O SOL NA NOITE E O LUAR NOS DIAS, DE NATÁLIA CORREIA

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O SOL NA NOITE E O LUAR NOS DIAS, DE NATÁLIA CORREIA
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O SOL NA NOITE E O LUAR NOS DIAS, DE NATÁLIA CORREIA:
ROMANCE, A TRÊS VOZES, DE UMA OCIDENTAL
Fernando Vieira-Pimentel
(Universidade dos Açores)
O homem canta.
E enquanto canta o homem dura.
Porque o seu canto é perceber
que a voz prevalece à criatura. (I, p. 97).
À sombra erma de uma razão longínqua
Narro-me e não me encontro. (II, p. 366).
(...) le Roman est l’unité (infinie) de tous
les livres romantiques [...] (2).
Pouco antes de morrer, Natália Correia (1923-1993) resolveu reunir num só livro, a que deu o
título global de "O sol na noite e o luar nos dias" (2 volumes; Lisboa, Círculo de Leitores, 1993), todas as
suas obras de poesia, intercaladas dos inéditos produzidos ao longo dos anos. Para quem, como eu,
conhecia apenas uma ou outra dessas obras, o resultado é surpreendente. Mas não o terá sido menos
para os natalianos incondicionais (os "fiéis de amor", gostava ela de sublinhar): é que muita coisa se
altera na leitura das obras particulares quando elas passam, com a benção do autor, à alçada de uma
obra maior. Dizia Malraux, como amiúde se tornou hábito lembrar, que a morte transforma a vida em
destino. Muito mais a transforma se, desde cedo, essa vida for acontecendo também como obra e se
essa obra tiver, no fim, o condão de concluir-se e observar-se como concluída — quero dizer, quase
concluída, que na esfera dos humanos não há lugar para certezas nenhumas... Ora Natália Correia, a
escritora Natália Correia, teve essa graça: concluir a sua obra e observá-la como concluída, o que
significa ter entrevisto, através deste livro derradeiro, o alvorecer de uma nova vida no mesmo
momento em que a antiga vida a ia deixando. Com efeito, "O sol na noite e o luar nos dias" é publicado
em Março de 93, precisamente o mês da morte da escritora, enquanto a respectiva introdução, de teor
auto-reflexivo, data de pouco tempo antes (28 de Outubro de 1992).
A nova vida que acabo de referir é obviamente a da arte, ainda hoje para tantos legítimo
sucedâneo da antiga religião. No meio desses tantos, avulta sem dúvida Natália Correia, a voz
simultaneamente diversa e una que emerge deste livro exemplar (exemplar a vários níveis, inclusive no
sentido de guia das "rudes gentes", como diriam os clássicos da estirpe aristotélico-horaciana, assentes
embora em critérios distintos). Por muitas e fundadas suspeitas que haja em relação às famígeras
leituras biografistas, torna-se muito difícil não nos vermos aqui confrontados com a necessidade de as
recuperar em moldes diversos — na senda, aliás, do que tem sido feito por cotados hermeneutas dos
universos imaginários. Se, segundo creio, o acto de ler supõe a capacidade de surpreender o centro
gravitacional das obras, o princípio oculto que as unifica e distingue, então "O sol na noite e o luar nos
dias" só pode ser o seguinte: a história de uma mulher que forças superiores decidem que se cumpra na
palavra e pela palavra — palavra especial, adversa ao tempo mas moldada nele; palavra ela própria
concebida, no ovo, como aventura singular. "Além de mim age um ignotus que ainda estou para saber o
que é", dirá mais tarde a autora enquanto teorizadora e crítica de si mesma ("Introdução", I, p. I). À roda
dos vinte anos, ainda pouco ciente do real poder e índole desse ignotus, mas já ciente do seu destino
inalheável, pôde Natália pronunciar-se assim num poema que ficaria inédito: "As pessoas caem como
folhas / E secam no pó do desalento / Se não as leva consigo / A fúria poética do vento. / Para que se
justifique a nossa vida / É preciso que alguém a invente em nós" (I, p. 10). Evidentemente que nada de
particular distingue este poema, a não ser, além do significativo título — "Do dever de deslumbrar" —, a
convicção que o move e a ética que sustenta.
