio.
O infanticídio é uma antiga prática na história humana: a morte intencional de recém-nascidos
tem ocorrido por diversos motivos, identificados pela Encyclopedia of Bioethics (1995),
como: doença terminal; experiência insuportável de dor ou sofrimento; nascimento com
anomalias inaceitáveis; gênero, raça, classe maternidade ou paternidade consideradas erradas;
ameaças políticas e/ou econômicas; sacrifícios em rituais religiosos; embaraços, frustração ou
inconveniente Os brasileiros Feitosa, Tardivo e Carvalho identificam a ocorrência do
infanticídio tanto como rito sacrificial quanto como mecanismo de “controle de natalidade e
mesmo como mecanismo de adaptabilidade da vida humana às condições adversas de
sobrevivência em determinados ambientes hostis, sobretudo na selva” (2006, p. 04).
A prática de infanticídio ocorre entre diversos povos, como os gregos da Antigüidade, os
indianos, os romanos, os povos indígenas das Américas e outros. O bioeticista Peter Singer
registra uma série de casos de infanticídio e suas causas no livro Practical Ethics. Post (1988)
cita alguns desses casos de infanticídio em várias partes do mundo: entre os povos esquimós
Tetsilik (que o fazem como forma de controle populacional, para terem equilíbrio entre o
número de crianças e o de caçadores, e portanto entre comida e demanda); entre os !Kung do
Kalahari, o motivo é também a dificuldade de alimentar a todos; e os Tikopia, da Polinésia,
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que também decidem pelo infanticídio a partir da comparação entre o suprimento de comida e
o tamanho da família; japoneses praticaram o infanticídio até o século XIX.
Margaret G. Spinelli, no livro “Infanticide: Psychosocial and Legal Perspectives on Mothers
who Kill” (2002), identifica cinco categorias de infanticídio: neonaticídio; infanticídio
assistido/coagido; infanticídio relacionado a negligência; infanticídio relacionado a abuso;
infanticídio relacionado à moléstia mental das mães. Os casos de infanticídio praticados entre
grupos indígenas brasileiros parecem ser majoritariamente
ligados ao segundo tipo,
infanticídio assistido/coagido: em geral, são fruto de coerção social, e algumas vezes envolve
a participação de pais, avós, tios e outros parentes e membros da comunidade, e tendem a
alimentar um ciclo de abusos em que mulheres se vêm inaptas a proteger a si mesmas e a seus
filhos. Lígia Simonian (2001), falando sobre o significado do infanticídio entre os
Amundawa e Urueu-Wau-Wau, destaca a contradição vivida pelas mulheres que se vêm no
encargo de manter e afirmar a tradição de seus povos, o que envolve o dever de matar seus
filhos que não se enquadram no padrão aceito em suas tribos, e nesse processo reproduzem a
ideologia de suas culturas em relação aos papéis femininos. Para suas culturas, matar seus
filhos que estejam foram do padrão aceitável é reafirmar suas identidades como mulheres
Amundawa e Urueu-Wau-Wau, o que significa reproduzir a ideologia de suas culturas em
relação ao feminino – são culturalmente, socialmente coagidas a agir dessa forma para afirmar
seu pertencimento e sua identidade. Ao mesmo tempo, vivem a contradição de afirmar suas
identidades étnicas para a sociedade externa, de não se deixarem assimilar – o que envolver
reafirmar suas culturas e suas tradições, inclusive de infanticídio. Essas mulheres vivem um
processo de deterioração psicológica devido a doloridos processos sociais de exploração, a
dificuldade do acesso à informação e à saúde. O resultado é sintetizado na fala de Rita Segato
(2001, p. 09): “Esse costume [o infanticídio] produz grande sofrimento na mãe, sendo esta,
portanto, também vítima da violência desta prática que, contudo, é uma das tradições do
grupo”.
Essa coerção social que leva mães a enterrarem seus filhos por força da tradição, e o
sofrimento a que são expostas, é visível na fala de Kamiru Kamayurá, mãe adotiva de Amalé,
um sobrevivente. Ela narra o processo pelo qual passam as mulheres de sua aldeia ao
vivenciarem situações em que a criança que geram não é aceita por motivos de tradição
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cultural, ao mesmo tempo em que registra sua não aceitação desse processo e sua luta para
resistir desenterrando crianças:
Eu já vi enterrar muita criança no Xingu. Já vi isso acontecer muitas vezes. Eu acho
isso errado porque eu gosto de criança. Eu, por exemplo, preciso de mais crianças,
pois eu só tenho dois filhos. Ao invés de enterrar, elas poderiam dar para mim. Às
vezes eu tento tirar do buraco, mas é difícil. Às vezes a mãe quer a criança, mas a
família dela não deixa. É muito difícil. Até hoje eu só consegui desenterrar um com
vida, o Amalé. A mãe dele era solteira, ela chorou muito, mas o pai dela enterrou ele.
Ele estava chorando dentro do buraco, aí minhas parentes foram me chamar. Eu
entrei na casa, perguntei onde ele estava enterrado e tirei ele do buraco. Saiu sangue
da boca e do nariz dele, mas ele viveu. Ele está doente, mas eu decidi criá-lo. Agora
ele é meu filho. É um menino bonito, não é cachorro. É errado enterrar. eve três
crianças que eu tentei salvar, mas não deu tempo. Uma nasceu de noite e eu não vi.
A minha tia também queria essa criança, gostava dela, mas quando chegou lá a mãe
dela já tinha quebrado o pescoço do bebê. Quebraram o pescoço depois enterraram.
A outra eu ia tirar do buraco, não deu tempo porque eu estava do outro lado, tirando
mandioca. Eu estava trabalhando e não vi. Disseram que ele também estava
chorando dentro do buraco. Minha outra prima, a mãe do Mahuri, enterrou as cinco
crianças que nasceram antes dele. Ela era solteira, por isso tinha que enterrar. O
funcionário salvou o Mahuri porque ficou com pena, é um menino muito bonito, já
está grande. A mãe dele viu ele em dezembro e achou ele bonito. Eu mesma não
gosto que enterre, acho errado. Criança não é cachorro.
Nós temos medo de nascer gêmeos, trigêmeos. Dizem que quando um pajé faz
feitiço, podem nascer até sete crianças. Por isso as mães têm medo. Mas eu acho
errado matar. Eu já falei isso para as mulheres de lá. A criança fica chorando dentro
do buraco, criança pequena custa muito a morrer. Se eu ver no buraco eu tiro. (Em:
SUZUKI, 2007, P. 02)
A fala de Kamiru transparece a luta interna pela qual passam as mulheres kamayurás que de
alguma forma não correspondem ao ideal proposto pelo seu grupo – principalmente mulheres
solteiras que engravidam. A coerção social, aqui, é exercida pela própria família, representada
pela figura do pai dessas mulheres, que a despeito de suas lágrimas enterram os filhos que
nascem de relações não consagradas pela tradição, relações não permitidas. São portanto
mulheres em processo interno de sofrimento, que se inserem no mesmo ciclo de abusos que
seus filhos, mulheres que se vêm incapacitadas de reagir. Mas não apenas elas: Aisanan Paltu
Kamaiurá também fala da dor e do sofrimento pelo qual passaram ainda passam por ter
perdido um filho morto por ser gêmeo, e contra a vontade do casal, em audiência pública
sobre o infanticídio em áreas indígenas, relata como perdeu um de seus filhos contra a sua
vontade:
... Na hora em que a criança nasceu, eu levei um choque, fiquei com vergonha de
minha comunidade. O que meu pai fez? Ele me acalmou. Não foi só comigo que
aconteceu isso. No Xingu já aconteceu com várias etnias — no Alto, no Médio e no
Baixo Xingu. Meu pai disse: “Esse é o normal. Seus 2 filhos não vão ser
enterrados. Vou lá, vou conversar com a mãe, o pai. Eles vão segurar”. Mas outros
já haviam sido enterrados, porque isso faz parte da cultura. Mas hoje estão mudando,
porque, como disse, há poucas pessoas. Por isso, hoje estão criando essas crianças.
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A coerção social da qual fala Spinelli também aparece aqui, assim como o processo de
perpetuação de uma situação de sofrimento que vitimiza a mãe, mas não apenas ela, como o
mesmo Paltu relata:
Esse meu filho era gêmeo, tinha dois. Eles enterraram o outro. A enfermeira não me
avisou que ela tinha gêmeos.... Aí, depois que nasceu, a pessoa veio falar prá mim
que eram duas crianças.... me avisaram que iam enterrar as duas. Aí eu falei que não,
que eu precisava pegar pelo menos uma delas. Mas a família não queria que eu
pegasse nem uma das crianças. Eu insisti e aí meu pai foi lá para segurar uma das
crianças. Eles pegaram uma e enterraram a outra. Hoje a criança está aqui comigo, já
tem sete meses, tá gordinho. Quando eles enterram criança, o pai e a mãe sentem
falta. Como é meu caso mesmo. Até hoje eu não esqueço ainda. Porque eu estou
vendo o menino, o crescimento dele, aí eu penso no outro também, poxa! Se eu
tivesse alguém que me ajudasse, eu poderia criar as duas crianças... eu falo isso. A
mãe mesmo falou prá mim outro dia “Poxa! O pessoal enterrou nosso filho, agora
nós só estamos com um.” É muito triste, a gente não consegue esquecer. (em:
SUZUKI, 2007, p. 12)
No Brasil, encontram-se registros documentados de infanticídio entre grupos Kamayurá
(Pagliaro e Junqueira, sem data), Suyá (Pagliaro et al, 2007), Yanomami (Early e Peters,
2000), Suruwahá (Feitosa, Tardivo e Carvalho, 2006), Kuikuro (Freitas, Freitas e Santos,
2005), Amundawa e Urueu-Wau-Wau (Simonian, 2001), dentre outros. Entre os Yanomami, a
Funasa (órgão responsável pelos programas de saúde indígena), de acordo com declarações
registradas pelo jornal Folha de boa Vista em 24 de outubro de 2007, feitas pelo então
coordenador da Funasa, Ramiro Teixeira: “... na avaliação dos indicadores de mortalidade
infantil, por exemplo, tomando como base os últimos cinco anos foi verificado que os
coeficientes mantêm um equilíbrio constante, sendo que a maior causa da mortalidade
infantil vem da própria cultura yanomami, com o infanticídio”. (2007)
A morte intencional de bebês (infanticídio) e de crianças corre em casos de gravidezes muito
próximas, crianças não saudáveis, preferência por um gênero, portadores de necessidades
especiais, morte da mãe, nascimento de gêmeos, mãe solteira, pai desconhecido ou de outra
etnia. E não são mortos apenas bebês recém-nascidos, mas também crianças e até
adolescentes. Niawi e Hakani, por exemplo, foram enterrados já com cinco e dois anos,
respectivamente, enquanto Amalé e Edson Bakairi sofreram tentativas de morte ao nascerem.
Entre os Suruwahá e Yanomami a vida tem um significado socialmente construído, e
considera-se que quem nasce com deficiência física ou mental, ou sem um pai que a proteja
18
(no caso de filhos de mães solteiras ou viúvas) não teria condições de viver de acordo com a
definição social de vida daqueles povos, pois seriam impossibilitados de caçar, pescar, plantar
e se locomover com os demais membros do grupo, constituindo um peso para a sociedade. É
o caso de Niwai, menino suruwahá que foi enterrado vivo aos cinco anos por apresentar atraso
no desenvolvimento e ter perdido os pais, que se suicidaram por se negarem a matá-lo.
Muwaji Suruwahá, viúva da tribo que hoje luta também pela vida de sua filha Iganani
(portadora de paralisia cerebral), narra seu sentimento de impotência frente a decisão do
grupo de enterrar Niwai: “Quando Niawi foi enterrado vivo, eu fiquei paralisada do lado do
túmulo. Fiquei ali por muito tempo, ouvindo ele chorar dentro do buraco - eu senti muita
raiva” (Em: SUZUKI, 2007, p. 08). Niawi, que não se desenvolvia como as outras crianças,
para os suruwahás não teria condições de viver conforme a definição cultural de vida que eles
têm. Niawi teria uma vida limitada, constituindo-se num peso para a sua comunidade. Tal vida
não mereceria ser vivida, não seria vida. Os povos do Xingu consideram que ninguém deve
depender do outro para viver. Assim, “a decisão de matar a criança não é da mãe, mas do
grupo social e cultural ao qual ela pertence” (FEITOSA, TARDIVO e CARVALHO, 2006, p.
15). E a definição social de vida, aqui, é intrinsecamente ligada à questão de qualidade de
vida.
O assassinato de gêmeos também se pode se enquadrar nessa categoria. O nascimento de duas
crianças significa trabalho dobrado na busca de alimentação e na proteção frente aos perigos
da floresta, dificultando a vida dos pais e da comunidade, além de ter um significado místico
negativo para alguns grupos, como os Kamayurá. Para muitos povos, a escassez de terra para
o plantio é fator desencadeador do infanticídio como forma de controle populacional,e da
morte de gêmeos – como no caso de Aisanan Paltu Kamayurá.
Má-formação congênita é o caso das crianças suruwahás Iganani e Tititu, cujos casos foram
relatados como uso de pseudônimos na monografia“Bioética, cultura e infanticídio em
comunidades indígenas brasileiras: o caso suruahá", de Saulo Feitosa, Carla Tardivo e
Samuel de Carvalho (que analisaremos adiante), além de Hakani, sobrevivente cuja história é
retratada no documentário “Hakani, enterrada viva: a história de uma sobrevivente”, dirigido
e produzido por David L. Cunningham.
19
A mídia também tem divulgado casos de infanticídio entre comunidades indígenas brasileiras,
e recentemente tivemos a produção de uma cartilha (Quebrando o Silêncio, de 2007,
organizada por Márcia Suzuki, etnolingüista e mãe adotiva de uma sobrevivente de
infanticídio e líder da ong Atiní – Voz pela Vida, que luta pela defesa da vida de crianças
indígenas sob risco de infanticídio e morte intencional), o documentário já citado (Hakani –
enterrada viva: a história de uma sobrevivente e vários artigos na imprensa, como: Girl
survived tribe's custom of live baby burial. (de Jemimah Wright, Daily Telegraph de
22/06/2007, Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena (de Ana Paula Boni,
Folha de São Paulo de 06/04/2008), O garoto índio que foi enterrado vivo (de Hugo
Marques, revista IstoÉ de 20/02/2008), Crimes na floresta (de Leonardo Coutinho, revista
Veja de 15/08/2007), Bebês indígenas marcados para morrer (de Marcelo Santos, na revista
Problemas Brasileiros de maio/junho de 2007). Há repercussão internacional: a reportagem
da revista IstoÉ foi traduzida para o inglês (The Indian Child who was Buried Alive, tradução
de Matthew Cullinan Hoffman para o LifeSiteNews) e polonês (Barbarzyńskie zwyczaje
brazylijskich Indian, traduzido a partir do LifeSiteNews).
Enquanto prática cultural, o infanticídio e a morte de crianças pode ser entendido - mas seu
uso com o fim de justificar a não intervenção é controverso. A Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos, artigo 12, diz que o pluralismo não pode ser invocado para
infringir os Direitos Humanos e a dignidade. Mas como definir o significado de dignidade
humana e aplicá-lo a populações que não participaram do processo de discussão? Por outro
lado, é possível ficar calado quando crianças, recém-nascidos e mesmo adolescentes são
mortos por a pancadas, flechadas, enforcamento, sufocamento, privadas de alimentação e de
água, enterradas vivas? Post, em um artigo em que analisa os casos apresentados por Peter
Singer e Helga Kuhse argumenta contra a justificativa cultural para o infanticídio, de uma
forma simples e clara: a existência de um comportamento numa cultura não é argumento que
possa ser usado contra ou a favor desse comportamento. O infanticídio ocorre, sim, mas
embora não se deve condenar a prática em si, também deve-se julgá-lo como moralmente
errado, e esforçar-se para que suas causas seja erradicadas.
Esse é a linha desse trabalho: defender a intervenção em situações de infanticídio e morte de
crianças por motivos culturais sem condenar as culturas que o fazem, em si, mas buscando
também entender as causas que levam ao infanticídio para que a prática deixe de ser uma
20
opção para os pais e mães indígenas. Assim, defende-se o acesso pleno aos recursos de saúde,
o amparo legal do Estado às crianças sob risco e àqueles que buscam protegê-las a despeito
das tradições. Inclusive, enfatiza-se que essas intervenções dialogadas atendem mesmo ao
anseio de grupos indígenas, cansados de se verem pressionados a manter tradições para as
quais não vêm mais sentido, e que buscam, isto sim, assistência integral à saúde de seus filhos
e regularização de suas terras para que tenham condições de alimentá-los. Aisanan Paltu
Kamayurá é pontual no diagnóstico da situação que leva ao infanticídio, apresentado por ele
em fala durante a audiência sobre o infanticídio em áreas indígenas, no Congresso Nacional:
Antigamente, quando o pai não queria assumir a criança, ela era enterrada. Hoje não.
Estamos conversando com a nossa indiazinha sobre isso [sic] O que estamos
querendo? Hoje existe a FUNASA, que cuida da saúde indígena. Na área onde
moro, convivo com meu pai. Eles não estão trabalhando direito. Já sofri muito nas
mãos dos funcionários contratados. Acho que não é da FUNASA, são contratados
como enfermeiras. Por essas pessoas que meu filho foi enterrado. Tinha 2 filhos. O
pessoal da FUNASA não acompanhou a gestação de minha esposa. Eu mesmo que
fui descobrindo quando estranhei a barriga da minha esposa. Eu mesmo peguei, senti
e falei que eram gêmeos. Procurei o pessoal da FUNASA que trabalhava conosco.
