Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014

Transcrição

Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014
ISSN 0102-0625
Em defesa da causa indígena
Ano XXXVI • N0 366
Brasília-DF • Junho/Julho 2014 – R$ 5,00
Malocas de povo livre (AC) – Foto: Gleison Miranda/Funai
No Paralelo 10, Alto Rio Envira, Acre, povos indígenas em situação de isolamento voluntário
protagonizam um dos mais singulares conflitos do país. Retornando a territórios de onde
foram afugentados no decorrer do século XX pelas frentes de colonização da borracha,
estes povos têm cada vez mais feito incursões às aldeias dos povos Ashaninka e Madja.
Ao mesmo tempo, o narcotráfico internacional intensifica ações na área.
Páginas 8 a 11
O genocídio dos povos indígenas é
devido ao direito às suas terras?
Omissão do governo é a maior causa
da violência contra indígenas
Página 3
Página 15
Opinião
Porantinadas
Matando com a lei
Egon Heck
Ex Secretário Executivo do Cimi
S
ISSN 0102-0625
eguidamente ouvimos dos povos
indígenas a seguinte avaliação:
“Estão nos matando com a lei,
a ‘canetaços’. Com leis que eles
mesmos fizeram, dizendo que eram
para nos defender. Basta citar todas as
Constituições desde 1938 até a de 1988.
Em todas elas estão garantidos o direito
às nossas terras e a proteção dos nossos
territórios”. É óbvio que nesse quesito a
Lei Maior do país foi olimpicamente desrespeitada. Os territórios indígenas foram
invadidos, os recursos naturais saqueados.
E o que é mais grave, esse mesmo processo
continua hoje, com grande intensidade.
Vale lembrar o Código Civil, de 1916,
tão cioso em defender os índios, que os
enquadrou na categoria dos menores de
idade, dos relativamente incapazes. Será
que temos real dimensão das barbaridades
feitas contra os índios por seus tutores, em
nome da tutela? Basta dar uma folheada
nas mais de sete mil páginas do Relatório
Figueiredo, fruto de uma rápida investigação, em 1967, sobre a atuação do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI). Pode se dizer
que tudo que é crime e perversidade foi
encontrado nesse relato, sendo que, em
sua maior parte, as ações e crueldades
foram feitas por agentes do Estado, pelos
tutores ou, no mínimo, com a conivência
e omissão dos mesmos. E que tal folhear
as milhares de páginas que registram
as violências contra os povos indígenas
expostas nas Comissões Parlamentares
de Inquérito (CPI), de 1953 (no Senado),
1963, a realizada, em consequência desta,
em 1968 e a de 1977? Desse modo teríamos um enorme mosaico de violências e
violações dos direitos indígenas cometidas
na história recente do país, caracterizando
um processo de etnocídio e genocídio.
Até mesmo a Lei 6.001 (Estatuto do
Índio), de dezembro de 1973, vigente até
hoje, tem sido largamente usada pelos inimigos dos índios e pelo Estado brasileiro
para promover a integração-assimilação
dos povos indígenas e utilizar os territórios conforme suas conveniências. Em
seu Artigo 20 ela estabelece que a União
pode dispor das terras indígenas sempre
que entender que seja para a “segurança
nacional”, ou para a realização de obras
e ações de interesse ao desenvolvimento
do país.
Se tudo isso não bastasse para ao menos sacudir um pouco a nossa consciência
adormecida e mal informada em relação
aos povos indígenas e seus direitos, vemos
que, infelizmente, o processo de matar os
índios com a lei, apesar da lei ou contra
a lei continua. Lembremos o que afirmou
Orlando Villas Bôas, na década de 1970:
“Em cada século o Brasil matou um milhão
de índios”. Provavelmente o número seja
ainda maior. Apesar de tudo isso, continuamos impassíveis, sendo alimentados com
bombardeios de informações sobre a Copa
do Mundo ou outros temas pontuais. Para
a maioria dos povos indígenas é apenas
mais um tempo de sofrimento, violências,
desrespeito, racismo e assassinatos. Mas
estes avisam: “Estamos em campo, nem
que seja nas batalhas, enfrentando bombas
e balas de borracha. O gol que interessa a
nós, povos indígenas, é a demarcação de
nossas terras”. Assim declarou Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), após um
encontro com os presidentes da Câmara
e do Senado.
Ruralistas contra a lei
Não satisfeitos com todas as recentes
investidas para retirar os direitos indígenas da Constituição, em junho a bancada
ruralista do Congresso Nacional abriu um
outro flanco para sua artilharia pesada. O
novo alvo foi a “iníqua” (segundo eles) Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que garante aos povos
indígenas e tradicionais o direito aos seus
territórios e da qual o Brasil é signatário
desde 2004.
O debate sobre a revogação da Convenção 169 é uma investida dos ruralistas,
que estão utilizando a Comissão Especial
APOIADORES
Dom Erwin Kräutler
Presidente do Cimi
Emília Altini
Vice-Presidente do Cimi
Cleber César Buzatto
Secretário Executivo do Cimi
Jun/Jul–2014
2
Ofensiva ruralista
Indignados com o descaso do
governo federal frente ao agressivo
avanço ruralista, representantes dos
gerazeiros, vazanteiros, veredeiros,
catingueiros, apanhadores de flores sempre-vivas, quilombolas e
indígenas, dentre outros povos e
comunidades tradicionais, ficaram
36 horas em greve de fome e sede
no início do mês de junho em frente
ao Congresso Nacional. Eles relataram a intensificação da violência
na última década praticada por
fazendeiros e invasores das terras
onde moram há dezenas de anos.
Violência esta praticada contra o
Cerrado, suas águas e seus povos.
Tudo em nome de uma República
dos Ruralistas...
Postura colonialista
Apesar de existir uma Comissão Nacional de Educação Escolar
Indígena (CNEEI), o Ministério da
Educação (MEC) insiste na criação
de uma universidade indígena feita
nos gabinetes e não nas aldeias.
Um grupo de trabalho foi criado
para consolidar a proposta, no
entanto, não há participação das
comunidades, organizações indígenas e nem do órgão de controle
social do MEC no processo. “A
criação da universidade precisa ter
seus marcos definidos pelos povos
indígenas. Nós é que vamos dizer
que universidade queremos. Ela
precisa ser um espaço plural, livre
e descolonial”, defende a liderança
Edilene Bezerra Pajeú, a Pretinha
Truká. Parece tão óbvio, não?
Cara de pau
A senadora ruralista Kátia
Abreu, uma das principais defensoras de propostas contra os povos
indígenas, sem qualquer remorso ou
escrúpulo, “enfeitou-se” de indígena
Apinajé no dia 2 de junho, quando
pegou carona em um curso de
formação para indígenas naquela
comunidade. Inúmeras fotos dela
com cocar foram postadas na internet. No entanto, sua atitude foi
repudiada em carta pública pelo
próprio povo Apinajé que sabe
bem quais são seus reais interesses
e compromissos.
MARIOSAN
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma,
memória.
Publicação do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
da Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 215/2000 para fazer palanque contra os direitos dos povos indígenas e das
populações tradicionais. O propositor da
investida é o deputado Paulo Cesar Quartiero (DEM/RR), conhecido pela truculência
contra os povos indígenas em Roraima e
réu em ações penais por sequestro e cárcere privado; por crime contra a liberdade
pessoal e formação de quadrilha; crimes
contra o patrimônio, contra a segurança
nacional, a ordem política e social e contra
a administração em geral, desobediência
e desacato; além de ser investigado por
homicídio qualificado, por crimes contra
o patrimônio, crimes de responsabilidade,
sonegação de contribuição previdenciária,
contra o meio ambiente e o patrimônio genético. Segundo Fernando Prioste, advogado popular e coordenador da organização
Terra de Direitos, “a iniciativa ruralista é
um claro ataque a indígenas, quilombolas
e povos tradicionais que lutam pela efetivação de seus direitos”.
O mais grave descumprimento das leis
foi sem dúvida a não demarcação das terras
indígenas. É como se o Estatuto do Índio
não tivesse ordenado ao Estado brasileiro
a demarcação de todas as terras indígenas até dezembro de 1978. E, ainda mais
grave, a Constituição de 1988 não tivesse
estabelecido um prazo de cinco anos para
a demarcação de todas as terras indígenas.
Até hoje, portanto, o Estado se recusa a
cumprir esta sua obrigação constitucional
enquanto o Legislativo, por pressão dos
ruralistas e do agronegócio, tenta a qualquer preço inviabilizar a demarcação das
terras indígenas. Desse modo, continua-se
matando “com a lei”, tanto os indígenas
como os seus direitos, estabelecidos nas
leis nacionais e internacionais. n
EDIÇÃO
Patrícia Bonilha – RP: 28339/SP
CONSELHO DE REDAÇÃO
Antônio C. Queiroz, Benedito
Prezia, Egon D. Heck, Nello
Ruffaldi, Paulo Guimarães,
Paulo Suess, Marcy Picanço,
Saulo Feitosa, Roberto Liebgot,
Elizabeth Amarante Rondon e
Lúcia Helena Rangel
REPORTAGEM:
Carolina Fasolo, Renato Santana,
Luana Luizy
ADMINISTRAÇÃO:
Marline Dassoler Buzatto
SELEÇÃO DE FOTOS:
Aida Cruz
Fotos: Arquivo Cimi
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Licurgo S. Botelho (61) 3034-6279
IMPRESSÃO:
Mais Soluções Gráficas (61) 3435-8900
REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO:
Faça sua assinatura
pela internet:
SDS - Ed. Venâncio III, sala 310
CEP 70.393-902 - Brasília-DF [email protected]
Tel: (61) 2106-1650
Fax: (61) 2106-1651
[email protected]
www.cimi.org.br
Registro nº 4, Port. 48.920,
Cartório do 2º Ofício
de Registro Civil - Brasília
PREÇOS:
Ass. anual: R$ 60,00
Ass. de apoio: R$ 80,00
Ass. dois anos: R$ 100,00
América latina: US$50,00
Outros Países: US$70,00
Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.
Artigo
Cleber César Buzatto
Secretário Executivo do Cimi
O
sub-procurador da República,
Dr. Eugênio Aragão, ao participar da audiência da Comissão
Especial da Câmara dos Deputados que trata da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 215/00, no dia 11
de junho, questionou o paradigma demarcatório de terras indígenas, vigente
no Brasil, e defendeu a tese segundo a
qual “o modelo atual, a toda evidência,
está apresentando sinais claros de esgotamento”. Defendeu a referida tese com
o argumento de que “mesmo quando o
Poder Executivo, depois de longuíssimas tramitações, consegue promover
a demarcação de uma área indígena, a
reação imediata é a judicialização do
respectivo ato administrativo, o que
leva a um impasse em que não se vai
nem pra frente nem pra trás”. Um argumento evidentemente falacioso, haja
vista a existência de diversos procedimentos administrativos de demarcação
de terras indígenas paralisados sem que
exista qualquer impedimento judicial
para tanto. Ou seja, o motivo da paralisação, no caso, é político e causado pela
opção governamental e pela “pressão”
de atores políticos e econômicos bem
conhecidos de todos, dentre os quais os
representantes do latifúndio, a bancada
ruralista, para quem Aragão discursava.
Para além da falácia, no entanto,
o sub-procurador avançou na argumentação, por um caminho, que julgamos, malicioso, desrespeitoso e ultra
ideológico. Segundo ele, o genocídio
contemporâneo dos povos indígenas
tem sua raiz motivacional no direito
fundamental dos povos às suas terras
tradicionais, conforme assegurado
pelo texto constitucional de 1988. Isso
porque, de acordo com ele, fazendo
eco aos argumentos ruralistas, “o processo concebido na Constituição, no
artigo 231, é um processo unilateral. É
um processo em que a administração
pública, ex-ofício, identifica e demarca
as áreas, olhando sobretudo apenas em
uma direção, a direção do bem estar do
indígena. O problema é que ao longo
dos anos foi-se percebendo que essa
visão unilateral, de só se olhar para
a população indígena, esquecendo as
circunstâncias, levaram, na verdade, eu
posso dizer com a maior tranquilidade,
a uma política genocida. Porque na me-
Cleber Buzatto
O genocídio dos povos indígenas
é devido ao direito às suas terras?
“O que defendemos é a efetivação do direito
fundamental às terras tradicionais que suplantará o
quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil.
O genocídio de povos indígenas no Brasil precede o
texto Constitucional vigente em nosso país”
dida em que a gente olha só para um
lado do problema, todos os outros que
estão excluídos da atenção do poder
público produzem ressentimento. E o
ressentimento acaba levando à estigmatização, e a estigmatização, por sua vez,
acaba levando ao genocídio”.
Ora, além de incompatível com
o arcabouço jurídico que envolve o
procedimento de demarcação, uma vez
que o elemento do contraditório é amplamente respeitado, tanto no campo
administrativo, quanto no campo do
Poder Judiciário, o argumento defendido pelo Dr. Eugênio, ideológica e maliciosamente, esconde os verdadeiros
sujeitos político-econômicos responsáveis pelo atual quadro de genocídio
dos povos indígenas no país. Como fica
evidente no argumento, Aragão admite
a existência de genocídio de povos indígenas no país mas, além de esconder os
sujeitos responsáveis pelo genocídio, o
mesmo, desrespeitosamente, o legitima
uma vez que seria, como que natural,
que o “ressentimento” produzido pelo
arguido unilateralismo produzisse a
“estigmatização” e que, consequentemente, levasse ao genocídio.
O argumento em questão causa-nos,
como não poderia deixar de ser, profunda indignação, e se enquadra na típica
estratégia da culpabilização da vítima.
Segundo ele, os povos indígenas seriam
vítimas do genocídio porque ousaram
lutar e conseguiram assegurar o reconhecimento do direito às suas terras
tradicionais no texto Constitucional do
Estado brasileiro.
O que defendemos é exatamente o
contrário da opinião do sub-procurador.
É a efetivação do direito fundamental às
suas terras tradicionais que suplantará
o quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil. O genocídio de povos
indígenas no Brasil precede o texto
Constitucional vigente em nosso país.
O genocídio de povos indígenas não se
justifica e não se legitima sob qualquer
hipótese. O genocídio de povos indígenas no Brasil é efetivado por sujeitos
político-econômicos bem conhecidos,
tais como, dentre outros, latifundiários,
usineiros, empreiteiras, mineradoras.