Justificação e invenção da vida. Durante cerca de meio-século, dos inícios dos anos 40 até aos
inícios dos anos 90, Natália não fará outa coisa senão inventar-se. Por um lado, age, ama, rebela-se,
viaja. Por outro, recolhe-se, medita, labora, produz. Produz muito: poesia lírica e ficção narrativa, teatro
e ensaio. Organiza antologias que fizeram história; colabora em jornais e revistas; intervem na política;
distingue-se pela coragem e frontalidade. Acaba por nunca se libertar da imagem de excêntrica que lhe
colam — imagem desfocada, mas para a qual ela de algum modo terá contribuído. Estou convencido de
que uma das maneiras mais eficazes de entender a sua obra em geral passa por encará-la como uma
totalidade, por lê-la como um só texto, um pouco à semelhança do que José Gil fez com Fernando
Pessoa (3). Não serei tão ambicioso, cingido que estou, por opção e gosto, à sua obra poética — esta,
decerto, a mais adequada, pela sua natureza eminentemente lírica, para nos revelar aquilo que afinal
nos já revelou: a autobiografia espiritual de uma mulher que, de poema para poema e de livro para
livro, se busca incessantemente. Uma busca que se caracterizará sobremaneira pela gestão hábil e
criativa de dois princípios bem diferentes: o que tende a valorizar a originalidade e a auto-renovação, a
presença viva e inconfundível do próprio tempo histórico; e o que tende a recuperar a tradição — seja a
tradição dita moderna, que vem do romantismo para cá e inclui formas, ritmos e géneros populares;
seja a tradição dita clássica, de que foi conhecedora profunda, nas suas sucessivas encarnações; seja
finalmente a Tradição propriamente dita, a Tradição das tradições, que mergulha na espessura de
remotos saberes e experiências.
Gestão hábil e criativa destes dois princípios não significa gestão impune às tensões que daí
decorrem. Ao procurar, com crescente determinação, enraizar a liberdade do presente na indiscutida
autoridade das origens, Natália Correia — a tal voz que, quando canta, conta... — torna-se herdeira
assumida de um património e de uma aventura atravessados por profundas e graves dissensões. Estou a
falar do património e da aventura do que se convencionou chamar Ocidente, logo do seu estranho e
inquieto protagonista, o homem ocidental — entidade dificilmente compreensível sem uma breve
referência ao teor das suas relações com aquilo que o rodeia ou transcende. Se, numa primeira fase,
que integra o mundo antigo e o mundo cristão, as relações com o Ser ou Deus se caracterizam pela
heteronomia e subalternidade, numa segunda fase — correspondente à chamada modernidade ("grosso
modo": os últimos três séculos) —, as coisas mudam, e mudam significativamente: de personagem
secundária o homem passa a protagonista, a núcleo estruturante do universo e de si próprio. Um
protagonista, no entanto, pronto dominado por aquilo a que Georges Poulet designa de "tema das duas
consciências": a "consciência de si puramente intelectual", exemplarmente representada pelo
iluminismo e seus avatares; e a "consciência sensível" (4), que iria desembocar na revolta romântica,
uma das mais poderosas e avassaladores revoltas do mundo moderno contra si próprio. Por outras
palavras: a modernidade — onde tudo é pensado ou projectado a partir do homem — aparece, desde o
início, dual e contraditória, assim se mantendo, numa espécie de guerra civil entremeada de tréguas e
concessões, ao longo dos séculos XIX e XX.