Acho que essa mulher que acompanhou a gestação da minha esposa não está mais lá
conosco. Ela falou para mim que ela estava normal. Procurei outra pessoa, que disse
a mesma coisa. Na hora em que a criança nasceu, eu levei um choque.
Aisanan Paltu Kamayurá atribui ao descaso dos profissionais de saúde que trabalhavam e sua
aldeia a morte de seu filho e que não atenderam corretamente à sua esposa, não deram
ouvidos à sua suspeita de gravidez gemelar, não atenderam conforme regras mínimas de
atenção, mas deram continuidade ao processo de vulnerabilização social indígena.
As nossas crianças estão entre os mais vulneráveis dentre nós: ao contrário de muitos outros
animais, nossos filhos e filhas nascem completamente dependentes de cuidados externos para
sua sobrevivência, sob inteira responsabilidade dos adultos que a cercam. Frágeis e
vulneráveis, chegam ao mundo sem ter pedido para vir, entretanto carregam em si o
significado do recomeço, de continuidade da vida humana, da história de seus pais, sua
cultura, seu grupo étnico, sua aldeia, seu fazer e refazer o mundo. Uma continuidade que não
é repetição: é também mudança, renovação. Cada criança carrega tal fragilidade e tal
esperança que Hans Jonas faz da necessidade de cuidados que ela requer as bases da ética: “...
a responsabilidade parental.., do ponto de vista temporal e da sua essência constitui o
21
arquétipo de qualquer responsabilidade... Seu objeto é a criança como um todo e todas as
suas possibilidades, e não só suas carências imediatas” ( 2006, p.180). Assim, a
responsabilidade universal para com as crianças torna-se “o paradigma de toda a
responsabilidade, que deve estender-se a outros horizontes de responsabilidade, diante do
frágil e daquilo que precisa ser preservado para que a vida possa continuar indefinidamente”
(ZANCANARO, 1998, p. 151). Proteger a integridade física das crianças é o primeiro passo
para a proteção da história humana, com toda a sua diversidade.
Há quem argumente que nenhuma mudança deve ser permitida em culturas indígenas,
consideradas frágeis e vulneráveis, e que devem ser protegidas e preservadas da forma em que
se encontram . Entretanto, muitos desses grupos estão em contato com o mundo externo,
ainda que mínimo, recebendo assistência da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e da
FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), que atende exclusivamente áreas indígenas.
Exames, campanhas de vacinação, assistência pré-natal e mesmo partos são realizados por
profissionais de saúde, e em alguns casos de necessidade de procedimentos mais complexos
há transferência de pessoas indígenas com fins de tratamento e assistência à saúde para
hospitais públicos e/ou a CASAI (Casa do Índio), em Brasília. O infanticídio e a morte de
crianças não é ocorrência desconhecida pelos profissionais de saúde que prestam assistência a
indígenas. Em uma segunda audiência pública sobre infanticídio e morte de crianças em áreas
indígenas realizada na Câmara do Deputados em setembro de 2007, o indígena kamayurá
Paltu - que teve um dos filhos gêmeos morto logo depois do parto, contou que sua mulher
quando grávida procurou atendimento médico pré-natal. Ao verem as evidências de gestação
gemelar, ele e sua mulher pediram ajuda aos profissionais de saúde que a acompanhavam para
que ele tivesse tempo para dialogar e tenta convencer a aldeia a aceitar as duas crianças, ou
buscar uma outra solução que passasse pela preservação da vida da criança. Paltu Kamayurá
não foi ouvido, teve que retornar com sua mulher e seu filhos gêmeos para a aldeia logo após
o parto, um dos bebê foi morto e ele hoje se pergunta por que não pôde receber auxílio e
salvar a vida de seu filho. Mais ainda, exige ser ouvido.
Crianças são os mais vulneráveis membros de nossa sociedade, e vulnerabilidade é conceito
fundamental em Bioética: a proteção de pessoas vulneráveis contra abusos está na raiz da
Bioética e dos movimentos de defesa dos Direitos Humanos. Todos os seres humanos são
22
vulneráveis em alguma medida, posto que limitados pela mortalidade: o ser humano “...tem o
caráter precário, vulnerável, revogável – o modo peculiar de transitoriedade – de todos os
seres viventes – o que por si só o torna objeto de proteção” (JONAS, 2006, p.175). É essa
vulnerabilidade, portanto, que fundamenta a necessidade e a responsabilidade de proteção,
compartilhada por todos nós. Mostra a todos como parte do ciclo vital da natureza de
nascimento e morte e da batalha pela sobrevivência, sujeitos às necessidades básicas de um
ser vivo, ao ciclo vital de nascimento e morte, sempre necessitados de algo e/ou alguém
externo a para a manutenção da vida, sempre dependentes.
A noção abrange aspectos ontológicos (a respeito da finitude da vida humana), naturais
(fragilidade enquanto participantes da natureza), culturais (fragilidade das tradições e
costumes) e sociais (referente a grupos particulares de pessoas historicamente excluídas). A
vulnerabilidade está relacionada, portanto, à fragilidade humana. Reconhecê-la é encarar
nossa finitude e profunda interdependência que resulta em respeito mútuo, em compartilhar a
responsabilidade pela preservação da vida, da integridade e da dignidade humana em direção
à construção e fortalecimento da esperança que nos faz sujeitos históricos a cada criança que
nasce.
Essa vulnerabilidade, em alguns casos, se manifesta de forma mais acentuada por conta de
suas condições de saúde, portadores de necessidades especiais, que lhes dificulta o exercício
da autodeterminação. O Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução nº 196/96 seção
II.15, define vulnerabilidade como “o estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões
ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida...".
A vulnerabilidade também pode ser aumentada como resultado de relações sociais, políticas e
econômicas desiguais, manifestando-se na relação entre indivíduos e entre grupos, culturas e
etnias, que transformam diferença em desigualdade3. Historicamente populações vulneráveis
têm sido objeto de abuso de poder por parte daqueles que o detêm, sendo a discriminação
étnica, de gênero e cultural uma das principais fontes de injustiças sociais. Vulnerabilidade,
aqui, é entendida como “decorrência de uma relação histórica entre segmentos sociais
3 Conforme: GUIMARÃES, Maria Carolina S. Guimarães & NOVAES, Sylvia Caiuby. “Autonomia
reduzida e vulnerabilidade: liberdade de decisão, diferença e desigualdade/Reduced autonomy and
vulnerability: freedom of decision, and differentiated and unequal treatment”. Em: Bioética, 7(1):21-24,1999
23
diferenciados, onde a diferença entre eles se transforma em desigualdade” (Guimarães e
Novaes, 1999). A vulnerabilidade não é, portanto, necessariamente natural: pode ser
historicamente construída a partir de relações desiguais de poder. A vulnerabilidade pode ser
cumulativa: Maria Carolina S. Guimarães e Sylvia C. Novaes assinalam a posição especial
das sociedades indígenas, “onde a relação estabelecida entre elas e a sociedade nacional
envolvente acaba por gerar desigualdade”4.
4 GUIMARÃES, Maria Carolina S. Guimarães & NOVAES, Sylvia Caiuby “Autonomia reduzida e
vulnerabilidade: liberdade de decisão, diferença e desigualdade/Reduced autonomy and vulnerability:
freedom of decision, and differentiated and unequal treatment. Em: Bioética, 7(1):21-24,1999
24
CAPÍTULO 03 - O DEBATE HISTÓRICO E MORAL SOBRE O INFANTICÍDIO E A
MORTE DE CRIANÇAS
Algumas referências são fundamentais para qualquer trabalho que aborde a ocorrência de
infanticídio e morte de crianças em grupos indígenas brasileiros. A primeira é a monografia
“Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso suruahá", de
Saulo Ferreira Feitosa, Carla Rúbia Florêncio Tardivo e Samuel José de Carvalho, orientada
por Gabriele Cornelli e Volnei Garrafa e defendida no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em
Bioética da Cátedra UNESCO de Bioética da UNB (Universidade de Brasília) em 2006. Os
autores analisam a ocorrência de infanticídio e morte de crianças em grupos indígenas
brasileiros a partir do recorte de um caso específico, ocorrido por volta de setembro de 2005 e
de projeção nacional, em que se evitou a morte de duas meninas Suruwahá, nascidas com
pseudo-hermafroditismo e com retardo no desenvolvimento psicomotor. As duas crianças,
uma com dois anos e outra com um ano e cinco meses, segundo os autores, foram retiradas da
aldeia - cuja localização indicada por eles é o município de Tapauá, no Estado do Amazonas, a
1.228 quilômetros de Manaus por via fluvial (2006:08) - na companhia de familiares para
tratamento médico, tendo sido diagnosticadas pelo Hospital das Clínicas da USP
(Universidade de São Paulo). Ambas são referidas por pseudônimos, Mãy e Yatakaminá.
Foram utilizadas por eles revisão bibliográfica sobre o tema e sua incidência em grupos
indígenas e análise das falas registradas dos participantes da Audiência Pública sobre
Infanticídio Indígena, ocorrida no Congresso Nacional em dezembro de 2005.
Vale frisar também que, de acordo com os autores, “o estudo tem como referência - além do
conteúdo das intervenções obtidas na Audiência Pública, da revisão da literatura sobre o
assunto e da experiência pessoal dos autores...” (2006:04), e uma perspectiva de
engajamento. Um dos autores - Saulo Ferreira Feitosa – pertence ao CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), entidade historicamente ligada às lutas indígenas, pertencente à
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) da Igreja Católica Romana. Os autores
iniciam apresentando as várias motivações para a prática do infanticídio e morte de crianças
nas comunidades indígenas brasileiras, o estranhamento cultural dessa prática quando da
colonização, e o uso de relatos de infanticídio e morte de crianças como justificativa para a
25
discriminação, perseguição e genocídio de diversos povos indígenas, e o processo de
fabricação cultural do corpo humano nesses grupos, passando então ao caso específico das
crianças do povo Suruwahá. Todo o processo de contato externo com o povo Suruwahá - de
alto grau de isolamento - é historicizado, desde quando o grupo foi localizado pela pastoral
indigenista de Lábrea/AM, ligada ao CIMI, a luta pela demarcação e proteção do território
Suruwahá pela FUNAI. Esse contato, embora esporádico, introduziu elementos como
tratamentos médicos não tradicionais e vacinas, que foram somados à rotina do grupo. Nas
palavras dos autores, “após o contato, a equipe desenvolveu um modelo de acompanhamento
à distância, evitando fixar residência na área, diminuindo assim o impacto da interferência
na vida do grupo. Começou a fazer um trabalho de assistência à saúde das pessoas da
comunidade, mantendo uma agenda de vacinação para protegê-los das doenças infectocontagiosas levadas pelas frentes de exploração branca respeitando, contudo, a medicina
tradicional do povo” (2006, p. 08). A chegada de outro grupo também religioso quatro anos
depois, a JOCUM (Jovens com uma Missão) – posteriormente responsabilizado pela retirada
das crianças para tratamento médico com fins de proteger suas vidas, sob risco de morte - é
também pontuada (assim como as diferenças em relação à compreensão e intervenção na
área). Os autores fazem então uma apresentação da situação do povo Suruwahá,
particularmente o papel do suicídio em sua cultura, e uma possível ligação com os casos de
infanticídio. Mencionam ainda, mais à frente, uma tentativa frustrada de evitar um caso de
infanticídio por parte de integrantes do CIMI
...no qual Kroemer e Têre, missionários do Cimi, não só testemunharam como
tentaram evitar que o fato acontecesse...Kroemer... não tendo conseguido demover a
comunidade da determinação de se livrar da criança indesejada, fez uma intervenção
autoritária, justificada pelo desespero sentido ao ouvir o choro do bebê, mesmo
correndo o risco de sofrer violência física. E embora tenham conseguido chegar a ter
a criança sob seus cuidados, ela veio a falecer dias depois (2006, p. 21).
Os autores mencionam que o fracasso da empreitada teria se dado pela inexistência de diálogo
efetivo entre as culturas dos missionários que tentaram a intervenção e o povo Suruwahá:
“não houve compreensão de ambos os lados, cada um falando um linguajar incompreensível,
produto de um contexto cultural diferente” (KROEMER, 1994, p. 67 apud Feitosa, Tardivo e
Carvalho, 2006, p. 21). Interessante creditar a falha do processo a um estranhamento do
discurso do outro, e não concernente meramente a idioma, e sim cultural. Os dois lados
participantes desse debate que não se transforma em diálogo se inscrevem em diferentes
formações discursivas, e a tradução entre elas não ocorre, daí o estranhamento.
26
A Audiência Pública sobre o Infanticídio merece atenção especial, com transcrição e análise
das falas dos participantes, na qual os autores apontam ter identificado “duas tendências: a
perspectiva de criminalização da prática cultural do infanticídio e a necessidade de
intervenção na cultura indígena para uma conversão à fé cristã e aos valores da civilização
ocidental” (2006, p. 17). Em seguida, afirmam sua convicção de que “a criminalização de
uma prática cultural tradicional dos povos indígenas, nada mais é do que a aplicação de
antigos decretos dos tempos da Colônia e do Império nos dias de hoje” (2006, p. 18).
Segundo eles, o debate teria excluído os protagonistas e os vários setores implicados no
assunto (2006, p. 18). A seguir, tecem considerações sobre o infanticídio tomando por base em
especial o autor Paul Singer. Por fim, apresentam o que consideram como bom e bem
sucedido exemplo de intervenção: o caso dos Tapirapé, ocorrido na década de 50, no qual
freiras católicas do grupo das Irmãzinhas de Jesus
...assumiram ...a perspectiva da missão calada... identificaram a existência de um
rigoroso planejamento familiar orientado pelo controle de natalidade, sendo o
infanticídio o meio utilizado para efetivá-lo...Começaram a se preocupar com a
possibilidade de extinção do povo, e aos poucos foram criando as condições de
discutir com a comunidade sobre esse risco. Mas, a discussão só tornou-se possível
depois que os Tapirapé identificaram as missionárias como sendo suas aliadas na
luta contra a opressão causada por segmentos da sociedade à qual elas pertenciam.
Assim sendo, o infanticídio passou a ser discutido dentro de uma agenda onde se
inseriam outros temas importantes para o povo: demarcação das suas terras,
expulsão dos invasores de seu território, atenção à saúde das pessoas, etc. ... Passado
algum tempo, a prática do infanticídio foi abandonada, os Tapirapé conseguiram a
demarcação de suas terras e a população passou a crescer. Atualmente são cerca de
500 pessoas e as Irmãzinhas permanecem com eles (2006, p. 31)
Essa intervenção é considerada bem-sucedida pelos autores tanto pelo viés antropológico
quanto pelo bioético, e colocam que para a Bioética intervencionista o sucesso estaria no
diálogo, e não no evitar o infanticídio em si:
Em nenhum momento, todavia, do ponto de vista bioético intervencionista, seria
correto considerar o abandono da prática do infanticídio em si mesmo como um
sucesso. O sucesso, neste caso, é o da realização de um diálogo entre estranhos
morais em condições de respeito profundo da cultura do outro, e, de maneira
especial, de proteção da vulnerabilidade da cultura indígena, frente à cultura
dominante. De modo algum, é possível considerar como bioeticamente aceitável, em
perspectiva intervencionista e dialógica, a tentativa autoritária de impor aos
Suruwahá uma visão sobre o infanticídio, como aquela religiosa cristã, que motivou
a conseqüente retirada da comunidade, dos indivíduos marcados socialmente para
morrer. Da mesma forma, é inaceitável qualquer tentativa de criminalização da
prática do infanticídio naquele contexto cultural. (2006, p. 33)
27
Por fim, concluem que “ao decidir por um infanticídio, os Suruahá estão tomando uma
decisão ética.. trata-se de uma atitude responsável e coerente. Um gesto de fidelidade à
cultura” (2006, p. 34) a ser respeitado e que não deve sofrer intervenção que vise
exclusivamente a proteção das crianças pelo viés da universalidade dos Direitos Humanos,
que se configuraria uma violação do princípio de soberania desse povo, um desrespeito ao seu
sistema de justiça. Os autores consideram que “os povos indígenas são possuidores de
direitos próprios. E, assim como são reconhecidos os diferentes direitos, também devem ser
reconhecidas as diferentes formas de justiça” (2006:18),
ainda que os documentos
internacionais sobre Direitos Humanos, a legislação nacional e diversos autores apontem para
a necessidade de intervenção nesse tipo de situação, e que pais e mães indígenas tenham tido a
iniciativa de pedir ajuda externa para romper com essa tradição.
Sobre a moralidade do infanticídio, é fundamental o artigo de Stephen G. Post num artigo de
1988, que embora esteja fora do período que se propôs examinar, é importante pela sua
repercussão - tem referências na Encyclopedia of Bioethics (1995)e em outras obras- e pelo
debate que estabelece com Peter Singer a respeito do infanticídio. Post defende “a convicção
de que recém-nascidos têm status moral equivalente ao de adultos, à qual chegaram
gradualmente e meticulosamente aqueles que corretamente viram o erro de ver infantes como
de menor valor moral” (1988, p. 15)5.
O autor apresenta casos de infanticídio em várias culturas, seu uso como método de
planejamento familiar, e concorda com o perigo de se julgar tudo a partir de uma referência
moral absoluta. Entretanto, ele argumenta, julgamentos morais acerca de práticas que violam
princípios morais como não-maleficência, veracidade, beneficência e justiça são feitos por
todos o tempo todo (p. 14). Post alerta para o perigo de se chegar à cegueira moral, pela
exacerbação dos discursos relativistas:
... não é se condenamos ou devemos condenar práticas de outras culturas (bem como
a nossa própria), mas os fundamentos para fazê-lo. Enquanto mente-aberta e
humildade são apropriados, os pontos morais cegos devem ser apontados. De outra
forma, nós poderíamos concluir que nós somente nos tornamos verdadeiramente
5 Tradução livre, própria. No original:
“... the conviction that newborns have moral status equal to that of adults, which has been gradually ans
painstakingly arrived at by those who correctly saw the wrongness of viewing infants as of lesses moral
value.”
