Carpe Diem 2007 1500 kb
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Carpe Diem 2007 1500 kb
ISSN 1518-5184 Faculdade de Ciências Ciências,, Cultura e Extensão do RN Coordenação de PPesquisa esquisa e Extensão CARPE DIEM Revista Científica da FACEX CARPE DIEM Natal Ano 2/3 n. 2/3 p. 1-354 2002/2003 CARPE DIEM REVISTA CULTURAL E CIENTÍFICA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS CULTURA E EXTENSÃO DO RN. ANO 2/3 NÚMERO 2/3 NATAL/RN 2002/2003 ISSN 1518-5184 ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA COORDENADORIA DE PESQUISA E EXTENSÃO A/C Prof. Francisco de Assis Maia de Lima RUA ORLANDO SILVA, 2884 - CAPIM MACIO - CEP 59080-020 NATAL - RN FONE: (84) 217-8348 E-MAIL: [email protected] 2 ENDEREÇO PARA PERMUTA BIBLIOTECA SENADOR JESSÉ PINTO FREIRE A/C Maria da Saudade G. Araújo de Souza - Bibliotecária RUA ORLANDO SILVA, 2884 - CAPIM MACIO - CEP 59080-020 NATAL - RN FONE: (84) 217-8348 E-MAIL: [email protected] FICHA CATALOGRÁFICA. BIBLIOTECA SENADOR JESSÉ PINTO FREIRE / FACEX [email protected] CARPE DIEM - Revista Cultural e Científica da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 - FACEX. Natal: FACEX - Coordenadoria de Pesquisa e Extensão, 2001. Anual Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do Rio Grande do Norte ISSN 1518-5184 1. Educação Superior Brasileira– Periódico 2. Ciências Humanas – Periódico 3. Ciências Sociais e Aplicadas – Periódico 4. Ciências Exatas –Periódico 5. Ciências Biológicas - Periódico 6. I. Título RN/BJPF/2004-2 CDU 379.85 (81) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN - FACEX Autorizada pelo Decreto nº 85.977 de 5/5/1981, publicado no D.O.U. de 6/5/1981 Mantida pelo Centro Integrado para Formação de Executivos – CIFE CARPE DIEM Publicação da Coordenadoria de Pesquisa e Extensão – CPE Diretor Presidente José Maria Barreto de Figueiredo Diretora Administrativa Candysse Medeiros de Figueiredo Lira Diretor Financeiro Oswaldo Guedes de Figueiredo Neto Diretor Acadêmico Prof. Raymundo Gomes Vieira Secretário Geral Ronald Fábio de Paiva Campos Coordenador de Pesquisa e Extensão Prof. Francisco de Assis Maia de Lima Conselho Editorial Prof. Adalberto Trindade Prof. Aiene Rebouças Alves Prof. Aldemir Gomes Freire Profª Ana Claudia Salles de Albuquerque Prof. Flávio José de Lima Prof. Francisco de Assis Maia de Lima Prof. John Alex Xavier de Sousa Profª Lílian de Oliveira Rodrigues Profª Maria Carmozi de Souza Gomes Profª Rosilda Alves Bezerra Coordenação Editorial Prof. Francisco de Assis Maia de Lima Coordenação Técnica Profª Daise Lílian Fonseca Dias Capa Eliphas Levi Bulhões Catalogação Bibliográfica Maria da Saudade G. Araújo de Souza Projeto Gráfico/Diagramação Terceirize Editora Ltda - 211.5075 Impressão KMP Gráfica e Editora Ltda. (84) 234-3939 Tiragem 1.000 exemplares Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 3 A Revista Carpe Diem é uma publicação anual da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX, do Centro Integrado para Formação de Executivos (CIFE) que tem como finalidade contribuir para o desenvolvimento e divulgação de conhecimentos nas áreas de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Exatas e Biológicas. Destina-se, portanto, à divulgação de trabalhos relativos a estudos de natureza teórica e experimental no campo da pesquisa, resumos e teses ou dissertações, monografias, trabalhos de conclusão de cursos, comunicações e artigos de revisão produzidos pelo corpo docente e discente desta e de outras instituições públicas ou privadas. Os interessados no envio de artigos para publicação (ver Normas para apresentação de trabalhos) ou no recebimento regular da Carpe Diem devem entrar em contato com a Coordenação Editorial da mesma, junto à Coordenação de Pesquisa e Extensão, no endereço abaixo. 4 Endereço para Correspondência Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX Coordenadoria de Pesquisa e Extensão A/C Prof. Francisco de Assis Maia de Lima1 Rua Orlando Silva, 2897 – Capim Macio 59.080-020 – Natal, RN Tel.: (084) 217-8348 – E-mail: [email protected] Aceita-se permuta We ask for exchange Piedese canje On demande l’échange Si richiede lo scambio 1 Editor da Revista. Mestre (UFRGS) e Doutor (USP) em Genética. Coordenador de Pesquisa e Extensão (FACEX). Coordenador do Curso de Ciências Biológicas (FACEX). Professor Voluntário do Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular (UFRN). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 SUMÁRIO Apresentação A direção acadêmica da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do Rio Grande do Norte renova a sua alegria ao poder apresentar a toda a comunidade acadêmica o segundo número de Carpe Diem, a nossa revista de pesquisa. Nela encontram-se textos trabalhados por professores e por alunos de nossa Instituição, na mostra do esforço incansável da busca do conhecimento através da descoberta de experiências e saberes. É inegável o auge deste êxtase pedagógico ao constatar que conseguimos dar continuidade a um trabalho, às vezes, penoso e heróico mas sempre compensador. Regozijamo-nos ainda mais ao ver nossos alunos agregando-se espontaneamente às diversas áreas de pesquisa e publicando o resultado de suas investigações. Aplaudimos a todos com o entusiasmo de sempre. A Instituição se orgulha por contar com um grupo tão seleto que certamente haverá de crescer, como a boa semente plantada em solo fértil. Parabéns! Este é o caminho. Prof. Raymundo Gomes Vieira Diretor Acadêmico da FACEX Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 5 6 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 APRESENTAÇÃO A PRESENTAÇÃO ............................................. 5 ADMINISTRAÇÃO Q UALIDADE DOS SERVIÇOS OFERECIDOS AOS CLIENTES : U MA ANÁLISE CONCEITUAL ........ 9 Francisca Janete da Silva Rubens Eugênio Barreto Ramos Aldemir Gomes Freire Maryssol de Moraes E Silva A SP ECTOS BIOECOLÓGICOS DA RELAÇÃO SPECTOS PESO / COMPRIMENTO E FATOR DE CONDIÇÃO DO L UTJANUS C HRYSURUS B LOCH , 1791 (O STEICHTHYES: L UTJANIDAE), DO C ANTO 83 DO M ANGUE, N ATAL , RN. ......................... .........................83 U M ESTUDO SOBRE AS REDEFINIÇÕES DOS CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA .................... 19 Aldemir Gomes Freire Carlos Eduardo Costa Campos Francisca Janete da Silva Ana Célia Cavalcanti Fernandes Campos C ONSIDERAÇÕES SOBRE SIMULÍDEOS ( DIPTERA – SIMULIIDAE ) E FILARIOSES ( ONCOCERCOSE E MANSONELOSE ) .............. 91 A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS 31 EMPRESAS ................................................. .................................................31 Pio Marinheiro de Souza Neto Carlison do C. Barbosa Luciney Macedo D. Pereira Maria Célia T. Amorim Dantas A ATIVIDADE EXPORTADORA COMO UMA ALTERNATIVA PARA O DESENVOLVIMENTO 51 EMPRESA ..................................................... .....................................................51 Elisângela Cabral de Meireles BIOLOGIA I CTIOFAUNA DOS GRANDES RESERVATÓRIOS DO SEMI - ÁRIDO DO R IO G RANDE DO N ORTE (B ACIA DO P IRANHAS – A ÇU), N ORDESTE 67 DO B RASIL ................................................. .................................................67 Aldemir Gomes Freire Jansen Fernandes Medeiros Herbet Tadeu de Almeida Andrade Felipe Arley Costa Pessoa Victor Py-Daniel EDUCAÇÃO M UDANÇAS TECNOLÓGICAS E A REFORMA EDUCACIONAL DA DÉCADA DE NOVENTA . ............................ 109 Alda Maria Duarte Araújo Castro C ONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO : A LGUMAS INTERPRETAÇÕES . ................... 127 Jacyene Melo de Oliveira Araújo N OVAS FORMAS DE GESTÃO PÚBLICA E A POLÍTICA DE ENSINO SUPERIOR I MPACTOS ECOLÓGICOS NA ÁGUA DA B AR RAGEM M ARECHAL D UTRA (A CARI -RN), REGIÃO SEMI - ÁRIDA NORDESTINA .............. 75 NO BRASIL ...................................................... 137 Marise Delia Carvalho Teixeira Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 7 D ESAFIO PEDAGÓGICO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL NA ESCOLA ................................. 153 R ELAÇÕES DE GÊNERO EM AS VINHAS DA IRA DE STEINBECK .................................. 265 Ana Tania Lopes Sampaio Daise Lilian Fonseca Dias A RTE , CONSTRUTORA DE COSMOLOGIAS . 169 H ISTÓRIAS NO CANTO ............................. 275 Sanzia Pinheiro Barbosa Lílian de Oliveira Rodrigues A RELAÇÃO DA CRIANÇA COM O MUNDO DOS CONTOS DE FADAS .......................... 189 A UGUST UGUSTOO DOS ANJOS : A POÉTICA ALEGÓRICA DAS RUÍNAS .......................... 283 Maria Aparecida Matias Freire Franco de Lima Rosilda Alves Bezerra HISTÓRIA E NTRE B RASIL E E UROPA , O SENTIDO PEJORATIVO QUE A IDÉIA DE B ARROCO HERDOU ................................................... 201 8 John Alex Xavier de Sousa MATEMÁTICA E INFORMÁTICA U MA PROPOSTA DE LÓGICA EQUACIONAL LOCAL P ARA VERIFICAÇÃO DE EQUAÇÕES ALGÉBRICAS LOCAIS . ............................... 213 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago LITERATURA O RIO E O CURSO DA MEMÓRIA EM PEDRO NAVA ..................................... 245 Carlos Alberto de Negreiro W UTHERING HEIGHTS : T HE CONFLICTS OF THE SOUL .............. 257 Daise Lilian Fonseca Dias D A CRÔNICA À POESIA : U MA LEITURA DAS CRÔNICAS DE MYRIAM COELI .......... 297 Diva Sueli S. Tavares QUÍMICA D EGRADAÇÃO DO POLIETILENO .............. 309 Glauber José Turolla Fernandes SERVIÇO SOCIAL É TICA E P OLÍTICA : U M BREVE PERCURSO FILOSÓFICO ............................ 321 Aione Maria da Costa Sousa P ODER LOCAL : U MA CATEGORIA 331 A SER REPENSADA . .................................. ..................................331 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro TURISMO O PROFISSIONAL DE TURISMO E SUA ABSORÇÃO ............................................... 345 Mabel Simone Guardia Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Administração Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual 9 Francisca Janete da Silva1 Rubens Eugênio Barreto Ramos2 ¹ Professora e Coordenadora do curso de Secretariado Executivo da FACEX e Mestre em Engenharia de Produção/UFRN. E-mail: [email protected] 2 Professor e Coordenador do Programa de Engenharia de Produção da UFRN. E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual Quality of services offered to customers: A conceptual analysis 10 RESUMO O presente trabalho discute o conceito de satisfação do cliente, de acordo com a visão de Albrecht (1999), Normann (1993), Nóbrega (1996) e Carlzon (1992), entre outros, enfatizando sobre a necessidade de encantar o cliente na excelência do serviço. A metodologia utilizada foi a de uma pesquisa bibliográfica, do tipo exploratório. No estudo realizado, percebeu-se a quebra do paradigma cuja meta da qualidade estava voltada apenas para atender os clientes externos. Ao longo do texto, é apresentada a importância do bem estar do cliente interno que implica no real comprometimento do sucesso organizacional. ABSTRACT The present work discusses on the concept of the customer’s satisfaction, according to Albrecht (1999), Normann (1993), Nóbrega (1996) and Carlzon (1992), among others. It will be emphasized the need of enchanting the customer with an excellent service. The methodology used was basically through bibliographical research. In the study, it was noticed the paradigm break of the goal of quality being just gone back to assist the external customer. Along the text, the importance of the well-being of the internal customer. implicates in the real engagement of the organizational success. PALAVRAS-CHAVE Qualidade de serviços; satisfação do cliente KEY-WORDS Quality of services; customers’ satisfaction. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Rubens Eugênio Barreto Ramos 1 INTRODUÇÃO A abertura da economia no início dos anos 90 lançou as empresas brasileiras em um mercado regido pela globalização econômica na qual a qualidade e a produtividade tornaram-se os pilares de sustentação na busca de novos modelos organizacionais. Com esta visão, as empresas viram a necessidade de se adaptarem às novas condições mundiais de produtividade tornando-se mais ágeis, investindo em novas tecnologias, capacitando o seu pessoal, reestruturando seus níveis hierárquicos, e se preocupando com o envolvimento do seu quadro de funcionários com os novos fatores de competitividade. Muitas empresas responderam rapidamente aos novos desafios diante da estabilidade econômica, em um mercado consumidor cada vez mais exigente dentro e fora do país. O objetivo deste trabalho foi discutir conceito de satisfação do cliente, de acordo com a visão de Albrecht (1999), Normann (1993), Nóbrega, (1996) e Carlzon (1992), entre outros, enfatizando a necessidade de encantar o cliente na excelência do serviço. 2 A EV OLUÇÃO DO EVOLUÇÃO CONCEIT ADE QUALIDADE CONCEITOO DE QUALID A partir deste processo, os avanços da qualidade em serviços de- correram, fundamentalmente, de três referências internacionais principais nesse campo: Normann (1993), Albrecht (1992, 1993) e Carlzon (1992). Este último é uma referência como um dos primeiros praticantes de uma gestão da qualidade em serviços. Carlzon, então Presidente da SAS (empresa aérea sueca) introduziu, na prática, o conceito de Momento da Verdade proposto por Normann e exercitou a idéia de transferir poder para a linha de frente. Sua experiência estimulou Albrecht a desenvolver conceitos como Ciclo de Serviço e Pacote de Valor, conceitos estes que podem ser considerados como sendo incrementos originais desenvolvidos, especificamente, para serviços que ampliam o enfoque de qualidade, no caso definido para a indústria na trajetória japonesa. A qualidade em serviços parte dos princípios e focos do paradigma da qualidade total e os estende e aplica com conceitos próprios para serviços. A gestão da qualidade em serviços é ainda uma área nova quando comparada à gestão da qualidade na indústria. Se a gestão da qualidade na indústria, que resultou na gestão da qualidade total, já chega a seus mais de 55 anos desde o inicio com Shewhart nos anos 20/30, o conceito Momento de Verdade foi idealizado no final da década de 70 e Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 11 Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual 12 aplicado na primeira metade da década de 80. A gestão da qualidade em serviços teve um grande crescimento e desenvolvimento mais significativo na década de 90. A empresa focada no cliente deve tornar-se realmente orientada para a pessoa, não esquecendo o público interno, valorizando-o para que este reflita a satisfação e orgulho por fazer parte integrante e fundamental da empresa, que refletirá positivamente no tratamento dispensado ao público externo. Os envolvidos devem participar dos processos de mudanças, com espaço para expressarem seus pensamentos de forma progressiva, bem como acesso à informações, tornando-os mais preparados e desenvolvendo sua análise crítica. As empresas devem possuir um sistema de constante aprendizado, estimulando um vínculo de confiança, repassada ao seu pessoal e a seus clientes. É necessário desenvolver uma cultura organizacional onde haja a disposição real de cada pessoa da organização em atender bem, satisfazer ao cliente e estabelecer um relacionamento, visando analisar sistematicamente as melhores organizações, para aprender, comparando com as melhores práticas. É importante desenvolver e implementar um sistema de identificação permanente das necessidades do cliente, que podem ser atendidas pela organização, seja pelo que é feito atualmente, seja pelo que está no escopo da Missão da Organização. 3 VISÕES DDAA GESTÃO DA QUALIDADE 3.1 Liderança da Administração O enfoque de qualidade dos serviços parte de um nível básico, procura construir uma cultura da excelência do serviço prestado ao cliente com uma missão reconhecida para todos os membros da organização, inclusive para os administradores. Começa com a responsabilidade da alta administração quanto à definição da missão da empresa e à especificação da estratégia necessária para fazer da qualidade do serviço a chave do funcionamento da empresa. (Albrecht, 1995). O ponto forte desta abordagem, se dá devido à importância da missão do comprometimento de todos os membros da organização em servir bem o cliente, a começar da presidência da empresa na construção de uma cultura onde os clientes internos sintam-se seguros com relação aos serviços que estão prestando aos clientes externos. As empresas devem possuir um sistema de constante aprendizado, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Rubens Eugênio Barreto Ramos estimulando um vínculo de confiança, repassada aos seus clientes internos com o intuito de liderar sua equipe ao invés de somente administrar. 3.2 Cliente O modelo de administração de serviços vê os seus funcionários como seu primeiro mercado, ou seja, é preciso convencê-los primeiro da idéia de serviço para esperar vendê-la aos clientes externos. (Albrecht, 1995). Reconhecer os funcionários como sendo parte integrante do processo de desenvolvimento da organização e depositar neles a confiança para que possam expressar pontos de vista e censo crítico para identificar possíveis obstáculos no processo e solucioná-los. O cliente interno satisfeito faz o papel de fornecedor de opiniões para os demais. Sua satisfação aparecerá como diferencial competitivo, porque ele é quem participa ativamente dos momentos de verdade com os clientes externos. As empresas de melhor desempenho têm habilidades para comunicar a mensagem do valor para o cliente a todos os membros das suas organizações. Elas compreendem e aceitam a magnitude do investimento necessário para se desenvolver e manter coletivamente os conheci- mentos, a capacidade e o compromisso humanos necessários à entrega de valor notável para o cliente. Elas sabem como criar e manter culturas saudáveis de informação, isto é, o know-how coletivo que vem através de valores e crenças comuns e fatos e desempenho comunicados. Elas aprenderam como conquistar e manter o compromisso dos funcionários com o espírito de serviços e com os valores que o tornam real. (Albrecht, 1995). Nesta afirmativa, o autor enfoca a importância da organização saber como conduzir o processo de integração, fidelidade, comprometimento e envolvimento de todos os funcionários para com a qualidade do serviço oferecido aos clientes. Quando os funcionários compreendem o objetivo e a necessidade de atingir as metas traçadas pela organização, se sentem parte integrante do processo e acreditam na possibilidade de atingir sucesso no que estão fazendo, e esta confiança é transferida quase que automaticamente ao cliente. 3.3 PPessoas essoas As pessoas gostam de se sentirem parte da organização, gostam que suas idéias sejam ouvidas com respeito e consideradas como importantes, pois só assim se sentem seguras a vestir a camisa da organi- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 13 Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual 14 zação com entusiasmo, com isso, sabem que o sucesso é fruto do esforço coletivo. A iniciativa de desenvolver um trabalho utilizando sua própria criatividade sem existir por trás um mandante, desenvolve no funcionário a alta estima e amor pelo o que faz. Segundo (Albrecht, 1995), para se conquistar os corações, mentes e mãos das pessoas na organização não se deve dizer a elas o que fazer, mas sim libertá-las das cadeias do modo de pensar tradicional nas organizações. “A mensagem da liderança deve ser: vemos vocês como ativos, como pessoas e como participantes, cujas opiniões e idéias são valiosas para o sucesso da organização.” 3.4 Informação Segundo Carlzon (1992), a maioria dos departamentos de treinamentos não despertam para seus objetivos, geralmente consideram um setor inofensivo e amigável. Os funcionários, quando participantes de algum treinamento consideram o trabalho como uma “sessão de treinamento”, ou simplesmente como um momento de recreação, não levando em conta a real importância do treinamento. Geralmente tais departamentos são vistos como: Q A “escolha da empresa”, um lugar que você vai quando seu che- Q Q Q Q Q fe decide que você necessita fazer um curso. Escondidos em um canto, não se envolvendo nos problemas da empresa. Um item arbitrário no orçamento, com fundos pequenos, um dos pioneiros itens a serem economizados quando a empresa precisa economizar. “Nunca parecem ter um programa direcionado às necessidades do seu departamento”. “Caso peça algo que não esteja no seu catálogo me dizem para fazê-lo eu mesmo”. “Seus programas são todos muito genéricos, eles não fazem os problemas e necessidades desta empresa”. Geralmente, os envolvidos no processo sentem-se passivos, procurando não se envolver com os problemas da empresa, aguardando que sejam chamados, ou depreciados e não reconhecidos pela contribuição que podem dar, geralmente são orientados para o processo e não para o resultado. Carlzon (1992) enfoca que a grande necessidade das informações serem largamente divulgadas entre todos os envolvidos no processo, é uma alternativa para a comunicação fluir melhor. Infelizmente isso não reflete a realidade da maioria das Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Rubens Eugênio Barreto Ramos empresas, geralmente administradas por pessoas consideradas monopolizadoras de informações em causa própria, contrárias a treinamento e educação, com visão focada em paradigmas que consideram como normas soberanas, enquanto que a concorrência, aos poucos vai abrindo seu espaço. Para que exista qualidade na prestação do serviço é necessário que a informação chegue de forma mais rápida e atualizada possível até todos os envolvidos no processo, para só assim manter uma cultura de prestação de serviço com qualidade. 3.5 Estratégia Albrecht (1995) utiliza como estratégia o “Triângulo de Serviços”, onde o cliente ficaria no centro do triângulo, circulados pelas estratégias, sistemas e pessoas, totalmente voltadas no atendimento das satisfações e anseios do cliente. A estratégia auxiliaria as pessoas ao referencial a que devem seguir, o entendimento do conceito de valor para o cliente e saber como a organização deve fornecê-lo. As pessoas formam um espírito de união e harmonia voltados para o serviço, utilizando conhecimentos e qualificações necessárias à criação e repasse das experiências voltadas para o cli- ente. Os sistemas devem apoiar os funcionários em seus esforços para criar e entregar valor, necessitam ser favoráveis ao cliente, projetados no apoio a valorizar o cliente. O cliente tem que ser visto com o real valor que lhe é atribuído, porque sem eles não há organização. Na nossa sociedade um dos pontos que muito contribuiu para que este sistema fosse largamente trabalhado foi a abertura econômica que obrigou as nossas empresas utilizarem maior qualidade, agilidade e eficiência nos serviços prestados. As nossas empresas estão começando a perceber que para concorrer com os países mais desenvolvidos se faz necessário conhecer e valorizar os clientes, em todos os níveis, fator fundamental para a sobrevivência das instituições. 3.6 Resultados do negócio Na gestão de qualidade em serviços, o “lucro”, passa a ser observado não de forma imediata, nem tão pouco de condições única de sobrevivência da organização, obtido de uma forma qualquer, mas, da visão de que o consumidor é o centro do negócio e a garantia da sua sobrevivência. 3.7 Melhoria contínua A alta administração deve colocar a responsabilidade pela Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 15 Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual 16 melhoria do serviço claramente nas mãos dos administradores de nível médio e esperar que eles a cumpram. A força-tarefa pode cuidar das questões que afetam a organização como um todo, mas cabe a cada administrador dar vida ao programa de serviço em sua unidade e mantê-lo em andamento com a força de sua liderança. (Albrecht,1995). É necessário dar autonomia aos funcionários de linha de frente para que possam usar a criatividade no intuito de deixar o cliente satisfeito mesmo em situações difíceis, é claro que para isto é necessário treinar os funcionários. E, para que os administradores de nível médio possam trabalhar na melhoria do serviço, o autor sugere a adoção de técnicas de avaliação como laboratório de aplicação. Trata-se de um processo que gera seu próprio reforço à medida em que diversas unidades o utilizam para identificar e resolver problemas que bloqueiam a qualidade do serviço. Círculos de serviços, formado por um grupo de funcionários, geralmente numa única unidade de trabalho, trabalhando com seus supervisores, que se reúne regularmente para identificar e resolver problemas de serviço ou inventar maneiras de aprimorá-los. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A tomada de decisão, ou seja, as ações a serem executadas baseadas nas informações retiradas da medição de Desempenho de cada Indicador da Qualidade, dependerá basicamente da capacidade de cada responsável pelo indicador, em gerar as melhorias nos processos, na participação do mercado, na satisfação e retenção dos clientes, no desempenho financeiro, dos funcionários e dos fornecedores e da capacidade física e financeira da empresa para implementar com êxito estas melhorias para a sobrevivência, competitividade e evolução constante da empresa. Considerando o cenário altamente competitivo dos dias atuais, onde a flexibilidade, a rapidez de resposta e a inovação, são os alicerces de sustentação da vantagem competitiva, torna-se imprescindível para as empresas que pretendem permanecer no negócio, possuir ferramentas de apoio à tomada de decisão e acompanhamento dos progressos obtidos com a introdução de melhorias nos processos. Revolucionar serviços, é dar qualidade aos mesmos, possibilitando aos clientes sua satisfação, dandolhe confiança para o estabelecimento de uma parceria leal, sincera e duradoura. É tornar seus funcioná- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Rubens Eugênio Barreto Ramos rios realmente parte “integrante” da organização, delegando-lhes autoridade, responsabilidade, poder de decisão nas “horas da verdade”, isto, graças ao total esclarecimento quanto a cultura do serviço, as condições de qualidade de vida no trabalho, e um sistema dinâmico de “feedback”. O sucesso das organizações hoje, no Brasil, depende cada vez mais da capacidade de mudar em seus talentos humanos, a mentalidade de “empregado” para a mentalidade de “pessoa de negócio”. Isto requer uma transformação cultural cujo alcance exige um forte e contínuo processo de ensino e aprendizagem. 17 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Qualidade dos serviços oferecidos aos clientes: Uma análise conceitual 5 REFERÊNCIAS ALBRECHT, K. A Única Coisa que Importa. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1997. ________. A Revolução nos Serviços. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1998. NÓBREGA, C. Em busca da empresa quântica: analogias entre o mundo da ciência e o mundo dos negócios. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. NORMANN, R. Administração de serviços: estratégia e liderança na empresa de serviços. São Paulo: Atlas, 1993. SENGE, P. M. A Quinta Disciplina: arte, teoria e prática da organização de aprendizagem. São Paulo: Nova Cultura, 1995. WOOD JUNIOR., T., URDAN, F. T. Gerenciamento da qualidade total: Uma revisão crítica. Revista de Administração de Empresas, v. 34, n. 6, p. 46-59, 1994. 18 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Administração Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência 19 Francisca Janete da Silva1 Ana Célia Cavalcanti Fernandes Campos2 ¹ Professora e Coordenadora do curso de Secretariado Executivo da FACEX e Mestre em Engenharia de Produção/UFRN. E-mail: [email protected] 2 Professora do Mestrado em Ciências em Engenharia de Produção da UFRN. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência A study about the redefinitions of the concepts of intelligence 20 RESUMO O objetivo deste trabalho é enfatizar a importância da inteligência emocional no ambiente organizacional, tendo como base o estudo do modelo atual de gestão de pessoas e a valorização dos aspectos interpessoais e intrapessoas no processo motivacional. A metodologia utilizada foi a de uma pesquisa bibliográfica, do tipo exploratório. No estudo realizado, percebeu-se a ênfase dada ao conceito de inteligência emocional a partir de 1995. Ao longo do texto, é apresentada a importância da inteligência emocional no processo educacional e no ambiente organizacional. ABSTRACT The objective of this work is to emphasize the importance of the emotional intelligence in the organization atmosphere. It is based on the study of the current model of people’s administration and the valorization of the interpersonal and intrapersonal aspects in the motivation process. The methodology followed the exploratory type. In the accomplished study, it was noticed the emphasis given to the concept of emotional intelligence started in 1995. Along the text, the importance of the emotional intelligence is presented in the education process and in the organization atmosphere PALAVRAS-CHAVE Inteligência emocional, educação emocional. KEY-WORDS Emotional intelligence; emotional education. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Ana Célia Ca valcante FFer er nandes Campos Cavalcante ernandes 1 INTRODUÇÃO A curiosidade de tentar compreender os conceitos de inteligência emocional nasceu de evidências presenciadas pela autora nos últimos cinco anos de exercício profissional, em organização pública e privada e também em função dos assuntos afins explorados na disciplina gestão da mudança estuda no mestrado. A vivência profissional no período informado permitiu observar inúmeras pessoas com manifestações comportamentais indesejáveis ao trabalho produtivo, tais como: falta de entendimento da representação social do trabalho, ausência de compromisso com as atividades, presença do corpo e a ausência do espírito. Estas manifestações pareciam refletir falta de motivação e entusiasmo. O conceito de inteligência emocional discutido por Daniel Goleman (1995), tem nos mostrado a necessidade de fazer uma reflexão mais cuidadosa sobre os vários aspectos comportamentais demonstrados pelas pessoas em seus ambientes de trabalho. O autor revela que a nossa visão sobre este assunto ainda é muita estreita, ao contrário do saber científico que dominou o mundo ocidental nos últimos séculos. Estudos desenvolvidos por Marías (1989), Myers (1993), Lykken (1999), concluíram que o homem tem a felicidade como uma ocorrência natural e ela provêm de uma série de eventos favoráveis e sucessivos, em vez de representar uma manifestação oriunda de um fato agradável de elevada intensidade. Entretanto, o objetivo deste artigo é enfatizar a importância da inteligência emocional no ambiente organizacional, tendo como base o estudo do modelo atual de gestão de pessoas e a valorização dos aspectos interpessoais e intrapessoas no processo motivacional. Utilizando inovadoras pesquisas cerebrais e comportamentais, Goleman (1995), na Universidade de Harvard, mostra porque as pessoas de Quociente Intelectual alto fracassam e outras, cujo quociente é mais modesto, apresentam uma trajetória de vida de sucesso. O autor derruba o mito de que a inteligência seria determinada pela genética. Revela ainda que a inteligência está ligada à forma como negociamos as nossas emoções. O conceito de inteligência emocional adotado pelo o autor seria a capacidade de autoconsciência, controle de impulsos, persistência, empatia e habilidade social que cada pessoa possui. No decorrer do trabalho discutiremos a tese de Goleman (1995), que está baseada numa síntese ori- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 21 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência ginal, feita a partir de pesquisas e recentes descobertas sobre o funcionamento do cérebro humano. O autor mostra como a inteligência emocional pode ser alimentada e fortalecida em todos nós, principalmente na infância, período no qual toda a estrutura neurológica encontra-se em formação. 2 A VALORIZAÇÃO DOS ASPECT OS EMOCIONAIS ASPECTOS DA INTELIGÊNCIA 22 Segundo Goleman (1995), a nossa vida emocional tem sido sistematicamente ignorada por nossa cultura. Nossa educação, baseada em princípios cartesianos, coloca ênfase nos processos intelectuais e cognitivos. No entanto, a felicidade e bem-estar, tão almejado por todos, depende muito mais de nossos processos emocionais que dos intelectuais. É curioso notarmos que as pessoas mais desprovidas de conhecimentos intelectuais parecem ser mais abertas a felicidade. Quase todos nós sentimos que a vida pode ser muito mais intensa, possui algo mais a ser explorado. Estamos sempre muito ocupados para perceber estas particularidades e então passamos quase toda a nossa vida em busca de maneiras indiretas, artificiais ou dissimuladas de experimentar emoções. As drogas, as paixões por pessoas instáveis, os filmes românticos, de terror ou aventura, novelas, essas atividades que nos proporcionam um gostinho daquilo que desejamos sem o risco da participação real. Obviamente, há uma necessidade premente de romper com o ciclo da violência e do entorpecimento emocional. Uma maneira de fazer isto consiste no aprendizado da consciência emocional, despertando aspectos adormecidos de nossas mentes, desenvolvendo os fatores emocionais de nossa inteligência. (Goleman, 1995). 3 FORMAÇÃO EMOCIONAL Há pouco tempo atrás, a questão da formação emocional era vista como uma função dos pais e da família. As dificuldades emocionais das pessoas eram consideradas problemas privados, que cada um devia resolver individualmente. Desta forma, a ênfase nos processos básicos de formação educacional (Escola) e nos treinamentos avançados de preparação para o trabalho (Cursos Profissionalizantes, Universidades) tem sido colocada na capacitação intelectual dos indivíduos. Os recentes avanços das ciências da mente e comportamento (psiquiatria, psicologia, neurofisiologia) têm demonstrado a importância das Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Ana Célia Ca valcante FFer er nandes Campos Cavalcante ernandes emoções nos processos decisórios e no desempenho profissional dos indivíduos ou grupos. No entanto, a falta de aptidão emocional dos indivíduos pode gerar uma série de dificuldades pessoais, familiares, escolares, de interação social e no trabalho. (Weisinger, 1997). Hoje é um pouco mais visível a percepção das pessoas quanto a consciência da importância de suas aptidões emocionais para o seu bom desempenho pessoal e profissional. Inclusive as escolas passaram a se voltar também para a formação emocional de seus alunos, para a capacitação de seus professores para trabalharem com estes aspectos, assim como as empresas estão adotando programas de Treinamento & Desenvolvimento Emocional para seus gerentes e funcionários.Tem se observado que o treinamento voltado para os aspectos emocionais melhora as relações interpessoais, na família, no trabalho e, consequentemente, leva a uma maior satisfação na vida pessoal, familiar e profissional. 4 O QUE É EDUCAÇÃO EMOCIONAL ? Segundo Goleman (1995), a educação emocional é a aplicação sistematizada de um conjunto de técnicas psico-pedagógicas que vi- sam desenvolver as cinco aptidões emocionais básicas: Capacidade de reconhecer os próprios sentimentos: Se não for capaz de avaliar a qualidade e intensidade dos próprios sentimentos o indivíduo não poderá definir até que ponto estes sentimentos o estão influenciando e às pessoas que o cercam. Capacidade de empatia: Empatia é a capacidade de sentir como o outro, de perceber as emoções do outro como se estivéssemos no lugar dele. Ter esta capacidade é fundamental para estabelecermos relacionamentos bem sucedidos, seja na família ou no trabalho. Capacidade de controlar as próprias emoções: Ter controle sobre as próprias emoções significa ser capaz de expressar adequadamente o que se está sentindo, evitando expressões emocionais ofensivas e improdutivas, além de ser capaz de adiar a expressão das mesmas até um momento propício. Isto é diferente de conter e simplesmente reprimir, suprimir ou engolir as emoções. Capacidade de remediar danos emocionais (reparação): Desenvolver a capacidade de reconhecer os próprios erros em relação aos outros e de reparar os danos que isto possa ter causado, ou seja, saber desculpar-se efetivamente. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 23 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência 24 Capacidade de integração emocional e interatividade: É a habilidade de estar consciente do próprio estado emocional, ao mesmo tempo em que se está em sintonia com o estado emocional daqueles que o cercam, e ser capaz de interagir eficazmente com eles. 4. Reconhecimento de emoções em outras pessoas; 5. Habilidade em relacionamentos inter-pessoais. As três primeiras referem-se a Inteligência Intra-Pessoal e as duas últimas, a Inteligência InterPessoal, conforme relacionado abaixo: 5 O QUE É INTELIGÊNCIA EMOCIONAL? a) A Inteligência Inter-Pessoal é a habilidade de entender outras pessoas: o que as motiva, como trabalham, como trabalhar cooperativamente com elas. A Inteligência Emocional está relacionada a habilidades tais como motivar a si mesmo e persistir mediante frustrações; controlar impulsos, canalizando emoções para situações apropriadas; praticar gratificação prorrogada; motivar pessoas, ajudando-as a liberarem seus melhores talentos, e conseguir seu engajamento a objetivos de interesses comuns. (Weisinger, 1997). Goleman, (1995), mapeia a Inteligência Emocional em cinco áreas de habilidades: 1. Auto-Conhecimento Emocional - reconhecer um sentimento enquanto ele ocorre; 2. Controle Emocional - habilidade de lidar com seus próprios sentimentos, adequando-os para a situação; 3. Auto-Motivação - dirigir emoções a serviço de um objetivo é essencial para manter-se caminhando sempre em busca; Q Q Q Q A Organização de Grupos é a habilidade essencial da liderança, que envolve iniciativa e coordenação de esforços de um grupo, habilidade de obter do grupo o reconhecimento da liderança, a cooperação espontânea. A Negociação de Soluções desenvolve o papel do mediador, prevenindo e resolvendo conflitos. A Empatia ou Sintonia Pessoal é a capacidade de, identificando e entendendo os desejos e sentimentos das pessoas, responder (reagir) de forma apropriada de forma a canalizá-los ao interesse comum. A Sensibilidade Social é a capacidade de detectar e identificar sentimentos e motivos das pessoas. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Ana Célia Ca valcante FFer er nandes Campos Cavalcante ernandes b) A Inteligência Intra-Pessoal é a mesma habilidade, só que voltada para si mesmo. É a capacidade de formar um modelo verdadeiro e preciso de si mesmo e usá-lo de forma efetiva e construtiva. 6 TIPOS DE INTELIGÊNCIA O psicólogo Howard Gardner (1997), da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, propõe “uma visão pluralista da mente” ampliando o conceito de inteligência única para o de um feixe de capacidades. Para ele, inteligência é a capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos valorizados em um ambiente cultural ou comunitário. Assim, ele propõe uma nova visão da inteligência, dividindo-a em sete diferentes competências que se interpenetram, pois sempre envolvemos mais de uma habilidade na solução de problemas. Embora existam predominâncias, as inteligências se integram: Q Q Inteligência Verbal ou Lingüística: habilidade para lidar criativamente com as palavras. Inteligência Lógico-Matemática: capacidade para solucionar problemas envolvendo números e demais elementos matemáticos; habilidades para raciocínio dedutivo. Inteligência Cinestésica Corporal: capacidade de usar o próprio corpo de maneiras diferentes e hábeis. Inteligência Espacial: noção de espaço e direção. · Inteligência Musical: capacidade de organizar sons de maneira criativa. Inteligência Interpessoal: habilidade de compreender os outros; a maneira de como aceitar e conviver com o outro. Inteligência Intrapessoal: capacidade de relacionamento consigo mesmo, autoconhecimento. Habilidade de administrar seus sentimentos e emoções a favor de seus projetos. É a inteligência da auto-estima. Q Q Q Q Segundo Gardner (1997), todos nascem com o potencial das várias inteligências. A partir das relações com o ambiente, aspectos culturais, algumas são mais desenvolvidos ao passo que deixamos de aprimorar outras. Nos anos 90, Daniel Goleman, também psicólogo da Universidade de Harward, afirmou que ninguém tem menos que nove inteligências. Além das sete citadas por Gardner (1997), Goleman (1999), acrescenta mais duas: Inteligência Pictográfica: habilidade que a pessoa tem de transmitir uma mensagem pelo desenho que faz. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 25 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência Inteligência Naturalista: capacidade de uma pessoa em sentir-se um componente natural. 7 A IMPOR TÂNCIA IMPORTÂNCIA DAS EMOÇÕES Q As emoções são importantes, uma vez que nos auxiliam na nossa sobrevivência, nos ajudam a tomar decisões, ajustam nossos limites, ajudam na nossa comunicação e nossa união. Q 26 Q Sobrevivência: Nossas emoções foram desenvolvidas naturalmente através de milhões de anos de evolução. Como resultado, nossas emoções possuem o potencial de nos servir como um sofisticado e delicado sistema interno de orientação. Nossas emoções nos alertam quando as necessidades humanas naturais não são encontradas. Por exemplo, quando nos sentimos sós, nossa necessidade é encontrar outras pessoas. Quando nos sentimos receosos, nossa necessidade é por segurança. Quando nos sentimos rejeitados, nossa necessidade é por aceitação. Tomadas de Decisão: Nossas emoções são uma fonte valiosa da informação. Nossas emoções nos ajudam a tomar decisões. Os estudos mostram que quando as conexões emocionais Q Q de uma pessoa estão danificadas no cérebro, ela não pode tomar nem mesmo as decisões simples. Por que? Porque não sentirá nada sobre suas escolhas. Ajuste de limites: Quando nos sentimos incomodados com o comportamento de uma pessoa, nossas emoções nos alertam. Se nós aprendermos a confiar em nossas emoções e sensações isto nos ajudará a ajustar nossos limites que são necessários para proteger nossa saúde física e mental. Comunicação: Nossas emoções ajudam-nos a comunicar com os outros. Nossas expressões faciais, por exemplo, podem demonstrar uma grande quantidade de emoções. Com o olhar, podemos sinalizar que precisamos de ajuda. Se formos também verbalmente hábeis, juntamente com nossas expressões teremos uma possibilidade maior de melhor expressar nossas emoções. Também é necessário que nós sejamos eficazes para escutar e entender os problemas dos outros. União: Nossas emoções são, talvez, a maior fonte potencial capaz de unir todos os membros da espécie humana. Claramente, as diferenças religiosas, culturais e políticas não permitem isto, apesar das emoções serem “universais”. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Ana Célia Ca valcante FFer er nandes Campos Cavalcante ernandes 8 COMO MELHORAR O QE? Observando o comportamento das pessoas dentro do ambiente organizacional percebemos que um simples sorriso pode quebrar muitas barreiras nas negociações entre chefes x subordinados e clientes x fornecedores. Isto nos leva a crer que ter inteligência emocional é saber perceber os sentimentos das pessoas e ser capaz de compreendêlos, tranqüiliza-los e orienta-los quando preciso. Gottman (1995), em seu livro Inteligência Emocional e a Arte de Educar Nossos Filhos, diz que os pais devem ser os preparadores emocionais dos filhos, o que muitas vezes não tem ocorrido devido ao stress e a correria do cotidiano. É fácil observar que a infância modificou-se muito nos último anos, devido principalmente a necessidade das mães em trabalhar fora de casa. Isto possivelmente tem ocasionado um certo desequilíbrio ao aprendizado afetivo das crianças. Segundo Gottman (1995), os pais precisam ser afetivamente preparadores emocionais, devem ensinar aos filhos estratégias para lidar com os altos e baixos da vida. Devem aproveitar o estados de emoções da criança, para ensiná-la como lidar com eles e ensiná-la como tornar-se uma pessoa humana mais equilibrada para uma vida adulta mais saudável. Gottman (1995), propõe cinco passos para os pais que ainda não são preparadores emocionais no intuito de facilitar a relação na busca de um equilíbrio emocional com os filhos: 1. Percebam as emoções das crianças e as suas próprias; 2. Reconheçam a emoção como uma oportunidade de intimidade e orientação; 3. Ouçam com empatia e legitimar os sentimentos da criança; 4. Ajudam as crianças a verbalizar as emoções; 5. Imponham limites para ajudar a criança a encontrar soluções para seus problemas. Embora os pais tenham papel fundamental na educação emocional dos filhos, algumas iniciativas em escolas têm se mostrado positivas. Hoje, assistimos ao fortalecimento do indivíduo enquanto pessoa, fazendo com que as instituições, para obter sucesso, adequem-se aos indivíduos, treinando professores para tal missão. Segundo Goleman (1995), estamos assistindo a passagem de uma sociedade de sobrevivência para uma de realização pessoal, onde o indivíduo ganha importância enquanto valor e responsabilidade. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 27 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência 9 CONCLUSÃO 28 Vimos que de acordo com a ótica dos autores pesquisados é fundamental a importância dos pais na educação emocional de seus filhos, ou seja, prepará-los para enfrentar os desafios impostos pela vida com inteligência. É necessário orientá-los como reagir nas diversas ocorrências que podem vir a acontecer. O significado de inteligência emocional no ambiente organizacional pode ser manifestado por múltiplas percepções. Para aqueles que participam de organizações que privilegiam a racionalidade técnica e econômica, suas compreensões acerca desse estado, certamente, serão diferentes dos entendimentos daqueles que integram instituições que enaltecem a postura criativa, a qual possibilita mobilidade social e valoriza os princípios éticos na produção. Ambas pretendem conquistar evidência no mercado onde atuam, mas adotam posturas diretivas antagônicas que orientam a percepção de inteligência emocional de modo distinto, em função das relações interpessoais. As percepções de equilíbrio emocional dentro do ambiente organizacional decorrem de inúmeras situações. É importante avaliar que normalmente o funcionário, quando chega à organização, traz consigo história pessoal única, e terá que ser vislumbrado como um organismo vivo diferente de uma nova máquina introduzida nesse ambiente. O trabalhador reage às influências internas e externas do ambiente organizacional e deve ser entendido por suas características individuais, as quais se diferenciam dos outros que compartilham o espaço produtivo. Com tudo, é importante desenvolver a inteligência emocional nos funcionários, pois em sendo estimulados, eles podem se desenvolver mais harmonicamente, prevenindo desordem no clima organizacional e evitando bloqueios de capacidades de relacionamento interpessoal. O princípio da educação emocional é simples. Devemos ensinar ao indivíduo o senso de respeito, importância e de responsabilidade. Não apenas falando ou impondo situações, mas compartilhando com ele. Este estudo permitiu concluir que o equilíbrio entre a racionalidade instrumental e os sentimentos humanos devem ser postulados e observados nas organizações que pretendem conquistar posição competitiva no mercado, com amparo na capacidade intelectual e emocional dos colaboradores. Estes componentes requerem, dos responsáveis pela organização, uma sintonia contínua durante as diversas etapas dentro do processo de realização das Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Francisca Janete da Silva Ana Célia Ca valcante FFer er nandes Campos Cavalcante ernandes atribuições de cada um, visando adequá-las à gestão do negócio e a satisfação pessoal dos colaboradores. Esta realidade não se esgota, porque é renovada a cada instante. Por isto, deve ser gerenciada cotidianamente. E isto se torna fácil quando se consegue atividades em equipes, onde todos trabalham igualmente com a visão da responsabili- dade de manter a equipe viva. A aprendizagem emocional, portanto, pode trazer inúmeros benefícios, tanto para os dirigentes das organizações, quanto para os funcionários ou colaboradores, que poderão dispor de um ambiente mais propício à interação e participação de forma mais criativa. 29 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Um estudo sobre as redefinições dos conceitos de inteligência 10. REFERÊNCIAS CARVALHO, M. do S. M. V., TONET, H. C. Qualidade na administração pública. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, [s.n.t.], p. 137-152, abr./jun. 1994. COOPER, Robert e Sawaf, Ayman. Inteligência Emocional na Empresa. 7. ed. Campus, 1997. ________. NEWSTROM, J. W. Comportamento humano no trabalho. São Paulo: Pioneira, 1989. DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes. 2ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. ________. Do que é feito um líder. Revista HSM Management. Rio de Janeiro. maio/ jun. 1999. p. 68-78. TTMAN, John, DECLAIRE, Joan. Inteligência Emocional. - A Arte de Educar Nossos Filhos. 17. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. 30 LYKKEN, David. Felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. 371 p. MARÍAS, Julián. A Felicidade humana. São Paulo: Duas Cidades, 1989. 414 p. WEISINGER, H. Inteligência Emocional no Trabalho. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. ________. Inteligência Emocional. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Administração A responsabilidade social das empresas 31 Pio Marinheiro de Souza Neto1 Carlison do C. Barbosa Luciney Macedo D. Pereira Maria Célia T. Amorim Dantas 1 Alunos do 2º período do curso de Administração com habilitação em Gestão de Sistemas de Informação da FACEX. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 A responsabilidade social das empresas The companies social responsibility 32 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo discutir sobre a importância da responsabilidade social nas organizações da atualidade, mostrando como se dá esta responsabilidade, os argumentos das correntes contra e a favor da mesma, as suas áreas de atuação, as abordagens e estratégias da sua implantação e por fim examinamos alguns exemplos de organizações socialmente responsáveis. ABSTRACT The present work has the objective of discussing the importance of social responsibility in the organizations of the present time, showing the way it occurs, the arguments of those who are for or against it, its areas of performance, the approaches and strategies of its implantation. It will also be shown some examples of socially responsible organizations. PALAVRAS-CHAVE Responsabilidade social; qualidade de vida. KEY-WORDS Social responsibility; quality of life. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine 1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas a sociedade foi levada a reconhecer as conseqüências indesejáveis da industrialização e o comportamento socialmente irresponsável de certas organizações ou ramos de negócio. Estas idéias ganharam força principalmente quando a destruição dos ecossistemas, provocada pela sede de lucros de algumas empresas, estimulou o debate sobre os benefícios e malefícios da sociedade industrial. Devido às pressões exercidas pelos movimentos civis organizados, a idéia da responsabilidade social das empresas, que embora não seja nova, ganhou força e alguns países estabeleceram legislações sobre a questão. O estabelecimento dessa legislação específica é um dos principais fatores levados em consideração pelas empresas ao tomar decisões que envolvem valores de ordem ética. A metodologia empregada para a realização deste trabalho de cunho teórico consiste de pesquisa bibliográfica, sendo a coleta de informações realizada, principalmente, através de dados secundários, a saber: livros, teses, revistas, jornais, pesquisas de instituições e sites na internet. Parte deste material foi coletado em bibliotecas, parte pela internet e parte em periódicos (revistas e jornais). Este trabalho tem como objetivo discutir sobre a importância da responsabilidade social nas organizações da atualidade, mostrando o que é esta responsabilidade, os argumentos das correntes contra e favor da mesma, as suas áreas de atuação, as abordagens e estratégias da sua implantação e por fim alguns exemplos de organizações socialmente responsáveis. 2 O QUE É RESPONSABILIDADE SOCIAL Responsabilidade social, segundo Chiavenato (1999) é o grau de obrigações que uma organização assume através de ações que protejam o bem-estar da sociedade à medida que procura atingir seus próprios interesses Deste modo, uma organização responsável socialmente é aquela que incorpora objetivos sociais aos seus processos de planejamento com o objetivo de passar uma imagem de organização preocupada com a sociedade onde está atuando. Existem alguns procedimentos comuns nas organizações que desejam ser reconhecidas como socialmente responsáveis. Tais como: Q Q Incorpora objetivos sociais em seus processos de planejamento; Realiza comparações com os Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 33 A responsabilidade social das empresas Q Q Q 34 programas sociais de outras organizações; Apresenta relatórios aos membros da organização e aos parceiros sobre os processos de responsabilidade social e seus resultados; Utiliza-se de diferentes abordagens para medir o seu desempenho social; Procura acompanhar os custos dos programas sociais e o retorno dos investimentos em programas sociais. 3 ABORD AGEM HISTÓRICA DDAA ABORDAGEM RESPONSABILIDADE SOCIAL 3.1 No mundo - As primeiras manifestações desta idéia foram divulgadas no início do século, em trabalhos de Charles Eliot (1906), Artur Hakley (1907) e John Clark (1916), mas tais idéias não tiveram uma maior aceitação nos meios acadêmicos e empresariais. Em 1923, o inglês Oliver Sheldon defendeu a inclusão de outros objetivos, entre as preocupações das empresas, além do lucro dos acionistas. Vinte anos depois, 1942, a idéia reapareceu em um manifesto subscrito por 120 industrias inglesas. Mas foi somente em 1953 que surgiu nos Estados Unidos o primeiro livro analisando com profundidade o tema, tratavase do livro Social Responsabilities of the Basinessman, de Howard Bowen, tendo a obra alcançado grande repercussão nos meios acadêmicos e empresariais, sendo logo traduzido para vários idiomas, inclusive o português. No início dos anos 60, começa a popularização do tema com uma série de programas de televisão, levados ao ar pela Pacific Northwest, e desta série resulta o lançamento, em 1963, do livro Business and Society. A idéia da responsabilidade social das empresas ganha terreno. Inúmeros artigos aparecem nos jornais e revistas especializados; é lançada publicação periódica específica e ganha espaço em grandes magazines como Fortune e Business Week. Por outro lado, no meio acadêmico, desenvolvem-se métodos e técnicas específicas de avaliação de desempenho, multiplicando-se sob o patrocínio de renomadas organizações, continuando, nos dias atuais, o grande interesse pelo tema. No campo teórico, com ênfase nos estudos relacionados com a ética e com a qualidade de vida no trabalho. No campo prático, continua o esforço para o aperfeiçoamento e criação de modelos de avaliação do desempenho da empresa no campo social. 3.2 No Brasil - No Brasil, a responsabilidade social começa a ser dis- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine cutida ainda nos anos 60 com a criação da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), que se baseia na aceitação por seus membros de que a empresa, além de produzir bens e serviços, possui a função social que se realiza em nome dos trabalhadores e do bemestar da comunidade. Embora a idéia já motivasse discussões, apenas em 1977 mereceu destaque a ponto de ser tema central do 2º Encontro Nacional de Dirigentes de Empresas. Somente em 1984, ocorre a publicação do primeiro balanço social de uma empresa brasileira – a Nitrofértil, no estado da Bahia. O movimento de valorização da responsabilidade social empresarial ganhou forte impulso na década de 90, através da ação de entidades não governamentais, institutos de pesquisa e empresas sensibilizadas para a questão. O trabalho do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), na promoção do balanço social é um exemplo desta atuação e tem logrado progressiva repercussão. Muitas vezes a história do IBASE se confunde com a trajetória pessoal do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um de seus fundadores e principal articulador. Em 1992, o Banco do Estado de São Paulo (BANESPA) publica um relatório completo divulgando todas as suas ações sociais; e a partir de 1993, várias empresas de diferentes setores passam a divulgar anualmente o balanço social. No ano de 1993, Betinho e o IBASE lançam a Campanha Nacional da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, com o apoio do Pensamento Nacional das Bases Empresarias (PNBE). Este é o grande marco da aproximação dos empresários com as ações sociais. No ano de 1995, foi criado o GIFE, a primeira entidade que genuinamente se preocupou com o tema da filantropia, cidadania e responsabilidade empresarial, adotando, por assim dizer, o termo cidadania empresarial às atividades que as corporações realizassem com vistas à melhoria e transformação da sociedade. No ano de 1997, Betinho lança uma campanha nacional a favor da divulgação do balanço social e com o apoio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), do jornal Gazeta Mercantil, de empresas (Banco do Brasil, Usiminas, etc.); e de suas instituições representativas (Firjan, Abrasca, Abamec, Febraban, etc.), a campanha decolou e resultou numa série de debates através da mídia e em seminários, encontros e simpósios. Em novembro de 1997, novamente em parceria com a Gazeta Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 35 A responsabilidade social das empresas 36 Mercantil, o IBASE lança o Selo do Balanço Social para estimular a participação das companhias. O selo, num primeiro momento, é oferecido a todas as empresas que divulgarem o balanço social no modelo proposto pelo IBASE. Em 1998, é fundado o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. O Instituto serve como ponte entre os empresários e as causas sociais, tendo como objetivo disseminar a prática social através de publicações, experiências vivenciadas, programas e eventos para seus associados e para os interessados em geral, contribuindo para um desenvolvimento social, econômico e ambientalmente sustentável, incentivando a formação de uma nova cultura empresarial baseada na ética, princípios e valores, e já no ano de 1999, a adesão ao movimento social se refletiu com 68 empresas publicando seu balanço social no Brasil. Entre os anos de 1999 e 2001, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)2 realizou a Pesquisa Ação Social das Empresas nas cinco regiões do Brasil, visando conhecer as ações sociais do setor empresarial nacional. No ano de 2000, para fortalecer o movimento pela responsabilidade social no Brasil, o Instituto Ethos concebeu os Indicadores Ethos como um sistema de avaliação do estágio em que se encontram as práticas de responsabilidade social nas empresas. Além disso, o Ethos vem promovendo, anualmente, a realização da Conferência Nacional de Empresas e Responsabilidade Social no mês de junho em São Paulo. A primeira, realizada em 2000, foi prestigiada por mais de 400 pessoas. Na Conferência de 2001, estiveram presentes 628 pessoas, representando empresas, fundações, ONGs, instituições governamentais, centros de pesquisas e universidades. 