Do ponto de de vista desta guerra civil — quer dizer: do ponto de vista das "duas modernidades"
ou "do conflito das modernidades", segundo hoje se diz (5) —, o que logo caracteriza a obra poética de
Natália Correia é a sua especial adesão à modernidade estética. Não à modernidade estética entendida
como "ruptura", impenitente saga do novo pelo novo; nem propriamente entendida como "tradição",
repositório de soluções e expedientes entretanto legitimados; antes à modernidade estética entendida
como um projecto que remonta longe ou relativamente longe: nada mais nada menos do que à aurora
dela, ao romantismo, inexcedível promotor da tal "poesia universal progressiva", que Schlegel achava
destinada a "eternamente devir", sem jamais "poder cumprir-se" (6). Uma afirmação deste teor — que
distingue por junto o inacabamento e a longa duração — só pode ter duas consequências: ou a de
colocar de imediato a escritora na prateleira neo-romântica, prateleira onde cabe tudo quanto
inobserve o cânone das inovações sucessivas; ou a de procurar mostrar que o romantismo se não
confina a mero primeiro estádio da modernidade estética — que, pelo contrário, está vocacionado para
resistir e se adaptar às mudanças, sem qualquer perda do brilho e da vitalidade originárias. É evidente
que esta segunda alternativa não está isenta de riscos e perigos vários, nomeadamente a tentação —
recorrente nos domínios da teoria, da crítica e da história da arte em geral — para o reforço do
significado tipológico de certas categorias. Mas o contrário também é verdadeiro: mostrar que os
modelos tipológicos são susceptíveis de rendimento heurístico, desde que se não alheiem dos
específicos significados históricos entretanto adquiridos.
Na senda do seu congenial romantismo, a poesia nataliana é, desde o incipiente "Rio de nuvens"
(1947) ao amadurecido "Sonetos românticos" (1990), expressão de uma subjectividade e arte da
linguagem. Expressão de uma subjectividade, porque tudo irradia do eu, da intuição de si; arte da
linguagem, porque as coisas — o eu, os outros, o mundo, os deuses... — só existem quando o poema as
levanta do vazio. "O poema é o que no homem / para lá do homem se atreve" (I, p. 15). Eis um belo
resumo da ambição de Natália: ir cantando, ir erguendo do nada, o que nela para além dela se atreve —
uma vida posta e apurada em palavras, mas palavras que procuram tornar à vida, que é para isso que
existem os livros, os leitores e as leituras. Como leitor atento de Natália, conquanto nem sempre
esteticamente conquistado de igual modo por todos os poemas, gostaria de salientar o que dessa vida
guardo para proveito próprio. Guardo, em primeiro lugar, como já disse, a ideia de uma autobiografia
espiritual singular, espécie de ‘romance de aprendizagem’ lavrado em reiteradas epifanias poéticas. A
seguir, guardo a ideia de que se trata de um ‘romance’ a três vozes, umas vezes inconfundíveis, outras
vezes cruzadas, sempre porém emanadas da matriz romântica: 1) a voz pessoal, digamos assim, lírica
por excelência, veículo de referências, vivências e perplexidades ligadas ao eu particular; 2) a rebelde,
aberta aos outros e aos condicionamentos supra-individuais, fruto de uma crescente e entranhada
preocupação com os destinos da pátria, da Europa e do Ocidente em geral; 3) a sábia ou sabedora, voz
de um eu já não conforme o conhecemos, mas um eu medianeiro do espírito, consciência de missão,
serena inclinação perante a essência divina da nossa odisseia.
