004_046_TIAGO_BOCKIE_DE_ALMEIDA_11082009

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004_046_TIAGO_BOCKIE_DE_ALMEIDA_11082009
REDIMENSIONAMENTO
DO
CONTROLE
EXERCIDO
PELO
PROCURADOR DO ESTADO NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
DISCIPLINARES – UMA IMPOSIÇÃO EM VIRTUDE DOS NOVOS
PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO MODERNO1
I. INTRODUÇÃO
Propõe-se, no presente estudo, apresentar algumas considerações acerca do controle do mérito
do ato administrativo disciplinar, pelo Procurador do Estado, interpretando-se a Teoria da
Tripartição de Poderes à luz dos novos paradigmas do Direito Administrativo, como forma de
garantir a efetividade do direito do cidadão à ampla defesa e ao acesso à jurisdição.
II. CORTE EPISTEMOLÓGICO
A Constituição Federal de 1988, inspirada pela Constituição Mexicana de 1917 e pela
Constituição de Weimar de 1919, inovou e modificou o Direito Administrativo brasileiro,
introduzindo o conceito de Estado Social, em oposição ao Estado Liberal como ordem política
até então vigente desde a Era Vargas.
A doutrina, a jurisprudência e a legislação pátrias, no entanto, não têm acompanhado de maneira
satisfatória essa substituição no modelo estatal, não evoluindo para compreender a nova posição
da sociedade em relação ao Estado. Da mesma forma, não oferece elementos de forma
sistematizada para implementar as políticas intervencionistas criadas como resultado da
introdução de um Estado Social e Democrático de Direito.
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Tiago Bockie de Almeida: Procurador do Estado de Sergipe. Especialista pela Universidade Federal da Bahia.
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Administrativo da
Universidade Federal de Sergipe. Ex-Presidente da Comissão Permanente de Inquérito Administrativo da
Secretaria de Estado da Administração de Sergipe.
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Dentre os conceitos clássicos e muitas vezes repetidos pelos estudiosos do Direito, encontra-se a
impossibilidade do Poder Judiciário imiscuir-se na discricionariedade do Administrador
Público. É o que se depreende nos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles2, José Cretella Júnior3
e Miguel Seabra Fagundes4.
O controle jurisdicional dos atos administrativos constitui uma das conseqüências da doutrina
jusfilosófico-política da tripartição dos poderes. Deve-se redimensionar, no entanto, o conteúdo
e o alcance da Teoria da Tripartição dos Poderes5, para se adequar a noção de Poder
Discricionário da Administração Pública aos novos paradigmas que devem nortear o Direito
Público Moderno, evitando-se, por conseguinte, a limitação dos direitos fundamentais ao
contraditório, à ampla defesa e à inafastabilidade de jurisdição.
III.
DISCRICIONARIEDADE
ADMINISTRATIVA
-
ATO
ADMINISTRATIVO
VINCULADO E DISCRICIONÁRIO
O ato administrativo pode ser definido como a manifestação volitiva da Administração Pública
emanada de agentes administrativos ou de pessoas dotadas de suas prerrogativas, que tem por
objeto a produção de efeitos na esfera jurídica, tendo a finalidade pública como meta a ser
alcançada, e que são regidos por normas de direito público6. Verifica-se, desta forma, que os
atos administrativos, como espécie do ato jurídico em geral, dotam de três características que os
diferenciam dos demais atos jurídicos: os agentes, o objeto e o regime jurídico.
A doutrina dispõe que o ato administrativo possui cinco elementos: competência, finalidade,
forma, motivo e objeto. Enquanto que os três primeiros são elementos vinculados do ato
administrativo, que devem obediência estrita aos parâmetros da lei, e passíveis, por
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
CRETELLA JR., José. Tratado de Direito Administrativo. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
4
FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário.7 ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2006.
5
SECONDAT, Charles-Louis de (MONTESQUIEU). De L’Espirit des Lois. Paris: Ed. Flammarion, 1979.
6
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008.
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conseqüência, de controle de legalidade pelo Poder Judiciário, o motivo e o objeto, a depender
do caso concreto, podem ser qualificados como elementos vinculados ou discricionários.
O elemento de um ato administrativo será vinculado quando o mesmo estiver previsto em lei.
Ao revés, será considerado discricionário, quando couber à Administração Pública, utilizandose os critérios de conveniência e oportunidade escolher ou valorar o elemento.
Incidindo a discricionariedade da Administração Pública para a escolha do objeto e a valoração
dos motivos do ato administrativo, estar-se-ia diante de um poder conferido pela lei ao
administrador público, para que este proceda a um juízo de ponderação dos aspectos relativos à
conveniência e à oportunidade do ato: o mérito administrativo.
Assim, a classificação de um ato administrativo como vinculado ou discricionário está atrelada à
natureza do motivo/objeto do ato administrativo: se vinculados, o ato administrativo será
vinculado; se discricionários, escolhidos e valorados de acordo com a conveniência e a
oportunidade da Administração Pública, o ato administrativo, em sua completude, também será
qualificado como discricionário.