28
humanos quando começamos a matar nossas crianças (1988, p. 15)6
Ele continua, mostrando o equívoco de se defender a validade de uma prática cultural
simplesmente por ela ter existido ou ter sido aceita num determinado tempo ou lugar. Afinal, a
existência de uma prática não lhe dá o status de moralmente boa ou não:
O fato de que algumas formas de comportamento tenham existido – ou não - em
outra cultura não é um argumento contra ou favorável a ele... entender os fatores
sociológicos que explicam a prática não deve nos predispor a condená-la. De fato,
não há absolutamente razão porque não devamos julgar o infanticídio como
moralmente errado em nome dos direitos humanos universais e nos esforçar para
erradicar as condições que fazem disso uma tentação. 7 (1988, p. 14)
Post também contesta os argumentos de que o infanticídio e a morte de crianças tenham sido
prática comum no ocidente, e que sejam o mais antigo método de planejamento familiar. Ele
alega inclusive que consistiriam em algumas fontes seletivas e mal representativas da história.
Para Post, a aceitação do infanticídio pela sociedade romana deve ser entendida em meio a
uma diversidade de práticas que desrespeitavam a vida humana, num “...contexto de uma
cadeia de práticas sociais que nós agora condenaríamos”8 (p. 15). Post afirma que o
assassinato de crianças não foi especialmente comum na história, e que há um mal-entendido
em relação à ocorrência dessa prática nas famílias da Antigüidade e Idade Média. Um dos
fatores que teriam contribuído é o termo latino expositio, a forma mais comum de abandono
de crianças no mundo antigo. Ele defende que houve uma tradução equivocada do latim para
o inglês, de expositio para exposure – um falso cognato com sentido diferente, de dano ou
risco. Expositio teria o significado de oferecer ou afastar, e seria melhor traduzido por
exposition, não exposure. Essa pratica significaria muito mais o afastamento da criança, a sua
remoção da responsabilidade da família, não da vida. Ele faz referência a uma análise de
6 Tradução livre, própria. No original:
“... [the question] is not whether we do or should condemn practices of other cultures (as well as our own),
but the grounds for doing so. While open-mindedness and humility are appropriate, moral blind spots might
be pointed out. Otherwise, we might just as well conclude that we only become truly human wen we begin
killing our children”.
7 Tradução livre., própria. No original:
“The fact that some form of behavior has existed – or does not exist - in another culture is not an argument
either for or against it... Understanding he sociological factors that explain a practice should not predispose
us to condone it. Indeed, there I absolutely no reason why we should not judge infanticide as morally wrong
in the name of universal human rights ans endeavor to eradicate the conditions that make it a temptation.”
8 Tradução livre, própria. No original:
“... in the context of a range of societal practices that we would now condemn”
29
Boswell, para quem expositio seria uma alternativa ao infanticídio9. A igreja incorporou a
prática de expositio durante o período medieval, e mesmo em tempos de fome severa mães
sem recursos podiam entregar seus filhos aos monastérios. Ele continua se reportando à
análise de Boswell, para quem se na Antigüidade a morte de deformados ou não saudáveis, no
período medieval, em sua maior parte, isso não foi praticado: cegos, leprosos, crianças com
um braço ou um olho só, crianças com deficiências físicas ou mentais afluíam aos
monastérios10. Post confronta ainda outros relatos historiográficos feitos por eticistas médicos
com relatos feitos por historiadores profissionais, alegado que os relatos profissionais seriam
desconsiderados pela literatura sobre neonatos. E alerta:
Eticistas devem ser muito cuidadosos para não super simplificar ou usar
seletivamente a história. No caso de infanticídio, fontes históricas suspeitas
combinadas com os dados de antropologia cultural podem significativamente
solapar a convicção moral de que o assassinato ativo de crianças é errado. Onde
tem havido exemplos de infanticídio, eles não devem ser nem bases de grandiosos
exageros históricos nem, mais importante, direção moral. 11 (p. 16)
Nessa linha de debater a moralidade de se matar bebês e/ou crianças, não pode faltar a
polêmica contribuição de Peter Singer, com quem Post discute a prática no artigo analisado
acima. Practical Ethics (1993) debate a ocorrência do infanticídio em suas diversas formas e
nas mais variadas culturas, desde a Antigüidade até os dias atuais, sendo uma das poucas
vozes da Bioética a defender essa prática, particularmente no capítulo seis (Taking Life: the
embryo and the fetus). Seu argumento é de que a atitude de proteger a vida das crianças é uma
atitude mais cristã que universal – ele alega que a noção de santidade da vida humana é uma
doutrina cristã - e menciona culturas em que o não matar crianças nascidas doentes ou malformadas. Ele apresenta casos de todos os tempos e lugares: Taiti, Groenlândia, Grécia antiga
(onde os espartanos submetiam as crianças mais fracas, doentes ou deformadas à morte),
dentre outras, nas quais o infanticídio foi muitas vezes a primeira e às vezes a única forma de
9 “...Boswell's analysis shows that expositio was an alternative to infanticide, and played 'an enormously
important role in ancient societies. There are an 'overwhelming' expectation that abandoned infants would be
taken in by someone and raised as slaves, servants or very often as 'free sons and daughters' ”. (p. 15)
10 “Boswell notes that ancient societies might permit killing of 'unhealthy or deformed offspring' but in the
medieval period this, for the most part, was not practiced. Instead, monastic literature reveals 'constant
complaints... about the flood of physically or mentally defective children filling the monasteries: the blind,
the lame, one-eyed, one-armed, leprous or deaf children whom parents could not bear to keep' ”(apud POST,
1988, p. 15)
11 Tradução livre, própria. No original:
“Ethicists must be very careful not to oversimplify or selectively use history. In the case of infanticide,
suspect historical sources combined with the data of cultural anthropology can significantly undermine the
moral conviction that the active killing of infants is wrong. Where there have been instances of infanticide,
they ought to be neither the basis of grandiose historical exaggerations nor, more importantly, moral
direction”
30
controle populacional. Como forma de demonstrar que essa não é uma prática estranha à
cultura ocidental, Singer apresenta também as posições de Platão e Aristóteles -
que
defenderam a morte de bebês mal-formados, e de Sêneca – que pensava ser o infanticídio a
solução humana natural para bebês doentes e mal-formados. Singer defende a possibilidade
de infanticídio em alguns casos, e argumenta que a vida humana - assim como a vida nãohumana - tem diferentes valores,
de acordo com níveis de racionalidade, consciência,
consciência de si e capacidade de sentir. Assim, ele argumenta que
... a vida de um feto... não é de maior que a vida de um animal não-humano em nível
similar de racionalidade, consciência de si, consciência, capacidade de sentir etc. ,
e ... desde que nenhum feto é uma pessoa nenhum feto tem a mesma exigência à
vida que uma pessoa.
... pode-se admitir que que esses argumentos aplicam-se tanto a recém-nascidos
quanto a fetos. Um bebê de uma semana de idade não é um ser racional e autoconsciente, e há muitos animais não-humanos cuja racionalidade, auto-consciência,
consciência, capacidade de sentir, superior a um bebê de uma semana ou um mês de
idade. Se o feto não tem a mesma exigência de vida quanto uma pessoa, parece que
bebês recém-nascidos não a têm, e a vida de um bebê recém-nascido para ele é de
menor valor que a vida de um porco, um cachorro ou um chipanzé é para um animal
não-humano12. (1993, p. 169)
Altamente polêmico, o trecho de Singer gera indignação e ira por parte de defensores dos
direitos das crianças. Para ele, recém-nascidos não são objeto natural da proteção especial
atribuída à humanidade. Adotando uma perspectiva utilitarista, ele argumenta que:
...bebês recém-nascidos não podem ver a si mesmos como seres que podem ou não
podem ter um futuro, e não podem desejar continuar vivendo... um bebê recémnascido não é um ser autônomo, capaz de fazer escolhas, então matar um bebê
recém-nascido não pode violar o princípio do respeito pela autonomia.(1993, p.
171). 13
Mas, mesmo ele vê restrições ao infanticídio, pois admite: “Há alguma plausibilidade na
12 Tradução própria, livre. No original:
...the life of a fetus ...is of no greater value than the life of a nonhuman animal at a similar level of
rationality, self-consciousness, awareness, capacity to fell, etc., and that no fetus is a person no fetus has the
same claim to life as a person
... it must be admitted that these arguments apply to the newborn babies as much as to the fetus. A
week-old baby is not a rational and self-consciousness being, and there are many nonhuman animals whose
rationality, self-consciousness, awareness, capacity to feel, and so on, exceeded that of a human baby a week or
a month old. If the fetus does not have the same claim to life as a person, it appears that the newborn baby does
not either, and the life of a newborn baby is of less value to it than the life of a pig, a dog or a chimpanzee is to
the nonhuman animal.
13 Tradução própria, livre. No original:
“Newborn babies can't see themselves as beings who might or might not have a future, and so have
desire to continue living... a newborn baby is not an autonomous being, capable of making choices, and so to kill
a newborn baby cannot violate the principle of respect for autonomy. “
31
visão de que, para propósitos legais, desde que o nascimento provê a única linha facilmente
entendida, demarcada e clara, a lei do homicídio deve continuar a ser aplicada
imediatamente
após o nascimento” (1993, p. 172)14. Entretanto, ele defende que o
infanticídio seja tolerado em algumas circunstâncias.
Michelle Oberman, em capítulo do livro “Infanticide: Psychosocial and Legal Perspectives
on Mothers who Kill” (2002, 12)) distingue algumas formas de infanticídio, relacionando-os
ao perfil psicológico das mães que o cometem:
1. neonaticídio: ocorre dentro das 14 horas subseqüentes ao parto, e é cometido por
mulheres jovens e por motivos variados, como culturais, religiosos, econômicos,
ambivalência e imaturidade, que não quiseram ou
não conseguiram perseguir
alternativas como aborto ou adoção. Para a altora, a negação da gravidez é algo tão
profundo que elas ignoram, dia a dia, o impedimento do nascimento de seus filhos
2. infanticídio assistido/coagido: envolve mulheres que matam seus filhos em
conjunção com seus parceiros, muitas vezes violentos e abusivos. Tais mulheres estão
em um ciclo de abuso tal que se vêm inaptas para agir e proteger a si mesmas e a seus
filhos.
3. infanticídio relacionado a negligência: ocorre quando bebês morrem em decorrência
de distração ou descuido da mãe. A autora relaciona essa ocorrência à construção
social da maternidade, que em algumas culturas se tornou ocupação de tempo integral,
levando mães a se verem diante do desafio de cuidar de outros filhos, da casa, dos
parentes, tudo ao mesmo tempo, e caminhando para o colapso.
4. infanticídio relacionado a abuso: envolve mulheres cujo abuso de seus filhos os leva
à morte. São ocorrências freqüentes, regulares, que obedecem a um padrão. Em geral,
estão sob forte demanda de tarefas relacionadas ao cuidado com os filhos.
5. infanticídio relacionado a moléstia mental: praticado por mulheres mentalmente
enfermas – cronicamente ou não – e que não se encontram prontas para a maternidade,
14 Tradução própria, livre. No original:
“There is some plausibility in the view that, for legal purposes, since birth provides the only sharp, clear and
easily understood line, the law of homicide should continue apply immediately after birth. “
32
por conta de significativos episódios depressivos ou psicóticos de grande significado
para elas, e mesmo solidão profunda.
O foco, aqui, são as mães que matam seus bebês, e as circunstâncias que as levam a isso. No
caso do trabalho aqui apresentado, é importante notar que nem sempre são as mães as
encarregadas da morte das crianças; há casos de avós, avôs e irmãos que recebem a
incumbência de matar a criança em questão. Entretanto, a tarefa é primordialmente da mãe, e
somente quando esta falha, não pode ou não quer matar a criança é que outros se encarregam
de tal tarefa. Pela classificação de Spinelli, poder-se-ia colocar que são infanticídios
praticados sob coerção, por fatores culturais, e que resultam, sim, de um ciclo de abuso físico
e psicológico. Entender os fatores que levam uma mãe a cometer infanticídio é vital. Segundo
a autora, “a tarefa, ...em uma sociedade civilizada e compassiva, é determinar como lidar de
forma justa com aqueles que matam seus filhos, e de forma mais importante, como mobilizar
todos os nossos recursos para prevenir essas mortes desnecessárias no futuro15”
O livro “Endangered Children: Neonaticide, Infanticide, Filicide”, de Lita Linzer Schwartz e
Natalie Isser, mostra ao quão contraditórias são as práticas do infanticídio ou neonaticídio:
A Despeito da crença de que o naticídio é parte da “natureza humana”
antropologistas também declaram que sociedades primitivas frequentemente
mostram atitudes contraditórias a respeito do infanticídio, “que é tanto
universalmente praticado quanto universalmente condenado” (Carr-Sanders, 1992,
p. 15). Aborto e infanticídio foram ambos praticados ocasionalmente, mas mas
foram considerados socialmente indesejáveis, e portanto sujeitos a estrita regulação
social.16(p. 25)
Ou seja, ainda que aceito, o infanticídio não é pacífico, e sua estrita regulação mostra que não
é visto como situação ideal, não é norma moral desejável, é uma prática apenas aceitável para
as sociedades e culturas que o praticam.
A Routledge International Encyclopedia of Women: Global Women's Issues and Knowledge
15 Tradução livre, própria. No original:
“The task..., in a civilized and compassionate society, is to determine how to deal justly with those who kill
their children, and, more importantly, how to mobilize all of our resources to prevent these needless deaths in
future.”
16 Tradução livre, própria. No original:
“Despite the belief that neonaticide is part of”human nature”, anthropologists also declare that primitive
societies often display contradictory attitudes toward infanticide, “that is both universally practiced and
universally condemned”(Carr-Sanders, 1992, p. 15). Both abortion and infanticide were practiced
occasionally, but they were considered socially undesirable, and, therefore, subjected to strict social
regulation”
33
(2000) define o infanticídio não somente como a morte de bebês, mas como “ações que
resultam na morte de um jovem, dependente membro das especies17” (p. 1134), não somente
humanas mas também pássaros e mamíferos. Entre sociedades humanas, ocorre de forma
deliberada e mesmo não totalmente consciente. Admite-se que usualmente o termo se refere à
morte de crianças muito novas, de meses, mas se faz a ressalva de que “não há um critério
universal: a idade pode variar de uma sociedade para outra, dependendo de conceitos
culturais e quando a real vida de um infante começa”18(p. 1134), com métodos que variam de
abandono, suspensão de comida, sufocamento e descare em lixo ou áreas remotas, dentre
outros. A Routledge procura debater a moralidade ou não do infanticídio. Assim, apresenta
vários argumentos: por um lado, Kuhse (1987) e Tooley (1983), que afirmam que o
infanticídio é enraizado na cultura ocidental, e eticistas que defendem que recém-nascidos não
preenchem os critérios de personalidade; por outro lado,
colocação de Post (1988) que
sustenta que as teorias da personalidade são problemáticas se permitem potencialmente que
seres humanos ativamente causem a morte de crianças, e que o círculo de proteção e direitos
deve incluir crianças19. Há então um apanhado das ocorrências de infanticídio mais
conhecidas na história, e da defesa que Platão e Aristóteles fizeram da prática, assim como os
casos relatados por Kuhse e Singer. Em especial, destaca-se a tendência quase generalizada de
se matar meninas: o infanticídio feminino, identificada como ocorrência típica de culturas
patrilineares, patrilocais e patriarcais onde há forte preferência pelo gênero masculino e
desvalorização do gênero feminino, como alguns grupos chineses, indianos e Inuit, a seguir:

Inuit: a prática consiste em colocar a menina na entrada de um iglu, na esperança de
que outra família possa adotá-la. Senão, ela pode congelar até à morte. A outra
alternativa é o sufocamento A decisão de matar é usualmente tomada pelo pai, mas
também pode ser tomada pela mãe, avô ou avó.

Índia: de origem desconhecida, a prática foi bastante disseminada entre o final do
século XVIII e durante o século XIX, e mais freqüente no nordeste da Índia (Gujarat e
Uttar Pradesh), entre Kshatriya, e também no sul (Tamil Nadu), entre os Kallars de
Madurai. As causas seriam a forte valorização masculina e desvalorização feminina,
devido ao papel reservados aos homens nessas sociedades: patrilinearidade,
17 Tradução livre, própria. No original:
“actions that result in the death of a young, dependent member of the species.”
18 Tradução livre, própria. No original:
“...this is not a universal criterion: the age may vary from one society to another, depending on cultural
concepts of when the actual life of an infant begins”
19 O artigo de Post aqui mencionado foi analisado nesse trabalho logo acima
34
provedores econômicos para os pais, mais velhos ou deficientes, funções vitais em
rituais ancestrais. Às mulheres, a tradição reservaria apenas a função de subordinadas
aos homens, peso financeiro e até sua definição em vários textos sagrados como uma
propriedade. Proibida atualmente na Índia, a prática tem sido substituída por outras
formas, como o aborto seletivo.

China: o infanticídio é apresentado como sendo praticado sistematicamente, porém
não abertamente, na China Novamente, fortes fatores culturais que favorecem o
gênero masculino, a percepção dos filhos (homens) como os que carregam adiante a
linhagem e como fonte de apoio aos pais, mais velhos, e por fim a política de controle
de natalidade do governo chinês. Ao infanticídio feminino, junta-se a pré-seleção do
sexo dos bebês e o aborto seletivo.