Cada uma destas vozes — perspectivadas, claro, como dominantes e não como exclusivas —
corresponde, de certo modo, a domínios fulcrais da nossa vida psíquica. Recordemos que, há cerca de
cinquenta anos, e embora estribado em discutíveis pressupostos caracterológicos, Guy Michaud
contribuiu alguma coisa para uma melhor compreensão do romantismo europeu, ao criar uma
interessante tipologia das respectiva grandes famílias: precisamente a dos "afectivos", a dos "activos" e
a dos "intelectuais" — todas elas movidas pela funda necessidade de "conquistar a verdade e possuir o
conhecimento" (7). Mas podemos ir mais atrás, ao coração do romantismo alemão, e verificar como
Novalis insiste na função sintética da poesia, no facto de o génio poético constituir "uma pluralidade,
uma sociedade interna de indivíduos diferentes, heterogéneos, em diálogo no interior de um mesmo
ser" (8). Ou, sem outros rodeios, ir à própria Natália teorizadora e crítica — e ouvi-la, cúmplice, falar
acerca das suas "intrínsecas pluralidades" ("Introdução", I, p. II), dos "diversos heterónimos" que os
poetas vivem em cada modo de expressão", do "drama em gente que o anglo-saxonizado Pessoa
resolveu com pragmatismo metódico ou sistematizada heteronímia" (Ibid., pp. 1 e 2).
Independentemente das diferenças — diferenças de contextos, de representatividade, de ângulos de
focagem e até de rigor —, parece perfilar-se neste conjunto de apanhados algo que os aproxima e
interessa salientar aqui: o alerta para a índole intrinsecamente proteica dos escritores românticos ou de
extracção romântica; a certeza das polaridades, tensões e sinuosidades que percorrem as obras e as
"vidas" desses mesmos escritores; o reconhecimento, em suma, das dificuldades que há em fixá-los
numa fórmula simples e incontroversa.
A obra de Natália está entre as que se furtam a fixações fáceis, podendo ser abordada de diversos
prismas: desde os que prefiram privilegiar a patente heterogeneidade dos seus idiomas líricos (à
semelhança da de Nemésio, a obra nataliana constitui um excelente "catálogo" da melhor poesia
portuguesa de várias épocas e períodos) aos que resolvam deter-se na cultivada multiplicidade dos seus
saberes (sobretudo os relativos ao "recalcado" do Ocidente: mitos, símbolos, crenças, teorias e práticas
herméticas, profecias de iluminados, antigos e novos mistérios, etc.). Tais saberes são mesmo tantos e
tão variados que obrigam as leituras literárias a especiais precauções, sob pena de insensivelmente
deslizarem para leituras de tipo alegórico-simbólico, com razão consideradas pouco profícuas quando
feitas na ausência de moldura e instrumentação adequadas. Penso que a melhor maneira de superar
esse risco, muito generalizado entre os estudantes, passa por uma maior atenção à fonte de onde tudo
brota; ao eu que, ao dizer-se sem cessar, sem cessar se conhece, refaz e supera. À especial natureza
desse eu "em acto" — um eu agudamente consciente de si, misto de incontida energia e perpétua
insatisfação — ficará a poetisa a dever um destino sobremaneira marcado pela auto-reflexividade, pelos
efeitos metamórficos da Ironia romântica. "O valor das palavras na poesia — sustenta — é o de nos
conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas. O ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca
mais se pode ter repouso" (I, p. 169). Claro que "esquecer" aqui não significa esquecer. Significa que as
palavras são já natureza nossa; que nelas tudo obrigatoriamente se renova e acontece: o universo
dinâmico, de que somos parte integrante; nós próprios, enquanto seres habitados pela Memória, pelo
Amor e pela Imaginação — isto é, por aqueles elementos que, na lógica profunda da poesia nataliana,
constituem a trave-mestra de qualquer existência votada à necessidade de se entender e de se merecer
.
Das referidas vozes de Natália, a que primeiro se gera e avulta é obviamente a particular, a mais
"egológica" e lírica de todas, voz por detrás da qual se adivinham, ainda que muito transformadas,
experiências e comoções realmente vividas ou sentidas por uma irredutível subjectividade.