Em cada região e período histórico
de nosso país, atuaram e atuam com
avareza na perspectiva de se apossar
“Ao atacar o direito
fundamental dos povos
indígenas às suas terras
tradicionais, ataca-se também
o direito dos não-indígenas
ao devido reassentamento.
Dessa maneira, faz-se a dupla
defesa do latifúndio e da
concentração fundiária cada
vez maior em nosso país”
e explorar as terras tradicionalmente
ocupadas pelos povos.
Os povos indígenas têm o direito
à vida e o direito à vida precede o
direito de propriedade. Os não-índios,
ocupantes de terras indígenas, além
de receberem pelas benfeitorias construídas sobre essas terras, têm direito
à justa indenização dos títulos de propriedade de boa fé, por parte dos entes
federados responsáveis pela sua emissão. Além disso, a legislação vigente
no Brasil estabelece ainda o direito ao
devido reassentamento aos ocupantes.
O reassentamento, por sua vez, deve
ser feito com a desapropriação dos
latifúndios, que, infelizmente, se perpetuam em favor de poucos e devido aos
genocídios provocados, aos privilégios
históricos e à super-representação do
setor no Congresso Nacional e noutros
espaços de poder do Estado brasileiro.
Ao atacar o direito fundamental
dos povos indígenas às suas terras
tradicionais com os argumentos acima
destacados, ataca-se também o direito
dos não-indígenas ao devido reassentamento. Dessa maneira, faz-se a dupla
defesa do latifúndio e da concentração
fundiária cada vez maior em nosso país,
objetivo central da estratégia ruralista
ao defender a aprovação da PEC 215/00.
Talvez seja este o motivo pelo qual
Aragão, em momento algum de sua
explanação, tenha feito referência à
nota técnica produzida pela 6ª Câmara
de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal, órgão setorial da Procuradoria Geral da República que trata
de temáticas indígenas. Esta nota explicita a inconstitucionalidade da referida
Proposta de Emenda Constitucional. n
“Os povos
indígenas
têm o direito
à vida e o
direito à vida
precede o
direito de
propriedade.
Os não-índios,
ocupantes
de terras
indígenas,
além de
receberem
pelas
benfeitorias
construídas
sobre essas
terras, têm
direito à justa
indenização
dos títulos de
propriedade
de boa fé”
3 Jun/Jul–2014
Modelo de “desenvolvimento”
Mineração e hidrelétricas são
lesivas à humanidade e ao planeta
“A Igreja está na Amazônia não como aqueles que têm as malas na
mão, para partir depois de terem explorado tudo o que puderam”.
O
“Hidrelétricas
e mineração
sempre
andaram
juntas: todo
projeto
hidrelétrico
abre a porta,
favorece
e alimenta
os grandes
projetos de
mineração para
exportação
que rondam
a Amazônia.
Os grandes
projetos não
são pensados
para as
comunidades e
regiões locais.
Respondem
a interesses
maiores,
de grandes
empresas
nacionais e
transnacionais”
Jun/Jul–2014
4
nosso país intensificou, nos
últimos anos, uma política de
crescimento econômico que
passa pela exploração dos recursos naturais para a exportação. Este
modelo econômico não é novo e já nos
legou marcas de desigualdade social e
de injustiça ambiental: os benefícios
ficam na mão de poucos, enquanto
os impactos e prejuízos, muitos deles
irreversíveis, pesam sobre as costas de
comunidades indígenas, camponesas,
ribeirinhas e quilombolas; repercutem
ainda no inchaço de muitas de nossas
cidades. Mesmo não sendo um modelo
novo, estamos assistindo à sua intensificação, fazendo lembrar as políticas
do mal chamado “desenvolvimento”,
que o Regime Militar impulsionou na
década de 1970.
Tal realidade é mais gritante na
região amazônica. Dezenas de projetos
de médias e grandes hidrelétricas estão
barrando o curso dos rios que formam
a bacia amazônica. Do Teles Pires ao
Rio Branco, do Madeira ao Tapajós e o
Xingu, passando por outras barragens
projetadas sobre rios amazônicos de
países vizinhos, como Peru e Bolívia.
Os impactos ambientais desses grandes
projetos são incalculáveis e irreversíveis,
já suficientemente demonstrados por estudos científicos e pela própria experiência de projetos passados. E os impactos
sobre os territórios e a vida de tantas
comunidades ribeirinhas e indígenas,
considerando particularmente os povos
indígenas isolados, serão gravíssimos.
Os grandes projetos hidrelétricos
não são pensados para as comunidades
e regiões locais. Respondem a interesses maiores, de grandes empresas
nacionais e transnacionais e ao ídolo
do crescimento macroeconômico que
a miopia política insiste em perseguir.
Hidrelétricas e mineração sempre andaram juntas: todo projeto hidrelétrico
abre a porta, favorece e alimenta os
grandes projetos de mineração para
exportação que rondam a Amazônia.
O governo federal propõe-se a multiplicar por quatro a exploração mineral
em nosso país até 2030. No decorrer
dos próximos anos, incrementará grandes projetos extrativos, razão pela qual
Alice Kohler
Roque Paloschi
Bispo da Diocese de Roraima
Marco Mota
Papa Francisco aos bispos do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013
se empenha, junto com o Congresso
Nacional, pela aprovação do Novo
Código de Mineração. Circula ainda na
Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
(PL) 1610/99. Este PL visa regulamentar
a mineração em terras indígenas, sem
garantir salvaguardas sobre lugares
sagrados nem medidas para proteger
a vida das comunidades.
A Amazônia, como se sabe, é região
cobiçada pelos interesses minerários
que reúnem grandes empresas transnacionais a setores políticos e econômicos
de nosso país. Recordamos os 30 anos
da exploração no Carajás como prova
de que a mineração em grande escala
traz consequências funestas: é um tipo
de economia que absorve a maior parte
dos empreendimentos econômicos sem
conseguir diversificá-los nem construir
uma perspectiva de sustentabilidade na
região. Provoca a chegada de milhares
de trabalhadores, a criação espontânea de vilas e cidades e o acúmulo
de toneladas de rejeitos. Não existem
experiências bem sucedidas de políticas
preventivas ao fim do minério. Quando
a exploração mineira se esgota (muitas
vezes antes do previsto), os impactos
deixados se tornam irreversíveis e a
recuperação social, econômica e ambiental fica comprometida.
A quem pode interessar um crescimento econômico assim? É este o
desenvolvimento em que acreditamos,
aquele que gera vida para todos e vida
em abundância?
No mês de maio, povos indígenas de
Roraima, Guiana e Venezuela, junto com
o Cimi, o ISA e outras organizações,
reuniram-se na comunidade de Tabalascada no I Seminário sobre Mineração
e Hidrelétricas em Terras Indígenas.
Nesse encontro, os povos indígenas
levantaram sua voz firme e clara contra
esses grandes projetos em seus territórios. “Para nós, o que tem importância é
a terra, a vida, as florestas, os animais,
a cultura, a tranquilidade e essa forma
de vida garantida para nossas futuras
gerações”, afirma o documento final
do encontro. Do território guianense,
68% podem ser afetados por projetos
de mineração e hidrelétricas. Na Venezuela, avançam as concessões de vastas
áreas amazônicas do país para empresas
chinesas, enquanto 90% das terras indígenas ainda não foram demarcadas. O
Brasil, além de encaminhar propostas
legislativas visando permitir e facilitar
esses empreendimentos nos territórios
indígenas, já vem comprometendo recursos públicos (de todos nós) no financiamento de grandes projetos em países
vizinhos, como Peru, Bolívia e Guiana.
Os povos indígenas têm o direito
de serem consultados e definirem livremente o caminho que querem seguir.
Em uma nota da Hutukara Associação
Yanomami (HAY), Davi Kopenawa Yanomami afirma sabiamente: “Nós não
somos contra o desenvolvimento: nós
somos contra apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem
empurrar para cima de nós [...]. Nós,
Yanomami, temos outras riquezas deixadas pelos nossos antigos que vocês,
brancos, não conseguem enxergar: a
terra que nos dá vida, a água limpa que
tomamos, nossas crianças satisfeitas”.
Os Estados, por sua vez, têm o dever
legal e moral de consultar os povos
indígenas sobre quaisquer empreendimentos ou iniciativas legislativas que
os afetem, e, em decorrência, respeitar
assuas decisões.
Os povos amazônicos são portadores de uma enorme contribuição para
a vida e o nosso futuro. Sua profunda
espiritualidade; sua relação com a MãeTerra, com as florestas, os rios e todas
as formas de vida com que convivem; e
seu impressionante acervo de conhecimentos apontam caminhos diferentes e
humanizadores para todos nós.
Mineração e hidrelétricas são faces
de um projeto econômico que é lesivo
não apenas para os povos indígenas,
mas para toda a sociedade e o planeta.
Agride a Vida e compromete as gerações
que virão depois de nós. Como diz o Documento de Aparecida, conclusivo da V
Conferência Episcopal da América Latina
e do Caribe: “Nossa irmã, a Mãe Terra, é
nossa casa comum e o lugar da aliança de
Deus com os seres humanos e com toda
a criação. Desatender as mútuas relações
e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas é uma
ofensa ao Criador, um atentado contra
a biodiversidade e, definitivamente,
contra a Vida”. (DAp.125). n
Rosimeire Diniz
Luta pela Terra
A contínua violência contra o povo Ka’apor
usados na exploração ilegal de madeira da
terra indígena. O trabalho conseguiu proteger 70% da área, porém o restante segue
invadido por madeireiras e serrarias instaladas, principalmente, no centro-oeste
maranhense e em Paragominas, no Pará.
Em represália, um grupo de 50
madeireiros armados invadiu a aldeia
Gurupiuna em agosto de 2013. Na ocasião, os invasores amarraram e bateram
em indígenas, saquearam plantações e
levaram animais. Esse tipo de agressão
contra os indígenas tem sido freqüente.
Em janeiro deste ano, um grupo de 10
Ka’apor foi atacado enquanto realizava
a abertura de trilhas nos limites do território Alto Turiaçu, para a autovigilância
e proteção. Tiros atingiram as costas e
pernas de dois jovens Ka’apor e a cabeça
do cacique da aldeia.
Na manhã do dia 3 de julho, diante da
ameaça de invasão dos madeireiros, um
grupo com cerca de 250 Ka’apor bloqueou
a rodovia BR-316, no trecho que liga os
municípios de Araguanã e Nova Olinda.
Carolina Fasolo,
De Brasília
N
o final de junho grupos madeireiros ameaçaram invadir duas
aldeias do povo Ka’apor, na Terra
Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão. A agressão seria uma represália à
ação dos indígenas que em atividades de
etnomapeamento do território tradicional, realizadas naquele mês, apreenderam
tratores de esteira, armas, motosserras,
caminhões e motocicletas. Os Ka’apor
detiveram ainda um grupo de homens que
manuseavam os equipamentos de retirada
ilegal de madeira. Segundo informaram,
eles não tiveram nenhum apoio das forças
federais.
Desde o ano passado, diante do aumento das invasões e do desmatamento
dentro da área indígena e da inoperância
do Estado em defender esta área, eles
decidiram formar uma frente de proteção
por conta própria. Retiveram invasores e
apreenderam motosserras e maquinários
Para liberar a via, eles exigiram a presença
de representantes da Fundação Nacional
do Índio (Funai), Secretaria Especial de
Saúde Indígena (Sesai) e Secretaria de
Estado de Educação do Maranhão (Seduc).
Os Ka’apor denunciam a ausência de
políticas públicas voltadas à educação
e saúde para os povos indígenas no estado. No entanto, a principal exigência
do grupo é que a Funai providencie a
retirada imediata dos invasores de suas
terras. “Nosso território está invadindo,
explorado. Não dá mais pra vivermos
assim”, disse Irakadju Ka’apor, liderança
da comunidade.
Os indígenas alertam sobre estas invasões e solicitam auxílio do governo desde
o término da Operação Hiléia Pátria, no
final de maio de 2013, que fechou várias
madeireiras e apreendeu caminhões na
região. Depois da saída das equipes do
Exército, do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) e da Funai e da recente desintrusão da Terra Indígena Awá Guajá, as
ações criminosas têm se intensificado
em Alto Turiaçu.
“Infelizmente existe conivência por
parte dos poderes municipais. Esses
madeireiros possuem fazendas e são os
mesmos que devastaram a Terra Indígena
Awá”, diz um apoiador dos indígenas não
identificado por motivos de segurança.
Ele explica que as equipes da Funai são
intimidadas na região e não recebem
apoio do governo federal para criar Postos de Apoio e Vigilância dentro da terra
indígena. Os que existem estão sem proteção policial e comumente são atacados,
sobretudo na terra indígena dos Awá.
No final de junho venceu o prazo
estabelecido pela Justiça Federal para
a criação de mais postos, mas nada foi
feito. Os indígenas afirmam que seguirão
protegendo suas terras em rondas de fiscalização e contra a invasão madeireira.
Nas aldeias o clima é de vigília e atenção, enquanto um grupo de guerreiros
segue na floresta espreitando possíveis
invasores. n
Devido aos
ouvidos
surdos da
Funai e do
Ministério
Público às
constantes
denúncias
de invasão e
exploração
ilegal de
madeira, os
Ka’apor são
ameaçados
e sofrem
recorrentes
violências
por fazerem
a legítima
proteção de
seu território
N
a tarde de 6 de junho cerca de
300 indígenas Guarani realizaram um ato contra a Proposta
de Emenda Constitucional (PEC)
215 em frente à Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo (Alesp). O protesto
aconteceu um dia depois que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
divulgou um posicionamento público
explicando porque nenhum dos povos
indígenas do país se dispôs a participar
e legitimar as referidas audiências, organizadas por integrantes da chamada
bancada ruralista, para debater esta PEC.
A manifestação teve apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), do Movimento Passe Livre (MPL) e
do Comitê Popular da Copa de São Paulo.
No manifesto público divulgado
pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY),
organização indígena que convocou a
manifestação, os indígenas conclamaram
os movimentos sociais do campo e da
cidade para se unirem na formação de
uma Frente Antirruralista, como forma
de reagir aos ataques promovidos pelos
políticos ligados ao agronegócio contra
diversos movimentos sociais.