4 ARGUMENT OS CONTRA A ARGUMENTOS RESPONSABILIDADE SOCIAL Segundo Milton Friedman 3 (1931- ), a responsabilidade das empresas é apenas gerar lucros para os seus acionistas ou proprietários, não devendo a empresa assumir responsabilidades diretas, ficando no cumprimento da responsabilidade social imposta pela legislação, já que tal responsabilidade pertence ao governo. Friedman argumenta que ao se preocupar com esta responsabilidade, as empresas estariam fugindo do seu principal objetivo que é gerar lucro aos acionistas, já que os programas sociais têm um custo para se incorporar ao preço final Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine do produto, e desta forma tal procedimento é ineficaz para as empresas. Também defende que os empresários e gerentes não têm habilidades de cunho social e que tal tarefa deve ser executada pelas autoridades públicas que também já encontram dificuldades para estabelecer tais metas. Portanto, para os defensores do não engajamento das organizações na solução de problemas sociais, não há razão para se exigir responsabilidades das empresas, além das determinadas em lei, pois ao alcançar o seu objetivo principal, o lucro, seria repassado à sociedade através dos seus empregados na forma de melhores salários. 5 ARGUMENT OS A FFAAVOR DDAA ARGUMENTOS RESPONSABILIDADE SOCIAL A referência na defesa da responsabilidade social é Keith Davis4 (1918- ), pois argumenta que as empresas são as organizações mais poderosas da atualidade, poder este dado pela própria sociedade. Davis também reconhece que tais programas de responsabilidade geram custos, que por sua vez, seriam repassados ao preço final dos produtos, mais que de toda forma as organizações devem se envolver mesmo nos problemas que não a atingem diretamente, pois a melho- ra da comunidade na qual estão localizadas implicam em benefícios à empresa; os programas de responsabilidade sociais ajudam a impedir a intervenção do governo nas empresas, e por último o mesmo argumenta que ser socialmente responsável é a coisa certa eticamente correta. Outro importante economista partidário da responsabilidade social é Paul Samuelson, ao defender que as organizações devem estar ligadas ao bem-estar, e não apenas na procura do lucro. Lista como argumento a favor o seguinte: lucros a longo prazo para o negócio, melhor imagem junto ao público, menor regulamentação dos negócios, melhor ambiente para todos e atendimento dos desejos do público. É verdade que hoje a sociedade valoriza muito mais as empresas “do Bem”, ou seja, aquelas que conseguem produzir lucros e dividendos, preocupando-se com os valores éticos e ações socialmente responsáveis. 6 GRAU DE ENV OLVIMENT ENVOLVIMENT OLVIMENTOO Existem várias formas de classificar o grau de envolvimento das empresas com a responsabilidade social. Segundo Montana e Charnov (1999), baseados na sua sensibilidade social, elas teriam as seguintes abordagens: Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 37 A responsabilidade social das empresas 38 6.1 Abordagem da obrigação social – As empresas devem satisfazer apenas as obrigações sociais mínimas impostas pela lei, já que os seus principais objetivos são de natureza econômica, principalmente a otimização dos lucros e o aumento do patrimônio dos acionistas. 6.2 Abordagem da responsabilidade social – Reconhece que mesmo com o objetivo de garantir lucro e dividendos, a empresa tem responsabilidades econômicas e sociais. As empresas procuram solucionar os problemas sociais existentes, mas somente quando o bemestar econômico não corra o risco de ser afetado negativamente, utilizando-se de adaptação reativa, ou seja, reação aos problemas. Como exemplo Montana e Charnov (1999) nos coloca o seguinte: Um exemplo de uma organização que assumiu responsabilidade social foi visto em San Diego quando a Universidade da Califórnia decidiu estabelecer um outro campus. A universidade descobriu que havia grupos raciais e religiosos envolvidos em um empreendimento imobiliário caro e exclusivo por perto. Já que muitos dos professores do campus estariam sujeitos a humilha- ção e a rejeição em sua procura por uma casa, a administração da universidade decidiu tomar uma atitude mesmo não havendo nenhuma exigência legal para tanto. Os bancos locais foram contatados e informados de que nenhum departamento da universidade faria negócios com qualquer instituição financeira que recusasse o financiamento de casa aos funcionários da universidade baseado em discriminação. A universidade foi além e informou ao governo local que construiria a filial em outra parte do estado se não tivesse alguma segurança de que o empreendimento imobiliário estaria aberto a todos os candidatos financeiramente qualificados, independente de raça e religião. O governo local deu-lhe essa segurança, e o novo campus se tornou uma instituição fora de série. 6.3ABORDAGEM DA SENSIBILIDADE SOCIAL – Supõe que as empresas não têm apenas objetivos econômicos e sociais, mas precisa também se antecipar aos problemas sociais do futuro, numa adaptação proativa. Uma empresa com sensibilidade social procura o efetivo envolvimento com a comunidade e encoraja seus funcionários a fazerem o mesmo. Além de cumprir as leis vigentes, também apoiará ativamente a adoção de nova legislação que Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine satisfaça as necessidades sociais. Dos três métodos descritos, esse é o que mais exige das empresas, pois propõe que se antecipe aos problemas do futuro e responda agora a esses problemas, antes que se tornem evidentes. Deste modo, a empresa pode precisar fazer uso de recursos organizacionais, levando a um impacto negativo nos lucros. Vejamos outro exemplo de Montana e Charnov (1999) : Uma das principais ferrovias do sudeste dos Estados Unidos exemplificou a abordagem da sensibilidade social no final doa anos 70, quando empregou um cientista que estuda movimentos, para analisar os movimentos encontrados em cada atividade na ferrovia. A empresa queria uma classificação em termos de movimentos musculares para que pudesse colocar indivíduos com deficiências físicas em cargos onde pudessem trabalhar e fazer uma contribuição à ferrovia como funcionários produtivos. O sistema de classificação permitiu à empresa encontrar empregos específicos para pessoas deficientes. Isso não era exigido por lei, mas sim pelo desejo da empresa de beneficiar a todos: à empresa por adquirir funcionários valiosos e dedicados, ao indivíduo por conseguir emprego; e à comunidade pela adição de trabalhadores produtivos e pagadores de impostos. Abordagem da Obrigação Social Abordagem da Reação Abordagem da Sensibilidade Figura 1. As três abordagens da responsabilidade social Fontes: Baseado em Montana e Charnov, 1998. p. 36; Donnelly et al., 2000. p. 86-89. Já na visão de Chiavenato(1999 a, b) as empresas têm quatro tipos de envolvimento com a responsabilidade social, denominando-os de: 6.3.1 Estratégia obstrutiva – A empresa só tem responsabilidade econômicas, portanto, rejeita as demandas sociais. 6.3.2 Estratégia defensiva – A empresa só deve assumir as responsabilidades legais, ou seja, assumir as responsabilidades econômicas o mínimo legalmente exigido. 6.3.3 Estratégia acomodativa – A empresa deve fazer o mínimo exigido eticamente e dessa forma assume responsabilidades econômicas, legais e éticas. 6.3.4 Estratégia proativa – A empresa toma liderança nas iniciativas sociais e assume voluntariamente responsabilidades econômicas, legais, éticas e espontâneas. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 39 A responsabilidade social das empresas Estratégia Proativa Estratégia Acomodativa Responsabilidades espontâneas e voluntárias: Assume responsabilidades econômicas e legais e éticas e espontâneas. Toma liderança nas iniciativas sociais. Responsabilidades éticas: Assume responsabilidades econômicas e legais e éticas. Faz o mínimo eticamente. Estratégia Defensiva Responsabilidades legais: Assume responsabilidades Estratégia Obstrutiva Responsabilidades econômicas: Assume responsabilidades econômicas apenas. Exigência Legal Fig. 2 - Comprometimento da empresa quanto à responsabilidade social 40 7 O PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES SOCIAIS O processo pelo qual uma organização administra suas ações sociais, independentemente do método adotado, tem duas fases distintas: a fase de ação e a fase de avaliação. 7.1 A fase de ação 7.1.1 Análise da situação e o estabelecimento de padrões - O primeiro passo em qualquer projeto de ação social, consiste em realizar uma análise situacional, onde comparamos o “o que é” e “o que deveria ser”. Uma vez identificada a necessi- dade social, devemos definir o padrão de desempenho, pelos quais identificaremos quando o problema foi solucionado. Muitas vezes isto não é possível, pois os padrões de desempenho não se prestam a uma definição quantitativa, e suas soluções propostas serão afirmadas em termos vagos. 7.1.2 Geração e seleção de alternativas – Somente a fase anterior é que gera caminhos alternativos de ação. As soluções podem vir de funcionários da empresa, da comunidade, de membros do governo e até de especialistas contratados como Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine consultores. Após criada uma lista de alternativas, as mesmas devem ser avaliadas com base em três perguntas básicas. 1. Esta opção resolve o problema? 2. A empresa tem recursos para esse caminho de ação? 3. Quais as conseqüências dessa ação? Se a resposta for negativa para qualquer dessas perguntas, a opção será rejeitada. A questão de custos deixa claro que pode não haver opção aceitável para a empresa, pois alguns problemas sociais vão além das possibilidades da empresa. Para responder a terceira pergunta podemos ativar um teste piloto onde se preciso o programa poderá ser revisado e melhorado. 7.1.3 Implementação e avaliação – Esta última etapa consiste na implementação por completo do programa proposto e, no momento oportuno realizar uma avaliação. 7.2 FFase ase de aavaliação valiação A avaliação das atividades sociais de uma empresa é denominada de auditoria social, onde é examinado o total das ações organizacionais que dizem respeito à sensibilidade social e faz uma avaliação formal da eficácia e da eficiência na satisfação das metas dos programas sociais. É óbvio que algumas empresas, tendo um compromisso maior com os problemas sociais, farão maiores esforços e estarão mais envolvidos na solução dos referidos problemas. 7.2.1 Abordagem do inventário – Neste caso a administração fornece ao público uma listagem de suas ações durante um período específico – no mínimo um ano, visando dar à empresa uma boa reputação junto a comunidade, ou simplesmente um parágrafo no relatório anual aos acionistas. Trata-se do método mínimo para a auditoria social. 7.2.2 Abordagem do centro de custos – É um método onde não existe somente um resumo dos programas sociais conduzidos pela empresa, mas também uma completa prestação de contas dos custos de cada programa. 7.2.3 Abordagem da administração de programas – Neste caso adiciona uma avaliação do sucesso em satisfazer as metas de respon- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 41 A responsabilidade social das empresas sabilidade social. Esse programa leva os gerentes a avaliarem níveis de sucesso, mas tem recebido críticas, onde seus críticos afirmam que muitas vezes as metas não podem ser formuladas ou medidas com facilidade, sendo a avaliação uma tarefa extremamente difícil. 42 7.2.4 Análise do custo - benefício – Este é o procedimento de auditoria social mais abrangente. Ela procura avaliar os programas por seus custos e pelos benefícios derivados, tornando-se um processo difícil de avaliação, já que supõe que seja possível definir as metas em termos mensuráveis, quantificando tanto os custos quanto os benefícios, e fazendo uma comparação entre os dois. 8 ÁREAS DE ATUAÇÃO DDAA RESPONSABILIDADE SOCIAL Existem algumas áreas de atuação da responsabilidade social, onde muitas organizações se engajam em programas sociais dependendo de seus objetivos organizacionais. Para a maioria das empresas fazerem investimentos em algumas das áreas, a seguir. 8.1 Área funcional econômica – Atuação em atividades como produção de bens e serviços necessários às pessoas, criação de empregos, pagamento de bons salários e segurança no trabalho. Estas atividades indicam uma contribuição na organização da sociedade. 8.2 Área de qualidade de vida – Atuação em atividades relacionadas com a qualidade de vida na sociedade ou redução da destruição ambiental. Produção de bens de alta qualidade, relações em empregados e clientes e esforço para preservar o meio ambiente faz indicadores de que a empresa está empenhada na qualidade geral de vida da sociedade. 8.3 Área de investimentos sociais – Atuação da empresa em investimentos de recursos humanos e financeiros para solucionar problemas sociais da comunidade, através de instituições que tratem da educação, caridade, artes etc. 8.4 Área de solução de problemas – Atuação lidando com solução de problemas sociais da comunidade. A participação no planejamento em longo prazo da comunidade e na condução de estudos para identificar Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine problemas sociais e suas soluções são consideradas como medidas de responsabilidade social. 9 AÇÕES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL As empresas realizam ações de cunho social das mais variadas formas. Procuraremos mostrar algumas destas formas, agrupandoas de acordo com os seus parceiros ou área de atuação. 9.1 Público interno - As empresas que assumem apenas as obrigações ou compromissos legais, tais como, vale transporte, vale refeição, etc, não podem ser classificadas de adeptas da responsabilidade social, mas que cumpre com as obrigações legais determinadas em lei. Veja o que diz o Instituto Ethos sobre este tipo de empresa: ... A empresa socialmente responsável não se limita a respeitar os direitos dos trabalhadores, consolidados na legislação trabalhista e nos padrões da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ainda que esse seja um pressuposto indispensável. Mas a empresa deve ir além e investir no desenvolvimento pessoal e profissional de seus empregados, bem como na melhoria das condições de trabalho... Como exemplo de uma ação desta categoria podemos mostrar o seguinte: A João Fortes Engenharia destina 10% de seus lucros ao Fundo de Integração Empregado Empresa que, além dos benefícios tradicionais, possibilita a participação dos empregados na composição acionaria do capital. Parte dos lucros do exercício é destinada a uma gratificação aos empregados, que são incentivados a converter metade dela em ações da empresa. Entretanto, se assim preferir, o empregado pode recebê-la integralmente, em dinheiro. 9.2 Fornecedores – A escolha dos fornecedores deve ser rigorosa, pois a sua participação e comprometimento implicam no cumprimento de prazos, na escolha de matéria prima ou serviços de qualidade, cuidado com o meio ambiente e mais recentemente a preocupação com a erradicação do trabalho infantil. Segundo o Instituto Ethos a empresa deve ter a seguinte conduta: A empresa que tem compromisso com a responsabilidade social envolve-se com seus fornecedores e parceiros, cumprindo os contratos estabelecidos e trabalhando pelo aprimoramento de suas relações de parceria. Cabe à empresa transmitir os valores de seu código de conduta a todos os participantes de usa cadeia de fornecedores, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 43 A responsabilidade social das empresas tomando-o como orientador em casos de conflitos de interesse... Como exemplo desta atuação social podemos, citar as grandes montadoras de automóveis, como Fiat, Ford, Chevrolet e Wolkswagen que exigem dos seus fornecedores certificados de qualidade da série ISO, onde é permanente a preocupação com o meio ambiente e as condições de trabalho. 44 9.3 Comunidade – Trata-se da contribuição da empresa, através de ações sociais que proporcionam uma melhoria da qualidade de vida na comunidade e a conservação dos seus recursos naturais, pois a comunidade em que a empresa está inserida fornece-lhe infra-estrutura e o capital social representado por seus empregados e parceiros, contribuindo decisivamente para a viabilização de seus negócios. (ETHOS) Nesta área temos grandes contribuições das empresas com suas comunidades, mas como exemplos podemos citar a Fundação Roberto Marinho, com seu projeto de recuperação de monumentos e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, a iniciativa da Xerox de distribuir livros gratuitamente a estabelecimentos de ensino e bibliotecas públicas no nosso país e finalmente temos a Petrobras, que mantém uma parceria com o Governo do Estado do Rio Grande do Norte e ajuda na manutenção do nosso Parque Estadual das Dunas, em Natal. 10 TRABALHO VOLUNTÁRIO – O trabalho voluntário, através do estímulo dos meios de comunicação vem recebendo atenção especial, e atualmente passou a ser um novo requisito na lista das exigências na seleção de pessoal das empresas que possuem responsabilidade social. Também existem aquelas empresas que estimulam a participação de seus empregados nos trabalhos voluntários, pois compreendem o mesmo como um fator de motivação e satisfação das pessoas no seu ambiente de trabalho. A empresa pode efetivar este apoio com a liberação de seus empregados em parte de seu horário de expediente para ajudar organizações da comunidade ou dando incentivos àqueles que participam de projetos de caráter social. 11 GOVERNO E SOCIEDADE – A empresa responsável socialmente deve procurar manter a transparência política e ética nas suas relações com os órgãos governamentais e outras organizações da sociedade, através de um compro- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine misso formal no combate à corrupção e à propina, seja no recebimento ou na oferta. Com relação às contribuições para campanhas políticas, a transparência nos critérios e nas doações para candidatos ou partidos políticos, é um importante fator de preservação do caráter ético da atuação da empresa. Ela também pode ser um espaço de desenvolvimento da cidadania, viabilizando a realização de debates democráticos que atendam aos interesses de seus funcionários. 12 O BALANÇO SOCIAL Para a empresa ter seus princípios éticos de forma clara e pública, podendo lhe trazer confiabilidade e credibilidade no mercado, o balanço social é um bom instrumento para expor de fato as ações da organização à comunidade, como exemplo os custos e investimentos realizados na área social e, assim o grau de importância da empresa com seu papel social. Segundo Hebert de Souza, no seu artigo “Empresa Pública e Cidadã”, publicado na Folha de São Paulo, em 1997, “o balanço social vem recebendo bastante evidência, por favorecer a empresa na hora da tomada de decisão pelos seus acionistas, fornecedores, consumidores e investidores”. 13 OS CONSUMIDORES E A RESPONSABILIDADE SOCIAL A pesquisa Responsabilidade Social das Empresas - Percepção do consumidor brasileiro mostrou o quanto o consumidor brasileiro é influenciado pelas práticas das empresas. Para cada entrevistado foi perguntado sobre qual atitude de uma empresa faria com que ele comprasse mais os produtos da empresa e recomendaria a mesma aos seus amigos. Os resultados estão nos quadros 1 e 2 a seguir : Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 45 A responsabilidade social das empresas Quadro 1 - Brasil: atitudes valorizadas pelo consumidor Qual das seguintes atitudes de uma empresa estimularia você a comprar mais os seus produtos e recomendar aos seus amigos? Contrata deficiente físicos Colabora com escolas, postos de saúde e entidades sociais da comunidade. Mantém programas de alfabetização para funcionários e familiares Adota práticas efetivas de combate à poluição Mantém um excelente Serviço de Atendimento ao Consumidor Cuida para que suas campanhas publicitárias não coloquem em situações constrangedoras, preconceituosas ou abusivas. Apóia campanhas para erradicação do trabalho infantil Mantém programas de aprendizagem para jovens na faixa de 14 a 16 anos Realiza campanhas educacionais na comunidade Contrata ex-detentos Participa de projetos de conservação ambiental de áreas públicas Libera seus funcionários no expediente comercial para ajudar em ações sociais Promove eventos culturais 46 46% 43% 32% 27% 24% 23% 22% 20% 16% 15% 9% 8% 6% Fonte: Pesquisa Ethos, Valor Econômico e Indicator Opinião Pública (2000) Quadro 2 - Brasil: atitudes desvalorizadas pelo consumidor Qual destas atitudes da empresa fariam com que você não voltasse jamais a comprar seus produtos ou usar seus serviços? Propaganda enganosa Causou danos físicos ou morais aos seus trabalhadores Colaborou com políticos corruptos Vendeu produtos nocivos à saúde dos consumidores Coloca mulheres, crianças e idosos em situações constrangedoras em suas propagandas Usa mão-de-obra infantil Polui o ambiente Sonega impostos Provoca fechamento de pequenos empresários regionais/locais Subornou agentes públicos Fonte: Pesquisa Ethos, Valor Econômico e Indicator Opinião Pública (2000) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 49% 43% 42% 32% 32% 28% 27% 22% 13% 11% Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine Isso comprova que o consumidor brasileiro está passando a valorizar a empresa pelos seus investimentos sociais e em cima deste fato, está passando a privilegiar nas suas compras as empresas que tenham uma postura de responsabilidade social e volumes de investimentos sociais significativos, gerando mais vendas e lucros para essas empresas. Portanto, uma empresa com boa imagem perante a sociedade tornase mais conhecida e ao tornar-se mais conhecida, pode vender mais, ao vender mais aumenta seu valor patrimonial e sua competitividade no mercado. 14 OS GUARDIÕES DA ÉTICA Um cargo que tem aparecido cada vez mais nos organogramas das empresas da Europa: o deontologista. O deontologista é o executivo que tem a função de guardião da ética da empresa, formalizando regras de boa conduta e instituindo regulamentos para os empregados. Ele está sempre atento às ações na Justiça por parte dos consumidores, defensores dos direitos humanos ou do meio ambiente. Também é preocupado com as interrogações dos acionistas sobre o futuro moral das organizações nas quais investem seu dinheiro. Dois fatores devem provocar a proliferação do novo cargo nas organizações pelo mundo. Primeiro, o aumento da concorrência num mundo cada vez mais globalizado e no qual a ética seria um diferencial; segundo, a eclosão de escândalos, como o protagonizado pela sétima maior corporação americana, a Enron, que foi à falência do dia para a noite, deixando um rastro de destruição. As empresas agora fazem a seguinte aritmética: Lucro + Responsabilidade Social = Lucro Justificado. 15 CONCLUSÕES Percebeu-se neste trabalho, que nos demais paises do mundo, os conceitos de responsabilidade social empresarial já são discutidos há mais tempo do que no Brasil, onde o movimento de valorização deste tema passou a ganhar forte impulso na década de 90. Mostrou-se que embora a primeira obrigação das empresas seja a obtenção de lucros, estas podem, ao mesmo tempo, contribuir para o cumprimento de objetivos sociais e ambientais mediante a integração da responsabilidade social. Vale lembrar, que as atuações sociais são atitudes louváveis e devem ser usadas para a valorização da empresa no mercado. No entan- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 47 A responsabilidade social das empresas to, essa valorização deve associar os valores e objetivos da empresa à ética, gerando resultados que irá, ao mesmo tempo, colaborar para a melhoria das condições sociais da comunidade onde ela está inserida, pois deste modo serão mais valorizadas pelos consumidores e investidores. Esta idéia de responsabilidade deve ser disseminada em toda parte, principalmente junto aos administradores e gerentes do futuro, pois a sociedade brasileira espera que as empresas cumpram um novo papel no processo de desenvolvimento: sejam agentes de uma nova cultura e, sejam também construtores de uma sociedade melhor. NO NOTT AS 2 Pesquisa Ação Social das Empresas, IPEA: http://www.ipea.gov.br/asocial/ 3 Economista e Prêmio Nobel de Economia 4 Professor da Universidade Estadual do Arizona 48 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Pio Marinheiro de Souza Neto, Carlison do C. Barbosa ereira e Maria Célia T. Amorim Dantas Lucineyy Macedo D. PPereira Lucine 16 REFERÊNCIAS CANUTO, Otaviano. O valor da responsabilidade social das empresas. Jornal Valor. São Paulo, 28 ago. 2001. CHIAVENATO, Idalberto. Administração nos novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999a. _________. Introdução à teoria geral da administração. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999b. EICHENBEG, Fernando. Os guardiões da ética. Revista Exame. São Paulo, n. 91, maio, 2002 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Pesquisa ação social das empresas. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/asocial/>. Acessos entre: maio/jun. 2002. INSTITUTO ETHOS DE EMPRESAS E RESPONSABILIDADE SOCIAL, <http:// www.ethos.org.br>. Acessos entre: fev./jun. 2002. MAXIMIANO, Antônio César Amaru. Teoria Geral da Administração – Da escola científica à competitividade na economia globalizada. São Paulo: Atlas, 1999. MONTANA, Patrick J.; CHARNOV, Bruce H. Administração. São Paulo: Saraiva, 1999. SOUZA, Herbert de. Empresa Pública e Cidadã. Folha de São Paulo, São Paulo, [s.d.],1997. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 49 50 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Administração A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial 51 Elisângela Cabral de Meireles1 1 Mestre em Administração na área de Gestão e Políticas Publicas (UFRN). Especialista em Comércio Exterior e Globalização (UFRN). Especialista em Globalização e Economia Regional (UFRN/UNICAMP). Professora do curso de Administração (Sistema de Informação), Administração (Comercio Exterior), Turismo e Serviço Social da FACEX. Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte, nos cursos superiores de Comércio Exterior, Automação Industrial e Tecnologia Industrial. E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial Exportation as an alternative for the company development 52 RESUMO Este artigo tem por objetivo enfocar a atividade exportadora como uma possível alternativa para o desenvolvimento das empresas. Ressalta que no atual mundo global há uma tendência para a busca de novos mercados, além dos mercados domésticos, e que essa necessidade de inserção em novos mercados enquadra-se perfeitamente ao acirramento da competitividade internacional. Sendo assim, são destacados os seguintes aspectos na discussão: a atividade exportadora observada como uma atividade viável para as empresas, a influência da política industrial nas ações estratégicas empresariais para o comércio exterior e a interação entre políticas industriais e políticas públicas de incentivo ao comércio exterior. Traz à tona elementos relevantes à questão abordada, tornando evidente que o comércio mundial mostra-se cada vez mais alinhado ao fenômeno da globalização, que, por sua vez, não se manifesta somente na esfera das relações comerciais, mas, também nas relações financeiras, produtivas, econômicas e institucionais, exigindo políticas e mecanismos capazes de fomentar essas relações que se interligam e que agem, efetivamente, sobre o comportamento estratégico empresarial no mercado. ABSTRACT This article has the objective of highlighting exportation as a possible alternative for the development of companies. It also shows that in the current globalized world there is a tendency to search for new markets, besides the domestic ones. This need of getting into new markets fits perfectly to incitement of international competition. The following aspects were detected: the observed activity of exportation as something viable for the company, and the influence of industrial policy in the company strategic actions for international trade. These observations bring out relevant elements to the question, highlighting that the world trade shows itself as fit for the phenomenon of globalization, which does not appear only in the commercial relations sphere, but also financial, productive, economic and institutional ones. So it needs capable policies and mechanisms to foment these relations which are linked, and that act effectively over the company strategic behavior in the market. PALAVRAS-CHAVE Desenvolvimento; competitividade; exportação; comércio internacional. KEY-WORDS Development; competitiveness; exportation; international trade. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles 1 INTRODUÇAO A atividade exportadora, em foco central neste artigo, apresentase na atualidade como a vertente mais destacada das relações de comércio internacional, sendo objeto de diversas discussões, pesquisas e propostas de ações, quer seja de governos ou de empresas que vislumbram nas exportações possibilidades de desenvolvimento. O interesse no trato dessa questão data de longo tempo, desde a Teoria das Vantagens Absolutas de Adam Smith e da Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo2 (Maia 2000, p. 229-230). Contudo, a realidade atual é outra, diversa da apresentada por autores como Smith e Ricardo. Essa nova realidade passa a ser norteada pela internacionalização do capital, do investimento e das relações produtivas, que permitem a livre mobilidade dos fatores de produção no âmbito mundial, fazendo com que a atividade exportadora aconteça de forma reconfigurada, dos pontos de vista tecnológico, político, social, econômico e até mesmo cultural.Essa reconfiguração, certamente, relaciona-se à aproximação comercial entre os países por meio dos blocos econômicos e dos acordos por eles constituídos, podendo ser observada sob dois prismas: países que se unem em torno de condições comerciais estabelecidas em comum acordo; e empresas que não mais estão restritas a ocuparem espaços nos seus países de origem, mas deslocam-se para produzir e comercializar em outros locais que apresentem condições favoráveis na unidade do tempo em que estejam vigentes essas vantagens. Em concomitância a essas mudanças no mundo atual, alteram-se os modelos de competição e as formas de inserção em novos mercados. As novas estratégias de acesso aos mercados (inclusive ao mercado exportador), e as vantagens competitivas passam a ser cada vez menos duradouras, tendo em vista essas alterações. Assim, pode-se até mesmo considerar que a relação entre competitividade e sobrevivência no cenário do comércio internacional assume quase que o mesmo sentido, onde governos e empresas caracterizam-se como os principais atores. Ambos reconhecem a existência de diversas possibilidades competitivas. Para alcançá-las, procuram articular-se em ações, as quais sofrem influência de diversas formas de desigualdades, quer sejam provocadas pelas relações entre países, regiões, pela capacidade de produção e de inserção das empresas, ou ainda, pela atuação nas ações desenvolvidas pelo setor público para fomento da atividade de comércio Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 53 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial 54 internacional. Ao que parece, o setor público dos diferentes países, independentemente das características de fortalecimento ou mesmo de fragilidade das suas políticas macroeconômicas tem empreendido políticas voltadas ao incremento do comércio internacional, visando o aumento das exportações. No caso do setor público brasileiro, em especial, essas políticas se manifestam pelos vários programas federais de incentivo à exportação, bem como por mecanismos auxiliares capazes de colaborar na sua implementação. Tanto os programas federais como os mecanismos a que se faz alusão têm a finalidade de pôr à disposição das empresas uma série de serviços, incluindo informações sobre as legislações brasileira e internacional, sobre transferência de tecnologia, possibilidades de parcerias, formação de consórcios, oportunidades de negócios, linhas de financiamento, seguros de crédito, incentivos fiscais, calendário de eventos (feiras, exposições no Brasil e no exterior), estudos de prospecção de produtos selecionados para mercados definidos; cadastro de entidades de classe e câmaras de comércio, entre outros. Todavia, mesmo diante de toda essa possibilidade de incentivo e de acesso ao comércio internacional visando o incremento das exportações brasileiras, percebe-se dificuldades na condução e aplicabilidade dessas políticas, e ao que parece, essas dificuldades são de várias ordens, a exemplo da coexistência de vários mecanismos com a mesma finalidade, ou ainda, uma dificuldade que se mostra evidente - a existência de desigualdades regionais, portanto diferenciadoras, quanto ao acesso às diferentes linhas de ação.Uma mostra bastante clara quanto a essas diversidades está na implementação desigual dos Programas de Incentivo às Exportações visto que não são disponibilizados em todas as Unidades da Federação. Em relação a essa diferenciação de alcance em torno de ações de fomento destaca-se a proposição de Kon (1998), quando ressalta que uma vez existindo fatores regionais diferenciadores, dos pontos de vista político e econômico, esses terminam por acentuar as dificuldades de acesso a alguns mecanismos de desenvolvimento; já, Rosa (1996) destaca ser o País um sistema integrado, onde cada região faz parte desse sistema e interage, influenciando e sendo influenciada por cada subsistema, embora algumas sejam mais dinâmicas que outras e tenham maior poder de determinação das características do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles sistema, como um todo. Ressaltados esses obstáculos que surgem a partir da diferenciação regional dessas políticas de incentivo ao comércio exterior, torna-se imprescindível destacar o posicionamento que as empresas precisam adotar no cenário competitivo, independentemente de serem oriundas de regiões com maior ou menor desenvolvimento econômico. De forma geral, as empresas precisam se reposicionar e adotar condutas e estratégias sob uma perspectiva global, apoiadas no acesso aos mercados financeiros e de capital, nas tecnologias de ponta, desconsiderando até mesmo onde estejam situados seus postos de comando. Benjamin (1998, p. 29) destaca essa questão quando enfatiza que o atual mundo globalizado conduz a uma nova tendência onde grandes empresas, capitais e mercadorias dispõem de liberdade para se movimentarem. Nessa nova tendência, as empresas passam então a valorizar o contato direto, como uma forma de agilizar os processos de aprendizagem, de identificação de novos negócios e oportunidades, passam a delinear novas estratégias (estratégias essas cada vez mais voláteis). Importante destacar que, nesse novo cenário, há nítidas tendências à formação de zonas mais densas de comércio em torno dos três pólos da Tríade (Estados Unidos, Japão e Europa), portanto levando à polarização do intercâmbio mundial, com o crescimento da marginalização dos países que não compõem esse Grupo. Observa-se também o elevado nível alcançado pelo comércio mundial diretamente relacionado aos IED’s - (investimentos diretos externos), assim como uma distinção cada vez menor entre o que é “doméstico” e o que é “estrangeiro”, com a concorrência entre companhias com poder de força, tanto nos mercados internos como externos, isso em decorrência dos investimentos estrangeiros e da liberalização negociada do comércio exterior. Há que se considerar, portanto: a vigente substituição do paradigma de vantagens comparativas pelo de concorrência ou competição internacional, onde a competitividade de cada um designa quem são os perdedores ou ganhadores dos processos produtivos e econômico. Portanto, ao que parece, a competição passa a se configurar em escala global, onde as empresas estão, permanentemente, reestruturando geograficamente suas atividades e mensurando suas ações e ganhos pelo nível de competitividade presente nas outras empresas. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 55 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial Dessa discussão que envolve a participação das empresas nesse cenário competitivo dos blocos e acordos econômicos regionais, composto por paises, cujos interesses são das empresas públicas e privadas, interesses esses, manifestados através das suas estratégias, vale acrescentar a formulação de Chesnais (1996, p. 232), enfatizando que: A palavra–chave desse regime de economia internacional é ‘competitividade’(...). 56 Sendo assim, mostra-se preponderante dar atenção ao conjunto de políticas macroeconômica e industrial que permitem ao Estado meios para interfirir e auxiliar na direção e rítmo em que as estratégias empresariais reagem e se ajustam a um dado quadro de competitividade global. Todas essas formulações apresentadas cumprem, portanto, a finalidade de evidenciar que as relações político-institucionais e econômicofinanceiras globais influenciam, significativamente, e de forma desigual na adoção de políticas e estratégias de atuação nacional e regional, repercutindo para as empresas, principalmente quanto à sua capacidade de inserção em novos mercados externos. 2 A ATIVID ADE EXPOR TIVIDADE EXPORTTADORA TIV COMO ALTERNA ALTERNATIV TIVAA VIÁVEL Ao que parece, de uma forma geral a atividade exportadora está relacionada a uma permanente adequação a novos procedimentos e até mesmo a uma mudança de mentalidade, pois, como bem exposto por Kotler (1974), a tendência mais comum entre o empresariado é a de preferir o mercado nacional por ser mais simples e seguro. Portanto, qualquer mudança na mentalidade do empresariado, vista de uma forma geral, quanto à decisão de exportar, só ocorrerá se esse obtiver conhecimento sobre os procedimentos necessários e as vantagens em exportar. O mesmo autor destaca que, quando uma empresa opta pelo mercado externo, faz-se necessário considerar dois aspectos; se as oportunidades do mercado externo são boas o suficiente, mesmo frente aos riscos e aos custos de produção e de inserção em um novo mercado; e, se a empresa possui recursos e condições para responder às exigências do mercado externo. Ao que parece, são inúmeras as vantagens em exportar: abertura de novos mercados, acesso a novas tecnologias, aumento de vendas, diversificação dos canais de distribuição, entre outras. Suzuki (1992), aponta para uma vantagem, em es- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles pecífico; a de que a atividade exportadora torna a produção perene quando realizada continuamente, passando a independer das sazonalidades e instabilidades do mercado interno, o que permite ao empresário exportador um planejamento de longo prazo. Com esse pensamento, voltado para o comércio exterior, parece concordar Jaccottet (apud Lacerda, 2000, p. 30): o empresário tem que entrar para ficar. Ele vai ser mais competitivo no mercado interno, sendo forte no mercado externo. Sendo assim, essa autora evidencia a relação entre produtividade e aquecimento da produção interna e externa, o que traz à superfície questões tais como a consolidação de espaços no mercado interno como evidenciado por Barney (apud Wolff e Pett, 2000, p. 37) de deter capacidade e conhecimentos tecnológicos suficientemente desenvolvidos, possuir volume de recursos e capacidade de produção. Há, portanto, a evidência de um aspecto bastante comum entre as empresas que exportam: uma consolidação nas vendas dos seus produtos para o mercado interno, anterior à iniciativa de exportar seus produtos, o que faz lembrar Johanson & Vahlne (apud Wolff e Pett, 2000, p. 35), quando enfatizam que o sucesso alcançado no merca- do doméstico habilita e incentiva a empresa a buscar competitividade em mercados internacionais que possam parecer similares ao mercado doméstico e portanto continuar a aquecê-lo. Para quem quer exportar, parece ser o passo inicial o conhecimento do que é exportação e as diferenças que existem entre realizar uma venda dentro do mercado interno e uma venda para um outro país, isto porque, embora que a inserção em ambos os mercados represente uma ação de cunho comercial, apresentam características diversas, portanto, exigindo posicionamentos e escolhas diversas. Segundo Galante (apud Sena, 1999, p. 8): o empresário que nunca exportou antes, costuma se assustar com qualquer problema. Ele não sabe como treinar a equipe da empresa para essa nova atividade, desconhece os caminhos para a mercadoria chegar ao país interessado na compra e, em alguns casos, não tem nem os conhecimentos necessários para elaborar as perguntaschave para o parceiro comercial.( ) No exterior, ele precisa conhecer a legislação do outro para despachar a Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 57 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial mercadoria, além dos problemas operacionais, como contratar transportes e armazéns além de adequar o produto para ser vendido lá fora.(...) O empresário precisa aprender como se fosse abrir um negócio novo. Por sua vez, NOVOS... (1999, p. 7), afirma que: 58 o novo exportador precisa estar consciente de que o mercado externo não é solução para problemas imediatos. A penetração no mercado internacional requer um esforço de promoção comercial e o desenho de uma estratégia de marketing, que não podem ser perdidos pela falta do produto ou por problemas burocráticos da empresa. Faz-se importante frisar no âmbito dessa discussão que, em geral, as empresas exportadoras apresentam perfis distintos, que variam diretamente às diferenciações regional e nacional. O que significa dizer que as diferenças de atuação e poder de inserção em novos mercados podem ser vistos sob a ótica de empresas nacionais, situadas nas varias regiões do país. No tocante à realidade brasileira, essa afirmação parece pertinente uma vez que existem visíveis diferenças regionais quanto à participação das empresas no cenário exportador. Contudo, mesmo que diante das desigualdades de atuação das empresas exportadoras brasileiras, alguns aspectos são comuns a todas elas, destacando nesse contexto os aspectos burocráticos (como anteriormente citados). Contudo não se faz desnecessário relembrar que para a empresa brasileira que deseja exportar, a atividade exportadora exige o atendimento de algumas exigências operacionais básicas, que devem vir imediatamente atreladas à decisão de exportar. Sem o cumprimento dessas exigências, a atividade exportadora torna-se inviável. Tais exigências constituem-se na alteração do seu contrato social na Junta Comercial, na providência dos registros de exportadores e importadores da Secretaria de Comércio Exterior - (Secex), no conhecimento da legislação básica sobre o assunto. Esses são apenas alguns dos requisitos básicos, portanto imprescindíveis, mas a atividade de exportação está relacionada a muitos outros aspectos não menos importantes para a consolidação do processo Como exemplos, pode-se destacar: o conhecimento básico da realidade sócio-econômica, política e cultural do país para onde se pretende exportar, a disposição de ca- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles pacidade financeira e creditícia para viabilizar os negócios de exportação, o desenvolvimento de estrutura logística para encaminhamento dos produtos, entre outros. Para o desenvolvimento dessas ações, o ponto de partida, certamente está bastante relacionado às ações desenvolvidas pelo setor público, embora, ao empresariado, não caiba esperar pelo Estado para incentivos e desenvolvimento da atividade exportadora, como destacado por Ilha (2000, p. 9): Há questões cuja solução não pode prescindir somente da participação dos empresários. Temos de estar mobilizados e presentes quando forem discutidas as condições de acesso à tecnologia, equipamentos e financiamentos. Contudo, ao que se observa, parecem haver algumas dificuldades de articulação entre as partes envolvidas - Estado e empresa. Isso fica bastante evidente na afirmação de Werneck (2000), de que, no caso brasileiro, a principal dificuldade enfrentada para a execução de projetos está centrada na desconfiança dos empresários em relação ao Governo, às associações de classe e à existência de mais de um programa de apoio às exportações. Essa afirmação deixa transparecer a existência de um con- flito interburocrático em um ambiente onde existem várias instituições e diversos mecanismos de apoio às exportações que podem não estar em consonância aos interesses do empresariado no tocante ao desenvolvimento dessa atividade na empresa. 3 A POLÍTICA INDUSTRIAL E A SUA RELEVÂNCIA SOBRE AS ESTRATÉGIAS EMPRESARIAIS DE COMÉRCIO EXTERIOR. Uma das diretrizes da política industrial deve ser a promoção da competitividade, segundo formulação de Piza (2000, p. 124). Na tentativa de discutir a competitividade e a relação desta com a existência de uma política industrial, a autora inclui um novo elemento na discussão – a concorrência. Sendo assim, afirma que concorrência passa a ser então a interação das unidades econômicas em busca do lucro e competitividade, esta última um atributo da concorrência. Continua, a partir dessa lógica, evidenciando que cabe às empresas desenvolverem seu potencial competitivo pelas inovações, sobretudo as que acontecem do ponto de vista tecnológico. Para isso, é necessário que exista um ambiente competitivo favorável às empresas para desenvolverem seu potencial, além do conhecimento Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 59 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial 60 das condições específicas da indústria considerada e do ambiente econômico em sentido amplo. Para a autora, competitividade não se constrói buscando destruir suas estruturas, mas explorando ao máximo seu potencial inovador. Outra proposição bastante pertinente, em relação à política industrial, competitividade e ações empresariais, embora que apresentada em sentido mais amplo no que tange a essa questão foi formulada por Dunning e Narula (apud Piza, 2000, p. 122).Esses autores enfatizam que políticas industriais que funcionaram em um país não irão necessariamente funcionar em outro, dado que eles denominam path-dependence3. Utilizam, ainda, outros argumentos para justificar a possibilidade de realmente existir essa capacidade desigual de atuação, entre eles: a natureza idiossincrática de cada país, bem como de suas firmas, e a linha divergente de políticas, inclusive políticas industriais, que cada país segue individualmente. Importante frisar que qualquer que seja a política industrial, essa deve estar de acordo com as estratégias das empresas, dependendo sua eficácia da capacidade de influenciar suas decisões (Piza, 2000, p. 125). Com essa discussão parece con- cordar Ferraz, Kupfer e Haguenauer (1995, p. 333) quando destacam que: Redefinem-se os fatores determinantes da competitividade, fazendo emergir novas empresas de sucesso e tornando obsoletas aquelas incapazes de evoluir e adaptar-se ao novo ambiente. Tal afirmação, se deslocada para o âmbito da relação entre esses elementos (entre os quais a influência da política industrial) e o comércio exterior, parece proceder, se confrontada à formulação de Chesnais (1996, p. 234), quando esse autor enfatiza que competir internacionalmente não implica somente desenvolver políticas de exportação, mas sim adotar medidas dentro do próprio país para que essas, então, possam acontecer. Até então, foram apresentados elementos tais como a influência de políticas industriais. Mas, como entender políticas industriais atreladas à atividade empresarial, se não forem observadas como um subsistema no âmbito das políticas públicas? Para responder a tal questionamento, toma-se por referência, a formulação de Abranches (1998, p. 217-218) que alerta para o fato de que está sendo gerado um novo padrão de articulação, onde o Es- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles tado, que anteriormente se dedicava a suprir todos os pontos do processo de articulação, atualmente o faz utilizando-se de arranjos onde a presença estatal está cada vez mais regulatória do que interventiva. O mesmo autor apresenta uma definição pertinente, onde afirma: Políticas públicas são aplicações mais ou menos bem-feitas dos paradigmas aplicados à economia e à sociedade. São vistas como soluções públicas para problemas coletivos ou privados. Para Lafer (1999, p. 227), políticas de comércio exterior e políticas industriais ambientadas em uma economia aberta constituem-se como políticas que possuem as mesmas características. Isto porque em uma economia aberta dois aspectos devem ser considerados: o mercado interno como forte estímulo à realização de investimentos e o cenário mundial que desestimula a diferenciação entre o que seja mercado interno e mercado externo. Nas palavras do autor (idem, p. 229): A nova modalidade de política industrial e de comércio tem como princípio diretivo a competitividade; em outras palavras, a conformação de estruturas produtivas que respondam a padrões internacionais de preço e qualidade. Os pro- gramas nos quais essa política se materializa trabalham assim na dupla dimensão de adensamento e internacionalização das cadeias produtivas, ou seja, buscam fomentar a um só tempo a substituição competitiva de importações, seletivamente, e a expansão/diversificação das exportações. No tocante, às políticas de comércio exterior que parecem apresentar as mesmas características das políticas industriais, parece oportuna a formulação de Coutinho e Ferraz (1994, p. 90), quando destacam que a política de comércio exterior mais compatível com os condicionantes internacionais deve estar centrada na promoção das exportações, com condições sistêmicas, alinhadas com a operacionalização de mecanismos modernos para deter práticas desleais de comércio e falhas de mercado. Assim, destacam: As medidas destinadas a suprir falhas de mercado e a compensar a atuação de governos estrangeiros sobre suas exportações constituem a política de promoção de exportações strictu senso. São elas: i) aperfeiçoamento e efetivação de um sistema de financiamento de exportações, incluindo a provisão de seguros e garantias, compensando Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 61 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial falhas de mercados financeiros e de seguros internacionais, mundialmente reconhecidas, bem como a atuação de governos estrangeiros nessa área; ii) reestruturação e valorização do aparato institucional público de gestão do comércio exterior brasileiro; iii) desenvolvimento de um sistema de difusão de informações e de marketing dos produtos nacionais. 62 Lafer (1999, p. 227) destaca: Na execução dessa política, o desafio está em compensar as ‘falhas de mercado’, sem incorrer nas ‘falhas de governo’. Quanto a essas últimas, a preocupação está em se desenvolver políticas industriais e de comércio exterior onde a presença do Governo seja mais ativa. Em relação a essa afirmação, parece oportuno incluir alguns objetivos, considerados essenciais por Frichtak e Pessoa (1999, p. 306) para o desenvolvimento das exportações. São eles: o crescimento do volume de produção direcionado ao mercado externo, o aumento do valor unitário da atual pauta, por meio da diferenciação e agregação de valor aos produtos exportados e a mudança de sua composição, pela introdução de novos produtos a partir de plataformas de exportação em setores tecnologicamente avançados4. Parece ficar evidente em todas essas formulações, a importância que o Estado desempenha na condução das políticas de estímulo ao comércio internacional, sobretudo no que tange à eliminação de entraves que possam dificultar tal objetivo, assim como fica evidente também a relação entre política industrial e política de comércio exterior, essenciais para que o empresariado atue, formulando, implementando e avaliando estratégias viáveis ao seu negócio. 4 CONSIDERAÇOES FINAIS Tendo em vista as formulações expostas pode-se elencar algumas considerações de caráter primordial. A primeira, dentre elas, referese à verticalização por parte das influências do cenário externo, configurado sob uma perspectiva global e que repercutem intensivamente sobre as estratégias formuladas pelas empresas (públicas e privadas), e, sobretudo, em relação às empresas privadas repercutem nas suas atividades de comércio, principalmente no que tange aos negócios realizados no âmbito do comércio internacional. Outra consideração, bastante interessante, e que, de certa forma, se confronta à primeira é a de que, no âmbito empresarial observa-se a crescente formação horizontal entre as empresas, uma vez que todas elas Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Elisângela Cabral de Meireles têm, mesmo que em graus diferentes, acesso às novas tecnologias, informação, capacitação entre outras variáveis que influenciam significativamente na competitividade das empresas. Surge, portanto, uma afirmação conclusiva em relação a essas duas primeiras considerações; se por um lado as empresas podem ser favorecidas no âmbito competitivo pela maior facilidade de acesso à modernidade, por outro, a conjuntura global, que gera ao mesmo tempo acesso e exclusão, obriga as empresas a buscarem um diferencial, quer seja no âmbito do que é produzido, ou mesmo no âmbito do comércio, a exemplo de buscar vantagens acessando mercados externos. Outra questão a ser relembrada: do ponto de vista global, a busca de vantagens acontece tanto no seguimento publico como no seguimento privado, pois Estado e empresas procuram posicionar-se frente às mudanças aceleradas que demarcam as posições competitivas a serem ocupadas. Essa questão nos remete à outra: a proporção direta entre a interação desses dois seguimentos e a eficácia das estratégias escolhidas, uma vez que o setor privado alcançará maior inserção se obtiver o apoio do setor público por meio de políticas e mecanismos de fomento. Em se tratando de eficácia nas estratégias empresariais associadas à atividade exportadora, há, portanto, uma sensível relação entre o fomento de políticas industriais e políticas de comércio exterior (que assumem o mesmo significado) e o aumento da competitividade das empresas.. Essa eficácia, se alcançada por parte das empresas e do Estado por meio das suas estratégias e ações, repercute na melhoria do posicionamento macroeconômico do país. NO NOTTAS 2 A Teoria das Vantagens Absolutas de Adam Smith (1776) defende a idéia de que cada país deve comercializar internacionalmente produtos nos quais possuam vantagens absolutas na produção. A Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo (1817) surge, de certa forma, como tentativa de preencher a lacuna deixada pela Teoria de Adam Smith, sobretudo em relação à possibilidade de um país não possuir nenhum produto com vantagem absoluta, do ponto de vista da comercialização internacional. Assim, o autor sugere como alternativa deslocar os recursos para a produção de um dado produto, em detrimento de outro, para assim, tornan- do-se competitivo nesse produto, o outro do qual a capacidade produtiva foi deslocada, possa ser adquirido do exterior a preços mais baixos. 3 Segundo os autores, essa expressão significa o mesmo que dependência da trajetória, o que em outras palavras quer dizer que o passado determina as estratégias presentes, bem como as estratégias presentes determinam as ações futuras. 4 Esses autores (1999, p. 313) entendem por “plataforma de exportação” a identificação de setores e segmentos específicos com capacidade de projeção global e respectivas empresas importantes na cadeia de valor. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 63 A atividade exportadora como uma alternativa para o desenvolvimento empresarial 6 REFERÊNCIAS ABRANCHES, Sérgio. Ruptura e adaptação: o novo paradigma produtivo e a formulação de políticas públicas para a economia. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 65 66 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Biologia Ictiofauna dos grandes reservatórios do semi-árido do Rio Grande do Norte (Bacia do Piranhas - Açu), Nordeste do Brasil 67 Aldemir Gomes Freire1 1 Biólogo. Doutor em Ciências Ambientais. Professor Adjunto IV dos Cursos de Graduação em Ciências Biológicas e Aqüicultura e do Programa de Pós-Graduação em Bioecologia Aquática da UFRN. Praia de Mãe Luiza S/N. CEP: 59014-100, Natal, RN. Membro do Conselho Editorial da Revista Carpe Diem. e-mail: [email protected]. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ictiofauna dos grandes reservatórios do semi-arido do Rio Grande do Nor Norte te (Bacia do Piranhas - Açu) Nordeste do Brasil Ichthyofauna from major tanks in semi-arid region of Rio Grande do Norte (Piranhas, Açu), Northeast of Brazil. 68 RESUMO Neste trabalho são apresentados os dados de produção pesqueira dos grandes açudes administrados pelo DNOCS na região do semi-árido norte-riograndense, assim como seus dois grandes grupos que compõem sua comunidade ictiofaunística, de espécies nativas: Prochilodus cearensis (curimatã), Leporinus sp (piau), Serrasalmus sp (pirambeba), Triportheus angulatus (sardinha), Hoplias malabaricus (traíra), Hypostomus sp (cascudo), Curimata ciliata (branquinha) e de espécies introduzidas Astronotus ocellatus (apaiari), Plagioscion squamosissimus (pescada), Oreochromis niloticus (tilápia), Cichla monoculus (tucunaré), levando-se em consideração seus hábitos alimentares, também subdivididos em dois grandes grupos de espécies, denominadas, forrageiras e carnívoras, compondo dessa maneira a comunidade ictiológica desta região. ABSTRACT Presented in this study are data on fish production of large dams in the semi-arid region of the State of Rio Grande do Norte under the administration of DNOCS. The ichthyofauna of these ecosystems consists of indigenous species composed of Prochilodus cearencis.(curimatã), Leporinus sp (piau), Serrasalmus sp (pirambeba), Triportheus angulatus (sardinha), Hoplias malabaricus (traíra),Hypostomus sp (cascudo), Curimata ciliata (branquinha) as well as the species introduced such as Astronotus ocellatus (apaiari), Plagioscion squamosissimus (pescada), Oreochromis niloticus (tilápia), Cichla monoculus (tucunaré). Also included in the study are feeding habits of all the species of ichthyofauna which are either foragers or carnivores. PALAVRAS-CHAVE Ictiofauna; semi-árido; reservatório KEY-WORDS Ichthyofauna; semi-arid; reservoir Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire 1 INTRODUÇÃO O processo da barragem dos sistemas fluviais realizados pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), provocou importantes modificações nas condições físico-química das águas e do substrato, bem como na estrutura e abundância das espécies nativas com reflexos diretos sobre a capacidade de auto renovação das populações aquáticas (Macêdo, 1991). A produção pesqueira nos açudes do Rio Grande do Norte realiza-se sob a administração do DNOCS, visando: a) o povoamento das águas interiores com peixes de boa qualidade; b) proteger a ictiofauna contra seus inimigos naturais e, c) organizar a pesca e divulgar os processos de conservação do pescado (Silva, 1987). Toda a produção do pescado realiza-se através do repovoamento de alevinos produzidos pelas suas estações de piscicultura, cuja prática é considerada indispensável para compensar a rápida depleção dos estoques, decorrentes das explotações e de uma eventual ausência de desova das espécies nativas, tipicamente lóticas, que por características climáticas da região, podem comprometer a reprodução das espécies devido a longos períodos de seca. Dessa maneira o presente trabalho evidencia a produção pesqueira por espécie, quer seja considerada nativa ou introduzida, levando-se em consideração seu hábito alimentar, forrageira e carnívora. 2 MA TERIAL E MÉT ODOS MATERIAL MÉTODOS Este trabalho foi desenvolvido com os dados sobre a produção do pescado, obtidos das fichas de “Esforço de Pesca por Amostragem” da Divisão de Pesca e Piscicultura do DNOCS/RN, dos grandes açudes, aqui representados por: “Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves” e Mendubin, ambos situados no município de Açu; Marechal Dutra, em Acari; Itans, em Caicó; Boqueirão de Parelhas, em Parelhas; Sabugi, em São João do Sabugi, cuja capacidade de armazenagem d’água excede de 40.000.000 m3. Para caracterização da comunidade ictiofaunística dos açudes levou-se em consideração o trabalho de Almeida et al. (1993), considerando-se espécies nativas, a curimatã (Prochilodus cearensis), piau (Leporinus sp), pirambeba (Serrasalmus sp), sardinha (Triportheus angulata), traíra (Hoplias malabaricus), cascudo (Hypostomus sp), branquinha (Curimata ciliata) e as introduzidas, apaiari (Astronotus ocellatus), pescada Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 69 Ictiofauna dos grandes reservatórios do semi-arido do Rio Grande do Nor Norte te (Bacia do Piranhas - Açu) Nordeste do Brasil (Plagioscion squamosissimus), tilápia (Oreochromis niloticus) e o tucunaré (Cichla monoculus). As espécies foram classificadas de acordo com o seu hábito alimentar em forrageiras e carnívoras, caracterizando-se a denominação de herbívoros, que, geralmente são denominados de forrageiros (Zavala-Camin, 1996), as espécies que servem potencialmente de alimentos para as carnívoras (predadoras), e carnívoras, aquelas que utilizam além de peixes, crustáceos e insetos como suas presas preferenciais na sua dieta alimentar. 70 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO De acordo com os resultados observados verificou-se que os grandes açudes do semi-árido do Rio Grande do Norte, o que apresenta maior capacidade de armazenagem d’água é o Armando Ribeiro Gonçalves (Tabela 1). Quanto às espécies que compõem a ictiofauna dos diversos açudes estudados, observa-se a presença de 11 espécies, sendo 7 nativas (Tabela 2) e 4 introduzidas (Tabela 3). No açude Armando Ribeiro Gonçalves des- taca-se o tucunaré com maior produtividade e em seguida a pescada (Tabela 3) peixes introduzidos, carnívoros (Tabela 5), porém com elevada plasticidade alimentar, como indica seu consumo de macroinvertebrados em algumas regiões do país (Hahn, 1991). Entre as espécies nativas, destaca-se o curimatã na maioria dos açudes (Tabela 2). No registro das espécies nos diversos açudes observa-se a predominância dos Cichlidae (Tabela 4) representados na sua maioria pelas tilápias, principalmente no açude Marechal Dutra (Acari), cujas espécies pelo seu caráter adaptativo, seu comprimento máximo pequeno, período de vida curto com taxa de crescimento elevada, ou seja, um r-estrategista, que em ambientes instáveis e não previsíveis como os açudes, aloca o máximo de seus recursos na reprodução e produzir o maior número possível de descendentes (seleção r) (Vazzoler, 1996). A tilápia, (Cichlidae) (Tabela 4) entre as espécies forrageiras destaca-se na produção pesqueira dos grandes açudes (Tabela 6). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Tabela 1 – Grandes açudes da bacia hidrográfica do sistema Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte, com seus respectivos nomes, rio barrado, capacidade de armazenagem d’água e município de localização. Açudes rio barrado Capacidade Município armazenada (103m3) Eng. Armando Ribeiro Gonçalves Mendubim Marechal Dutra Itans Sabugi Açu Paraú 2.400.000 76.349 Açu Açu Acauã Barra nova 40.000 81.750 Acari Caicó Sabugi 65.335 S. João do Sabugi Tabela 2 – Abundância absoluta e relativa da produção pesqueira das espécies nativas nos grandes açudes da região do semi-árido do Rio Grande do Norte, no período de 1987 a 1997. Espécies/Açudes Armando Ribeiro Mendubim Marechal Dutra N % N Curimatã 290.684 36,7 81.777 46,0 120.343 Piau 125.875 15,9 31.698 18,7 800 0,1 - - - - - - Traíra 126.572 16,0 64.507 Cascudo 246.611 31,2 - - - Pirambeba Sardinha Branquinha Total 790.502 % 100 177.982 N Itans Sabugi % N % N % 73,4 123.397 16,1 286.809 30,8 - - 36.439 4,7 336.809 36,0 - - 123 0,1 - - - - 384.389 50,2 4.840 0,5 36,2 41.513 25,3 219.903 28,7 303.744 32,6 - - - - - - - - 1.995 1,2 1.500 0,2 - - 100 163.851 100 765.751 100 931.485 100 Tabela 3 – Abundância absoluta e relativa da produção pesqueira das espécies introduzidas nos grandes açudes do semi-árido do Rio Grande do Norte, no período de 1987 a 1997. Espécies/Açudes Armando Ribeiro N Apaiari 266.250 % Mendubim N Marechal Dutra % 4,4 68.852 8,6 Pescada 1.747.774 29,1 618.601 Tilápia 1.489.694 25,0 14.688 Tucunaré 2.489.694 41,5 Total 5.997.401 100 N % Itans N Sabugi % N % 144.716 12,1 31.055 1,0 65.952 1,6 76,7 698.482 21,6 3.297.994 75.8 457.742 38,3 1,9 2.314.996 71,3 415.226 9.6 309.844 26,0 104.703 13,0 199.017 6,2 571.762 13.1 282.187 24,0 806.844 100 3.243.550 100 4.350.934 100 1.194.489 100 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 71 Ictiofauna dos grandes reservatórios do semi-arido do Rio Grande do Nor Norte te (Bacia do Piranhas - Açu) Nordeste do Brasil Tabela 4 – Abundância relativa (%) das espécies carnívoras dos grandes açudes do semi-árido do Rio Grande do Norte. (ARG = Armando Ribeiro Gonçalves; ME = Mendubim; MD = Marechal Dutra; IT = Itans e SA = Sabugi). Espécies /Açudes ARG ME MD IT squamosissimus Serrasalmus sp 40 0,2 78,5 - 74,4 - 80,6 0,3 43,8 - SAP Hoplias malabaricus Cichla monoculus 2,9 57 8,2 13,3 4,4 21,2 5,3 14 29,1 27,0 Tabela 5 – Abundância relativa (%) das espécies forrageiras dos grandes açudes do semi-árido do Rio Grande do Norte. (ARG = Armando Ribeiro Gonçalves; ME = Mendubim; MD = Marechal Dutra; IT = Itans e SA = Sabugi). 72 Espécies/Açudes Asrtonotus ocellatus ARG 11,0 ME 35,0 MD 1,2 IT 6,4 SA 13,4 Prochilodus cearensis Leporinus sp 12,0 5,2 41,5 16,0 4,8 - 12,0 3,6 26,5 31,0 Triportheus angulata Oreochromis niloticus 61,6 7,4 94,0 37,4 40,4 0,4 28,7 Hypostomus sp Curimata ciliata 10,2 - - 0,08 0,1 - Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire 4 REFERÊNCIAS ALMEIDA, G. R., SOARES, L. H., EUFRÁSIO, M. M. Lagoa do Piató: Peixes e Pesca. Natal: CCHLA, 1993. 84 p.(Coleção Humanas Letras). HAHN, N. S. 1991. Alimentação e dinâmica da nutrição da curvina Plagioscion squamosissimus (Heckel, 1840) (Pisces, Perciforme) e aspectos da estrutura trófica da ictiofauna acompanhante no rio Paraná. UNESP. Tese de Doutorado em Ciências. Instituto de Biociências/UNESP. Rio Claro, 1991.287 p. MACÊDO, M. V. A .1991. Características físicas e técnicas dos açudes públicos do Estado do Ceará. Fortaleza: DNOCS,1991. 140 p. SILVA, J. W. B.1987. A aquicultura nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. In: Anais do 5o Congresso Brasileiro de Engenharia de Pesca. Fortaleza, 1987. p. 24-29. VAZZOLER, M. E. A. Biologia da reprodução de peixes teleósteos: teoria e prática. Maringá: EDUEM: São Paulo: SBI, 1996. 169 p. ZAVALA-CAMIN, L. A Introdução aos estudos sobre alimentação natural em peixes. Maringá: EDUEM, 1996. 129 p. 73 AGRADECIMENT OS AGRADECIMENTOS Nossos agradecimentos à Coordenadoria do DNOCS/RN, pelo apoio logístico e acesso aos dados das fichas de amostragem do controle de desembarque do pescado, nos diversos açudes, objeto desse estudo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 74 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Biologia Impactos ecológicos na água da Barragem Marechal Dutra (Acari-RN), região semi-árida nordestina 75 Aldemir Gomes Freire1 Maryssol de Moraes e Silva2 1 Biólogo. Doutor em Ciências Ambientais. Docente dos curso de Ciências Biológicas, Aqüicultura, Zootecnia e do Programa de Pósgraduação em Bioecologia Aquática da UFRN. Membro do Conselho Editorial da Revista Carpe Diem. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Bioecologia Aquática pela UFRN Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Impactos ecológicos na água da Barragem Marechal Dutra (Acari-RN), região semi-árida nordestina Ecological impacts on the waters of Marechal Dutra dam (Acari - RN), semi-arid northeast region 76 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo avaliar e reunir informações acerca da qualidade da água da Barragem “Marechal Dutra”, situada no município de Acari, no Estado do Rio Grande do Norte, com relação aos aspectos ecológicos responsáveis pelo afloramento demasiado de algas e a influência deste fenômeno sobre a mortandade dos organismos existentes. Os resultados indicaram que o ambiente em estudo já demonstra um processo de eutrofização sendo necessário o monitoramento, ou seja, um estudo mais detalhado do mesmo. ABSTRACT The present work had as main objective to evaluate and reunite information about the water quality of the Marechal Dutra dam, located in the county of Acari, in the state of Rio Grande do Norte, with ecological aspects responsible for blooms of the alges that influenced this phenomenon upon mortality of the existing organisms. The results showed that the environment (dam), demonstrates a process of eutrophycation, that influenced water quality for the population from the riverside, so that it will be necessary a deeper monitoring of the dam. PALAVRAS-CHAVE Mortandade de peixes; eutrofização; barragem. KEY WORDS Mortality of the fishes; eutrophycation; dam. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Maryssol de Moraes e Silva 1 INTRODUÇÃO A água é um importante recurso natural disponível no nosso planeta, porém em pouca quantidade, apenas 2,5% representa água doce no qual menos de 1% é acessível ao consumo humano, representando um sério problema para a população de um modo geral. Em cada país existe registro de inúmeros problemas em função da falta de água, inclusive o Nordeste brasileiro que possui regiões extremamente secas. A área total que mostra tais peculiaridades é conhecida como “Polígono das Secas”, que atinge parcialmente os estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Minas Gerais. Nessa região há uma imensa escassez e irregularidade pluviométrica ao longo dos anos provocados pela inconstância anual e plurianual das chuvas, bem como a alta evaporação, promovendo a perda da maior parte da água superficial e pela interrupção momentânea de grande parte da rede hidrográfica criando um obstáculo não só para a captação, como para o armazenamento deste recurso. Por tal razão, inúmeras barragens foram construídas visando principalmente o acúmulo de água, já que a mesma é considerada um fator limitante de sobrevivência e desenvolvimento além de minimizar os efeitos da seca e melhorar o padrão de vida do homem nordestino. De acordo com Tundisi (1999b) as barragens podem ser definidas como sendo ecossistemas artificiais entre rios e lagos, estando sujeitos à ação de forças climatológicas tais como: ventos, precipitação e radiação solar. Sua intervenção nos rios em que são construídos alteram o fluxo, os sistemas terrestres e aquáticos intensamente. No entanto, vários são os benefícios que a mesma proporciona, tais como, o armazenamento de água para abastecimento urbano, com o propósito de suprir suas necessidades básicas, como por exemplo, para a irrigação, a agricultura de vazante, lazer, pesca e piscicultura intensiva. Porém, como as chuvas na região apresentam-se de maneira irregular na sua intensidade e distribuição, contribuirá para o aumento do tempo de residência da água na barragem que por sua vez irá comprometer a qualidade da mesma, além do surgimento de outros problemas ecológicos, como a sucessão de comunidades em sistemas que apresentam rápidas mudanças, perda de áreas alagadas, perda da biodiversidade dos rios, barreira para a migração de peixes, mortandade de peixes, perda de espécies nativas, eutrofização e efeitos de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 77 Impactos ecológicos na água da Barragem Marechal Dutra (Acari-RN), região semi-árida nordestina 78 pulsos ecológicos. Nos ecossistemas aquáticos, o fenômeno da eutrofização surge em função das atividades antropogênicas que logo causará modificações nas estruturas das comunidades fitoplanctônicas (Hutchinson, 1973). A partir dos anos 50, o surgimento da eutrofização tem se tornado corriqueiro em conseqüência da expansão demográfica e industrial que contribui para a entrada de nutrientes principalmente o nitrogênio e fosfato derivado de atividades industriais, agrícolas e os esgotos domésticos que se ampliam não possibilitando o reequilíbrio por fo r ç a s h o m e o s t á t i c a s d o s ecossistemas (Wetzel, 1983). A eutrofização de barragens é um processo que resulta no aumento de nutrientes essenciais para o fitoplâncton e plantas aquáticas superiores, principalmente nitrogênio, fósforo, potássio, carbono e ferro, caracterizando um estado de tensão. A eutrofia e a oligotrofia só podem ser definidas por referência a um contexto regional. Desta maneira, este trabalho teve por objetivo avaliar e reunir infor mações acerca da qualidade da água da Barragem Marechal Dutra, Acarí/RN, com relação aos aspectos ecológicos e a influência da sua degradação sobre os organismos existentes. 2 MA TERIAL E MÉT ODOS MATERIAL MÉTODOS 2.1 Área de Estudo O presente trabalho foi desenvolvido na Barragem Marechal Dutra, localizada no Município de Acari, Estado do Rio Grande do Norte, construída entre as coordenadas de 6°26’11’’ de latitude sul e 36°36’17’’ de longitude oeste, situada a 4 km da cidade de Acari e 30 km de currais Novos/RN com capacidade total de 40.000.000 m³. Área drenada de 2.400.000 km², Bacia hidráulica de 780 ha, com profundidade estimada em 21m e profundidade média em 5,2m. O mesmo encontra-se a 300m de altitude, localizado entre os contrafortes da parte Setentrional da Chapada da Borborema, com altitude em torno de 500m a 600m, em terreno de embasamento cristalino, abrangendo rochas do grupo Caicó do Pré-Cambriano inferior a médio. Bacia hidrográfica de 2136,9 km², sua construção foi concluída em 27 de abril de 1959 pelo barramento do rio Acauã, tributário da bacia hidrográfica Piranhas-Açu. A área de formação do reservatório desta barragem pode ser identificada como típica do sertão nordestino pertencente ao chamado polígono das secas e se encontra na microrregião do Seridó oriental, zona homogênea de Currais Novos Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Maryssol de Moraes e Silva de clima semi-árido, vegetação de caatinga, a precipitação pluvio-métrica anual média é de 49,6 mm, máxima de 1137,6 mm, mínima de 18,0mm, é considerado um dos climas mais quentes do nordeste brasileiro, com temperatura média de 27,5°C. A utilização dessa barragem consiste no abastecimento com água potável das cidades de Acari e Currais Novos, incluindo as colônias de pescadores de Bulhões e Acari, que se localizam em suas profundidades, beneficiando uma população em torno de 40 mil habitantes. Em épocas de seca procura abastecer através de carro pipa, a população que residem na zona rural do município, e cidades vizinhas até mesmo na Paraíba. Realiza-se ainda a atividade pesqueira, cultivos em gaiolas sem sucesso, irrigação, a agricultura de vazante e atração turística e lazer. 2.2 Metodologia A fonte principal de dados para esta pesquisa constituiu-se dos relatos obtidos junto aos técnicos do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca - DNOCS, pescadores, moradores e publicações preliminares de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que forneceram informações sobre a ocorrência de mortandade dos peixes presentes na Barragem Marechal Dutra no período de dezembro de 1999. A partir destes resultados foi feita uma análise, bem como uma descrição detalhada do fenômeno causador de tais mortandades, buscando possíveis explicações para a ocorrência do mesmo com o intuito de avaliar as condições e ecológicas ambientais em que se encontra a referida barragem. 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO Um dos primeiros relatos efetuado com respeito à ocorrência de Blooms de algas foi registrado por Okuda et al. (1963), que efetuaram um estudo para avaliar as condições hidrográficas na Barragem Marechal Dutra, em função do registro de um fenômeno ocorrido no meses de agosto a setembro, resultando numa reprodução em massa do fitoplâncton, causando a mortandade de uma considerável quantidade de peixes. Os resultados apontaram uma estratificação da água bem desenvolvida, indicando mistura vertical inativa, uma alta concentração de nutrientes na coluna d’água. Tais fatos podem ter se originado em função das condições topográficas e meteorológicas, como por exemplo, um estreitamento da área neste local, uma elevada demanda Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 79 Impactos ecológicos na água da Barragem Marechal Dutra (Acari-RN), região semi-árida nordestina 80 evaporativa, uma intensa radiação solar e a direção dos ventos no sentido do reservatório tenham contribuído para a reprodução do fitoplâncton, com o seu eventual florescimento. Costa e Chellappa (1999) realizando uma pesquisa na referida barragem, observaram uma elevada mortandade de peixes, durante o mês de dezembro, com a duração de três dias, e na ocasião avaliaram a estrutura da comunidade fitoplanctônica, analisando os parâmetros físicos, químicos e biológicos, constatando que na estação seca, houve uma baixa transparência da água ao longo da coluna d’água, que poderia ser devido à concentração de organismos fitoplanctônicos. O aumento da temperatura do ar, comum nesta região favorece o aquecimento da massa de água superficial, que por sua vez contribuirá para o surgimento de blooms de Microcystis sp. O pH variando em média 7,7 – 8,5 acarretou o surgimento de táxons Chlorococcales. Segundo Dussart (1966), o oxigênio dissolvido na água pode se apresentar como um fator limitante para a sobrevivência de alguns organismos. Neste estudo foi registrada a mortandade de peixes, em área localizada de cultivo em gaiolas, atribuídas a anoxia na coluna d’água, condição resultante da alta demanda de oxigênio causado pela respiração dos organismos aquáticos à noite, inclusive do próprio Bloom fitoplanctônico. Tundisi (1999a) menciona o efeito de pulsos, ou seja, qualquer tipo de alteração rápida natural ou induzida pela intervenção humana que modifica as variáveis físicas, químicas e biológicas dos reservatórios. Esse fenômeno ocorre quando há uma entrada de material no reservatório, como por exemplo, a água de precipitação pluviométrica, ventos e também pela ação antrópica com a poluição orgânica pela entrada de tributários. O tempo que esses pulsos naturais surgem podem ser freqüentes e estacionais ou ainda ocasionais com magnitudes diversas e efeitos diretos ou indiretos. Os pulsos artificiais abrangem aberturas de comportas de barragens, flutuações no nível da água, movimentação de embarcações enquanto que os pulsos estacionais resultam em diferentes mecanismos de circulação com a entrada de correntes advectiva no sistema e modificações na composição química da água. O surgimento dos pulsos ocasionais se dá com a quebra da termoclina, por ação do vento e redistribuição de organismos planctônicos na coluna de água. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Maryssol de Moraes e Silva Quando há pulsos rápidos de liberação de água de comportas pode ocorrer uma supersaturação de oxigênio o que causará a mortandade em massa de peixes a jusante. Uma das principais causas da eutrofização das barragens no nordeste é a vegetação remanescente pelo não desmatamento da sua área inundada, aliada ao tempo de residência. A maior diferença entre as barragens do nordeste e outras regiões é que as primeiras são construídas em rios de cursos intermitente, cuja finalidade principal é a reserva hídrica. Por este motivo os reservatórios são construídos de maneira a atravessar longos períodos de estiagem aumentando, assim, o tempo de residência da água e favorecendo a eutrofização. Outra influência é devido às características climáticas regionais que provocam o desfolhamento da vegetação no período de estiagem e seu carreamento para a represa por ocasião das chuvas. Este processo é repetido durante todos os ciclos de chuvas, provocando impacto de nutrientes no início das cheias justamente quando o reservatório encontra-se em seu nível mais baixo e, portanto, os nutrientes se diluirão em menor volume de água. Outra diferença regional é que em períodos de estiagem prolongada o volume do reservatório fica reduzido, concentrando a biomassa e expondo as regiões de aluvião, mais férteis, à luz solar, e, consequentemente, promovendo uma maior eutrofização que por sua vez irá contribuir para interferir na comunidade fitoplanctônica. 4 CONCLUSÃO Podemos concluir que o estudo dos pulsos ecológicos ocorrentes em uma barragem, adquire suma importância, em função das alterações ambientais ocorrentes, com modificações na comunidade fitoplanctônica, a qual ocupa a base da cadeia alimentar, de forma que modificações no seu desenvolvimento afetarão toda a biota aquática. Deve-se considerar também os efeitos sociais que os pulsos ecológicos ocasionam, como a mortandade de peixes, mortalidade de animais domésticos e o surgimento de doenças em detrimento da perda da qualidade da água, que afetam o desenvolvimento das populações que dependem da água da barragem para a sua sobrevivência. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 81 Impactos ecológicos na água da Barragem Marechal Dutra (Acari-RN), região semi-árida nordestina 5 REFERÊNCIAS COSTA.M. A. M. & CHELLAPPA, N. T. Comunidade fitoplanctônica da Barragem de Gargalheira/Acari/RN na região semi-árida nordestina. Anais do II Simpósio Brasileiro Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido. ago. 2000, p. 241-250. DUSSART, B. Limnologie. L’ étude des eaux continentales. Gauthier-Villard: Paris, 1966. 677 p. HUTCHINSON, G. E. Eutrophycation: The scientific background of a contemporary practical problem. American Scientist, v. 61, p. 269-279, 1973. OKUDA, T; PEREIRA, V. X.; TEIXEIRA, H. Nota sobre as condições Hidrográficas no açude Acari – Rio Grande do Norte – Brasil. Trabalhos do Instituto Oceanográfico, Recife, UFPE, v. 3, n. 1, p. 33-38, 1963. TUNDISI, J. G.; In: HENRY, R. (Ed.). Ecologia de reservatório: Estrutura, função e aspectos sociais. São Paulo: FAPESP, 1999a. p. 23-38. 82 TUNDISI, J. G. Limnologia no século XXI: Perspectiva e desafios. Conferência de Abertura do VII Congresso Brasileiro de Limnologia, 1999b. 24 p. WETZEL, R. G. Limnology. 2nd. ed. Philadelphia: Saunders College, 1983, 767 p. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Biologia Aspectos bioecológicos da relação peso/ comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 (Osteichthyes: Lutjanidae), do Canto do Mangue, Natal, RN 83 Aldemir Gomes Freire1 Carlos Eduardo Costa Campos2 1 Biólogo. Doutor em Ciências Ambientais. Docente dos Cursos de Ciências Biológicas, Aqüicultura, Zootecnia e do Programa de PósGraduação em Bioecologia Aquática da UFRN. Membro do conselho editorial da revista Carpe Diem. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Bioecologia Aquática pela UFRN. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aspectos bioecológicos da relação peso/comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 (Osteichthyes: Lutjanidae), do Canto do Mangue, Natal, RN Biological aspects of the lenght/ weight relation and condition factor of the Lutjanus chrysurus bloch, 1791 (Osteichthyes; Lutjanidae), from “Canto do Mangue”, Natal, RN. 84 RESUMO O presente trabalho temo como objetivo determinar a relação peso/comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 obtidos das capturas comerciais do entreposto de pesca do “Canto do Mangue”. Foram coletados 1211 indivíduos durante o período outubro/1997 a setembro de 1998. Os comprimentos zoológicos (cm) e pesos totais (g) foram medidos e pesados respectivamente, visando o cálculo da relação peso/comprimento, adotando-se o método de Santos (1978) através da b seguinte equação: Wt = aLz e o fator de condição calculado mensalmente. Os valores do fator de condição variaram de 81,40 em abril a 158,90 em fevereiro e a relação peso/ comprimento determinada para espécie apresentou a seguinte equação: W = 0,0992 2,457 Lz . ABSTRACT The objective of this study is to determine the condition factor, lenght/ weight and relationship of Lutjanus chrysurus Bloch 1791, obtained from the commercial catches at the landing centers of “Canto do Mangue”. A total of 1211 specimens were examined during the period between October/1997 and September/1998. Furcal length and total weight were taken at the landing center. The metodology used here was Santos (1978) using the following equation: b W = aLz , which represents lenght/weight relation, and the condition factor or degree of fatness that was calculated monthly. The values of condition factor ranged from 81,40 in April to 158,90 in February, and the relation lenght/weight determined for specie 2,457 was as it follows: Wt = 0,0992 Lz . PALAVRAS-CHAVE Lutjanus chrysurus; fator de condição; relação peso/comprimento. KEY WORDS Lutjanus chrysurus; condition factor; relationship lenght/weight Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Carlos Eduardo Costa Campos 1 INTRODUÇÃO Os pargos (Lutjanidae) são peixes comestíveis importantes ao longo dos trópicos, especialmente associados a recifes e fundos rochosos ou coralinos. A família tem cerca de 17 gêneros, um dos quais, Lutjanus (cerca de 70 espécies), ocorre em todos os mares tropicais e compreende espécies comercialmente importantes, sendo exploradas pela frota artesanal, utilizando linha de fundo em áreas de bancos oceânicos, operando a uma profundidade entre 20 a 150 metros (Mendonça, 1998). A espécie Lutjanus chrysurus, denominada vulgarmente de guaiúba, participa de maneira significativa na pesca do Estado do Rio Grande do Norte e devido a inexistência de informações sobre seus aspectos biológicos, este trabalho tem como objetivo fornecer subsídios no que diz respeito a relação peso/comprimento e o fator de condição (K) da referida espécie. 2 MA TERIAL E MÉT ODOS MATERIAL MÉTODOS Para este trabalho foram amostrados 1211 exemplares de Lutjanus chr ysurus Bloch, 1791, coletados no entreposto de pesca do Canto do Mangue, Natal/RN, no período de outubro de 1997 a setembro de 1998. Os exemplares foram mensurados através de um ictiômetro, graduado em cm (comprimento zoológico - Lz) e pesados em balança com precisão de décimo de grama (peso total - Wt). Os dados relativos ao Lz foram agrupados em classes de 2 cm e relacionados com seus respectivos pesos médios, visando a análise de verificação da relação entre Wt/Lz para sexos agrupados (Tabela 1). Os dados Wt e Lz foram lançados em gráficos de dispersão, considerando o Lz como variável independente e o Wt como variável dependente. O Wt e Lz foram ajustados através do método dos mínimos quadrados, expressão do tipo Wt = aLz b, após transformação logarítmica dos parâmetros (Santos, 1978), o qual também utilizando a expressão K = Wt/Lzb foi calculado o fator de condição (K). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 85 Aspectos bioecológicos da relação peso/comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 (Osteichthyes: Lutjanidae), do Canto do Mangue, Natal, RN Tabela 1 – Distribuição de indivíduos coletados no entreposto de pesca Canto do Mangue, Natal/RN, no período de outubro de 1997 a setembro de 1998, por classe de comprimento (cm), comprimento zoológico médio (cm) e peso médio (g) de Lutjanus chrysurus Bloch, 1791, considerando os sexos agrupados. Classes de Comprimento (cm) 86 Lz (cm) Wt (g) Nº de indivíduos coletados 18 - 20 20 - 22 19,00 20,50 102,50 189,80 02 27 22 -24 24 - 26 22,53 24,60 227,35 284,81 17 26 26 - 28 28 - 30 26,61 27,64 323,27 395,57 26 44 30 - 32 32 - 34 30,50 32,50 434,20 456,60 61 79 34 - 36 36 - 38 34,60 35,80 580,70 652,65 11 4 151 38 - 40 40 - 42 38,50 40,20 781,30 894,70 100 93 42 - 44 44 - 46 42,56 44,55 984,86 11 0 5 , 1 6 70 95 46 - 48 48 - 50 46,45 48,50 1218,85 1383,90 87 68 50 - 52 52 - 54 50,30 52,40 1531,50 1684,00 45 52 54 - 56 56 - 58 54,97 56,50 1787,00 1950,00 27 20 58 - 60 60 - 62 58,30 60,00 2058,30 2500,00 06 01 To t a l 1 2 11 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Carlos Eduardo Costa Campos 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO De acordo com os resultados obtidos, a equação que representa a relação peso/comprimento da guaiúba é: Wt = 0,0992 Lz 2,457 com valor de r de Pearson 0,99 (Figura 1). A relação peso/comprimento tem sido usada como um recurso a mais na identificação de diferenças em pequenas unidades taxonômicas, estabelecimento de diferenças sexuais, estimativas do peso e comprimento e ainda como meio de indicar eventos do ciclo biológico dos peixes, além de maturidade. Esta relação também é usada em estudos de crescimento objetivando estimar o peso do indivíduo através do conhecimento do comprimento e ainda como forma de indicar a condição geral do peixe (RossiWongtschowski, 1977). Outra razão da determinação da relação peso/ comprimento em estudos de dinâmica de populações de peixes é verificar o tipo de crescimento que a espécie em estudo apresenta, ou seja, se o crescimento é isométrico ou alométrico. Com esta finalidade determina-se o coeficiente angular de regressão b para sexos separados. Lagler et al. (1962) evidencia que o valor de b apresenta variações dentro de uma faixa que varia de 2,5 a 4,0, sendo particular para cada espécie. No entanto, existe um consenso de que quando o valor de b é próximo de 3,0 o crescimento da população é isométrico, sendo alométrico quando diferente. Mendonça (1998), estudando Lutjanus griseus no estuário do rio Galinhos, Rio Grande do Norte, obteve o valor do parâmetro b em torno de 3,0 (3,0269 para fêmeas e 3,0237 para machos), caracterizando um incremento em peso isométrico. Tais resultados diferem dos encontrados para Lutjanus chrysurus, cujo valor de b foi de 2,4, caracterizando um crescimento do tipo alométrico. O fator de condição mensal variou de 81,40 no mês de abril a 158,90 no mês de fevereiro (Figura 2 e Tabela 2). O fator de condição (K) é um índice muito utilizado em estudos de biologia pesqueira, pois indica o grau de bem-estar do peixe frente ao meio em que vive. É um bom indicador do período de desova, podendo indicar também alterações na densidade populacional e nas condições alimentares (Braga, 1986). O estado fisiológico dos peixes no período de maturação e desova, que em muitas vezes podem ser expresso pelo fator de condição, é de fundamental importância, pois as condições de adversidade ambiental, podem inibir o processo de desenvolvimento gonadal, ou mesmo atenuação dos h o r m ô n i o s i n d u t o r e s. D e Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 87 Aspectos bioecológicos da relação peso/comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 (Osteichthyes: Lutjanidae), do Canto do Mangue, Natal, RN acordo com Rossi-Wongtschowski (1977), as variações em peso e teor de gordura estão relacionadas entre si e dependem da interação de processos metabólicos (transformação de alimento, reprodução, dentre outros), fatores ambientais com disponibilidade alimentar e fatores abióticos, como, correntes, temperatura e salinidade. 88 Figura 1 – Relação peso total (g)/comprimento zoológico (cm) para Lutjanus chrysurus, considerando os sexos agrupados Figura 2 – Valores médios mensais do fator de condição de Lutjanus chrysurus considerando os sexos agrupados Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aldemir Gomes Freire Carlos Eduardo Costa Campos Tabela 2 – Valores do fator de condição de Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 do entreposto de pesca do Canto do Mangue, Natal/RN no período de outubro de 1997 a setembro de 1998. Meses Outubro Fator de Condição (K) 99,20 Novembro Dezembro 89,90 105,70 Janeiro Fevereiro 84,90 158,90 Março Abril 90,80 81,40 Maio Junho 106,90 120,90 Julho Agosto 107,60 120,30 Setembro 99,40 4 CONCLUSÃO Os resultados obtidos indicaram que a relação peso/comprimento da guaiúba, Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 é: Wt = 0,0992 Lz 2,457 com valor de r de Pearson 0,99. O fator de condição mensal variou de 81,40 no mês de abril a 158,90 no mês de fevereiro. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 89 Aspectos bioecológicos da relação peso/comprimento e fator de condição do Lutjanus chrysurus Bloch, 1791 (Osteichthyes: Lutjanidae), do Canto do Mangue, Natal, RN 5 REFERÊNCIAS BRAGA, F. M. S. Estudo entre o fator de condição e relação peso/comprimento para alguns peixes marinhos. Revista Brasileira de Biologia, v. 46, n. 2, p. 339-346. 1986. LAGLER, K. F., BARDARH, J. E., MILLER, R. R. & PASSINO, D. R. M. Ichthyology. New York: Wiley, 1962. 506 p. MENDONÇA, M. C. F. B. Aspectos biológicos do Lutjanus griseus Linnaeus, 1758 (Osteichthyes: Lutjanidae) no estuário do Rio Galinhos, Galinhos – RN. Dissertação de Mestrado. Natal: UFRN, 1998. 105 p. ROSSI-WONGTSCHOWSKY, C. L. D. B. Estudo das variações da relação peso total/ comprimento total em função do ciclo reprodutivo e comportamento de Sardinella brasiliensis (Steindachner, 1879) da costa do Brasil entre 23ºS e 28º. S. Bol. Inst. Ocean., v. 26, p. 131-180. 1977. SANTOS, E. P. Dinâmica de populações aplicada à pesca e piscicultura. São Paulo: HUCITEC, 1978. 129 p. 90 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Biologia Considerações sobre simulídeos (Diptera Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) Herbet Tadeu de Almeida Andrade1 Jansen Fernandes Medeiros2 Felipe Arley Costa Pessoa2 Victor Py-Daniel2 1 Biólogo. Doutor em Ecologia. Professor do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências, Departamento de Microbiologia e Parasitologia, Natal, RN. CEP 59072-970. e-mail: [email protected] 2 Biólogos. Doutores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Coordenação de P e s q u i s a s e m C i ê n c i a s d a S a ú d e (CPCS), CP 478, CEP 69011-970 - Manaus, AM. E-mail: [email protected]. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 91 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) Considerations about black flies (Diptera – Simuliidae) and filariasis (Onchocerciasis and Mansonelliasis) 92 RESUMO Este trabalho aborda aspectos relativos ao desenvolvimento de simulídeos, como também, aspectos bioecológiços e as principais filarioses (Oncocercose e Mansonelose) transmitidas por esses insetos. Também são mencionados alguns métodos de controle e busca do desenvolvimento de vacinas, que podem minimizar os danos causados pelos simulídeos. ABSTRACT This review is about relative aspects of simuliid black flies development, and new information about bionomics and ecological aspects and the main filariasis (Onchocerciasis and Mansonelliasis) transmitted of those insects. It also deals with some aspects of controling methods, new targets and development of vaccines which could minimize the health problems caused by black flies. PALAVRAS-CHAVE Simuliidae; Filarioses; Oncocercose; Mansonelose. KEY WORDS Simuliidae; Filariasis; Onchocerciasis; Mansonelliasis. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa 1 INTRODUÇÃO Os simulídeos (Diptera: Culicomorpha) são insetos de corpo robusto e pequeno (maioria com menos de 5 mm). Estes insetos apresentam ampla distribuição, não sendo encontrados somente em locais desprovidos de água corrente (onde se desenvolvem as formas imaturas). Trata-se de um grupo recente, onde o primeiro registro fóssil data de rochas do período Jurássico Médio, há 160 milhões de anos (Crosskey, 1990). As fêmeas de muitas espécies são hematófagas e necessitam de sangue de vertebrados para o desenvolvimento dos óvulos, e é durante o repasto de sangue que ocorre a transmissão de agentes etiológicos. Aproximadamente 10% das espécies conhecidas, picam o homem e animais domésticos, e menos de 50 espécies são pragas ou vetores de várias filarias, protozoários, bactérias e vírus (Crosskey, 1990). 2 CLASSIFICAÇÃO A família Simuliidae pertence à or d e m D i p t e r a , s u b o r d e m Nematocera, infraordem Culicomorpha, superfamília Chironomoidea. Está dividida em duas subfamílias, Gymnopaidinae na América do Norte, e a Simuliinae que é cosmopolita (Py-Daniel e Moreira Sampaio, 1994). Em todo o globo terrestre estão descritas em torno de 1.660 espécies, das quais, aproximadamente 350 estão assinaladas para a região neotropical (Crosskey e Howard, 1997). Para o Brasil, são assinaladas 77 espécies de simulídeos, em 13 gêneros (PyDaniel e Moreira Sampaio, 1995). 3 ASPECT OS MORFOLÓGICOS ASPECTOS E BIOLÓGICOS 3.1 Ovos: Medem em torno de 0,10 – 0,46 mm. Apresentam no geral uma forma ovóide. A duração dessa fase é de dois dias, porém podem alcançar mais de um ano em períodos de secas. 3.2 Lar va: Larva madura mede enLarva: tre 5,00 –15,00 mm, apresenta forma cilíndrica, mas com o abdome alargado em relação ao corpo. As estruturas externas da cabeça compreendem a cápsula cefálica, apêndices e órgãos sensoriais (peças bucais, antenas e olhos (estemas). As larvas de Simuliinae apresentam um par de leques cefálicos bem desenvolvidos, são grandes estruturas localizadas na parte anterior dorsal, acima das mandíbulas e em frente às antenas, utilizados para capturar partículas na água. As larvas de Gymnopaidinae não possuem esta estrutura, sendo raspadoras do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 93 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) substrato para alimentação. Utilizam os pseudópodos do tórax e abdome como órgãos de locomoção e fixação nas superfícies. A duração do estágio larval é variável, no mínimo de quatro dias ou em torno de uma a três semanas nos trópicos, e no máximo de vários meses no frio do inverno. As larvas utilizam como alimento, matéria orgânica, desde algas ou bactérias e elementos inorgânicos. 3.3 Pupas upas:: As pupas são coniformes 94 e possuem um casulo de seda que as envolve e um conjunto de órgãos respiratórios. A cabeça está flexionada na parte anteroventral, curvada para o tórax. O tórax é grande, arqueado dorsalmente, e possui de dois a cinco tricomas dorsais e de um a dois tricomas laterais. O casulo de muitas espécies tem um formato característico e é importante taxonomicamente. Esse estágio dura de três a quatro dias, e no máximo de duas a três semanas. Logo após a morfogênese do adulto, o imago escapa do ambiente aquático, saindo primeiro o tórax, em seguida o restante do corpo. Ao contrário da maioria dos outros insetos aquáticos, o simulídeo é capaz de voar imediatamente após a emergência. 3.4 Adultos: Possuem o corpo robusto, de tamanho que varia de 1,2 até 5,5 mm de comprimento, são geralmente de coloração escura a vermelho amarronzado, cinza, laranja ou amarelado. Possuem antenas com 11 segmentos, uma probóscide curta e um aparelho bucal adaptado para hábito hematófago (fêmeas). O tórax é arqueado, e asas se fecham sobre o corpo. O corpo do adulto é subdividido através do típico tagmata hexápoda (cabeça, tórax e abdome) com algumas modificações morfológicas e sensoriais associados a uma vida parasitária. O labro, é armado com um dente pré-estomal que ajuda a fêmea a se fixar no ato da alimentação. As lacínias das maxilas são denteadas e pareadas que se localizam na parte lateral posterior das mandíbulas. A hipofaringe que direciona o fluxo da saliva até a ferida durante a sondagem e alimentação e se posiciona na porção posterior-mediana das outras peças bucais. No terceiro segmento dos palpos maxilares, localiza-se o órgão de Lutz, que detecta CO2 e outros odores. Os olhos dos adultos são sexualmente dimórficos, os machos são holópticos e as fêmeas dicópticas. O tórax pode possuir ornamentos em forma de cunha, com coloração variável, de importância taxonômica. As asas são curtas e largas. As estruturas das Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa patas dos simulídeos tem sido utilizados com propósitos taxonômicos, o tarsômero mediano possui um entalhe distinto (pedisulco). As garras tarsais são curtas e simples ou possuem um dente basal ou subbasal. A duração desse estágio é de uma semana até três meses nas fêmeas e poucos dias no macho. As fêmeas são fecundadas apenas uma vez, e fertilizam todos os seus ovos. O primeiro repasto sanguíneo pode ocorrer logo após a cópula. A ovoposição ocorre de três a cinco dias após a alimentação, e é feita em vários tipos de substratos (galhos, folhas, raízes rochas e outros) na água, em posturas de até centenas de ovos. Os criadouros das fases imaturas são encontrados em águas correntes com diferentes variações de velocidade, turbidez, temperatura, pH, teores de oxigênio e alimento (Cerqueira e Mello; 1964). 4 IMPORTÂNCIA MÉDICA A maior importância dos simulídeos concentra-se na transmissão de filárias. Segundo Crosskey (1990) são conhecidas as seguintes espécies de filárias transmitidas por simulídeos: Dirofilaria ursi, encontrada em ursos (Ursus americanus); Wherdiksmansia cervipedis e Onchocerca tarsicola em veado (Odocoileus hemionus); O. dukei, O. lienalis e O. ochengi em gado (Bos taurus); Splendidofilaria fallisensis em patos (Anas rubripes); Mansonella perstans, Microfilaria bolivarensis, Mansonella ozzardi e Onchocerca volvulus em homens (Homo sapiens). Outras doenças tais como: pênfigo foliáceo ou fogo selvagem, doença essa autoimune (aparecimento de bolhas flácidas, que quando rompem deixam amplas áreas erosadas e descamativas) e reações alérgicas chamadas de síndrome hemorrágica de Altamira (Pará), são causadas pelas picadas de simulídeos (Pinheiro et al., 1974). Além da importância epidemiológica, muitas espécies picam o homem causando reações alérgicas (devido a saliva). No Brasil, Souza (1984) relata e descreve os atendimentos médicos em razão das picadas de simulídeos, no Rio Grande do Sul. 4.1 Oncocercose A oncocercose humana também conhecida por “cegueira dos rios” é uma doença causada pelo parasita Onchocerca volvulus (Nematoda: Filarioidea) que é transmitida somente pelos simulídeos. O homem é o hospedeiro definitivo onde o parasito se multiplica, e o ciclo de transmissão do parasito ocorre somente entre humanos, não existindo reservatórios animais definitivos. A filária O. volvulus parasita o tecido Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 95 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) 96 subcutâneo, formando nódulos fibrosos (oncocercomas). Os nódulos subcutâneos possuem localização e tamanho variável (WHO, 1991). Nas pessoas com oncocercose, no México e Guatemala, os nódulos são encontrados nas partes superiores do corpo, principalmente no couro cabeludo; na Venezuela e Colômbia são encontrados com maior frequência no tronco, nádegas e cotovelos. As microfilárias são responsáveis por lesões e despigmentação da pele e pela invasão do globo ocular. Essa doença causa morbidades nas comunidades atingidas com elevados índices de infecção, causando sofrimento aos indivíduos infectados. As principais manifestações da doença são reações alérgicas, despigmentação da pele, tornando-a grossa e enrugada, que consistem em uma dermatite, que evolui por um período de vários anos, e a gravidade das lesões é geralmente proporcional à carga parasitária. A mais séria manifestação da oncocecose é a presença de lesões no globo ocular, com alterações que podem levar a cegueira. As lesões oculares ocorrem em regiões de alta endemicidade e em pessoas com parasitismo elevado. A princípio, apenas pontos esbranquiçados indicam o acometimento do globo ocular devido a presença das microfilárias, e com a invasão de novas microfilárias, as lesões se expandem (Chaves, 1994). Recentemente, foi mostrado que a O. volvulus e diversas outras filárias possuem uma bactéria obrigatória endosimbionte, do gênero Wolbachia. André et al. (2002) em experimentos com murinos infectados, demonstrou que filarias tratadas com antibióticos não causaram lesões na córnea destes animais, enquanto que animais infectados com filarias sem tratamento, causaram lesões ópticas esperadas. Isto sugere que a resposta imunológicas contra o componente Wolbachia de O. volvulus deve ser responsável pela doença ocular na oncocercose. A oncocercose é encontrada na África, Ásia e América Latina. No continente africano, está presente na parte central até o norte. Na América Latina a oncocercose é encontrada no México, Guatemala, Colômbia, Equador, Venezuela e Brasil. Os focos do México e da Guatemala são áreas montanhosas, entre 600 a 1.500 metros de altitude, e suas populações vivem em culturas de café, e as migrações entre os focos estão relacionadas a essa atividade. Na Colômbia existe um foco, localizado na costa do oceano Pacífico. O Foco do Equador está situado na província de Esme- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa ralda (Arzube, 1985). Na Venezuela existem dois focos, um ao norte, em locais de baixa altitude e um outro ao sul, na região do rio Orinoco, fronteira com o Brasil. O foco brasileiro situa-se nas montanhas no extremo norte do país, onde a doença acomete principalmente os índios Yanomami e Ye’kuana, nos Estados de Roraima e Amazonas. O primeiro caso de oncocercose no Brasil foi relatado por Beazorti et al. (1967), em uma criança de três anos de idade, procedente do Estado de Roraima, filha de missionários que tinham convivido entre os índios Yanomami. A partir de 1970, estudos na área Yanomami realizados por Moraes et al. (1973), Moraes & Chaves (1974) demonstraram que a endemicidade estava confinada aos índios Yanomami e famílias de missionários. Gerais e Ribeiro (1986) relataram um caso autóctone de oncocercose no município de Minaçu (GO), região Centro-Oeste do Brasil. Py-Daniel (1989) relata a possível introdução da oncocercose no médio rio Amazonas (Tefé) por um missionário proveniente da África; Py-Daniel (1994) relata três casos de oncocercose em funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e Py-Daniel (1997) com base em dados de um extenso in- quérito na área Yanomami e Ye’kuana relata casos assinalados nos indígenas Yanomami e Ye’kuana, Makuxi e Wapichana, e também, em funcionários da FUNAI, FUNASA e de organizações não governamentais. 4.1.1 Ciclo de transmissão Os vermes adultos vivem em nódulos com até três casais. As fêmeas medem entre 30 a 80 cm e os machos entre 3 e 5 cm. As fêmeas adultas produzem até um milhão de microfilárias por ano de tamanho entre 250 a 300 ìm de comprimento, e podem permanecer na pele do hospedeiro definitivo por um período de 6 à 24 meses. As fêmeas de O. volvulus são vivíparas, e possuem uma longevidade de aproximadamente 12 anos (Buck, 1974). As microfilárias são engorgitadas pelo inseto durante uma alimentação de sangue, migram até o estômago do vetor, e posteriormente atingem os músculos torácicos, onde passa do primeiro (L1) até o terceiro estágio larval (L3) (forma infectante), essa migra para a hemocele, atingindo a cabeça, e é transmitida para o homem em um novo repasto de sangue realizado pelo vetor. No homem, a forma infectante L3 de O. volvulus desenvolve-se até L4 entre 3 a 7 dias, e de L4 até estágio juvenil- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 97 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) 98 adulto em torno de 4 a 6 semanas (WHO, 1991). 1999; Andreazze e Py-Daniel, 1999; Py-Daniel et al., 2000). 4.1.2 Vetores 4.1.3 Diagnóstico Na África, o vetor é o Edwardsellum damnosum, havendo outras espécies apontadas como vetores secundários, conforme os diferentes focos, zonas bioclimáticas e distribuição geográfica (Davis et al., 1994). Na América Latina, os vetores são diferentes conforme a localização dos focos: no México e Guatemala o vetor primário é Ectemnaspis ochracea, (Garms e Ochoa, 1979; Porter & Collins, 1988). Na Colômbia e Equador o vetor é Notolepria exiguua e E. quadrivitata (Tidwell et al., 1980; Shelley e Arzube, 1985). Na Venezuela, M. metallicum é o vetor nos focos costeiros (Ramirez-Perez et al., 1977) e na região do Orinoco, na área Yanomami os vetores são Thyrsopelma guianense, Psaroniocopmsa incrustata, Cerqueirellum oyapockense (Rassi et al., 1978; Grillet et al. 2002). No foco brasileiro, localizado na área Yanomami/ Ye’kuana, foram assinaladas 26 espécies, das quais, 12 espécies possuem hábitos antropofílicos (Py-Daniel, 1997) e quatro (T. guianense, P. incrustata, C. oyapockense e N. exiguua) já foram assinaladas como transmissoras da filária O. volvulus (Medeiros e Py-Daniel, Para a oncocercose, a biópsia é o método para o diagnóstico parasitológico de microfilárias. As biópsias cutâneas são praticadas com “punch”, instrumento mais indicado, tirando-se de 3 mm de pele, possibilita a obtenção de amostras uniformes. O fragmento obtido é imediatamente colocado em gota de água destilada ou solução fisiológica, em lâmina. Após 10 minutos, observa-se em microscópio as microfilárias desprendidas da pele. Quando o líquido seca, retira-se o fragmento de pele, fixa-se e corase pelo Giemsa, para posterior identificação. A biópsia de nódulos é feita cirurgicamente. 4.1.4 Tratamento O tratamento de pessoas parasitadas tem sido feito com Ivermectina, cujo seu princípio ativo é apenas contra as microfilárias, e a posologia indica um ou dois comprimidos por ano. Outras drogas utilizadas são a Dietilcarbamazina, muito usada no passado, e que causava efeitos colaterais igual a Suramina (WHO, 1991). A nodulectomia - extirpação cirúrgica dos nódulos- é usada muito freqüentemente na Guatemala e no México, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa objetivando a redução na carga parasitária. Viney (2002), sugere o tratamento da doença, também com antibióticos, para eliminar a bactéria Wolbachia sp. causadora de reações imunológicas danosas no globo ocular, além de causar a redução da reprodução dos vermes, já que a bactéria induz a reprodução partogenética das fêmeas. 4.1.5 Profilaxia Os meios profiláticos contra a oncocercose visam à eliminação das microfilárias utilizando os microfilaricidas. É um tratamento longo, considerando que os vermes adultos têm uma vida média de 12 anos. A eliminação das microfilárias também pode ser feita pela desnodulização, que visa eliminar as fêmeas adultas. O controle de vetores está relacionado a alguns aspectos da sua biologia, como por exemplo, controle de imaturos utilizando inseticidas e medidas de controle biológico. Em áreas endêmicas, são importantes as medidas de conscientização, no sentido de modificar o hábito da população, orientada a se proteger dos simulídeos, utilizando roupas adequadas e repelentes, além de se tratar às pessoas parasitadas. Abraham et al. (2002), vem conseguindo respostas de imunização em gado e em ratos com estratégi- as de vacinas de subunidades protéicas de Onchocerca, dando perspectivas futuras de vacina. Existe atualmente um projeto de “genoma da cegueira dos rios” (Williams et al. 2002), que tem focado estudos em genes específicos de expressão protéica, com objetivo final de confecção da vacina. Nutman (2002) propõe também o uso de componentes da saliva de simulídeos como agente imunizante, para bloqueio de infecção no momento da picada do vetor com o reservatório. 4.2 Mansonelose M. ozzardi é a filária causadoura da mansonelose. Esta doença é causada pelo acúmulo de microfilárias nos vasos sanguíneos periféricos do homem. As pessoas portadoras de alta microfilaremia apresentam febre moderada, frieza nas pernas, dores articulares, adenite, tonturas e dor de cabeça (Batista et al. 1960). Explicase a origem dos sintomas da mansonelose devido à irritação local provocada pelas filárias, vivas ou mortas, e por reações tóxicas e alérgicas, decorrentes da sensibilização vascular produzida pelos vermes mortos. Mais recentemente foi atribuída uma sintomatologia a esta filariose, a presença de lesões na córnea, com círculos brancos na córnea que podem levar a cegueira (Branco et al., 1998). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 99 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) 100 As microfilárias de M. ozzardi são encontradas no sangue periférico, porém alguns autores têm relatado que estas também são encontradas na pele (Moraes, 1976). As fêmeas apresentam-se transparentes - esbranquiçadas, com cutícula lisa, medindo de 32-61 mm de comprimento por 0,15 mm de diâmetro. Os machos medem cerca de 24 - 28 mm de comprimento por 0,07 mm de diâmetro (Tavares e Fraiha Neto, 1997). As microfilárias caracterizam-se por ausência de bainha, primeiros núcleos somáticos tipicamente dispostos em fila única, cauda fina, terminando em forma de gancho ou foice (Tavares, 1981). As microfilárias medem aproximadamente 162 x 4 µm, e apresentam uma sobrevida de 32 meses. O ciclo biológico desse parasita nos simulídeos desenvolve-se em um período de aproximadamente nove dias (Cerqueira, 1959). Esta filariose possui uma distribuição geográfica limitada ao continente americano, sendo encontrada do México até a Argentina, e alguns países do Caribe; excetuando Chile, Uruguai e Paraguai, em todos os demais países das Américas ocorreram registros dessa filária (Tavares & Fraiha Neto, 1997). No Brasil, o descobrimento da filária M. ozzardi foi realizado por Deane (1949), em levantamento realizado no município de Manaus, Amazonas, Brasil. 4.2.1 Vetores A transmissão de M. ozzardi é realizada por dípteros de duas famílias, Ceratopogonidae e Simuliidae (Culicomorpha). Os primeiros estudos realizados por Buckley (1934) incriminaram Culicoides furens (Ceratopogonidae) como vetor da filária M. ozzardi na ilha de San Vicent, Caribe. Posteriormente C. furens e C. phlebotomus foram incriminados como vetores em Trinidad e no Haiti (Lowrie e Raccurt, 1981). Biagi et al. (1958) incriminaram C. furens como transmissor de M. ozzardi no México. A transmissão de M. ozzardi por culicóides na América do Sul foi primeiramente relatada por Romaña e Wygodzinsky (1950) no norte da Argentina, que identificaram C. paraensis como provável vetor, a partir de observações onde verificaram o desenvolvimento de microfilárias de M. ozzardi até o segundo estágio larval. Na Colômbia, Tidwell e Tidwell (1982), atribuíram a C. sanguineum, C. amazonicum, C. argentiscutum (Simuliidae) e Culicoides insiniatus, como prováveis responsáveis pela transmissão d e M . ozzardi. No sul do Panamá S . sanguineum [= C. sanguineum] foi incriminado como transmissor de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa M. ozzardi (Peterson et al., 1984). Na Guiana, Psaroniocompsa incrustata (Simuliidae) é incriminado como vetor (Nathan et al. 1982). Yarzábal et al. (1985) incriminaram C. oyapockense como vetores de mansonelose na Venezuela. Cerqueira (1959) foi o primeiro a mencionar os simulídeos como vetores, apontando C. amazonicum como vetor de M. ozzardi no Brasil. Shelley e Shelley (1976) confirmaram as conclusões de Cerqueira (1959). Shelley et al. (1980) demonstraram que existem duas espécies, C. amazonicum e C. argentiscutum, envolvidas na transmissão da mansonelose. Moraes et al. (1985), indicaram C. oyapockense como vetor no Estado de Roraima. Trabalho a longo prazo com vetor de M. ozzardi no Brasil foi desenvolvido por Medeiros (2002) quando estudou aspectos relativos a transmissão dessa filária e alguns fatores relacionados com a biologia de C. argentiscutum. 