Surpreendemo-la, operosa e insinuante, sobretudo nos livros iniciais da autora — "Rio de nuvens"
(1947), Poemas (1955), "Dimensão encontrada" (1957), "Passaporte" (1958) —, aqueles livros onde o
eu, graças à magia da palavra poética, procura precisamente "encontrar" a sua "dimensão", lograr o
"passaporte" que lhe faculte a identidade e o reconhecimento. Trata-se de uma voz intrinsecamente
saudosa, filha dilecta da "Sehnsucht" romântica, que ora se mostra presa ao passado, ao paraíso perdido
da infância (a ilha, a mãe, a casa, o quarto, a natureza consonante...), ora se mostra enfeudada ao
futuro, a um além que o mistério cerra mas que ela vislumbra no verbo por lampejos. "Vou das antíteses
para o absoluto" (I, p. 67), diz, decidida a não deixar dúvidas acerca do que lhe importa e do que lhe não
importa. Não lhe importa o mundo tal qual é, o confessionalismo primário, a empatia e o sincerismo
característicos de uma boa parte dos nossos poetas de ascendência romântica. Ao invés, importa-lhe o
demiurgismo, a ontologia estético-poética, a recriação ou reinvenção de tudo quanto existe.
Reinvenção, primeiro, das raízes (atente-se nas várias "biografias" explícitas ou implícitas, na mitologia
pessoal que aos poucos desponta, nos ascendentes biológicos e literários que comovidamente evoca a
"menina insular"). Reinvenção, depois, da vida e do amor que nela obscuramente se propaga (amor de
"amantes", genesíaco e total; amor que é vertigem e lucidez, ascese e voracidade; sobretudo amor que
gosta de se descrever como instante no eterno moldado). Reinvenção, por último, da Poesia, que o
mesmo é dizer: reiterada celebração do seu intrínseco enigma, voluptuosa submissão às inevitáveis
consequências que daqui decorrem: a) o culto da poesia como metapoesia, como uma poesia que é
sempre poesia da poesia; b) o livre curso da imaginação, da inimiga jurada das "imagens evidentes", no
caso a merecer bem o nome de "rainha das faculdades"; c) a íntima certeza de que a criação literária só
pode ser aquilo que o romantismo de mais alto nos legou — "desenho sobre o infinito", cifra do oculto,
alegoria do ser ou do divino.
A segunda voz de Natália — metade sibila, metade libertária... — é aquela que impera em
"Comunicação" (1959), "Cântico do país emerso" (1961), "O vinho e a lira" (1966), "Mátria" (1968), "A
mosca Iluminada" (1972), "O anjo do Ocidente à entrada do ferro" (1973) e "Epístola aos iamitas"
(1976), livros cujos títulos dão bem a ideia da inflexão em profundidade então registada no romantismo
nataliano. Agora ela já não é só ela, encruzilhada de forças contraditórias, espaço oferecido ao ilimitado
e ao intangível; agora ela é também, e sobremaneira, a "feiticeira Cotovia", maga insubmissa, herdeira
designada de antiquíssimos ritos e mistérios. Ao poeta (melhor dizendo: à poetisa, nome eufonicamente
mais adequado a quem se talha de sacerdotisa, de pitonisa, de deusa Isis...) está-lhe reservada a mais
alta e sagrada das missões: a de, pelo "vinho" e pela "lira", mudar a vida dos Homens e das Cidades,
levando-os à recuperação da verdade que esqueceram e junto da qual habitam desde o princípio dos
tempos. De Platão, Natália conserva a ideia de que o poeta é "coisa leve, alada e sagrada"; não a ideia
de que é irresponsável ou nefasto à Coisa Pública. Aliás, pouco se entenderá da poesia nataliana se lhe
for escamoteada uma das suas mais significativas dimensões: a da sistemática reabilitação da mulher
integral, o hino inflamado aos seus originários poderes de vidente e de pacificadora. Esquecido da
conjunta nobreza do amor e do desejo, da força genetriz do feminismo profundo, o mundo (a Europa, o
Ocidente, a nossa Lusitânia...) entrou em desequilíbrio, levado pela "masculina" embriaguez de uma
cisão que só poderia ter conduzido àquilo a que conduziu: ao olvido dos "nutrientes da vida", à