Comissão Guarani Yvyrupa
Guarani de SP protestam contra bancada ruralista e PEC 215
Os indígenas e demais manifestantes fecharam a Avenida Pedro Alvares
Cabral, carregando bonecos e cartazes
com o rosto de políticos ligados ao agronegócio, dentre eles a senadora Kátia
Abreu (PMDB-TO), então presidente da
Confederação Nacional de Agricultura e
Pecuária (CNA), e o deputado Luis Carlos
Heinze (PP-RS), que além de presidente
da Frente Parlamentar da Agropecuária,
foi eleito “Racista do Ano” pela ONG
britânica Survival International. A escolha
de Heinze para o “prêmio” se deu pelas
suas declarações contra índios, negros e
homossexuais registradas em audiência
pública em dezembro de 2013, quando
afirmou que esses segmentos da sociedade brasileira representam “tudo o que
não presta”.
No Manifesto Antirruralista da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o movimento
associa os ruralistas aos bandeirantes,
personagens históricos ainda celebrados
no Brasil apesar de terem promovido o
assassinato e a escravização em massa
de vários povos indígenas, especialmente
dos Guarani. “Os ruralistas de hoje são
os bandeirantes de ontem, e por meio
da caneta querem nos matar como nos
mataram no passado com suas armas de
fogo. Têm o espírito dos bandeirantes
aqueles que usam de seu poder para enriquecer e concentrar terras, enquanto nós,
povos originários, continuamos nas beiras
de estrada, espoliados de nossos tekoa, e
grandes massas de excluídos seguem sem
ter onde dormir, sem ter onde morar, sem
ter onde plantar”.
Além da luta contra a PEC 215 e
“todas as medidas que visam paralisar
as demarcações de terra no país”, os
manifestantes também reivindicam do
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a emissão das portarias declaratórias
das Terras Indígenas Tenondé Porã e
Jaraguá e protestam contra uma decisão
de reintegração de posse concedida em
primeira instância em desfavor dos Guarani que habitam hoje o Pico do Jaraguá.
Também anunciam apoio contra medidas
de criminalização e de enfraquecimento
da reforma agrária. n
“Por meio da
caneta querem
nos matar
como nos
mataram no
passado com
suas armas
de fogo. Têm
o espírito dos
bandeirantes
aqueles que
usam de seu
poder para
enriquecer
e concentrar
terras,
enquanto
nós, povos
originários,
continuamos
nas beiras de
estrada”
5 Jun/Jul–2014
Criminalização
MPF denuncia delegado da PF pelo assassinato de
Adenilson Munduruku
Povo Munduruku
acordo para assegurar a destruição
das balsas no Rio Teles Pires. Não
há evidência de que os índios da
aldeia Teles Pires tenham participado de tal reunião. Mesmo assim,
foi para lá que a equipe da Polícia
Federal se dirigiu no dia seguinte,
7 de novembro, quando Adenilson
foi assassinado.
“Ao perceberem que a Operação Eldorado iria ocorrer na Aldeia Teles
Pires, alguns índios tentaram retirar os
bens que achavam necessário para suas
subsistências, sendo que um dos caciques
chegou perto do delegado tentando
conversar com este para que não desse
continuidade na destruição da balsa. O
denunciado afirmou que a operação teria
que ser realizada, e ainda empurrou a
referida liderança indígena. Em reação,
um dos indígenas que estava no local
empurrou o braço do delegado Moriel, e
como estavam próximos ao rio, em uma
área de declive o denunciado veio a cair
na água. Após tal situação, policiais federais passaram a atirar contra os indígenas
e em direção ao rio. Atrás do cacique
Camaleão estava um outro indígena,
Ministério Público Federal
N
o início de julho, o Ministério
Público Federal (MPF) denunciou
à Justiça Federal em Itaituba o
delegado da Polícia Federal (PF)
Antonio Carlos Moriel Sanches pelo crime
de homicídio qualificado contra Adenilson Kirixi Munduruku, morto durante a
Operação Eldorado, no dia 7 de novembro
de 2012, na aldeia Teles Pires, na divisa do
Pará com o Mato Grosso. A exumação do
corpo do indígena comprovou os depoimentos das testemunhas e demonstrou
que ele foi executado com um tiro na
nuca, depois de ter sido derrubado por
três tiros nas pernas.
Pelo crime, o delegado pode ser
condenado a até 30 anos de prisão. Se a
denúncia for aceita pela Justiça, ele será
submetido a julgamento pelo tribunal do
júri. A Operação Eldorado deveria destruir
balsas de garimpo que atuavam ilegalmente nas Terras Indígenas Munduruku
e Kayabi. O coordenador da operação era
o delegado Moriel Sanches.
No dia 6 de novembro, em uma reunião com os indígenas, teria sido feito um
A partir dos
depoimentos dos
indígenas e do
“esquecimento”
dos agentes da
PF presentes
na operação
criminosa,
Ministério
Público pediu
a exumação
do corpo de
Adenilson, que
confirmou a
versão do povo
Munduruku de
que ele havia
sido executado
pelo delegado,
mesmo depois de
atingido por três
tiros nas pernas
a vítima Adenilson Kirixi Munduruku”,
narra a denúncia do MPF.
Um dos indígenas relatou os fatos
que se seguiram, em depoimento ao
MPF: “depois que o delegado empurrou
essa liderança na qual ele iria atirar, o
segurança do cacique empurrou o braço
do delegado e ele escorregou e caiu na
água, pois a área tem declive e o chão é
liso, de barro. Foi a partir daí que começou o tiroteio. Nenhum indígena estava
com arma de fogo. Os dois primeiros
tiros contra a vítima foram dados pelo
delegado, que ainda estava dentro da
água, que estava pela cintura. Vários
policiais começaram a atirar contra os indígenas que estavam no local. Três tiros
acertaram as pernas da vítima Adenilson
Kirixi, que perdeu o equilíbrio,
caindo na água. Nesse momento
o delegado, que ainda estava
dentro da água, deu um tiro na
cabeça da vítima, que já caiu
morta e afundou no rio”.
O corpo de Adenilson só
foi recuperado no dia seguinte.
Todos os agentes da PF presentes
na aldeia no momento do ataque
disseram não se recordar dos fatos por
estarem ocupados tentando controlar
os indígenas. Em vista disso, e com base
nos depoimentos dos indígenas, o MPF
requisitou a exumação do corpo da vítima. O exame comprovou a execução. O
tiro fatal atingiu Adenilson na parte de
trás da cabeça, depois que três tiros nas
pernas o tinham derrubado. A bala saiu
pela parte da frente da cabeça da vítima,
destroçando vários ossos do crânio.
Outros dois indígenas sofreram lesões
corporais graves no dia 7 de novembro
de 2012, mas não foi possível localizar
provas que relacionassem os ferimentos
diretamente aos agentes envolvidos na
operação, por isso apenas o delegado
Moriel foi denunciado. n
Luana Luizy,
E
Indígenas
Munduruku
mobilizaramse para
reverter a
demissão em
massa dos
professores.
A ação
explicita
o modus
operandi
do governo:
dividir e
enfraquecer
o povo para
viabilizar os
mega projetos
Jun/Jul–2014
6
de Brasília
manuelle Limenza Barros tem
28 anos e é de Londrina, Paraná,
mas mora no estado do Pará há
quatro anos, onde leciona história para os indígenas Munduruku da aldeia Missão São Francisco do Rio Cururu,
próximo ao município de Jacareacanga,
no sudoeste do Pará.
Acusada de organizar protestos e de
aliciar os Munduruku, Emanuelle atualmente sofre intimidações e ameaças por
ensinar a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que garante o território
e prevê consulta aos povos indígenas e
comunidades tradicionais sobre o impacto de grandes empreendimentos, além
de assegurar aos indígenas o ensino da
língua materna.
No entanto, a prefeitura de Jacareacanga menosprezou justamente a determinação da Convenção 169 e o artigo
210 da Constituição Federal ao demitir
em massa 70 professores indígenas sob o
argumento de que não tinham formação
adequada para lecionar. Após meses de
impasse, a Justiça Federal acatou a determinação do Ministério Público Federal e
ordenou que a prefeitura restabelecesse a
quantidade necessária de professores nas
escolas indígenas do povo Munduruku.
A região é conhecida por ter grupos
econômicos ligados ao garimpo e que são
aliados da prefeitura local. Intimidações
Emanuelle Limenza Barros
Professora sofre ameaças por ensinar Constituição aos Munduruku
aos indígenas são frequentes. No dia 13
de maio uma manifestação promovida por
garimpeiros, comerciantes e membros do
poder público contra a presença dos indígenas no município terminou com dois
Munduruku feridos nas pernas, atingidos
por rojões e bombas de gás lançados pelos manifestantes anti-indígenas. Durante
o ato, o secretário de Assuntos Indígenas,
Ivânio Alencar proferia palavras de ódio
contra os Munduruku.
Porém o caso não é isolado, ele
procede de ataques orquestrados e
programados. O poder público na região
promove constantemente ódio contra os
indígenas e também é responsável por
coordenar um golpe na antiga associação representativa indígena, a Pusuru,
a fim de fragmentar e desmobilizar os
Munduruku. Desse modo, o movimento
Ipereg Ayu, em assembleia geral dos Munduruku, decretou a extinção da Pusuru
por considerarem uma série de desvios de
conduta. Leia abaixo uma breve entrevista
com Emanuelle:
Qual o trabalho que você desenvolve
com os Munduruku?
Embora a prefeitura da região alerte
aos funcionários para não se comunicarem
na língua dos indígenas e não estabeleçam
um contato mais assíduo e próximo, eu fiz
o contrário, aprendi a língua deles e acabei
criando um certo vínculo. No momento,
estou produzindo um projeto que visa
alertar o modus operandi do governo para
conseguir estabelecer seus mega projetos,
sendo que o principal deles é a divisão
de etnias e culturas tradicionais para que
percam o poder de luta.
Qual foi o motivo alegado para a
demissão em massa?
A explicação da prefeitura foi a de que
os indígenas não tinham nível suficiente
para dar aula, que os indígenas ainda não
haviam terminado o “Ibourebu”, o magistério indígena realizado pela Funai. Todos
os alunos da aldeia ficaram sem aula e
a prefeitura contratou professores que
ainda estavam cursando ensino médio,
alguns “pariwat”, não-indígena na língua
Munduruku, e outros indígenas. Se você
demite professores alegando que não
possuem experiência suficiente e contrata
outros que cursam o ensino médio e que
não falam a língua Munduruku, existe
uma coisa errada aí. Me acusaram de estar fazendo parte do movimento “Ipereg
Ayu”, que na língua Munduruku significa
“uma coisa que não se ultrapassa”, mas
nunca cheguei a falar para os indígenas
que eles precisavam se manifestar. Só
disse o que existia dentro da Constituição
para os professores indígenas tentarem
reconquistar a vaga deles e falei dos
artigos 210 e 213 que asseguram aos
indígenas poderem estudar enquanto
lecionam. Como posso aliciar indígenas
se estava ensinando a Constituição?
Qual foi a verdadeira razão para a
demissão em massa?
A demissão pra mim foi para fragmentar os indígenas e acentuar o modus
operandi dos reais interesses políticos
existentes na região. O secretário de
Assuntos Indígenas de Jacareacanga
afirmava que eu era uma ativista branca.
E me recomendou fugir da casa dos
professores, pois ela ia ser queimada.
Curiosamente, após uma hora eu ter ido
embora a casa foi queimada. n
Criminalização
Xukuru-Kariri protegido por programa federal
é preso pela PM dentro da terra indígena
outras duas lideranças Xukuru-Kariri, pelo Programa
de Defensores de Direitos
Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos
da Presidência da República.
As ameaças contra o indígena se intensificaram com a
retomada de área que fica
ao lado da aldeia Cafurna
de Baixo, que há pouco
mais de um ano se encontrava nas mãos de invasores.
Carlinhos, além de agente
de saúde, é integrante da
Comissão de Luta pela Terra
do povo Xukuru-Kariri.
A proteção do Estado
tampouco fez recuar as
ameaças de fazendeiros
e policiais que sucessivamente o perseguiam na área retomada e na cidade.
A liderança precisava fazer a própria
segurança. Por conta disso, o indígena
mantinha uma arma para se proteger em
situações de mais vulnerabilidade. Nesse
contexto, quando os policiais o revistaram encontraram uma arma calibre 38 de
uso permitido. Autuado por porte ilegal
de arma, o indígena foi detido.
Nas demais aldeias Xukuru-Kariri os
indígenas entraram em alerta. Em con-
Renato Santana,
de Recife (PE)
M
otivados pela denúncia de que
um homem “numa moto preta
e com capacete preto” havia
realizado assaltos no centro de
Palmeira dos Índios (AL) e fugido em direção ao Bairro da Cafurna, ladeado por área
retomada da Terra Indígena Xukuru-Kariri
contígua ao núcleo urbano sede do município, policiais militares prenderam na
noite de 11 de julho o agente de saúde
indígena e liderança do povo José Carlos
Araújo Ferreira, o Carlinhos. As informações constam no boletim de ocorrência
lavrado no ato da prisão preventiva.
Ao contrário do que afirmam os policias, Carlinhos diz ter sido detido na área
da retomada que está dentro dos limites
identificados como terra indígena e ao
lado da aldeia Cafurna de Baixo. A defesa
da liderança impetrou no dia 14, na Comarca de Palmeira dos Índios, um pedido
de revogação da preventiva e relaxamento
da prisão. “A liderança foi presa dentro da
terra indígena e a Polícia Militar não tem
competência para tal, pois se trata de
área federal”, defende o advogado Isloany
Nogueira Brotas.
O agente de saúde, desde o ano
passado, é protegido juntamente com
Arquivo Cimi
versas e reuniões, a comunidade chegou
ao consenso de que a paralisação da demarcação dos pouco mais 7 mil hectares
é a causa da criminalização de Carlinhos.
A Fundação Nacional do Índio (Funai)
estava na fase do levantamento fundiário
para a indenização de benfeitorias das
463 ocupações dentro da terra indígena.
No entanto, a pressão política feita
por parlamentares, como o ex-presidente e atual senador Fernando Collor,
fez o ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, paralisar os trabalhos e montar
uma “mesa de diálogo”. As discussões
não caminharam, pois o governo e seus
aliados ocupantes da terra indígena
queriam a diminuição da demarcação,
que há 30 anos teve início com 36 mil
hectares até cair para os atuais sete. Os
Xukuru-Kariri se negam a reduzir sequer
um palmo do território tradicional que
lhes sobrou.
“Estava tudo bem encaminhado aqui
(Alagoas), mas os servidores da Funai
foram obrigados a parar o trabalho com
apenas 18 laudos fundiários de indenização prontos. Se olharmos outros exemplos, como no caso dos Pataxó Hã-hã-hãe
(BA), só a demarcação garantiu o fim da
violência contra os indígenas”, opina uma
liderança indígena, não identificado por
motivo de segurança.