Por fim, apresenta-se a luta contra o infanticídio – especialmente o infanticídio feminino como parte da agenda dos direitos humanos e dos direitos das mulheres, nas últimas três
décadas, e as pressões para que os governos melhorem o status das mulheres como parte das
ações necessárias ao combate dessa prática.
A Encyclopedia of Bioethics (1995) também destaca que o infanticídio atinge principalmente
o gênero feminino, e identifica vários métodos cruéis com os quais recém-nascidos têm sido
mortos: incinerados, sufocados, apedrejados, baleados, envenenados, veias injetadas com
bolhas de ar e substâncias tóxicas, supressão de alimentos, água ou ar. O texto apresenta a tese
de que a prática do infanticídio é antiga e disseminada, e que foi tolerada e mesmo
promovida. Ressalta-se também a dificuldade em se distinguir o infanticídio (intencional) e o
abandono (que pode ou não envolver intenção). Menciona-se inclusive que a palavra grega
para abandono tem sido traduzida para o inglês como exposure, como equivalente a
infanticídio, mas ressalta-e que a evidência histórica não é clara sobre se as crianças
abandonadas usualmente morriam ou se aqueles que as abandonavam tencionavam a sua
morte, e que freqüentemente o abandono foi visto como uma alternativa ao infanticídio. As
causas apresentadas para o infanticídio são controle populacional e eugenia.
A literatura histórica romana que menciona o infanticídio é apresentada, assim como a
legislação sobre isso. As Leis das Doze Tábuas, consideradas a base do direito Romano,
35
diziam que “crianças deformadas, puer ad deformitatem, eram para ser mortas
rapidamente20” (p. 1236). Os argumentos de Sêneca nos Ensaios Morais pelo infanticídio
também são apresentados, e comenta-se o patria potestas, poder de vida e morte exercido
pelos pais sobre os filhos, considerados suas propriedades. A maioria das vítimas eram
crianças, mas também eram vitimadas meninas e crianças que, ainda que fossem saudáveis,
fossem consideradas de pequeno valor social.
A Encyclopedia (1995) menciona ainda que havia pensadores e filósofos que se
contrapunham ao abandono e infanticídio: Musonius Rufus (que se opunha ao infanticídio
porque isso reduzia a população), Epiteto, um filósofo estóico que condenou o abandono
como “violação da afeição natural que pais devem ter por seu descendente”21(p. 1237).
O texto menciona que no antigo Israel há indícios de que o infanticídio foi praticado, pelas
palavras de condenação a essa prática – e o controverso episódio em que Abraão quase
sacrifica Isaque, já um jovem, é apresentado. A religião judaica condena veementemente o
infanticídio, e os sábios judeus estão entre os primeiros condenar a morte de crianças. A
origem dessa condenação é apresentada como sendo a crença na imagem divina inscrita em
cada vida humana, e a sacralidade dessa vida. O filósofo judeu Fílon denunciou o infanticídio
e enfatizou os deveres dos adultos em relação às crianças. O surgimento do cristianismo,
cujas raízes são judaicas, é visto como fator que alterou significativamente as atitudes
publicas em relação ao infanticídio, e o resgate e o cuidado de crianças abandonadas se torna
um dever cristão especial.
Por fim, apresenta-se o caso das práticas de infanticídio durante o regime nazista, em que
médicos, enfermeiras e professores foram instados a registrar as crianças com anormalidades
congênitas ou deficiência mental. .Crianças defeituosas foram removidas de suas casas e
rotineiramente submetidas a eutanásia nos hospitais por injeções de morfina, gás, venenos
letais e algumas vezes fome... Pais que protegeram seus filhos foram enviados para campos
de trabalho e seus filhos foram tirados deles22(p. 1241)
20 Tradução livre, própria. No original:
“...deformed children, puer ad deformitatem, were to be killed quickly”.
21 Tradução livre, própria. No original:
“... violation of the natural affection that parents should have for their offspring”
22 Tradução livre, própria. No original:
“Defective children were removed from their homes and routinely euthanized at hospitals by morphine
36
Na conclusão, o texto reporta-se novamente a Post e seu artigo, já apresentado aqui, e
observa: “a lei tem sido relativamente consistente em proibir esta prática [do infanticídio],
mas nem sempre um medidor acurado dos valores da sociedade”23(p. 1243). finalmente
advoga-se que a disponibilidade de alternativas ao infanticídio (como métodos contraceptivos,
hospitais, abandono etc.) parece ter mais impacto que proibições oficiais.
injection, gas, lethal poisons, or sometimes starvation... Parents who protected their children were sent to
labor camps and their children were taken from them.”
23 Tradução livre, própria. No original:
... the law has been relatively consistent in prohibiting its practice, the law has not always been an accurate
gauge of societal values
37
CAPÍTULO 04 - PLURALISMO, RESPEITO À DIVERSIDADE, DIREITOS
HUMANOS E BIOÉTICA
A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005) é fundamental a
essa trabalho, e faz do respeito à diversidade e do pluralismo um de seus pilares, declarando
como um de seus objetivos
“fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as
questões de bioética entre todas as partes interessadas e dentro da sociedade em seu
conjunto” (artigo 1oe). Entretanto, advoga direitos humanos fundamentais e inalienáveis como
seu fundamento - tais como dignidade humana, igualdade e liberdade, acima de valores e
costumes culturais: “A importância da diversidade cultural e do pluralismo deve receber a
devida consideração. Todavia, tais considerações não devem ser invocadas para violar a
dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais nem os princípios
dispostos nesta Declaração, ou para limitar seu escopo”(artigo 12 – Respeito pela
Diversidade Cultural e pelo Pluralismo).
Da mesma forma, documentos internacionais como: Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992), a
Convenção Americana de Direitos Humanos (1969 - Pacto de San José da Costa Rica,
ratificado pelo Brasil também em 1992), Declaração e Programa de Ação de Viena
(Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, 1993), a Convenção nº 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT (ratificada pelo Brasil e regulamentada
pelo Decreto 5.051/2004), que serão apresentados abaixo.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), adotado pela
Resolução n.2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de
1966 e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, alerta em seu artigo 5º :
§1. Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido
de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a
quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir
os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações
mais amplas do que aquelas nele previstas.
§2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos
38
fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis,
convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto não
os reconheça ou os reconheça em menor grau.
Ou seja, a diversidade de tradições não anula a validade dos direitos ali proclamados, como o
direito à vida, à liberdade, à saúde, à educação e outros. Expressa-se aqui o mesmo princípio
posteriormente exposto na Declaração Universal e Bioética e Direitos Humanos de 2005: o da
existência de direitos humanos de validade universal, acima das normas culturais locais, e que
portanto estabelecem um parâmetro a partir do qual validar ou não uma tradição, prática ou
costume.
Especificamente em relação às tradições indígenas, o Brasil reconheceu e regulamentou em
2004 a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), considerada um avanço em relação ao respeito à
pluralidade e diversidade, e que tem sido importante instrumento de luta dos povos indígenas.
Essa convenção considera a validade legal das tradições indígenas em relação à justiça: “ao
se aplicarem a esses povos leis e normas nacionais, deverão ser levados na devida
consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”, o que assegura o direito à
diferença e à manutenção dos costumes indígenas, de suas leis e normas, enfim, assegura a
legitimidade de suas instituições tradicionais. Ao mesmo tempo, estabelece que isso é válido
até o limite “onde esses não forem incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo
sistema legal nacional e internacional”.
A Declaração de Viena (A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, 1993) logo em
ervado em seu preâmbulo observa: “A natureza universal desses direitos e liberdades está
fora de questão”. A Declaração de Viena também afirma o respeito à diversidade de
tradições, desde que compatíveis com os direitos humanos considerados universais e
inalienáveis:
Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e interrelacionados...Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em
consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é
dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, sejam quais forme seus sistemas políticos, econômicos e culturais
(artigo 5)
Ou seja, há uma profusão de documentos legais internacionais que asseguram a proteção à
39
pluralidade cultural e diversidade ao mesmo tempo em que reafirmam a existência de direitos
para além dos costumes e tradições locais, universalidade essa que se constitui um
instrumento importante de lutas e realização dos ideais da Bioética. Como é apontado em um
artigo em que se defende a aproximação teórica da Bioética Intervencionista e os direitos
humanos como instrumento de reforço ao caráter social dessa corrente bioética:
A proposta de aproximação à teoria dos Direitos Humanos se justifica pelo fato de
que, na medida em que os conflitos bioéticos são analisados à luz desses direitos,
pretende-se uma solução para os problemas persistentes, como desigualdade social e
pobreza, fundamentadas na defesa da liberdade, da proteção da vida, do respeito ao
próximo, em integridade e dignidade. Nesse sentido, falar em direitos humanos
significa implementar e efetivar normas cujo conteúdo impõe o respeito ao homem e
à humanidade, partindo do reconhecimento da complexidade e pluralidade em razão
do caráter universal desses direitos (PAGANI et al, 2007, 197)
Mas para muitos antropólogos, de acordo com Débora Diniz no artigo “Antropologia e os
limites dos direitos humanos: o dilema moral de Tashi” (2000), declarações e documentos
internacionais de direitos humanos são um problema, pois eles consideraram que tais
declarações constituir-se-iam uma nova forma de dominação, uma espécie de
... nova forma de imperialismo humanitário surgida no pós-guerra: a cultura dos
direitos humanos. Certamente a desconfiança dos antropólogos face à Declaração
Universal dos Direitos Humanos não se mantém com a mesma intensidade de 1947,
quando a diretoria executiva da American Anthropological Association (AAA)
escreveu: “...It will not be convincing to the Indonesian, the African, the Indian, the
Chinese, if it lies on the same plane as like documents of an earlier period. The
rights of Man in the Twentieth Century cannot be circumscribed by the standards of
any single culture, or be dictated by the aspirations of any single people. Such a
document will lead to frustration, not realization of the personalities of vast numbers
of human beings...”. E, por fim, asseverando uma das maiores certezas nas quais os
antropólogos são socializados, o repúdio da AAA anuncia o princípio: “...man is free
only when he lives as his society defines freedom...” (2000, p. 06)
Diniz, ela mesma antropóloga e bioeticista, observa que daí viria o raríssimo engajamento de
etnógrafos em movimentos por direitos humanos, e o repúdio da maioria à intervenções
morais em outras comunidades que não a sua original. E por que? Pela fundamentação
filosófica dos direitos humanos: a universalidade. A rigor, a antropologia elege como
ferramenta metodológica principal a observação e descrição dos fenômenos sem neles
interferir, numa posiçào de relativismo cultural. Afinal, como comparar e julgar culturas
diferentes sem que se elejam parâmetros, simum meta vocabulário, uma metaética? Afinal, o
próprio universalismo é produto de uma cultura específica, a anglo-saxã, e levado a extremos
40
pode justificar intervenções autoritárias e desrespeitosas a povos e grupos que não se
identifiquem com os valores dessa cultura originária.
O bioeticista Bellino defende que a neutralidade advinda do relativismo moral advém de um
erro: a confusão entre o relativismo cultural e moral – o último, herança e ferramenta
metodológica da antropologia: “O relativismo moral é uma indébita e injustificada
transposição a nível filosófico do relativismo cultural como princípio metodológico. A nível
metodológico, de fato, o relativismo cultural encontra sua justificativa, antes, é uma condição
indispensável para o construir-se da ciência antropológica contemporânea” (1997, p. 230).
Retornando ao artigo de Débora Diniz, vê-se que a autora também menciona essa confusão
entre ferramenta antropológica e posição de total tolerância, aprovação e aceitação pacífica
diante do qualquer comportamento, prática, valor e tradição cultural. Dessa confusão viria a
relutância dos antropólogos em aceitar e defender os direitos humanos tal qual expressos os
documentos legais nacionais e internacionais:
O relativismo cultural como um método de apreensão comparativa da realidade, isto
é, como um instrumento metodológico de abordagem do real sensível às diferenças
culturais da humanidade, é um lado da questão. Outro, bem diferente, é a defesa,
como fez Ruth Benedict ao final de Patterns of Culture, de “...equally valid patterns
of life...”. Confundir relativismo cultural com tolerância radical foi um lapso
disciplinar dos antropólogos... Seguramente os antropólogos não eram inocentes
quanto a este deslize conceitual, da passagem do relativismo à tolerância, mas o fato
é que a oposição ao imperialismo cultural era mais forte que quaisquer outras
considerações. E para suportá-lo era preciso a eleição de outro valor moral tão
impactante quanto a proposta de universalismo ético. Foi assim que a tolerância,
herdeira do liberalismo anglo-saxão, ganhou força na antropologia.
Como resultado, haveria um silêncio moral por parte dos antropólogos, uma ênfase na
tolerância como forma de garantir a coexistência entre diversas culturas.
Interessante também é o artigo de Alcida Ramos sobre a aporia universalismo éticorelativismo, que ela identifica como frutos do iluminismo, e dos riscos representados se
levadas ao extremo (joguete que permite a intervenção autoritária, no caso do universalismo, e
defesa do indefensável, no caso do relativismo). A autora defende, a partir de uma leitura de
Todorov, o que ela chama de caráter estratégico, muito mais que postulados rígidos, dessas
expressões. Assim, o relativismo entra como ferramenta básica na construção da cidadania
universal, um
41
...instrumento de análise, um princípio regulador que permite a comparação fecunda
das semelhanças, resguardando as diferenças, e seu conteúdo não pode ser diluído
numa pulverização de responsabilidades sociais e políticas: está sempre sujeito à
reflexão ética. O relativismo seria, pois, a política das diferenças possíveis. Vistos
dessa maneira, universalismo e relativismo perdem muito do caráter de contradição
que tomam em sua forma absoluta e adquirem dinamismo conceitual e desenvoltura
prática. De princípios ideológicos radicais navegando em direções opostas, eles
podem assumir o papel de recursos pragmáticos a serviço da resolução de problemas
concretos gerados pela incômoda convivência de instâncias em confronto, senão
mesmo em conflito, como podem ser, por exemplo, a cidadania e a especificidade
étnica ( 1991, p. 07)
A Encyclopedia of Bioethics discute o relativismo como (boa) herança e contribuição da
antropologia, afirmação com a qual este trabalho concorda, em um verbete acerca de como
antropologistas que trabalham com Bioética fazem a ponte sobre o a diferença entre
concepções morais localmente alicerçadas em relação às práticas médicas e a universalidade
expressada pela tradição filosófica ocidental, levando a uma prática bioética culturalmente
informada24. Uma necessidade fortemente sentida pelos países em desenvolvimento, cujas
complexas bases culturais por vezes passaram ao largo do entendimento dos teóricos do
principialismo e das teorias dos países centrais. Segundo a Encyclopedia, “a aplicação
simplista da ética universal a casos particulares despreza a complexidade da experiência
vivida e dilemas do mundo real25” . Entretanto, adverte-se para o caráter acima de tudo
metodológico do relativismo cultural (p. 221).
A antropologia também sente a aporia do uso extremado do relativismo moral. No artigo
citado acima, Débora Diniz analisa as causas e conseqüências desse relativismo e a posição
dos antropólogos em relação à universalidade dos direitos humanos:
O envolvimento afetivo imposto pelo trabalho de campo fez com que,
tradicionalmente, os antropólogos se distanciassem de qualquer forma de crítica
moral da cultura observada. Reproduzir o discurso de uma determinada sociedade
confundiu-se com o ethos antropológico de falar como os nativos
...
Uma etnografia da angústia, além de contemplar a lógica inerente a cada sistema
simbólico, deveria também levantar a questão fundamental sobre quais são os
discursos e práticas que justificam e perpetuam o sofrimento. E, talvez, mais
importante do que isto, devêssemos perguntar quem se constitui, numa determinada
sociedade, como o alvo preferencial da dor moral. Mas a nostalgia imperialista,
parafraseando Renato Rosaldo, dificulta qualquer forma de descrição etnográfica
que seja crítica dos padrões culturais aos quais o antropólogo encontra-se vinculado
pela pesquisa de campo
24 Ver: REICH, W.T., 1995, P. 215
25 Tradução livre, própria. No original:
“A simplistic application of ethical universals to particular cases discounts the complexity of lived
experience and real world dilemmas”
42
Ou seja, ocorre por questões metodológicas um oportuno relativismo dos antropólogos em
relação aos costumes observados, que permeia suas descrições – ao mesmo tempo em que,
mergulhados na cultura, dela se aproximam e reproduzem os seus discursos e valores e se
abstêm de fazer julgamentos morais a respeito disso. Ao oportunamente propor uma
etnografia da angústia, Débora Diniz alerta para a necessidade de perguntarmos quem são os
sujeitos que sofrem a dor moral, quais os discursos que justificam e perpetuam esse
sofrimento.
Para Bellino, é preciso rigor para distinguir os fundamentos do relativismo e sua
aplicabilidade. Para ele, que distingue relativismo cultural e moral, o aspecto metodológico
do relativismo cultural é fundamental à Bioética para o estabelecimento do diálogo entre as
diferentes culturas, enquanto o o relativismo moral é falacioso em seus fundamentos, na
medida em que reproduz a confusão a descrição de um comportamento existente e a reflexão
acerca do comportamento desejável:
O relativismo moral metodologicamente é um princípio que serve para conferir rigor
objetivo à observação e à descrição das diversas culturas, evitando juízos de valores.