mutilação do corpo e dos sentidos, ao jugo da racionalidade, dos despotismos e da besta nuclear. De
resto, de entre os vários propósitos de qualquer dos livros atrás referidos, avultam estes dois: por um
lado, o ataque cerrado à modernidade científico-tecnológica, a altiva denúncia do seu histórico rasto de
cinza e sangue; por outro, a persistente glorificação do seu avesso, dos velhos e ocultos saberes
amorosamente reelaborados e transmitidos por sucessivas correntes herméticas e literárias (com relevo
para o romantismo e seus sucedâneos — daí o seu intermitente diálogo intertextual com os diferentes
Pessoa, nomeadamente o ocultista). Como se adivinha, há paradoxos que nem os melhores poetas
pensam sequer contornar — no caso da "geniológica" Natália, o de a mais valia estética das suas obras
emanar em grande parte da fascinante e insólita mistura de "mitologias" de sinal oposto: a antiga,
baseada no ancestral sistema das correspondências, na cíclica nostalgia da ilha perdida ou na primordial
fraternidade androgénica (ver, por exemplo, "Rébis", I, pp. 299-310); e a moderna, esteio do humor
corrosivo e das imagens incisivas, visível produto de uma época que conheceu Auschwitz (a diabólica
coerência do absurdo) e lhe tenta sobreviver. Para quem, "desejando julgar o seu tempo", ousa "ler no
passado a signa do presente" (I, p. 231) — nada de mais perturbador. Nada de mais exaltante também...
A última das vozes natalianas — a d’ "O dilúvio e a pomba" (1979), d’ "O armistício" (1985) e de
"Sonetos românticos" (1990) — traduz um acontecimento decisivo da vida da poetisa: a gratífica
consciencialização do excepcional dom ou favor que merecera do Espírito, entidade agora dominante,
devotadamente elevada a princípio dos princípios. À medida que o tempo foge e o Eterno a intima,
Natália quer ser mais do que musa ou vate eméritos; quer encontrar uma via que aprofunde e sobreleve
o Mistério e a Tradição antes cantados; quer, por assim dizer, tornar-se "sófica", votar-se por inteiro à
sabedoria, que outra coisa não há que melhor distinga a sua condição de eleita. Aqui chegados, é
evidente que já se não está a falar de uma qualquer poesia espiritual; está-se perante uma poesia de
carácter eminentemente gnóstico e salvacionista, sujeita a graus de iniciação, consciente das provas
prestadas e das provas ainda a prestar — sobretudo consciente do objectivo maior a atingir: fazer cair
"o véu do mistério final" (I, p. 387), habitar enfim "o céu futuro que houve dantes" (I, p. 392). Em
definitivo convicta de que o poeta e o sacerdote são um só, como nas origens o haviam sido, Natália
pugna pela harmonia universal das coisas e dos seres, pela confluência de mitos regressivos e
projectivos, pela diluição das galvanizantes vivências do porvir nas longínquas experiências do passado
(Unido o fim ao começo / Espírito encontra a morada", II, p. 170). Será, de resto, na Ilha, na volta à "Ilha
do Arcanjo", com tudo o que ela simboliza (perdido mundo da infância, deusa-mãe primitiva, memória
de arcanos, sacro lugar de refúgio, "centro inviolável" da actividade espiritual, etc.), que a poetisa
verdadeiramente se inteira da colombina "citação" e do seu real significado: o reencontro com o Espírito
Santo, com as velhas lições guardadas em lendas e rimances, com a certeza de que o amor da sabedoria
conduz naturalmente à sabedoria do amor. Assim se compreende o seu final joaquimismo, a esperança
no breve advento de uma terceira idade, a sua muito propalada conversão ao Páraclito ou à gnose
pentecostal. Uma conversão, todavia, muito particular, já que ela tem como base "a festa da
descrucificação", a denúncia intransigente do monoteísmo, a pagã reabilitação de todos os deuses —
daí o maior comedimento, nesta fase, da imaginação criadora e o óbvio enfeudamento de numerosos
poemas (com relevo para os de "Armistício") a formas e temas clássicos.