Com o impasse, as intimidações dos
ocupantes contra os indígenas aumentaram de forma substancial. “Estava para
acontecer isso com Carlinhos. A polícia
entrava direto na aldeia retomada atrás
dele. Desde 2011, o povo Xukuru-Kariri
vem sofrendo todo tipo de ameaça. A
polícia aqui sempre ajudou a nos ameaçar.
Por outro lado, o Estado não cumpre o
papel devido, que é de proteger lideranças e demarcar as nossas terras”, afirma
o indígena. n
O agente
de saúde e
liderança
Carlinhos, do
povo Xukuru
Kariri, é mais
um indígena
criminalizado
pelo processo
de luta para a
demarcação
de sua terra
tradicional,
paralisada
pela pressão
política
feita por
parlamentares
como
Fernando
Collor
Cimi Regional Norte I
O
s indígenas do povo Maraguá
das comunidades Pilão e Terra
Preta, no Rio Abacaxis, município
de Nova Olinda do Norte, a 225
quilômetros de Manaus (AM), encaminharam uma denúncia à Fundação Nacional
do Índio (Funai) e à Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República sobre as ameaças de morte que as lideranças
têm sofrido de pessoas supostamente
envolvidas com o tráfico de drogas em
áreas próximas à terra indígena.
De acordo com o relato de moradores
das comunidades, as ameaças ocorrem
por causa de ações de repressão desenvolvidas pela Polícia Federal e pelo Instituto
do Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis (Ibama). Eles afirmam que as
ameaças se intensificaram a partir do dia
11 de maio passado, depois de operação
na área feita por estes dois órgãos em
que duas pessoas foram presas e outra
conseguiu fugir. Passados alguns dias, os
dois foram liberados e retornaram para
suas residências, também nas imediações
do Rio Abacaxis.
Nos últimos anos, os Maraguá tem
enfrentado dificuldades decorrentes da
incursão de empresas de turismo em suas
Rosa Fonseca de Oliveira
Indígenas são ameaçados por supostos traficantes
terras, da tentativa de ocupação de parte
do território por assentados dos projetos
governamentais de reforma agrária e,
agora, também por estas ameaças de
supostos traficantes na região. O Cimi
Regional Norte I apóia a iniciativa dos
indígenas de buscarem segurança junto
aos órgãos governamentais e espera que
as ações de proteção às comunidades
sejam efetivadas o mais breve possível.
No Médio Rio Negro,
perseguições e ameaças
ma campanha de difamação e perseguição contra os povos indígenas do Médio
Rio Negro vem sendo realizada por
organizações sediadas no município de
Barcelos (AM) com o objetivo de rechaçar
os processos de demarcação das terras
desses povos. Dentre as organizações
contrárias aos indígenas está uma entidade representativa de um segmento
recentemente arrolado pelo Ministério
Público Federal por prática de crime
análogo à escravidão.
O reconhecimento oficial dos territórios indígenas nesta região ainda não
aconteceu devido à omissão e descaso
do próprio governo federal. A Fundação
Nacional do Índio (Funai) realizou há sete
anos os estudos antropológicos, mas o
processo demarcatório está paralisado.
Em uma nota, amplamente divulgada
nas redes sociais, as organizações contrárias à demarcação das terras indígenas
disseminaram mentiras e preconceitos,
jogando a população local contra os povos indígenas. Elas reproduzem o mesmo
discurso racista e mentiroso usado contra
os indígenas da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol (RR) e contra os Mura (AM),
dentre outros povos afetados por grupos
anti-indígenas.
Esta situação se agrava pelas ameaças
à integridade física de lideranças indígenas
e familiares. No início de julho, pelo menos
dois líderes do movimento indígena local
receberam ameaças, um dos quais por
meio de bilhete sorrateiramente deixado
na porta de sua casa, tendo a casa fotografada e invadida por desconhecidos
e uma filha seguida enquanto se dirigia
para a escola. Estes fatos estão sendo denunciados pelo Cimi e por organizações
indígenas ao Ministério Público Federal
e à Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República. n
O povo
Maraguá
tem tido o
seu modo
tradicional
de vida
impactado
pelo
turismo, por
assentamentos
e, mais
recentemente,
por supostos
traficantes de
drogas
7 Jun/Jul–2014
POVOS ISOLADOS
Bravos Índios Livres
Renato Santana,
O
m amcorem
iril utpat non
vulputem
quamcon
sequat.
Lummodi
psuscidunt
luptat vendre
magnissed
magnim
volorer ciduis
del ut in ullan
henisi etue
ming ese tat
irit atummy
nim vendipis
at. Ut volore
dunt lam ver
ilit alit
Jun/Jul–2014
8
enviado a Feijó (AC)
barulho do batelão reverbera do
interior da floresta. Sobre o teto
do barco, no horizonte de pálpebras cerradas pelo sol do meio
dia, a zuada mais parece uma
revoada de pássaros com asas
de ferro invisíveis. A estridência metálica,
dentro da mata, espanta araras, macacos e
demais bichos no sincopado tu-tu-tu-tu do
motor, som reconhecido pelos indígenas em
situação voluntária de isolamento da Amazônia como sinal aliterado da sociedade que
os envolve. É inverno nesta porção extrema
do país. As águas correm abundantes e a
embarcação singra, sem muitos percalços,
as entrelinhas da lâmina d’água, lidas atentamente pelo barqueiro que desvia de troncos,
na maioria das vezes submersos, e evita
trechos mais rasos ou de intenso rebojo. No
verão o rio seca e apenas cascos pequenos
conseguem passagem entre as praias naturais, cujas areias oferecem aos isolados ovos
de tracajá. O calor e a umidade perpassam as
estações, assim como os piuns e carapanãs.
O batelão navega contra a corrente vazante
e sete dias depois da saída do porto movediço de Feijó (AC) chega-se à Terra Indígena
Kampa/Isolados, demarcada no Paralelo 10,
Alto Rio Envira, já na fronteira do Brasil
com o Peru, onde as águas tingidas pelos
sedimentos e pelo barro passam a dar vida
ao Rio Xinane. Este vasto mundo se reduz, a
cada dia, para os isolados. Ainda que tenha
o mesmo tamanho.
A região é uma das últimas no mundo
a ter grupos de povos livres. Com a Constituição de 1988 e mais protegidos pelas demarcações, todavia vulneráveis às invasões
dos territórios, conseguiram resistir aos
massacres e dobraram suas populações nas
últimas décadas. Exercem o pleno direito
de resistência às vontades integracionistas
da “civilização” e preservam suas próprias
instituições sob a memória de uma vida de
correrias. Chamadas na região de bravos,
estas populações se negam ao contato com
as sociedades que as envolvem. Sejam as
indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas
origens naquelas matas estão em famílias
de seringueiros instaladas por ali, desde o
final do século XIX e decorrer do XX, pelas
frentes de colonização. Os Ashaninka, tal
como eles se autodenominam, dividem a
Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes. A semântica oferece outro significado
para o aparente tom pejorativo da palavra
bravo, mas que delimita a complexa noção
de alteridade presente entre estas nações e
seus convívios autodeterminados. Porém,
em terras onde grupos indígenas insistem
contra a capitulação de suas formas livres
de vida e outros lutam diariamente pela
sobrevivência em interface à sociedade
branca, ser bravo, no sentido dado pela
língua Ashaninka, se tornou um traço
marcante entre estes povos. As relações
culturais críticas dessas experiências, no
reforço das alteridades tanto dos isolados
quanto dos demais povos, gera um dos
contextos mais complexos entre isolados
e índios contatados do Brasil.
Entre o final de junho e durante todo
o mês de julho essa história ganhou mais
um episódio. Um grupo de indígenas livres
causou alvoroço ao entrar na aldeia Simpatia, onde vivem os últimos Ashaninka
antes da fronteira com o Peru. Durante o
primeiro semestre deste ano, os Ashaninka
relataram acontecimentos similares, todos
encaminhados ao Ministério Público Federal
(MPF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai)
pelos indígenas por intermédio do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi). Não se trata,
portanto, de um contato inédito. Porém,
desta vez a Funai decidiu agir e na aldeia
montou a Operação Simpatia, em parceria com o governo do Acre. Os indígenas
ficaram impedidos de sair da comunidade.
No dia 26 de junho, servidores do órgão
indigenista e os Ashaninka estabeleceram
novo contato com alguns destes livres que,
conforme a equipe de sertanistas, estavam
com gripe. A Funai divulgou foto com três
deles. Durante o tratamento realizado por
profissionais da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai), os indigenistas identificaram que estes livres falam um idioma do
tronco linguístico Pano, o mesmo de outros
povos do Acre e Peru. Os isolados então
puderam ser entendidos, de forma precária,
sobre os ataques que vêm sofrendo, possivelmente de madeireiros e narcotraficantes
peruanos. Em seguida voltaram para o interior da floresta no caminho das malocas
de seu povo. Desativada há pouco mais de
três anos, a Base do Xinane da Frente de
Proteção Etnoambiental do Rio Envira terá
seus trabalhos retomados.
Frente da borracha...
Frente Etnoambiental
Esta base está instalada na Terra Indígena Kampa/Isolados, a três horas de barco
da aldeia Simpatia, no rumo da fronteira
com o Peru. A estrutura foi abandonada
depois de um ataque de narcotraficantes,
em junho de 20111. Antes, porém, dessa
história - que impactou a vida tanto dos
Ashaninka quanto dos bravos nos últimos
Gleilson Miranda/Funai
Renato Santana
anos, além do povo Madja, que naquelas
terras também estão - voltamos pouco
mais de cem anos. No início do século
XX, sobretudo depois da Primeira Guerra
Mundial, as mobilizações voltadas à ocupação territorial da região Norte do Brasil se
acentuaram. Nas décadas de 1930 e 1940,
com ênfase no governo de Getúlio Vargas
e nos acordos firmados com os Estados
Unidos ante os esforços da guerra travada
na Europa, frentes de colonização foram
organizadas e seguiram rumo aos confins
da Amazônia. Se por um lado a exploração
das seringas entraria em seus ciclos econômicos, por outro o Norte passaria a ser
parcialmente povoado e o “espaço vazio”
brasileiro, assim considerado pelo governo
central, preenchido. Todavia, aquelas florestas tinham donos. Não estavam vazias.
Nelas viviam povos indígenas ainda sem
contato, que também fugiam. Entrecortado por rios com nascentes nos Andes e
correntes às águas do Amazonas, a grande
serpente, o Acre foi um dos estados que
teve suas seringas e nações indígenas rasgadas por inúmeras frentes de colonização
da borracha.
As varações e igarapés entre os principais rios do estado foram as principais
rotas de fuga dos povos indígenas. Os mais
velhos chamam este período de “tempo das
correrias”. As mortes eram hediondas aos
indígenas que resistissem à escravidão e às
vontades dos senhores que estabeleciam
poder. Caçadores de índios em nada perdiam aos seus antepassados que ilustraram
em tintas de terror a história da invasão
europeia à Ameríndia. No Rio Envira, onde
viviam os Huni Kui, no Médio, e os Madja,
no Alto, os grupos isolados, para fugir
da violência das frentes de colonização,
seguiram para mais perto da fronteira com
o Peru e para além dela, numa área de circulação que lhes possibilitava resistir. Ao Envira, no entanto, as frentes de colonização
não levaram apenas a própria sanha, mas
também outros indígenas que entre outros
trabalhos atuavam como mateiros, além de
Fotos: Renato Santana
Chamadas na região de bravos, estas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem. Sejam
as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas
por ali, desde o final do século XIX e decorrer do XX, pelas frentes de colonização. Os Ashaninka, tal como eles se
autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes.
intermediários no contato agressivo com
os povos livres. Afinal, se naquelas terras
não viviam ao menos circulavam. Os isolados, desde estão, associam os Ashaninka ao
tempo dos massacres, contatos violentos,
mortes e fugas. Com o fim dos ciclos da
borracha, tais frentes de colonização se
desfizeram. Aos Ashaninka e povos livres
restou a herança do trauma coletivo, que
segue pautando as relações entre essas
sociedades. Nos últimos anos, com o retorno cada vez mais acentuado dos isolados
a antigos territórios hoje ocupados pelos
Ashaninka, as excursões de povos livres às
aldeias têm sido constantes. Levam terçados, roupas, redes, utensílios domésticos,
tudo o que se pode colher nas roças, e até
mesmo crianças. Os Ashaninka aprenderam
a lidar com tais “delitos” sem violência, mas
temem que em algum momento algo de
mais grave aconteça - como antigamente.
Caciques e demais lideranças tramam os
fios tênues dessa história, elásticos como
uma linha de borracha.
“No Rio Envira, os Ashaninka sempre
andaram, mas nascer aqui só os mais
novos. Os mais velhos foram trazidos de
outros lugares pelo kairu (branco), de
aldeias do Peru. Acontece que estamos
aqui e enterramos nossos mortos, fazemos
nosso ritual. Nossos filhos nasceram aqui.
Nossas aldeias cresceram. Ashaninka não
quer brigar com bravo, mas quem aguenta
ter suas coisas levadas? Se eles matarem
um Ashaninka, como faremos?”, indaga
Txate Ashaninka, que não sabe ao certo
a idade, mas aparenta ter por volta de 75
anos. Os olhos vão de um lado a outro
em movimentos curtos num rosto magro,
queimado de sol. O cuzmã, espécie de
batina e vestimenta tradicional do povo,
cobre do pescoço aos pés a baixa estatura
do corpo de pássaro. As mãos ossudas de
Txate alternam entre segurar o próprio
queixo, numa postura de reflexão, e apontar a mata, enquanto a cabeça mergulha
nas memórias encravadas nas árvores que
ladeiam o Envira. “Naquela ali eu subia com
as outras crianças. Alta, né? Os macacos
vinham para perto”, aponta da janela do
barco. “Era aldeia antiga nossa. Mais para
trás está kamarambi (ayahuasca) e onde
era a roça do meu tio. Saímos daqui por
causa dos bravos, mas nunca ninguém
morreu. Teve flechado, mas sem mortes”,
recorda Txate.
Tal como as árvores carregadas pelo
Envira, cujas sementes germinam novas
plantas em outras margens, as aldeias
Ashaninka desfeitas por conta da relação
conflituosa com os povos livres reflorestaram o povo em outros pontos do rio, mais
longe dos locais de aparição dos “bravos”.