Percebe-se, desta forma, que não existem atos totalmente discricionários, mas atos
administrativos que se sujeitam a uma atuação discricionária da Administração Pública, em
relação a alguns de seus elementos, para a escolha de uma opção, também salvaguardada pelo
Direito, dentre algumas soluções jurídicas que se aventam para determinado caso concreto. A
diferença é que, nos atos discricionários7, os critérios para a escolha do administrador público
não se encontram previstos em lei.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, na obra Discricionariedade e Controle Jurisdicional (2ª
edição, 6ª tiragem, São Paulo, Ed. Malheiros, p. 18), não se deve utilizar, tecnicamente, a expressão ato
discricionário, mas competência discricionária, pois o ato praticado é praticado no exercício de apreciação
discricionária em relação a um ou mais elementos que o compõem.
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IV. LIMITAÇÕES À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
De acordo com a doutrina clássica acerca do tema, os atos administrativos podem ser anulados
pelo Poder Judiciário, cabendo a este tão somente o controle de legalidade dos mesmos, e
anulados ou revogados pela Administração Pública, que teria competência, de acordo com a
divisão da Teoria da Tripartição dos Poderes, para o controle de legalidade e de mérito do ato
administrativo (auto-tutela administrativa, como decorrências das súmulas 346 e 473, ambas do
Supremo Tribunal Federal).
Tal orientação encontra fundamento em aspectos históricos que remontam à origem da
discricionariedade administrativa, dentre eles a doutrina da vinculação negativa da
Administração, que preconizava a discricionariedade como uma forma de atuação livre dos
ditames legais.
A depender da classificação do ato administrativo como vinculado ou discricionário, os
elementos passíveis de controle pelo Poder Judiciário são delimitados: se vinculado o ato
administrativo, todos os elementos podem ser controlados; se discricionário, apenas os
elementos competência, finalidade e forma.
A doutrina, no entanto, na tentativa de acompanhar a evolução da sociedade e adequar o Direito
a esta nova realidade, tem apresentado algumas inovações no que tange ao controle do ato
administrativo discricionário. Destacam-se:
a) Teoria do Desvio de Finalidade;
b) Teoria dos Motivos Determinantes;
c) Redução da discricionariedade a zero;
d) Núcleo existencial de discricionariedade;
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e) Controle de princípios (controle de legalidade em sentido amplo – princípio da juridiciadade,
principalmente com a utilização dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade8 na análise
da sanção disciplinar); e
f) Controle de conceitos jurídicos indeterminados.9
A evolução do Estado (Absolutista – Liberal – Social) impõe uma reanálise da
discricionariedade administrativa, bem como de sua amplitude e controle.
Entende-se que as soluções apresentadas, como forma de ampliar o controle da atuação
discricionária do administrador público, não constituem elementos suficientes para a resolução
de conflitos no atual estágio do Direito, em especial nos Processos Administrativos
Disciplinares.
Com a mudança do Estado Liberal para o Estado Social e Democrático de Direito, inserido no
Estado brasileiro pela Constituição Federal de 1988, a eficácia vertical dos direitos
fundamentais passou a ter um papel de destaque, exigindo que toda interpretação e compreensão
que incidam sobre tais direitos visem à máxima efetividade.
Nesse sentido, o voto da Ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, no
julgamento do Recurso Especial nº 493.811/SP:
“As transformações no modo de atuar do Estado, alteraram a estrutura da sociedade,
acarretando a diluição dos limites entre o Estado e sociedade, vinculados por um
número crescente de inter-relações. No dizer de Bobbio, ‘o Estado e a sociedade
Nesse sentido, Agustín Gordillo, na obra Tratado de Derecho Administrativo (7ª edição, Tomo 2 – La Defensa
del Usuario e del Administrado – Belo Horizonte: Del Rey e Fundación de Derecho Administrativo, capítulo XV,
p. 9): “Algunos tribunales administrativos muestran uma tendencia a considerarse a su vez tribunales ‘de derecho’
y asimilarse a los tribunales judiciales en tantos aspectos como sea posible; pero de todos modos tienen mayor
margen de posibilidad teórica e práticade pronunciarse sobre la conveniencia o inconveniencia de la conduta
administrativa, em tanto que los juesces por principio no puden hacerlo salvo que lo encuadren dentro de princípios
jurídicos elásticos como la razoabilidad, el standard, etc.”
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros,
2003.
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atuam como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas
interdependentes do sistema social em sua complexidade e articulação interna.’
O novo modelo ensejou a multiplicação nos modos de solução de problemas,
mediante negociações, acordos, protocolos de intenções. Esse intricamento de
vínculos torna impossível a previsão, em normas legais, de todas as diretrizes de
conduta a serem observadas e de soluções a serem adotadas.
Essa digressão sociológica é importante para direcionar o raciocínio de que não é
mais possível dizer, como no passado foi dito, inclusive por mim mesma, que o
Judiciário não pode imiscuir-se na conveniência e oportunidade do ato
administrativo, adentrando-se na discricionariedade do administrador.” (grifo
nosso).