É evidente que não estamos perante um caso de heteronímia, mesmo embrionário. Se bem que
distintas, as três vozes acima discriminadas — qualquer delas, quando necessário, igualmente dadas à
virulência satírica, ao "Humor / Amor" (II, p. 183) — não equivalem a personalidades individuadas. São,
no essencial, vozes de uma mesma voz; estádios (noutra perspectiva: níveis) de uma vida
soberanamente imolada à Vida maior que nela pulsa. Quem quiser compreender a poesia de Natália não
poderá nunca prescindir do seguinte: de que se trata de uma obra gerada, do princípio ao fim, sob o
signo do amor ao Todo (chame-se ele Natureza, Universo, Ser, Deus, Vida, Alma ou Espírito...). É por isso
que acertadamente ela se define como romântica: em primeiro lugar, porque liberta da apertada malha
dos universais literários; em segundo lugar, porque jubilosa de cooperar na grande obra da criação; em
terceiro lugar, por saber que a cada momento nela se renova a tradição literária, vale dizer, que a cada
momento nela se refaz a odisseia de um espírito determinado pela íntima necessidade de perdurar ("Em
mim se resolve / o alto sentido / do fruto na árvore / incontido", I, p. 95). É por isso também que, vista
no seu conjunto, a obra nataliana adquire uma óbvia dimensão lírico- épico-dramática; constitui-se
mesmo num alfobre de "romances" entrelaçados: 1) o de uma mulher, progressiva (e muitas vezes
saturninamente) obcecada pela alquímica realização da "grande obra"; 2) o de uma civilização, o
Ocidente, cuja "hybris" fáustica ameaça encaminhá-la em linha recta para o apocalipse; 3) o de um país,
ora à mercê de opostos despotismos, ora esotérica e pessoanamente crente no retorno à missão; 4) por
último, mas não menos importante, o "romance" ou a "memória" da própria literatura — da universal
(digo, ocidental), feita de mitos, retratos, situações, géneros e expedientes retóricos vários ; e da nossa
própria, constituída por ‘estratos" históricos que vão das cantigas de amigo e de amor até à tradição
moderna propriamente dita, passando pela índole clássica (hinos, odes) de algumas composições.
Erra, por conseguinte, quem vir na poesia nataliana um mero sucedâneo do nosso proverbial
romantismo (amiudadas vezes, aliás, mais sub-romantismo do que romantismo propriamente dito). Em
contrapartida, não andará longe da verdade quem nela vir e rentabilizar uma das nossas mais
consequentes encarnações do que poderíamos denominar — num discutível apelo a imprecisas mas às
vezes proveitosas dicotomias — "pólo dionisíaco" da criação poética. Digo "pólo dionisíaco", pois o
"romantismo" de Natália alarga-se com voluptuosa simpatia quer para trás, caso do seu insistente
virtuosismo barroco, quer para diante — caso do clima simbolista ou pós-simbolista de alguns poemas
"místico-patrióticos"; da "espraiada e exaltante respiração de "Cântico do país emerso"" (9); caso
sobretudo do preito que rende ao universo libertador do surrealismo (poder irradiante das imagens,
magnificação do amor e da mulher, ultimato a todas as forças de opressão, elogio das "metamorfoses
necessárias para a conquista do mundo", súbito abandono a "um daimon gaulês", etc.). Como é
característico dos grandes poetas, Natália esquiva-se à catalogação fácil. Ela própria ficava irritada com
quantos — não discernindo "a poesia senão através de esquemas" — a arrumavam no "cacifo
surrealista" (10). Tinha razão; mas tinha razão principalmente por aquilo que cala: é que a sua
"subversão" está longe de ser compaginável com o sistemático anti-esteticismo das vanguardas ou com
qualquer tipo de anarco-literatura delas derivadas. Antes pelo contrário: a mais significativa poesia