Também o sentido como o antropólogo usa a expressão 'valor', é um sentido
completamente diferente do ético-filosófico. De fato, os valores na investigação
científica se entendem como valores de facto, isto é, o sentido descritivo e não
prescritivo, normativo. O relativismo ético se apóia na falácia naturalista, quando
inferem o válido do efetivo, as prescrições das descrições, do dever ser (ought) do
ser (is), das normas dos fatos. (BELLINO, 1997, p. 231)
Bellino argumenta que o perigo representado pelo relativismo moral não é desprezível, e nisso
se de Alcida Ramos, quando menciona o absurdo advindo de se levar ao extremo a posição de
neutralidade e relativismo moral diante de certas situações, culminando na defesa do
indefensável, no silêncio moral mencionado por Débora Diniz: “A tese do relativismo ético,
seguindo o qual toda sociedade tem os valores que tem de ter, se traduz no neutralismo ético
e na justificação de qualquer costume e orientação de valor (do canibalismo à escravidão, do
genocídio ao racismo, aos caçadores de cabeças etc.). A absoluta diferença entre as culturas
produz indiferença entre elas mesmas” (BELLINO, 1997, p. 231)
Bellino identifica alguns perigos do relativismo moral, citando Gaetano Santomauro, como
“a negação da possibilidade de uma relação ativa, creativa, contestadora ou personalidade
dialética, utópica, subversiva, devendo o indivíduo necessariamente reconhecer e partilhar os
43
valores, as normas e as modalidades operacionais do próprio ambiente sociocultural”,
gerando uma impossibilidade de comunicação e interação entre culturas diferentes (daí a
menção que o autor faz ao espírito de gueto). De reação ao etnocentrismo, o relativismo moral
em última instância aquiesceria a ele, e ao conseqüente processo de desumanização e espírito
de gueto (1997, p. 233).E isso porque, segundo o autor, o relativismo afirmaria a
hermeticidade das culturas e seus sistemas de valor, tornando-se antítese dos movimentos que
lutam para que a Declaração dos Direitos Humanos se tornem efetivamente históricos. Com a
palavra, Aisanan Paltu Kamayurá defende a dinamicidade da cultura indígena, em fala acerca
do infanticídio, e o protagonismo indígena nesse processo:
As pessoas que estudam sobre a cultura do índio, como antropólogos e indigenistas,
eles pensam que os índios vão viver assim prá sempre, como era antes. Mas hoje já
está mudando. Cada vez mais o pensamento dos jovens, da geração de hoje, vai
mudando. O meu pensamento mesmo, não é como antes. Não é como o pensamento
dos antropólogos que estudaram a cultura, que dizem “deixa ele viver assim, isso é a
cultura deles”. Não, porque a cultura não pára, ela anda. O pensamento também
anda, igualzinho a cultura. Por isso é que hoje a gente está querendo pegar todas
essas crianças, até as que têm defeito. Elas são gente, não são animal, não são filho
de porco ou de tatu. São gente mesmo, saíram de uma pessoa. Esse é o meu
pensamento. Isso quem vai decidir é a gente mesmo. Somos nós que estamos
procurando ajuda para criar essas crianças. Nós estamos procurando apoio, nós
temos que conversar entre nós mesmos, aí, através dessa conversa, o governo tem
que nos atender. (p. 12)
Também Edson Bakairi, professor e líder indígena, licenciado em História e especialista em
Antropologia, e sobrevivente de tentativa de infanticídio,e m carta aberta em repúdio ao
infanticídio:
...Hoje já não somos meros objetos de estudos, mas sujeitos, protagonistas de nossa
própria história, adquirindo novos saberes e conhecimentos que valorizam a vida e a
nossa cultura.
Somos índios, somos cidadãos brasileiros! Vivendo na cidade ou na aldeia, não
abandonamos as riquezas de nossas culturas, mas julgamos que somos plenamente
capazes de distinguir entre o que é bom e o que é danoso à vida e a cultura indígena.
Desde já, assumimos as responsabilidades de nosso destino e de fazer escolhas que
contribuam para o nosso crescimento. Nos recusamos ativamente a ser meros
fantoches nas mãos de organizações científicas e de estudos. Chega de sermos
manipulados pelas Organizações Governamentais e não-Governamentais!
...
Portanto manifestamos nosso repúdio à prática do infanticídio e a maneira
irresponsável e desumana com que essa questão vem sendo tratada pelos Órgãos
Governamentais. Não aceitamos os argumentos antropológicos baseados no
relativismo cultural. ...
...
Não aceitamos o infanticídio como prática cultural justificável, não concordamos
44
com a opinião equivocada de antropólogos que têm a pretensão de justificar estes
atos e assim decidir pelos povos indígenas colocando em risco o futuro de etnias
inteiras.
A visão de culturas como fechadas em si mesmas, sem comunicação entre si, condiz com a
descrição que Alcida Rita Ramos (2004, p. 08) faz da percepção dos índios por parte dos
brasileiros:
...
Ao contrário, a coetaneidade é muito mais difícil de tolerar. No imaginário nacional,
o índio bom é o índio remoto, seja no tempo, seja no espaço. O índio bom é o
primeiro habitante do país metamorfoseado em ícone ancestral que deu suor e
sangue para fertilizar o que viria a ser o nascimento da nação brasileira.
Ou seja, o afastamento forçado, o gueto, a diferença absoluta produzindo a indiferença –
como a que vitimou o filho de Aisanan Paltu Kamayurá. O assassinato de crianças índias,
bebês ou não, é visto como um problema interno das comunidades, acerca dos quais a
sociedade externa não deve se manifestar. Mais ainda, o contato entre as diferentes
comunidades indígenas e as comunidades externas resultaria apenas em opressão e problemas,
sendo impossível a convivência, a coetaneidade de que fala Alcida Ramos. O diálogo e o
compartilhamento de valores seriam impossíveis, pela impossibilidade de se partilhar um
valor que não seja construído internamente pela comunidade indígena. Essa visão aparece
fortemente na fala do deputado Francisco Praciano durante a Audiência Pública realizada na
Câmara dos Deputados em 05 de setembro de 2007 (p. 08), e que prescinde de comentários:
A Declaração dos Direitos Humanos, que não contou com nenhuma representação
indígena, em 1945, não vale para índio. Constituição não vale para índio, na minha
opinião.
Há uma colisão e um ponto de interseção. O homem branco vai à aldeia, invade a
aldeia, tira a terra do índio, diminui seus recursos, como aconteceu com os
Krenhakarore do Tocantins. Em 5 anos, demos espelho, facão, cesta básica, demos
para eles gonorréia e um monte de doença e, em 5 anos, 90% estavam mortos, não
por infanticídio, mas por nossa cultura, nossa forma de produzir, nossa forma de
invadir.
...
Possuelo, um indigenista — não sei quem gosta ou não dele, porque eu leio bastante,
mas não sou especialista —, ao sair da FUNAI, disse que o fim do índio é quando o
branco chega e que seria bom que nós não os procurássemos.
45
CONCLUSÃO
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005), advoga
“princípios universais baseados em valores éticos comuns”, e reconhece que “a saúde não
depende unicamente dos progressos da pesquisa científica e tecnológica mas também de
fatores psicossociais e culturais”. Por esse viés, exorta-se a buscar intervenções que respeitam
esses fatores e os promovam, não bastando o simples evitar a morte das crianças. É preciso
assegurar ao máximo a qualidade de vida dessas crianças, mediante o oferecimento de
assistência integral à sua saúde física e mental, indo além dos procedimentos básicos e
franqueando o acesso a procedimentos mais complexos como fisioterapia, terapia
ocupacional, órteses e próteses, cirurgias e outros tratamentos que eliminem ou minimizem o
problema, proporcionando condições para uma vida o mais independente e normal possível.
Não se pode pensar apenas em evitar a morte física da criança, é preciso assegurar a sua
existência social em seu grupo de origem sempre que possível. Lidar com a diversidade e a
pluralidade cultural humana é um desafio e um imperativo para a Bioética, e a imposição de
normas morais e concepções de vida diferentes a uma determinada comunidade pode ser
danosa se feita unilateralmente e sem critério, daí a importância do diálogo, do ouvir as
diferentes vozes, da exposição dos Direitos Humanos e sua importância para a sobrevivência
do próprio grupo e sua cultura, do franqueamento do acesso aos resultados da aplicação da
tecnologia à saúde, e das opções existentes. É importante considerar, no diálogo, que a
questão da qualidade de vida também é parte dos Direitos Humanos fundamentais, e que para
isso podem ser buscados mecanismos de promoção desse direito, conjuntamente. Um diálogo
que construa alternativas ao infanticídio e morte de crianças– opção a ser descartada promovendo os Direitos Humanos em sua universalidade e integralidade. Para isso, a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, em seu artigo 1oe, afirma ser um
dos seus objetivos “fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões de
bioética entre todas as partes interessadas e dentro da sociedade em seu conjunto”. Esse
diálogo deve considerar o outro, o diferente, como ser autônomo, dotado de racionalidade,
capaz de expressar sua vontade e compreender argumentos contrários, aceitando-os ou
rejeitando-os após análise. Enfim, é necessário lembrar o que diz o seu artigo 12, que abre a
possibilidade de intervenções dialogadas, é verdade, mas efetivas na proteção à vida, à
integridade física e mental das crianças ameaçadas de infanticídio: deve-se ter devidamente
46
em conta a importância da diversidade cultural e do pluralismo. Entretanto, essas
considerações não devem ser invocadas para atentar contra a dignidade humana, os direitos
humanos e as liberdades fundamentais ou os princípios enunciados na presente Declaração,
nem tampouco para limitar seu alcance.
A Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), ratificada pelo Brasil e que é regulamentado pelo
Decreto 5.051/2004, e assegura aos povos indígenas o direito de manterem seus próprios
direitos e instituições, “onde esses não forem incompatíveis com os direitos fundamentais
definidos pelo sistema legal nacional e internacional”. Este artigo da Convenção é, segundo
Feitosa, Tardivo e Carvalho (2006:18), muito utilizado por militantes contra o infanticídio e
morte de crianças, mas os autores chamam a atenção para o seu artigo 8º- 1, “ao se aplicarem
a esses povos leis e normas nacionais, deverão ser levados na devida consideração seus
costumes ou seu direito consuetudinário”. Observa-se, entretanto, que isso reforça a
necessidade de diálogo e de respeito aos grupos envolvidos, de se levar em conta os seus
argumentos, moralidade, dados e costumes, para a construção de uma solução que,
privilegiando a preservação da vida das crianças, represente o mínimo impacto cultural
negativo possível. Deve-se considerar que o simples fato de existir assistência básica à saúde
representa, já, uma interferência cultural, e isto não é condenável: pelo contrário, é preciso
que essa assistência se estenda a procedimentos complexos, visando melhorar a qualidade de
vida de todos inclusive das crianças que de outra forma não sobreviveriam ou constituiriam
um peso excessivo para a comunidade. Intervenções que preservem a vida e a integridade
física das crianças suruwahás são necessárias, ainda que não previstas em sua cultura, e
devem ser feitas com o máximo de cuidado e de respeito a todos os indivíduos, entendendo
que é preciso ouvir o discurso do grupo e o discurso dos indivíduos. Dessa forma, este
trabalho apresenta um ponto de respeitosa discordância para com a proposta de nãointervenção de Saulo Feitosa, Carla Tardivo e Samuel Carvalho (2006), reconhecendo a
importância de suas observações quanto à necessidade de respeito à diversidade cultural.
Mais que apoio em documentos nacionais, julga-se necessário também a consideração do
processo de construção e manutenção das práticas de infanticídio e morte intencional de
crianças para as mães, pais e comunidade. Defende-se que esta prática não é passiva, mas
47
parte de uma ideologia de afirmação dos lugares do feminino, que vitima também a mãe que
pratica o ato. Nem mesmo os pais, avós e outros parentes estão livres da dor de matar uma
criança, da dor de um futuro que não se realizará, de uma história terminada no início.
Reporta-se, aqui, aos registros sobre o significado que o infanticídio e morte de crianças tem
para diversos grupos, dos sentimentos que a prática suscita, que incluem angústia, afirmação
cultural, naturalização de uma situação, falta de perspectiva de vida com qualidade para as
crianças submetidas ao infanticídio etc. A antropóloga Rita Segato, da UNB, menciona:
“Esse costume [o infanticídio] produz grande sofrimento na mãe, sendo esta, portanto,
também vítima da violência desta prática que, contudo, é uma das tradições do grupo” (p.
09). Lígia Simonian (2001) discorre sobre as contradições presentes na prática do infanticídio
entre os Amundawa e Urueu-Wau-Wau, onde as mulheres carregam o dever de matar as
crianças,
reproduzindo e mantendo a ideologia
vigente em seus grupos referentes ao
feminino, e ao mesmo tempo se encontrando em meio a debates sobre especificidades
culturais e questões de gênero nas sociedades indígenas e não-indígenas. A autora considera
ainda a deterioração das condições psicológicas desses grupos diante de processos de
exploração e conquistas, e a falta ou dificuldade de acesso à informação sobre outros métodos
contraceptivos praticados pela sociedade externa como elementos importantes a ser
considerados. Ou seja, a prática não é vista como pacífica, mas como fruto de processos
internos demarcação do feminino e do masculino não necessariamente libertários, e de
desencontros em relação aos recursos que a comunidade externa - não-indígena - poderia
fornecer, como o acesso à informação e métodos contraceptivos.
Pode a Bioética optar pelo silêncio moral, pela afirmação da diferença a ponto de se tornar
indiferente, pelo negar o diálogo e afirmar o determinismo cultural? O pluralismo e o
relativismo cultural enquanto ferramentas metodológicas são imprescindíveis a uma Bioética
que se quer transformadora das relações sociais, que se propõe Intervencionista. Mas, neste
trabalho, defende-se
que os Direitos Humanos sejam a ferramenta de intervenção em
situações como essas de abuso e empoderamento das mães, pais e sobreviventes que lutam,
mesmo quando não ouvidos, por mudanças nesse contexto.
Considera-se que a intervenção nesses contextos é não somente possível mas necessária, e
embora inclua necessariamente a preservação da vida e integridade das crianças, vai muito
48
além; passa pela garantia do acesso integral aos recursos de saúde, de forma a garantir uma
vida com qualidade para essas crianças e seus pais. Retoma-se, aqui, a fala de Aisanan Paltu
Kamayurá: “Somos nós que estamos procurando ajuda para criar essas crianças. Nós estamos
procurando apoio, nós temos que conversar entre nós mesmos, aí, através dessa conversa, o
governo tem que nos atender”. (em: SUZUKI, p. 12)
Crianças indígenas e de outras minorias étnicas têm sofrido com a vulnerabilidade natural por
conta de sua idade e a social por suas condições étnicas, sociais e econômicas (historicamente
construídas) – vulnerabilidade que é
ainda mais agravada em caso ser portadora de
necessidades especiais de ordem física e/ou mental. Uma forma de manifestação de como essa
vulnerabilidade é historicamente acentuada pode ser localizada na forma como seus direitos
básicos lhes são negados, com o direito à proteção, aos recursos de saúde, enfim à própria
vida. Crianças que rotineiramente sofrem violências, pelas mais diferentes razões, sob a
forma de negação de acesso à saúde, desnutrição infanticídio e morte de crianças, por
exemplo.
Ainda que por razões culturais, a morte de uma criança indígena carrega em si o mesmo
significado universal de interrupção da cultura e do fazer histórico de seu grupo, a violência
da morte da esperança. Não se mata uma criança por prazer: o processo que leva à morte
carrega o sentimento de impotência diante das limitações de saúde ou culturais, como se
necessária fosse essa morte. Mas a historicidade humana se dá exatamente porque seres
humanos não são determinados a repetir padrões de comportamento de seus ancestrais, pela
possibilidade de mudança, de criação e recriação contínua do futuro. Como sujeitos históricos,
todos – indígenas, negros, mestiços, europeus, todos – podem ir além das limitações
determinísticas. A naturalização do infanticídio e morte de crianças inscreve a morte dessas
crianças no campo da necessidade, não oferecendo alternativa. Há mulheres indígenas que
defendem a prática do infanticídio e morte de crianças e que condenam o ato, que questionam.
Ao questionar essa prática, essas mulheres indígenas apenas mostram o quanto esse é um
processo histórico, não natural, não necessário, e buscam alternativas que passam pelo acesso
ao tratamento médico, à proteção, à vida de seus filhos. Buscam superar a dor da morte pela
esperança da vida, da renovação e da continuidade de suas sociedades, e romper com
processos históricos de injustiça e iniqüidade, que por séculos as têm submetido a uma
49
vulnerabilidade social, aumentando ainda mais a vulnerabilidade de suas crianças.
De quem é a responsabilidade pela morte dessas crianças, com todo o seu significado
histórico? Têm sido ouvidas todas as vozes e discursos sobre o caso? É importante lembrar
que, ainda que o aspecto social seja fortemente presente nessas culturas, o discurso indígena
não é homogêneo, nem o da mulher indígena, nem o do grupo indígena. Há diferentes vozes a
ser ouvidas dentro de cada grupo, de cada aldeia. Todo e qualquer diálogo tem que começar
por reconhecer essa diversidade de discursos. Há muitas vozes que buscam alternativas e que
precisam ser ouvidas, por representarem uma possibilidade de diálogo que ponha fim a essas
práticas sem imposição externa e autoritária. E, por fim, é importante lembrar que ao
naturalizar um comportamento que é cultural e histórico, contribui-se para o apagamento da
história. Negar a proteção às crianças, os mais vulneráveis membros dessas sociedades, é
afirmar a impossibilidade de proteção a tudo aquilo que elas significam: o recomeço,
continuidade e transformação de sua cultura, sua história, da história humana. Edson Bakairi,
que sofreu tentativa de sufocamento e foi abandonado na mata para morrer, mas que pela
coragem de suas irmãs foi resgatado e sobreviveu, e hoje é professor e líder indígena no Mato
Grosso, autor da carta em anexo. Deixa-se de ouvir a dor daqueles que, não vendo alternativas
para essas crianças, recorrem ao infanticídio e morte das crianças. Alternativas que existem,
que podem ser construídas pelo diálogo, pelo amparo, pelo acesso aos recursos de saúde, pela
compreensão da violência que o processo representa para os pais e para as sociedades que a
ele recorrem, violência que parece necessária, mas não é.