Na década de 1980, a aldeia Xinane foi um
desses casos. Bem próxima da fronteira
com o Peru, era constantemente alvo dos
isolados. Os Ashaninka que nela viviam a
desativaram e se espalharam em outras
aldeias ou fundaram novas. Nelas, os isolados também chegavam e, assim, outras
aldeias foram descendo o rio até quase
o Médio. Com o aumento das tensões, e
já sob uma nova política com relação aos
povos em situação de isolamento voluntário, que previa o direito destes grupos de
terem uma vida preservada da indesejada
companhia das demais sociedades, a Funai
construiu no local da antiga aldeia Xinane
uma base. O objetivo era identificar quem
eram esses livres, demarcar o território e
impedir conflitos entre eles e os Ashaninka.
Mais tarde a estrutura passou a integrar
a Frente de Proteção Etnoambiental
do Xinane.
“Sou o passado
falando”
O sertanista José Carlos Meirelles fundou esta base e nela viveu durante 22 anos,
entre 1988 e 2010. Criou filhos, que com
o tempo passaram a trabalhar em frentes
de proteção, manteve uma família e a ela
agregou os peões que sobre os pisos de
madeira da pequena vila também moravam.
As histórias de Meirelles são despudoradas quanto a finais felizes e tampouco o
transformam em herói defensor dos povos
indígenas. “Sou o passado falando”, diz.
Prefere a prosa ao discurso e não se priva
de relatar, com seu sotaque de homem do
interior, episódios de que não se orgulha,
como quando se viu diante de isolados e
para defender parentes precisou atirar. O
indígena atingido acabou morto2. Ou quando foi atacado pelos isolados num igarapé
próximo da base, enquanto pescava. Uma
flecha atravessou seu rosto e ele precisou
ser levado de helicóptero para um hospital
da capital Rio Branco. “Andávamos na mata,
coisa hoje esquecida. Parece que hoje se
monitora índio isolado e protege-se o

O contato dos
povos livres
(à esquerda,
acima) com as
populações
Ashaninka e
Madja (outras
fotos) tem
se tornado
cada vez
mais comum.
Eles voltam
a territórios
que ocuparam
antes das
frentes de
colonização
da borracha
chegarem à
região. Por
outro lado,
os povos
contatados
sofreram
massacres e
tentativas de
escravidão.
Resistência
é traço
marcante
de todos
os povos
indígenas
9 Jun/Jul–2014
Gleilson Miranda/Funai
POVOS ISOLADOS
Bravos Índios Livres
A Base do
Xinane da
Frente de
Proteção
Etnoambiental
do Rio Envira
(acima)
foi alvo de
ações do
narcotráfico
organizado
internacional,
atrelado às
madeireiras,
e ficou
desativada
por três
anos (meio).
Fundada pelo
sertanista
Meirelles
(abaixo), que
morou ali
por 22 anos,
ela terá seus
trabalhos
retomados,
mas a
pergunta que
fica é: “como
impedir que
o território
não seja
acossado pelo
narcotráfico?”
 território via notebook”, afirma. Não há
indigenista atuante na temática dos isolados que não tenha ouvido as histórias
de Meirelles. Seja para criticá-lo ou para
tê-lo como referência. Porém, entender as
problemáticas dos isolados do Envira e a
política para os isolados da Funai passa
necessariamente por um pouco de prosa
com Meirelles.
Quando chegou ao Xinane, o sertanista trabalhava com a informação de que
apenas um povo isolado vivia na região.
“Localizamos. Depois descobrimos que
havia outro nas cabeceiras do Riozinho.
Localizamos. Depois descobrimos mais
um em 2008. Além dos Mascho Piro, que
andam pelo Envira sazonalmente e com
mais frequência de 2006 para cá. E muito
provavelmente um quinto grupo que anda
nas cabeceiras do Rio Jordão, oriundo
da reserva Murunaua, no Peru”, explica
Meirelles. O tempo e a perseverança,
conta o sertanista, fiaram a metodologia
de trabalho. As informações inicialmente
eram de outros indígenas do Envira ou de
ribeirinhos, mateiros. Com a consolidação
da Frente do Xinane aperfeiçoou-se a
captação de informações, com longas
estadias no meio da floresta e monitoramentos por sobrevoos. Descobriu-se,
então, que alguns destes povos são
caçadores e coletores, caso dos Mascho,
que circulam na fronteira do Brasil com o
Peru, nômades, e outros agricultores, com
possível associação ao tronco linguístico
Pano. “Quando chegamos, ocorriam muitos conflitos entre os Ashaninka e Huni
Kui com os isolados. Em 1989 sobrevoamos suas pequenas malocas, que hoje já
devem ser o dobro”, lembra Meirelles. O
sertanista lembra que estes povos tiveram
um aumento populacional nos últimos
anos e isso também provoca mudanças no
comportamento. No Brasil existem cerca
de 90 povos em isolamento voluntário.
Narcotraficantes
atacam
Se por um lado, desde os anos 1980
registram-se conflitos entre os isolados e
os demais povos das margens do Envira,
por outro, a partir de 2005, data Meirelles, as cabeceiras do Envira no Peru, até
então desabitadas pelo homem branco,
foram invadidas por madeireiras e depois
pelas plantações de coca e por todo o
processo que envolve a sua produção.
Os empreendimentos, no geral, são do
mesmo dono e a madeira é usada para
“lavar” os lucros obtidos com a coca. O
avanço das fronteiras do crime organizado internacional para cima do território
gerou o mencionado episódio de junho
de 2011, quando a Base do Xinane foi
cercada por narcotraficantes e a equipe
de servidores da Funai retirada do local
por helicópteros da Polícia Federal. Meses
antes, em março, o traficante português
Joaquim Antônio Custódio Fadista, condeJun/Jul–2014 10 nado por tráfico de drogas no Brasil, em
Luxemburgo e no Peru, foi detido na Base
do Xinane depois de aparecer no local
sozinho, portando uma mala com drogas
e dólares e pedindo passagem. Levado
para Rio Branco, ele foi extraditado para
o Peru. Logo conseguiu liberdade e em
junho regressou ao Xinane com capangas
para se vingar de quem o havia detido
e supostamente localizar a mochila recheada com drogas e dinheiro. Meses
depois, em agosto, Fadista foi mais uma
vez detido. Informados pelos Ashaninka,
a Polícia Federal e servidores da Funai
chegaram ao Xinane para averiguar a
circulação de supostos narcotraficantes.
Durante a operação, a equipe localizou
Fadista no meio da mata, nos arredores
da Base do Xinane. O governo federal tem
informações que o narcotráfico, sediado
do outro lado da fronteira, estuda a região
com o intuito de utilizá-la.
As madeireiras, portanto, estariam
atreladas ao narcotráfico e a intensidade
da ação delas na região está submetida ao
avanço do negócio da droga no território
compartilhado pelos Ashaninka e isolados. Sobrevoos realizados pela equipe do
Xinane, do final dos anos 1980 até a sua
desativação em 2011 sob fogo cerrado
dos traficantes, comprovam a ação de
madeireiros. No entanto, tais investidas
diminuíram depois da demarcação e da
consequente proteção do território. No
lado brasileiro registra-se a incidência de
pequenos madeireiros, além da utilização
da área dos isolados “como supermercado
de carne, peixe e madeira por parte dos
brancos. Os Ashaninka e Madja também
pescam nestas áreas para vender em
Feijó”, diz Meirelles. Mesmo com a Funai
retomando os trabalhos da Base do Xinane, como impedir que o território deixe
de ser acossado pelo narcotráfico? No
último dia 24 de março, a presidente do
órgão indigenista, Maria Augusta Assirati,
se reuniu em Lima, Peru, com representantes do Ministério da Cultura peruano
para a formalização interinstitucional de
protocolos para a proteção e promoção
dos direitos dos povos isolados e de recente contato, que vivem nas regiões de
fronteira entre os países. Aos indígenas,
porém, fica a relação com os isolados.
“Sofreram muitas
violências”
O cacique Ominá Madja tem uma
pequena coleção de objetos dos isolados
recolhidos na mata. Um de seus filhos
aprendeu a tocar uma pequena flauta
tingida de urucum e musgo. As janelas
da casa do cacique miram a floresta
chuvosa. Naquele mesmo dia pela manhã um isolado foi avistado espreitando,
dependurado numa árvore. Por trás do
manto d´água que cai nada se esconde.
“Eles sofreram muitas violências. Como
a gente também. Toda vida que índio
morre por um pedacinho de terra, seja
querendo ou defendendo ela. Só que os
Rose Padilha
Gleilson Miranda/Funai
bravos não sabem tudo o que a gente sabe
de vocês (brancos)”, analisa. Cacique da
aldeia Igarapé do Anjo, homônimo de um
dos igarapés onde os isolados mantêm
aldeias, o indígena afirma que a relação
dos Madja com os livres não é pautada pela violência, mas que alimentam
desconfianças mútuas. “Tentamos falar
com eles, apesar da língua ser diferente.
Como a gente não ataca, chegam perto
cada vez mais. Achamos cerâmica deles,
panelas, flechas e flautas. Estão perto da
gente”, diz Ominá. O cacique aponta para
a ação de madeireiros na região, o que
justificaria a aproximação cada vez mais
constante destes povos às aldeias Madja.
Como no decorrer do processo histórico
os Madja e Ashaninka passaram a casar
entre si, algumas aldeias são compartilhadas. “Aqui a gente é madjaninka”,
riem. Se por um lado as fronteiras impostas pelos Estados nacionais não existem para as populações em isolamento
voluntário, que circulam entre alguns
países num grande território ancestral,
aos Ashaninka e Madja a demarcação da
Terra Indígena Kampa/Isolados é apenas
uma formalidade importante. A comunidade Igarapé do Anjo está dentro dessa
terra indígena, assim como a aldeia Terra
Nova, onde o cacique Isanami Madja é
casado com uma Ashaninka.
Enquanto a esposa prepara caiçuma
de mandioca, Isanami mostra a identidade puída. Levado junto com roupas
e panelas, o documento foi encontrado
tempos depois, num buraco, junto a
outros objetos saqueados pelos isolados.
Silenciosos e sem violência, os livres
chegaram a levar o mosquiteiro de Isanami enquanto ele e a mulher dormiam.
O episódio é lembrado com risos, mas
nem sempre as histórias são irreverentes. Certa vez uma mulher Madja estava
na roça quando foi abordada por dois
isolados. Primeiro tomaram o terçado
das mãos da indígena e depois insistiram
para que ela fosse embora com eles. Os
No mês de junho, lideranças Ashaninka relataram que na aldeia Simpatia um indígena caiu em uma armadilha dos livres,
no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo Madja, a inserção dos livres acontece toda
semana. A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da Floresta Amazônica no Paralelo 10, segue como símbolo do
desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade destes povos?
Renato Santana
homens da aldeia, tão logo ouviram os
gritos da mulher, correram para a roça
e, lá chegando, precisaram afugentar os
livres. Tanto a Funai quanto os Madja
sabem que poucos quilômetros separam
as aldeias das malocas dos isolados.
Conforme Isanami, tal aproximação tem
se intensificado nos últimos cinco anos,
mas de uns três para cá deixou de ser sazonal e ocorre durante todas as semanas
do ano. “Já os vi muitas vezes. Perto da
aldeia e no meio da mata. São cabeludos
e têm os corpos pintados de urucum e
jenipapo. Já vi caçando macaco. Olham
a gente e correm. Não ficam não”, conta
Isanami. Para o cacique, o mais difícil é
ter sempre roupas e utensílios levados
pelos isolados. “Olha, vou te dizer meu
pensamento: não que tem de amansar ou
fazer violência contra eles, madeireiro é
quem faz assim. Mas imagina ter suas roupas levadas toda hora por outras pessoas
ou a sua roça? Perder tudo. Isso deixa a
gente triste”, conclui Isanami.
Proposta
diplomática
Enquanto esteve na Base do Xinane,
Meirelles realizou algumas oficinas com
os Ashaninka e Madja para tratar da
relação com os isolados. “Creio que os
isolados, pela nossa atitude de respeito,
durante anos, com aquele território só
para eles, consideram sua área de ocupação aquele pedaço. E é. Os Ashaninka
chegaram ao Envira na década de 1940,
os isolados já estavam lá. Então, quem
invadiu terra de quem?”, questiona o
sertanista. A principal reclamação dos
Ashaninka é de que Meirelles não os deixava participar das ações da frente e agora
reivindicam mais protagonismo. Querem
entender quem tem se movimentado pelo
território além dos isolados. Pretendem
desenvolver uma nova diplomacia. “Para a
gente tem peruano no meio e até outros
indígenas do Peru juntos. Como vai dizer
diferente? A gente quer ir ver mesmo porque tem Ashaninka no Peru que diz que
tem madeireiros e traficantes andando
por aqui. Tanto os parentes bravos quanto nossas aldeias estão sem proteção”,
conclui Txate Ashaninka. Na Base do
Xinane, Txate e os Ashaninka encontram
razão para o argumento: pegadas de pés
descalços e botas se misturam riscando o
limo que cobre a madeira quebradiça das
pontes que ligam as casas da estrutura.
Antigo funcionário da base, Francisco
das Chagas recorda que Meirelles temia
a presença dos Ashaninka na base por
conta do histórico de conflitos entre
eles e os isolados. “Seu Meirelles queria
os bravos perto da base”, diz Chagas. O
experiente mateiro lembra que muitos
funcionários da frente foram alvos de
flechadas, inclusive o próprio Meirelles,
e que “só não morreram porque Deus
foi camarada”. Os isolados costumavam
andar perto das casas da base arremedando animais. E confirma: “Não sei bem a
razão, mas os bravos estão cada vez mais
em cima dos Ashaninka. É de uns três
anos pra cá, daqui acolá (gesticula com
os braços) a gente vê eles atravessando
o rio. Na aldeia Simpatia (última aldeia
Ashaninka antes da base) não faltam”.
Chagas também não confirma a presença
de peruanos não indígenas, mas salienta
movimentações diferentes de isolados
na região. O mateiro está há quase duas
décadas no Envira, onde casou com uma
Ashaninka e hoje já cuida dos netos.
Crianças levadas
pelos bravos
Outras histórias envolvendo os isolados dão conta de crianças levadas por
eles. José Poshe e Bibiana Ashaninka
nunca esqueceram de uma festa ocorrida
Renato Santana
na aldeia há 18 anos quando a pequena
Sawatxo foi carregada. Na época com 5
anos, a jovem dormia com os irmãos.