Uma das mudanças de orientação dogmática que se propõe é, especificamente, o controle de
mérito do ato administrativo disciplinar pelo Procurador do Estado quando da emissão de um
parecer em que se analisa a regularidade de um processo administrativo disciplinar. A atividade
consultiva não deve se restringir à simples regularidade formal, com a verificação de prazos e
ritos no âmbito de um processo administrativo disciplinar, mas também do denominado
“mérito” da comissão disciplinar.
A doutrina pontua que as comissões de processo administrativo disciplinar detêm a chamada
discricionariedade administrativa técnica, proveniente da liberdade de adotar, dentre um leque
de posições cientificamente razoáveis, aquela que melhor atenda ao escopo do concurso público,
a partir dos critérios eleitos pela comissão e tendo em vista o princípio da eficiência
administrativa.
O ato administrativo disciplinar/ato punitivo, caracteriza-se como uma espécie de ato
administrativo que é utilizado pela Administração Pública para a aplicação de uma penalidade
administrativa ao administrado, após o curso de um processo administrativo disciplinar, onde
são (ou deveriam ser) assegurados o contraditório e a ampla defesa, no qual se conclui acerca da
prática de uma falta disciplinar.
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A experiência jurídica, no entanto, conduz a uma análise crítica das normas que regulam o
processo administrativo disciplinar e da realidade fática que circunda o regime disciplinar. De
acordo com a Teoria Egológica do Direito10, proposta por Carlos Cossio11, o Direito deve ser
concebido como ciência do direito positivo, a partir de uma compreensão neutra das condutas
que são representadas por normas jurídicas. A ciência jurídica, portanto, deve ser pautada nos
fatos, na experiência jurídica, daí a sua classificação como ciência empírica.
Aponta-se alguns problemas decorrentes do regime de responsabilização funcional do servidor
público:
1) A composição das comissões é feita, em muitos casos, por profissionais sem formação
jurídica jurídica;
2) As comissões são compostas dentro dos próprios órgãos, o que resulta em corporativismo no
momento da condução de um processo administrativo (colegas ocupam a posição de julgador e
de denunciado), o que pode resultar numa quebra de imparcialidade na condução e na análise do
conjunto probatório;
3) Falta de experiência e capacitação de integrantes de comissões em matéria de administrativa
disciplinar;
4) Desnecessidade de defesa técnica no âmbito do processo administrativo disciplinar nos
termos da Súmula Vinculante nº 05 do STF;12
5) da ausência de um órgão fiscal, a exemplo do que ocorre em algumas ações no âmbito
judicial, com a presença do Ministério Público.
10
A Teoria Egológica do Direito ou Egologismo é um modelo jusfilosófico para a compreensão e definição do
Direito. Na obra supracitada, o autor, como forma de delimitação de um corte epistemológico para o estudo do
Direito, propõe o estudo da norma jurídica de acordo com a sua dimensão social, sem descaracterizar a ciência do
direito como normativa
11
COSSIO, Carlos. La Valoracion Jurídica y la Ciencia del Derecho. Buenos Aires: Ediciones Arayú, 1954.
12
Teor da súmula: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a
Constituição.
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A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a existência de discricionariedade
administrativa na imposição de sanção disciplinar (conveniência, utilidade, oportunidade e
necessidade da punição disciplinar)13, sem delimitar, no entanto, o conteúdo dessa
discricionariedade.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, apresentam-se as seguintes conclusões:
I – A verificação de normas em Estatutos de Servidores Públicos Civis de diferentes Entes
Federativos, que facultam (e não obrigam) defesa técnica durante todo o procedimento
disciplinar (o que encontra respaldo, inclusive, no atual entendimento sumulado do Supremo
Tribunal Federal, através da súmula vinculante nº 05); da ausência de um órgão fiscal, a
exemplo do que ocorre em algumas ações no âmbito judicial, com a presença do Ministério
Público, e da desnecessidade de formação jurídica dos membros das comissões processantes
impõem uma amplitude da atuação do Procurador do Estado como responsável pela
regularidade dos processos administrativos disciplinares;
II – A análise do Procurador do Estado em processos administrativos disciplinares não se
restringe a aspectos meramente formais.
III – A conveniência e a oportunidade dos atos administrativos disciplinares (atos
administrativos punitivos), em razão do modelo existente para os regimes disciplinares dos
agentes públicos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como diante da necessidade de
medidas que garantam a participação efetiva do cidadão na organização e no procedimento,
entendidos estes como direitos fundamentais, podem ser objeto de controle pela ProcuradoriaGeral do Estado, permitindo-se concluir por uma nova concepção da discricionariedade
administrativa (e seus limites) nos processos administrativos disciplinares.
13
Mandado de Segurança nº 20.992-2. Relator: Min. Celso de Mello. Diário da Justiça, 25 maio 1990. Disponível
em www.stj.jus.br. Acesso em: 05 ago 2009.
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