A Bioética, ao se definir como ética da vida, toma para si o encargo de proteger a integridade
e a dignidade dos sujeitos vulneráveis, reconhecendo a historicidade humana, e que a proteção
desses sujeitos é a preservação da história humana. Ao tomar consciência da vulnerabilidade
compartilhada entre si por todos os seres humanos e pela a natureza, e a responsabilidade que
isso implica, pode-se combiná-la à empatia, compaixão e solidariedade como fundamento
para um agir ético que propicie às pessoas mais vulneráveis as condições mínimas necessárias
para que possam também continuarem a história, como seres únicos humanos únicos no
universo, possuidoras de dignidade, membros da comunidade humana. Crianças indígenas,
sob intenso processo de vulnerabilidade, não podem ser excluídas dessa comunidade, e como
tal partilham a mesma necessidade de ser protegidas, estão sob nossa responsabilidade
50
compartilhada. Elas clamam também por respeito, por preservação de sua integridade e
dignidade, pela oportunidade de criar e recriar a história – delas mesmas, de seus grupos, da
humanidade. Na busca por justiça e eqüidade, a Bioética busca a construção de alternativas
construídas em conjunto, pelo diálogo, ouvindo as vozes daqueles que buscam a mudança que
a história permite. Um processo que implica a possibilidade de mudança, de transformação,
da própria esperança de preservação física e cultural das sociedades indígenas dessas crianças.
Uma esperança de preservação dos mais vulneráveis membros dessas sociedades. Uma
esperança de renovação, de transformação, de vida.
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58
ANEXO 01 - Carta aberta do movimento contra o infanticídio indígena
Ao Excelentíssimo Senhor Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à Primeira Dama D. Marisa e
à Nação Brasileira.
Nós, indígenas do Mato Grosso e do Brasil, pedimos a sua atenção para os casos de
infanticídio, que ocorrem impunemente nas aldeias indígenas do Brasil.
O infanticídio, não é um fato novo, infelizmente sempre esteve presente na história das
culturas indígenas. Entretanto, tem ganhado a visibilidade na mídia com a divulgação da
história da menina Hakani, da etnia Suruwahá, a qual sobreviveu ao infanticídio após o
suicídio de seus pais e irmãos. Estamos vivendo um momento de profunda mudança em nossa
cultura e estilo de viver, por que vivemos hoje um novo tempo. A realidade dentro das
comunidades indígenas é outra. Já não vivemos confinados em nossas aldeias, condenados ao
esquecimento e à ignorância. O mundo está dentro das aldeias, através dos meios de
comunicação, internet e da escola, o acesso à informação têm colocado o indígena em sintonia
com os acontecimentos globais.
Tudo isso tem alterado nossa visão de mundo. Hoje já não somos meros objetos de estudos,
mas sujeitos, protagonistas de nossa própria história, adquirindo novos saberes e
conhecimentos que valorizam a vida e a nossa cultura.
Somos índios, somos cidadãos brasileiros! Vivendo na cidade ou na aldeia, não abandonamos
as riquezas de nossas culturas, mas julgamos que somos plenamente capazes de distinguir
entre o que é bom e o que é danoso à vida e a cultura indígena. Desde já, assumimos as
responsabilidades de nosso destino e de fazer escolhas que contribuam para o nosso
crescimento. Nos recusamos ativamente a ser meros fantoches nas mãos de organizações
científicas e de estudos. Chega de sermos manipulados pelas Organizações Governamentais e
não-Governamentais!
Portanto manifestamos nosso repúdio à prática do infanticídio e a maneira irresponsável e
desumana com que essa questão vem sendo tratada pelos Órgãos Governamentais. Não
aceitamos os argumentos antropológicos baseados no relativismo cultural. De acordo com a
nossa própria Constituição Brasileira de 1988, que em seu artigo 227, determina:
"É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente,
59
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
É em nome deste preceito constitucional que nos dirigimos suplicando à nação brasileira, em
especial ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva e à
Primeira Dama D. Marisa assim como aos Congressistas e Governantes Estaduais e
Municipais manifestando a nossa indignação com a falta de respeito à vida, em especial as
vidas das crianças vítimas do infanticídio.
O recente caso da menina Isabela alcançou tal repercussão na mídia, que de imediato nós
vivenciamos a dor e a angústia de sua família: parecia que Isabela era alguém da nossa
própria família. Toda a nação brasileira se comoveu e se encheu de indignação com tamanha
violência, acompanhando e exigindo justiça a partir de então. Quanto à punição dos suspeitos,
a Justiça tem feito seu papel, e a sociedade está em alerta contra a violência infantil.
Mas nós perguntamos será que a vida da Isabela tem mais valor do que aquelas crianças
indígenas que são cruelmente enterradas vivas, abandonadas na mata, enforcadas por causa de
falsos temores e falta de informações dos pais e da comunidade? NÃO!
Não aceitamos o infanticídio como prática cultural justificável, não concordamos com a
opinião equivocada de antropólogos que têm a pretensão de justificar estes atos e assim
decidir pelos povos indígenas colocando em risco o futuro de etnias inteiras.
O direito a vida é um direito fundamental de qualquer ser humano na face da terra,
independentemente de sua etnia ou cultura.
Ao Excelentíssimo Senhor Presidente, a Primeira Dama D. Marisa, Senhores Congressistas,
Governantes Estaduais e Municipais e a cada cidadão brasileiro: os direitos humanos estão
sendo violados no Brasil!! Milhares de crianças já foram enterradas, enforcadas ou afogadas e
quantas mais deixaremos passar por tal crueldade?
Nosso movimento espera que a Lei Maior de nosso país seja respeitada, isto é,
independentemente de etnia, cor, cultura e raça, todas as crianças gozem do direito à vida.
Nesse sentido:
- Pedimos que a Lei Muwaji seja aprovada e regulamentada;
60
- Pedimos ao Excelentíssimo Senhor Presidente Luís Inácio Lula da Silva e a sua
esposa que pessoalmente interfiram nesse processo;
- Pedimos que os Órgãos competentes não mais se omitam em prestar socorro às
mães e as crianças em risco de sofrer infanticídio.
Nós, abaixo assinados, concordamos com os termos da carta aberta e juntos com os seus
autores, pedimos aos governantes do País em todas as instâncias, providências ao combate e a
erradicação do infanticídio, para que assim o sangue inocente não seja mais derramado em
solo indígena, em solo brasileiro.
Mato Grosso, Junho de 2008
Movimento contra o infanticídio indígena.
Contato: [email protected].
Edson Bakairi é líder indígena em Mato grosso, professor licenciado em História com
especialização em Antropologia pela UNEMAT, presidente da OPRIMT (Organização dos
professores Indígenas de MT) por 3 anos e é sobrevivente de tentativa de infanticídio abandonado para morrer na mata, foi resgatado e preservado com vida por suas irmãs.
61
ANEXO 02: Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena – Folha de São
Paulo, 06/04/ 2008
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml
06/04/2008 - 11h51
Infanticídio põe em xeque respeito à
tradição indígena
ANA PAULA BONI
da Folha de S.Paulo
Mayutá, índio de quase dois anos de idade, deveria estar morto por conta da tradição de sua
etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo
de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua
mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido
morto pela família da mãe.
Paltu enfrentou discriminação da tribo, para a qual a criança amaldiçoaria a aldeia. Relutou,
porém, em sair do parque do Xingu (MT), onde vive sua etnia e outras 13, muitas das quais
praticam o infanticídio.
No ano passado, ele soube do trabalho da ONG Atini, que combate a prática, por meio de sua
irmã Kamiru, que desenterrou o menino Amalé, condenado a morrer por ser filho de mãe
solteira. Kamiru teve contato com a entidade em Brasília, ao buscar tratamento médico para o
filho adotivo.
Paltu pediu ajuda à ONG para conscientizar os índios de sua aldeia. A entidade foi criada há
cerca de dois anos pelos lingüistas Márcia e Edson Suzuki, que em 2001 adotaram Hakani,
12. Devido à desnutrição em decorrência de hipotireoidismo congênito, que seus pais
acreditavam ser uma maldição, Hakani, da etnia suruarrá, deveria morrer. Foi salva pelo
irmão.
É Hakani que dá nome ao documentário dirigido pelo diretor e produtor norte-americano
David L. Cunningham, que está em fase de finalização e deve ser lançado neste mês no Brasil
e nos Estados Unidos. Rodado em fevereiro em Porto Velho (RO) com o apoio da Atini, o
vídeo mostra a história de Hakani e depoimentos contra o infanticídio, na voz de índios.
Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as mais de 200 do país, esse princípio tribal leva
à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema
62
mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.
Projeto de lei
O documentário aborda projeto de lei que trata de "combate às práticas tradicionais que
atentem contra a vida", que tramita na Câmara desde maio passado. A Lei Muwaji, como é
chamada em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar sua filha com paralisia
cerebral --caso que inspirou a criação da Atini--, estabelece que "qualquer pessoa" que saiba
de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por
crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis meses de detenção ou multa.
A proposta é polêmica entre índios e não-índios. Há quem argumente que o infanticídio é
parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da
Constituição, está acima de qualquer questão.
"Nós vivemos sob uma ordem legal e a lei diz que o direito à vida é mais importante que a
cultura", afirma Maíra Barreto, doutoranda em direitos humanos pela Universidade de
Salamanca (Espanha), cuja tese é sobre infanticídio indígena.
Para ela, conselheira da Atini, há incoerência no fato de o Brasil ser signatário de convenções
internacionais que condenam tradições prejudiciais à saúde da criança e não cumpri-las no
caso dos índios.
Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção
169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e
tribais "deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não
sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional
nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos".
Antes disso, em 1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança
da ONU, que reconhece "que toda criança tem o direito inerente à vida" e que os signatários
devem adotar "todas as medidas eficazes e adequadas" para abolir práticas prejudiciais à
saúde da criança.
O antropólogo Ricardo Verdum, do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), acha o
projeto de lei uma intromissão no livre-arbítrio dos índios. "Querer impor uma lei é agressivo,
é uma violência."
O antropólogo Bruce Albert, da CCPY (Comissão Pró-Yanomami), diz que, para os
yanomamis, "só as crianças às quais se podia dar a chance de crescer com saúde eram
criadas".
O missionário Saulo Ferreira Feitosa, secretário-adjunto do Cimi (Comissão Indigenista
Missionária), vê no debate conflito entre a ética universal e a moral de uma comunidade.
"Ninguém é a favor do infanticídio. Agora, enquanto prática cultural e moralmente aceita, não
pode ser combatida de maneira intervencionista."
Para Márcia Suzuki, presidente da Atini, o debate originado a partir do projeto traz à tona a
questão da saúde pública desses povos.
63
ANEXO 03: O garoto índio que foi enterrado vivo – Revista IstoÉ, 20/04/2008
www.terra.com.br/istoe/edicoes/1998/artigo72492-1.htm
Istoé
Brasil
O garoto indio que foi enterrado vivo
Amalé quase foi morto em nome dos costumes indígenas. E a Funai faz vista grossa ao
infanticídio de algumas tribos
PRECOCE O pequeno Amalé sonha com uma mochila, mas tem consciência de seu drama
Amalé tem quatro anos. Como muitas outras crianças, na terçafeira 12 ele foi pela primeira
vez à escola, em Brasília. Índio da etnia kamaiurá, de Mato Grosso, Amalé chamava a atenção
dos demais garotos porque era o único que não usava uniforme nem carregava uma mochila
nas costas. Mas Amalé se destaca dos demais por um motivo muito mais preocupante. O
pequeno índio é, na verdade, um sobrevivente de sua própria história. Logo que nasceu, às 7
horas de 21 de novembro de 2003, ele foi enterrado vivo pela mãe, Kanui. Seguia-se, assim,
um ritual determinado pelo código cultural dos kamaiurás, que manda enterrar vivo aqueles
que são gerados por mães solteiras. Para assegurar que o destino de Amalé não fosse mudado,
seus avós ainda pisotearam a cova. Ninguém ouviu sequer um choro. Duas horas depois da
64
cerimônia, num gesto que desafiou toda a aldeia, sua tia Kamiru empenhou-se em desenterrar
o bebê. Ela lembra que seus olhos e narinas sangravam muito e que o primeiro choro só
aconteceu oito horas mais tarde. Os índios mais velhos acreditam que Amalé só escapou da
morte porque naquele dia a terra da cova estava misturada a muitas folhas e gravetos, o que
pode ter formado uma pequena bolha de ar.
A dramática história desse pequeno índio é a face visível de uma realidade cruel, que se repete
em muitas tribos espalhadas por todo o Brasil e que, muitas vezes, tem a conivência de
funcionários da Funai, o organismo estatal que tem a missão de cuidar dos índios.
“Antes de desenterrar o Amalé, eu já tinha ouvido os gritos de três crianças debaixo da terra”,
relata Kamiru, hoje com 36 anos. “Tentei desenterrar todos eles, mas Amalé foi o único que
não gritou e que escapou com vida”, relata. A Funai esconde números e casos como este, mas
os pesquisadores já detectaram a prática do infanticídio em pelo menos 13 etnias, como os
ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os
kamaiurás, a tribo de Amalé e Kamiru, matam entre 20 e 30 por ano.
Os motivos para o infanticídio variam de tribo para tribo, assim como variam os métodos
usados para matar os pequenos. Além dos filhos de mães solteiras, também são condenados
à morte os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos
também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o
outro o mal e, assim, por não saber quem é quem, eliminam os dois. Outras crêem que só os
bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de
índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo
eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos,
afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança,
embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé.
Os próprios índios começam a se rebelar contra a barbárie. Neste momento, há pelo menos
dez crianças indígenas em Brasília que foram condenadas à morte em suas aldeias. Fugiram
com ajuda de religiosos e sobrevivem na capital graças a uma ONG, Atini, dirigida por
missionários protestantes e apoiada por militantes católicos. A política oficial da Funai é
enviar os exilados de volta à selva, mesmo que isso signifique colocar suas vidas em risco.
“Não é verdade que entre os povos indígenas há mais violência e mais crueldade com seus
infantes do que na população em geral”, sustenta Aloysio Guapindaia, presidente em exercício
da Funai, em resposta por escrito à ISTOÉ. “O tema, tratado de uma forma superficial,
transparece preconceito em relação aos costumes dos povos indígenas”, completa. Tem índio
que não concorda. “Ninguém do governo nos ajuda a resolver o problema”, queixa-se
Kamiru, com o auxílio de um tradutor. A recompensa pelo seu gesto de desafiar os costumes
de sua gente vem daquele que ela salvou. “Minha verdadeira mãe não é a minha mãe. Minha
mãe é a Kamiru”, diz o pequeno Amalé.
Outra índia que ousou enfrentar a tradição foi Juraka, também kamaiurá, de uma aldeia
próxima à de Amalé. Ela está refugiada com a filha, Sheila, nove anos, no abrigo ao lado da
Granja do Torto. A menina faz tratamento no hospital Sarah Kubitschek. Nasceu com distrofia
muscular progressiva, uma doença que a impossibilita de andar. A tribo descobriu o problema
quando Sheila deveria estar dando os primeiros passos. A mãe fugiu antes de ser obrigada a
aplicar a tradição. “Não gosto desse costume de enterrar a pessoa viva”, diz Juraka, também
com a ajuda do tradutor. No hospital os médicos disseram que não há nada a fazer. Sheila
deverá passar a vida numa cadeira de rodas. “É a pessoa que mais amo no mundo, mais que
meus outros filhos”, diz Juraka. Mãe e filha já retornaram algumas vezes à tribo. Os índios
65
passaram a respeitar a coragem de Juraka e já começam a aceitar Sheila.
“É um absurdo fechar os olhos para o genocídio infantil, sob qualquer pretexto”, diz Edson
Suzuki, diretor da ONG Atini. “Não se pode preservar uma cultura que vai contra a vida. Ter
escravos negros também já foi um direito cultural”, compara. Suzuki cria a garota Hakani, dos
surwahás do Amazonas. Ela hoje tem 13 anos. A menina nasceu com dificuldades para
caminhar. Os pais se recusaram a matá-la; preferiam o suicídio. O irmão mais velho, então
com 15 anos, tentou abatê-la com golpes de facão no rosto, mas ela sobreviveu.
“O infanticídio é uma prática tradicional nociva”, ataca a advogada Maíra Barreto, que
pesquisa o genocídio indígena para uma tese de doutorado na Universidade de Salamanca, na
Espanha. “E o pior é que a Funai está contagiada com esse relativismo cultural que coloca
o genocídio como correto”, ataca o deputado Henrique Afonso, do PT do Acre, autor de um
projeto de lei que pune qualquer pessoa não índia que se omita de socorrer uma criança que
possa ser morta.
Longe da tribo, Amalé quer continuar a freqüentar a escola, mas exige uma mochila. Ele já
fala bem o português e avisa que gosta muito de carros. Quer dirigir um quando crescer.
“Vamos aprender muito mais com Amalé do que ele com a gente”, diz a diretora da escola,
Aline Carvalho.
“NÃO SE PODE PRESERVAR UMA CULTURA QUE VAI CONTRA
A VIDA”
Edson Suzuki, diretor da ONG Atini
66
ANEXO 04: Crimes na floresta – Revista Veja, 15/08/2007
http://veja.abril.com.br/150807/p_104.shtml
Vida brasileira
Crimes na floresta
Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças
– e a Funai nada faz para impedir o infanticídio
Leonardo Coutinho
Fotos Photoon e arquivo pessoal
A índia Hakani, em dois momentos. Ao lado, abraça a mãe adotiva,
Márcia, no seu aniversário de 12 anos. Acima, aos 5, em sua tribo:
altura e peso de 7 meses
A fotografia acima foi tirada numa festa de aniversário realizada em 7 de julho em Brasília.