nataliana representa, embora com sábios e numerosos caprichos à mistura, um excelente exemplo do
"ofício" de poetar, nela adquirindo especial relevo os códigos intrinsecamente "encantatórios" e
"inventivos" (o fónico-rítmico, o métrico, o retórico-estilístico). É certo que a escritora defende "a
urgência da poesia ser praticada" ("Introdução", p. VI); nunca, porém, de modo a pôr seriamente em
causa o princípio da especificidade da arte, a memória literária em geral, "a sagrada matriz do nosso
lirismo" (II, p. 397), etc. As suas imagens — sendo surpreendentes e libérrimas, para empregar um
termo de David Mourão-Ferreira (11) — não são arbitrárias nem gratuitas, como no surrealismo
ortodoxo; passam pelo crivo da razão ardente, isto é, supõem uma forma superior de consciência, que
as torna irredutíveis aos celebrados inconsciente, automatismos, acasos, etc. A certa altura da sua
introdução, Natália — a da "obscura castidade", da "lua negra", do "gélido ardor"; enfim, a d’ "O sol nas
noites e o luar nos dias" — fala das "fontes de analogia sem as quais nunca subiria ao miradoiro do
espírito de onde o poeta, por fim, enxerga o futuro causador do começo". E acrescenta: "Operação de
reversibilidade de causa e efeito a que é devido chamar-se poesia" (p. V). Quem assim se apresenta e à
sua poesia não quer dar lugar a dúvidas. Está a prescrever linhas de leitura, a falar do grande
romantismo mesmo sem o nomear. Está sobretudo a limpá-lo da ganga expressivista, a prepará-lo para
ser entre nós aquilo que nunca deixou de ser nos maiores: um modo superior de conhecimento, a via
por excelência da espiritualidade, o supremo reconciliador do homem com o universo e consigo próprio.
Ponta Delgada, Outubro-Novembro de 1997.
Notas:
(1) A publicar proximamente no livro de homenagem a David Mourão-Ferreira, Margarida Vieira mendes
e Osório Mateus (organização da Faculdade de Letras de lisboa).
(2) Jean-Marie Schaeffer, "La naisance de la littérature. La théorie esthétique du romantisme allemand",
Paris, Presses de L’École Normale Supérieure, 1983, p. 39.
(3) "Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações", Relógio d’Água. Sobre este livro de José Gil,
leiam-se as judiciosas considerações de E. Prado Coelho em "A noite do mundo", Lisboa, Imprensa
Nacional — Casa da Moeda, 1988, pp. 67-71.
(4) "Entre moi et moi. Essais critiques sur la conscience de soi", Paris, José Corti, 1977, p. 27
(5) Sobre "as duas modernidades", ver, entre outros, Matei Calinescu, "Five faces of modernity.
Modernism, Avant-garde, Decadence, Kitsch, Postmodernism", Durham, Duke University Press, 1987,
pp. 41-46.
(6) Cf. Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, "L’absolu littéraire. Théorie de la littérature du
romantisme allemand", Paris, Seuil, 1978, p. 112.
(7) "Message poétique du symbolisme", Paris, Nizet, 1978 (1ª ed.: 1947), p. 35.
(8) Aproveitámos aqui a referência feita por Óscar Lopes aos Fragmentos ("Entre Fialho e Nemésio", II,
Lisboa, Imprensa Nacional—Casa da Moeda, 1987, p. 477).
(9) Expressão tomada de empréstimo a Fernando J. B. Martinho ("Pessoa e a moderna poesia
portuguesa — Do "Orpheu" a 1960", Lisboa, Biblioteca Breve, ICLP, 1983, p. 134).
(10) Cf. Natália Correia, "Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica", Lisboa, Ed. de Fernando
Ribeiro de Mello, 1966, p. 475.
(11) In D. Mourão-Ferreira e Maria Alzira Seixo (org.), "Potugal. A terra e o homem", II vol., 2ª série,
Fund. Calouste Gulbenkian, 1980, p. 552.
http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk2/ensaio/Natalia.html
Consultado em 2003-01-19

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