Ao ouvir choros e gritos das crianças,
José Poshe correu para casa e ao chegar
os mais velhos relataram que um bravo
entrou na casa e levou Sawatxo. Foram
muitos dias procurando pela menina na
floresta. Em vão. “Deve estar grande.
Já deve ter tido filhos. Ela deve ter se
acostumado sem a gente. Todo mundo se
acostuma a tudo”, diz José Poshe olhando
para o rio. Dezenas de outras tentativas
foram relatadas pelos Ashaninka. Do lado
peruano uma das histórias terminou em
massacre. Entre os Ashaninka do Envira,
o ocorrido na comunidade Doce Glória,
Departamento de Ucayali, Peru, em 2003,
próximo a cabeceira do Rio Juruá, mesmo
que não tenha tido a participação de
indígenas do Brasil, é um fantasma que
assombra as florestas do território que
compartilham com os isolados. Enquanto preparava a comida para o marido e
outros Ashaninka que estavam pescando,
uma mulher foi morta por um grupo de
livres do povo Masko Piro. Imediatamente
os Ashaninka arregimentaram um grupo
e, na mata, deram o mesmo fim da mulher
para cerca de 300 isolados. O relato vem
dos Ashaninka do Envira, que possuem
parentes entre os Ashaninka do Peru.
“Então, eu não sei se um parente bravo
matar um Ashaninka não pode acontecer
isso no Envira. Eu, como mais velho, digo
aos mais novos para não fazer nada. Para
não ir na mata quando se sabe que eles
estão lá, mas a gente não controla tudo”,
afirma Txate Ashaninka.
O fantasma dessa história, porém,
tem razão de assombrar um povo tomado
pelo mágico. Os indígenas afirmam que a
movimentação dos Masko foi provocada
pela ação de madeireiros ilegais vindos
do Departamento de Madre de Dios,
chegando às cabeceiras do Rio Juruá,
perpassando territórios dos isolados, na
Zona Reservada do Alto Rio Purus, uma
unidade de conservação na Amazônia
peruana criada ainda no governo Alberto
Fujimori (1990-2000). “Eu penso que se
não for retomado um trabalho aqui no
Envira pode acontecer algo como lá no
Peru. Isso dá mais medo em mim que as
flechas dos parentes bravos. Mas a gente
não quer que a Funai volte como era
antes. Ashaninka e Madja precisam estar
juntos. Precisamos ser parte”, diz Txate.
No mês de junho, lideranças Ashaninka relataram que na aldeia Simpatia
um indígena caiu em uma armadilha dos
livres, no interior da floresta, mas não se
feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo
Madja, a inserção dos livres acontece toda
semana. A Base do Xinane, devorada pela
fome úmida da Floresta Amazônica no Paralelo 10, segue como símbolo do desafio
da política indigenista aos isolados. Num
paradoxo, como assegurar e garantir a
liberdade destes povos? Enquanto isso,
os livres exercem o direito de resistência
e demonstram diplomaticamente que não
irão aceitar as mortes de antigamente. As
histórias circulam e eles seguem o caminho de volta entrecortado por trilhas de
outros povos. Por essas picadas os livres
também seguem, onde muitos deles tiveram a carne morta devorada pela terra.
Um jardim de ossos na paisagem da memória. Num mundo brevemente grande,
que já teve seu apocalipse de fogo para
estes povos, tais encontros ocorrem entre
as ruínas de raízes que insistem em tecer
novos convívios e relações. n
“As excursões
de povos
livres às
aldeias
têm sido
constantes.
Levam
terçados,
roupas, redes,
utensílios,
tudo o que se
pode colher
nas roças, e
até mesmo
crianças. Os
Ashaninka
aprenderam
a lidar com
tais “delitos”
sem violência,
mas temem
que em algum
momento algo
de mais grave
aconteça.
Caciques
e demais
lideranças
tramam os
fios tênues
dessa história,
elásticos
como uma
linha de
borracha”
1 A Funai divulgou o episódio no dia 7 de
agosto de 2011, que teve ampla cobertura
da imprensa:http://g1.globo.com/natureza/
noticia/2011/08/grupo-armado-peruanoinvade-terra-de-indios-isolados-no-ac-dizfunai.html
2 Depoimento do sertanista José Carlos
Meirelles ao cineasta Silvio Da-Rin para o
documentário Paralelo 10 (2012)
11 Jun/Jul–2014
Ministro X Constituição
Cardozo diz que MJ
vai “ajustar limites”
dos direitos indígenas
De Brasília (DF)
D
urante reunião na manhã de 4
de junho com a Comissão de
Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural,
na Câmara dos Deputados, o ministro
José Eduardo Cardozo disse à bancada
ruralista que a postura do Ministério
da Justiça (MJ) em relação à questão
indígena no Brasil continuará sendo a de
“mediar conflitos” por meio das mesas
de diálogo. “Costumam dizer que direitos não se negociam. A mediação não
é para abrir mão de direitos, mas para
fazer ajustes dos limites desses direitos”,
explicou o ministro.
Um dos caminhos para o “ajuste de
direitos” pretendido pelo ministério
seria a efetivação da Minuta de Portaria
proposta por Cardozo para ‘regulamentar’
o Decreto nº 1775/96, o que inviabilizará a
demarcação de terras indígenas. Apresentada pelo ministro em dezembro de 2013,
a Minuta foi repudiada por organizações
indígenas e indigenistas, que entregaram
um parecer jurídico a Cardozo, enfatizando os equívocos da proposta.
Desde então a Minuta está parada
no MJ, mas a bancada ruralista continua
pressionando o ministro. O deputado
Luis Carlos Heinze (PP/RS) ordenou a
Cardozo que acabe com o processo
de demarcação no município de Faxinalzinho (RS). “Diga para esses índios,
ministro, tenha o peito de dizer: ‘pessoal
vai embora, aqui não é área indígena!”.
Sobre a demarcação de Mato Preto, outra
terra indígena do RS, Heinze atacou: “Se
vocês tivessem a decência necessária
teriam eliminado aquele processo”.
Em resposta, Cardozo inicialmente
fez um apelo para que os parlamenta-
N
res com presença em áreas de conflito
adotem postura de pacificação. “Seria
muito importante, deputado Heinze,
que pessoas com a envergadura de Vossa
Excelência, com a representatividade
de Vossa Excelência e outros deputados
ajudassem a pacificar essas regiões”. E
depois acrescentou: “Uma coisa eu quero
dizer deputado Heinze, com toda a franqueza e lealdade, o Ministério da Justiça
não tolera violência, venha de onde vier.
Contra a transgressão, contra a incitação
à prática de crimes nós seremos duros.
Porque há pessoas incitando a prática
de crimes. E quem incitar vai responder
nos termos da lei”, reforçou o ministro.
Uma queixa-crime contra os deputados Heinze e Alceu Moreira (PMDB/
RS) tramita no Supremo Tribunal Federal
(STF). Os parlamentares foram denunciados por racismo e incitação ao crime
por terem declarado, publicamente, que
índios, quilombolas, gays e lésbicas são
“tudo o que não presta” e incentivado
produtores rurais a contratar segurança
privada para expulsar índios das terras
“do jeito que for necessário”.
Em resposta ao pedido dos ruralistas
para que o MJ elimine os procedimentos
demarcatórios, Cardozo declarou que “o
Poder Executivo não pode suspender os
processos de demarcação sem causa jurídica”, e explicou à bancada a manobra
que se pretende com a publicação da Minuta: “Nós (MJ) concordamos que temos
que instruir melhor os processos e por
isso elaboramos a Minuta de Portaria”.
Caso seja efetivada, grupos contrários à
demarcação passarão a interferir desde
os primeiros momentos no procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas, inviabilizando até mesmo
o trabalho de campo dos profissionais e
estudiosos”.
a cueca – Mesmo boicotado pela transmissão
televisiva oficial da cerimônia de abertura da
Copa do Mundo, no dia 12 de junho, realizada
no Itaquerão, o protesto do indígena Wera Jeguaka
Mirim, de 13 anos, foi divulgado nos jornais, blogs
e redes sociais do mundo todo. Após participar de
um ato que simbolizava a paz e a união de povos e
culturas, ainda no gramado, ele abriu uma faixa vermelha com os dizeres “Demarcação Já!”. Morador da
aldeia Guarani de Krutuku, em Parelheiros, na capital
paulista, ele demandava a demarcação das terras indígenas no Brasil. “Eu queria que a presidente Dilma
lesse. E que mais gente lesse e lutasse com a gente
porque a gente mora aqui faz mais de mil anos. A
Jun/Jul–2014 12 gente quer a nossa terra demarcada”, afirmou Wera.
Luiz Pires/Comissão Guarani Yvyrupa
Carolina Fasolo,
Ainda não convencido, Heinze investiu contra os ministros: “Os senhores
não querem resolver esse assunto. Se
quisessem, nós dessa Casa já tínhamos
regulamentado o artigo 231. Nós já tínhamos feito a PEC 215, que não anda porque
o governo não quer. O que queremos é
resolver, e resolver tem solução legislativa
e do próprio Executivo”. Também convocado para a reunião, Gilberto Carvalho,
ministro-chefe da Secretaria Geral da
Presidência da República, ponderou: “Temos tido muitos problemas. Há pressões
de todos os lados, vocês viram a semana
passada”, referindo-se às manifestações
da Mobilização Nacional Indígena.
Gilberto Carvalho ainda demonstrou
aos deputados que as porções de terra
reivindicadas pelas populações indígenas
são mínimas e não comprometerão o
agronegócio. “Não se trata de grandes
porções de terras que venham a prejudicar a agricultura nacional. Em Mato
Grosso do Sul, por exemplo, até hoje
foram demarcadas 2,28% das terras do
estado, e o máximo que se poderá chegar
é mais 1%. No Rio Grande do Sul, apenas
0,39% das terras, chegando a até 1,5% ou
2% no máximo, se todas as terras forem
demarcadas. O estado de Santa Catarina
tem 0,87% do território destinado aos
indígenas, podendo chegar ao máximo
de 2%. Então, não há nenhuma ameaça
de tomada de grandes terras da agricultura nacional”. No entanto, Carvalho
sinalizou que o governo não vai retirar os
proprietários das terras indígenas, e que
os processos continuarão paralisados. n
No Junho Indígena
povos rechaçam
projetos de
“desenvolvimento”
Cimi Regional Rondônia
O
movimento indígena de Rondônia, do noroeste do Mato
Grosso e do sul do Amazonas
realizou o encontro “Junho Indígena”,
entre os dias 3 e 6 daquele mês com
o tema “Movimento indígena: luta,
resistência e fortalecimento”. O evento contou com a presença dos povos
Aikanã, Arara, Cassupá, Chiquitano,
Gavião, Guarasugwe, Jabuti, Jiahui,
Kwazá, Karitiana, Kujubim, Latunde, Makurap, Mamaindê, Massacá,
Migueleno, Ororam Xijem, Cao Oro
Waje, Oro Mon, Oro Nao, Oro Waram,
Puruborá, Sabanê, Sakirabiar, Suruí,
Tawandê, Tenharim, Terena, Tupari,
Wajoro e Zoró, e aliados como o
Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), o Instituto Madeira Vivo (IMV),
o Ministério Público Federal (MPF) e
a Universidade de Rondônia (Unir).
Após a constatação de que a conjuntura indigenista se encontra em um
momento desfavorável às conquistas
dos povos indígenas e das demais
comunidades tradicionais, os debates
priorizaram os projetos governamentais e privados que esbulham os
territórios indígenas, bem como as
falhas na execução das políticas públicas (saúde, educação, terra) que têm
prejudicado a vida das comunidades.
Segundo a Carta Final do encontro, os direitos garantidos na
Constituição Federal de 1988 são
descaracterizados devido ao avanço
de empreendimentos, como rodovias,
hidrovias, hidrelétricas, projetos
de sequestro de carbono, agropecuária, agronegócio e outros, que
violam os direitos indígenas. “Tudo
isso para defender os interesses do
capital econômico que destrói e
mata”. O documento pode ser lido
na íntegra em: www.cimi.org.br/site/
pt-br/?system=news&action=read&id=7586 n
Luta pela terra
Relatório da Polícia Federal apontou ação
de fazendeiros contra os Xakriabá de Cocos
Renato Santana,
de Recife (PE)
“O
comportamento pessoal do Comandante Prado, ao ser autuado
em flagrante, demonstra o que
de mais vil, reprovável e atrasado
existe no Brasil. Ligou para deputados, políticos e ameaçou de represálias policiais,
mentiu em seu interrogatório alegando
que sofrera maus tratos pelos policiais
federais, enfim, arrotou a arrogância
típica dos coronéis de antigamente, na
crença da impossibilidade de ser atingido
pelas leis penais do país, e na utilização
descarada da técnica da intimidação e
constrangimento das autoridades legalmente constituídas”.
A narrativa é parte do Relatório
Circunstanciado Cocos (BA), enviado à
inspetoria da Polícia Federal (PF) em 3 de
fevereiro de 2011, sob análise e redação do
delegado Victor Emmanuel Brito Menezes,
atendendo expediente da Ouvidoria Agrária Nacional. O órgão solicitou averiguação
à PF sobre a existência de “vigilantes” armados em fazendas nas imediações do município baiano. As “propriedades” incidem
sobre territórios tradicionais reivindicados
e ocupados pelo povo Xakriabá de Cocos.
Na condução do relatório, o delegado afirma que não há dúvidas “sobre a
existência de empregados armados na
Fazenda Portela, tanto que foram autuados em flagrante por porte ilegal um
funcionário (...) e o suposto proprietário
de fato da fazenda, conhecido na região
como Comandante Prado”. Com base no
trabalho realizado pelos agentes federais,
Menezes recomendou “ação policial mais
numerosa e efetiva, com vistas a descobrir
todas as armas existentes na fazenda do
Comandante Prado” e os demais crimes
que Prado vem cometendo.
Mesmo com a conclusão das investigações pelas autoridades policiais há três
anos, nada ou pouco foi feito para a efetiva
proteção das comunidades indígenas. Em
2012 e 2013 novos ataques e ameaças
foram registrados contra as lideranças
Xakriabá e seus aliados. Este ano, a aldeia
do Povoado de Porcos, tomada por uma
fazenda de mesmo nome, ficou completa-
Assine o
mente ilhada por pistoleiros e até o transporte de doentes está impedido. Médicos
também estão proibidos de entrar e até
servidores da Fundação Nacional do Índio
(Funai) foram atacados a tiros. Há quatro
anos lideranças indígenas são vítimas de
emboscadas e toda sorte de privações
impostas por fazendeiros.