Para comemorar os seus 12 anos, a menina Hakani pediu a sua mãe adotiva, Márcia Suzuki,
que decorasse a mesa do bolo com figuras do desenho animado Happy Feet. O presente de
que ela mais gostou foi um boneco de Mano, protagonista do filme. Mano é um pingüim que
não sabe cantar, ao contrário de seus companheiros. Em vez de cantar, dança. Por isso, é
rejeitado por seus pais. A história de Hakani também traz as marcas de uma rejeição. Nascida
em 1995, na tribo dos índios suruuarrás, que vivem semi-isolados no sul do Amazonas,
Hakani foi condenada à morte quando completou 2 anos, porque não se desenvolvia no
mesmo ritmo das outras crianças. Escalados para ser os carrascos, seus pais prepararam o
timbó, um veneno obtido a partir da maceração de um cipó. Mas, em vez de cumprirem a
sentença, ingeriram eles mesmos a substância.
O duplo suicídio enfureceu a tribo, que pressionou o irmão mais velho de Hakani, Aruaji,
então com 15 anos, a cumprir a tarefa. Ele atacou-a com um porrete. Quando a estava
enterrando, ouviu-a chorar. Aruaji abriu a cova e retirou a irmã. Ao ver a cena, Kimaru, um
dos avôs, pegou seu arco e flechou a menina entre o ombro e o peito. Tomado de remorso, o
velho suruuarrá também se suicidou com timbó. A flechada, no entanto, não foi suficiente
para matar a menina. Seus ferimentos foram tratados às escondidas pelo casal de missionários
protestantes Márcia e Edson Suzuki, que tentavam evangelizar os suruuarrás. Eles apelaram à
67
tribo para que deixasse Hakani viver. A menina, então, passou a dormir ao relento e comer as
sobras que encontrava pelo chão. "Era tratada como um bicho", diz Márcia. Muito fraca, ela já
contava 5 anos quando a tribo autorizou os missionários a levá-la para o Hospital das Clínicas
de Ribeirão Preto, em São Paulo. Com menos de 7 quilos e 69 centímetros, Hakani tinha a
compleição de um bebê de 7 meses. Os médicos descobriram que o atraso no seu
desenvolvimento se devia ao hipotireoidismo, um distúrbio contornável por meio de
remédios.
Marcia Suzuki
Kasiuma e sua filha Tititu: ela convenceu a
tribo a tratar a filha hermafrodita, em vez de
matá-la
Márcia e Edson Suzuki conseguiram adotar a indiazinha. Graças a seu empenho, o
hipotireoidismo foi controlado, mas os maus-tratos e a desnutrição deixaram seqüelas. Aos 12
anos, Hakani mede 1,20 metro, altura equivalente à de uma criança de 7 anos. Como os
suruuarrás a ignoravam, só viria a aprender a falar na convivência com os brancos. Ela
pronunciou as primeiras palavras aos 8 anos. Hoje, tem problemas de dicção, que tenta
superar com a ajuda de uma fonoaudióloga. Um psicólogo recomendou que ela não fosse
matriculada na escola enquanto não estivesse emocionalmente apta a enfrentar outras
crianças. Hakani foi alfabetizada em casa pela mãe adotiva. Neste ano, o psicólogo autorizou
seu ingresso na 2ª série do ensino fundamental.
A história da adoção é um capítulo à parte. Mostra como o relativismo pode ser perverso.
Logo que retiraram Hakani da aldeia, os Suzuki solicitaram autorização judicial para adotá-la.
O processo ficou cinco anos emperrado na Justiça do Amazonas, porque o antropólogo
Marcos Farias de Almeida, do Ministério Público, deu um parecer negativo à adoção. No seu
laudo, o antropólogo acusou os missionários de ameaçar a cultura suruuarrá ao impedir o
assassinato de Hakani. Disse que semelhante barbaridade era "uma prática cultural repleta de
significados".
Ao contrário do que acredita o antropólogo Almeida, os índios da tribo não decidem sempre
da mesma forma. Em 2003, a suruuarrá Muwaji deu à luz uma menina, Iganani, com paralisia
cerebral. A aldeia exigiu que ela fosse morta. Muwaji negou-se a executá-la e conseguiu que a
tribo autorizasse seu tratamento em Manaus. Médicos da capital amazonense concluíram que
o melhor seria encaminhar Iganani para Brasília. Antes disso, porém, foi necessário driblar a
Fundação Nacional do Índio (Funai). O órgão vetou sua transferência com o argumento de
que um índio isolado não poderia viver na civilização. Só voltou atrás quando o caso foi
denunciado à imprensa. Agora, Iganani passa três meses por ano em Brasília. Aos 4 anos,
consegue caminhar com o auxílio de um andador. Estaria melhor se a Funai permitisse que ela
68
morasse continuamente em Brasília. Há dois anos, os suruuarrás voltaram a enfrentar uma
mãe que se recusava a matar a filha hermafrodita, Tititu. A tribo consentiu que a menina fosse
tratada por brancos. Em São Paulo, ela passou por uma cirurgia corretora. Sem a anomalia,
Tititu foi finalmente aceita pela aldeia.
Fotos Photton
À esquerda, Amalé, sobrevivente de uma tribo que fez pose para a
BBC. À direita, a deficiente Iganani com a mãe, Muwaji, que se
negou a envenená-la
O infanticídio é comum em determinadas espécies animais. É uma forma de selecionar os
mais aptos. Quando têm gêmeos, os sagüis matam um dos filhotes. Chimpanzés e gorilas
abandonam as crias defeituosas. Também era uma prática recorrente em civilizações de
séculos atrás. Em Esparta, cidade-estado da Grécia antiga que primava pela organização
militar de sua sociedade, o infanticídio servia para eliminar aqueles meninos que não
renderiam bons soldados. Um dos seus mais brilhantes generais, Leônidas entrou para a
história por ter liderado a resistência heróica dos Trezentos de Esparta no desfiladeiro de
Termópilas, diante do Exército persa, em 480 a.C. Segundo o historiador Heródoto, Leônidas
teria sido salvo do sacrifício apesar de ter um pequeno defeito em um dos dedos da mão
porque o sacerdote encarregado da triagem pressentiu o grande futuro que o bebê teria.
Hulton archive/Getty
Images
Entre os índios brasileiros, o infanticídio foi sendo abolido à
medida que se aculturavam. Mas ele resiste, principalmente, em
tribos remotas – e com o apoio de antropólogos e a tolerância da
Funai. É praticado por, no mínimo, treze etnias nacionais. Um dos
poucos levantamentos realizados sobre o assunto é da Fundação
Nacional de Saúde. Ele contabilizou as crianças mortas entre
2004 e 2006 apenas pelos ianomâmis: foram 201. Mesmo índios
mais próximos dos brancos ainda praticam o infanticídio. Os
camaiurás, que vivem em Mato Grosso, adoram exibir o lado
mais vistoso de sua cultura. Em 2005, a tribo recebeu dinheiro da
BBC para permitir que lutadores de judô e jiu-jítsu disputassem
com seus jovens guerreiros a luta huka-huka, parte integrante do
ritual do Quarup, em frente às câmeras da TV inglesa. Um ano
antes, porém, sem alarde, os camaiurás enterraram vivo o menino
Amalé, nascido de uma mãe solteira. Ele foi desenterrado às
escondidas por outra índia, que, depois de muita insistência, teve
Leônidas, o herói que
entrou para a história: em
sua Esparta bebês
defeituosos eram mortos
69
permissão dos chefes da tribo para adotá-lo.
Há três meses, o deputado Henrique Afonso (PT-AC) apresentou um projeto de lei que prevê
pena de um ano e seis meses para o "homem branco" que não intervier para salvar crianças
indígenas condenadas à morte. O projeto classifica a tolerância ao infanticídio como omissão
de socorro e afirma que o argumento de "relativismo cultural" fere o direito à vida, garantido
pela Constituição. "O Brasil condena a mutilação genital de mulheres na África, mas permite
a violação dos direitos humanos nas aldeias. Aqui, só é crime infanticídio de branco", diz
Afonso. Ao longo de três semanas, VEJA esperou por uma declaração da Funai sobre o
projeto do deputado e as histórias que aparecem nesta reportagem. A fundação não o fez e não
justificou sua omissão. Extra-oficialmente, seus antropólogos apelam para o argumento
absurdo da preservação da cultura indígena. A Funai deveria ouvir a índia Débora Tan Huare,
que representa 165 etnias na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira: "Nossa cultura não é estável nem é violência corrigir o que é ruim. Violência é
continuar permitindo que crianças sejam mortas"
70
ANEXO 05: Bebês indígenas marcados para morrer – Revista Problemas Brasileiro,
maio/junho de 2007
pb/artigo.cfm?
Edicao_Id=276&breadcrumb=1&Artigo_ID=4340&IDCategoria=4948&reftype=1
Bebês indígenas, marcados para morrer
Por razões culturais, crianças indesejadas são sacrificadas nas aldeias
MARCELO SANTOS
Ainda que inaceitável em nossa sociedade, o assassinato de bebês
indesejados é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Até
mesmo expoentes do pensamento grego, como Aristóteles e
Platão, eram capazes de frases que, sem o devido crédito,
poderiam facilmente ser atribuídas aos mais ensandecidos e vis
déspotas. No entanto, as idéias de tais pensadores encontraram
eco na antiga Roma, que apoiava moral e legalmente o infanticídio,
caso se constatassem deficiências físicas ou psíquicas.
Embora não se possa supor que as idéias dos pensadores da
Antiguidade clássica tenham afetado o modo de viver e agir dos
índios brasileiros, fato é que, a cada ano, centenas de crianças são
sacrificadas no meio da selva, por conta de tradições culturais,
quando ocorre por exemplo o nascimento de gêmeos ou de bebês
com algum problema físico.
Não existem números precisos. De acordo com a assessoria de
Muwaji e a bebê Iganani / Foto: Márcia Suzuki imprensa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cabe à
Fundação Nacional do Índio (Funai) identificar esses casos, uma
vez que se trata de um traço cultural. Já a Funai alega que os
dados devem ser obtidos na Funasa, que gerencia as atividades dos distritos sanitários nas aldeias.
O pouco que se sabe sobre o assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos
antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que
repasse as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da Saúde e lá
se transformem em "mortes por causas mal definidas" ou "externas".
É o caso do médico sanitarista Marcos Pellegrini, que até 2006 coordenava as ações do DSEIYanomami, em Roraima. Lá, de acordo com levantamentos feitos por ele, 98 crianças indígenas
foram assassinadas pelas mães em 2004 (ver texto abaixo). Em 2003 foram 68, fazendo dessa
prática cultural a principal causa de mortalidade infantil entre os ianomâmis, uma etnia de caçadoresagricultores formada por 28 mil indígenas que vivem no norte da Amazônia.
"Os ianomâmis constituem o povo mais primitivo do planeta. Se uma criança nasce com qualquer
problema físico, eles matam. Se a mãe tiver duas meninas, por exemplo, e nascer outra, eles matam
também. Trata-se de uma questão cultural, e nós, da Funasa, não trabalhamos com isso. Todos os
números são repassados para a Funai", explica o assessor de comunicação da Funasa de Roraima,
Ribamar Rocha.
Números confusos
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De acordo com dados do livro Saúde Brasil 2006 – Uma Análise da Desigualdade em Saúde,
publicado no início de 2007 pelo Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade entre os indígenas, até
os 5 anos de idade, é de 30%. Em 2004, 626 bebês indígenas morreram antes de completar 1 ano.
Dentre esses óbitos, 107 tiveram razões misteriosas (causas externas 2,3%, mal definidas 12,5% e
outras 2,3%).
"Os óbitos entre crianças menores de 5 anos na população indígena devem-se principalmente a
condições de pobreza, como desnutrição, pneumonias e diarréias. Não temos como dizer se fatores
culturais, como o infanticídio, contribuem para a elevação da taxa de mortalidade infantil. O sistema
de coleta de dados não tem esse tipo de informação", explica Maria de Fátima Marinho de Souza, da
Coordenação Geral de Informações e Análise em Epidemiologia do Ministério da Saúde.
A Funasa, por meio de sua assessoria, alega que os números levantados pelo Ministério da Saúde
estão em desacordo com o total de óbitos entre os aldeados (as informações que constam do livro
Saúde Brasil 2006 incluem tanto os índios que vivem em aldeias como os que estão em áreas
urbanas), mas não soube dizer quais as causas de morte entre aqueles que estão nas tribos nem se
práticas culturais interferem nesses dados. A taxa de mortalidade infantil nas aldeias, segundo o
órgão público, foi de 39,1 óbitos para cada mil nascidos vivos no ano passado, bem mais elevada do
que a verificada entre a população brasileira, que é de 23,6. As duas, no entanto, estão bem acima do
que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estipula como aceitável, que é de dez óbitos por mil
nascidos vivos.
Cortina de fumaça
Para o coordenador de Assuntos Externos da Funai, Michel Blanco Maia e Souza, os casos de
infanticídio não merecem maior atenção do governo. "Não temos esses números, mas acredito que
sejam episódios isolados." Segundo Souza, a preocupação com os homicídios de bebês nas tribos
vem sendo expressada por missões religiosas, que vêem no debate uma oportunidade de
permanecer em territórios indígenas isolados. "Estão tentando usar essa questão para criar uma
cortina de fumaça e desviar o foco do problema da interferência de seus missionários na cultura dos
índios", diz ele, alegando que o trabalho de algumas organizações é meramente proselitista.
Na avaliação do coordenador, a Funai e a Funasa dão a assistência necessária aos índios para evitar
a matança de crianças. "Se há bebês que nascem com problemas, já temos profissionais e médicos
que oferecem soluções e tratamentos para evitar que sejam sacrificados. Mesmo entre grupos
nômades, quando a mulher tem vários filhos, damos assistência para que ela não mate nem
abandone alguma criança. Mas são episódios raríssimos. Desconheço outras formas de infanticídio
que estejam sendo praticadas", conclui o funcionário da Funai.
Não é o que pensa Márcia Suzuki. Etnolingüista com mestrado em lingüística indígena pela
Universidade Federal de Rondônia, ela esteve no centro do imbróglio causado pela retirada de dois
bebês da tribo suruuarrá, em 2005, para tratamento médico em São Paulo. Na ocasião, Funasa e
Funai acusaram os missionários evangélicos da organização Jovens com uma Missão (Jocum), que
atuavam na área dos suruuarrás – uma tribo isolada, com cerca de 130 índios –, de "seqüestrar" as
crianças. Márcia e seu marido, Edson Massamiti, que faziam parte da missão religiosa, defenderamse, apresentando documentos de autorização assinados por funcionários do posto da Funasa de
Lábrea, no Amazonas, que liberavam o translado dos bebês e seus familiares. "Se eles não fossem
levados para tratamento, certamente seriam sacrificados", afirma Márcia.
Uma das crianças, Iganani, era portadora de paralisia cerebral e a outra, Tititu, recebeu o diagnóstico
de hermafroditismo. Iganani chegou a ser deixada na mata para morrer, mas sua avó conseguiu
convencer a mãe a ficar com ela. Já Tititu quase foi morta pelo pai, que ameaçou flechá-la, mas
acabou decidindo levá-la até os "brancos", para ver se saberiam o que fazer.
Voz pelas crianças indígenas
"Muwaji, a mãe de Iganani, é o principal símbolo de nossa luta. Ela nos pediu ajuda e a atendemos",
explica Márcia, que fundou no fim do ano passado a Atini (voz, em suruuarrá), uma organização nãogovernamental (ONG) cujo objetivo é "erradicar a prática do infanticídio nas aldeias indígenas do
Brasil". Buscando alcançá-lo, somou forças com políticos, antropólogos, advogados, geólogos e
lideranças indígenas. "Temos percorrido diversas partes do país e contatado ONGs internacionais e
até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) com o intuito de denunciar essa prática",
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explica a etnolingüista, que viveu por 20 anos entre os suruuarrás e os saterés-maués. "Nesse
período ocorreram 28 casos de infanticídio somente entre os suruuarrás."
Desde a criação da Atini, ela contabiliza, por meio de pesquisas feitas com informações de missões
religiosas, DSEIs, reportagens e dados da Funasa, que nos últimos quatro anos cerca de 500
crianças teriam sido assassinadas por razões culturais. "Estamos tentando entender o infanticídio no
Brasil, mas os dados são esparsos e não muito seguros."
Na opinião de Márcia Suzuki, um dos principais entraves para que o infanticídio deixe de ocorrer entre
os indígenas está no campo político-cultural. Para ela, existe uma visão idealizada do índio. "Isso é
reflexo de nossa história e do que aconteceu no Brasil, com a dizimação de tribos. Há um sentimento
de culpa nacional. As pessoas acham que se você preservar a cultura indígena, mesmo com a morte
de crianças, a dívida com os índios será paga, o que não é verdade", afirma.
Suas opiniões chocam-se contra a corrente antropológica, segundo a qual o bem e o mal são
relativos em cada cultura. O "bem" coincide com o que é "socialmente aprovado". "A questão do
infanticídio é muito complexa e não pode ser analisada separadamente da cultura e da cosmologia de
cada povo. É perigoso tratar desse assunto como se fosse um fenômeno único, pois o que o Ocidente
chama de infanticídio tem significado muito diferente em outras culturas", explica Stephen Grant
Baines, antropólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, o assunto é polêmico e cabe apenas à sociedade indígena decidir se deve ser encarado
como um problema de saúde pública. "Acho que pessoas de fora [da aldeia] não deveriam interferir, a
não ser que os próprios indígenas solicitem uma discussão sob a ótica dos direitos humanos."