4.2.2 Diagnóstico Os métodos empregados são gota espessa (técnica usada para pesquisa de plasmódio); método de enriquecimento, como o método de Knott e o filtro de membrana, em que os parasitas são corados pelo Giemsa. 4.2.3 Tratamento O tratamento é feito com Ivermectina, 0,2 mg/kg (dose única), capaz de eliminar microfilárias do sangue periférico em 24 horas, persistindo a negativação da microfilaremia, pelo menos por 30 dias. Drogas conhecidas como macro ou microfilaricidas, como dietilcarbamazina e suramina sódica, não apresentam nenhuma atividade sobre as microfilárias de Mansonella ozzardi na região amazônica. 5 IMPOR TÂNCIA VETERINÁRIA IMPORTÂNCIA DOS SIMULÍDEOS Sob o aspecto veterinário, algumas espécies de simulídeos estão envolvidas na transmissão de leucocitozoonoses (malária de aves), uma doença que pode ser mortal em aves de corte, causada por protozoários parasitas do sangue (Crosskey, 1990). Estes insetos também são transmissores de oncocercose para o gado bovino, infecção geralmente não patogênica, causada por várias espécies de Onchocerca. Muitas espécies zoófilas de simulídeos causam reações alérgicas devido a hematofagia em rebanhos de animais de criação, provocando uma redução na produção de leite do gado, e no ganho de peso e na postura de ovos em aves de granjas (Crosskey, 1990). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 101 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) 6 IMPORTÂNCIA SÓCIO-ECONÔMICA DOS SIMULÍDEOS 102 A importância sócio-econômica desses insetos, está relacionada aos ataques de simulídeos aos seres humanos causando prejuízos na saúde e no conforto das comunidades. Embora não determinado, é notório os prejuízos que representam para empresas madeireiras, de construção, de mineração, agricultura e turismo. Os ataques ao gado causam perdas econômicas por danos causados pelo estresse provocado nos animais, além de perdas diretas devidos a mortes, doenças e redução na produção de leite do gado (Crosskey, 1990). Na Região Neotropical, os danos causados pela oncocercose são relativamente menores, bem como o impacto sócio-econômico se comparado com a África. A oncocercose é um sério problema nas áreas de cultivo de café no México e na Guatemala. Existem preocupações de que as áreas endêmicas nas Américas estejam se expandindo pela abertura de áreas florestais, podendo ocasionar expansão da doença (Anônimo, 1993). De acordo com Souza (1984), estes insetos em algumas áreas do Brasil, têm causado sérios problemas, afetando comunidades rurais, diminuindo a produtividade na agricultura. No litoral do Estado de São Paulo, a indústria turística é afetada por simulídeos, principalmente Chirostilbia pertinax devido a sua alta densidade e alta antropofilia (Araújo-Coutinho et al., 1988). 7 CONTROLE O controle de simulídeos tem sido feito por diferentes métodos: biológicos, químicos e mecânicos. Tem-se observado várias maneiras de controle natural desses insetos. Várias espécies de peixes foram indicadas como predadores de simulídeos. Py-Daniel e Py-Daniel (1984) no Estado de Goiás, Strieder (1985) e Mardini (1988) no Rio Grande do Sul, Sato (1986) em Santa Catarina, Dellome Filho (1992) no Paraná e Py-Daniel e Jégu (1996) no Amapá. Em se tratando da região Nordeste do Brasil as informações sobre a predação de simulídeos são poucas, existindo somente os trabalhos de Menezes (1968), no Estado do Ceará e de Almeida e Py-Daniel (1999) e Andrade et al. (2000), no Rio Grande do Norte. Alguns insetos já foram indicados como predadores naturais de simulídeos. Coleoptera Elmidae, Dytiscidae e Sthaphylinidae menos importantes (Gorayeb e Mok, 1982). Larvas de dípteros, como larvas de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Herbet TTadeu adeu de Almeida Andrade er nandes Medeiros Andrade,, Jansen FFer ernandes Felipe Ar le essoa e Victor Py-Daniel Arle leyy Costa PPessoa Chironomidae, adultos e larvas de Empididae e larvas de Muscidae são predadores (Crosskey, 1990). As ninfas de Odonata, já foram registradas predando larvas de simulídeos. As famílias Hydropsychidae e Rhyacophilidae (Trichoptera) e Perlidae (Plecoptera) são encontradas em águas correntes, indicados como importantes predadores das formas imaturas (Gorayeb e Pinger, 1978). Outros insetos que foram encontrados predando ou já encontrados restos de simulídeos no seu conteúdo estomacal são: Lepidoptera (Pyralidae), Megaloptera e Hymenoptera (Gorayeb e Pinger, 1978). O controle com produtos químicos é utilizado em grande escala no continente africano. Os organoclorados e organofosforado Temephos (Abate) foram os mais usados, e com o tempo as populações tornaram-se resistente a esses produtos (AraújoCoutinho, 1995). No controle com o uso de substâncias, a utilização da exotoxina do Bacillus thuringiensis var. israelensis (Bti) é um dos elementos empregados no controle de simulídeos, para substituir os larvicidas fosforados. No Brasil tem sido usado em programas regionais como no Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul. O controle mecânico é feito principalmente em pequenos rios, e consiste em remover galhos, folhas, pedras e outro material que possa servir como substrato para imaturos de simulídeos. Para substratos maiores, no caso de barragens, escovam-se as paredes e outros substratos artificiais pelos quais a água passe, para a eliminação das formas imaturas. As medidas de controle cultural estão fundamentadas no sentido da modificação do comportamento da população humana conscientizando-a de que não deve jogar lixo nos rios, mantendoos limpos, auxiliando no controle. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 103 Considerações sobre simulídeos (Diptera - Simuliidae) e filarioses (Oncocercose e Mansonelose) 8 REFERÊNCIAS ABRAHAM D.; LUCIUS, R; TREES, A. Immunity to Onchocerca spp. in animal hosts. Trends in Parasitology, 18 (4):164-171, 2002. ANDRADE, H. T. .A.; NASCIMENTO, R. S .S.; GURGEL, H. C. B.; MEDEIROS, J. F. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Educação Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 109 Alda Maria Duarte Araújo Castro2 1 Este artigo foi elaborado tomando como referência uma discussão mais ampla desenvolvida na Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em dezembro de 2001. 2 Doutora em Educação pela UFRN, professora das Disciplinas: Organização da Educação Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e de Metodologia do Trabalho Científico da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX. [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa Technological changes and the educational reformation in the 90’s 110 RESUMO Este artigo aborda as modificações ocorridas na sociedade contemporânea nas últimas décadas, ocasionadas pela evolução das tecnologias da comunicação e da informação. Analisa também, como essas transformações ocasionaram mudanças significativas na esfera da economia, das instituições sociais, culturais e políticas, definindo novas formas de organização e de funcionamento do Estado, visando torná-lo mais ágil, mais flexível no gerenciamento das políticas públicas. A Reforma do Estado, fundamentada em paradigmas neoliberais, traz como princípios básicos a redução do papel do Estado e como conseqüência a redução do investimento em programas sociais. Utiliza como estratégias a descentralização, a privatização, a desregulamentação e a focalização de programas em todos os seus campos de atuação. Orientada por esse referencial, a reforma educacional da década de noventa do século XX, caracteriza-se por trazer um novo modelo de gestão da educação pública, tanto do sistema quanto das suas instituições. As suas diretrizes estão explicitadas nos planos, programas e legislação elaborados para a área e visam cada vez mais adequar o sistema educacional às exigências do capital mundial e da globalização. ABSTRACT This paper discusses the changes in the modern society in the last decades which are linked to technological evolution in the communication and information areas. It shows that these changes modified the economic and social institutions, defining new forms of organization and the new role of the State, based in liberal paradigms that have, as main principle, investment reduction for social programs including educational area, with the following strategies: decentralization, privatization, deregulation and focused programs, looking for agility and flexibility in managing public politics. Educational reformation, in the st nineties and in the beginning at the 21 Century, guided by interests of neoliberalism is characterized by modelling a “new management” of public education whose rules are explicit in Brazilian legislation and government plans in order to adapt to modern capitalism and globalization. PALAVRAS-CHAVE Reforma do estado; neoliberalismo; reforma educacional. KEY-WORDS State reformation; neoliberalism; educational reformation. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte 1 MUD ANÇAS TECNOLÓGICAS E A MUDANÇAS REFORMA EDUCACIONAL DA DÉCADA DE NOVENTA Vivemos atualmente em um mundo em constante evolução, com mudanças significativas na esfera da economia, das instituições sociais, culturais e políticas. Essas mudanças se inscrevem em um processo crescente de mundialização da economia, da reestruturação da divisão internacional do trabalho, da perda da autonomia dos Estados Nacionais, da desregulamentação dos mercados e de modificações dos parâmetros de representações políticas. Para alguns autores, entre eles, Rifkin (1995), Off (1989), essas mudanças caracterizam a emergência de um novo mundo baseado em novos paradigmas, uma ruptura com modelos antigos. Essas manifestações tiveram início em primeiro lugar nas artes e na arquitetura e se consolidaram como fortes tendências, passando a moldar esquemas de pensamentos e relações sociais. Para outros, como Har vey (1992), Castells (1999) e Jameson (2001), essas mudanças seriam, apenas, parte de uma transformação cultural que acompanha a luta do capitalismo para sobreviver, não se apresentando, portanto, como uma mudança global de paradigmas nas ordens cultural, econômica ou po- lítica, que corresponda a uma “nova sociedade” “pós-industrial”. Inúmeras têm sido as transformações da produção da vida material e subjetiva nessa fase particular do capitalismo, que, na tentativa de superar sua atual crise, estabelece, como estratégias principais, o neoliberalismo, a globalização e a reestruturação produtiva. As divergências de opinião entre essas correntes dificultam o posicionamento diante dos diversos fenômenos que vêm acontecendo nas sociedades modernas. Reconhecemos que, em todas as etapas da história da humanidade, a tecnologia sempre teve uma contribuição importante nas transformações ocorridas em todos os campos das atividades humanas. No século XX, o desenvolvimento acelerado da eletrônica, da tecnologia digital e dos microprocessadores propiciou avanços em quase todas as áreas do conhecimento, nos processos de produção, nos métodos de comunicação, entre outros. Essa nova etapa de desenvolvimento do capitalismo tem provocado uma exclusão social que se dá em escala planetária atingindo de maneira diferenciada as regiões e países. É inquestionável a repercussão que essas transformações trazem para a economia mundial com conseqüências nem sempre positi- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 111 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 112 vas para a vida da sociedade em geral. No entender de Tedesco (1998), são tantas as mudanças ocorridas, tornando-se difícil elencar todas elas. O autor seleciona três áreas que, no seu entendimento, seriam suficientes para explicar melhor os processos de profunda transformação ocorridas na sociedade: o modo de produção, as tecnologias da comunicação e a democracia política (p.17-0). As mudanças no modo de produção foram ocasionadas pelas profundas transformações tecnológicas - a globalização e a competição exacerbada pela conquista de mercados. Esses acontecimentos promoveram a passagem de um sistema de produção de consumo de massa para um sistema de produção de consumo diversificado. As novas tecnologias baseadas na informática permitem a produção de pequenas quantidades de artigos cada vez mais adaptados aos diferentes clientes – caráter flexível de produção. No que se refere às tecnologias de comunicação e informação, elas podem ser consideradas como um dos elementos propulsores das mudanças na sociedade, tendo um impacto significativo, não só na produção de bens e serviço, mas também no conjunto das relações sociais. A acumulação da informação, a velocidade na trans- missão, a superação das limitações espaciais, a utilização simultânea dos multimeios, estão aí para mostrar o grande potencial dessas tecnologias. O impacto dessas transformações sobre a vida política se dá na medida em que as identidades políticas tradicionais, baseadas fundamentalmente na situação de cada ator no processo produtivo, perdem solidez. As fronteiras nacionais e os espaços nos quais se exercem a cidadania tendem a se ampliar para uma cidadania sem fronteiras ou reduzir-se ao âmbito local. Segundo Tedesco (1998), uma vez que sobre esse aspecto nada ainda é definitivo ou está muito claro, resta apenas perguntar: o que é a democracia ou qual será a fórmula política por meio da qual se expressará essa nova realidade social e econômica ? Segundo Schaff (1995), estamos vivendo a segunda revolução técnicocientífico, caracterizada por uma tríade revolucionária: a microeletrônica, a microbiologia e a energia nuclear. A primeira revolução técnico-científica teve o mérito de substituir na produção a força física do homem pela energia das máquinas, utilizando primeiro o vapor e depois a eletricidade. Na segunda revolução, as capacidades intelectuais do homem são ampliadas e inclusive substituídas por autômatos, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte que eliminam com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços modificando, substancialmente os mesmos. Isso provoca mudanças nas relações sociais, na formação econômica e política das sociedades. Nesse contexto de mudanças as transformações ocorridas no cenário mundial se complexificam a partir do reconhecimento que existe uma crise na economia mundial que assinala o esgotamento do modelo de crescimento adotado no pósguerra e encerra assim um ciclo ascendente da economia capitalista, caracterizado pelo pleno emprego, pela aplicação sistemática da organização científica do trabalho e pela intensificação do uso de recursos naturais. É consenso entre os estudiosos da temática que a microeletrônica modificou radicalmente as práticas produtivas, substituiu a mão-deobra por equipamentos automatizados como robôs e controle numérico, aumentou o conteúdo tecnológico dos produtos e introduziu uma trajetória inovadora. Essa nova trajetória é intensiva de conhecimento e requer o desenvolvimento de uma estrutura de natureza diferente da anterior. Enquanto o taylorismo/fordista gerava empregos diretos produzindo efeito multiplicador em uma ampla cadeia produtiva, o paradigma microeletrônico exige o desenvolvimento de uma estrutura de comunicação considerada crítica para a difusão do novo paradigma, envolve a instalação de fibras óticas, satélites espaciais, redes de comunicação em que não é relevante a quantidade de materiais, mas sim de tecnologia. A geração de empregos é reduzida e restrita a profissionais altamente qualificados. Segundo Tigre (1993, p. 31) O novo paradigma se difunde assimetricamente, trazendo distorções ainda maiores nos padrões mundiais de distribuição de riqueza. Os países mais beneficiados são aqueles com melhores condições infra-estruturais para incorporar novas tecnologias, aumentar a produtividade e desenvolver novos produtos e serviços. Isso inclui o sistema educacional, tanto básico, quanto superior, laboratórios e centros de pesquisas, redes eficientes de telecomunicações de dados, som e imagens e a capacidade de absorver novas formas de organização da produção. Isso nos remete à centralidade do conhecimento, que passa a se constituir a variável mais importante na explicação das novas formas de organização social e econômica. As novas práticas Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 113 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 114 produtivas têm enfatizado a maior participação dos trabalhadores nas tomadas de decisão, no controle da qualidade e a separação entre trabalho manual e o intelectual vem sendo sistematicamente substituída por formas mais cooperativas, flexíveis e participativas de produção. Assim, o novo profissional deve ter habilidades conceituais, lógicas e instrumentais que o conduzam ao aprendizado contínuo. Nessa lógica, o trabalhador precisa “aprender a aprender” para acompanhar o intensivo avanço tecnológico que tem tornado obsoleto o treinamento em técnicas especializadas. Essas novas exigências do mundo do trabalho, caracterizadas pelas alterações na base técnica do processo produtivo são ideologicamente influenciadas pelas políticas neoliberais que trazem, em seus pressupostos, a diminuição do papel do Estado. Este, no entender de Friedman (1998), deve ter uma função limitada: proteger a liberdade das pessoas contra os inimigos internos e externos, preservar a lei e a ordem, reforçar os conteúdos privados e promover os mercados competitivos. Outro ponto defendido pelos precursores do neoliberalismo é o papel do capitalismo competitivo, ou seja, a organização da atividade econômica por meio da empresa privada operando em um merca- do livre. Friedmam (1998), discorrendo sobre o assunto, afirma: A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das “regras do jogo” e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos – e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo (...) ( p.23). Harvey (1992, p. 160) chama a atenção para o fato de que esse Estado é mínimo apenas para o social, pois, na verdade, o Estado é máximo para o capital, uma vez que é chamado a regular as atividades do capital corporativo no interesse da nação e é forçado, ao mesmo tempo, também no interesse nacional, a criar “um bom clima” de negócios, para atrair o capital financeiro transnacional e global e conter (por meios distintos dos controles de câmbio) a fuga do capital para pastagens mais verdes e mais lucrativas. Ainda, no entender do autor, apesar da capacidade de intervenção estatal sofrer uma grande mudança a partir de 1972 em todo o mundo capitalista, isso não significa Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte que o intervencionismo estatal tenha diminuído de modo geral, principalmente n o t o c a n t e a o controle do trabalho, onde essa inter venção alcança um g rau bem mais fundamentado. No entanto, no campo social, o neoliberalismo defende a tese de que a função do Estado deve ser restrita à área de caridade pública – auxílio à pobreza – e de preferência em caráter complementar à caridade privada. Draibe (1988, p. 4), analisando o pensamento de Friedman, coloca que, para o autor: Os programas sociais – isto é a provisão de renda, bens e serviços pelo Estado – constituem uma ameaça aos interesses e liberdades individuais, inibem a atividade e a concorrência privadas, geram indesejáveis extensões dos controles da burocracia. Para Dourado (1999), o neoliberalismo atribui todas as mazelas do mundo contemporâneo ao papel intervencionista do Estado, e apresenta-se como uma única saída para a retomada do desenvolvimento econômico implementando reformas estruturais na sociedade, através do redirecionamento das atribuições do Estado como regulador da economia, cujas implicações mais severas estão na redução ou no desmonte das políticas de proteção social. A hegemonia do pensamento neoliberal não se espalhou por to- dos os países de dia para noite e nem de maneira semelhante em todos os países2. A primeira investida de peso na adoção desse ideário, pode ser encontrado na Inglaterra, com a eleição de Tatcher (1979), o primeiro país de capitalismo avançado a fazer uso das políticas neoliberais para combater os problemas da crise do bem-estar. Um ano depois nos Estados Unidos, Reagan chegou à presidência. Em 1982, a Alemanha também elegia Khol. A partir daí as idéias foram se disseminando pelo mundo, e, segundo Anderson (1995), já assumindo não só um cunho econômico, mas também político. O fato é que o neoliberalismo se transformou no pensamento hegemônico das últimas décadas, do século XX. Essa hegemonia é explicada por Anderson (1995, p. 15) da seguinte forma: No início somente os governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal. (...) No final dos anos 80, a Suécia e a Áustria ainda resistiam à onda neoliberal da Europa. E fora do continente europeu, o Japão, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 115 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa também continuava isento de qualquer pressão ou tentação neoliberal. Mas, nos demais países da OCDE, as idéias da Sociedade de Mont Pèlerim haviam triunfado plenamente. 116 O debate sobre o papel do Estado se configurou e foi acompanhado pela formulação de propostas de Reforma do Estado, tanto no que se refere a sua relação com a economia e a intervenção nas áreas sociais, como no que diz respeito ao próprio funcionamento da máquina estatal. Isso levou a uma verdadeira inversão das concepções sobre o papel do Estado, passando de Estado intervencionista - considerado até os anos setenta como necessário ao desenvolvimento, controlando os ciclos econômicos, combinando políticas fiscais e monetárias, garantindo dessa forma, os direitos sociais e o pleno emprego - para um Estado mais forte, porém com ações reduzidas e controlado pela economia de mercado. Na apreciação de Farah (1995, p. 22): Consolidou-se, assim, tanto nos países avançados como nos países em desenvolvimento a imagem do Estado como problema, estabelecendo uma polarização Estadomercado, em que, em contraposição ao mercado, tido como eficiente, ágil e capaz de oferecer produtos e serviços de qualidade, o Estado passou a ser visto como ineficiente, ineficaz e provedor de serviços de baixa qualidade. A crise econômica – e a crise do Estado – resultam, segundo esta perspectiva, do próprio Estado (...). Para enfrentar os desafios impostos por essa nova ordem econômica internacional, é necessário redimensionar o papel do Estado, é preciso mudar as políticas centralizadoras e intervencionistas, próprias do modelo Keynesiano que imperaram até a década de setenta. Nesse sentido, o Estado, enquanto instituição responsável pelo controle e pela regulamentação das políticas públicas, deverá assumir um novo perfil, ou seja, tornar-se uma instituição mais ágil, mais enxuta e flexível no gerenciamento das políticas públicas, voltada essencialmente, para promover o desenvolvimento econômico, utilizando, para isso, mais o controle do mercado do que os administrativos. É nesse contexto que o Governo Fernando Henrique Cardoso propõe uma reforma do Estado brasileiro. Esta reforma está inserida no reordenamento do desenvolvimento capitalista, tendo como principal responsável, as exi- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte gências do capital mundial, patrocinado pelo capital financeiro e por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Uma das primeiras estratégias apresentadas foi a criação de um Ministério – O Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE)3 – que apresentou o Plano Diretor da Reforma, estabelecendo, como diretriz, a redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social para fortalecerse na função de promotor e regulador desse desenvolvimento. O documento ainda defende que reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado. (MARE, 1995). 1.1 As diretrizes da reforma educacional brasileira da década de noventa As reformas que se processam, na década de noventa, no âmbito educacional, estão predefinidas como estratégia do denominado ajuste estrutural que direcionou as reformas do Estado no plano político institucional e no plano econômico-administrativo. Encontram-se inseridas em uma perspectiva de mudanças significativas que vêm acontecendo no atual estágio do de- senvolvimento capitalista. Portanto devem ser pensadas e analisadas dentro do contexto das políticas que a sociedade estabelece como projeto e que se implementam por meio da ação do Estado. Orientadas por esse referencial ideológico, as políticas educacionais passam a produzir novos paradigmas e enfoques que estão associados ao paradigma econômico centrado no novo sistema tecnológico e que vão determinar um novo tipo de organização sócio-produtiva que, de acordo com a ideologia neoliberal, permitirá que as nações e as empresas cresçam competitivamente na “sociedade global”. O conhecimento, como eixo central da atividade produtiva faz com que a educação apareça em cena como uma das condições indispensáveis para que os países possam atingir a competitividade que os levará a inserir-se na economia mundial. Essa é a tese defendida pelos organismos internacionais. No entendimento de Fonseca (1995, p. 17): (...) a política educacional, vista na ótica neoliberal, está inserida no âmbito das políticas de desenvolvimento produtivo em apoio à competitividade internacional com base no enfoque integrado que abrange políticas de desenvolvimento tecnológico, capacitação de mãode-obra e aperfeiçoamento de mercados de capital a longo prazo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 117 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 118 Para Carnoy (1995), a mudança na economia mundial provocou três tipos de reformas no setor educacional: reformas para adaptar o setor às demandas de qualificação tanto do mercado de trabalho nacional quanto do mercado mundial (impulsionadas por motivos de competitividade); reformas para atender aos cortes no orçamento do setor público e o ingresso do setor privado (impulsionadas por motivos financeiros) e reformas para melhorar o papel político que a educação desempenha como fonte de mobilidade e igualdade social (impulsionadas por critério de equidade)4. Ainda para o autor, os países têm feito uso dos três tipos de reformas para os seus ajustes estruturais. Os países desenvolvidos têm colocado a ênfase nas reformas impulsionadas por competitividade, diferente da ênfase que é dada pelos países da América Latina e África, que por estarem muito endividados, são obrigados a privilegiar quase que exclusivamente as reformas impulsionadas por motivos financeiros. Esse fato tem levado à diminuição dos gastos do Estado principalmente em programas sociais e ao aumento da exclusão da população de determinados tipos de serviços, agravando a po- breza e a marginalidade. Esse fato pode ser constatado nas reformas educacionais empreendidas no Brasil na década de noventa. No ajuste estrutural realizado pelo governo, destacam-se aspectos importantes dos variados tipos de reformas, com predomínio para as reformas financeiras. Apesar de serem justificadas por razões de competitividade e eqüidade, a preocupação maior é com a redução dos investimentos na área educacional em especial com o pessoal docente, trazendo redução de salários e uma formação aligeirada, muitas vezes realizada através de programas de educação à distância. Assim, essas reformas provocam efeitos econômicos e educativos que, na maioria das vezes, não se traduzem na melhoria da qualidade e nem da eqüidade, pelo contrário, em muitos casos essa situação é agravada pelos cortes dos investimentos. Nesse contexto, o governo Fernando Henrique Cardoso vem implantando uma reforma geral do Estado, incluindo reforma fiscal tributária, previdenciária, educacional, administrativa, as privatizações e a desregulamentação da economia e do mercado de trabalho. Os eixos centrais da Reforma do Estado influenciam diretamente a política educacional e repercutem nos planos elaborados para a área educa- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte cional da década de noventa. Essas ações de reformas educacionais desenvolvidas pelo MEC iniciaramse no quadro dos compromissos assumidos pelo governo e pelos organismos internacionais na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, 1990, e estão configurados principalmente no Plano Decenal de Educação para Todos (19932003), no Planejamento Político Estratégico (1995) e no atual Plano Nacional de Educação (2001), visando prioritariamente, à modernização da educação. As políticas educacionais acabaram sendo fortemente direcionadas, tanto na definição de suas prioridades quanto de suas estratégias, pelas orientações dos organismos internacionais financiadores, principalmente do Banco Mundial. A reforma educacional dos anos noventa caracteriza-se por trazer um novo modelo de organização e gestão da educação pública, tanto do sistema como das suas instituições. Os princípios que norteiam essa reforma estão baseados na focalização de programas, na descentralização, na privatização e na desregulamentação. Obedecendo a esses princípios, a reforma educacional que vem sendo gestada no país a partir da década de noventa, a exemplo do que está ocorrendo na América Latina, se encontra alinhada as novas exigências que o mundo do capital requer para a for mação dos trabalhadores e visa superar os graves problemas da educação básica brasileira, entre eles: baixas taxas de conclusão do ensino fundamental, ineficiência na administração e gestão escolar; carência de livros didáticos, equipamentos e materiais educativos, baixa qualidade e pouca eficiência da educação pública. Observa-se, no caso específico do princípio da focalização, a ênfase nos programas educacionais para o ensino básico, com destaque para o ensino fundamental de crianças e adolescentes em detrimento dos outros níveis de ensino. No entendimento de Moraes (2000, p. 38) a focalização substitui o acesso universal (direitos sociais, bens públicos, etc) por acesso seletivo ( que permita discriminar o receptor e o provedor de benefícios) redução das políticas sociais a programas de socorro à pobreza absoluta. (...) As políticas sociais do neoliberalismo, por sua vez, aproximam-se cada vez mais do perfil de políticas compensatórias, isto é, de políticas que supõem, como ambiente prévio e “dado”, um projeto de sociedade definido em outra seara que não o da deliberação planificadora: definido pelo universo das trocas, pela mão invisível do mercado. Existe uma contradição nes- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 119 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 120 sa opção, pois, se o objetivo é colocar o país em condições de modernidade e competitividade, a ênfase das políticas educacionais deveria recair sobre todos os níveis educacionais, principalmente sobre os campos científicos e tecnológicos requeridos pelo atual estágio de desenvolvimento capitalista. Investindo, apenas, em educação básica o Estado se omite de setores importantes do campo educacional, deixando espaço para a iniciativa privada que passa a ampliar seu raio de ação. No que se refere ao princípio da descentralização, esta é a estratégia de gestão usada, segundo o discurso oficial para propiciar a democratização do Estado e a busca de maior justiça social. Apesar das propostas de descentralização não serem novidades na administração pública, no contexto atual ela é indicada como uma das alternativas de solução para o impasse em que se encontra o sistema educacional. Na ótica de Lobo (1990, p. 6), tal impasse se verifica pela incapacidade do Estado em responder às mais prementes e agudas demandas de boa parte da população, mormente no que se refere ao aten- dimento de necessidades sociais básicas. E já não se aceita mais a desgastada tese que justifica a não resposta do Estado exclusivamente pela escassez de recursos financeiros, ou pela priorização dada ao crescimento econômico frente às políticas sociais. Ainda segundo Lobo (1990), a descentralização assume várias vertentes possíveis de serem realizadas: da administração direta para a indireta, entre níveis de governo e do Estado para a sociedade civil5. A esse respeito Carnoy (1997), também se posiciona colocando que a descentralização pode assumir formas variadas, dependendo da situação de desenvolvimento do país que a está utilizando. Por exemplo, países da Comunidade Européia, quando utilizam a estratégia da descentralização, insistem fortemente em questões de controle administrativo e não tanto na questão da redução dos gastos públicos que é o principal objetivo da descentralização nos países em desenvolvimento. No que se refere à vertente de descentralização implantada nos programas educacionais brasileiros, Cabral Neto (2000, p. 2) assinala que: A descentralização concebida como estratégia de afastamento do Estado em relação às suas obriga- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte ções sociais e acompanhada de novas formas de controle, conforme vem se configurando na gestão dos gastos públicos no Brasil, não pressupõe necessariamente a participação do cidadão na formulação e realização das políticas públicas, não garante a eficácia e eficiência dos serviços oferecidos e não se constitui em uma estratégia obrigatória para a consolidação da democracia, conforme expresso no discurso oficial. O governo federal, com essas reformas, vem se desobrigando do financiamento das políticas educacionais, pois tem que racionalizar recursos, ao mesmo tempo em que objetiva centralizar as diretrizes, principalmente mediante os parâmetros curriculares nacionais e avaliação das instituições de ensino. Ou seja, definir o que vai ser ensinado em todas as escolas do País e ter o controle, por meio da avaliação institucional. Estes aspectos são estratégicos neste atual momento da reforma do capitalismo. Nesse sentido, a educação a distância realizada através dos meios de comunicação e informação vai ter um papel bastante significativo. O princípio da privatização é entendido no seu sentido mais amplo como a transferência das responsabilidades públicas para organizações ou entidades privadas. Torres (1995) considera a privatização como uma estratégia importante nas reformas orientadas para impulsionar o mercado, constituindo-se, assim, uma preferência da política neoliberal. O autor apresenta alguns argumentos para esclarecer sua posição: Mediante a privatização de empresas do setor público, reduz-se a pressão sobre o gasto fiscal. Por outro lado, a privatização constitui um instrumento muito apropriado para despolitizar as práticas regulatórias do estado nas áreas de formação de políticas públicas. Ou seja, a privatização exerce um papel central nos modelos neoconservadores e neoliberais porque a compra de serviços contratados previamente é um mecanismo administrativo para solucionar questões específicas da legitimidade social do estado vinculado à produção de serviços sociais e também uma maneira de tomar emprestado do ethos empresarial da empresa privada, os sistemas de custo-benefício e a administração por objetivos (p.125) (grifos do autor). Utilizada em grande escala no campo econômico, a privatização passa a ser incorporada no campo social, em especial, na saúde e na educação como parte de um processo mais amplo de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 121 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 122 reestruturação das sociedades capitalistas contemporâneas. Atualmente, a privatização é um processo em curso nos atuais programas de ajuste e reforma educacional, e, na visão de Brum (2000), tem, entre outros, os seguintes objetivos: arrecadar recursos com a venda de patrimônio; reduzir o tamanho do Estado, retirando-o da atividade produtiva direta ou diminuindo a sua presença nela e em setores da infra-estrutura econômica; diminuir a dúvida pública interna e reduzir o déficit público. Vários argumentos são apresentados para a privatização da educação, entre eles, a superioridade da atividade privada sobre a atividade pública e os melhores resultados na qualidade da educação que os estabelecimentos privados oferecem em relação aos públicos. O princípio da desregulamentação se realiza pelo ajuste da legislação e dos métodos de gestão das instituições educacionais às novas diretrizes e através de instrumentos que assegurem ao governo central o controle do sistema educacional. Ou ainda, segundo Moraes (2000), a desregulamentação deve criar novas regulamentações, um novo quadro legal que diminua a interferência dos poderes públicos sobre os empreendimentos educacionais privados. Esses princípios estão presentes nas diretrizes dos documentos da Comis- são Econômica para a América Latina - CEPAL, no Relatório da Educação para o Século XXI, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, e nos documentos do Banco Mundial, criando, assim, um consenso sobre os rumos que as reformas educacionais nos países da América Latina devem tomar. Tomando como parâmetro essas diretrizes, o governo brasileiro vem reestruturando a educação básica, lançando mão de estratégias que no seu entender são as mais adequadas para a melhoria da qualidade, da eficiência e eqüidade da educação básica brasileira. Nesse sentido a política educacional brasileira, institucionalizada através dos planos, programas e legislação, elaborada e implementada na década de noventa, entre eles o Plano Decenal de Educação (1993-2003) e o Planejamento Político Estratégico ( 19951998), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96 e o Plano Nacional de Educação, trazem em suas diretrizes a sedimentação de uma política teoricamente voltada para a melhoria da qualidade da educação básica, no entanto o que se verifica na prática é a implantação de uma política neoliberal, de redução de investimentos na área educacional, que prioriza a relação custo-benefício e tem como objetivo um maior aumento da eficiência e da produtividade do sistema educacional, sob a nova ótica do mercado. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Alda Maria Duar te Araújo Castro Duarte 2 NO NOTTAS A América Latina foi palco da primeira experiência neoliberal sistematizada, segundo Anderson (1995), o Chile pode ser considerado o verdadeiro pioneiro do ciclo neoliberal da história contemporânea (p.19). 3 Para maiores detalhes sobre a natureza da Reforma do Estado veja por exemplo: Peroni (2000); Pereira (1998). 4 Para Carnoy (1995), as reformas impulsionadas por motivo de competitividade são aquelas que privilegiam o investimento no fator humano como responsável pelo aumento da produtividade das empresas. De maneira geral essa filosofia se baseia nas reformas que as instituições educativas têm levados em frente para a melhoria da qualidade de ensino. São classificadas em quatro categorias: descentralização, centralização, melhoria da gestão dos recursos educativos e melhoria na contratação do professor. As reformas impulsionadas por motivos financeiros têm no Banco Mundial o seu principal defensor e na última década as políticas seguiram a tendência a centrar-se em três tipos de reformas: transferência dos gastos públicos destinados ao ensino superior para o ensino básico; a privatização do ensino secundário e superior para ampliar esses níveis e a redução do custo por aluno em todos os níveis. Nas reformas impulsionadas por critério de equidade se considera que a educação é um instrumento de mobilidade social e tem como objetivo oferecer aos grupos menos favorecidos um ensino básico de qualidade, em especial para a grande massa de jovens e adultos que não têm acesso aos conhecimentos básicos e recomendam programas especiais de educação a distância e programas de educação não formal. A reforma por competitividade visa beneficiar determinados grupos, como as mulheres e as populações rurais. 5 Para Lobo (1990), a descentralização da administração direta para a indireta propiciou a proliferação de empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias, que hoje compõem um corpo poderoso à margem do controle central. A segunda vertente refere-se ao sistema de relações intergovernamentais, fruto da tendência histórica à centralização, esse sistema encontrase hoje desequilibrado, com um elevado grau de complexidade. Na verdade nos últimos anos, Estados e Municípios perderam sua capacidade de atuar como reais agentes de governo e defendem a descentralização como alternativa. A descentralização nessa vertente desdobra-se em duas dimensões: a financeira - via redistribuição das receitas públicas, e o político-institucional – através de novos arranjos no sistema de competências governamentais. No terceiro caso, refere-se à transferência de funções, hoje executadas pelo setor público, que podem ser executadas exclusivamente ou em cooperação com o setor privado (instituições econômicas, organizações civis). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 123 Mudanças tecnológicas e a reforma educacional da década de noventa 2 REFERÊNCIAS ALVES, Edgar. Modernização produtiva & relações de trabalho: perspectivas de políticas públicas. Petrópolis: Vozes, 1997. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo.(Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Plano Decenal de Educação para Todos. Brasília. 1993. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Planejamento Político Estratégico 1995-1998. Brasília, maio, 1997. BORÓN, Atílio. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, Emir. GENTILI Pablo. (Orgs.). 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E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Concepções de alfabetização: Algumas interpretações Conceptions on alphabetization: Some interpretation. 128 RESUMO As bases teórico-práticas das concepções de alfabetização originam-se da Pedagogia, da Psicologia e da Lingüística. Essas concepções, para efeito didático, foram agrupadas em duas abordagens fundamentais: as que enfatizam a alfabetização de forma mecanicista e as que concebem a alfabetização como processo de construção e apropriação do conhecimento. Neste artigo pretende –se discutir a primeira delas – a abordagem mecanicista de alfabetização. A abordagem mecanicista tem seus fundamentos assentados no estruturalismo, no funcionalismo e no behaviorismo, modelos que tratam o comportamento humano dando ênfase à funções psicológicas periféricas da atividade mental como percepção, sensação, memória, discriminação visual, sem considerar o papel fundamental das funções psicológicas superiores. A alfabetização é vista como aprendizagem do código escrito, dando ênfase na leitura como decodificação da escrita. Partindo de uma crítica contundente à abordagem mecanicista, Ferreiro (1985) apresenta a dinâmica do processo de alfabetização, redimensionando seu significado, na linha construtivista - interacionista, que associa a aquisição da leitura e escrita ao processo de desenvolvimento conceitual da criança. ABSTRACT Theoretical and practical bases of the conceptions on alphabetization have their origin on Pedagogy, Psychology and Linguistics. These conceptions, for didactic effects, have been disposed in two fundamental approaches: the one, which emphasizes the alphabetization in a mechanicist way, and the one which understands alphabetization as a process of construction and appropriation of knowledge. In this article, the objective is to discuss the first one - the mechanicist approach of alphabetization. This approach has its bases settled on structuralism, functionalism and on behaviorism, patterns that treat the human behavior by giving emphasis to the psychological and peripheral functions of the mental activity, such as perception, sensation, memory and visual discrimination, without considering the fundamental role of the superior psychological functions. The alphabetization is seen as the learning of a written code, and the emphasis is given to the reading as decoding the writing. A contusing critic of the mechanicist approach, Ferreiro (1985) presents the dynamic alphabetization process by changing its meaning, on a constructivist-interaccionist issue, which associates the reading and writing acquisition to the conceptual process of development of the child. PALAVRAS-CHAVE Educação; concepção de alfabetização; abordagem mecanicista; abordagem construtivista KEY WORDS Education; conceptions on alphabetization; mechanistic and constructivist approaches. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Jacy ene Melo de Oliveira Araújo Jacyene O ser humano apreende a realidade modificando-a, ou seja, influindo ou atuando sobre ela. Pois, a prática continua sendo a base e o critério decisivo para a exatidão do pensamento (Rubinsthein, 1979, p. 132). O pensamento teórico continua dependendo, em conjunto, da prática. Sendo assim, O conteúdo conceptual do pensamento surge no desenvolvimento histórico do conhecimento específico que assiste no desenvolvimento da prática social. A sua evolução é um processo histórico, que está submetido a leis históricas. (id, 1979, p. 132) As bases teórico-práticas das concepções de alfabetização originam-se da pedagogia, da psicologia e da lingüística. Essas concepções, para efeito didático, foram agrupadas em duas abordagens fundamentais: as que enfatizam a alfabetização de forma mecanicista e as que concebem a alfabetização como processo de construção e apropriação do conhecimento. Neste artigo pretende –se discutir a primeira delas – a abordagem mecanicista de alfabetização. A abordagem mecanicista tem seus fundamentos assentados no estruturalismo, no funcionalismo e no behaviorismo, modelos que tratam o comportamento humano dando ênfase a funções psicológicas periféricas da atividade mental como percepção, sensa- ção, memória, discriminação visual, sem considerar o papel fundamental das funções psicológicas superiores. Desta forma, reduz-se a linguagem e a aquisição do conhecimento ao nível sensório-motor, ou seja, ao fisicamente observável. Nessa abordagem, a alfabetização é vista como aprendizagem do códig o escrito, dando ênfase na leitura como decodificação da escrita. De acordo com Araújo (1968), nos métodos de leitura utilizados no processo de alfabetização, na visão mecanicista, são considerados dois pontos de importância: a natureza dos elementos lingüísticos usados na iniciação do processo de ler (letras, sílabas, palavras, orações, contos), e os processos mentais envolvidos nesse primeiro estágio. Partindo desses dois pontos existem dois “grandes métodos” (grifo nosso): o sintético e o analítico. A esse respeito a autora afirma: Ao passo que o primeiro parte dos menores elementos - letras, sílabas ou sons - para depois chegar à leitura, o analítico inversamente, parte das unidades maiores - palavras, orações e conto - procedendo a decomposição deles em elementos cada vez menores, para depois reuni-los em novas palavras.(Araújo, 1968, p. 15-16) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 129 Concepções de alfabetização: Algumas interpretações 130 Como métodos que dão ênfase ao ensino das partes ou elementos que compõem a palavra, durante o processo de ensino da leitura e da escrita, pode-se considerar o alfabético, o fônico e o silábico. No método alfabético, inicia-se a leitura através da familiaridade de formas das letras, que ajuda ao aluno, através da combinação e da repetição de sons reconhecidos nas letras, a soletrar palavras, mesmo sem identificar o seu significado. O método fônico, por sua vez, de acordo com Soares (1989) passou a ser adotado em lugar do alfabético na tentativa de superar a grande dificuldade na aprendizagem em função de não haver relação biunívoca entre o som e a letra. Baseado no som das letras, o fônico procura estabelecer a relação entre sons e letras correspondentes. O método silábico, diferente dos sintéticos anteriores (alfabético e fônico) tem na sílaba a unidade fonética estabelecida como ponto de partida para o ensino da leitura. Baseia-se no princípio lingüístico da fonética de que uma consoante só pode ser emitida apoiada na vogal, portanto só a sílaba, e não as letras, funciona como unidade lingüística para o ensino da leitura. Conforme Araújo (1968, p. 1617) esse método: Partindo das sílabas, intencionalmente escolhidas preconizava e ainda preconiza o estudo dessas unidades, unindo-as logo, na formação de novas palavras. Por outro lado, como os métodos de alfabetização que dão ênfase à compreensão da leitura desde sua fase inicial (analíticos), apresenta-se a palavração, a sentenciação e o método historiado (histórias, contos, etc). Nessa visão de alfabetização a ênfase está no aprendizado da leitura em si mesmo e não na produção de textos pela criança. A palavração consistia no estudo das palavras, sem que haja, contudo, sua imediata decomposição em sílabas. Quando as crianças já conhecem várias palavras, formamse orações e pequenos textos. Sendo um estágio mais avançado do método analítico, a sentenciação enfatiza a habilidade da leitura com compreensão (inteligente). Para Araújo (1968, p. 20), neste caso, ormam-se as orações, de acordo com os interesses dominantes da classe. Lançase uma oração no quadro e procede-se a decomposição em palavras. Depois que a criança já conhece algumas delas, por configuração visual, estudam-se as sílabas dessa mesma palavra”. O método historiado (conto, histórias) visa levar a criança à idéia de que ler é um meio de descobrir sentido na página impressa. Consistia na apresentação de historietas que, decoradas a princípio, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Jacy ene Melo de Oliveira Araújo Jacyene eram depois divididas em elementos cada vez menores: orações, expressões, palavras e sílabas. No convívio com esse material, a criança deveria reconhecer as palavras individualmente. Apesar das divergências entre os defensores do método sintético, o acordo sobre esse ponto de vista é total. Inicialmente, a aprendizagem da leitura e da escrita é uma questão mecânica; trata-se de adquirir a técnica para o decifrado do texto. O aprendizado da leitura é visto, simplesmente, como uma associação entre respostas sonoras e estímulos gráficos. Segundo Ferreiro e Teberosky (1985, p. 20): Este modelo, que é o mais coerente com a teoria associacionista, reproduz, a nível da aprendizagem da escrita, o modelo proposto para interpretar a aquisição da linguagem oral. Ferreiro e Teberosky (1985) colocaram que, para os defensores do método analítico, a leitura é um ato “global” e “individual”. Enfatiza-se o reconhecimento global das palavras ou orações; a análise dos componentes é uma tarefa posterior. A leitura é vista como uma tarefa fundamentalmente visual. São muitos aspectos que diferem entre ambos os métodos, porém os desacordos referem-se sobretudo ao tipo de estratégia perceptiva em jogo: auditiva para uns, visual para outros. A ênfase dada nesses métodos às habilidades perceptivas para reconhecer signos escritos deixa de considerar aspectos fundamentais: a competência lingüística da criança e suas capacidades cognoscitivas. Segundo Braggio (1992), estes métodos acima explicitados, de base empirista - behaviorista, reduzem a linguagem à aquisição do conhecimento no nível sensório e fisicamente observável, mensurável. De acordo com essa autora, nesta perspectiva: (...) a aquisição da linguagem é vista como um processo mecânico, no qual a criança enuncia e repete sons vocais somente quando há um estímulo do ambiente. (...) vêem a linguagem como um sistema que pode ser “quebrado” em constituintes interligados são usados em comunicações orais. Não se dá nenhuma atenção no significado, aos usos e funções da linguagem, ao contexto onde é produzida. (Braggio, 1992, p. 9) Nesse sentido, há uma perda total do significado no processo de aprendizagem, devido à preocupação com a decodificação mecânica da linguagem escrita. A forma precede a função, quando se aprende a ler e escrever. Em síntese: (...) a aprendizagem, ou a aquisição da linguagem escrita é vista, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 131 Concepções de alfabetização: Algumas interpretações pois, como um processo repetitivo, mecânico, onde a técnica de ler e escrever prevalece sobre a compreensão, o significado. O conhecimento anterior da criança sobre a linguagem é ignorado no processo, bem como o contexto de onde ela vem. Sua criatividade é cerceada. A leitura e a escrita são vista como um meio para um fim em si mesma, sem nenhum caráter funcional. (Braggio, 1992, p. 15) 132 Sendo assim, pode-se dizer que essa concepção está calcada nesses pressupostos, que influenciam a natureza e a didática da ação pedagógica. Segundo Collelo (1995, p. 7576), em relação à prática alfabetizadora mecanicista: (...) a escola sistematiza o processo, distribui as dificuldades inerentes à escrita de acordo com uma seqüência lógica do ponto de vista do adulto, criando, com isso, uma língua artificial que, para a criança, falha enquanto meio de expressão. Partindo de uma crítica contundente à abordagem mecanicista, Ferreiro (1985) apresenta a dinâmica do processo de alfabetização em bases novas e ampliadas, redimencionando seu significado, principalmente nos países da América Latina. A alfabetização é abordada por Ferreiro na linha construtivista interacionista, que associa a aquisi- ção da leitura e escrita ao processo de desenvolvimento conceitual da criança. Ferreiro utilizou como fundamentação teórica nas suas investigações conhecimentos de psicolingüística contemporânea e da Psicologia Genética, cujos maiores expoentes são, respectivamente, Chomsky e Piaget. A autora abstraiu do lastro teórico piagetiano dois constructos essenciais - construção e interação - enquanto suporte para o desenvolvimento do pensamento e, consequentemente, para a produção do conhecimento. Segundo Guimarães (1991, p. 52): (...) A adesão da autora a esse referencial permitiu-lhe a sistematização dos princípios psicopedagógicos norteadores do processo de alfabetização de crianças, canalizando seus estudos para as especificidades do aprendizado da língua escrita, e trazendo para a abordagem epistemológica piagetiana a possibilidade de estudar o processo individual da construção das representações sociais. Ferreiro entende alfabetização como um processo ativo de construção da língua escrita, visto pela autora como um objeto cultural de representações simbólicas. Nesse sentido Ferreiro e Teberosky (1985, p. 22) afirmam: Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Jacy ene Melo de Oliveira Araújo Jacyene (...) no lugar de uma criança que espera passivamente o reforço externo de uma resposta produzida pouco menos que ao acaso, aparece uma criança que procura ativamente compreender a natureza da linguagem que se fala à sua volta, e que, tratando de compreendê-la, formula hipóteses, busca regularidades coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gramática (...) no lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói por si mesma a linguagem, tomando seletivamente a informação que provê o meio. Para Ferreiro (1985), a abordagem associacionista não vê a escrita como um sistema de representação de linguagem, mas como a simples transcrição gráfica de unidades sonoras. Sendo assim, reduz a leitura ao mero decifrado e a escrita à mera cópia de modelos preestabelecidos pelo adulto, não considerando as concepções da criança sobre o sistema de escrita. A autora acredita ainda que os erros na escrita indicam etapas do processo de construção do conhecimento desse objeto, servindo de pistas para a intervenção do professor. Para Ferreiro (1991, p. 66-67; 102): (...) a aprendizagem da leitura e escrita é muito mais que aprender a conduzir-se de modo apropriado com este tipo de objeto cultural (inclusive, quando se define culturalmente o termo “apropriado”, ou seja, quando o relativizamos). É muito mais do que isto, exatamente porque envolve a construção de um novo objeto de conhecimento que, como tal, não pode ser diretamente observado de fora. (...) É necessário entender que a aprendizagem da linguagem escrita é muito mais que aprendizagem de um código de transcrição: é a construção de um sistema de representação. Apreende-se dessa colocação que, para se trabalhar a alfabetização numa perspectiva de construção, é necessário compreender o sujeito e o objeto a ser conhecido, a língua escrita. Para se compreender o sujeito é preciso saber que concepções da língua escrita o sujeito possui, a partir do momento em que começa a interagir com a língua escrita. O processo de construção da escrita se inicia quando a criança é capaz de estabelecer a diferença entre as marcas gráficas figurativas (desenho) e as marcas gráficas não-figurativas (a escrita). A concepção construtivista de alfabetização põe em relevo que as primeiras conceitualizações da crian- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 133 Concepções de alfabetização: Algumas interpretações 134 ça sobre a natureza escrita começam muito antes da intervenção do ensino sistemático. Pela interação com jornais, revistas, letreiros, rótulos de alimentos, etc, a criança constrói hipóteses a respeito desse sistema de escrita, e gradativamente, passa por diferentes concepções sobre o mesmo até assimilá-lo totalmente. Para o professor compreender o objeto, a língua escrita, torna-se indispensável conhecê-la e não ser somente um usuário dela. Segundo Ferreiro (1987), se definirmos a escrita como uma forma particular de representação gráfica, levando em conta suas origens psicogenéticas, vêse que a maioria das crianças pré-escolares já escreve e que, entre as concepções iniciais e a alfabética há um longo processo de evolução, que muitas crianças atingem na pré-escola, enquanto outras chegam à escola ainda nos níveis iniciais do processo. Se a construção do conhecimento se caracteriza como um processo de invenção e descoberta, cabe ao professor criar situações problematizadoras que permitam avanços conceituais na aquisição da leitura e da escrita. Seu papel é de mediador entre o sujeito e o objeto. A maior contribuição que o construtivismo deu à alfabetização foi permitir aos alfabetizadores a compreensão de como se aprende a ler e a escrever, entendendo as produções das crianças como construções indicadoras de avanços conceituais e não de erros ou incapacidades de aprendizagem. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Jacy ene Melo de Oliveira Araújo Jacyene REFERÊNCIAS ARAÜJO, Maria Ivonne. O ensino da leitura através dos tempos. In: Iniciação à leitura. Belo Horizonte: Vigília, 1968. p.15-24. BRÁGGIO, Sílvia L. B. Leitura e Alfabetização: da concepção mecanicista a sóciopsicolingüística. São Paulo: Artes Médicas, 1992. BRASLAVSKY, Berta. Escola e alfabetização: uma perspectiva didática. São Paulo: UNESP, 1993. CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Linguística. 5. ed. São Paulo: Scipione, 1992. COLELLO, Sílvia Gasparian. Escrita e Pedagogia da alfabetização. In: Alfabetização em Questão. 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Professora dos cursos de Administração e Marketing da Faculdade “Câmara Cascudo”; Assistente em Ciência e Tecnologia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE. Instrutora da Área de Recursos Humanos do SEBRAE. Rua Érico Monteiro, 1980 – Capim Macio; CEP 59082-170 – Natal-RN; Tel.: (0xx84) 30825177 – 99741146; e-mail: [email protected]. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil New ways on public administration and the brazilian college education policy 138 RESUMO O presente ensaio pretende compreender este momento difícil que as universidades brasileiras atravessam, onde estão perdendo privilégios, bens, recursos e respeitabilidade, por intermédio de um estudo feito em sua história pautado em legislações, desde sua criação até os dias atuais, enfatizando seus objetivos, produtos e reformas administrativas. ABSTRACT This paper means to understand the problems that Brazilian universities are having at current time: losing privileges, assets, resources and respectability. So, we consider the universities history based on the Brazilian legislation since their foundation until the present day, emphasizing their goals, products and administrative reformations. PALAVRAS-CHAVE Ensino superior; universidades; instituições de ensino superior. KEY-WORDS Higher education; universities; education. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira 1 INTRODUÇÃO O setor de serviços, especificamente o segmento da educação, vem recebendo crescente atenção em virtude das atuais transformações, sendo motivo de preocupação de governos, professores, pesquisadores, alunos e servidores. A nível mundial, Drucker (1996, p. 173) aponta como necessidade para a transformação social e política do século XXI a definição da educação – sua finalidade, valores e conteúdo. Teremos que aprender a definir a sua qualidade e produtividade, para poder medí-las e gerenciá-las. Enfatizando a necessidade de trabalhar de for ma sistemática na qualidade do conhecimento e na sua produtividade, até agora não definidas. Porém, como se percebe na citação a seguir, retirada do próprio Ministério da Educação, a nível nacional dentre as mudanças que o Brasil está vivenciando, com a estabilização da economia, será possível às instituições de ensino voltaremse mais para o planejamento da qualidade e então atuar de forma pró-ativa em tudo aquilo que estiverem dispostas a realizar. Em países como o Brasil, a existência de um sistema de instituições de alta qualidade, de âmbito nacional, é absolutamente necessá- rio por diferentes razões: estabelecer padrões de qualidade para o conjunto do sistema, constituindose como referência para o setor privado, prover o pessoal altamente qualificado necessário ao desenvolvimento do próprio ensino superior, tanto público como privado, abrigar a pesquisa, especialmente aquela de auto custo que não oferece retorno social imediato, compensar as desigualdades regionais, garantido a oferta de ensino de alta qualidade e a institucionalização de capacidade de pesquisa em todas as regiões do país. Dado o custo deste sistema, a responsabilidade de mantê-lo deve caber ao Governo Federal. Foi o reconhecimento destas necessidades que promoveu e justificou a criação da rede federal de instituições de ensino superior. (MEC, 1996, p. 49-50). Neste contexto, interroga-se, será que as nossas universidades federais foram criadas e estão mesmo atingindo a este objetivo, ou como nos fala Salama (1994), sobre os desvios dos serviços públicos, que não beneficiam, ou muito pouco, aqueles para quem supostamente em prioridade haviam sido criados, já que as pessoas das camadas mais pobres mal conseguem mandar seus filhos para as escolas primárias e secundárias, que sofrem com a baixa qualidade do ensino, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 139 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil não conseguindo assim o terceiro grau, ficando então as universidades federais restritas as camadas mais abastardas. E quanto às pesquisas, estarão mesmo atingindo seus objetivos? 2 BREVE HISTÓRICO 140 A história da educação no Brasil começa em 1549 com a chegada dos primeiros padres jesuítas, inaugurando uma fase que haveria de deixar marcas profundas na cultura e civilização do país. Movidos pelo intenso sentimento religioso de propagação da fé cristã, durante mais de 200 anos, os jesuítas foram praticamente os únicos educadores do Brasil. Embora tivessem fundado inúmeras escolas de ler, contar e escrever, a prioridade dos jesuítas foi sempre a escola secundária, grau do ensino onde eles organizaram uma rede de colégios de reconhecida qualidade, alguns dos quais chegaram mesmo a oferecer modalidades de estudos equivalentes ao nível superior. Porém, com a mudança da sede do Reino de Portugal e a vinda da família Real para o BrasilColônia, em 1808, a educação e a cultura tomaram um novo impulso, com o surgimento de instituições culturais e científicas, de ensino técnico e dos primeiros cursos superiores (como os de medicina nos estados do Rio de Janeiro e da Bahia). Todavia, a obra educacional de D. João VI, meritória em muitos aspectos, voltou-se para as necessidades imediatas da corte portuguesa no Brasil. As aulas e cursos criados, em diversos setores, tiveram o objetivo de preencher demandas de formação profissional. Essa característica teve enorme influência na evolução da educação superior brasileira, pois seu perfil de atividades acadêmicas foi eminentemente profissional o que acarretou ver a universidade, quando criada, com a ótica da escola profissional, dificultando a formação de uma cultura universitária. No entanto, com a independência do país, conquistada em 1822, algumas mudanças no panorama sócio-político e econômico pareciam traçar-se, inclusive em termos de política educacional, pois na Constituinte de 1823, pela primeira vez se associa sufrágio universal e educação popular – uma como base do outro. Debatendo-se, também a criação de universidades no Brasil, com várias propostas apresentadas. Como resultado desse movimento de idéias, surge o compromisso do Império, na Constituição de 1824, em assegurar “instrução primária e gratuita a todos os cidadãos”2 Teria sido a “Lei Áurea” da educação básica, caso ti- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira vesse sido implementada. Da mesma forma, a idéia de fundação de universidade não prosperou, surgindo em seu lugar os cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, em 1827, fortalecendo o sentido profissional e utilitário da política iniciada por D. João VI. Na década de 1920, devido mesmo ao panorama econômicocultural e político que se delineou após a Primeira Grande Guerra, o Brasil começa a se repensar. O setor educacional participa do movimento de renovação. É neste período que surge a primeira grande geração de educadores como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço filho, Almeida Júnior, entre outros, que lidera o movimento, tentando implantar no Brasil os ideais da Escola Nova e divulga o Manifesto dos Pioneiros3 . Também neste período, surgem as primeiras universidades brasileiras, do Rio de Janeiro (1920), Minas Gerais (1927), Porto Alegre (1934) e Universidade de São Paulo (1934). Esta última constitui o primeiro projeto consistente de universidade no Brasil, daria início a uma trajetória cultural e científica sem precedentes. A Constituição de 1934 consigna avanços significativos na área educacional. No entanto, em 1937, instaura-se o Estado Novo outorgando ao país uma Constituição autoritária, registrando-se em decorrência um grande retrocesso. Porém, após a queda do Estado Novo, em 1945, muito dos ideais são retomados e consubstanciados no Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.4 De 1945 até a Revolução de 1964, quando se inaugura um novo período autoritário, o sistema educacional brasileiro passou por mudanças significativas, destacando-se na década de 40 a criação das Universidades do Rio Grande do Sul, da Bahia, de Pernambuco, do Paraná, de Minas Gerais e uma universidade rural, a do Rio de Janeiro. Na década seguinte são criadas as universidades do Ceará, do Espírito Santo, do Pará, a Rural de Pernambuco e a Escola Paulista de Medicina5 . No entanto, a maior expansão do sistema ocorre na década de 60. Quando no período de 60/62 são criadas as universidades de Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Paraíba, Juiz de Fora, Fluminense, Santa Maria, Goiás, Amazonas, Alagoas e, nova experiência, a Universidade de Brasília. Outra grande contribuição para o sistema educacional brasileiro foi o surgimento, em 1951, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e da atual Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 141 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil 142 Ensino Superior (CAPES), com o objetivo de fomentar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia por meio da concessão de bolsas de estudos e auxílios à pesquisa e a instalação do Conselho Federal de Educação, em 1961. Na fase que precedeu a aprovação da LDB/61, ocorreu um admirável movimento em defesa da escola pública, universal e gratúita, sendo interrompido pelo movimento de 1964. No entanto, em 1968 é aprovada a Lei 5.540/68, introduzindo mudanças significativas na estrutura do ensino superior. Esta Lei é substituída somente em 96 e 97 através da Lei nº 9.394/96 e Decretos nºs 2.207/ 97 e 2.306/97 que estar em vigor até hoje. Assim, o sistema de universidades públicas federais, com suas marcas históricas, suas conquistas, seus desvios, seus percalços e seus dilemas, não foi pensado ou construído afirmativamente, por um projeto institucional ou por deliberação governamental de investir em ciência, em cultura e em educação, para servir ao conjunto da sociedade brasileira. O sistema de universidades públicas federais se formou reativamente, como bem expressam os movimentos e as ações que se generalizam pelo país em defesa da universidade pública federal. 3 LEGISLAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR Nº Documento/Descrição Decreto nº 19.851/1931 - a União impôs à universidade brasileira, um modelo de organização e de estruturação universitária. Lei nº 4.024/1961 - Lei de Diretrizes e bases – impõe-se uma reforma na estruturação e organização da universidade, tentando resolver os problemas que a afetavam. Decreto-Lei nº 53/1966 - Fixa princípios e normas de organização para as universidades federais e dá outras providências. Decreto-Lei nº 252/1967 - Estabelece normas complementares ao Decreto-Lei n. 53, de 18.11.1996, e dá outras providências. Lei nº 5.540/1968 - Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Decreto-Lei nº 464/1969 - Estabelece normas complementares à Lei n. 5.540, de 28.11.1968, e dá outras providências. Resolução/CFE nº 29/1974 O Presidente do CFE, no uso de atribuição legal, altera o artigo 7º da Lei 5.540 que versa sobre a criação das universidades. Lei nº 6.420/1977 - Altera o Artigo 16º da Lei 5.540 que versa sobre o processo de nomeação de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira dirigentes universitários. Lei nº 7.177/1983 - Altera o Artigo 16º da Lei n. 5.540, que regulamenta o processo de escolha dos dirigentes universitários. Lei nº 9.131/1995 - Altera dispositivos da Lei n° 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e dá outras providências. Lei nº 9.192/1995 - Altera dispositivo da Lei n. 5.540, que regulamentam o processo de escolha dos dirigentes universitários. Lei nº 9.394/1996 - Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Decreto 2.207/1997 - Regulamenta o Sistema Federal de Ensino. Decreto nº 2.306/1997 - Regulamentação das instituições de ensino superior. Portaria nº 302/1998 - O Ministro de Estado da Educação e do Desporto, altera o Art. 1º inciso II, do Decreto 2.026/96, versando sobre a avaliação do desempenho individual das instituições de ensino superior, que será realizada pela SESu no âmbito do PAIUB. Fonte: Coleção de Leis, v. 1, p. 393. Através destes dispositivos legais o governo brasileiro tenta impor modelos as universidades, no sentido de estruturar, organizar e resolver os seus problemas, estas, por sua vez lutam para por em práticas o que a lei estabelece. No entanto, de acordo com Moro (1978, p. 20): A lei prevê unidade de funções de ensino, pesquisa e extensão, veta a duplicação de meios para fins idênticos, prevê racionalidade de organização, com plena utilização de recursos materiais e humanos, prevê universalidade de campo, pelo cultivo das áreas fundamentais do conhecimento humano e flexibilidade de métodos e critérios, com vistas às diferenças individuais dos alunos, às peculiaridades regionais e ao desenvolvimento de programas de pesquisas em todas as áreas. Em contrapartida, universidades debatem-se ante a falta de uma administração uniforme e coordenada para o seu conjunto, ante a necessidade de um planejamento global de seu desenvolvimento e do estabelecimento de uma política universitária, ante o cerceamento que a própria lei impõe à estruturação e organização da universidade. Existe, todavia uma constante discrepância entre a teoria e a prática, entre a lei e a realidade. Discrepâncias estas que podem ser superadas, segundo tão bem nos relata Sander (1977, p. 27), ao dizer: Na realidade, todas as leis, planos e reformas educacionais observam aspectos de idealismo e realismo, do velho molde e da nova Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 143 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil moda. A transformação educacional, como a mudança social em geral, é um processo lento, uma luta dialética entre contrários – entre o passado e o presente, o ideal e o real em que as regras do jogo favorecem ao mais forte. Portanto, a estratégia para alcançar uma verdadeira transformação da educação é o fortalecimento de um sistema realista que, pela sua legitimidade cultural, seu apoio na realidade infra-estrutural do País e sua funcionalidade política, pouco a pouco vá superando o modelo idealista do passado nacional. 144 Portanto, esta divergência entre o previsto e o realizado, não é um perfil anormal das sociedades em desenvolvimento, pois toda sociedade em fase de mudança idealiza um futuro desenvolvido, enquanto se encontra presa a um passado subdesenvolvido. 4 OBJETIVOS E EVOLUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR A educação superior é ministrada em instituições de ensino superior, pública ou privada, com variados graus de abrangências ou especialização, como nos mostra o Decreto nº 2.207/ 97, que regulamenta algumas das disposições fixadas na nova LDB, que classificou as instituições de ensino su- perior em universidades (com o objetivo de promover além da formação superior, a pesquisa básica e aplicada, bem como prestam serviços à comunidade sob forma de cursos e outras atividades de extensão universitária. Somente as universidades oficiais têm competência para expedir seus próprios diplomas, dando direito ao exercício das profissões. As demais instituições de ensino superior devem submeter seus diplomas para registro nas universidades oficiais, a fim de garantir o direito de exercício profissional), centros universitários (ficam isentos de desenvolver pesquisas e gozam da mesma autonomia das universidades para a criação de novos cursos, o que não ocorre com as faculdades), faculdades integradas, faculdades institutos superiores ou escolas superiores (voltados basicamente para a formação de nível superior, para uma ou mais profissões), tem como objetivo o aperfeiçoamento da formação cultural do jovem, capacitando-o para o exercício da profissão, para o exercício da reflexão crítica e a participação na produção e sistematização do saber. Paralelamente as suas tarefas de ensino, o ensino superior promove a pesquisa científica e desenvolve programa de extensão, seja na forma de cursos, seja na forma de serviços prestados diretamente à comunidade. Contudo, as ativida- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira des de pesquisas estão mais concentradas nas instituições públicas. O país conta atualmente com 1.180 instituições de ensino superior (IES)6, das quais 176 são públicas e 1.004 são privadas. Destas instituições 156 são universidades, sendo 71 públicas e 85 privadas; 50 são centros universitários, assim distribuídos 49 privados e um público; 90 são faculdades integradas, duas públicas e 88 privadas; 865 são faculdades, escolas e institutos, nos quais 83 estão no setor público e 782 no setor privado e 19 centros de educação tecnológica, todos públicos. O setor privado compreende entidades confessionais, grupos privados e instituições não-governamentais de natureza diversa. Estas instituições estão organizadas em cursos de graduação, programas de mestrado e doutorado e cursos de especialização, aperfeiçoamento e atualização, cursos seqüenciais e cursos e programas de extensão. 4.1 Produto da Atividade Acadêmica O sistema demonstra, por intermédio dos dados obtidos pela Comissão e Verificação o MEC/SESU, ANDIFES e INEP, um crescimento dos indicadores acadêmicos mais importantes. Entre 1997 e 2000 o número de alunos matriculados na graduação cresceu de 397.902 para 2.694.245, sendo 887.026 em instituições públicas e 1.807.219 em instituições privadas. O número de ingressos de 101.411 para 829.706, nos quais 227.157 estão nas instituições públicas e 602.549 nas instituições privadas. Os alunos diplomados passaram de 50.684 em 97 para 324.734 em 2000, assim distribuídos 112.469 nas instituições públicas e 212.283 nas instituições privadas. Quanto à pós-graduação, de acordo com dados fornecidos pela CAPES, o número de alunos creceu de 46.816 em 97 para 99.496 em 2000, enquanto o número de dissertações de mestrado e teses de doutorado aumentou de 7.432 em 97 para 125.000 em 2000. Um fato importante, é que estes dados não se distribuem igualmente nas regiões. Particularmente, no caso da pós-graduação, as dissertações e teses concentram-se nas regiões Sudeste e Sul. Estas regiões concentram atualmente 1.172 programas de mestrados, 750 de doutorados e 53 profissionalizantes, enquanto as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste possuem, apenas, 350 programas de mestrados, 134 de doutorados e 18 profissionalizantes. Esses dados têm uma alta correlação com a história da formação do sistema de universidades públicas e federais e com a distribuição relativa do PIB nacional. Portanto, um esforço para modificar esse quadro é fundamental como princípio de uma Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 145 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil política para o sistema de universidades públicas federais, para a superação dos desequilíbrios tantos regionais como sociais, e para o desenvolvimento do país em relação à educação, à ciência, à tecnologia e à cultura. 5 ELABORAÇÃO DAS REFORMAS EDUCACIONAIS 146 De acordo com Fagnani (1997) no que diz respeito a educação superior no Brasil, a principal medida concebida entre 1964 e 1967 e institucionalizada entre 1968 e 1973 foi a REFORMA UNIVERSITÁRIA, que em sua gestação foi objeto de inúmeras comissões, destacando-se a Comissão Meira Mattos e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU). Outro importante acontecimento foi a grande influência dos convênios firmados entre o Ministério de Educação e Cultura (MEC) e a Agency for International Development (AID), do Governo dos Estados Unidos, para modernizar o ensino superior brasileiro. Para Cunha (apud Fagnani, 1997, p. 70): a influência do modelo americano na modernização do ensino superior no Brasil teve início na déca- da dos 40. O ‘primeiro passo’ dessa ‘longa caminhada’ foi o Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA, criado em 1947. Nos anos 50, destacam-se o papel do Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq (1951) e a ‘experiência inovadora’ representada pela criação da Faculdade de Medicina da USP em Ribeiro Preto-SP. Mas o movimento iniciado pelo ITA, de ‘indução’da modernização das universidades, ‘teve seu momento mais forte’ na criação da Universidade de Brasília, em 1961. Destacam-se ainda no pré-64, as repercussões que a criação da Universidade de Brasília teve na modernização iniciada na Universidade do Brasil 7 e na Universidade do Ceará. A modernização na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, tornando-se uma “conexão mineira” na difusão do modelo da Universidade de Brasília para outras universidades e para a própria elaboração da legislação federal. Outra grande contribuição na defesa de “um novo modo de organizar o ensino superior no País” veio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC (1950). Como nos relata Cunha (apud Fagnani, 1997, p. 70), a discussão de temas com a introdução da organização departamental de ensino e a extinção Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira da cátedra vitalícia marcou igualmente ‘um dos grandes momentos do CFE, enquanto formulador de orientação doutrinária. A União Nacional dos Estudantes desde sua criação em 1989 levantou a bandeira da reforma universitária. No período pós-64 as instituições educacionais sofreram uma série de atos coercitivos como: repressão às lideranças dos movimentos de educação e cultura popular, invasões militares às universidades públicas, designação de reitoresinterventores ‘pró-tempores’ nas universidades federais, diversos ciclos repressivos empreendidos na USP, culminando, em abril de 1969, na aposentadoria compulsória de professores de grande projeção intelectual no País e no exterior, e a repressão ao movimento estudantil, destacando-se a Lei Suplicy, que restringia a representação estudantil. Também, como parte de um retrocesso na área educacional brasileira, ocorreu a privatização em todos os níveis de ensino, incluindo o superior. Pois incentivando a expansão das universidades privadas, limitava o aporte de investimentos para ampliação de vagas e manutenção dos estabelecimentos. Segundo Martins (apud Fagnani 1997, p. 68) Da mesma perspectiva, coloca-se a diretriz de transformar as universidades públicas em instituições ‘modernas’, capazes de buscar sua ‘autonomia financeira’ pela racionalização administrativa, com vistas à redução de custos, e pela cobrança de anuidades e vendas da sua produção (pesquisas, livros, serviços, etc.) no mercado. Entretanto, com a aprovação da Lei 5.540/68 e reformulação pela Lei 9.394/96 foram introduzidas mudanças significativas na estrutura do ensino superior, cujos diplomas estão basicamente em vigor até os dias atuais. Está tramitando no Congresso Nacional um Projeto de Lei que dispõe sobre a autonomia das universidades federais, este propõe contratos renovados periodicamente entre as universidades (organizações sociais) e o ministério, baseados em metas concretas a serem atingidas. A partir desta perspectiva, a universidade torna-se um organismo com capacidade de se adaptar diretamente às exigências do mercado. Tendo a produtividade como pressuposto, ensino, pesquisa e serviços deixam de ter como referência à valorização do ser humano e a ação civilizatória que caracterizam a universidade autônoma. É também louvável a implantação paulatina da proposta, com incentivos para que as universidades, numa primeira fase, se inscrevam voluntariamente no programa de autonomia. Subsidiando este projeto e de acordo com o modelo sugerido Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 147 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil por Marx (apud Grau, 1999, p. 41) A autonomia da sociedade não se baseia na propriedade privada, mas na própria recuperação da esfera pública que, através da absorção do Estado pela sociedade, deixa de mediar entre uma sociedade de proprietários privados e o Estado, para passar a garantir o público autônomo para si. 148 E, é neste sentido que o país procura hoje novas formas de gestão pública, tentando a descentralização. Por que tentando? Porque de acordo com Lobo (1988, p. 15), na história do Brasil nascemos centralizados, aprofundamos e aperfeiçoamos a centralização e tentamos encontrar alguma saída, qual seja, a descentralização. Portanto, no Brasil esta tendência à descentralização da administração pública baseia-se numa perspectiva contemporânea de maior democratização das sociedades e das formas de gestão. Segundo nos salienta Tinoco (1995) A medida em que as economias nacionais se globalizam, a gestão pública se caracteriza pelo fortalecimento do poder local e de formas participativas de cogestão, como forma de promover maior eficiência e menor desperdício na alocação de recursos. Para compreendermos melhor esta descentralização nos apoiamos no conceito formulado por Borja (1986, p. 48) citado em Tinoco (1995, p. 237). La descentralización es un processo de carater global que supone por una parte el reconhocimiento de la existencia de un sujeito...una societad o coletictividad de base territorial-capaz de assumir la gestion de intereses colectivos y dotado a la vez de personalidad sociocultural y politico-administrtiva y, por otra parte, la transferência a este sujeito de un conjunto de competencias y recursos (financeiro, humanos, materiales) que ahora no tiene y que podrá gestionar autonomamente en el marco de la legalidad vigente. Consequentemente, para se chegar através da descentralização a uma gestão pública satisfatória, fazse necessárias algumas mudanças nas formas de atuação e gerenciamento, capacitando o pessoal existente nas universidades para que exerçam uma administração eficiente, pautada em formulação de planejamento, acompanhamento e avaliação destes. Visto que o momento é de transformações e, dentre as mudanças por que passa o ensino superior no Brasil vale ressaltar o dinamismo da Lei 9.131/ 95 que criou o Exame Nacional de Cursos e o Decreto nº 2.026/96 que regulamentou o Sistema Nacional Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira de Avaliação do Ensino Superior tem feito em prol da melhoria da qualidade do ensino ofertado nos cursos de graduações brasileiros. 6 CONCLUSÃO O presente estudo mostra que desde sua criação as universidades brasileiras sofrem discrepâncias entre a teoria e a prática, entre a lei e a realidade. Então, diante do que foi exposto, deve a Universidade adaptar-se à sociedade ou a sociedade a ela? Existe, no entanto, uma complementaridade e antagonismo entre as duas missões, ou seja, adaptar-se á sociedade, ou adaptá-la a si própria. Não se trata apenas de modernizar a cultura, mas de culturalizar a modernidade. O século XX lançou vários desafios a essa dupla missão, como mostra Morim (1999, p. 11): Há, sem sombra de dúvida, uma forte pressão sobreadaptativa que pretende conformar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e administrativas do momento, aos últimos métodos, às últimas receitas do mercado, assim como reduzir o ensino geral a marginalizar a cultura humanista. No ambiente em que se encontram as instituições públicas de ensino, elas precisam urgentemente reconhecer as mudanças em curso e adaptar-se às novas condições, na velocidade em que elas se transformam, para não comprometer sua capacidade de sobreviver e expandir-se. Nesse contexto, a palavra Qualidade passa a fazer parte do cotidiano e está presente nas atividades, nos produtos e serviços consumidos, passando a ser um dos mecanismos fundamentais para ajudar as instituições de ensino a garantirem a sobrevivência e a formação profissional condizente com o novo paradigma. Portanto a grande missão da universidade de hoje é superar-se para se encontrar. Desse modo, inscrever-se-á de modo mais profundo em sua missão transecular que, assumindo o passado cultural, se adiantará para um novo milênio com o intuito de civilizálo, e principalmente de transformar a universidade de hoje, que é vista como uma escola profissional em uma universidade com cultura universitária. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 149 Novas formas de gestão pública e a política de ensino superior no Brasil NO NOTTAS 2 Lei de 15 de outubro de 1827 - determinou a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e vilarejos, envolvendo as três instâncias do Poder Público. 3 1932 - Documento histórico que sintetiza os pontos centrais desse movimento de idéias, redefinindo o papel do Estado em matéria educacional. 4 LDB - Enviado ao Congresso Nacional em 1948 que, após difícil trajetória, foi finalmente aprovado em 1968 (Lei n° 4.024). 5 Atual UNIFESP 6 Dados retirados do MEC/INEP - Estatísticas Educacionais - Número da Educação no Brasil em 2000. 7 Ex-Universidade do Rio de Janeiro. 150 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Marise Delia Car valho TTeix eix eira Carvalho eixeira 7 REFERÊNCIAS DRUCKER, Peter Ferdinand. Sociedade Pós Capitalista. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1996. FAGNANI, Eduardo. 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Coordenadora de IEC da Secretaria da Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Norte (SESAP). Av. Junqueira Aires, 488 - Centro. Tel.: (0xx84) 232-2578. E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola Pedagogical challenge of sexual education at School. 154 RESUMO O presente texto foi o resultado de uma preocupação enquanto docente do curso de Pedagogia, no que se refere às dificuldades sentidas pelos futuros pedagogos em como inserir a orientação sexual nas Escolas, como vencer seus próprios bloqueios, qual a postura pedagógica do educador e qual a forma pedagógica de inserir o educando no processo de construção do seu próprio conhecimento, objetivando o autocuidado, a auto-estima, a autonomia, o melhoramento das relações interpessoais, enfim, uma sexualidade mais responsável e saudável. Neste sentido, sob nossa coordenação, os discentes do IV período do curso de pedagogia da Faculdade de Ciências Cultura e Extensão do RN (FACEX), utilizaram o colégio da FACEX como laboratório de pesquisa, aplicando um questionário as as para 285 adolescentes das 7 e 8 séries, que serviu de diagnóstico para o re-direcionamento de novas práticas pedagógicas. Foram adaptadas algumas dessas técnicas para o curso de pedagogia e aplicadas em sala de aula com excelentes resultados. ABSTRACT The present text is a result of a concern from the point of view of a teacher/facilitator of the Course of Pedagogy, related to the difficulties felt by the futures facilitators. The main concern is to find a way to insert sexual orientation in schools programs, as well as how to make the teachers win their own blockades, and what should be the best teacher’s pedagogical posture. Finally, what pedagogical form of inserting the students into the process of building their own knowledge, being the objective self-care, self-steem, autonomy, improvement of interpersonal relations, focusing on a healthier and more responsible sexual active life. Under our orientation, the students of the fourth period of Pedagogy at FACEX, had FACEX high school as a laboratory for the research, where they applied a th questionnaire to 285 teenagers from 7 and th 8 level of elementary school, so that it made possible to have a more accurate information about how to redefine the new pedagogical practices for the course of Pedagogy and also for those applied in classrooms with excellent techniques results were adapted for the course pedagogy and applied in classroom with excellent results. PALAVRAS-CHAVE Orientação sexual; técnicas pedagógicas; escola. KEY-WORDS Sexual orientation; pedagogic techniques; school. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio 1 INTRODUÇÃO A recente experiência como docente da disciplina de “Seminário I Educação para Saúde e Orientação Sexual na Escola” - do curso de Pedagogia, nos fez deparar com várias reflexões de como tem sido proposto o ensino da Educação Sexual na Escola. As interrogações, relacionadas a este ensino, foram: Permanece o enfoque biologista desconsiderando os aspectos bio-psico-social do adolescente? O que nós, como educadores estamos fazendo para reverter este enfoque? Com que didática abordamos a sexualidade e a afetividade do adolescente? Como a escola pode estimular a comunicação familiar? Educação Sexual é o mesmo que Educação para Sexualidade? E quem capacita o educador? Neste artigo pretendemos contribuir com professores e pais que, como nós, buscam alternativas de atuação mais comprometidas com o desenvolvimento psico-afetivo do adolescente no processo de autonomia. No conteúdo serão apresentados alguns resultados da pesquisa feita com adolescentes do colégio FACEX, algumas estratégias que já foram aplicadas no processo pedagógico e que poderão servir de inspiração para inovar a atuação de outros profissionais, não no sentido de receita, mas de instrumento a ser adaptado à realidade das circunstâncias particulares de cada caso. O enfoque deste texto foi subsidiado por referenciais teóricos que compartilham anseios, dúvidas, desejos e sonhos de uma juventude que busca solidariedade, compreensão e ética como alternativa de sobrevivência e transcendência. 1.1 Nossas buscas teóricas Pesquisando identidades ideológicas que reforcem nosso pensamento frente às posturas pedagógicas, destacamos FREIRE (1980), em forma de lúcido saber sóciopedagógico, com sua apaixonante experiência de educador, defendendo uma vocação humanista que cria técnicas pedagógicas baseadas na “Educação dialógica”. Não há diálogo, porém se não há um profundo amor ao mundo e aos homens, não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação , se não há amor que a infunda. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E se é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco se torna simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 155 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola 156 A afirmativa de Paulo Freire se legitima quando analisamos a necessidade de conquista da confiança do adolescente no processo de ensinoaprendizagem da educação para sexualidade. Na verdade, essa formalidade pedagógica muda quando percebemos que este processo não deve ser tão técnico, uma vez que necessita de conquista, de confiança, de diálogo e que envolve sentimentos, atitudes, prazer, tabus, mitos, valores culturais entre outros fatores relacionados à família e a sociedade. Desta forma, “depositar idéias, informar ou até mesmo trocar idéias” não é o suficiente para despertar no adolescente o senso de responsabilidade com seu corpo e com sua sexualidade no lidar com suas emoções e atitudes. Vitiello (1997), pós-graduado em Educação Sexual, especialista no atendimento ao adolescente e coordenador dos cursos de pósgraduação lato sensu em Educação Sexual, comenta: O processo de educação é bastante amplo, abrangente e complexo, compreendendo uma série de fases. Dentro dessa amplitude, que obrigatoriamente envolve o assumir uma série de atitudes, faz-se necessário que o educando também assuma comportamentos ligados à esfera da sexualidade, desempe- nhando um papel sexual. Educação Sexual seria dentro desse amplo conceito, a parte do processo educativo especificamente voltado para a formação de atitudes referentes a maneira de viver a sexualidade. Com base nesta assertiva, podemos reforçar que existe uma grande confusão entre os conceitos de INFORMAÇÃO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO e isto se transfere à prática do educador, da família e da sociedade. O Governo utiliza estratégias de INFORMAÇÃO e diz que está educando; a televisão, o rádio e os jornais desenvolvem técnicas de COMUNICAÇÃO e afir mam que estão educando. A escola “biologisa” a sexualidade e assegura que está educando; os pais transferem seus valores aos filhos e garantem estar educando... É necessário refletir sobre os conceitos de: informação, educação, comunicação. O desafio de se abordar a sexualidade na escola já fora vencido desde os anos 70, no entanto a questão agora é como lidar com ela. Tiba (1994) assinala que: ... A maioria das escolas deixa o assunto nas mãos dos professores e não tem nenhum controle sobre o que falam em classe. O conteúdo Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio da educação sexual ainda está nas mãos do professor. Isso faz com que a linha pedagógica dependa muito da própria formação pessoal do educador, que pode transmitir seus próprios conceitos ou preconceitos aos alunos... É importante abordar as questões referentes a “Educação Sexual” e “Educação para Sexualidade” nos seus eixos conceituais: Educação Sexual - conceito estático: transmissão de valores, crenças e costumes, que representa o processo de ensinar, desde que o conhecimento é de fora para dentro e a figura do educador não é fundamental. Aborda fundamentalmente temas como: anatomia e fisiologia dos órgãos genitais, prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, planejamento familiar, gravidez e outros. Educação para Sexualidade - conceito dinâmico: conscientização e mudanças na maneira de pensar, sentir e agir, que representa o processo de educar, desde que o conhecimento é de dentro para fora e a figura do educador é fundamental. Necessário se faz esclarecer estas diferenças: no conceito estático, os conteúdos são apenas transmitidos (de fora para dentro), ou seja, repassados dos conceitos externos para a assimilação interna, e isto torna a figura do educador não muito importante; no conceito dinâmico, os conhecimentos são construídos através das experiências pessoais, dos sentimentos, das angústias, das percepções dos alunos (de dentro para fora). Assim sendo, a figura do educador é de fundamental importância, pois depende dele a condução do processo, criatividade, as técnicas utilizadas para despertar o interesse e a participação do grupo na construção do conhecimento. Suplicy (1999), coordenadora de um projeto de Orientação Sexual nas escolas, afirma: ... Os jovens de hoje são mais bem informados, no entanto não conseguem utilizar estas informações em benefício próprio. Está faltando esta contrapartida por parte dos programas de governo em escolas que mostrem outro jeito de lidar com a sexualidade que não sejam os impulsos... Considerando tudo isto, conclui-se que não se pode tratar a sexualidade do adolescente meramente como aulas de “sexo”, pois esta questão também envolve afetividade, fazendo-se necessário, inicialmente, repensar o perfil do educador que jamais poderá ser um professor mera- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 157 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola 158 mente voltado para o ensino de disciplinas (ciências, biologia). Ele necessita ser um orientador sexual que previamente tenha trabalhado a sua própria sexualidade, seus conflitos, seus bloqueios, sua auto-estima e que faça da sua vida cotidiana uma rotina comum de auto-cuidado. Vencido estes aspectos ele deverá ser uma pessoa criativa, um ser sensível de caráter confiável e personalidade forte, receptiva a novas propostas pedagógicas. Estas características são fundamentais, em vez de uma pilha de formalidades burocráticas disciplinares, pois o que o adolescente necessita é de alguém que lhe transmita confiança, que lhe proporcione bem estar e segurança, que promova dinâmicas, vivências, que lide com suas emoções e frustrações, que entenda suas angústias, que socialize o conhecimento num saber “construído” e não expelido. 2 A PESQUISA 2.1 Metodologia A pesquisa foi desenvolvida no Colégio FACEX, Natal-RN, tendo sido utilizada uma amostra não probabilística, intencional, tomandose adolescentes das 7a e 8a séries, dos turnos matutino e vespertino, que voluntariamente se propuseram a responder os questionários. Aplicou-se uma entrevista semi-estruturada com questionamentos objetivos e subjetivos. Os grupos foram diversificados quanto a idade, série escolar e sexo. O estudo investigou percepções, preferências e comportamentos referente à sexualidade dos adolescentes. Foram entrevistados 285 adolescentes, sendo 125 da 7a série e 160 da 8 a série; desses 138 (48,42%) eram adolescentes do sexo feminino e 147 (51,58%) do sexo masculino. Suas idades variavam de 12 a 17 anos, sendo que 75% destes estavam na faixa de 13 e 14 anos (Tabelas 1 e 2). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio Tabela 1 - Distribuição dos alunos entrevistados por idade IDADE 12 ANOS FREQUÊNCIA 10 % 3,51 13 ANOS 14 ANOS 89 125 31,23 43,86 15 ANOS 16 ANOS 49 10 17,19 3,51 17 ANOS TOTAL 2 285 0,70 100 Tabela 2 - Distribuição dos alunos entrevistados por sexo SÉRIE MASCULINO FEMININO FREQUÊNCIA 138 147 285 TOTAL Quando indagados quanto ao local onde aprendiam sobre sua sexualidade, 27,94% responderam na família, 26,84% informaram aprender através de livros e revistas, 23,90% afirmaram ser a televisão sua fonte de aprendizagem, 18,93% referendaram a escola como espaço de aprendizagem (Tabela 3). Estas informações afirmam a preocupação com o papel da família no processo de afirmação do adolescente quanto a sua sexualidade, como estará a comunicação familiar? Será que os pais estão correspondendo às expectativas dos adolescentes? É interessante observar que os livros, revistas e a televisão aparecem como espaços de aprendizagem mais importantes que a escola, para a maioria % 48,42 51,58 100 dos alunos. Que leituras serão estas ? qual a qualidade dessas informações? O que a televisão está repassando para os adolescentes? O estudo investigou sobre a escolha dos adolescentes quanto a opção de diálogo sobre a sexualidade; a maioria dos entrevistados (52,14%) afirmaram ser seus amigos as pessoas com quem conversam, expressam suas angústias , ansiedades e confidenciam suas experiências satisfatórias ou frustrantes, 32,53% indicam seus pais como opção de diálogo sobre sua sexualidade, os professores aparecem com apenas 3,23% das escolhas dos alunos como figura de confiança para conversar sobre sua sexualidade (Tabela 4). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 159 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola Tabela 3 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com o local de sua aprendizagem sobre sexualidade LOCAL ONDE APRENDE NÃO RESPONDEU IGREJAS FREQUÊNCIA 2 11 152 FAMÍLIA ESCOLA LIVROS OU REVISTAS TELEVISÃO TOTAL 103 146 130 544 % 0.37 2.02 27.94 18.93 26.84 23.90 100 Tabela 4 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com quem conversar sobre sexualidade 160 LOCAL ONDE APRENDE NÃO RESPONDEU AMIGOS PROFESSOR FREQUÊNCIA 4 194 12 121 PAIS OUTROS 41 372 TOTAL Quando perguntados sobre que método pedagógico gostariam que fossem utilizados pelos educadores no processo pedagógico da educação para sexualidade na escola, 42,05% afirmaram ser as técnicas de dinâmica de grupo a melhor forma de discutir estas questões, 39,77% ainda vêem a aula expositiva como a melhor forma de aprender e 17,05% optaram por outras formas de trabalhar estas questões (Tabela 5). Quanto ao entendimento sobre o conceito de sexualidade, obser- % 1.08 52,14 3,23 32,53 11,02 100 vamos que 54,09% percebem a sexualidade como uma expressão de afetos, sentimentos e desejos, 21,64% entendem a sexualidade como estudo do sexo, 14,62% apontam a relação sexual como a expressão da sexualidade e 7,60% respondem que sua sexualidade é expressa meramente pelo sexo (Tabela 6). Percebemos, então, que há uma necessidade de oportunizar estes momentos de trocas de experiências, vivências e discussões sobre tais questões. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio Tabela 5 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com o método pedagógico utilizado pelo professor MÉTODO PEDAGÓGICO AULA EXPOSITIVA CONVERSA INDIVIDUAL DINÂMICA DE GRUPO OUTROS TOTAL FREQUÊNCIA 35 % 39,77 1 37 1,14 42,05 15 88 17,05 100 Tabela 6 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com o significado de sexualidade SEXUALIDADE NÃO RESPONDEU FREQUÊNCIA 7 50 RELAÇÃO SEXUAL SEXO ESTUDO DO SEXO AFETOS, SENTIMENTOS E DESEJOS TOTAL Cada adolescente foi solicitado expor seu entendimento sobre em que momento a sexualidade se expressa nas suas vidas; 64,48% dos adolescentes entendem como componente presencial durante toda sua vida, 19,4% percebem apenas na adolescência o momento de vivência destes aspectos, 14,33% afirmam ser na fase adulta que a sexualidade se expressa (Tabela 7). 26 74 185 342 % 2,05 14,62 7,60 21,64 54,09 100 No que se refere aos principais conflitos vivenciados pelos alunos pesquisados, 42,61% afirmam ser a impulsividade a principal dificuldade a ser superada, 22,16% informam ser o relacionamento com seus pais o maior obstáculo a ser vencido, 9,94% apontam para as dificuldades de convivência em grupo, 8,24% tem na relação com o sexo oposto o maior conflito a ser vencido (Tabela 8). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 161 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola Tabela 7 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com a presença da sexualidade SEXUALIDADE ESTA PRESENTE NÃO RESPONDEU FREQUÊNCIA 6 NA ADOLESCÊNCIA NA VIDA ADULTA 65 48 NA INFÂNCIA DURANTE TODA VIDA 0 216 TOTAL 335 % 1,79 19,4 14,33 0 64,48 100 Tabela 8 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com suas maiores dificuldades pessoais MAIORES DIFICULDADES NÃO RESPONDEU 162 FREQUÊNCIA REL. AFETIVO COM O SEXO OPOSTO 26 29 REL. COM SEUS PAIS IMPULSIVIDADE 78 34 INIBIÇÃO RELACIONAMENTO EM GRUPO 150 35 TOTAL 352 Os resultados mais uma vez mostram a importância da família e da escola no processo de preparação para o usufruto de uma sexualidade saudável. Alguns outros dados da pesquisa mostram aspectos fundamentais para o conhecimento da realidade vivenciada por estes adolescentes. Quanto aos projetos de vida desses alunos, verificamos que 52,85% tem na formatura o seu objetivo para o futuro, 27,33% percebem o casamento como seu projeto de vida, 10,71% tem planos de % 7,39 8,24 22,16 9,66 42,61 9,94 100 morar sozinhos (Tabela 9). É marcante na vida dos adolescentes alguém como referencial de vida e isto foi abordado neste estudo; destacam-se de forma isolada na opinião dos adolescentes os pais como exemplo de vida, representando 75,08% do universo pesquisado (Tabela 10). Este resultado comprova a grande responsabilidade dos pais enquanto modelo a serem seguidos pelos filhos; cabe no entanto uma preocupação: será que estes pais estão conscientes desta realidade? Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio Tabela 9 - Distribuição dos alunos de acordo com seus projetos de futuro MAIORES DIFICULDADES CASAR FREQUÊNCIA 120 SE FORMAR MORAR SOZINHO 232 47 OUTROS TOTAL 40 439 % 27,33 52,85 10,71 9,11 100 Tabela 10 - Distribuição dos alunos entrevistados de acordo com sua admiração como exemplo ADMIRA COMO EXEMPLO NÃO RESPONDEU PROFESSOR FREQUÊNCIA 19 % 6,07 JOGADOR PAIS POLÍTICO 18 23 5,75 7,35 235 10 75,08 3,19 RELIGIOSO TOTAL 8 313 2,56 100 Estas informações levaram uma discussão junto aos alunos do curso de pedagogia. Alguns conceitos foram discutidos: INFORMAR como o simples ato de transmitir alguma informação (trocas simbólicas), COMUNICAR como processo que desperta o interesse sobre a informação (processo de produção de sentidos a partir das trocas simbólicas realizadas entre indivíduos e grupos), EDUCAR enquanto processo que desenvolve no indivíduo a mudança de atitudes e comportamentos (processo de construção do conhecimento e de- senvolvimento da capacidade crítica e de intervenção na realidade para sua transformação). Para conseguir resultados positivos no processo de Educação para sexualidade, enquanto componente da Orientação Sexual nos PCNs, se faz necessário trabalhar a CORPOREIDADE do adolescente, seus tabus, suas emoções, seus conflitos, tudo isto com uma prática pedagógica AFETIVA do orientador, que na maioria das vezes servirá apenas de instrumento de trabalho, uma vez que os protagonistas deverão ser os adolescentes. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 163 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola 164 Algumas experiências interessantes estão sendo desenvolvidas no sentido de proposta da arte do diálogo, utilizando ferramentas criativas com metodologias de comunicação interpessoal. Todas as técnicas são baseadas no princípio de que ninguém mudará a não ser a partir de uma profunda compreensão de si mesmo, da vida, do mundo e das coisas. As mudanças acontecem como resultado de transformações internas, um desabrochar, um despertar... Este novo enfoque passou a ser uma tese do nosso interesse quando tivemos a oportunidade de participar do Projeto SUR - Salud Sexual y Reproductiva (México, 1998 e Colômbia, 2001) - e da fantástica consultoria do Dr . Rodrigo Veras Godoy, (Asesor del Fundo de Población para América Latina y el Caribe - FAO) em estratégias de Informação, Educação e Comunicação (IEC). Este mestre incansável, abnegado da causa educativa dos adolescentes, prestou assessoria ao governo do Brasil através do FNUAP. Aproveitando este novo pensar pedagógico, e consciente da necessidade de novas posturas técnicas que promovem o auto-cuidado, estimulem a auto estima, discutam as questões de gênero, socializem os “Direitos Sexuais e Reprodutivos”, enfim, que abordem a Sexualidade e a Afetividade, identificamos metodologias vivenciadas por Dr. Rodrigo e na experiência do México e Colômbia, adequamos a nossa realidade docente, obtendo excelentes resultados junto aos nossos alunos do curso de pedagogia. 3 ALGUMAS TÉCNICAS 3.1 Círculos Interativos Esta técnica foi adaptada baseando-nos nas “Rodas de Conversas” - técnica infor mal de conversação e aprendizagem em serviços de saúde, tendo acrescentado alguns passos técnicos para sala de aula e transformado este processo em etapas pedagógicas: 1. Divida a turma em grupos; 2. Coloque temas diversos de interesse dos alunos para escolha pelos grupos; 3. Determine um prazo de uma semana para que conversem, leiam ou pesquisem sobre o assunto escolhido pelo grupo; 4. O grupo deverá trazer todas as experiências vivenciadas para o círculo interativo no dia marcado; 5. Os temas serão abordados de forma que cada grupo possa expor seus pontos de vistas, os Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio resultados das conversas sobre aquele tema naquela semana, as leituras feitas; enfim, deverão ser socializados as diversas posturas dos membros do grupo e do círculo interativo; 6. Ao final, cada grupo troca os conteúdos pesquisados de forma que todos tenham acesso ao conjunto de temas e posturas abordadas no circulo. 3.2 Corporeidade e Expressão PPedagógica edagógica - CEP 1. Os alunos são divididos em três formas de participação: os roteiristas, os atores e os telespectadores; 2. Os roteiristas vão construir o roteiro sobre o tema abordado, seguindo suas percepções a respeito do conteúdo e expressando com as palavras seus pontos de vistas e a realidade social em que está problematizada a situação. 3. Os atores vão expressar com o corpo (acompanhados por um fundo musical) o conteúdo construído pelos roteiristas, trabalhando a corporeidade aliada às emoções identificadas; 4. Os telespectadores vão assistir a apresentação, anotar o que entendeu pela expressão corporal dos atores a que tema se relacionou, o que percebeu enquanto mensagem construtivista, que emoções se relacionaram à linguagem corporal e poderá ainda fazer sua análise crítica do conteúdo expresso. 5. Ao final, os alunos são estimulados a se congratularem com gestos afetivos, acompanhados por músicas e deverão repetir em alto som, palavras de auto estima expressada pelo Orientador Sexual. 3.3 Viagem do auto-conhecimento 1. Cada aluno deverá ter uma agenda diária para registrar suas emoções, seu comportamento afetivo, sua auto-imagem, enfim seu processo de auto-conhecimento e sua relação consigo mesmo e com os outros. 2. Os temas relativos à sexualidade e afetividade são escolhidos e os alunos são estimulados a se colocarem em posição confortável (deitado), relaxados, e concentrados formando um círculo. 3. O orientador estimula o aluno a pensar (viagem para dentro de si mesmo) sobre o tema, citando fatos que se referem ao assunto e solicitando que cada um reflita consigo mesmo sobre o problema. Somente o orientador fala e circula calmamente ao redor do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 165 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola 166 grupo que deverá estar deitado de olhos fechados e concentrados ao som de alguma música instrumentalizada. 4. Ao final, o orientador pede que escrevam na agenda como se sentiram, quais sentimentos identificados, como o corpo reagiu às emoções, que mudança despertou em seu cotidiano. 5. É aberto o espaço para os que quiserem falar poderem expressar para todo o grupo alguma emoção ou reação, alguma experiência pessoal vivenciada, frente aos sentimentos despertados pela técnica, proporcionando assim um processo de crescimento individual e coletivo. Os que não se sentirem à vontade para falar deverão escrever tudo na agenda para se auto trabalharem durante as outras seções e possivelmente, vencer bloqueios e melhorar as suas relações com a família, escola e sociedade. 4 CONCLUSÕES A Escola, portanto, pode “dar lições” de sexualidade e afetividade através da educação para sexualidade cotidianamente, muito além das possíveis aulas de “sexo” ou “educação sexual” dentro das dis- ciplinas de Ciências ou Biologia, previstas no currículo. Caminhar nesta via é um desafio que implica na discussão sobre a verdadeira sexualidade na Escola e fora dela. Isto significa respeitar os saberes dos/das adolescentes, discutir as questões de gênero, os direitos sexuais e reprodutivos, trabalhar suas emoções e frustrações, romper com o biologismo da “Educação Sexual“ e promover práticas que envolvam os pais dos alunos, a reflexão sobre a família, enfim, oferecer aos pais, alunos e professores, a oportunidade de uma evolução nas suas concepções cristalizadas e essencialistas na mudança de postura no que se refere as suas relações pessoais e sociais e na promoção do auto-cuidado, da auto-estima, do empoderamento e de uma sexualidade mais segura e saudável. Necessário se faz envolver a família na discussão junto a escola. Temas como educação para afetividade, comunicação familiar e auto-estima são essenciais no planejamento pedagógico, a oficina de orientação sexual para educadores deverá ser prioridade no projeto político pedagógico da Escola. Enfim, esperamos que este estudo tenha servido de reflexão para Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ana TTania ania Lopes Sampaio mudanças de paradigmas com relação à família a escola e ao adolescente e que possa contribuir para uma nova postura da escola e da família no que se refere à sexualidade do adolescente. 167 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Desafio pedagógico da orientação sexual da escola 5 REFERÊNCIAS FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 MEYER, Dagmar. Saúde e Sexualidade na Escola. Porto Alegre: Meditação, 1998. SUPLICY, Marta. Sexo se aprende na escola. São Paulo: [s.n.], 1999. TIBA, Içamí. Adolescência: o despertar do sexo. São Paulo: Gente,1999. VITIELLO, Nelson. Sexualidade: quem educa o educador. São Paulo: Iglu,1997. 168 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Educação Arte, construtora de cosmologias 169 Sanzia Pinheiro Barbosa1 1 Mestre em Ciências Sociais. Professora da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN (FACEX). Pesquisadora do GRECOM/UFRN. e-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Arte, construtora de cosmologias Art: builder of cosmologies 170 RESUMO O relógio como metáfora da ciência do século XVII nos legou uma natureza submissa, um mundo estupidamente monótono e mecânico, relações sociais extremamente hierarquizadas, um conhecimento fragmentado que expressa a desarmonia do nosso espírito com o cosmos. Para o “poeta da termodinâmica”, Ilya Prigogine a metáfora da ciência do século XX é a arte. Para pensar essa sugestão, exponho alguns movimentos da arte moderna, traço ligações entre arte e ciência.Sugiro que a nova metáfora da ciência exige uma nova linguagem que se manifesta na relação de liberdade do artista com a obra no processo de criação. ABSTRACT The watch as a metaphor of the XVII century science has left upon people a submissive nature, a monotonous and mechanical world, extremely hierarchical social relations, fragmented knowledge which expresses the disharmony of our spirit with the cosmos. For a “poet of thermodynamic”, Ilya Prigogine, the metaphor of the XVII century science is art. In order to think of this suggestion, it will be discussed some movements of the modern art, and connections between art and science. It will be suggested that the metaphor of science needs a new language that takes place in a relation of the artist’s freedom with the work in the creating process. PALAVRAS-CHAVE Arte; ciência; metáfora; processo. KEY-WORDS Art; science; metaphor; process. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa A TELA RENASCENTIST RENASCENTISTAA E A MÚSICA TÍFICES DO RELÓGIO. POLIFÔNICA: AR ARTÍFICES O modelo mecanicista do mundo-relógio do século XVII nos legou uma natureza submissa, um mundo estupidamente monótono, relações sociais extremamente hierarquizadas, um conhecimento fragmentado que expressa a desarmonia do nosso espírito com o cosmos. Ilyia Prigogine, conhecido como poeta da termodinâmica, físicoquimíco, ganhador do prêmio Nobel de 1977, e inventor da teoria das Estruturas Dissipativas, diz ser a arte a metáfora da ciência do século XX. O que nos diz a arte como metáfora da ciência do século XX? Qual o legado dessa metáfora? Compreender a sugestão de Prigogine nos possibilitará navegar em mares mais abertos. Pois a obra de arte não é o campo da decifração. É o campo do diálogo, da mobilização do sujeito, da liberdade da criatividade humana, de uma vontade fundamental de ser na incerteza e na imprevisibilidade. Para Géza Szamosi, professor de física da Universidade de Windsor, em Ontário-Canadá, as obras de arte de uma civilização são criadas por um processo mental, no qual o autor reconstrói o mundo percebi- do num espaço simbólico, refletindo percepção de mundo, dando ênfase e significado as diversas propriedades visuais e táteis. Isso porque, para Zsamosi, a arte e a ciência são linguagens estruturadas e estruturantes de espaço e tempo simbólicos. Esse autor me sugere que a arte como metáfora da ciência do século XX, não é qualquer arte. Mas a arte que nasce com o espírito moderno. A arte moderna nasce da destruição da civilização, do mundo transformado e interpretado por Freud, Marx e Darwin, do capitalismo que aliado à ciência cartesiana e a tradição judaica-cristã estilhaçou o espírito humano e o planeta.Os artistas do final do século XIX e início do século XX estão em um mundo, que ao mesmo tempo em que maravilha estilhaça. O movimento revolucionário nas artes anuncia o colapso do mundo, antes que este se fizesse em pedaços. Szamosi (1994) em sua obra, Espaço e Tempo - As dimensões Gêmeas, realiza um esforço em dizer do modo como o espaço e o tempo foram “inventados”, nas percepções da formas primitivas de vida e evoluíram para o espaço e o tempo da civilização atual. Para ele, a evolução da linguagem ampliou e tornou ilimitado o nosso mundo mental de espaço e tempo. Construímos ao Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 171 Arte, construtora de cosmologias 172 longo de nossa história no planeta Terra, muitas formas de espaços e tempos simbólicos, entre outros a arte e a ciência. Na sua tentativa de traçar paralelos e ligações entre as percepções cientificas e artísticas e as idéias de espaço e tempo, Zsamosi expõe a idéia de que a música polifônica do século XI desenvolveu o conceito de tempo métrico, criado por Santo Agostinho no século V, realizando notações matemáticas e executando-as com sucesso. Esse feito na arte inspirou a ciência experimental. E as regras numéricas sofisticadas para a visão, criadas pelos pintores renascentistas, inspiram o conceito de espaço newtoniano. Pedra fundamental da civilização ocidental, o tempo métrico aparece pela primeira vez no século XIII. O desenvolvimento da música ocidental foi essencial para o surgimento desse símbolo que engendraria a ciência, a tecnologia e a indústria. Foi na teoria e na forma de uma música unicamente ocidental que o tempo métrico foi inventado, estudado e utilizado pela primeira vez na história. A nossa sociedade vive no tempo medido e estruturado pelos números de nossos relógios. Mesmo quando vivemos uma experiência subjetiva em que o tempo se apre- senta diferente do tempo métrico simbólico, costumamos dizer que o tempo de nossas próprias sensações é ilusório. Dissociamos o tempo métrico dos eventos ambientais a tal ponto que afirmamos com naturalidade que o sol nasce a tal hora e não ao contrário. O fluxo de tempo mensurável é uma invenção humana ocidental, afastada e até contrária a toda experiência humana, externa e interna. Os calendários e relógios inventados nas civilizações antigas tinham um propósito diferente da invenção do tempo métrico, pois o que se queria era acompanhar o curso do tempo, adaptar-se as fases de um ambiente mutável. Esses símbolos eram usados de maneira semelhante ao funcionamento dos relógios biológicos dos organismos vivos. Foi Santo Agostinho, bispo de Hipona, que imaginou o tempo independente do movimento e do espaço, um tempo mensurável. Para ele a idéia de tempo cíclico era incompatível com a bíblia, pois a criação do mundo e sua salvação por Jesus Cristo eram acontecimentos únicos na história. Agostinho pensava que o tempo teve início com o começo do universo. O tempo é na concepção desse pensador tão “absoluto” quanto o tempo newtoniano, é autônomo, não derivado de movimentos de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa corpos celeste ou terrestre. A forma que encontrou para medir o tempo foi recitando métricas poéticas clássicas, quantitativamente definidas. Só ouvindo podemos perceber regularidades temporais sem as confundir com atributos espaciais “, escreveu ele. As idéias de Agostinho foram ignoradas durante toda a Idade Média, pois o pensamento racional nessa época não surtia efeito. O pensamento do filósofo desafiava intuições biológicas e socialmente determinadas. Quando Galileu resolve o problema da queda livre, introduzindo, o tempo como quantidade independente e mensurável, essa noção de tempo já era comum aos europeus instruídos. Apesar de se oporem a quase tudo que Galileu dissera, esse conceito foi aceito sem murmúrio. Pois cada pessoa instruída na Europa estava familiarizada com a teoria e a prática da música polifônica e suas notações medidas, o currículo dos estudantes que não se destinavam ao sacerdócio era o quadrivium, um complexo composto por música, astronomia, geometria, e aritmética. Esse modelo sensorial foi imposto à experiência do fluxo do tempo, há nele uma estrutura numérica bem definida, exatamente mensurável e exatamente medida. Gerou uma transformação na percepção, “foi em sua prática que uma civilização emergente se educou para perceber o fluxo do tempo como um processo que não era derivado do sol ou da lua ou do movimento de corpo ou de qualquer outra coisa primaria, e que podia ser tratado da mesma forma que uma dimensão espacial”. (Szamosi, 1994, p. 113). Se é na música polifônica que a ciência experimental se inspira, pois tal arte demonstrava a possibilidade de uma notação matemática ser executada com sucesso. Os pintores da renascença respondiam, com suas obras, questões importantes para a época, embora não expressas: “Que é que vemos quando vemos? Como aprendemos quando vemos? Que é que a visão pode dizer sobre o mundo e sobre a função do homem nele? Quais são os aspectos visuais dos sentimentos, preocupações e valores humanos importantes, e como podem ser expressos ?” (Szamosi, 1994, p. 124). Essas questões retomam a busca dos filósofos gregos e são elas que vão conduzir a uma retomada do humano, da racionalidade. Levaram a formulações das leis da perspectiva que haviam sido descoberta por Euclides em sua ótica. A perspectiva linear ultrapassa a arte, pois o papel central das artes Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 173 Arte, construtora de cosmologias 174 visuais na vida mental dos séculos XV e XVI foi uma reavaliação da função da visão na cosmologia humana. A arte renascentista refutava as idéias de Parmênides e Platão da imperfeição dos sentidos. “As artes estavam dando provas visíveis de que, assim como abrangendo uma infinita variedade de sensações visuais, muitas vezes acidentais, organizando-as em padrões úteis, o olho humano também obedece a visões simples, mas exatas”.(Szamosi, 1994, p. 125). A racionalidade encontrada para a construção de obras de arte, invade a vida chegando à percepção sensorial. “O espaço emergente da arte renascentista abriu um novo mundo simbólico que podia ser manipulado e investigado, no qual novos, fiéis e extremamente ricos modelos da realidade podiam ser construídos e estudados”. (Szamosi, 1994, p.128). O que conhecemos como arte tem sua origem no final do século XIX, e é elemento reagente do tumultuado e inusitado século XX. Ela faz sintonia com a nova aliança que o homem quer fazer com a natureza. Essa intenção se expressa em um dizer da artista Ligia Clark (1980, p. 13) “Demolir o plano como suporte da expressão e tomar consciência da unidade como um todo orgânico. Nós somos um todo, e agora chegou o momento de reu- nir todos os fragmentos do caleidoscópio onde a idéia de homem estava partida em pedaços”. Essas palavras de Clark expressam o processo de destruição do próprio objeto de arte que o século XX foi testemunha. Talvez possa afirmar aqui que o Dadaísmo, o mais radical dos movimentos de arte, foi a primeira formulação, no século XX, da cosmologia que a ciência do processo necessita. “Dada, não permite concluir, fechar, interpretar unidirecionalmente. Qualquer afirmação conclusiva deverá considerar seu oposto, deverá estar pronta para ser destruída, porque o que interessa não é a conclusão, vale dizer, o espaço vazio da não conclusão, o campo da possibilidade, ou ainda, nas palavras de Hausmann, a indiferença criativa’”. (Baitello Júnior, 1994, p. 13). O processo radical por que passou a arte do século XX, se expressa nos movimentos de arte que muitas vezes conviviam. Acredito ser necessário expor alguns desses movimentos para uma melhor compreensão da arte como metáfora da ciência do século XX. Não pretendo expor os movimentos de arte que surgem no século XX. Interessa-me, entretanto realizar uma breve exposição do processo da arte no seu caminho para uma autonomia na qual a obra Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa diz por si mesma, ela se basta nas construções das formas que realiza, expressando um modo de ser do espírito humano moderno. Esse desenvolvimento é o resultado da ruptura com o espaço renascentista, que ocorre simultaneamente na arte e na ciência. MO VIMENT OS E BIFURCAÇÕES NA MOVIMENT VIMENTOS ARTE DO SÉCULO XX. Pode-se dizer que a aparente evolução tranqüila da arte foi rompida no início do século XX. O novo invadia as ruas, as casas e as atividades dos humanos: Em 1902, é publicado o primeiro livro de Freud sobre a interpretação dos sonhos e o primeiro filme de ficção científica vai as telas. Em 1905, Einstein formula a teoria da relatividade, e com a fotografia impressa no jornal as pessoas passam a apreender visualmente o que está acontecendo em remotas regiões. No ano seguinte, o telefone converte-se em aparelho de uso doméstico. O primeiro vôo sobre o Atlântico e o primeiro carro de uso familiar, o Ford modelo T, não tardaria a tornar-se realidade. A percepção de espaço, tempo e movimento das pessoas estavam mudando. O ritmo do cotidiano ganhara uma velocidade jamais vista. Nikos Stangos, organizador do livro Conceito de arte Moderna, publicado pela primeira vez em 1974, esclarece no prefácio, que a arte moderna explode e continua a dissipasse. “A arte minimalista se esgotou e foi sucedida por forma de artes que negaram até o pressuposto mais básico do que era arte – a obra de arte. (...) Ao minimalismo segui-se a arte conceitual, que se desdobrou em várias formas correlatas como arte performática, body art, earth land art, etc.” (Stangos, 1991, p. 9). Os movimentos que surgem na primeira metade do século XX convivem entre si a ponto de um mesmo artista fazer parte de vários movimentos. Vale a pena registrar aqui o caso Marcel Duchamp que ao construir o Nu Descendo a Escada, não só parece fundir o cubismo com as proposições futuristas, como cria a primeira obra multimídia.Esse artista participou de vários movimentos e não pertenceu a nenhum. O espanto que o nascimento do mundo moderno provoca na alma humana é expressa na técnica do papier collé, utilizada pelos cubistas. Segundo Picasso, sua intenção era dá à idéia de que várias texturas podem participar de uma composição para obter-se na tela a realidade da pintura. Materiais colados na tela participam de um universo para o qual não foram feitos, provocan- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 175 Arte, construtora de cosmologias 176 do assim uma certa estranheza. “E foi justamente sobre essa estranheza que quiz fazer com que as pessoas pensassem, pois tínha perfeita consciência de que o nosso mundo estava ficando muito estranho e não tranqüilizador.” (Picasso apud Stangos, 1991, p. 47). Se a teoria da relatividade de Einstein coloca em cheque a noção de espaço e tempo formulada por Isaac Newton, o cubismo anuncia a morte do espaço renascentista e demonstra que a representação do mundo exterior estava esgotada. Neste sentido o espaço é colocado em questão e quem melhor o faz é Braque. Herdeiro do Impressionismo, e mais precisamente de Cézanne que compreendia que uma arte sólida deveria ser construída fora do esquema tridimensional da renascença, Braque não aceitava a visão fenomenológica do Impressionismo, que reduzia a realidade do mundo a um jogo de reflexos óticos. Cézanne é o iniciador da criação de um espaço caótico e contraditório, levado a cabo pelo cubismo que torna assim visível o multirelacional dos objetos, que os levariam a planificação dos volumes e a sua desarticulação em planos soltos. Os planos se libertam, se empilham num espaço que nada mais pede ao mundo exterior. A pintura deixa de representar os objetos do mundo, para se tornar uma realidade visual. E é essa a origem do neoplasticismo, que aprofunda a problemática da bidimensionalidade do espaço, e do dadaísmo, que continuara a experiência da utilização de materiais diversos na tela. Mas o movimento compõe a vida. Os futuristas pretendem introduzir o elemento dinâmico na composição cubista. Para estes, os objetos não se esgotam no contorno aparente, e seus aspectos se interpenetram continuamente devido à nossa visão que é dinâmica e vê vários espaços a um só tempo, ou vários tempos num só espaço. Esta idéia está expressa no Manifesto técnico Futurista “O bonde desloca-se entre as casas precipita-se sobre elas que, por sua vez, caem em cima dele e a ela se fundem”.(Manifesto Futurista apud Gullar, 1985, p. 114). Essa é a visão que possibilita compreender a obra futurista. O observador está longe das casas, dentro do bonde, longe dele, ao seu lado, a sua frente vislumbrando o impacto. Em qualquer dos pontos que esteja, sintetiza os vários pontos num só. Os pintores futuristas são contrários ao espírito acadêmico italiano, que é fortemente abalado pelas explosões que ocorriam em Paris, desde o impressionismo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa Escrevem no seu manifesto que a vitalidade da arte residia na sua integração ao meio. “Se nossos antepassados retiraram da arte a atmosfera religiosa que lhes pesava [...], cabe a nós buscar a inspiração no milagre tangível da vida contemporânea. Na metálica rede de velocidade que envolve a terra, nos cabos submarinos, nas belonaves, nas esquadrilhas maravilhosas que sulcam o céu, na obscura bravura dos navegadores submarinos, na dura luta pela conquista do desconhecido[...] interpretar e glorificar a vida de hoje, incessante e tumultuosamente transformada pelas vitórias da ciência.” (Manifesto Dos Pintores Futuristas apud Gullar, 1985, p. 88). Os futuristas são vaiados em Moscou por Larionov e seus discípulos em 1911. A irreverência, a invenção e a força do espírito russo se contrapunham a um espírito europeu impedido por uma tradição estética e cultural excessivamente presente. Estamos na Rússia prérevolucionária e esse espírito favorece a revolução nas artes. “De todas as correntes de vanguarda, animadas por propósitos revolucionários, a que se desenvolve na Rússia nos primeiros trinta anos do século com o Raismo 2 , o Suprematismo e o Construtivismo são as únicas a se inserir numa ten- são, e seguir, numa realidade revolucionária concreta, e a colocar explicitamente a função social da arte como uma questão política”. (Argan, 1988, p. 324). Os movimentos russos resumem idéias e processos que pertencem tanto ao futurismo como ao cubismo. A exposição “Estética Livre” em 1909 em Moscou, que durou apenas um dia, teve força suficiente para dar início a uma grande ebulição cultural. Desta fonte jorrou Malevitch com o suprematismo, Tatlin com o construtivismo, Rodchenko com o não objetivismo, Pevsner e Gabo com o realismo. O suprematismo reduz o vocabulário da pintura a triângulos, círculos, retângulos e a cruzes. Malevitch estuda um ethos popular, na busca do significado primal com tanto rigor como estudara o cubismo e Cézanne. As formas geométricas, arquétipos da natureza, seriam os elementos que restariam de uma redução radical de sua aparência. São signos intuitivos que livres de qualquer alusão à natureza tornam-se uma nova estrutura simbólica da realidade. Malevitch funda o mito da arte como expressão metafísica, ao formular uma nova linguagem simbólica da sensibilidade, que permite apreender uma dimensão recôndita da nossa experiência. Em 1913, no mesmo ano da exposição da obra Quadrado Preto Sobre Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 177 Arte, construtora de cosmologias 178 Fundo Branco, Vlademir Tatlin, autor do projeto Monumento à Terceira Internacional, lança o construtivismo opondose à metafísica do suprematismo. Essa tendência nascia de um fascínio pela mecânica. Construía contra-relevos e objetos em metal, plástico, madeira ou vidro. Para Tatlin, que foi discípulo de Larionov, e fez pintura cubista, os contra-relevos ficavam entre a pintura e a escultura. Nessa obra há um intuito de exaltação da máquina e uma necessidade destrutiva, foge a estabilidade do pedestal na escultura e da parede na pintura, ficando suspenso por fios de ferros estendidos de diversas maneiras no encontro de duas paredes. Os contra-relevos ultrapassam os limites do quadro, é uma construção no espaço mesmo. Essa intenção está presente em todo movimento russo. Os contra-relevos de Tatlin, para Gullar, é um novo objeto na arte, liberto da massa e da base, não é relevo, pois lhe falta uma superfície primeira, determinada, sobre a qual as formas se desenhassem em relevo. Não parte de uma massa dada a ser esculpida e não possui base, portanto não é escultura. Foge da superfície bidimensional e da representação. É uma continuação da pintura, dizia Tatlin. Nenhum movimento do início do século foi tão radical quanto o Dadaísmo, pois este nega toda arte do passado, a religião, a moral, a política e a si mesmo “Ser Dada e ser antidada”. Essa negação não é de um grupo ou de um movimento, mas, de uma geração que para Hobsbawm vive a era da catástrofe, o historiador considera o Dadaísmo ao lado do Construtivismo russo as únicas inovações de vanguarda depois de 1914. Surge quase que simultaneamente nos Estados Unidos e Zurique, o movimento se alastra com rapidez, a arte já não é uma operação técnica e lingüística. Repudia qualquer lógica, fazendo-se segundo as leis do acaso. Os materiais vêm de qualquer parte, um bom exemplo é a obra Merzbau, de Kurt Schwitters, construída no decorrer de dez anos, com elementos que o artista trazia da rua: pedaços de espelhos, peças de alguma máquina, restos de coisas que achava nos lugares por onde andava. Os dadaístas queriam escandalizar a burguesia, substituir a obra de arte pelo puro ato estético. “As grandes obras dadaístas foram feitas de forma a conterem em si sua própria inviabilidade, pela sua hipertrofia, pelo seu gigantismo, pela sua irrealidade ou pelo seu exagero” (Baitello Júnior, 1994, p. 90). Negavam aquilo em que a arte havia se transformado; em mercadoria, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa transação comercial. Para eles os artistas eram “mercenários em espíritos e os poetas banqueiros da linguagem” chega ao limite de negar sua própria atividade. É um grito de alerta diante de uma racionalidade falida que naquele momento destruía milhares de vida. Os dadaístas negavam a ordem da ciência que antes da guerra era confiante nas inevitáveis descobertas das leis da natureza. Negavam a técnica como operação programada e objetivada que garantia o progresso. Percebem a falência do mundo geometrizado, e propõem um espírito fáustico à cosmologia mamífera. Quando Marcel Duchamp atribui, um valor estético a um objeto qualquer (ready made), altera valores, conceitos, visões de mundo, cosmologias, reorganiza os objetos no mundo, criando assim um mundo diferente. André Breton, também compreendia o dadaísmo como um estado de espírito. Dada é livre pensamento artístico (Breton apud Stangos, 1988, p. 89). Porém sua tendência a teorizar se choca com niilismo dadaísta: O que é Dada? Uma arte? Uma filosofia? Uma política? Um seguro contra fogo? Ou: religião estatal? Dada é energia verdadeira? ou é coisa nenhuma , i. e.., tudo? (Hausmann apud Baitello, 1994) Vocês são todos acusados, levantem-se... O que estão fazendo aqui, amontoados como ostras sérias... Dada não sente nada, não é nada, nada, nada.. É como as vossas esperanças, nada. Como o vosso paraíso, nada. Como os vossos artistas, nada. Como a vossa religião, nada. ( Picabia, 2001, p. 8) A tendência a teorizar do poeta André Breton se choca com o espírito Dada, que nega qualquer princípio ou teoria. Breton retira-se do dadaísmo e constrói o surrealismo, que como movimento termina com sua morte, em 1966. Porém o Surrealismo e o Dadaísmo têm muito em comum: Assumem uma postura de rebeldia em relação à arte e à vida. São radicalmente contra a ordem, proclamam a liberdade. O Surrealismo não possui um estatuto. André Breton, como estudante de medicina, se familiariza com o trabalho de Freud que passa aplicar em seus pacientes de guerra e em seguida em si mesmo. No diálogo do Surrealismo com a psicanálise freudiana não há um sobrepujar de um ao outro, pois os Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 179 Arte, construtora de cosmologias 180 surrealistas não usam a técnica freudiana com a mesma intenção do cientista. Se Freud queria reintegrar o indivíduo à normalidade burguesa, para “o surrealismo o sonho e a imaginação eram para os artistas uma expressão pura do ‘maravilhoso’, seu estado primitivo. Queriam libertar a sociedade e o indivíduo da repressão da razão, para devolvê-lo a autenticidade dos instintos, a capacidade de viver em comunhão mítico-mágica com o mundo”.(Argan, 1993, p. 458). Esse pensamento é materializado nas obras de Juan Miró que, para Breton, era um dos mais autênticos surrealistas. Sua pintura era livre de qualquer censura. Não atribui significado simbólico as imagens que constrói, não quer justificá-las, pois, para ele, justificar já é censurar. “A psicanálise freudiana mergulha e explora, o surrealismo sobe e aflora, resolve a profundidade do inconsciente na superfície da imagem visual”.(Argan, 1993, p. 360). Se o Dadaísmo e o Surrealismo negavam a ordem, o neoplasticismo quer instaurá-la. Os pintores Piet Mondrian e Theo Van Doesburg e o arquiteto Gerrit Rietveld com suas obras caracterizam o movimento, que nasceu do diálogo de dois modos de pensamentos afins, a filosofia neoplatônica, do matemático Dr. Schoenmaekers e dos conceitos arquiteturais, de Hendrik Petrus Berlage e Frank Lloyd Wright. Era preciso despojar a arte de todo individualismo e encontrar uma linguagem universal capaz de integrar em seu seio a expressão do pintor, do escultor e do arquiteto. Destruir a forma e criar um ritmo livre. Para Modrian era necessário destruir o plano e a linha, afastando-se do perigo de uma arte decorativa ou meramente geométrica. Compreendia que a obra de arte deveria ter uma essência teórica rigorosa, mas nunca escreveu uma teoria da arte, pois acreditava que uma teoria da arte se constrói fazendo arte. Mondrian é um leitor de Spinoza, para quem conhecer é conhecer pela causa. Significa descobrir o modo pelo qual é produzido.Um círculo, por exemplo, é definido quando se diz que ele é produto da rotação de um segmento em torno de um eixo ou de um ponto extremo central. Fazer isso é conhecer o círculo geneticamente, isto é, através da causa que o produz. A De Stijl, consegui propagar seus conceitos e até certo ponto cristalizá-los. Van Doesburg que rompe com o princípio da vertical e da horizontal, introduz o plano inclinado e a construção em diagonal. Publica na De Stijl um artigo mani- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa festo lançando o elementarismo. Doesburg considerava as idéias do neoplasticismo dogmáticas, lança esse manifesto como uma reação, pretendendo ser uma retificação severa das idéias neoplásticas. Se Mondrian buscava a fusão vida e arte para um momento posterior, Doesburg queria-o para o agora. Sensível a todos as manifestações estéticas interessou-se pela poesia, pelo teatro, pintura, arquitetura, pelas artes gráficas e pela crítica de arte. Em todos esses campos analisou, teorizou, criou. George Vantongerloo fazia parte do grupo que estava sob a liderança de Doesburg. Artista plástico de formação matemática e científica, compreendia que a universalidade da expressão artística coincidia com a descoberta de leis precisas que determinem as relações entre os elementos visuais. Realizou estudos, em que decompunha obras do passado em seus elementos geométricos simples, fazendo esses mesmos estudos com suas esculturas figurativas. Fez estudos com a cor, a procura de coeficientes capazes de ditar a cor exata para determinada forma, em determinado campo. Aqui a ciência inspira e controla a criação artística. Vantongerloo transfere o problema da precisão intuitiva e fenomenológica da arte, para a pre- cisão objetiva e verificável da ciência. Essas idéias ganham força de dogma. E depois da Segunda Guerra Mundial, volta-se a falar em número cromático. A concepção matemática de arte toma corpo de movimento com a criação da Escola Superior da Forma de Ulm, depois de 1951. Na escola de Ulm, a instrução se funda tanto no estudo de problemas concretos e práticos como no de estudos e conhecimentos indispensáveis. Seu fundador e diretor Max Bill, exaluno da Bauhaus de Dessau, era pintor, arquiteto, designer, gráfico e educador. Continuidade (1947) Construção (1948) Unidade Tripartida (1947-48) são obras de Bill que têm grande significação no cenário das artes plásticas. A obra Unidade Tripartida diz de um problema matemático ilustrado pelo conhecido exemplo da Fita de Moebius, experiência que revela a continuidade de uma superfície e anula o conceito euclidiano de espaço. Bill não possuía a consciência desses problemas matemáticos o que queria, segundo ele, era realizar uma idéia que acalentava a muito: “configurar o espaço infinito em seu movimento infinito. “Em 1935, realizei uma escultura mais elementar que expressava uma idéia semelhante: Fita Sem Fim. Mais tarde reconheci que esta Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 181 Arte, construtora de cosmologias 182 escultura representava um problema matemático: a Fita de Moebius, mas de forma equilibrada interpretada de maneira artística. Depois dessa descoberta, estudei os problemas implicados nela e que pareciam sumamente interessantes”. (Max Bill apud Gullar, 1985, p. 217). Atraído pelo fascínio do mundo matemático Bill, deriva para soluções menos felizes em que a preocupação científica sobrepõe-se a invenção estética. Suas obras resultam de um permanente diálogo de formas, que vai desde o simples experimento perceptivo, do exame das leis que governam o campo visual à busca de uma significação poética e universal: Esse diálogo inclui desde os objetos de uso cotidiano mais simples até o edifício e a cidade. A arte concreta se esboça inicialmente no pensamento do grupo De stijl e, mais completamente na Escola Superior da Forma de Ulm. Foi uma atitude que se insere numa visão geral dos problemas artísticos modernos, é uma espécie de filosofia da arte. Uma atitude que implica na vontade de uma expressão estética objetiva e crítica, e numa compreensão da atividade artística como intimamente ligada aos novos meios de produção, às novas técnicas e às noções científicas. A decadência da arte concreta se manifesta quando se passa a buscar uma aproximação maior entre arte e ciência, o que fatalmente resultaria, como resultou, do predomínio dos princípios da ciência sobre a arte. Essa manifestação é mais evidente na pintura que na escultura. O tratamento objetivo dos elementos visuais - e a sua redução a fatos preceptivos sem transcendência conduziu a uma atitude analítica que deveria ser levada às últimas conseqüências sob pena de se deter à experiência na mera utilização de efeitos óticos. Ora, no campo da expressão individual, como é o caso da pintura, as formas e as cores têm que trazer consigo uma significação que transcenda o nível perceptivo. A simples “produção de campos de energia, com ajuda da cor”, que para Bill constituía uma das características da pintura concreta, limita o campo de expressão do artista, que estaria executando obras com um mesmo problema produzindo assim, versões diferentes de um mesmo fenômeno físico. Max Bill é o grande vencedor da bienal de São Paulo, em 1951, com Unidade Tripartida. As obras e idéias de Bill iriam exercer grande influência no curso da arte brasileira. Coisa que não ocorreu com a arte norte americana representada por Calder, inventor do “móbile” Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa e Jackson Pollock entre outros. O júri, não só concede o prêmio da sessão internacional a Bill, como a Ivan Serpa um dos prêmios da sessão brasileira, e Abrão Palatinik uma referência especial pelo seu aparelho cinecromático. Essa obra foi exposta, com uma concessão especial, pois a comissão organizadora não sabia em que categoria a obra se enquadrava, uma vez que não era desenho, nem pintura, nem escultura. Para Walter Zanini, critico e historiador “a penetração no Brasil do ideário plástico que se enraíza no construtivismo russo, no Neoplasticismo holandês e nos princípios propostos pela Bauhaus revisto pelo conceito de visão harmônica de Marx Bill” Zanini (1983, p. 653) estava relacionado a novos fatores socioeconômicos uma vivência democrática, o otimismo econômico do novo surto industrial de São Paulo, e a construção de Brasília. Essa influência ecoa no Brasil de duas maneiras diferentes: Um eco é do grupo Rupturas liderado por Waldemar Cordeiro “ dotado de conhecimento teórico da arte e de uma experiência artística em Roma, conjugados a um forte temperamento polêmico, constituir-se-ia ele no principal líder que o concretismo revelou no Brasil.” (Zanini, 1983, p. 653). Os artistas paulistas pertenciam à classe média, tinham profissões téc- nicas e eram autodidatas, possuíam uma rigorosa disciplina de grupo. Inclinam-se a uma especialização nas áreas do desenho industrial, da comunicação visual, da publicidade, do paisagismo, o que permite interferir no processo de desenvolvimento urbano. Chamavam aquilo que praticavam de “barroco da bidimensionalidade”, devido o interesse com que exploravam a vibração ótica como uma espécie de aspiração ao movimento. Preocupavam–se com a dinâmica visual, com a exploração dos efeitos da construção seriada. O que podemos ver na suavidade do movimento ótico na obra de Lothar Charoux. O segundo eco vem do Rio de Janeiro onde, na opinião de Zanini a preocupação central era o estético.Com uma liberalidade de princípios formais que o diferenciava do grupo paulista. O Grupo Frente se apresenta pela primeira vez em 1956, em exposição coletiva no Instituto Brasil - Estados Unidos. Na segunda exposição do grupo realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, participam: Pintores- Eric Baruch, Aloísio Carvão, Lígia Clark, João José da Silva Costa, Hélio Oiticica, Abrãao Palatinik, Ivan Serpa e Décio Vieira; Gravador- Lígia Pape; Escultor- Franz Weissmann. Mário Pedrosa escreveu no catálogo da exposição que os Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 183 Arte, construtora de cosmologias 184 artistas não obedeciam a nenhum código estético rígido. A linguagem geométrica era um campo aberto à experiência e a indagação e não um ponto de chegada. O aparelho cinecromático de Palatinik é um diálogo que o artista sempre manteve com a física mecânica e a arte. A obra é uma espécie de caixa que abriga uma série de mecanismos, coberta com uma tela transparente, onde se vê pequenas constelações de formas geométricas em constante movimento num fazer e desfazer infinito. Esses movimentos são obtidos segundo cálculos de acelerações diversas e lâmpadas de voltagens diferentes. Essa obra torna Palatinik, um pioneiro da arte cinética no mundo. Uma criação instigadora da contemplação a qual tive oportunidade de ver em sua casa, quando do congresso de complexidade no Rio de Janeiro, em setembro de1998. “A dimensão deste artista coloca-se numa exemplar atitude de aproximação arte/tecnologia, que soube desenvolver relacionando em sua obra a base teórica e a qualidade da percepção sensível”.(Zanini, 1983, p. 658). Hélio Oiticica e Ligia Clark são dois grandes expoentes das artes plásticas no Brasil e no mundo. O primeiro tornou-se um dos pioneiros, da arte ambiental, a segunda realiza uma série de proposições na Universidade de Sobonne. Esses dois artistas ao morrerem deixam as suas buscas, em um momento em que o observador/ leitor se transforma num fluidor. “Com o ready-made, o homem ainda tem necessidade de um suporte para revelar sua expressividade interior. Mas isso hoje não é mais necessário, pois a poesia se exprime diretamente no ato de fazer. (...) O ato engendra a poesia”.(Clark, 1980, p. 27). A artista desintegra o quadro tradicional no plano, para negá-lo logo em seguida na construção de contra-relevos que ao caírem no chão, segundo Ligia Clark se transformam nos Bichos. “É um organismo vivo, uma obra essencialmente ativa. (...) É impossível entre nós e o Bicho uma atitude de passividade (...) Trata-se de um diálogo em que o Bicho reagiu-graças a um circuito próprio e definido de movimento - às estimulações do espectador”. (Clark, 1980, p. 17). Dos Bichos, Ligia Clark partiu para experimentações, em que o seu existenciar, o seu viver se transmutam nas suas proposições como Caminhando, Nostalgia do corpo, O corpo é a casa, Luvas sensoriais, Máscaras sensoriais, O eu e o tu, Cesariana, Máscara Abismo, Camisa de Força, Baba Antropofágica, Rede de Elástico, Cabeça, Flor: relaxação, Túnel, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa Ovo-Mortalha. Segundo Hélio Oiticica, o processo por que passou Ligia Clark aparece na obra de outros artistas cada vez mais rápido e eclosivo. Oiticica considera a sua experiência mais imediata. “Houve como que a necessidade da descoberta das estruturas primordiais do que chamo ‘obra’, que se começam a revelar com a transformação do quadro para uma estrutura ambiental (..) O que se poderia chamar de ‘objeto’”.(Oiticica, 1985, p. 69). Esse momento da arte brasileira é de liberdade. Os artistas experimentam livremente, nas palavras de Oiticica procuram um modo de dar ao individuo a possibilidade de experimentar, deixar de ser espectador para ser participador. Para Gilles Deleuze, a arte é aquilo que resiste. E essa tem sido uma característica que persiste nessa atividade humana, ao longo da história. As proposições de Hélio Oiticica e Ligia Clark, do dadaísmo e do surrealismo eram resistências a uma mentalidade cientificista que invadia não só a arte, mas todo o espírito humano. Resistência à simplificação da linguagem, aos materiais convencionais, aos regimes políticos, a mecanização do gesto, resistência do próprio corpo do artista. Essa breve incursão na trajetória histórica da relação entre arte e ciência, tomando a vereda da arte, permitiu-me compreender que toda obra de arte possui uma lógica, uma percepção, uma opção de mundo e de vida. Volto agora a questão posta no início desse texto: O que nos diz a arte como metáfora da ciência do século XX? A nova metáfora da ciência exige uma nova linguagem que se manifesta na relação de liberdade do artista com a obra no processo de criação. O modo de ser do artista se inscreve em suas obras. E na relação que tem com elas: fluem e deixam fluir, numa dança harmoniosa que mais se assemelha a dança de Shiva, numa construção e destruição. Os artistas a maneira dos chineses, tentam compreender nas coisas, sua tendência, seu desejo de expressar-se. O ponto de partida é a contingência, não o modelo. Arriscam, navegam em mar incerto e por isso criam, inventam, pois são com o mundo, com os resíduos, com o movimento, com o ritmo da Terra.O artista se abre ao movimento, as possibilidades da vida na criação de novas linguagens. A física do processo “não é uma nova visão de mundo, [...] é invenção de linguagens novas, abertura de novas possibilidades de pensar e de dizer o que vivemos” (Prigogine, 1992, p. 195). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 185 Arte, construtora de cosmologias Abraçar a proposição da teoria do vir-a-ser do poeta da termodinâmica Ilya Prigogine é compreender que agora é a vez do diálogo e não do domínio, da solidariedade e não da separação, da cooperação e não do controle, da autonomia e não do governo. NO NOTTAS 2 A denominação desse movimento é encontrada em outros autores como raionismo Liderado por Michel Larionov( 1881-1964) e Natalia Goncharov (1881-1962) buscavam construir um espaço sem objeto,absoluto constituído apenas por movimento e luz. 186 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Sanzia Pinheiro Barbosa REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria da Conceição; CARVALHO, Edgard de Assis; COELHO, Nelly Novaes. Ëtica, Solidariedade e Complexidade. São Paulo. Palas Atenas,1998. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993 CLARK, Lígia. Coleção arte brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 A relação da criança com o mundo dos contos de fadas Children relations with the fairy tale world 190 RESUMO Este artigo tem como objetivo verificar a relação que a criança estabelece entre a realidade e a ficção, através da literatura, analisando o grau de discernimento manifestado na relação literatura/leitor. Para analisar esta questão, utilizou-se como base teórica os estudos de Amarilha (2000), sobre a relação do leitor com o ficcional; Bettelheim (1980), que trata da importância dos contos de fadas para o desenvolvimento cognitivo da criança e Held (1980), que também discute a relação entre o real e o ficcional. Esse estudo foi realizado em uma Escola Pública da Rede Estadual, na cidade do Natal, RN. A amostra estudada constituiu-se de uma turma de 1ª série (1º ano do ciclo de alfabetização) com vinte e seis alunos, sendo quinze do sexo masculino e onze do sexo feminino, com faixa etária variando entre seis e sete anos. Os resultados indicaram que é através da leitura principalmente dos contos de fadas, que a criança amplia seus horizontes, permitindolhe fazer múltiplas relações, entre o que ler e o que vive. Verificou-se, ainda, que a leitura como instrumento didático, não tem o mesmo significado quando desenvolvido como práticas prazerosas. ABSTRACT The objective of this article is to verify the relations that children make between reality and fiction through literature, by analysing the criterion in the relation between literature and the reader. Through the analysis of this question, it was made use of theoretical base of Amarilha (2000) about the relation of the reader with fiction.Also Bettelheim’s study about the importance of fairy tales to children cognitive development, and Held’s studies (1980), which discusses about the relations between reality and fiction. This study has been put into practice in a public school in the capital of the State of Rio Grande do Norte, Natal. The sample constituted of twenty-six students from the first grade; fifteen boys and eleven girls, all between six and seven years old. The results indicate relations about what is fiction and reality. It was verified that reading as a didatic tool does not have the same meaning when it is developed as pleasant activities. PALAVRAS-CHAVE Crianças; literatura; leitor. KEY-WORDS Children; literature; readers. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Maria Aparecida Matias FFreire reire FFranco ranco de Lima 1 INTRODUÇÃO Várias pesquisas já discutiram sobre a importância que a literatura exerce sobre o indivíduo. Este estudo, teve como finalidade investigar que contribuições esta traz para o leitor, no momento em que a criança lida com o texto literário, com vistas a entender as relações que se estabelecem entre o real e o ficcional. Objetivou-se, então, verificar a relação que a criança estabelece entre a realidade e a ficção, através da literatura, analisando o grau de discernimento manifestado na relação literatura e leitor. Para analisar essa questão, utilizou-se como base teórica os estudos de Amarilha (2000) que trata a relação do leitor com o ficcional; Bettelheim (1980), no qual trata da importância dos contos de fadas para o desenvolvimento cognitivo da criança; Held (1980) também discute a relação entre o real e o ficcional, entre outros estudos. Esse estudo foi realizado, numa escola pública da rede estadual, no município de Natal - RN. A amostra estudada constitui-se de uma turma de primeira série (1º ano do ciclo de alfabetização) com vinte e seis alunos, sendo quinze do sexo masculino e onze do sexo feminino. A faixa etária variou entre seis e sete anos. Constatou-se, ainda, que o nível de escolaridade da maioria dos pais dessas crianças não passa do primeiro grau completo. A grande maioria dessas crianças afirmou, na entrevista, não ter um acompanhamento escolar por parte de seus pais. Mas, isso por si só, não significa que estas não tenham contato com a literatura, através das histórias orais. Esses dados foram considerados importantes, por entender-se que a aprendizagem e a constituição de sujeito leitor dependerá das interações sociais que ele vivencia, pois “sabemos que a situação socio-cultural e as condições econômicas em que vivem as crianças, além do sexo e da própria experiência de vida, exercem uma forte influência sobre elas e os conhecimentos que constroem” (Kramer, 2000, p. 39). Como estratégia metodológica, este estudo foi dividido em dois momentos: a contação de história e, em seguida uma entrevista semiestruturada com as crianças, visando perceber que percepção estas tiveram com a história narrada. No primeiro momento, optouse em fazer uma dinâmica de interação com as crianças que se encontravam muito agitadas. Após o relaxamento, com a turma toda em círculo, foram apresentados os livros que pré-selecionados, todos pertencentes à categoria conto de fadas, para que eles pudessem Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 191 A relação da criança com o mundo dos contos de fadas 192 manuseá-los. A ausência desse contato contínuo com o livro se manifestou à medida que eles tocavam nos livros, como um objeto de prazer e que queriam individualmente, deles tomarem posse. Depois pediu-se que levantassem as mãos para escolher um dos livros para que fosse feita a narração. A maioria da turma escolheu o conto “Os três músicos”. A leitura foi iniciada sem mostrar as gravuras, utilizando-se a voz como único instrumento. As crianças demonstraram atenção no momento da narração do texto, sendo que apenas dois alunos mostraram-se dispersivos durante a leitura. No segundo momento, foram convidados, aleatoriamente, alguns alunos da turma para realização da entrevista. Após essa seleção, os alunos retornaram à sala de aula, dando continuidade as suas atividades. Enquanto isso permanecemos na escola aguardando o término da aula para fazer a entrevista com os alunos selecionados. Este espaço de tempo serviu, também, para que se tivesse oportunidade de manter uma conversa informal com alguns deles. Por outro lado, este tempo foi oportuno para que se tentasse captar o envolvimento e o significado que a história lida representou para eles. Isto possibilitou que fosse vislumbrada a compreensão de que ha- via se estabelecido um discernimento entre o real e o imaginário. Adotou-se o tipo de entrevista, com o questionário aberto, de forma que possibilitasse respostas espontâneas, optado-se por ser realizada individualmente pelo fato de se poder ficar mais atentos a cada sujeito e de forma que não houvesse indução das respostas de uns sobre os outros. Viu-se também que cada um, em particular, tornaria um contato mais informal, de modo que se ficasse mais à vontade durante esse processo. 2 O DESENV OLVIMENT DESENVOLVIMENT OLVIMENTOO DA PESQUISA Objetivando investigar a relação que a criança estabelece entre o real e o ficcional, a pesquisa teve como pressuposto inicial que a literatura desempenha um papel muito importante no desencadeamento dos elementos internos (cognitivos) e exteriores ao indivíduo (meio social). Para desenvolvê-la, procurou-se um ambiente escolar em que não tivesse sala de leituras, de modo que se pudesse perceber até que ponto essas crianças com pouco acesso a leitura de contos de fadas em sala de aula, conseguiriam estabelecer uma ponte entre a história narrada e suas experiências cotidiana enquanto ser social. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Maria Aparecida Matias FFreire reire FFranco ranco de Lima Resolvida essa questão, contatouse com uma das professoras da escola, tendo sido informada sobre os interesses da pesquisa. Combinou-se com a mesma sobre o momento em que seriam desenvolvidos a contação de história. 3 DISCUSSÃO DOS DADOS Os dados em discussão dizem respeito ao trabalho de campo, envolvendo Contos de Fadas. Caracterizando o conto enquanto um tipo de narrativa, há três acepções da palavra conto, Cortázar (apud Gotlib, 1999, p. 11): “1. relato de um acontecimento; 2. narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. fábula que se conta às crianças para divertí-las”. Essas acepções mostram um ponto em comum que são “os modos de contar alguma coisa”, ou seja, são narrativas. Este estudo está inserido nessa terceira categoria, dado o seu caráter de retratar um acontecimento, tendo como suporte o maravilhoso, como afirma Gotlib (op. cit. 18): Daí o conto ter como característica justamente esta possibilidade de ser fluído, móvel, de ser entendido por todos, de se renovar nas suas transmissões, sem se desmanchar: caracterizam-no, pois, a ‘mobilidade’, a ‘generalidade’, a ‘pluralidade’. É nesta perspectiva que, mesmo neste novo milênio, “a literatura, a fala escrita, a leitura (...) vêm sendo resgatada como ‘a forma’ (ou o meio) ‘mais eficaz’ para a nova ‘leitura de mundo’ que se faz urgente para a formação das crianças (...) (Coelho, 2000, p. 14). É importante considerar que, nessa perspectiva os contos de fadas continuam atuais, por isso, Coelho (op cit. p. 127) adverte: Não esqueçamos que o ‘poder mágico’ da mente será o elemento chave para a exploração dinâmica (e não mecânica) do poder da tecnologia que comandará as relações eumundo nesse terceiro milênio. Compreende-se, também, que é esta a maior contribuição que a literatura pode oferecer às crianças, um espaço de prazer que tanto se busca, oportunizando, ainda, neste mesmo espaço, a construção do conhecimento. Esse é o desafio maior: aliar o prazer ao conhecer, oferecendo, assim, o espaço de formar e transformar, através do uso da linguagem. Desafiar as crianças a usar a fantasia, a imaginação, atraindo esses principiantes leitores para o processo de descoberta do mundo, entendida, aqui, como o prolongamento da vida em toda sua dimensão é devolvê-las o direito de pensar, de ser gente. . A partir dessa compreensão e partindo da análise dos dois momentos distintos da nossa pesquisa, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 193 A relação da criança com o mundo dos contos de fadas 194 constatou-se que realidade e ficção são sistemas que interagem constantemente mantendo entre si uma diferença de grau. Tendo em vista essas reflexões de caráter geral, parece interessante investigar como as próprias crianças no momento em que lhes possibilita acesso ao mundo do fantástico, através da narração de um conto de fadas em que é introduzido seres reais e irreais. Sabe-se que é na faixa etária entre seis e sete anos, que normalmente as crianças transitam entre o mundo real e o fantástico, desde que se considere o fato de que não haja por parte do seu meio social, desrespeito, censura, e reprovação que as leve a um bloqueio. Dentro dessa normalidade, a criança vai além dos sete anos alimentando o poder criativo (Held, 1980). Neste sentido, a vida da criança é constituída com mais significado, uma vez que não lhe é tirado o direito de imaginar, criar, construir e reconstruir seus mundos. Na intenção de se encaminhar essa reflexão, a elaboração das perguntas, para a entrevista, foi organizada em três categorias de: a) localização espacial, do tipo: Você sabe onde fica o castelo do anão mudo ? b) identificação, do tipo: Qual das personagens você gostou mais ? c) convivência, do tipo: Você gostaria de passar um fim de semana com o flautista e a princesa ? onde? No entendimento de Amarilha (1997), “essas (...) categorias (...) abordam aspectos desafiadores da realidade e ficção, colocando o sujeito a confrontar sua percepção, sem induzi-lo a falsear”. Os alunos demonstraram grande interesse pela história, independentemente dos sexos, oferecendo indícios de que tinham contato com livros, histórias e contos, embora os pais não possuam condições financeiras que permitam um maior acesso de seus filhos à leitura e formação que os levem a acreditar que a literatura contribui para o desenvolvimento do indivíduo. Informações obtidas assinalam que a escola desenvolveu um trabalho com literatura, realizado por estagiários do curso de magistério, permitindo, assim, o contato dessas crianças com a Literatura Infantil. Apesar de não ter sido um trabalho contínuo, permitiu que estes se envolvessem com a ficção, demonstrando, assim, um envolvimento maior com o ficcional. Optou-se por trabalhar contos de fadas por se acreditar que este contribui para re-elaboração mental do indivíduo, de modo que age sobre os problemas que partem do interior do ser humano, interferindo nas emoções e contribuindo para a criança no sentido de ajudá-la a com- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Maria Aparecida Matias FFreire reire FFranco ranco de Lima preender o mundo, desconcertante e complexo, que aparentemente lhe apresentam. É através dos contos de fadas que a criança se sente desafiada ao enfrentar obstáculos e a lutar por seus ideais (Bettelheim, 1980). Ao perguntar às crianças se gostariam de passar um final de semana com o flautista e a princesa, elas crianças demonstraram-se interessadas, apenas duas delas disseram não saber e apenas uma demonstrou-seu desinteresse pelo assunto. Isto mostra o envolvimento delas com o imaginário, com o ficcional. Sobre a questão primeira – localização espacial -, durante a entrevista, observou-se que uma das crianças sempre fazia referência à cidade de São Paulo. Procurou-se questionar o por quê do seu interesse pela cidade: “Porque eu gostaria de conhecer a cidade ?”. Interrogado, respondeu: “Porque São Paulo é a cidade mais grande do Brasil”. Nesta resposta, observou-se que a cidade de São Paulo era uma construção imaginária que a criança fazia, uma vez que só a conhecia por interferência da linguagem dos meios de comunicação e principalmente por meio da televisão, dos telejornais e das novelas. Por outro lado, é também um dado real, visto que São Paulo é de fato uma das maiores cidades do país. Em relação a segunda questão – sobre a identificação com os personagens – torna-se perceptível esse processo na medida em que as crianças fazem relação, daquele momento, com as atitudes dos personagens no sentido de aprová-las ou não. A aceitação dessas atitudes estão intimamente relacionadas aos seus valores, suas crenças, e seus sentimentos. Assim os contos de fada auxiliam a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação e sugerem experiências que muito contribuem para a formação do seu caráter. No que se refere a terceira questão – da convivência - o estudo mostrou que os alunos fizeram uma ponte entre o conto narrado e os seus “conhecimentos de mundo” (Smith, 1994), pois, quando uma das crianças foi questionada se gostaria de passar um final de semana com o flautista e a princesa ela respondeu que gostaria; porém, quando perguntada onde ela gostaria de passar o fim de semana, sorriu e disse: “Mas eles não existem, quer dizer, princesa existe, a da estória é que não é de verdade, ela só vive na estória”. Neste exemplo a ficção serve de ponto de partida para a criança construir algumas reflexões e descobertas de sua consciência de mundo real sem perder de vista o imaginário. Neste sentido, a literatura permite a criança a vivência de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 195 A relação da criança com o mundo dos contos de fadas 196 um lúdico pessoal e criativo, estimulando a enfrentar os possíveis obstáculos na vida real. Dessa forma, os contos permitem a criança vivenciá-los como maravilhas, porque ela se sente entendida e apreciada bem no fundo dos seus sentimentos, das suas dificuldades, esperanças e ansiedade, sem que tudo isso tenha que ser puxado e investigado sob a austeridade de uma racionalidade que ainda está aquém dela. (Bettelheim, 1980) Durante o desenvolvimento do trabalho surgiram algumas reflexões que levaram a alguns questionamentos. A primeira, reside no fato de que são grandes as dificuldades de acesso aos contos de fadas. Apesar da grande quantidade de contos, apenas um pequeno número deles tornam-se conhecidos, dando acesso às crianças a uma variedade de livros que poderiam enriquecer suas vidas de significados, permitindo confrontar seus valores pessoais com o mundo que as cercam, uma vez que lendo e ouvindo as histórias, a criança vive diferentes problemas, um de cada vez e assim vão resolvendo seus conflitos que muitas vezes se aproximam de alguns dos personagens. A outra questão é porque a escola não tem como prática trabalhar a literatura, uma vez que não há por parte dos professores e demais segmentos da escola, uma valorização da leitura como prática prazerosa, pois quando acontece leitura na escola é apenas com objetivos didáticos, o que limita o texto, perdendo sua essência literária, transformando-os em instrumentos de imposição para interpretar pequenos trechos e avaliar se o aluno realmente leu. São nesses momentos que a leitura se torna enfadonha, desestimulando o leitor em buscar novas tentativas de ler por prazer. A impressão que se teve, em alguns momentos da pesquisa, é que o professor não está, de fato, convencido da contribuição da literatura, especialmente dos contos de fadas na formação de seus alunos, principalmente nesta fase de alfabetização, como afirma Zilberman (1991, p. 84) ao mostrar a importância da literatura infantil na fase também, de alfabetização, quando afirma que esta: (...) pode ser motivadora da aprendizagem das crianças, conduzidas ao contato com os livros em casa, entre os pais e os amigos, ou na sala de aula (...). Porém, é igualmente beneficiária dos efeitos alcançados: a criança convertida em leitora, consome novos textos, propiciando demanda continuada (...). Neste sentido a importância da repetição da narrativa e da leitura faz com que a criança reinvente as Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Maria Aparecida Matias FFreire reire FFranco ranco de Lima experiências já vividas. O contar outra vez é a forma com a qual a criança se utiliza para aos poucos ir se apropriando da linguagem, associando o dinamismo da vida real à riqueza do imaginário. Portanto, acredita-se que quem conta, reconta, e ao recontar o que estava disperso vai aos poucos se organizando. Se a criança pede para contar de novo é porque aquela história tem significado e faz sentido para ela ouvir novamente, fornecendo subsídios para a construção de sua competência narrativa. Neste aspecto, observou-se a riqueza do pensamento infantil nas formas de compreensão da história dos fatos, nas explicações simbólicas e a sua possibilidade de enfrentar e resolver seus conflitos. Muitas vezes uma história recontada permite que a criança faça interferências, corrigindo o narrado quando não foi assim contada na primeira vez. Na verdade, a história recontada nunca é a mesma, pois cada ato da fala é único na medida que acontece a narrativa, a tonalidade de voz e as emoções são diferentes a cada história. (Garcia, 2000). A importância de se colocar que mesmo vivenciando o ficcional, a criança possui consciência de mundo real e transita entre um e outro, conseguindo o prazer de criar e de reorganizar a cada momento os conhecimentos que já possui com os que vai descobrindo, relacionando sua vida com, mundo da literatura. Assim, contar ou recontar um conto vai além da contação de história; a voz que narra não só vai informar o momento da expectativa, é como se o interlocutor fosse contar um segredo. É o momento da magia; o momento exato que o ouvinte tem o poder de decidir o destino, enquanto se desvela os fatos como acontece com Sherazade no filme Mil e uma noites, que para escapar da morte, conta intermináveis estórias para o sultão, e como estratégia para escapar da tão terrível sina, ela se utiliza da narração, do momento ideal da magia, do encantamento da estória, onde o ouvinte esta preso e quer saber o que acontecerá e qual o desfecho do drama. Contudo, “Quando a criança lê ou ouve um conto, ela percebe a ficção proposta pela leitura ou vive estas experiências, transitando nos dois mundos, real e fictício, e se diverte com essas possibilidades, tornando-se mais lúcida e mais flexível em sua própria manipulação do real e do imaginário” (Held,1980). Também para Bettelhein (1980) os contos de fadas deveriam ser contados em vez de lidos. Este defende que para atingir integralmente suas propensões consoladoras, seus significados interpessoais, o Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 197 A relação da criança com o mundo dos contos de fadas 198 conto deve ser lido com um envolvimento emocional na estória e na criança, com empatia pelo que a estória pode significar para ela. Enfatiza que contar é preferível a ler porque permite uma maior flexibilidade (p. 185-186). Nesta perspectiva, o conto constitui alimento para a imaginação infantil. Quando proposto pelo adulto poderá em certos casos lhe servir de ponto de partida para auxiliá-lo a descobrir o humor de uma texto, em vez de tomá-lo como verdade absoluta, conseqüentemente preparando, enfim, esse pequeno leitor no que se refere a fazer uma leitura nas “entrelinhas”. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS É através da leitura que a criança amplia seus horizontes permitindo-lhe fazer múltiplas relações, entre o que ler e o que vive. Verificou-se neste estudo que a leitura como instrumento didático, não tem o mesmo significado quando desenvolvido como prática prazerosa. Fica prejudicado porque não se constrói leitores que não tenham algum tipo de relação com aquilo que lê. Nesta pesquisa ficou evidencida que a criança quando em contato com a leitura mantêm um elo entre o real e o imaginário, contribuindo para incentivar o seu universo criativo. Nesta perspectiva, as reflexões deste estudo, serviram para que fossem identificados elementos significativos para a prática pedagógica. No que se refere à interpretação e a organização das perguntas, partiuse do princípio de que estas categorias se apresentaram de forma interligadas. Tratando a princípio da questão de localização, observou-se que a criança faz uma construção imaginária a partir de elementos reais. Na identificação percebeu-se que esta permite que a criança estabeleça sua própria aceitação ou não, a partir dos personagens, tendo como referência o que ela considera bom ou ruim. Quanto à convivência, verificou-se que a criança possui discernimento do mundo real e imaginário e ao viver essas experiências, diverte-se com elas. Dessa forma, no que se refere à literatura pode-se afirmar que é através dela que o mundo fantástico tem significado e faz sentido. E esta, talvez, seja uma das maiores contribuições para o ensino de literatura. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Maria Aparecida Matias FFreire reire FFranco ranco de Lima 5 REFERÊNCIAS AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. São Paulo: Vozes/EDUFRN, 2000. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 1980 COELHO, Nely Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Vozes, 2000 GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 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J, Ap. 301, CEP. 59000-150 Nova Parnamirim – Parnamirim; Tel.: (0xx84) 608-0484; e-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Entre Brasil e Europa, o sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou The despisable sense inherited by the idea of the Barroque between Brazil and Europe 202 RESUMO O barroco, entre as outras expressões de arte, foi tratado de maneira torpe. Historicamente foi adquirindo essa forma de ser concebido por fatores como a própria etimologia e, antes mesmo desse, o aspecto de vir de encontro ao modelo clássico. Tal percepção tem inviabilizado, muitas vezes, a compreensão do barroco, mas também, por outro lado, precisamos dessa tomada de consciência para não vilipendiar ainda mais a originalidade dele. ABSTRACT Baroque, among other art expressions, has been despicably treated. Historically it has been getting this conception due to factors such as its etymology, and even before that, the fact of being considered a reaction against a classical example. Such perception has many times made impracticable, understanding it. But, at the same time, it makes us aware of this in order not to, strongly despise its own originality. PALAVRAS-CHAVE Barroco; teoria da arte; arte. KEY-WORDS Baroque; art theory; art. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 John Ale vier de Sousa Alexx Xa Xavier De início, apenas para reportar a contemporaneidade do tema, mesmo após três séculos passados no caso do Brasil, e quatro, no caso europeu, gostaria de citar uma querela recente, em termos históricos, ocorrida através da revista Bravo! de maio e junho de 1998. Daniel Piza, redator da revista citada, ao se referir à exposição O Universo Mágico do Barroco Brasileiro (FIESP), apresentou juízos de valor a respeito do Barroco, principalmente do caso brasileiro, que fere qualquer interpretação mais profunda no que diz respeito a teoria do barroco. Diz o redator “que o barroco brasileiro é um braço do barroco português, o qual por sua vez, é consensualmente inferior ao espanhol e ao italiano que o influenciaram.” Tal pensamento está envolto de um nevoeiro que se chama lógica racional cartesiana, lembra mesmo o racionalismo que perdurou durante o século XIX, em que se acreditava existir estágios de evolução cultural pelos quais a humanidade haveria necessariamente que passar – selvageria, barbárie, e enfim, a civilização2 – para o seu aperfeiçoamento. Mas, graças a racionalidade, primordial ao homem, a Antropologia superou essa visão preconceituosa, que muitos ainda teimam em tentar reafirmar. Nessas circunstâncias, deveria o nosso barroco passar por alguns níveis, deixando características artesanais e folclóricas para chegar ao patamar europeu? Acredito terminantemente que não. Partindo de uma percepção sócio-antropológica sui generis, mais adequada a realidade dos fatos, pode-se haver uma maior aproximação do objeto artístico, indo de encontro a visão do século XIX, impregnada ainda na idéia de Daniel Piza. Através dessa nova visão, que proponho, menos racionalista e mais racional, que aquela correntemente usada, a visão que apresento é esta, exposta neste artigo, na qual a arte se torna produto-produtora do meio que a produz e é gerado por ela, descartando-se a lógica conservadora de níveis a se trilhar, impulsionará, com certeza, a uma melhor compreensão do objeto artístico. Esta última unida a um olhar polifônico sobre o objeto, que não se venha torná-lo um simples produto, mas algo multifacetado, metafórico, enfim, aberto. Esta nova forma de conceber o objeto de arte poderá contribuir para mostrar a incapacidade do estilo de conter o objeto. Característica muito comum no mundo da história e compreensão geral da Arte. Ao nos debruçarmos sobre o mundo barroco devemos, antes de tudo, partirmos dele mesmo, da sua lógica, da sua dinâmica, do seu modo próprio de ser. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 203 Entre Brasil e Europa, o sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou 204 Para a voz de Daniel Piza, no número posterior da referida revista, Emanuel Araújo, curador da exposição da FIESP, traça uma visão que tenta romper com o senso evolucionista e até o maniqueísmo da anterior. Mas, ao se digladiarem, deixam transparecer o quão presente é a problemática, que em termo de literatura à respeito do barroco a situação não parece resolvida. Ao contrário, ecoa pedindo uma resposta de teor demasiado complexo. O sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou, trata-se de uma construção histórico-cultural, faz-se até complicado dissociá-lo dessa característica, pois já é parte integrante do objeto. No entanto, a compreensão desse processo contribuirá para um entendimento substancial de um gosto, de um modo de ser, que sempre terminou em muita polêmica, na maioria das vezes, com dano para essa expressão de arte. No Brasil vimos recentemente o conflito entre os citados personagens da Bravo! Ilustra uma situação que ainda não foi resolvida na teoria. Na própria Europa, um dos primeiros nomes a se deter na revalorização do barroco é Heinrich Wölfflin, no entanto ao criar uma relação dicotômica entre clássico e barroco, como observamos em suas obras Renascença e Barroco (1888) e Conceitos Fundamentais da História da Arte (1915), une o mundo clássico ao barroco. Apesar de afirmar que o barroco é um estilo próprio, atrela o mesmo ao clássico inviabilizando a possibilidade de compreendê-lo sem se reportar ao outro estilo que o antecede. A revalorização do Barroco coincide na Europa com a transição do século XIX para o XX, talvez pela eclosão de movimentos artísticos que irão terminantemente romper com os padrões clássicos. Que o barroco é o anti-clássico, parece ser idéia firmada anteriormente a Wölfflin, por Riegl. Porém, no início do século XX tal idéia já aparece nitidamente cristalizada na compreensão da arte. Se o barroco é o anticlássico na visão anterior, assim sendo, a carga valorativa da cultura greco-romana e renascentista de exímia importância na imagética do europeu, e abrangendo mais, o ocidental, o barroco se reveste de uma armadura do que nega a base clássica que é a razão e o equilíbrio. Mesmo que tais características clássicas neguem a natureza biológica humana, pois o próprio papel do homem enquanto social é artificial a sua natureza primeira. Por exemplo, o equilíbrio trazido pela composição da perspectiva clássica é, em sua natureza, artificial. Geometricamente estruturado, como organizado artificialmente. Daí, o todo resultado pela visão clássica ames- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 John Ale vier de Sousa Alexx Xa Xavier tra a visão humana, enquanto a obra barroca interage com o seu observador, ela se completa no homem. Sem negar proposições de ordem social, preso a sua visão formalista, Wölfflin pretendia uma história da arte autônoma, interesse que o prejudicou em captar a anima do barroco. Porém, em qualquer estudo que diga respeito ao universo do barroco, mais ainda, da arte, sempre o teremos como referência. Henri Focillon, outro estudioso, em A vida das Formas, também na busca de uma autonomia para a arte, privilegia a forma mais que outros aspectos do objeto para compreensão da produção artística. Nele o clássico é símbolo do apogeu e maturidade enquanto o barroco corresponde a decadência. Toda arte passaria por um estado primitivo, clássico e barroco. Tal pensamento corresponde a uma idéia que aos poucos irá se solidificando, chegando ao ponto de Benedetto Croce condenar o barroco explicitamente, através da sua visão racionalista, objetivista e, conseqüentemente, redutora. Desse modo, percebemos que, sempre que tomado como modelo o clássico, o barroco fica adulterado. Reafirma-se então a necessidade de se compreender o barroco em si e não como contraponto do clássico. O grande impasse teórico é que o modelo clássico tem sido um referencial, que tem ofuscado os outros modelos e com o barroco a coisa não tem sido muito diferente, parece mesmo ser mais exacerbado quando se trata do barroco. Através da etimologia do termo barroco podemos esclarecer um elemento fundamental para compreensão do estilo, o mesmo nasce como aberração, extravagância, desequilíbrio, entre outras denominações, que nada são além de desmerecimento, já que se toma o ideal de beleza clássico como princípio, não se levando em consideração o barroco como estilo com suas características próprias, dessa maneira possuindo peculiaridades em si mesmo, inclusive sua própria percepção de belo. A origem do vocábulo é bastante vaga, porém os vários pensamentos ao seu respeito, muitas vezes até sem conexão um com o outro, podem ser sintetizados numa idéia que os norteia – o sentido pejorativo. Talvez o significado mais corrente para o termo seja: uma pérola de superfície irregular. Nesse sentido teria se vulgarizado na Península Ibérica, partindo dos ourives que apelidavam um tipo de pérola deformada. Assim, cabe uma comparação entre o Barroco e o estilo clássico que o precedeu no Renascimento. O Clássico seria a pérola de superfície esférica Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 205 Entre Brasil e Europa, o sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou 206 perfeita, enquanto que o Barroco seria a aberração, na medida em que divergia do padrão de beleza adotado pelo estudo acadêmico. Na Itália, segundo Flavio Conti, o nome barroco dizia respeito a uma conversa de pouco valor argumentativo. Mais um sentido torpe para o estilo. Uma terceira proposição ao termo caberia a Wöfflin, por dizer respeito ao pintor Barrocci que se destacou no Maneirismo. Antes de ser considerado a transição do clássico para o Barroco, o Maneirismo sortia um efeito negativo na percepção da crítica da arte, caracterizado pelo reducionismo da cópia. Um quarto sentido poderia repousar sobre os termos buraco e barroca, que estão ligados a irregularidade de uma determinada superfície. Este último se aproxima muito do primeiro significado, não precisando justificar a aproximação do sentido pejorativo A teoria européia a respeito do Barroco esteve, pelo menos em um primeiro momento, imbuída de um preconceito norteado pelos padrões acadêmicos. No caso do Brasil, não menos, pois nomes como Porto Alegre e Gonzaga Duque, que estão na relevância dos primeiros a se interessar pelo tema, inclusive o primeiro, responsável por haver dado nome ao estilo brasileiro. Porém é latente uma conceituação do objeto, partindo não dele mesmo, mas de aspectos exteriores a ele, como acontece com as percepções dos estilos Românico, Gótico, Renascimento, entre outros. Tal imagem construída dificultou a possibilidade de compreender o Barroco na íntegra. Não apenas no caso brasileiro, como também, europeu, falase de um Barroco dos Jesuítas, de um Barroco ligado a construção de edifícios civis, de um outro que representou a Igreja pós Concílio de Trento, entre outros. Dessa forma esquecendo-se de falar de uma civilização barroca, na qual havia uma interligação nesse esboço de construção societária, que estava unida pela fina malha intransponível do Barroco. Comia-se, vestia-se, respirava-se, enfim, vivia-se desse clima barroco. Uma segunda geração, se assim podemos chamar de estudiosos do tema, Mário de Andrade e Manuel Bandeira, preocupavam-se estilisticamente, já que a anterior havia esquecido tal aspecto, talvez por buscarem originalidade para dar respaldo a arte brasileira, se bem que, Manuel Bandeira, em relatos enaltece o barroco mineiro em detrimento do nordestino, inclusive com argumentos que mais parecem, se estudados na ótica de características do estilo, tornar o do nordeste, barroco, e o do sudeste, mais próximo do rococó. No Brasil, geralmente per- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 John Ale vier de Sousa Alexx Xa Xavier cebemos uma hierarquia, dada pelos estudiosos, na literatura a respeito do tema desse artigo, semelhante aquela apresentada por Daniel Piza, no início do texto. Primeiro citam o Sudeste, depois o Nordeste e restante do país. Esquecem de observar culturalmente a produção de cada localidade. Uma outra vertente da situação, trabalhada nesse artigo, é a existência de uma forte ligação do Barroco com a Igreja Católica, por um lado, e com o Absolutismo, de outro, intensificando a problemática rumo ao reducionismo. A origem histórica do Barroco está em Roma, na transição do século XVI para o século XVII. Da Itália se difunde por toda Europa e depois por intermédio da Espanha e de Portugal, pela América Latina. Nos locais onde o clima da Reforma Católica era intenso, o barroco foi acolhido substancialmente. Por sinal, o espírito da Igreja Católica em reformulação, que estava voltada para o interesse de convencer o fiel, de tentar conseguir o retorno da ovelha perdida para a Reforma Protestante, e ainda, de conquistar novos adeptos, está intimamente ligado ao estilo em pauta, sendo praticamente impossível a dissociação entre ambos – pelo menos em algumas regiões mundiais. Com certeza essa proposição se embasa em Werner Weisbach, na obra El barroco: arte de la contrarreforma. Dessa maneira, o Barroco, muitas vezes, é taxado de mera propagandística de uma Igreja abalada. No pensamento anterior, a Companhia de Jesus, com Santo Inácio de Loiola; São Francisco Xavier, um dos principais membros da Companhia no Oriente; São Filipi Neri, que funda a Congregação do Oratório; Santa Teresa, a reformadora da Ordem do Carmelo; serão, entre outros, grandes responsáveis pela empreitada da Igreja. Nesse momento ainda, a Igreja se encontra sob a égide do Concílio de Trento, que se dizia responsável pelos estudos dos problemas da fé: confirmou o princípio de salvação da alma pela fé e boas obras, o culto a Virgem Maria e aos santos, afirma a existência do Purgatório, a infalibilidade do poder do papa, o celibato do clero, a manutenção da hierarquia eclesiástica, a indissolubilidade do casamento, entre outros. Em 1555 ocorre a restauração do Tribunal do Santo Ofício na tentativa de combater os hereges através da força. Tais tribunais haviam sido estabelecidos numa primeira vez em 1217, mas haviam sido esquecidos durante o período da Renascença européia. O índex, lista de livros proibidos pela Igreja Católica, que dificultava o progres- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 207 Entre Brasil e Europa, o sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou 208 so científico e cultural no mundo moderno permanecia. Livros luteranos e calvinistas, e mais uma série de obras científicas de autores como Maquiavel, Copérnico, Galileu e Newton, estavam vetadas ao cristão apostólico romano. Quanto à instituição do poder absoluto do rei, também, está intimamente ligada ao Barroco. A Reforma Protestante contribuiu sobremaneira para centralização monárquica, pois provocou a divisão do rebanho cristão e com isso acelerou a diminuição do poder do papado sobre os Estados Nacionais Modernos. Nesse ínterim, fica explícita a aliança entre reis e burgueses, numa sociedade estratificada em três estados praticamente imóveis. Ao fazer citação do Absolutismo e Igreja, seria justo ressaltar o quanto a retórica do Barroco teria sido responsável pela propagandística destes. Porém, faz-se necessário perceber a complexidade de cada uma das instituições, que não se limitam apenas à cúpula, mas a uma hierarquia constituída por membros de categorias sociais diversas. O discurso a respeito do tema, muitas vezes, dá um patamar às instituições, citadas anteriormente, como se essas fossem entidades, sendo o próprio Barroco sujeito apenas ao pensamento que as norteia, daí o povo que está intimamente ligado à pro- dução dessa arte, ficar em último plano e as conotações artesanais serem observadas com desprezo. Assim, atrelar o barroco tanto ao absolutismo como às malhas eclesiásticas poderá invalidar uma conceituação, pelo menos mais abrangente. No Brasil, a participação de mestiços na execução das obras barrocas é de fundamental importância. Esse abraço com o povo precisa ser ressaltado, mas ele é deveras inviabilizado pela relação que há entre o barroco e Igreja/Estado. Precisamos iminentemente perceber os fatores que corroboraram para manifestação barroca, mas não a partir de determinantes. Observando as especificidades locais de cada região e ligando aos aspectos genéricos, já será um exímio começo de compor essa teia de relações que se chama arte. Mas tem se negado essa visão. Aqui no Brasil, como já foi exemplo no início do texto, somos tidos, muitas vezes como o inferior do inferior, por sermos um braço do barroco português. Claro que não se pode contestar a origem européia no Barroco brasileiro, a ligação entre ele e a Igreja Católica, no clima de reforma, e muito menos, sua originalidade, numa colônia nos trópicos. Sabe-se que mesmo pela Europa, cada local acolheu esse estilo da maneira que lhe achasse conveniente; na França ligado às cortes absolutistas, parece mais só- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 John Ale vier de Sousa Alexx Xa Xavier brio que na Roma dos papas; na Alemanha, com menor influência da Igreja Católica que na Espanha, torna-se, também, sóbrio; na Espanha atinge carga de exagero, marca da opulência da religiosidade católica. No próprio Brasil percebe-se claramente diferenças entre a produção artística da região Nordeste, dominada, em grande parte, pela economia canavieira e a do Sudeste, pelo ciclo do ouro, bem como das outras produções nessas imensas terras. Talvez, pelo fato da região do ouro não receber influência direta das ordens religiosas, já que Portugal temia o contrabando do metal precioso, por possuir uma economia mais dinâmica, geradora de núcleos citadinos e também por se encontrar mais distante do litoral, faça, muitas vezes, afirmar-se que a produção artística nessas terras tenha sido mais original. Tal pensamento pode acarretar erro profundo quanto a compreensão do Barroco brasileiro, com prejuízo para o nordestino que é reduzido a cópia do europeu, à característica de carga de peso exacerbada, por estar preso a uma sociedade altamente hierarquizada, como era o nordeste açucareiro. Aí, de um lado é conservador por manter o padrão de além-mar e de outro por estar de acordo com o todo social. Percebemos nesse ponto uma certa contradição, pois se o Barroco nordestino é conservador por executar moldes de uma sociedade hierática, ele já se torna original em relação ao europeu por estar de acordo com o nosso modelo de sociedade – composta por elementos étnicos diversos – e meio geográfico – região tropical, como vegetação e animais, e uma série de outros aspectos, inclusive materiais de construção das obras arquitetônicas, diferentes dos europeus. Com certeza as ordens interferiram na execução das igrejas do Nordeste em maior intensidade, sem que para isso deixassem se surgir um elemento indígena, outro africano e mais um outro da fauna e flora tropical. Com certeza, ainda, os contatos nordestinos, diga-se de passagem, litorâneos, eram maiores com a metrópole portuguesa, mas não ofuscaram o brilho dos retábulos, nem diminuíram as representações alheias ao estilo europeu. Representações que falavam outras linguagens, cultos que mesmo a força da Inquisição não conseguiu apagar, ao contrário, estes foram abrindo aos poucos suas malhas e deixando sua marca registrada dentro do mundo que se dizia cristão. Quanto as duas produções culturais, possuem suas diferenças, o que não nos cabe averiguar nesse momento, mas ambas foram originais a sua maneira, quando a Igreja vacilava, os artistas falavam por si, de maneira que quando se lança um olhar atento, percebe-se Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 209 Entre Brasil e Europa, o sentido pejorativo que a idéia de barroco herdou o quanto tal resultado foi satisfatório em termos de se envolver em seus próprios padrões estéticos. Saber quem foi mais original não leva a lugar algum a não ser ao maniqueísmo pedante que ofusca a compreensão mais profunda de cada produção Faz-se necessário afirmar que apesar da literatura sobre o barroco ser vasta, o preconceito ainda palmilha aqui e ali: na forma de se tratar o tema; na própria etimologia do termo; nesse abraço mal resol- vido entre o Absolutismo e a Igreja; na ligação demasiadamente popular, que conturba os mais eruditos; enfim no todo que compõe essa pérola irregular, que apelidaram de Barroco. Dessa maneira, absorvendo por cada canto uma pitada de ironia, o barroco vai sobrevivendo na busca de estudos capazes não apenas de circundar a esfera que o aprisiona, mas que eles sejam capazes de romper o núcleo duro que o contém. Mas de leve para não macular sua alma. NO NOTTAS 2 210 Lewes Henry Morgan, por exemplo acreditava que a cultura humana passaria por uma série de estágios, tais como selvageria inferior, selvage- ria média, selvageria superior, barbárie inferior, barbárie média, barbárie superior civilização. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 John Ale vier de Sousa Alexx Xa Xavier REFERÊNCIAS ARAÚJO, Emanoel. As idéias fora de lugar ou a originalidade de cópia. Bravo! v. 9, 1998. p. 106-7. CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996. BAZIN, Germain. Barroco e rococó. São Paulo: Martins Fontes, 1993. CONTI, Flavio. Como reconhecer a arte barroca. Lisboa: Edições 70, 1986. D’ORS, Eugenio. O Barroco. Lisboa: VEGA, [s.n.t.]. FOCILLON, Henri. A vida das formas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993. HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. v. 1. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais A proposal of local equacional logic for verification of local algebraic equations. 214 RESUMO ABSTRACT A aritmética intervalar não possui as mesmas propriedades dos números reais, e por este motivo, defronta-se com um problema de natureza operatória, quando se deseja resolver algumas equações intervalares como extensão de equações reais através da igualdade usual e da aritmética intervalar, por esta não possuir o inverso aditivo, como também, a propriedade da distributividade da multiplicação pela soma não ser válida para qualquer terno de intervalos. A falta dessas propriedades impossibilita a utilização da lógica equacional, tanto para a resolução de uma equação intervalar usando a mesma, como para uma representação de uma equação real, e ainda, para a verificação algébrica de propriedades de um sistema computacional, cujos dados sejam números reais representados através de intervalos. Entretanto, com a noção de ordem de informação e de aproximação sobre intervalos, introduzida por Acióly (1991), surge a idéia de uma equação intervalar representar satisfatoriamente uma equação real, pelo fato dos termos da equação intervalar carregarem a informação da solução de sua extensão real. Baseado na noção de igualdade simples (Santiago, 1999) e igualdade local sobre intervalos (Santiago e Acióly, 2000), Santos (2001) estendeu a noção de conjuntos locais para álgebras locais, propondo assim, um sistema dedutivo para equações algébricas e uma lógica equacional local. The intervalar arithmetic does not possess the same properties of the real numbers, and for this reason, it is confronted with a problem of operative nature, when it is wanted to solve some intervalar equations as extension of real equations by the usual equality and of the intervalar arithmetic. So it does not possess the inverse addictive, as well as the property of the distributivity of the multiplication for the sum is not valid for any triplet of intervals. The lack of those properties disables the use of equational logic, either for the resolution of an intervalar equation using the same, or for the representation of a real equation, and yet, for the algebraic verification of properties of a computational system, whose data are real numbers represented by intervals. However, with the notion of order of information and of approach on intervals, introduced by Acióly (1991), the idea of an intervalar equation appears to represent a real equation satisfactorily, specially because of the fact of the terms of the intervalar equation carry the information of the solution of its real extension. Based on the notion of simple equality (Santiago, 1999), and local equality on intervals (Santiago e Acióly, 2000) and Santos (2001), it extended the notion of local local algebras, proposing a deductive system for algebraic equations and a local equacional logic. PALAVRAS-CHAVE Σ-álgebras; sistemas dedutivos; lógica equacional local. KEY-WORDS Σ-algebras; deductive systems; local equational logic. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago 1 DEFINIÇÕES Apresenta-se a seguir, algumas definições básicas sobre Σ-álgebras, classes equacionais e lógica equacional, como encaminhamento teórico e preliminar, para construção de uma teoria algébrica sobre equações locais. 1.1 Álgebras 1.1.1 Assinatura Uma assinatura é um conjunto (finito ou infinito) de símbolos de funções, denotado por Σ, onde cada símbolo de função tem associado uma aridade (número de argumentos). 1.1.2 Σ-Álgebra Uma Σ-álgebra é um par 〈A, ΣA〉, significando que uma assinatura Σ é interpretada através de operações sobre A. Assim: 1) A é um conjunto base chamado “carrier” ou “sort”; 2) ΣA é um conjunto de funções atuando sobre A, i.e., ΣA = {fA : An → A / f ∈ Σ} e a aridade de f é N. Dessa maneira, uma Σ-álgebra interpreta a assinatura Σ, onde o sort A possui uma estrutura imposta pelas funções de ΣA, no sentido de que os elementos de A só podem ser manipulados ou acessados usando essas funções. Uma dada assinatura pode ter diferentes interpretações, até mesmo para o mesmo sort. {fA : An → A / f ∈ Σ} e a aridade de f é N. Exemplo: Seja Σ = {Zero, Succ, Pred, Plus} uma assinatura cujas aridades são indicadas abaixo. Então 〈N, ΣN〉 é uma Σ-álgebra, onde: 1) N é o conjunto dos números naturais; 2) ΣN pode ser dada por: Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 215 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais Outra possível interpretação para os números naturais, seria atribuir 1 para a função ZeroN ou associar a multiplicação ao símbolo PlusN no lugar da adição. 1.1.3 Sintaxe A sintaxe de uma linguagem corresponde a uma álgebra de símbolos, chamada álgebra dos termos. Esses termos representam os elementos das Σ-álgebras que interpretam a assinatura. 1.1.4 Semântica A semântica de uma linguagem está relacionada ao significado dos termos, os quais são elementos de uma Σ-álgebra A. 1.1.5 Σ-Homomorfismos 216 Seja 〈A, ΣA〉, 〈B, ΣB〉 duas Σ-álgebras e h uma função de A em B. Então, h é um Σ-homomorfismo se, para todo f ∈ Σ de aridade k, h(fA(a1, ..., ak)) = fB(h(a1), ..., h(ak)). A figura abaixo ilustra um Σ-homomorfismo, onde duas Σ-álgebras preservam a interpretação de um símbolo de função f ∈ Σ. Observa-se que h( fA(a1, ..., ak)) = fB(b1, ..., b2) = fB(h(a1), ..., h(ak)). Caso h seja uma função bijetora, diz-se que h é um Σ-isomorfismo. 1.1.6 Σ-Álgebra Inicial numa Classe Seja C uma classe de Σ-álgebras. Então uma Σ-álgebra I em C é inicial se para toda Σ-álgebra J em C existe um único Σ-homomorfismo de I para J. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago 1.1.7 Σ-Álgebra dos Termos (T Σ) Para toda assinatura Σ, existe uma Σ-álgebra relevante, denominada “Σ-Álgebra dos Termos, denotada por TΣ”. Essas Σ-álgebras são puramente objetos formais. O sort é formado a partir de seqüências de símbolos ou strings, construídas através dos símbolos de funções de Σ. 1.1.7.1 Definição: TΣ é o conjunto dos termos sobre Σ, definido da seguinte maneira: (i) se f ∈ Σ e tem aridade 0, então f ∈ TΣ; (ii) se f ∈ Σ e tem aridade k > 0, então f(t1, ..., tk) ∈ TΣ, sempre que t1, ..., tk ∈TΣ. Assim, os elementos de TΣ são strings formadas por parênteses, vírgulas e termos, juntamente com os símbolos de Σ, que podem ser construídos usando as regras (i) e (ii) acima. As funções sobre esse conjunto têm como objetivo, construir novos termos a partir de termos já construídos. 1.1.7.2 Definição: (Operações sobre TΣ ). Seja f ∈ Σ de aridade k. Então f TΣ : TΣk → TΣ é uma função que mapeia uma tupla de termos 〈t1, ..., tk〉 no termo f(t1, ..., tk). Caso f tenha arid = zero, significa que f TΣ é uma constante em TΣ, consistindo da string “ f ” . Diz-se que f TΣ é uma operação k-ária sobre TΣ. Exemplo: Seja a assinatura Σ = {Zero, Succ, Pred, Plus} tal que arid (Zero) = 0, arid(Succ) = 1 e arid(Pred) = 1 e arid(Plus) = 2. Então TΣ contém a sucessão de termos: a) Zero, Succ(Zero), Succ (Succ (Zero)), Succ (Succ (Succ (Zero))), ... b) Pred (Zero), Pred (Pred (Zero)), Pred (Pred (Pred (Zero))), ... c) Succ (Pred (Zero)), Pred (Succ (Zero)), ... d) Plus (Zero, Zero), Plus (Pred (Zero), Zero), ... A Σ-álgebra dos termos 〈TΣ, ΣΤΣ 〉 é de natureza sintática. Ela representa a função da sintaxe de uma linguagem. Na verdade, muitas linguagens de programação ou linguagens formais, em geral, podem ser especificadas Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 217 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais de tal modo que suas sintaxes são vistas como Σ-álgebra dos termos de alguma assinatura Σ particular e cuja semântica é dada por outras Σ-álgebras através dos Σ-homomorfismos. Os Σ-homomorfismos, por sua vez, interpretam/traduzem uma Σ-álgebra noutra. Os Σ-homomorfismos são meras funções entre conjuntos que preservam a estrutura algébrica das Σ-álgebras e portanto, possuem todas as características de funções. Por exemplo: se f: A → B e g: B → C são Σ-homomorfismos, sua composição f: A → C também é um Σ-homomorfismo. Além disso, a função identidade sobre A, “iA”, é também um Σ-homomorfismo sobre alguma Σ-álgebra 〈A, ΣA〉. A propriedade mais importante da Σ-álgebra dos termos é expressa em termos de homomorfismos. 1.1.7.3 Teorema: Inicialidade (Hennessy, 1988, p. 25). Para toda Σ-álgebra 〈A, ΣA〉 existe um único Σ-homomorfismo iA: TΣ → A. 218 1.1.7.4 Corolário: TΣ é inicial na classe C de todas as Σ-álgebras (Hennessy, 1988, p. 27). A definição do sort da Σ-álgebra dos termos “TΣ” acima, é indutiva, ou seja, a indução estrutural é o método mais natural para se provar que todos os elementos de TΣ possui uma determinada propriedade. Assim, para provar que todos os termos possuem uma determinada propriedade P, é suficiente mostrar que: (i) todos os símbolos de constantes em Σ possuem a propriedade P; (ii) assumindo que os termos t1, ..., tk possuem a propriedade P, mostrar que os termos f(t1, ..., tk) possuem a propriedade P para todo f ∈ Σ, com aridade k > 0. Também, pode-se usar uma “indução estrutural” para definir relações ou funções sobre TΣ. Por exemplo, para definir uma função g sobre TΣ é suficiente: (i) definir o resultado da aplicação de g ao símbolo de função constante; (ii) definir o resultado da aplicação de g para f(t1, ..., tk ) em termos de g(t1), ..., g(tk ) , para todo f ∈ Σ, com aridade k > 0. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago Assim, TΣ pode ser visto como a sintaxe de uma linguagem, enquanto que uma Σ-álgebra 〈A, ΣA〉 como um domínio semântico ou uma interpretação da mesma. Pelo teorema 1.1.7.3, pode-se afirmar que toda expressão ou termo na linguagem tem um único significado em 〈A, ΣA〉, ou seja, há uma única maneira de interpretar a linguagem em um domínio semântico. Quando existe um Σ-isomorfismo f: A → B, diz-se que A e B são isomorfos como Σ-álgebras, e nesse caso, eles são vistos como idênticos, a menos da for ma como seus elementos/ter mos estão estruturados. 1.1.7.5 Proposição: (Hennessy, 1988, p. 27). A e B são isomorfos como Σ-álgebras, se e somente se, existe dois Σ-homomorfismos: h: A → B e g: B → A tal que: a) hog = idB b) goh = idA. 219 1.1.7.6 Corolário: Se I1 e I2 são iniciais numa classe C de Σ-álgebras, então eles são isomorfos (Hennessy, 1988, p. 28). 1.2 Classes Equacionais Uma equação é determinada por termos que contêm variáveis. A avaliação de tais termos numa Σ-álgebra é com respeito à atribuição de valores a essas variáveis. Assim, uma Σ-álgebra satisfaz uma equação se a avaliação dos dois termos coincide para toda possível atribuição de valores para essas variáveis. Por exemplo, a Σ-álgebra 〈Z, Σ Z 〉 satisfaz as seguintes equações: Pred(Succ(x)) = x; Succ(Pred(x)) = x; e Pred(Succ(x)) = Succ(Pred(x)). 1.2.1 Definição: Seja 〈A, ΣA〉 uma Σ-álgebra. A relação R sobre A é uma Σ-congruência se: (i) R é uma relação de equivalência; (ii) Para todo f ∈ Σ, se 〈a, a’〉 ∈ R, então 〈fA(a), fA(a’)〉 ∈ R, onde a = (a1, ..., an) e a’ = (a’1, ..., a’n). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais Seja A/R o conjunto das classes de equivalência, i.e., A/R = {[a]R: a ∈ R}, onde [a]R = {b ∈ A/ a R b}. Para cada f ∈ Σ, pode-se definir sobre A/R a seguinte relação: fA/R([a1]R, ..., [ak]R) = [fA(a1, ..., ak)]R. 1.2.2 Lema: (Hennessy, 1988, p. 30) (i) 〈A/R, ΣA/R〉 é uma Σ-álgebra; (ii) a função injetora in: A → A/R, definida por in(a) = [a]R, é um Σ-homomorfismo. 1.2.3 Definição: Seja =R uma Σ-congruência sobre TΣ. Diz-se que A satisfaz =R se iA(t) = iA(t’) sempre que 〈t, t’ 〉 ∈ =R. 1.2.4 Teorema: 220 Inicialidade para congruências (Hennessy, 1988, p. 31). Seja C(=A) a classe de todas as Σ-álgebras que satisfazem =A. A Σ-álgebra TΣ/=A é inicial na classe C(=A). Segundo Hennessy (1988, p. 31), este teorema é interessante para um tipo particular de Σ-congruência, a qual é gerada por um conjunto de equações. Para definir, formalmente, como equações geram Σ-congruências, precisa-se de conceitos novos, como a introdução de variáveis numa assinatura, além das noções de atribuição e substituição. 1.2.5 Definição: Seja X um conjunto de variáveis. Usa-se x, x1, x2, x3, ..., para representar essas variáveis de X. Pode-se estender qualquer assinatura Σ para uma nova assinatura Σ(X), a qual tenha todos os símbolos de Σ e mais cada x ∈ X, onde as variáveis agora são vistas como constantes na assinatura Σ(X). Esta notação não padrão de Σ(X) serve apenas para enfatizar o papel especial da nova constante. Usa-se a notação TΣ(X) para denotar a álgebra dos termos para uma assinatura Σ(X). Os termos TΣ, obviamente, serão também elementos de TΣ(X). A notação Σ-termos, é uma referência aos elementos de TΣ, o qual quando não possui variáveis é chamado Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago “termo fechado”, e quando as contém, é dito “termos abertos”. 1.2.6 Definição: Seja A alguma Σ-álgebra. Uma A-atribuição para X é um mapeamento ρA: X → A. Assim, ρA associa a toda variável x ∈ X, um elemento ρA(x) ∈ A. 1.2.7 Teorema: Freeness (Hennessy, 1988, p. 32). Se A é uma Σ-álgebra e ρA é uma Aatribuição para X, então existe um único Σ-homomorfismo hA de TΣ(X) para A tal que hA(x) = ρA(x) para todo x ∈ X. Nota-se que o teorema Freeness pode ser visto como uma generalização do teorema da Inicialidade, e pode ser obtido tomando X como um conjunto vazio. O que importa nesse teorema é que todo Σ-termo com variáveis pode ser interpretado ou avaliado unicamente numa Σ-álgebra A, contando que as variáveis tenham sido ligadas aos elementos de A por ρA. Pela notação de A-atribuição é possível definir uma substituição dos termos de maneira natural. 1.2.8 Definição: Uma substituição é um TΣ(X)-atribuição, i.e., ela associa a cada variável de X, um termo de TΣ(X). A aplicação de uma substituição ρ para o termo t denotado por tρ é chamada “instanciação de t”. Na verdade, a substituição ρ deveria ser denotado por ρTΣ(x), mas por conveniência omite-se o subscrito. Além disso, para enfatizar a natureza sintática da substituição, escreve-se tρ no lugar de ρ(t). Mas, a notação mais usual de substituição é t[t’/x], onde x é uma seqüência finita de variáveis que ocorre em t e, ti’ é ρ(xi) para todo xi da seqüência x. Se todo ρ(xi) é um termo fechado, i.e., ρ(xi) ∈ TΣ, então ρ é chamada “substituição fechada” e tρ “instanciação fechada de t”. Nota-se que “instanciações fechadas são sempre termos fechados”, i.e., eles estão em TΣ. As condições de substituição do lema seguinte, comportam-se como em geral se esperaria com respeito as atribuições em geral. Se ρA é uma A-atribuição e ρ uma substituição, então ρAoρ pode também ser visto como uma A-atribuição: “ele associa a cada x, o resultado da avaliação do termo ρ(x) de acordo com a A-atribuição ρA, como no teorema 1.2.7”. Na expressão ρAoρ , interpreta-se ρA como um Σ(X)-homomorfismo, no lugar de uma simples A-atribuição. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 221 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 1.2.9 Lema: Lema da substituição (Hennessy, 1988, p. 33). Para toda A-atribuição ρA e toda substituição ρ, a única extensão da A-atribuição ρAoρ à TΣ(X) é dada pela função h(t) = ρA(tρ). Este lema permite fazer atribuição e substituição de duas maneiras: faz-se uma substituição em t e em seguida avalia-se o termo resultante em A, ou, avalia-se em A o termo a ser substituído em t e depois avalia-se t usando essa atribuição modificada. Uma instância particular deste lema é quando a A-atribuição é outra substituição. Tem-se então que t( ρoρ ’) = (t ρ’) ρ. Define-se a seguir, o que o lema da substituição significa para uma álgebra que satisfaz um conjunto de equações. 1.2.10 Definição: 222 (Hennessy, 1988, p. 33). Para t, t’ ∈ TΣ(X), t =A t’ se para toda A-atribuição ρA, ρA(t) = ρA(t’). Quando aplicado a elementos de TΣ (termos fechados), estes coincidem com a relação de congruência sobre TΣ, c.f. a definição 1.2.3. 1.2.11 Definição: (Σ-Equação). Uma Σ-equação é um par de termos 〈t, t’〉 ∈ TΣ(X) x TΣ(X), e são, freqüentemente, escritos na forma: t = t’. Uma relação R sobre TΣ(X) satisfaz um conjunto das equações E, se R ⊇ E, e uma Σálgebra A satisfaz um conjunto de equações E, se =A ⊇ E, i.e., para toda Σ-equação 〈t, t’〉 ∈ E e toda A-atribuição ρA, ρA(t) = ρA(t’). 1.2.12 Teorema: Inicialidade para Equações (Hennessy, 1988, p. 34). Seja C(E) a classe das Σ-álgebras que satisfazem um conjunto de equações E, então C(E) tem uma Σ-álgebra inicial. A prova desse teorema é, essencialmente, uma aplicação sobre congruências; e a álgebra inicial de C(E) pode ser exibida na forma TΣ/C para alguma congruência particular C. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago Mas, para que um conjunto de equações E, possa conter derivações da forma t = t’, com t, t’ ∈ TΣ(X), faz-se necessário que essas fórmulas tenham uma dedução lógica. A seguir, será apresentado primeiro, sistemas dedutivos e em seguida, uma lógica equacional. 1.3 Sistemas Dedutivos - SDed Sistemas dedutivos são compostos por esquemas de axiomas e regras de inferência que atuam na comprovação lógica de uma assertiva. Além disso, sistemas de fecho algébricos estão intimamente relacionados com sistemas dedutivos. Informalmente, tal relação pode ser ilustrada através de um exemplo do cálculo proposicional. Exemplo: Seja a assinatura Σ = {¬, →} e X = {p, q, r, ...}, onde X é um conjunto de variáveis e Σ(X) = Σ ∪ X. Dessa maneira, os elementos de TΣ(X) são chamados “sentenças proposicionais”, e as deduções são baseadas na “regra de inferência”: (Modus Ponens). Um sistema de provas formais para o cálculo proposicional é dado pelos três esquemas de axiomas abaixo, mais a regra de inferência “Modus Ponens – MP”. A1) α→ (β→α) A2) (α → (β → δ)) → ((α → β) → (α → δ)) A3) (¬α → ¬β) → (β → α) MP) Uma prova formal é uma seqüência de instâncias dos axiomas (A1-A3) e da aplicação da regra de inferência MP (Modus Ponens). Por exemplo, uma prova formal para a dedução de “p → p”, é dada pela seqüência “p1, p2, p3, p4, p5” abaixo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 223 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais p1) p2) p3) p4) p5) p → ((p → p) → p) Instância de A1; (p → ((p → p) → p)) → ((p → (p → p)) → (p → p)) Instância de A2; (p → (p → p)) → (p → p) MP de p1/p2; p → (p → p) Instância de A1; p→p MP de p4/p3. Então, uma prova de uma assertiva p, é uma seqüência finita “p1, ..., pn”, onde pn = p e pi (i = 1, .., n) é uma instância de um esquema de axiomas ou a conclusão de alguma regra de inferência. 1.3.1 Definição: Um conjunto SP de “sentenças proposicionais” é dito fechado com respeito às provas formais, se p ∈ SP sempre que p é derivado a partir de SP, usando os axiomas A1-A3 e MP. 1.3.2 Definição: 224 Seja S um conjunto de sentenças. Uma regra de inferência R, sobre S, é um conjunto R, tal que R ⊆ Sn × S, com n ∈ N. p, p→q Notação: (MP). Significando: “premissas sobre Sn e conclusão q sobre S”. Caso R seja uma regra de inferência nulária p , R é chamado “axioma”. Um esquema de axiomas é uma abstração da forma de um conjunto de sentenças concretas que são tidas como verdadeiras. Por exemplo, p → (q → p) é uma abstração de todas as sentenças que possuem esta forma, onde p, q ∈ TΣ(X). Num certo ponto de vista, um esquema de axiomas é um ente matemático “perfeito”, enquanto que os termos em TΣ(X) que possuem esta forma, são as realizações desse ente matemático. As definições abaixo mostram com mais precisão como as regras de inferência se relacionam com a noção de sistema de fecho dedutivo (Santiago, 1995, p. 28). 1.3.3 Definição: Seja R uma família de regras de inferência sobre S (conjunto de sentenças). Dado um conjunto A (sentenças), tal que A ⊆ S e p ∈ S, diz-se que “p é Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago inferido de A usando R”, se existe uma seqüência finita p1, ..., pn de elementos de S, tal que pn = p e para cada pi (i = 1 ... k), ou pi ∈ A ou existe uma regra de inferência n-ária R’ ∈ R e j1 ... jn < i tal que ∈ R’. 1.3.4 Definição: A seqüência “p1, ..., pn” é chamada “prova formal de p, a partir de A”. Notação 1: A 4 R p (p é derivável de A usando uma família de regras de inferência R). Notação 2: 4 R p (usa-se essa notação quando A é um conjunto vazio). 1.3.5 Definição: Seja S um conjunto de sentenças e R uma família de regras de inferência sobre S. Um “sistema formal de provas” é a tripla 〈S, R, 4 R〉. 1.3.6 Definição: Um subconjunto 7 ⊆ S, diz-se dedutivamente fechado, se para cada p ∈ S, 7 4 p implica que p ∈ 7 . 1.3.7 Proposição: (p j1 ,..., p jn , p i ) A família de todos os conjuntos dedutivamente fechados com respeito a um sistema de provas formais diz-se um sistema de fecho. (Santiago, 1995, p. 28). 1.3.8 Definição: Um sistema de fecho S diz-se sistema de fecho dedutivo, se existe um sistema formal tal que S consiste em todos os conjuntos dedutivamente fechados. 1.3.9 Definição: Um sistema de fecho S diz-se algébrico, se existe uma álgebra A tal que S é o sistema de todas as sub-álgebras de A. 1.3.10 Teorema: Um sistema de fecho é dedutivo se, e se somente se, é um sistema de fecho algébrico. (Santiago, 1995, p. 29). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 225 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais Devido à ligação entre sistemas algébricos e sistemas dedutivos, no que segue, será definido uma Σ-congruência sobre TΣ(X) utilizando um sistema dedutivo. Segundo Hennessy (1988, p. 34), um sistema dedutivo-SDed(E) para um conjunto de equações E, é formulizado a partir dos seguintes princípios intuitivos: tudo é igual a se próprio; coisas que se igualam à mesma coisa são iguais uma a outra; iguais podem ser substituídos por iguais e as equações em E geram igualdades. 1.4 Lógica Equacional 1.4.1 Definição: O sistema dedutivo para equações-SDed(E) é formado pelas seguintes propriedades: 226 Neste sistema formal, uma prova de que t = t’, é uma sequência da forma t1 = t 1' , t2 = t 2' , ..., tk = t k' , tal que t1 = t 1' é uma assertiva oriunda das regras i) ou vi), e ti = t i' , com i = 2 ... n, são assertivas derivadas da aplicação das demais regras. Se existe uma prova para assertiva t = t’ cujas premissas sejam vazias, denota-se este fato por 4 E t = t’ e diz-se que t = t’ é um teorema do sistema dedutivo de equações - SDed(E). 1.4.2 Definição: Seja =E a seguinte relação sobre TΣ(X): para t, t’ ∈ TΣ(X), t =E t’ ⇔ 4E t = t’. Pelas regras (i)-(iii), =E é uma relação de equivalência sobre TΣ(X) e pela regra (iv), =E é uma relação de Σ-congruência sobre TΣ(X). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago 1.4.3 Lema: Para t, t´∈ TΣ(X), se 4 E t = t’ e A satisfaz E, então t =A t’; onde t =A t’ se, e somente se, ρ A (t) = ρ A (t’), para toda A-atribuição ρ A . (Hennessy, 1988, p. 35). Este lema pode ser declarado mais sucintamente como: E ⊆ =A implica =E ⊆ =A. Por indução estrutural, para todo teorema 4 E t = t’, derivado em SDed(E), e toda A-atribuição ρA, se t =E t’ então ρA(t) = ρA(t’). O lema 1.4.3 estabelece que se uma Σ-álgebra satisfaz um conjunto de equações E, então ela satisfaz a Σ-congruência =E e, por conseguinte, C(E) ⊆ C(=E). 1.4.4 Teorema: Inicialidade em C(E) (Santiago, 1995, p.31). Para todo conjunto de equações E, C(E) possui uma álgebra inicial. 1.4.5 Corolário: Inicialidade em C(E) (Santiago, 1995, p. 31). TS/=E é inicial em C(E). 1.4.6 Definição: (Segurança). Dada uma relação binária R sobre TΣ(X), um sistema dedutivo-SDed(E) é seguro com respeito a R, se 〈t, t’〉 ∈ R, sempre que 4 E t = t’. 1.4.7 Definição: (Completude). Um sistema dedutivo-SDed(E) é dito completo com respeito a uma relação R, se 4 E t = t’, sempre que. 〈t, t’〉 ∈ R. Essas definições de “segurança e completude”, respectivamente, querem dizer, em outras palavras, que um sistema dedutivo-SDed(E) é seguro se não há derivação de assertivas da forma t = t’ sem que 〈t, t’ 〉∈ R, e um sistema de prova é completo se não há 〈t, t’〉 ∈ R sem uma derivação de t = t’. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 227 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 1.4.8 Teorema: Teorema da Lógica Equacional (Santiago, 95, p. 32). Seja IE uma álgebra isomorfa a TS/=E, então: a) SDed(E) é seguro com respeito a =E sobre TΣ(X); b) SDed(E) é completo com respeito a =E restrito a TΣ. Todo o processo de resolução de equações, ou verificação de propriedades algébricas (no caso das linguagens de especificações algébricas), lança mão da lógica equacional. No que segue, tanto a lógica equacional, como a noção de Σ-homomorfismo, serão adaptadas para a noção de igualdade local proposta por Santiago (1999). Com isso, pretende-se fornecer uma lógica não só para a resolução de equações locais, como também para a verificação de propriedades expressas, numa linguagem de especificação, em termos de igualdade local. 228 2. ÁLGEBRA LOCAL Um dos conceitos mais importantes dentro da teoria da informação de Scott é o de consistência onde dois elementos consistentes são vistos como informações de um mesmo objeto. Abstraindo as suas diferenças, elementos consistentes podem ser pensados como sendo equivalentes, e assim como é feito com a noção usual de equivalência poderiam ser substituídos um pelo outro; desconsiderando é claro, o fato de uma informação ser melhor ou pior que a outra, quando essas forem comparáveis. Entretanto, quando se formaliza essa noção como uma relação usual de equivalência, a lei da transitividade não é satisfeita em certos modelos, mais ainda, como a consistência é expressa em termos da operação de supremo que é total apenas no caso dos sup-reticulados, tem-se então uma “equivalência” definida em termos de uma operação parcial para o caso dos demais domínios semânticos. Baseado nisso, em 2001, Santiago introduziu a teoria de igualdade local, que é apresentada a seguir. Essa seção apresentará um modelo para essa teoria, chamada conjunto local. Além disso, estenderá a noção de Σ-álgebra para Σ-álgebra local, e proporá uma lógica equacional local, a fim de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago fornecer meios para a resolução de equações locais ou a verificação de propriedades expressa em termos dessa igualdade. 2.1 TTeoria eoria da igualdade local 2.1.1 Definição: Axiomas para a Igualdade Local (Santiago, 2001). Assumindo a linguagem de primeira ordem com o símbolo de predicado unário de existência “E” (Scott, 1977) e uma função binária 9 , os axiomas para a igualdade local são: (i) a 2 a ↔ Ea DRefl. (ii) a 2 b → b 2 a DSimetria (iii) E (a 9 c) → (a 2 b ∧ b 2 c → a 2 c) DTransitividade local. Para se definir conjuntos locais, necessita-se da estrutura da álgebra de Heyting completa - cHa, que será definida a seguir. 229 2.1.2 Definição: Um reticulado L é completo se todo subconjunto de L tem supremo e ínfimo. (Bedregal, 1996, p. 14). 2.1.3 Definição: (Cruz, 2000, p. 50). Uma álgebra de Heyting completa (cHa), é um reticulado distributividade completo, Ω, se: p 9 i∈Iqi = 9 i ∈I (p qi ) (2.1.a) A A 2.1.4 Definição: Ω-set ou conjunto local é um Ω-set 〈A, (Conjuntos Locais). Um sup-Ω 〉 equipado com uma operação binária parcial 9 : AxA → A dita • =• supremo, que satisfaz: (i) a 9 a ≡ a D Idempotência (ii) a 9 b ≡ b 9 a D Comutatividade 0 1 (iii) a 9 (b 9 c) ≡ (a 9 b) 9 c D Associatividade e uma relação • 2 • :AxA → Ω chamada igualdade local que satisfaz a seguinte equação: (iv) a 2 b E (a 9 b). 0 0 1= 1 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 2.1.5 Proposição: Um conjunto local é modelo da teoria da igualdade local. Demonstração: 1) a 2 a = E (a 9 a) = E a, c.f. (i) da definição 2.1.1; 2) a 2 b = E(a 9 b) =E(b 9 a) = b 2 a , c.f. (ii) da definição 2.1.1; 3) Segundo Rasiowa (1974), a transitividade local E(a 9 c) ≤ ( a 2 b ∧ b 2 c → a 2 c ) é equivalente a E(a 9 c) → ( a 2 b ∧ b 2 c → a 2 c ) = B, em qualquer cHa. Como E(a 9 c) = a 2 c pela (iv) da definição 2.1.4, então a implicação E(a 9 c) → ( a 2 b ∧ b 2 c → a 2 c ) tem a forma α→(β→α) que é, portanto, igual a B. 0 0 0 0 1 1 1 0 1 0 1 1 0 1 1 0 1 0 1 1 0 1 0 1 0 0 2.1.6 Definição: (Operações). Dado um conjunto local A, uma função f : A n → A, diz-se uma operação local n-ária sobre A, se a12 b1 ≠ ⊥, ... , an2 bn ≠ ⊥, então f(a1, ..., an) 2 f(b1, ..., bn) ≠ ⊥ (2.1.b) onde ⊥ é o menor elemento da álgebra de Heyting completa (cHa). 0 1 0 1 0 1 230 2.1.7 Definição: (Relações). Uma relação n-ária R sobre um conjunto local A é uma função R: An → Ω tal que, se: a12 b1 ≠ 5 , ... , an2 bn ≠ ⊥ e R(a1, ..., an) ≠ 5 , então R(b1, ..., bn) ≠ ⊥ (2.1.c) 0 1 0 1 2.1.8 Definição: (Σ-Álgebra Local). Uma Σ-álgebra local é uma estrutura 〈A, ΣA〉, onde A é um conjunto local e ΣA é um conjunto de operações locais n-árias, sobre A. No que segue, será desenvolvida uma teoria algébrica local que é uma versão da teoria das Σ-álgebras. Assim como naquela teoria, a sintaxe terá o mesmo sentido que na Σ-álgebra clássica. Analogamente, a semântica dessa sintaxe estará ligada ao significado dos termos, que serão interpretados em Σ-álgebras locais. Assim como em Σ-álgebras tem-se a noção de conjunto dos termos, em Σ-álgebra local a noção de conjunto local dos termos TΣ terá o mesmo significado. Dessa maneira, define-se o conjunto local dos termos a partir de um conjunto de termos TΣ. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago 2.1.9 Definição: Seja Σ uma assinatura qualquer e um TΣ como na definição 1.1.7.1, i.e: (i) se f ∈ Σ e tem aridade 0, então f ∈ ΤΣ; (ii) se f ∈ Σ tem aridade k > 0, então para todo termo t1, ..., tk ∈ ΤΣ, f(t1, ..., tk) ∈ ΤΣ; (iii) ΤΣ é o menor conjunto de termos que contém os elementos da forma (i) ou (ii). Como anteriormente, os elementos de TΣ são strings formados por parênteses, vírgulas e termos, juntamente com os símbolos de Σ, que podem ser construídos usando as regras (i) e (ii). Sobre TΣ, define-se a seguinte operação binária parcial. 2.1.10 Definição: (Conjunto Local dos Termos). Seja a função parcial 9 T : TΣ x TΣ → TΣ Σ , onde 8 t, t’ ∈ TΣ, 9 (t, t ’ ) = t caso t = t ’ , e indefinido caso contrário. A estrutura 〈TΣ , 9 T 〉 é denominada conjunto local dos termos. Σ Trivialmente, as propriedades (i)–(iii) da definição 2.1.4 se verificam em 〈TΣ , 9 T 〉 já que o conjunto dos termos é o próprio TΣ acrescido da opeΣ ração parcial 9 T . Esta operação modela a noção de supremo entre os Σ termos de TΣ . Assim, o supremo entre dois termos só tem sentido se eles forem os mesmos, refletindo o fato de que em TΣ ainda não há uma ordem parcial diferente da ordem parcial trivial (a igualdade), sobre a qual se estabelece uma outra noção de supremo, ou seja, t 9 T t ’ = t, se t = t ’ , significanΣ do que dois termos são considerados consistentes se, e somente se, eles forem os mesmos. No que segue, TΣ será omitido de 9 T sempre que Σ possível. 2.1.11 Proposição: A estrutura 〈TΣ, .2 . , 9 T 〉 é um conjunto local, onde a relação de Σ igualdade local .2 . é a identidade entre termos. 0 1 0 1 Demonstração: Direto da identidade. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 231 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 2.1.12 Corolário: 0.2 .1 coincide com a igualdade usual em TΣ. Demonstração: 0t 2 t’ 1 = 2.1.13 Corolário: Dado 〈TΣ, = 〉, obtém-se o conjunto 〈TΣ, =, 9 〉, simplesmente, acrescentandose a operação de supremo (9 ), segundo a definição 2.1.10. 2.1.14 Definição: (Álgebra Local dos Termos). Dado um conjunto local dos termos 〈TΣ , 9 〉 de uma assinatura Σ, para f ∈ Σ de aridade k, seja f TΣ : TkΣ → TΣ uma função que mapeia uma tupla de termos 〈t1, ..., tk〉 no termo f(t1, ..., tk). Se f tem arid = zero, então isso significa que TΣ é simplesmente uma constante em TΣ , consistindo da string “ f ” . 232 2.1.15 Proposição: Para todo f ∈ Σ, f TΣ é uma operação local sobre TΣ. Demonstração: Como a igualdade local 0t 1 2 t2 1 coincide com a usual 0t = t 1 (pelo corolário 2.1.12), e f são funções bem definidas, então se 0t 2 t´ 1 = 1, ..., e 0t 2 t´ 1 = 1, então 0 f (t , ..., t ) 2 f (t´ , ...,t´ ) 1 = 1 2 1 1 1. TΣ k k T Σ 1 k T Σ 1 k 2.1.16 Definição: (Σ-Homomorfismos Locais). Dada duas Σ-álgebras locais 〈A, ΣA〉 e 〈B, ΣB〉, um Σ-homomorfismo local h:A → B, é uma função de A em B, tal que, se a1, ..., an ∈ A, fA ∈ ΣA e fB ∈ ΣB, então h(fA(a1, ..., an)) ≡B fB(h (a1), ..., h(an)) (2.1.d) Observa-se que a noção de Σ-homomorfismo local enfraquece aquela de Σ-homomorfismo por utilizar a relação de equivalência “≡” de Scott em vez da “identidade”, isso porque pode acontecer que termos da lin- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago guagem não possuam denotação numa Σ-álgebra local A. Por exemplo, um termo “1/a” não tem interpretação em N, para iN(1) = 1 e iN(a) ≠ 1, onde “/” é interpretado como “÷”, pois ÷(h(1), h(a)) = iN(1) ÷ iN(a) ∉ N. Ou seja, em ambos os casos ¬Eh(1/a) ∧ ¬E÷(h(1), h(a)), o que de acordo com a definição formal de equivalência (Santos, 2001, p. 112), h(1/a) ≡ ÷(h(1), h(a)). Dessa maneira, a noção de Σ-homomorfismo é enfraquecida de uma função total para função parcial. Isso permite que uma operação total em A, fA, possa ser traduzida numa parcial em B, fB. Mas, note que não se exigiu que h(a 9 b) ≡ h(a) 9 h(b), isso porque caso o fosse, faria com que, caso a noção de consistência em A fosse a trivial, fosse levada da álgebra A para a álgebra B, impondo que a noção lá adotada fosse também a trivial, o que não é interessante, ao contrário, deve-se permitir o oposto, i.e., que uma noção não trivial de consistência seja trazida da semântica para a linguagem através de uma segunda operação de supremo sobre TΣ. 2.1.17 Proposição: Seja Alg-Loc a estrutura 〈Objalg-loc, HomAlg-loc〉 onde Objalg-loc é a classe de todas as álgebras locais e HomAlg-loc é a classe de todos os Σ-homomorfismos locais. Assim, Alg-Loc é uma categoria. Demonstração: 1) A definição de ObjAlg-loc e HomAlg-loc pode ser verificada pela definição de categorias em (Santos, 2001, p. 115); 2) Para toda Σ-álgebra local 〈A, ΣA〉, a função identidade idA: A → A, tal que idA(x) = x, é um Σ-homomorfismo local, pois idA(fA(a1, ..., an)) ≡ fA(a1, ..., an) ≡ fA(idA(a1), ..., idA(an)). 3) Para toda Σ-álgebra local 〈 A, Σ A〉 , 〈 B, Σ B 〉 e 〈 C, Σ C〉 , e os Σhomomorfismos locais i: A → B e h: B → C, tal que i(fA(a1, ..., an)) ≡B fB(i(a1), ..., i(an)) e h(fB(b1, ..., bn)) ≡C fC(h(b1), ..., h(bn)), a composição hº i: A → C é um Σ-homomorfismo local, pois hoi(fA(a1, ..., an)) ≡ h(i(fA(a1, ..., an))) ≡ h(fB(i(a1), ..., i(an))) ≡ fC(h(i(a1)), ..., h(i(an))) = fC(hoi(a1), ..., hoi(an)). 4) As demais propriedades de categoria advém do fato dos Σ-homomorfismos locais serem funções. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 233 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 2.1.18 Definição: (Σ-Álgebra Local Inicial numa Classe). Seja C a categoria das Σ-álgebras locais. Então uma Σ-álgebra local I em C é inicial se para toda Σálgebra local J em C, existe um único Σ-homomorfismo local I para J. 2.1.19 Teorema: Para toda Σ-álgebra local 〈A, ΣA〉 existe um único Σ-homomorfismo local iA: TΣ → A. 234 Demonstração: A prova desse teorema é análoga a do teorema 4.1.7.4 (Santos, 2001, p. 127-128). 