Porém, os interesses do agronegócio
e da ‘indústria de barragens’ orquestram
a sincopada dança da morte numa região,
o oeste da Bahia, que conta com privilegiada bacia hidrográfica e topografia
plana, além de ser a região mais rica em
recursos hídricos do Nordeste brasileiro.
Enquanto o procedimento de demarcação
segue emperrado, como parte da política
do Ministério da Justiça para os conflitos
agrários envolvendo terras indígenas, os
Xakriabá permanecem em situação de
vulnerabilidade. Famílias são expulsas de
aldeias e a cada ano o monocultivo avança
sobre as roças e as formas autônomas de
vida dos indígenas.
Registros fraudulentos
Tal avanço, de acordo com as investigações da PF, ocorreu com fraudes no registro de propriedades. Conforme aponta
o delegado Menezes no relatório de 2011,
“(...) pessoas do lugar, entrevistadas informalmente pelos agentes que cumpriram
a missão, deram conta de outros crimes
cometidos pelo Comandante Prado e seu
grupo, referentes a fraudes para registrar
propriedades rurais em nome de pessoas
ligadas ao grupo, expulsão de posseiros,
intimidações para obrigar trabalhadores
rurais do local a assinar papéis em branco,
entre outras”.
A investigação policial dá conta ainda
da participação de servidores estatais nas
ações do Comandante Prado. O consórcio
adota estratégias vistas em outros pontos
de conflito no país, caso das terras indígenas Marãiwatsédé, do povo Xavante, no
Mato Grosso, Tupinambá de Olivença, no
sul da Bahia, e Awá-Guajá, no Maranhão.
Meeiros e trabalhadores das fazendas são
levados a depoimentos, inclusive incentivados ao conflito contra os indígenas,
cujo conteúdo envolve a não existência de
indígenas na região e a ocupação secular
de outras famílias meeiras nas fazendas
instaladas nas áreas.
Foi o que ocorreu em 19 de junho
de 2013. Em declaração à promotora de
Justiça Stella Athanazio de Oliveira Santos,
o auxiliar de serviços gerais e morador da
Fazenda Porcos, Joaquim Ribeiro da Costa,
afirmou que a liderança Xakriabá Josias
Brito de Oliveira, patriarca e fundador
do Povoado de Porcos morto há cerca de
seis anos, costumava se declarar índio por
conta de “delírio” oriundo do consumo de
bebidas alcoólicas. Referiu-se à filha do indígena, Natalina Nogueira da Costa, como
aliciadora, ao lado do padre Albanir da
Mata Souza, de “pessoas da comunidade”
ao intento de no local “criar uma reserva
de área indígena”. Por fim apresentou
um abaixo-assinado contra a criação da
“reserva” com os nomes “das pessoas
enganadas” pela indígena e pelo padre.
Ameaças recentes
No dia 4 de junho deste ano, a secretária de Educação de Cocos, Silvani
Alves Gama, se dirigiu ao Distrito Policial
da cidade para registrar ocorrência do
furto da placa de inauguração da Escola
Municipal Bem me Quer Josias Brito de
Oliveira, localizada no Povoado de Porcos.
Nesse mesmo dia o cacique Divalci José da
Costa Xakriabá comunicou que enquanto
se encaminhava do povoado para a cidade
foi abordado por dois homens que ocupavam uma motocicleta. Ambos traziam o
“convite” para que ele retornasse à aldeia.
Caso ele não atendesse ao pedido, a casa
do padre Albanir seria invadida.
Já no povoado, cacique Divalcir foi
abordado por outros 30 homens que o avisaram que não aceitariam a entrada de maquinários no povoado para a pavimentação
da ‘estrada real’, via de acesso controlada
pelos capangas dos fazendeiros, tampouco
a abertura de um poço artesiano. Caso a
decisão fosse desrespeitada, eles ateariam
fogo nos equipamentos. Determinaram
ainda que os indígenas só poderiam circular na “área em litígio” com a presença
da Funai. Padre Albanir, administrador da
Paróquia São Sebastião, também registrou
ocorrência neste mesmo dia relatando
ameaças. Os fazendeiros o taxam como
mentor da ideia da demarcação de terras
indígenas aos Xakriabá. Estas últimas
ameaças registradas em boletim de ocorrência foram levadas ao Ministério Público
Federal (MPF) no dia anterior.
Fronteira agrícola
A ligação do Comandante Prado
para políticos e deputados, na frente de
policiais federais, não foi à toa. Em 2008,
o governo da Bahia lançou o Programa
Estadual de Bioenergia – BahiaBio. O projeto estimou em 240 mil hectares a área
propícia ao cultivo de cana-de-açúcar no
oeste baiano destinada ao etanol. Ou seja,
a ocupação das áreas tradicionais do povo
Xakriabá de Cocos por fazendas é parte
integrante desse esforço. A antropóloga
Sheila Brasileiro, perita da Procuradoria da
República na Bahia (PR/BA), relatou a situação em 2011 depois de percorrer a região.
O avanço acelerado das fronteiras agrícolas,
com o aval das autoridades públicas, tem
lançado os fazendeiros para cima das terras
indígenas, ribeirinhas e camponesas.
No município de Cocos, além do
Povoado de Porcos, há ainda outras comunidades fundadas por indígenas xakriabá:
Cajueiro, Bom Jesus e Canguçu. Estes grupos de indígenas que chegaram ao oeste
da Bahia a partir do final do século XIX
e início do XX são oriundos de São João
das Missões (MG), onde o povo Xakriabá
foi aldeado no século XVIII. Conforme
o relatório da antropóloga da PR/BA, o
interesse sobre estas terras, tomadas por
registros arqueológicos, arrefeceu no final
do século passado com a falência de várias
empresas de celulose. A partir da primeira
década do século XXI, todavia, as fazendas
agropecuárias passaram a pressionar as
comunidades com o intuito de ocupar as
terras. Em Canguçu, por exemplo, Sheila
reproduz relatos de famílias demonstrando
as restrições impostas por fazendas que
ali se instalaram contra a agricultura de
subsistência praticada pelos indígenas. Não
restou alternativa há muitos destes Xakriabá a não ser trabalhar para os fazendeiros
que os acossam e violentam. Uma narrativa
bastante conhecida país afora, ainda mais
quando todos os apontados nas investigações policiais estão soltos e agindo. n
SOLICITE SUA ASSINATURA PELA INTERNET:
[email protected]
FORMA DE PAGAMENTO – DEPÓSITO BANCÁRIO:
BANCO BRADESCO – Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO
Envie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou correio e especifique a finalidade do mesmo.
PREÇOS: Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00
* COM A ASSINATURA DE APOIO VOCÊ CONTRIBUI PARA O ENVIO DO JORNAL A DIVERSAS COMUNIDADES INDÍGENAS DO PAÍS.
13 Jun/Jul–2014
Direitos Indígenas
Matias Rempel
R
O povo
Kaingang
denunciou
nas ruas de
Passo Fundo
as práticas
governamentais
de perseguição
de suas
lideranças e de
desmonte de
seus direitos,
além de ter
reafirmado
a luta pela
demarcação de
seus territórios
mediante a
justa e plena
indenização
dos colonos
que foram
assentados
indevidamente
sobre suas
terras
Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre
o dia 24 de junho, cerca de
150 indígenas Kaingang, representando mais de 10 aldeias e
acampamentos do Rio Grande
do Sul realizaram uma forte e colorida
marcha pelas ruas da cidade de Passo
Fundo, localizada na região norte do
estado. Foi desta forma, fazendo ecoar
pelas ruas canções de luta e de protesto,
que o povo Kaingang deu sua resposta à
política de desmonte territorial intitulada
de “ajuste de direitos” apresentada pelo
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, através das igualmente desastrosas
“mesas de diálogo”.
A marcha, que começou em frente
à sede da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai) teve como seus principais
destinos o Ministério Público Federal
(MPF) e a sede da Fundação Nacional do
Índio (Funai), onde foram protocolados
documentos que denunciam a política de
redução e desmonte das terras indígenas
no estado por parte do Ministério da
Justiça e a clara política de criminalização
das lideranças indígenas pelos governos
federal e estadual (leia texto abaixo). O
mesmo documento foi entregue também
diretamente nas mãos do ministro José
Eduardo Cardozo por lideranças Kaingang
que estavam em Brasília.
Em frente à sede do MPF o hino
nacional foi entoado na língua Kaingang,
enquanto as lideranças cobravam do
Matias Rempel
Em marcha, Kaingang denunciam
“ajuste de direitos” e criminalização
Indígenas
sofrem ameaças
e perseguições
na região de
Faxinalzinho (RS)
Cimi Regional Sul
I
órgão que este assumisse uma postura
mais firme no que se refere à garantia das
demarcações dos territórios indígenas. A
postura omissa do MPF tem sido adotada
frente a medidas que, explicitamente,
ferem os direitos dos povos originários,
como a tentativa de compra ou redução
de terras ao invés de garantir a demarcação de seus territórios tradicionais de
acordo com os preceitos constitucionais.
Na sede da Funai, na frente do coordenador regional, Roberto Perin, os indígenas anunciaram, com base no documento
entregue, que continuarão o processo de
autodemarcação de seus territórios caso
o ministro da Justiça não cumpra as medidas já acordadas com os Kaingang em
fevereiro deste ano, referente à continua-
ção dos procedimentos demarcatórios de
maneira imediata nas terras de Kandóia,
Rio dos índios, Irapuá e Passo Grande do
Rio Forquilha. Os Kaingang avançaram na
defesa de seus direitos e cobraram da Funai a continuidade dos procedimentos de
todas as outras áreas indígenas do estado,
sobretudo dos acampamentos indígenas,
que se encontram paralisados. Com este
ato, o povo Kaingang denuncia as práticas de perseguição de suas lideranças e
desmonte de seus direitos e reafirma a
luta pela demarcação de seus territórios
mediante a justa e plena indenização dos
colonos que foram assentados indevidamente sobre suas terras. O povo Kaingang
está em marcha. A decisão volta a estar
nas mãos do Ministério da Justiça.
Presos políticos foram libertados por decisão liminar do STJ
A
s cinco lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Kandóia,
município de Faxinalzinho (RS),
que estavam presas desde o dia
9 de maio pela Polícia Federal, foram
libertadas no dia 22 de junho.
A libertação ocorreu em função de
uma decisão liminar concedida pelo
ministro Rogério Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atendeu
um pedido de liminar de habeas corpus
impetrado pelos advogados de defesa
das lideranças indígenas, que estavam
no Presídio Estadual do Jacuí, em Charqueadas (RS). O STJ considerou que
não havia provas que incriminassem
as lideranças Kaingang acusadas pelo
delegado da Polícia Federal de Passo
Fundo, Mário Viera, responsável pelo
inquérito, pelos assassinatos dos dois
agricultores.
As inúmeras falhas no inquérito e o
fato de que nenhum dos cinco indígenas tenha participado do bloqueio da
estrada vicinal, que fica dentro da área
Jun/Jul–2014 14 reivindicada pelos indígenas, onde o
conflito com agricultores ocorreu no dia
28 de abril, evidenciaram que a prisão
foi maus um episódio de criminalização
do direito dos indígenas de lutarem
pela terra.
Também é interessante observar que
os cinco Kaingang que estavam presos
ocupam posições importantes em suas
comunidades. Deoclides de Paula é cacique, Nelson Reco de Oliveira é vice-cacique, Celinho de Oliveira é filho do kujã,
líder religioso da comunidade, Daniel
Rodrigues Fortes é agente de saúde e
Romildo de Paula é uma das lideranças
do povo, além de ser primo do cacique.
Desse modo, é claro que, ao prender estes indígenas, desestruturou-se
a organização social da comunidade.
Abusos e falta de provas
Sem ter nenhuma prova cabal de que
aquelas eram as pessoas que haviam praticado os delitos, já que não há nenhuma
testemunha que tenha presenciado
as mortes ocorridas, a Polícia Federal
invadiu e prendeu os indígenas em uma
reunião promovida por integrantes da
prefeitura de Faxinalzinho, do governo
do Rio Grande do Sul e do governo federal para dialogar sobre os conflitos entre
indígenas e agricultores e o processo de
demarcação da terra já reconhecida pelo
órgão federal como tradicionalmente
indígena. De acordo com os indígenas,
as prisões foram realizadas de forma
truculenta e irregular, sem que os
mandados de prisão temporária fossem
apresentados.
Os Kaingang de Kandóia presos
esperam que, a partir da conclusão do
inquérito e da intervenção do Ministério
Público Federal, se consiga no âmbito do
Poder Judiciário chegar a uma conclusão
justa acerca dos conflitos que envolveram agricultores de Faxinalzinho e indígenas. Além disso, as lideranças avaliam
que é urgente a atuação do Ministério
da Justiça na região norte do Rio Grande
do Sul, no sentido de concluir os procedimentos de demarcações das terras e
com isso evitar mais tensões e injustiças
contra a comunidade de Kandóia. n
ndígenas Kaingang da
Terra Indígena Kandóia,
município de Faxinalzinho
(RS), relatam viver em um
cotidiano de perseguições, ameaças e manifestações de preconceitos desde o conflito ocorrido
no último mês de maio, quando
agricultores tentaram, à força,
desobstruir uma vicinal bloqueada
pelos indígenas que protestavam
pela demarcação de terras. Na ocasião, em decorrência do conflito,
dois agricultores acabaram mortos.
“Todos os indígenas foram
mandados embora [do emprego].
Sem motivo nenhum foram demitidos do frigorífico. Todos os
indígenas de Kandóia. Não querem
mais aceitar os indígenas”, explica
Cleicinei Kaingang. O ir e vir dos indígenas na região de Faxinalzinho
se tornou arriscado ou, no mínimo,
um convite a ouvir xingamentos e
ataques racistas.
“Os nossos alunos vão para
a aula no município de Faxinalzinho. A professora impediu minha
sobrinha de falar na língua na sala
de aula. Essa minha sobrinha não
quer ir mais à aula de jeito nenhum”, afirma Cleci Kaingang. Os
indígenas dizem que não podem
mais tirar taquara ou lenha para
o fogo, posto que Kandóia está
entre propriedades que incidem
no território tradicional Kaingang.
Cacique Deoclides reafirma
que nunca deixou de querer discutir com o ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo, saídas
para a demarcação das terras.