Aspectos legais
A advogada Maíra de Paula Barreto discorda e pede uma ação, por parte do governo, para frear os
casos de sacrifício de crianças nas tribos. "Sou a favor dos direitos humanos como algo universal,
comum a todos os povos. Acredito que quando há choque com a cultura, o que prevalece são os
direitos fundamentais", afirma a pesquisadora, que é doutoranda pela Universidade de Salamanca, na
Espanha, onde analisa, para sua tese acadêmica, a posição do governo brasileiro diante dos
homicídios de recém-nascidos indígenas.
Maíra, que também faz parte do conselho consultivo da Atini, considera a prática cultural do
infanticídio um atentado aos direitos humanos. "No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), todas as crianças devem ser protegidas. Além da Declaração dos Direitos da
Criança, da ONU, é lei que o Estado deve abolir práticas tradicionais que causem violações à
integridade física dos menores", considera. Segundo ela, o artigo 231 da Constituição, sobre a
preservação dos valores culturais, deve ser entendido a partir do artigo 5º, que trata da proteção à
vida.
Ela lembra que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, onde está definido que a cultura indígena ou tribal deve se
submeter aos direitos humanos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional e internacional.
"Acho que o governo deveria ter coerência, ou seja, se quer defender o relativismo cultural no Brasil,
que denuncie os tratados de direitos humanos – o que significa retirar sua assinatura desses
documentos. O direito à vida é inato, independente de etnia ou crenças", afirma Maíra.
O tema já chegou ao Congresso Nacional, onde reuniões entre representantes da Funai, da Funasa e
de ONGs foram agendadas na Comissão da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento
Regional e na de Direitos Humanos e Minorias.
Francisco Loebens, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), discorda que o Estado deva intervir na prática
cultural. "Historicamente, a interferência externa nas soluções encontradas pelos povos indígenas,
tendo como referência os padrões culturais do Ocidente, tem gerado mais problemas para essas
culturas. Infelizmente, o Estado brasileiro tem se ocupado muito em acabar com as diferenças, em
vez de compreendê-las", analisa.
Segundo Loebens, o atual modelo indigenista adotado pelo país inviabiliza uma aproximação entre
agentes do poder público e povos indígenas, para uma interferência na questão do infanticídio. "Não
se trata aqui de assistência médica ou psicológica, mas de distintas visões de mundo. O diálogo com
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base no conhecimento e respeito do outro é o melhor caminho, pois certamente nos levaria também a
reconhecer nossos defeitos, inclusive a violência praticada contra crianças na nossa sociedade, em
vez de enxergá-los só nos outros", afirma.
Ele não acredita que a alta taxa de óbitos entre as crianças tenha ligação com práticas culturais e
considera que a mortalidade infantil esteja mais relacionada à falta de terras e às más condições de
saúde dos índios. "Inserir o infanticídio como uma das causas de morte seria transferir o problema
para as comunidades indígenas em vez de buscar políticas públicas mais adequadas", aponta
Loebens.
Terra e saneamento
A professora Carla Costa Teixeira, responsável pelo Departamento de Antropologia da UnB, também
descarta que os homicídios culturais sejam numericamente significativos e, em coro com o indigenista
do Cimi, aponta como fatores principais para a mortalidade infantil os problemas territoriais, a falta de
alimentos e a ausência de saneamento adequado. "É óbvio que há elementos culturais. O que digo é
que não há comida suficiente. Isso é sério e não pode ser resolvido apenas com a distribuição de
cestas básicas", diz, citando o caso de Dourados (MS), onde dezenas de crianças indígenas vêm
apresentando um quadro de desnutrição aguda. Muitas, inclusive, morrem por falta de alimentação.
Em sua opinião, o infanticídio não pode ser enquadrado como uma das causas do elevado número de
óbitos entre as crianças indígenas. Ela considera "um argumento perverso" vincular práticas culturais
com mortalidade infantil.
Segundo Carlos Everaldo Alvares Coimbra Junior, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, "temos pouco conhecimento sobre o
infanticídio entre os indígenas. Além disso, os números oficiais não são confiáveis. Morre mais gente
do que é contado, inclusive devido à ineficiência dos programas de saúde voltados aos índios".
Doutor em antropologia pela Universidade de Indiana (EUA), Coimbra acredita que o problema
começa na conceituação do que é "infanticídio" entre os indígenas, já que na sociedade brasileira o
termo é aplicado aos casos em que a mãe mata o filho durante o puerpério – período necessário para
que o estado geral da mulher retorne às condições anteriores à gestação.
De acordo com o pesquisador, é necessário um acompanhamento dos casos de assassinato de
bebês nas aldeias. "Se alguns médicos dizem que mães estão matando seus filhos na proporção que
consta do relatório dos ianomâmis, então é necessária uma investigação séria. Essas mulheres não
são assassinas vulgares. Acho que estão sofrendo também", pondera.
Coimbra acredita que o caminho seja buscar entender as razões para os infanticídios. "Não posso
admitir que simplesmente se criminalize a mulher indígena ou que naturalizemos uma prática dessas
em nome da cultura; acho que é necessário ir até lá para saber o que está acontecendo."
Prática comum
Apesar da ausência de números confiáveis, a prática do infanticídio é algo comum entre as
comunidades indígenas e já foi documentada em diversos estudos antropológicos. Os motivos
alegados para o sacrifício de crianças são os mais diversos, como o nascimento de bebês com
deficiências físicas ou mentais, gêmeos, filhos de relacionamentos extraconjugais, a preferência pelo
sexo masculino, a ocorrência de partos muito próximos um do outro, sonhos ou maus presságios.
Normalmente os recém-nascidos são abandonados no meio da mata, enterrados vivos (para que,
segundo a tradição, possam ver a passagem para o "outro mundo"), asfixiados com folhas ou
envenenados. Há também relatos de bebês flechados ou mortos a golpes de facão.
Entre as tribos em que o sacrifício de bebês é relatado estão as etnias ianomâmi, suruuarrá, uaiuai,
bororo, tapirapé, caiabi, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau e paracanã.
"Ninguém fala sobre o infanticídio, não é algo que eles se sintam confortáveis em comentar. É um
tabu", explica Yumi Gosso, doutora em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo
(USP), que estudou a vida dos índios paracanãs. Segundo ela, apesar de ser inaceitável em nossa
sociedade, a prática encontra razões no ambiente das tribos, onde o trabalho é muito duro para as
mães. "Imagine o que seria cuidar de duas crianças gêmeas na aldeia. Isso colocaria em risco a vida
das duas", avalia. A pesquisadora explica também que os indígenas não criam um laço afetivo com o
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bebê logo que ele nasce. "Existe um período até que se estabeleça um relacionamento entre mãe e
filho."
Causas da mortalidade infantil
Percentual de óbitos entre crianças indígenas menores de 1 ano de idade (dados de 2004)
Afecções perinatais: 29,2%
Problemas respiratórios: 20,2%
Doenças infecciosas: 12,9%
Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas: 11,7%
Malformações congênitas: 8,8%
Causas mal definidas: 12,5%
Causas externas: 2,3%
Outras causas: 2,3%
Fonte: "Saúde Brasil 2006 – Uma Análise da Desigualdade em Saúde", Ministério da Saúde
Carta publicada na edição 386, março/abril de 2008
Esclarecimento
Recebi a matéria [sobre morte de bebês indígenas – edição 381] encaminhada por um amigo e estou
indignado com a informação atribuída a mim de que 98 crianças yanomami foram "assassinadas
pelas mães" em 2004 (e 68 em 2003).
Gostaria que o jornalista retificasse essa matéria, esclarecendo quais fontes consultou. Nunca falei
com esse senhor. Aguardo a correção das informações.
Marcos Pellegrini
Resposta do repórter
De fato, não falei com o doutor Pellegrini. A matéria não diz isso em momento algum e avisa que as
informações foram colhidas na imprensa – "Folha de Boa Vista", na edição de 11 de março de 2005,
e "Brasil Norte", de 26 de maio de 2004.
Procurei o doutor Pellegrini para confirmar as informações através da Comissão Pró-Yanomami, do
Instituto Socioambiental, da Funasa em Brasília, do jornal "Folha de Boa Vista" e do Distrito Sanitário
Yanomami, onde o assessor de imprensa Ribamar Rocha informou que ele havia deixado a área em
2006.
Estes são os trechos dos jornais que registraram a informação:
"Sim, nós temos crianças morrendo por desnutrição em Roraima. E se a essa causa for acrescentado
o péssimo hábito das índias yanomami de matarem seus filhos, caso o anterior ainda esteja sendo
amamentado, os números indicam que estamos diante de uma tragédia. Segundo o médico Marcos
Pellegrini, do Distrito Sanitário Yanomami (DSY), somente no ano passado morreram 104 crianças de
zero a nove anos de idade. Dessas, seis perderam a vida por desnutrição e 98 foram mortas pelas
mães." ("Folha de Boa Vista", 11 de março de 2005.)
"As áreas de atuação [do Plano Distrital de Saúde 2003/2004, do Conselho Distrital de Saúde
Indígena Yanomami] foram definidas através da realização de duas oficinas de trabalho realizadas
pelo DSY. Para a chefa do distrito, uma das principais preocupações das equipes de saúde é reduzir
o número de infanticídios, que elevaram o coeficiente de mortalidade infantil de 39,56 para 121 no
ano de 2003. Ao todo foram 68 crianças vítimas de infanticídio no ano passado." ("Brasil Norte", 26 de
maio de 2004.)
Marcelo Santos
Nota da Redação
O número de crianças yanomami mortas, publicado em Problemas Brasileiros, teve como fonte os
órgãos de imprensa citados acima. O médico sanitarista Marcos Pellegrini não foi autor direto das
informações, como pode ter transparecido do texto publicado na edição em questão.
75
ANEXO 06: Girl survived tribe's custom of live baby burial. Daily Telegraph,
22/06/2007
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1555339/Girl-survived-tribe%27s-custom-oflive-baby-burial.html?service=print
Girl survived tribe's custom of live baby
burial
By Jemimah Wright in Brasilia
Last updated: 2:30 AM BST 22/06/2007
Babies born into some Indian tribes in the Amazon are being buried alive, a practice that is
being covered up by the Brazilian authorities out of respect for tribal culture.
Hakani, who lived in the forest for three years after being abandoned, aged two, by her tribe.
She was adopted by Marcia and Edson Suzuki
The tradition is based on beliefs that babies with any sort of physical defect have no souls and
that others, such as twins or triplets, are also "cursed".
Infanticide has claimed the lives of dozens of babies each year, say campaigners fighting to
end the practice.
Babies who are girls, who have some disability or who have unmarried mothers are all in
danger of an early death in a shallow grave in the rainforest. Others are suffocated with
leaves, poisoned or simply abandoned in the jungle.
According to Dr Marcos Pelegrini, a doctor working in the Yanomami Tribe Health Care
76
District, 98 children were killed by their mothers in 2004 alone.
Campaigners say that the true figure is obscured by officials who often record cases of
infanticide as simple malnutrition. At the same time, family anguish over infanticide has led
to many adult tribal members committing suicide.
Attempts to change tribal attitudes and counter official indifference are being led by a
Brazilian couple, Marcia and Edson Suzuki. They have worked with one tribe, the Suruwaha,
for 20 years.
Mr Suzuki, the founder of a campaign group called Atini - Voice for Life - said: "We are
fighting against doctors and anthropologists who say we must not interfere with the culture of
the people."
Such attitudes are exemplified by Dr Erwin Frank, an anthropology professor at the Federal
University of Roraima State in the Amazon.
Speaking of the tribes, he said: "This is their way of life and we should not judge them on the
basis of our values. The difference between the cultures should be respected."
Like other tribes, the Suruwahá considers that if a child has any deformity or disability, it does
not have a soul and so - as an animal - should be killed.
Some tribes also believe it is a curse to give birth to more than one baby at a time. In the
Suruwahá tribe, a pregnant girl will walk into the jungle by herself to give birth.
She then cuts the baby's umbilical cord, buries the placenta and returns to the village with her
child.
Sometimes the woman will simply leave the child in the jungle to die if it is a girl or if she is
not married.
The Suzukis recounted the harrowing story of one girl, Hakani, who they saved from death
and adopted.
Born in 1995, Hakani - which means Smile - was still unable to walk or talk by the age of
two, prompting tribal leaders to conclude she had no soul and to order her parents to kill her.
They committed suicide - eating a poison root - rather than obey the order. Hakani's 15-yearold brother was then told he had to kill her. He dug a hole to bury her next to the village hut,
which is where the tribe usually buries animals, and hit her over the head with a machete to
knock her out.
However, she woke up as she was being placed in the hole and the boy found he could not go
through with the killing. Hakani's grandfather then shot her with an arrow. He was so upset he
tried to commit suicide, too.
But Hakani survived, although her wound became infected and she was left to live like an
animal in the forest for three years.
At the age of five she was very undersized, still unable to walk and abused by other Indians.
She survived only because a brother smuggled food to her.
The Suzukis begged Funasa, the Brazilian government's health department, to let them take
Hakani out of the tribe to get medical help.
"Funasa could not help because their official view is to respect the culture of the people and
let the children die. If we took Hakani out we could be sued," said Mrs Suzuki.
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Warned that they could be responsible for the child's death, Funasa eventually relented. Under
the Suzukis' care, Hakani was walking and talking within a year. While she suffers from
hypothryoidism - an underactivity of the thryroid gland which affects brain development - she
is able to attend a mainstream school.
Brazilian politicians are currently debating a Bill to outlaw infanticide. It is known as
Muwaji's Law, named after a Suruwahá woman who refused to bury alive her own baby.
Story from Telegraph News:
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1555339/Girl-survived-tribe%27s-custom-oflive-baby-burial.html
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ANEXO 07: Morreram 104 crianças yanomami em 2004
10 - Março - 2005
Titulo: Morreram 104 crianças yanomami em 2004
Fonte: Folha de Boa Vista
A desnutrição matou seis crianças yanomami e um idoso no ano passado, em todo o
Distrito Sanitário Yanomami (DSY), que abrange os estados de Roraima e Amazonas. Dos
161 óbitos registrados no período, 104 foram crianças de zero a nove anos de idade. O
infanticídio é a principal causa de morte, seguida das doenças respiratórias, como a
pneumonia.
A população yanomami do Brasil é formada por 15.005 indivíduos, sendo 3.359 crianças
de zero a cinco anos de idade. Eles vivem em Roraima e no Amazonas, numa reserva de
9,4 milhões de hectares. Apesar da extensa área, as crianças sofrem com a carência
alimentar. Segundo estimativa do médico e antropólogo Marcos Pelegrini, coordenador
técnico
do
DSY,
20%
dessas
crianças
apresentam
baixo
peso.
A situação é mais grave nas comunidades de Homoxi, Xitei e na região de Parafuri,
justamente os locais mais atingidos pelo garimpo nas décadas de 70 e 80. A poluição dos
rios pelo mercúrio, usado para purificar o ouro, prejudicou a pesca enquanto a
devastação da floresta e os motores afastaram os animais que eram normalmente
caçados
pelos
indígenas.
“Os índios reclamam que não têm mais a queixada [porco do mato], que antes
encontravam
aos
bandos
com
até
200
animais”,
disse
Pelegrini.
A falta de alimento, no entanto, não é a única causa da desnutrição. “Eles estão
morrendo não por falta de comida. Existem diversas causas de desnutrição, como as
infecções e as doenças repetidas que deixam a criança abaixo do peso”, ressaltou o
médico. Pelegrini trabalha com os yanomami desde a criação do DSY, em 1991. Ele diz
que além das regiões afetadas pelo garimpo, nota deficiência de comida nas áreas de
conflito entre os indígenas. “Essas brigas diminuem a força de trabalho disponível para a
caça e a pesca, e inibem as caçadas prolongadas, que dão melhores resultados, e a
abertura
de
roças
em
áreas
novas”,
conta.
Mesmo depois da proibição do garimpo na terra indígena, há 15 anos, a garimpagem
ainda é motivo de conflito entre as comunidades. “As mortes por causa de doenças
trazidas pelos garimpeiros ainda são motivos de disputas registrados até hoje”, ressaltou.
O diretor não considera alto o número de mortes por desnutrição no ano passado. “Não
tenho dados de outras regiões para fazer um comparativo, mas a desnutrição não é a
principal causa de morte entre as crianças. Eles morrem mais por complicações
respiratórias”,
argumentou.
Na opinião dele, a situação dos índios yanomami não pode ser comparada aos índios do
Mato Grosso do Sul, onde foram registradas nove mortes por desnutrição este ano. “O
nosso problema não se parece com o do Mato Grosso do Sul. Lá eles não têm terra,
emprego nem lenha para fazer a comida. Só em Dourados, oito mil índios vivem na
periferia
da
cidade”,
afirmou.
CONTROLE – Os casos de desnutrição vem diminuindo. Em 2002, o DSY identificou 379
crianças de até cinco anos com esse problema. Em 2003, foram 187 - mas este número
está subestimado - e 350 no ano passado. Em 2002, oito crianças morreram e seis em
79
2004.
Marcos Pelegrini afirma que os 250 profissionais de saúde que trabalham na área
Yanomami atuam na vigilância do estado nutricional das crianças, procurando identificar
os motivos para que apresentem desvios na curva de crescimento normal.
O acompanhamento é feito mensalmente, com visitas em todas as comunidades. “Todas
as crianças com menos de cinco anos são pesadas e medidas”, disse. Os casos de
desnutrição são tratados com suplementação alimentar, através da doação de leite, papa
e óleo, que oferecem uma alimentação hipercalórica às crianças.

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