“Nosso povo decidiu não sair
daqui. Continuamos esperando o
governo vir aqui para resolver a
questão”, diz. O vídeo com estas
denúncias do povo Kaingang foi
feito pelo cartunista Carlos Latuff
e está disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=upGpgGvrH-4&noredirect=1 n
Omissão do governo é a
maior causa da violência
contra os indígenas
Renato Santana,
N
“
De Brasília
ão pedimos que gostem dos
índios. Exigimos apenas que
nos respeitem. Que respeitem
nossos direitos”. E a violação
desses direitos, trazida pela fala de
Ivanildo Tenharim diante das agressões
sofridas pelo seu povo, é uma das principais causas dos dados apresentados
pelo Relatório Violência contra os Povos
Indígenas no Brasil, referente ao ano de
2013, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado no dia 17 de julho, na
sede da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), em Brasília (DF).
Parte das análises do Relatório,
a omissão do poder público recebeu
destaque. Na questão indígena, ela é o
principal combustível da violação. No
ano passado, um dos mais explícitos
indícios da omissão governamental foi
a total paralisação das demarcações de
terras indígenas, que teve um reflexo
direto no acirramento dos conflitos nas
aldeias em todo o país. Apesar de uma
homologação ter sido assinada, nenhum
procedimento demarcatório foi concluído em 2013. Desse modo, a média anual
de terras demarcadas da presidenta da
República Dilma Rousseff diminuiu para
3,6, a pior média desde o fim da ditadura
militar, consolidando-a como a chefe
de Estado que menos demarcou terras
indígenas na história recente do país.
A Fundação Nacional do Índio (Funai)
declarou para a Agência Brasil, neste
mesmo dia 17, que por orientação do governo federal paralisou os processos de
demarcação em áreas de conflito. Com
efeito, são nestas terras indígenas que
está a maior concentração de violências
e agressões contra os povos, conforme
atesta o relatório. No lugar de demarcar
as terras, assentar os pequenos agricultores e pagar as benfeitorias, a decisão
do governo é a de não contrariar os
aliados ruralistas.
O presidente do Cimi, Dom Erwin
Kräutler, acredita que “o governo federal
se nega a cumprir suas obrigações constitucionais de assegurar as terras indígenas. Com o relatório visamos uma ampla
e intensa campanha de luta em defesa
da vida. Precisamos urgentemente rever
as prioridades sociais e direção política
de nosso país. Não podemos nos calar
diante do que ocorre com estes povos,
que querem viver”.
Viver. Como povos indígenas podem
viver sem ocupar de forma plena suas terras tradicionais? A paralisação dos procedimentos demarcatórios como parte da
política indigenista estatal, deixando 64%
das terras indígenas sem regularização,
mantém comunidades confinadas ou
acampadas às margens de rodovias e
vulneráveis às violências de fazendeiros,
madeireiros, grandes empreendimentos.
Para muitos indígenas a teia de dissociações fiadas não deixa outro caminho fora
o suicídio, alcoolismo e a violência entre
si. No Mato Grosso do Sul, conforme o
Relatório, ocorreram 73 suicídios em
2013, sendo 72 entre os Guarani Kaiowá.
O pior resultado em 28 anos.
Racismo e incitação ao ódio
“O relatório 2013 traz de forma
muito forte a postura anti-indígena
de setores da sociedade brasileira. Os
ruralistas promoveram manifestações,
leilões e no parlamento tentam aprovar
projetos contra estas populações. Isso
tem um efeito direto nas formas de
violências contra os povos indígenas”,
aponta a coordenadora do relatório, a
antropóloga Lucia Helena Rangel.
O missionário indigenista Roberto
Liebgott, também coordenador do relatório, analisa que a postura omissa do
governo federal diante da efetivação do
direito ao território tradicional desencadeou uma onda de violência contra
os indígenas em diversos campos da sociedade. “A conexão se dá pelo governo
federal, que possui uma dependência
política dos ruralistas e, então, juntos
eles harmoniosamente agem contra os
direitos indígenas”, afirma Liebgott.
Num contexto desfavorável, onde a
cada 100 indígenas que morrem 40 são
crianças, comprometendo até mesmo o
futuro destes grupos, os povos seguem
Ruy Sposati
Relatório de Violência
resilientes. Sobretudo com a nova tática
de criminalização, que conta com prisões
e imputação de crimes sobre os ombros
calejados de lideranças, caciques e pajés.
E não é mera coincidência que tenham
ocorrido prisões e acusações em áreas de
conflito, seja motivado pelos interesses
do agronegócio, do próprio governo
e seus empreendimentos ou pela ação
ilegal de madeireiras. Mesmo quando
se trata de terras demarcadas. O caso
emblemático de 2013 foi o ocorrido com
os Tenharim, entre os municípios de Humaitá e Manicoré, no Amazonas. Para o
relatório de 2014 já existem outras duas
situações: os cinco Kaingang presos no
Rio Grande do Sul e Babau Tupinambá
detido em Brasília. Acusados de crimes
que não cometeram, provas inconsistentes ou inexistentes. Um padrão.
Caso Tenharim
Cinco lideranças Tenharim foram presas acusadas de assassinar, em dezembro
do ano passado, três homens. Mesmo
sem nenhuma prova de que tivessem
cometido o crime, e negando de forma
contundente, elas foram execradas e
condenadas pela imprensa e hoje os Tenharim não podem circular pelas cidades,
sob risco de espancamento. As crianças
“Estamos queimando
culturas. Creio que não
há dimensões do quanto
isso é ruim para o país.
Não são números o que
este Relatório nos traz.
Trata-se de violência
contra as pessoas. Não
podemos continuar com
essa tragédia contra os
povos indígenas”, afirma
Dom Leonardo Steiner,
secretário geral da CNBB
Apesar do
estão proibidas de frequentar a escola,
orçamento
os professores de lecionar e os indígenas
para a
que são servidores públicos não podem
assistência
mais se dirigir aos postos de trabalho.
em saúde
indígena,
“A Justiça age contra a gente, mas não
segundo a
contra madeireiros e demais invasores.
Sesai, ter
Nenhuma denúncia que fazemos tem
quadruplicado
nos últimos
providência. Isso acontece no Brasil inquatro anos,
teiro”, destaca Ivanildo Tenharim.
ela continouu
A liderança explica que com a abermarcada por
tura da Rodovia Transamazônica pela
uma absoluta
omissão na
ditadura militar, nos anos 1970, chegaimplementação
ram os fazendeiros e madeireiros. Parte
de ações,
do povo foi escravizado pelas frentes de
algumas
bastante
colonização. Outra parte morreu assasbásicas, que
sinada ou em decorrência da invasão.
poderiam
Assim nasceu o conflito. Dezenas de
salvar
madeireiras se instalaram e prosperaanualmente
milhares de
ram. Neste início de século XXI, a única
vidas
área da região que mantém a floresta
preservada está na terra indígena. Os
madeireiros então passaram a invadir e
retirar madeira do território tradicional
com cerca de um milhão de hectares. Os
Tenharim reagiram.
“Montamos os pedágios, a partir de
2006, como forma de compensar. Os
recursos financiavam nossa luta contra
as madeireiras. Nunca aceitaram e faz
tempo que buscavam um motivo para
nos atacar. Com a morte dos três homens passaram a nos acusar. Fecharam
a estrada, atacaram a aldeia, a Funai,
queimaram o barco. Todo mundo ficou
contra a gente. Fosse apenas fazendeiro
e madeireiro, tudo bem. O problema
é que tem o poder público no meio, a
Polícia Federal”, conta Ivanildo. O povo
segue ameaçado e perseguido. A prisão
das cinco lideranças mudou a rotina da
aldeia e a liderança Tenharim afirma que
estão desamparados.
Ao comentar o relatório, Dom Leonardo Steiner, secretário geral da CNBB,
se deteve ao poder simbólico da imagem:
“É uma capa muito significativa: estamos
queimando culturas. Creio que não há
dimensões do quanto isso é ruim para
o país. Não são números o que este
Relatório nos traz. Trata-se de violência
contra as pessoas. Não podemos continuar com essa tragédia contra os povos
indígenas”. n
15 Jun/Jul–2014
Resenha
REDUÇÕES DO PARAGUAI:
FRATERNIDADE E IGUALDADE
O
APOIADORES
Jun/Jul–2014
16
Leda Bosi
Documentalista do Cimi
livro Síntese de duas tendências - A propriedade nas
reduções do Paraguai apresenta uma análise inovadora da organização econômica e social, que
foi o sistema de propriedade e o consequente
sistema de produção, vigente na experiência
das Reduções do Paraguai. Dividida em três
partes, a publicação de autoria de José Odelso Schneider, Hilário Henrique Dick, Guido Aloys Johanes Kuhn
e Egydio Schwade analisa a forma de administração
da propriedade que segue a concepção de um mundo
fraterno e igualitário, dentro de um campo de possibilidades que se inspirava na utopia igualitária dos dois
primeiros séculos do cristianismo e que vigorou durante
160 anos nos territórios das Reduções do Paraguai (de
1609 a 1768). O livro procurou mostrar que o regime de
propriedade dos Trinta Povos proporcionou uma maior
compreensão de todo o sistema, que conseguiu elevar
“todo um povo a uma enorme família” (Montesquieu).
Inicialmente temos o estudo sobre o conceito de propriedade dos séculos 16 e 17 - época em que se fundaram
as Reduções do Paraguai - nos textos de Platão (A República), Thomas Morus (Utopia), Francisco Suárez (Tratado
De Legibus) e Francisco de Vitoria (Relectiones teológicas).
Na análise sobre esse conceito, procura-se mostrar os
pontos de contato entre a filosofia desses autores e as
Reduções Guaraníticas e as possíveis influências que
os jesuítas sofreram ao organizar o regime dos Trinta
Povos, sob o ponto de vista da propriedade individual e
propriedade coletiva.
Na segunda parte analisou-se o regime de propriedade dos Trinta Povos tanto na sua base e no seu
caráter fundamental, como na sua concretização prática
e na sua função pessoal e social. Aqui há sempre uma
referência sobre a importância das Leis das Índias para
a compreensão das Reduções. Concordando com o
historiador P. Arnaldo Bruxel, ao lado da experiência
dos padres, esta legislação foi a
principal fonte de inspiração
do sistema que os jesuítas
adotaram na organização
das Reduções Guaraníticas.
Porém, a atitude predominante nas Reduções era bem
diferente da atitude europeia
e dos conquistadores da época,
“... em que, muitas vezes, aplicou-se
aos povos indígenas o princípio da `tabula rasa´,
isto é, de que eram página em branco, a qual
deveria ser escrita de acordo com a cultura
da Europa cristã ocidental”. A atitude dos
missionários nas Reduções, ao introduzir
uma racionalidade no modo de produção dos Guarani, procurava
respeitar o modo de
ser desse povo, seus
traços culturais de
solidariedade, reciprocidade, vivência em
comunidade, importância que davam à festa
e o momento em
que interrompiam
suas atividades na
roça ou na caça.
No que se convencionou chamar de regime de
tutelagem dos jesuítas sobre o trabalho desenvolvido
pelos índios nas Reduções e a liberdade destes dentro
das Reduções, temos uma análise das duas modalidades
através das quais se concretizou o direito fundamental
do índio à propriedade, o “Amambaé” – Abá = índio;
mbaé = posse e o “Tupambaé” – Tupã = Deus; mbaé =
possessão, propriedade.
Amambaé era a propriedade particular da terra que,
para fins de agricultura, constituía a posse mais importante do índio, e de outros bens móveis ou imóveis de
cada chefe de família. Como esse tipo de propriedade
era desconhecido nos usos e costumes desses povos,
uma função do cacique e de seus auxiliares era zelar
para que tal função se cumprisse, exigindo uma tutela
especial visando à integração do índio no seu funcionamento. A produção obtida nesta área era guardada nos
depósitos coletivos com a identificação do proprietário
que deles retirava o que necessitava. “A cada um, se lhe
assinalava uma parte do campo, suficientemente extensa,
para que cada pai de família semeasse para si e para os
seus” (Peramás).
A modalidade Tupambaé era o cultivo coletivo da
terra, onde o fruto do trabalho era utilizado em benefício
da comunidade, os rendimentos obtidos eram aplicados,
entre outros fins, como auxílio às famílias cuja provisão
do Amabaé se esgotara, à assistência social às viúvas
e órfãos, a gastos para compras de instrumentos, etc.
Os indígenas trabalhavam alguns dias da semana no
cultivo particular da terra e nos outros dias no cultivo
comunitário. A implantação dessas modalidades exigia
uma tutela econômica e embora às vezes existam críticas em relação ao dirigismo econômico dos jesuítas,
os autores esclarecem que havia necessidade de uma
direção da produção, de uma superintendência para
estimular a produtividade, tanto privada quanto comunitária. A tutelagem visava motivar o Guarani para
o uso correto de sua liberdade e da propriedade, para
uma valorização dos bens de produção, dentro da ótica
cristã da época. Os indígenas se realizavam de forma
mais positiva quando cultivavam as terras comuns, pois
isso os aproximava de sua cultura não individualista, mas
comunitária e solidária. Seguindo as ideias de Bartomeu
Meliá e Dominique Temple, não é a migração em si, ou
suas correlações com o mito da “Terra sem Males” que
define os Guarani, mas o seu modo particular de viver a
economia de reciprocidade, da troca e do dom. Por isso,
a forma privilegiada de trabalho entre os Guarani é de
tipo solidário e coletivo. O auxílio que se presta entre
as gerações é um importante garantidor da integridade
do grupo.
Assim, segundo os autores, pode-se dizer que toda
a organização econômica e política sempre foi realizada
em benefício do próprio interesse dos indígenas e os
resultados da atividade econômica eram reinvestidos
nas próprias Reduções. O modelo de organização econômica e social conseguiu funcionar por mais de 160
anos, graças à interação entre princípios evangélicos
e regras do senso comum, entre a orientação político
administrativa dos jesuítas e a inquestionável capacidade dos Guarani de adequar-se a esta realidade,
pois, segundo o antropólogo Melià, sem os Guarani as
missões seriam outra coisa.
No último capítulo, expôs-se a doutrina da Igreja
Católica na questão da propriedade e das relações de
solidariedade, visando-se particularmente os pontos que
mais se relacionam com as Reduções.
Encerrando a publicação há um estudo sobre a Redução de Juli (July ou Xuli), no Peru, considerada o modelo
das Reduções do Paraguai. Os autores esclarecem que
não se trata de fazer um paralelo com as Reduções do Paraguai, mas mostrar que experiência já havia sido feita, em 1610, nas Reduções
do Rio da Prata. n

Documentos relacionados