1) Primeiro define-se iA por indução estrutural sobre os termos, e todo termo em TΣ é da forma f(t1, ..., tk) para algum f ∈ Σ de arid = k. Assumindo por indução que iA(t1), ..., iA(tk) ∈ A, então faz-se iA(f(t1, ..., tk)) ≡ fA(iA(t1), ..., iA(tk))3. Dessa maneira, por indução estrutural, tem-se definido iA para todo elemento em TΣ. É fácil provar que iA é um Σ-homomorfismo local. Seja f ∈ Σ de arid = k, então: iA(fT (t1, ..., tk)) ≡ iA(f(t1, ..., tk)) D pela definição de fT A E ≡ fA(iA(t1), ..., iA(tk)) D pela definição de iA. 2) Para mostrar que iA é único, deve-se provar que ele coincide com todo Σ-homomorfismo de TΣ para A. Seja h: TΣ → A um Σ- homomorfismo local. Prova-se por indução estrutural que iA(t) ≡ h(t) para todo t ∈ TΣ. Então: iA(f(t1, ..., tk)) ≡ fA(iA(t1), ..., iA(tk)) D pela definição de iA ≡ fA(h(t1), ..., h(tk)) D por hipótese ≡ h(fT (t1, ..., tk)) D h é um homomorfismo local E ≡ h(f(t1, ..., tk)) D pela definição de fT . E Como todo elemento de TΣ é da forma f(t1, ..., tk) para algum símbolo de função f, segue por indução estrutural que iA e h coincidem. Dessa maneira, TΣ é visto como a sintaxe de uma linguagem, e uma Σ-álgebra local 〈A, ΣA〉 como um domínio semântico ou uma interpretação. Pelo teorema acima, pode-se afirmar que toda expressão ou termo na linguagem tem um único significado em 〈A, ΣA〉, ou seja, há uma única maneira de interpretar a linguagem num domínio semântico. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago 2.2 Classes equacionais locais Assim como foi feito anteriormente, essa seção generalizará mais um item da teoria das Σ-álgebras; a saber, a noção de Σ-congruência. Segundo a noção usual, uma Σ-congruência R é uma relação de equivalência tal que para todo f ∈ Σ, se 〈a, a’〉 ∈ R, então R(fA(a), fA(a’)) ∈ R. Uma Σcongruência pode ser vista como uma função Booleana R:A×A → {0, 1} que satisfaz a reflexividade, simetria e transitividade e R(a, a’) = 1 ⇒ R(fA(a) R fA(a’)) = 1. Portanto, dado um conjunto 〈A, = 〉, uma relação de congruência nada mais é do que uma outra relação de equivalência (além da igualdade) sobre A, dando origem à estrutura 〈A, =, R〉 e tal que a implicação acima acontece. No que segue, generalizar-se-á a noção de Σcongruência para Σ-congruência local. 2.2.1 Definição: Dado uma Σ-álgebra local 〈A, Σ, 9, 2〉 e uma operação de supremo4 9 sobre A, uma Σ-congruência local é uma relação de igualdade local R sobre A, definida em termos de 9, i.e., R(a, b) = E(a 9 b), tal que para todo f ∈ Σ de aridade k, se R(a1, b1) ≠ ⊥, ..., e R(ak, bk) ≠ ⊥, então R(fA(a1, ..., ak), fA(b1, ..., bk)) ≠ ⊥. 2.2.2 Definição: Seja R uma Σ-congruência local sobre TΣ. Diz-se que uma Σ-álgebra local 〈A, 2 〉 satisfaz R se, e somente se, iA(t1) 2 iA(t2) ≠ ⊥ sempre que R(t1, t2) ≠ ⊥. 0 1 2.2.3 Teorema: (Inicialidade para Σ-congruências locais). Seja C(R) a classe de todas as Σ-álgebras locais que satisfazem uma Σ-congruência local R. Então 〈TΣ, R, 9 〉 é inicial em C(R), onde 9 é a operação de supremo sobre a qual está definido R. Demonstração: 1) 〈TΣ, R, 9 〉 está na categoria. Como R é uma Σ-congruência local, então TΣR= 〈TΣ, R〉 é uma Σ-álgebra local, e portanto, se R(t1, t2) ≠ ⊥, então iTΣ (t1) 2 iTΣ (t2) = R(t1, t2) ≠ ⊥; 0 R R 1 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 235 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 2) Seja A ⊂ C(R), fazendo h:TΣR → A por h(t) ≡ iA(t), tem-se imediatamente do teorema 2.1.19 que iA é um Σ-homomorfismo local único de TΣR em A. A noção de Σ(X) e TΣ(X) estende-se naturalmente para Σ-álgebra local dos termos, de maneira análoga a definição 1.2.5. 2.2.4 Teorema: (Freeness). Seja A uma Σ-álgebra local e ρA uma A-atribuição para X, então existe um único Σ-homomorfismo local de TΣ(X) para A tal que hA(x) = ρA(x) para todo x ∈ X. 236 Demonstração: 1) Define-se hA por indução estrutural em termos de TΣ(X). a) Se t é uma variável em X, faça hA(t) = ρA(t); b) Caso contrário, t tem a forma f(t) para algum f ∈ Σ. Assumindo hA(t) ∈ A, então faça hA(f(t)) ≡ fA(hA(t)). Dessa maneira, por indução estrutural, hA está definido para todo elemento de TΣ(X). É fácil provar que iA é um homomorfismo local. Seja f ∈ Σ de arid = k, então iA(fTΣ(t1, ..., tk)) = iA(f(t1, ..., tk)), pela definição de fTΣ ≡ fA(iA(t1), ..., iA(tk)), pela definição de iA. 2) Seja h’: TΣ(X) → A outro Σ-homomorfismo local que coincide com ρA em X. Deve-se mostrar por indução estrutural que h(t) ≡ h’(t) para todo t ∈ TΣ(X). a) Caso t ∈ X então h(t) = ρA(t) = h’(t); b) Caso contrário, t tem a forma f(t) para algum f ∈ Σ. Assim supondo hA(t) ≡ (t), hA(f(t)) ≡ fA(hA(t)), por definição de hA ≡ fA (h’A(t)), por hipótese ≡ h’A(f(t)), pois h’ é um Σ-homomorfismo local. Assim como o teorema 1.2.7 (Freeness) é uma versão do teorema 1.1.7.3 (Inicialidade), o teorema acima é uma versão para Σ-álgebras locais do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago teorema 1.2.7. No que segue, as noções de A-atribuição e instanciação são mantidas, entretanto, o lema da substituição é adaptado para o caso dos Σ-homomorfismos locais. 2.2.5 Lema: (Lema da substituição). Para toda A-atribuição ρA e toda substituição ρ, a única extensão de A-atribuição ρAoρ a TΣ(X) é dada pela função h(t) ≡ hA(tρ), onde hA é a única extensão de ρA. Demonstração: A função h é obviamente um Σ-homomorfismo local que coincide com a A-atribuição ρAoρ nas variáveis. De acordo com o teorema Freeness, h é único. 2.2.6 Definição: (Σ -Equação Local). Uma Σ-equação local é um par 〈t, t’〉 ∈ TΣ×TΣ, freqüentemente escrito como t 2 t’. Um conjunto de equações locais é, portanto, uma relação binária finita sobre TΣ(X). Diz-se que uma relação binária R sobre TΣ(X) satisfaz um conjunto de equações E se, e somente se, R ⊇ E. Uma Σ-álgebra local satisfaz um conjunto de equações locais E, se, e somente se, para toda Σ-equação local 〈t, t’〉 ∈ E e toda A-atribuição ρA, hA(t) 2 hA(t’) ≠ ⊥. 0 1 Assim como no caso das Σ-álgebras, no que segue, será introduzido um sistema dedutivo “equacional”, a fim de que propriedades de uma Σálgebra local sejam verificadas finitamente. 2.3 Sistema dedutivo de equações locais: lógica equacional local 2.3.1 Definição: Assumindo o axioma da equivalência (eq) de Scott, seja SDedLoc(E) um sistema dedutivo para equações locais que formaliza a noção de álgebra local, dado pelas seguintes regras. Cada regra é representada na forma: e ∨ (com ∨ = 9) é uma operação de supremo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 237 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 238 Na regra (i), o conjunto de premissas ϕ(t, t’) estabelece a condição para se concluir a existência do supremo entre t e t’. Por exemplo: a) No caso da igualdade local trivial em TΣ, ϕ(t, t’) seria t = t’ , ou seja, , onde t = t’ é a igualdade simples de Scott6 (uma Wff); b) No caso de uma igualdade local sobre intervalos, ϕ([a1, b1], [a2, b2]) seria algo semelhante à [a1, b1] ∩ [a2, b2] ≠ ∅, ou seja, teria-se: Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago As regras (ii), (iii) e (iv) estabelecem as propriedades algébricas do supremo; (v), (vi), (vii) e (viii) as propriedades da igualdade local; (ix) a propriedade de congruência; (x) as instanciações; e (xi) o conjunto das Σ-equações locais da teoria em questão. A derivação de uma igualdade local t 2 t’ usada nesse sistema será denotado por 4 E t 2 t’ e caracterizado pelo teorema abaixo. 2.3.2 Teorema: Para t, t’ ∈ TΣ(X), tal que 4 E t 2 t’ e A satisfaz E, então para toda Aatribuição ρA, hA(t) 2 hA(t’) ≠ ⊥, sempre que hA(t), hA(t’) ∈ A. 0 1 Demonstração: Sejam t, t’ ∈ TΣ(X). Suponha que A satisfaz E e hA(t), hA(t’) ∈ A. Então: 1) Se 4 E t 2 t’ é uma instância da regra (xi), então (t, t’) ∈ E. Como A satisfaz E, então hA(t) 2 hA(t’) ≠ ⊥, para toda A-atribuição ρA; 0 1 2) Caso 4 E t 2 t’ seja uma instância da regra (vii), então existe uma prova da premissa t 2 t’ cujo tamanho máximo é k. Por hipótese, hA(t) 2 hA(t’) ≠ ⊥, e pela simetria da igualdade local, hA(t’) 2 hA(t) ≠ ⊥ para toda Aatribuição ρA; 0 1 0 1 3) Se 4 E t 2 t’ é uma instância da regra (viii), então existe uma prova das premissas 4 E(t ∨ t” ) , 4 t 2 t’ e 4 t’ 2 t”, cujo caminho máximo é k. Como 4 E(t ∨ t”) é derivado no sistema apenas das condições de existência do supremo {ϕ(t, t”), t, t” ∈ TΣ(X) e ϕ é wff}, então ϕ(t, t” ) ≠ ⊥ se, e somente se, ∃y.y = t ∨ t” = E(t ∨ t”) ≠ ⊥. Como A é um conjunto local, então E(t ∨ t”) = t 2 t” ≠ ⊥; 0 0 1 0 1 0 1 0 1 1 4) Se 4 E t 2 t’ é uma instância da regra (ix), então t, t’ possuem a forma f (t1, ..., tk ) e f (t´1, ..., t´k ). Além disso, existe uma prova de cada premissa “ ti 2 t´i”, cujo tamanho máximo é k. Por hipótese, hA(ti ) 2 hA(t´i ) ≠ ⊥ e hA( f (t1, ..., tk )), hA( f (t´1, ...,t´k )) ∈ A. Como hA é um Σ-homomorfismo local, então hA( f (t1, ..., tk )) = fA(hA(t1),..., hA(tk)) e hA( f (t’1, ...,t’k )) = fA(hA(t’1), ..., hA(t´k)). Como fA é uma operação local, então fA(hA(t1), ..., hA(tk )) 2 fA(hA(t´1), ..., hA(t´k)) = hA(f(t1, ..., tk)) 2 hA( f (t’1, ...,t’k )) ≠ 5 ; 0 1 0 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 1 0 1 239 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 5) Se 4 E t 2 t’ é uma instância da regra (x), então t, t’ possuem a forma tρ e t’ρ, para toda substituição ρ. Além disso, existe uma prova da premissa t 2 t’, cujo tamanho máximo é k. Considere a A-atribuição ρAoρ, por hipótese hA(t) 2 hA(t’) ≠ 5 , onde hA é a única extensão de ρAoρ. Como hA(tρ), hA(t’ρ) ∈ A, então pelo lema da substituição hA(t) = hA(tρ) e hA(t’) = hA(t’ρ), e portanto, hA(tρ) 2 hA(t’ρ) ≠ 5 . 0 1 0 1 O teorema acima garante que ao deduzir uma Σ-equação local 4 E t 2 t’ no sistema SDedLoc(E), as interpretações de t e t’ serão localmente iguais na Σ-álgebra local que satisfaz o conjunto de equações E, sempre que t e t’ tiverem significado em A. A diferença desse teorema para o lema 2.2.5 (Lema da substituição), reside na diferença entre a igualdade local e a igualdade usual, mas no fato das regras de substituição e instanciação da lógica equacional, não garantirem que as conclusões possuam significado. 240 2.4 Considerações finais Esse artigo propõe uma teoria algébrica baseada na noção de igualdade local, levando em consideração não somente a noção de objetos localmente iguais, mas também o caso de teorias algébricas que envolvam objetos parcialmente definidos; daí a versão Σ-homomorfismo local. Através da formulação do sistema dedutivo anterior, percebeu-se que a parcialidade em certos termos, pode surgir de termos não parciais, apenas com a aplicação usual das regras de congruência e instanciação, isto é, são essas regras que podem introduzir a não existência a partir de termos existentes. Portanto, é necessário que tais regras sejam reformuladas a fim de remover a premissa “sempre que hA(t), hA(t’) ∈ A” do teorema 2.3.2. Com a introdução da noção de Σ-álgebras locais, deu-se um passo no sentido de uma semântica denotacional, alternativa às “institutions” de Goguen e Burstall, para linguagens de especificações algébricas, de maneira que não se leva em consideração apenas elementos idênticos, mas generaliza-se essa idéia para elementos consistentes, permitindo a especificação algébrica de sistemas cujos elementos são meras informações/aproximações dos elementos a serem computados, permitindo assim que, em alguns casos, as propriedades algébricas dos Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 José Medeiros dos Santos Regivan Hugo Nunes Santiago elementos a serem computados sejam simuladas por propriedades da álgebra local (das informações utilizadas), fazendo com que propriedades nesse sistema possam ser verificadas, utilizando apenas a informação dos objetos a serem computados. 241 NO NOTTAS 3 4 5 Note que pode acontecer que iA(t1), ..., iA(tk) ∈ A, mas iA(f(t1, ..., tk)), fA(iA(t1), ..., iA(tk)) ∉ A. Por exemplo, iA(1), iA(0) ∈ N e iA(1/0), ÷(i(1), i(0)) ∉ N, mas iA(1/0) ≡ ÷(i(1), i(0)). c.f. (Bedregal, 1996, p. 10). Well formed formula. 6 Note que uma maneira mais elegante de se definir a existência do supremo a partir da igualdade usual é, simplesmente, tornar o conjunto de premissas vazio, significando que todo termo é supremo de si próprio, ou seja, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Uma proposta de lógica equacional local para verificação de equações algébricas locais 3 REFERÊNCIAS ACIÓLY, B. M. Fundamentação computacional da matemática intervalar. 1991. 263p. Tese (Doutorado em Ciência da Computação) - Instituto de Informática, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ALLISON, L. A pratical introduction to denotational semantics. Cambridge: [s.n.], p. 37, 1986. (Computer Science Texts, 23). BEDREGAL, B. R. C. Continuous information systems: a logical and computational approach to interval mathematic. 1996. 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Para isso a preocupação do autor não é só “contar” a história de sua família, e dele por derivação, mas sim escrevê-la de modo tal que o texto fosse laboriado pelo filtro do manejo de linguagem que só o literário permite fazer. Os seis volumes que compõem sua obra, a partir do primeiro, “Baú de Ossos”, mostram com toda a grandeza, que lhe é peculiar, como um “amante da palavra – lida e escrita” erige um construto desafiador para todos os leitores que obtiveram como legado essa obra. ABSTRACT This paper presents a reading of memory of representation in the work of the writer from Minas gerais, Pedro Nava. He is one of the most celebrated authors of this kind of text: memorialism. His work reproduces under a literary’s conductor thread, a reconstitution of biographical aspects of his family, delineating at the same time, a cultural historical panel of Brazil.The author’s preoccupation is not only to fabulate his family’s history, but writes it under a literary filter. The six books that compose his work, the first is “Bau de Ossos”, presents himself in greatnes as a “word’s lover” – read and written – his words build a provocative work for all the readers that accept his work as a legacy. PALAVRAS-CHAVE Pedro Nava; memória; memorialismo KEY-WORDS Pedro Nava; memory; memorialism Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Car los Alber to de Ne greiro Carlos Alberto Negreiro 1 INTRODUÇÃO Oubliette, oubliette, morada deminha memória Alessandre de Lia - In: Tigrescritura. A Afonso Fávero As memórias de Pedro Nava constituem a obra de maior porte em termos de romance brasileiro que se constrói sob o gênero memorialístico. O autor foi capaz de transformar sua biografia em um registro da crônica da vida brasileira que cobre várias décadas da história do país. Seu mérito não vem precisamente do tamanho da obra, mas sim como soube amalgamar memória, biografia e uma extensa e dedicada elaboração literária. O registro memorialístico de sua obra, inacabada e em seis volumes sucessivos, de 1972 a 1983: Baú dos Ossos(1), Balão Cativo(2), Chão de Ferro(3), Beira-Mar(4), Galo das Trevas(5) e O Círio Perfeito(6), dá conta tanto do plano da vida familiar quanto da vida pública, sabendo juntá-los com mestria numa leve e profunda prosa. Nava se dizia um menino moreno tímido olhando e vendo tudo, guardando tudo em seu “arquivo” da memória: “O que escrevo é resultado de elaboração e de notas, é um trabalho cavucado, meditado.”2 O impacto causado pela publi- cação de suas memórias, a partir do primeiro volume Baú de Ossos, fez despertar um grande interesse nos leitores, pela peculiaridade da obra – de um “gênero” marginal que é o memorialístico, e em ensaístas e críticos literários como, Davi Arrigucci Jr3 . e Antonio Candido4 . 1.1 Nava - o homem-leitor de si-mesmo Mais uma vez prova-se que “a vida é maior que a teoria”, como disse Bakhtin, pois só depois de publicada uma obra como a de Pedro Nava é que se desperta um ‘rebuliço’ em estudiosos. Principalmente em se tratando de um autor brasileiro, já que “memórias” sempre caíram no gosto de leitores contumazes, independentes do que críticos falaram. O próprio Nava era um desses leitores, notabilizou-se pela medicina e por ser um homem de letras, só passou a escrever aos 65 anos, mostrando sua reflexão de um “velho Tirésias”, que não professava o futuro e sim o passado. Pretérito como um veio de um rio ‘corredeiro’ formador de sua vida biográfica. Em Baú de Ossos(1978), volume que traça um painel de seu tempo de infância e de seus antepassados, na parte inicial, notamos logo de entrada, menção a obras literárias, na passagem em que fala de seu pri- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 247 O rio e o curso da memória em PPedro edro Na va Nava 248 mo Mário Alves da Cunha Horta: “Era de arrepiar, ouvir o Mário descrever as cerimônias iniciáticas daquele Oriente... Nada, absolutamente nada se comparava aos horrores por que ele tinha passado. Pura brincadeira o que Tolstói descrevia na Guerra e Paz. Pilhéria, água com açúcar, o que Alexandre Dumas traçava no José Bálsamo.” (1978, p. 16) Ler sempre foi um pedra de toque para Nava, ele confessa no mesmo Baú de Ossos, quando descreve o quarto de umas tias, Marout e Bibi: “Mas o mais importante desse quarto de minhas tias é que nele, além dessa marca médica, eu tive outra. Ali se me desabrochou o amor que nunca me deixou. O amor dos livros, o amor da leitura” (1978). Nesse mesmo volume, relata o primeiro contato com os livros: Os livros que eu conheci, quando menino e que restavam em nossa casa de Juiz de Fora, eram o Dicionário de Faria, em cujas vielas eu e meu primo Meton de Franca Alencar Neto passeamos, buscando palavras de má companhia; uma edição de luxo de La Gerusalemme Liberata de Torquato Tasso, hoje posse dos herdeiros de minha tia Berta Paletta; e os dois volumes, à tranches dorées, do romance de Eugène Sue, Mathilde; atualmente em minhas mãos. (1978, p. 136) É Benjamim quem reitera esse amor pelos livros quando dizia o seguinte, que o prazer que sentia quando se via rodeado por livros e dicionários, fora do âmbito do seus deveres escolares: descontextualizados, os livros se libertariam da obrigação de serem úteis, e podiam converter-se em puro objetos de Eros5 . 6 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE MEMÓRIA Quando indagado a respeito da preferência por memórias, e não por romances, Pedro Nava em entrevista, a última antes de sua morte, concedida à estudiosa Edina Regina Pugas Panichi7 , nos diz: Quando senti que estava entrando nesse caminho de ficar só, analisando bem, pensei: o que é que vou fazer quando ficar velho, se estiver com a cabeça funcionando direito? Pensei em coisas de que gosto: ser mercador de livros raros e velhos. Que colecionei durante muito tempo de minha vida; ser mercador de gravuras, também tenho milhares delas. Pensei em tudo isso, mas depois resolvi, retomar a minha tradição de mocidade. Eu tinha cultivado, a literatura quando moço. E resolvi fazer uma literatura de velho, que não tinha idéia Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Car los Alber to de Ne greiro Carlos Alberto Negreiro de expandir. Escrevia como distração, para meus irmãos, coisas que eles não sabiam, mas eu sabia, sobre minha família. Escrevi meu primeiro livro e resolvi mostrar os originais a algumas pessoas que viviam insistindo comigo para escrever memórias, por causa de um artigo que fiz sobre Belo Horizonte, por ocasião do cinqüentenário de Carlos Drummond de Andrade. (Panichi, 2000, p. 46) Se observarmos como é vasta e ampla a abordagem do conceito de memória, veremos que ele será pautado por diversas áreas do conhecimento humano, desde a biologia, passando pela psicologia e psiquiatria até as ciências sociais. No entanto, o que nos interessa é a representação literária da memória, ou seja, aquilo que é confiado a Lete8 , o rio homônimo com seu curso caudaloso. A memória, consideremos aqui, como um rio, tal qual a imagem célebre de Heráclito “No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos”(fragmento 49a). A memória é um cúmulo de fatos passados em que nunca se entra duas vezes nesse mesmo rio. A corredeira seria caudalosa na maioria das vezes. Essa lembrança de fatos passados adicionada à própria visão de mundo que o sujeito/autor, no caso aqui o Pedro Nava, tem do meio em que viveu e de todas as experiências que foram possíveis ser resgatadas. Esse movimento retrospectivo, da volta ao passado através das lembranças se erigirá a por meio da construção da narrativa que constitui suas Memórias. Mas, vejamos como Le Goff observa a memória e sua importância para o sujeito/homem, A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. (Le Goff, 1996, p. 476) Com isso não podemos inferir que o conjunto que se cerca de lembranças, de uma determinada existência vá se constituir num cadinho com o máximo grau de pureza, e por ventura, sendo assim absolutamente creditadas como verdade. As memórias serão constituídas a partir das relações intersubjetivas, em que serão permeadas de valores e preconceitos, formando assim determinadas ideologias: “A memória coletiva, assim, longe da espontaneidade que muitos lhe atri- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 249 O rio e o curso da memória em PPedro edro Na va Nava 250 buem, seria mediatizada por ideologias, linguagens, senso comum e instituições, ou seja: seria uma memória dividida.” (Ferreira, p. XIX, 1998). Em contraponto, temos o próprio Nava dizendo, em seu Baú de Ossos: “um fato deixa entrever uma vida: uma palavra, um caráter. Mas que constância prodigiosa é preciso para semelhante recriação. E que experiência...” (1978, p. 41). As memórias de Nava não são mero produto social, mas sim um longo arquivo de experiências coletadas pelas reminiscências e interpretadas pelo Nava-escritor; “No mais, há que ter confiança no instinto profundo de minha alma, de minha carne, do meu coração – que rejeitam como coisa estranha o que sentem que não é verdade ou que não pode ser verdade...” (1978, p.41). Até aqui o que temos são pontos de vista em torno do conceito de memória provindo das ciências sociais. O que nos interessa apenas é balizar um conceito que fale da relação social, para que daqui possamos prosseguir com a representação da memória dentro do contexto da criação literária, que é o que Pedro Nava faz, ele não se interessa em construir memórias sob um prisma da memória social e sim das impressões em forma de lingua- gem marcadamente poética de fatos e histórias que formaram sua família, e que compõem o seu arquivo9 como sujeito. Com a mão paciente vamos compondo o puzzle de uma paisagem que é impossível completar porque as peças que faltam deixam buracos nos céus, hiatos nas águas rombos nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se abrem no vácuo – como vitrais fraturados (onde no burel de uma santo vemos – lá fora! – céus profundos, árvores ramalhando ao vento, aviões, nuvens e aves fugindo), como aqueles recortes que suprimem os limites do real e do irreal nas telas oníricas de Salvador Dali. (1978, p. 41) Podemos notar que o autor se mostra consciente de seu trabalho de reconstrução e elaboração para laborear as lembranças que fizeram a sua experiência de vida, é como se o sujeito fosse seu próprio (re)construtor, aquele que padece do “mal do arquivo”. Ou seja, aquele que é possuído pelo mal do arquivo, tem a paixão e a nostalgia da origem, o desejo infinito da memória e do esquecimento, existindo para tanto um conjunto operatório de resgate textual e existencial com direção ao futuro, como diz Eneida Maria de Souza (1998, p. 81)10 . Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Car los Alber to de Ne greiro Carlos Alberto Negreiro 3 O RIO E RUÍNA DA MEMÓRIA Sou um homem do interior Do interior de mim mesmo. Alessandre de Lia – in: Tigrescritura Em Baú de Ossos, Nava inicia esse volume com a seguinte epígrafe; “Eu sou um pobre homem da Póvoa de Varzim...”, de Eça de Queiroz. Para logo em seguida, no primeiro parágrafo parodiá-la; “Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas Gerais.” (p. 13). Um começo que ilustra sobre o que o autor se apóia – o respaldo do trato literário a representar fatos da vida. E essa memória é como um rio, caudaloso, de longo curso, sem um fim preciso, pois é característica marcante das memórias, o inacabamento. A memória é vizinha do esquecimento. Como podemos ver na mitologia, Lete representa o esquecimento. Assim, os poetas o mencionavam como sendo ir mã da Morte e do Sono. Num mesmo lugar podemos ter a busca das recordações na fonte Mnemósina, e do lado a fonte Lete, para nos dar o esquecimento, o apagamento da memória. Nava, então, com o Baú de Ossos, o termo baú – signo que remete ao objeto que guarda lembranças, e acrescido de “Ossos”, reitera a idéia da necessidade de resgate dos antepassados. Poderíamos dizer que Nava parece ter o “mal do arquivo”; Derrida define, “Le trouble de l’archive tien à un mal d’archive. À écouter l‘idiome français, et en lui l’attribut ‘en mal de’, être en mal d’achive peut signifier autre chose que souffrir d’un mal, d’trouble ou de ce que lê nom ‘mal’ pourrait nommer.”11 (Derrida, 1995). O autor se debruça em construir suas “memórias” em relatar fatos reais e biográficos com a liberdade própria da criação literária, ou seja, mais preocupado em representá-los sob um significativo trabalho de elaboração e manipulação da linguagem, do que com o compromisso de ser apenas fidedigno aos fatos do passado. Embora, sabemos que no trabalho de elaboração contou com uma forte aparato documental e de relatos de outras pessoas. Ele sabia que “é impossível restaurar o passado em estado de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o corrompa com lembranças sobrepostas” 12 . A respeito do processo de construção do texto, Nava confessa: Eu sempre faço uma súmula do que vou escrever. Tomo nota, seguidamente, quando me ocorre uma Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 251 O rio e o curso da memória em PPedro edro Na va Nava lembrança interessante, um fato curioso ou quando vejo uma combinação de duas palavras em jornais ou livros. As páginas do meu caderno de anotações acabam virando uma fichinha que vou guardando, cada uma com um número. (...) O que escrevo é resultado de elaboração e de notas, é um trabalho cavucado, meditado. (Panichi, 2000, p. 49) 252 No mesmo Baú, quando fala a respeito do trabalho de reconstrução das lembranças para construir as “memórias”, a experiência em procurar registrar através de um longo trabalho literário, temos: “a mesma do arqueólogo que da curva de um pedaço de jarro conclui de sua forma restante, de sua altura, de suas asas, que ele vai reconstruir em gesso para nele encastoar o pedaço de louça que o completa e nele se completa.” (1978, p. 41). Não é registro literal de lembranças, mas a reconstituição das memórias do passado a partir do presente, um filtro que conta muito com experiência de leitor autor. A feitura das memórias exige do construtor delas uma íntima relação entre autor/narrador, já que não se trata de um registro de compromisso de retratação hiper-realista dos eventos narrados/lembrados: Na verdade, o objeto profundo da autobiografia é o nome próprio, o trabalho sobre ele e sobre a assinatura, fundamento do que Philippe Leujene chama de “pacto autobiográfico”, isto é, afirmação da identidade autor-narrador-personagem, remetendo em última instância ao nome do autor na capa do livro. A pessoa que enuncia o discurso deve, no caso, permitir sua identificação no interior mesmo desse discurso deve, e é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa.” (Miranda,1992, p. 29) É o que diz o estudioso Wander Melo Miranda, em seu trabalho sobre Graciliano Ramos e Silviano Santiago13 , quando reforça a questão da autobiografia, proposta por Leujene, não se apresenta como uma relação estreita estabelecida entre os eventos extratextuais e sua transcrição “verídica”. A autobiografia é sempre uma auto-interpretação daquele que escreve, e o que intermedia a relação entre o que se escreve e o seu passado é clivado pelo estilo, este será o índice do que está sendo escrito e a vazão ou pulsão daquilo que é confessado, aspecto que faz deslizar para a livre invenção e a licença poética, ou seja, para um trabalho de elaboração ficcional. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Car los Alber to de Ne greiro Carlos Alberto Negreiro Para Bergson, a memória é uma atividade unificadora para a relação entre as ações descontínuas do eu superficial e a dinâmica de perpétua mudança do eu profundo, ele chega a dizer que “a duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente”14 . Não preciso recriar o sobrado de Joaquim Feijó de Melo porque este eu conheci. Basta recordar. Nele entrei pela primeira vez, em 1905, com pouco mais de dois anos, quando fui ao Ceará para me batizar. Não tenho dessa viagem senão a vaga recordação da forma de uma escotilha – redonda e duramente luminosa, feito lâmpada cialítica – e, do lado de fora, alguma coisa oscilando como ponteiro dum metrônomo, ponta de madeira e pano, decerto mastro de falua encostada em navio atracado. (Nava, 1978, p. 43). Bergson esclarece ainda que há dois tipos de memória15 , a memória-hábito e a memória-recordação. A primeira seria aquela que repete e torna presente o efeito prático de experiências passadas. A segunda, a mémoire souvenir, reproduz o passado enquanto passado, revivendo-o tal qual aconteceu. O primeiro tipo “registra, sob forma de imagens-lembranças, to- dos os acontecimentos de nossa vida cotidiana, à medida que eles se desenrolam”, sem deixar que algum detalhe escape, fazendo “a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data”16 . Para Bergson, essa seria a memória verdadeira, pois recupera o passado sem intenção utilitária, no entanto, ele adverte que para evocar o passado através dessa memória, sob a forma de imagens, é necessário se abstrair do presente, “é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar”17 . Sendo assim, Nava consegue criar um universo ficcional e onírico para um “arquivo” de memórias que foram (re)construídas por sua escrita, tornando possível ao leitor uma filiação a um certo acordo, o de que não duvide ou acredite piamente no que está lendo por mais paradoxal que seja. O trabalho de linguagem de Nava é literário, no entanto seu manancial de memórias se baseia em um forte aparato documental e resgate de fontes e de seu próprio trabalho de colher informações a respeito de história sua e de sua família. A escrita naveana remete a um construto impressionista pintado por um tom onírico, um universo criado a partir da íntima relação entre a pena, o papel e as reminiscências passadas das vidas (re)criadas por essa consciência de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 253 O rio e o curso da memória em PPedro edro Na va Nava escritor/autor. Permitindo que o sujeito-a-ser-biografado, não se deixe levar pelo melindre da representação da figuração heróica do passado. É o passado (re)cons- NO NOTTAS 2 254 Cf. Entrevista Pedro Nava: O resgate da memória. Por Edina Regina Panichi. In: LEITURA: publicação cultural da Impressa Oficial do Estado São Paulo. Ano 18, n. 1, jan. 2000. p. 45-50. 3 ARRIGUCCI, David. Móbile da memória. In: ______. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 4 CANDIDO, Antonio. Poesia e ficção na autobiografia. In: ______. Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. 5 Apud: Rouanet, Sérgio P. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamim. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 30. (Biblioteca Tempo Universitário; 63) 6 Para essas considerações consultamos o trabalho Por Trás Do Tempo Perdido: A Teia De Sociabilidade Da Comunidade De Mangabeira-RN e a Mudança Cultural. Natal/RN: UFRN, 2000. (inédito – mimeo), do prof. John Alex Xavier de Sousa (FACEX – RN), que aqui agradecemos pela gentileza por nos ter cedido esse material. 7 Cf. Revista LEITURA: publicação cultural da Imprenssa Oficial do Estado de São Paulo, ano 18, n.1, jan. 2000. p. 45-50. 8 Lete, o esquecimento, era filha de Éris, a Discórdia e, segundo uma tradição, mãe de Cárites. Presidia a fonte do Esquecimento, isto é, o Rio Letes, situado nos Infernos, onde iam os mortos beber para obter o esquecimento das coisas do mundo. Perto do oráculo de Trofônio, na Beócia, havia duas fontes de que os fiéis bebiam; Lete, a fonte do Esquecimento, e Mnemósina, a fonte da truído pela e para a escrita, com todas as concessões possíveis para a licença poética, a confissão, e a descrição de um passado histórico caro à História do país. memória. 9 Arquivo aqui considerado como um reservatório e baú de textos, tesouros pessoais e culturais que o tempo transforma em bonecos, em cadáveres, personagens, casas vazias e lugares vicários. Cf. SOUZA, Eneida Maria de. Males do arquivo. In: MARQUES, Reinaldo; BITTENCOURT, Gilda Neves (Orgs.). Limiares críticos: ensaios de literatura comparada. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 81. 10 Idem; op. cit, p. 81. 11 Cf. DERRIDA, Jacques. Mal d’archive. Paris: Galilée, 1995. Apud SOUZA, Eneida Maria de. Males do arquivo. In: MARQUES, Reinaldo; BITTENCOURT, Gilda Neves (Orgs.). Limiares críticos: ensaios de literatura comparada. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 81 12 Apud DEL RIOS, Jefferson. O baú perfeito da memória. In: Revista BRAVO!. Ano 2, n. 20, maio 1999. p. 81. 13 Cf. MIRANDA,Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: EdUSP; Belo Horizonte: EdUFMG, 1992. p. 2930. 14 Cf. BERGSON, H. Os pensadores. Tradução Franklim Leopoldo e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p XII. 15 Cf. BERGSON, H. Os pensadores. Tradução Franklim Leopoldo e Silva.São Paulo: Abril Cultural, 1979. p XII. 16 Idem; Op.cit; 1979. p.XIII. 17 Ibidem. p. XIII. 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The novel may be seen as about the dissolution and transference of identity. Death is the last way of dissolution, for both characters who see it as the only way to their physical merging. RESUMO Um importante aspecto do romance O Morro dos Ventos Uivantes (1847) de Emily Bronte é a relação de identidade entre Catherine e Heathcliff. O romance pode ser visto como a dissolução e a transferência de identidade. A morte é a última saída para a dissolução para ambos os personagens que vêem nela a única possibilidade de uma fusão física. O Morro dos Ventos Uivantes também apresenta a superação do sentimento de exclusão através da união dos dois personagens,cujas personalidades são extremamente similares. KEY-WORDS Wuthering Heights; identity; death. PALAVRAS-CHAVE O Morro dos Ventos Uivantes; identidade; morte. 258 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias Wuthering Heights (1847), the only novel by Emily Bronte is told from the point of view of Lockwood, a gentleman visiting the moors of Yorkshire where the novel is set, and by Nelly Dean, one of the employees of the Earnshaw family. The Earnshaws are surprised by a foundling boy, Heathcliff, who is brought to Wuthering Heights – the farm where the family lives - by the patriarch to live as one of of his children, Catherine and Hindley. Heathcliff later on falls in love by Catherine, who returns the affection, but marries her neighbor Edgar Linton, the embodiement of a luxurious life that she would never have with her beloved, the misfit Heathcliff. Later, Heathcliff hastens Catherine’s death because of his incessant accusations of betrayal; weakened also by her pregnancy, she dies giving birth to a girl. The novel is divided in four parts. The first one is marked by the arrival of Heathcliff and it ends with both Catherine and Heathcliff ’s visit to Thrushcross Grange, the Linton’s neighboring farm. This part reveals the stablishing of the strong relationship between the two children, and also their common rebelion against Catherine’s older brother, Hindley, and his way of ruling Wuthering Heigths after the death of their father. The second part tells of Catherine’s betrayal of Heathcliff, by marrying Edgar Linton, her rich neighbor from Thruscross Grange, and Catherine’s death. The third part is about Heathcliff ’s revenge against the Linton and Earshaw families, and the last part shows the change that comes over Heathcliff and his death. Both Catherine and Heathcliff are born again when they become friends as children, and their identification is so strong that creates a new origin that replaces parental origins. As Kettle (1970) states, they rebel against degradation, ...and in their revolt they discover their deep and passionate need of each other. He the outcast slummy, turns to the lively, spirited, fearless girl who alone offers him human understanding and comradeship. And she, born into the world of Wuthering Heights, senses that to achieve a full humanity, to be true to herself as a human being, she must associate herself totally with him in his rebellion against the tyranny of the Earshaws and all that tyranny involves (p. 205-6). When Catherine, a teenager meets the Lintons, a social conflict starts. Thrushcross Grange, the Linton’s farm, embodies everything Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 259 Wuthering heights: The conflicts of the soul 260 that is pretty, confortable, bourgeois and this universe constrasting with the decadence of her family seduces her. She starts to despise Heathcliff ’s lack of culture, the fact that he has no interesting conversation, besides not brushing his hair and being dirty, whereas Edgar Linton is handsome and rich. In one of her conversations with Nelly Dean, Catherine says that Edgar Linton asked her to marry him. After giving vague excuses for having accepted it, she explains that the only obstacle for her complete happiness is that she cannot marry the man that she really loves, as it is stated in the novel: It would degrade me to marry Heathcliff now; so he shaw never know how I love him: and that not because he is handsome, Nelly, but because he’s more myself than I am. Whatever our souls are made of, his and mine are the same; and Linton is different as the moonbean from lightning, or frost from fire... Nelly, I am Heathcliff (WH, p. 80-81). One major aspect in Emily Brontë’s Wuthering Heights is the exchange of identity between Catherine and Heathcliff. The novel presents the overcoming of otherness as a relationship between the two main characters whose personalities are extremely matched. The novel may be seen as about the dissolution and transference of identity, especially if one consider the exchange of identity between the two main characters. Catherine says “I am Heathcliff,” and he calls her “my soul’ and “my life.” Later on, he will cry when she is dying: “I cannot live without my life, I cannot live without my soul.” Their sense of affinity seems to be deeper than sexual attraction, something that is not enough to describe as romantic love. To better understand this is important to know that their affinity is forged in rebellion. When Heathcliff is taken from the Liverpool slums by Catherine’s father is treated kindly by the family, except by Catherine’s older brother, Hindley, who after his father’s death reduces Heathcliff to the status of a serf, and deprived him of the instructions. Then he becomes the archetypal of the outsider, and it is in Catherine that he finds humanity. After getting shocked by Catherine’s words about being degrading to marry him, Heathcliff runs away desesperately, but returns adult and prosperous, and once again the social conflict is reestablished, for her husband does not want to receive him – a serf - Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias in their house. From the moment of his return on, Catherine’s attempts to reconcile herself to Thurshcross Grange are doomed. One admires and reads the novel for the great and self-consuming love of Heathcliff and Catherine. Their love is “sexless,” in fact intercourse is not even implied, and could never happen, because they are one, eventhough Heathcliff is the embodiement of primitive sexual energy. In many scenes involving the two main characters which dramatizes a dispute of some sort over entrance through a door or window, Heathcliff always is associated with images that suggest a sexual conquest. He is indeed the opposite of Edgar Linton, Catherine’s husband, whose masculinity is always cast doubts. In the eleventh chapter, for example, when Edgar Linton is told that Heathcliff intends to marry his sister Isabella – not because he loves her, but to inflict suffering over the family he hates and to revenge Catherine for having married Edgar Linton - Edgar Linton determines three of his servants to wait to throw him out of the house after Heathcliff talks to Catherine. When he orders Heathcliff to leave, the latter answers: “Cathy, this lamb of yours threatens like a bull!!” (WH, p. 107). This is a tense moment in the novel; Catherine closes the door, asks Edgar Linton to apologize and throws the key into the fire, which throughout the novel is associated with Heathcliff and Catherine, in opposition to her husband. “Mr. Edgar was taken with a nervous trembling” (WH, p. 108). Edgar Linton seems to grasp that in some way that is a defeat of his sexual inferiority to Heathcliff and Catherine. Catherine makes use of irony to inflict her husband: “Oh! Heavens! In old days this would win you knighthood!... We are vanquished!(WH, p. 108). Catherine’s reaction to the event has sexual overtones, the narrator says that “Mrs. Linton, very much excited,” (WH, p. 109) goes upstairs and spends days in sickness and in a terrible growing process of depression. When Edgar Linton visits her, she says: “I don’t want you, Edgar; I’m past wanting you (WH, p. 118). According to Moser (1970), ... sexual frustration clearly contributes to her collapse after Edgar’s failure...Edgar is useless, she tells him, and his masculine attentions are no longer wanted. Heathcliff must come through that window to satisfy Cathy” (p. 187). Catherine in her dellirium Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 261 Wuthering heights: The conflicts of the soul 262 thought she was back at Wuthering Heights with Heathcliff and as a child, but she wakes up and sees herself, as Mrs. Linton, “...an exile, and outcast, thenceforth, from what had been my world” as it is said in the novel. She opens the window, “and bent out, careless of the frosty air that cut about her shoulders as keen as a knife” (WH, p. 116). She seems to intend a suicidal illness. Two months later, Heathcliff returns after having married Edgar Linton’s sister, Isabella. He gets to know that Catherine is dying, and manages to see her. They embrace tumutuously; this is another very tense moment in the narrative, specially because Catherine is pregnant. This is also, one of the harshest passages in all literature. “I wish I could hold you,” she continued bitterly, “till we were both dead!...I care nothing for your sufferings” (WH, p. 142). Catherine associates her reunion with Heathcliff in death with regression to childhood, as she says in her dellirium: “...Heathcliff, if I dare you now, will you venture? If you do, I’ll keep you. I’ll not lie there by myself; they may bury me twelve feet deep, and throw the church down over me, but I won’t rest till you are with me. I never will” (WH, p. 117). Catherine makes real death in the present into a return to her childhood games, and when she makes death a game, she metaphorically accomplishes the return to childhood that she seeks. In their last meeting, the two characters do not exchange a word of hope, but both seem to perceive that are already dead, Catherine will soon be literally, while Heathcliff will live separetly from his soul, as he says: Why did you betray your own heart, Cathy?...You have killed yourself... You loved me-then what right had you to leave me?...I have not broken your heart-you have broken it, and in breaking it, you have broken mine... Do I want to live?...Would you like to live with your soul in the grave? (WH, p. 144). Catherine collapses not because of the power of Heathcliff ’s love, but from despair at the sound of her husband’s approaching and never regains consciousness. She dies in childbirth. Both Catherine and Heathcliff seem to believe that a physical union or reunion between themselves could be possible only after death, since they have made choices that caused their separation in terms of physical love. The two characters’ belief gives the idea of a merging of identity through the Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias disssolution of the physical body. As Homman (1980) states: Death’s project is the reuniting, not of parts of the self...but of two individuals. Heathcliff is eager for death so that he and Cathy may “be lost in one repose.” Loss of self, the dispersal of identity, leades to the merging and reunion of identities (p. 129) Death is the last way of dissolution, specially for Heathcliff who wants the physical merging of his corpse with Catherine. His plan is to be buried so close to her, that nobody would identify which corpse belongs to whom if one day their tomb was opened. What makes Cahterine and Heathcliff ’s desire for death so intense is also that this regressive wish goes back to the second origin, which is when they are reborn on the occasion of becoming friends. After her death, Heathcliff spends the following decades devoted to revenge from all the members of the Linton family, and also his own son, Linton; Hareton, son of Catherine’s brother Hindley, and her daughter Cathy. The weapons he uses against the two families are their own weapons of arranged marriage and money. He gets power over them by the classic method of the ruling class: expropriation and property deals. In his last days, Heathcliff sees that Hareton and Cathy had fallen in love with each other, and his years devoted to revange had no sense anymore. A change in his character had started, however, he is not sure about its significance. Everything that he still wants is to die in order to meet Catherine. The narrator says that after his death, many people saw both him and Catherine running together in the fields. Both seem to have finally achieved their own goal. 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Coordenadora do Centro Cultural Anglo-Brasileiro. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Relações de gênero em As vinhas da ira de Steinbeck Gender relations in Steinbeck’s The grapes of wrath 266 RESUMO O romance As vinhas da ira de Steinbeck, retrata o período da grande depressão econômica dos anos trinta nos Estados Unidos. É nesse universo caótico que a família Joad terá que rever seus conceitos patriarcais para dar lugar a significativas mudanças nas relações de gênero que estão em mutação, sobretudo porque a figura paterna perde para a matriarca o status de líder. ABSTRACT Steinbeck’s novel The grapes of wrath portrays the great depression years of the Thirties in the United States of America. It is in this chaotic universe that the Joad family will rethink their patriarchal concepts in order to face important changes in gender relations in mutation, specially because the father figure looses its status of leadership to the matriarch. PALAVRAS-CHAVE Steinbeck; As vinhas da ira; relações de gênero. KEY-WORDS Steinbeck; The grapes of wrath; gender relations. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias Steinbeck (1902-68) é um autor considerado misógino por vários motivos, dentre eles o foco masculino da sua ficção, entretanto, ele criou algumas das mais memoráveis personagens femininas da literatura Americana, Ma Joad, a matriarca do seu romance As vinhas da ira (1939). É para ela que o autor entrega o controle da família em um período onde a depressão econômica afetava o status e a condição da figura do provedor. As vinhas da ira retrata um dos períodos mais chocantes da história dos Estados Unidos: a grande depressão que teve uma forte influência sobre Steinbeck que estava preocupado em documentar a vida diária das pessoas através da sua ficção e carreira. O romance conta a história da migração da família Joad de Oklahoma para a Califórnia. É um êxodo irônico, sobretudo porque as expectativas dos Joads são frustradas na Califórnia. Eles saem do lar perdido em Oklahoma para a vida de sem teto na Califórnia, do individualismo para a consciência coletiva, do egoísmo para o amor para com o próximo, do “eu” para o “nós”, como está expresso no capítulo quatorze. Um dos personagens mais importantes do romance não é na realidade membro da família Joad, o ex-pregador da região, Casy. É ele quem vai influenciar na educação social dos Joads, timidamente nas relações de gênero, e mais efetivamente nas relações com pessoas de fora da família. Quando os Joads estão se preparando para sua viagem em direção à California, cada membro da família tem uma tarefa específica; Casy se junta a eles e decide ajudar a matriarca da familia, Ma Joad, a salgar o porco que é o alimento que eles terão para comer ao longo da viagem: Deixe-que eu salgue esta carne falou. - Eu sei fazer isso. E a senhora tem outras ocupações. Ela lançou um olhar singular ao pregador, como se este tivesse sugerido algo extraordinário. - Não, isso é trabalho de mulher – disse, afinal. - É trabalho – replicou o pregador. – temos muito que fazer para estar fazendo diferença entre trabalho de homem e de mulher (VI, p. 110). Esse diálogo pode não parecer de grande relevância a principio, contudo, levando-se em conta ser este um romance cujo autor é considerado misógino, já seria impactante um personagem com uma visão moderna das relações de gênero ainda no início do século XX. A própria Ma Joad, parece chocada com a proposta de Casy. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 267 Relações de gênero em As vinhas da ira de Steinbeck 268 Isso porque os Joads tem todo um ritual patriarcal seguido à risca pela família. O diálogo de Casy com Ma Joad expõe o sistema patriarcal que dita as relações de gênero e que vem impondo opressão e exploração sobre as mulheres. A história da submissão das mulheres é baseada no sistema de sexo/gênero, isto é, um sistema culturalmente produzido onde há hierarquia marcada pelo poder masculino, e Ma Joad se ajustou a ele. De fato, ela era culturalmente obrigada a tal ajuste. Casy é o único homem no romance que vê a divisão de trabalho diferente dos demais, e ele é capaz de quebrar regras assim como ela o fará após muito esforço para sobreviver. A atitude de Casy revela o que a crítica sobre sexo/gênero tenta descortinar, ou seja, a crença que o papel da mulher é, sobretudo biológico e limitado a esfera privada, com atividades tais como cozinhar e amamentar, em contraste com o papel masculino. Contudo, Kate Millet no seu livro Sexual Politics (1970), já defendia que há distinção entre “sexo” e “gênero” e que o primeiro é determinado biologicamente, enquanto que o segundo, culturalmente, sendo um conceito psicológico. Casy, enquanto homem, parece entender isso, ao contrário da personagem feminina, Ma Joad. De acordo com Beauvoir no seu livro O Segundo Sexo lançado em 1949, o papel biológico da mulher é uma construção cultural, uma vez que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher. As principais personagens femininas de Steinbeck neste romance, com será visto adiante, de fato não transcendem essa crença essencialista, mas esboçam uma reação importante que é a luta pela liberdade de expressão e a manutenção da família. Desde as primeiras páginas do romance, o leitor percebe a importância de Ma Joad; o narrador a descreve como sendo a cidadela da família. E é isso que ela se torna ao longo da jornada. A família é apresentada como sendo governada pelo patriarca, o velho Tom Joad, porém o nível de tradição patriarcal era tão grande que o pai dele detinha o titulo honorário de chefe por ser o homem mais velho da família, mesmo estando impossibilitado de governar a si próprio. Quando os Joads vão decidir se Casy pode ir ou não com eles para a Califórnia, os homens se reúnem em um círculo do qual as mulheres não podem participar, ficando à margem dele. O velho patriarca Tom Joad pergunta a sua esposa se dá para levar mais um mesmo com tanta escassez de comida. Ma Joad aspirou profundamente e disse: “A Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias questão não é saber se podemos; a questão é saber se queremos - disse com firmeza. – Quanto a poder, acho que não podemos, mas quanto a querer, a gente querendo faz o que pode” (VI, p. 105). Após estas palavras, os homens da família parecem perceber mais claramente a importância de Ma Joad. Essa mulher que só fala com permissão do chefe da família, na realidade é uma mulher que tem uma visão extremamente humana e aglutinadora, em seu papel de mãe, mas é também uma mulher acomodada em seu papel de submissa. Esta sua fala instigando seu marido a levar o ex-pregador seria o primeiro passo para a desconstrução das relações de gênero iniciada por Casy. A transformação de Ma Joad de uma mulher totalmente acomodada aos padrões patriarcais para a líder da família acontece de modo gradativo. A inversão gradual do papel de liderança parece ser consolidada quando a família Joad pára na estrada e conhece um casal chamado Wilson e Sairy. Esses também são retirantes miseráveis, mas dividem sua tenda com os Joads cuja avó está à morte. O caminhão dos Wilsons quebra e o jovem Tom Joad, o filho mais velho e também o mais querido de Ma Joad, sugere que a fa- mília prossiga enquanto ele e Casy ficariam para fazer o conserto. A idéia é aceita pelo patriarca, entretanto pela primeira vez, Ma Joad se revolta e expressa seu descontentamento, ela: “Pegou no macaco [do carro] e ficou a brandí-lo levemente. – Não vou – repetiu. Só saio daqui arrastada. – E brandiu o macaco” (VI, p. 178). E para surpresa de todos, ameaça seu marido que estava indignado com sua revolta: “Vem pra tu ver... experimenta me bater...vou esperar até que tu feche os olhos e aí te racho a cabeça!” (VI, p. 178). Ma Joad neste momento desafia seu marido e coloca em risco a si mesma pelo que mais significava para ela, a manutenção da família. Neste momento, todos acompanhavam o desenrolar: “Olhavam Pai, esperando a sua explosão de cólera. Olhavam-lhe as mãos frouxas, a espera de que elas se erguessem em fúria. E Pai não se encolerizava...E num instante,o grupo sabia que Mãe tinha vencido (VI, p. 178). O antigo líder, o velho Tom Joad torna-se submisso - embora a contra-gosto - aos desejos de sua esposa que acaba assumindo o controle da família, uma vez que o seu lugar de líder se torna vazio diante da apatia que o assola quando se vê incapaz de preencher seu papel de provedor. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 269 Relações de gênero em As vinhas da ira de Steinbeck A partir deste momento, Ma Joad passa a decidir inclusive para que cidade a família deve ir; isso ocorre não porque ela quer a liderança da família, mas porque seu marido cai na obscuridade, sendo incapaz de tomar decisões, tamanho é o seu estado de choque diante de sua própria incapacidade. Entretanto, ele se sente humilhado com a crescente liderança de sua mulher. O velho Tom Joad realça uma ameaça que é logo contra-atacada por sua esposa: 270 Parece que as coisas ‘tão mudando – disse [ele] sarcástico. – Me lembro do tempo que era o homem que dizia o que se devia fazer. Parece que agora e a mulher que faz isso. Acho que ‘tá bem na hora de eu arrumar um pau. Vai, vai buscar um pau. – disse [Ma Joad]. No dia em que a gente tiver um lugar pra morar, pode ser que tu possa usar esse pau sem que eu reaja. Mas agora tu não faz coisa nenhuma, não trabalha e nem sequer pensa. Quando tu ‘tiver fazendo tudo isso... Aí tu pode meter o pau e tua mulher fica fungando... Mas não agora... Eu também posso arrumar um pau pra desancar em você (VI, p. 378). As palavras de Ma Joad expressam que quando o homem é o pro- vedor e protetor, ele tem o poder, mas quando ele se identifica com a perspectiva da fraqueza e não mostra suas características associadas ao masculino, por exemplo, ele adquire características atribuídas ao feminino, tais como, fragilidade e impotência. Quando Ma Joad desafia seu marido, ela diz que ambos estão no mesmo nível. De certo modo ela reproduz o discurso patriarcal de que a mulher é inferior ao homem quando ele tem sucesso e ela não. Ma Joad afirma que será submissa quando o homem for de fato o provedor. Mas em tempos difíceis como o que estão vivendo, existe igualdade, e neste momento uma atitude diferente por parte dela, enquanto mulher, é necessária. A grande depressão e a chegada da industrialização estavam balançado as relações de gênero na família; as antigas regras não serviam mais, uma vez que não havia mais lugar para a hierarquia familiar. O velho Tom Joad reclama, mas faz a escolha de seguir sua mulher pelo bem da família. A figura paterna perde seu poder no momento em que o velho Tom Joad sucumbe ao poder feminino. Não lhe resta mais fonte de força: seu pedaço de terra se foi, o que restou da família vive em tendas sujas, não há comida nem trabalho, e ele perdera seu poder de liderança. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias A fonte de poder de Ma Joad, entretanto, é o seu desejo de manter a família unida e junta. Sua sabedoria refletia não apenas a mudança que ocorreu em seu interior, mas em uma sociedade que estava, como ainda está, em processo de reconhecimento da capacidade da mulher de desempenhar tarefas antes consideradas próprias para o homem. Uma outra mulher no romance a sofrer as implicações das relações de gênero em mutação nesse novo universo de ponta cabeça é a filha mais velha de Ma Joad, Rose of Sharon, cujo marido a abandona em plena gravidez, uma vez que, enquanto grávida, seu “sex-appeal” se perde gradativamente. Na realidade, o fator mais decisivo que faz Connie abandonar sua esposa e o bebê é o fato de Rose of Sharon ser totalmente dependente dele, ao contrário de Ma Joad. Rose of Sharon não imagina a si própria agindo; seus sonhos são passivos, ela apenas se vê recebendo. Seu senso de conquista está ligado a figura do seu marido. É através dele que ela espera superar suas próprias limitações. Beauvoir (1980) diz que o homem é uma espécie de elo entre a mulher e o universo, de fato, Connie é este elo para sua mulher, sobretudo porque ele é quem deve trabalhar, prover, lutar, agir e dar a Rose of Sharon o seu sentido de existência. Mas, Connie a deixa também por não ser capaz de dar vida ao mundo idealizado que ela havia construído para ambos. Em um mundo industrializado, apesar de viver à margem dele, Connie rejeita uma esposa que não tem nada material para lhe oferecer, especialmente porque ele representa o ideal de modernidade negativa no romance. De modo que para atingir seus objetivos que são abandonar a agricultura, estudar rádio e conseguir um emprego numa grande empresa e ter sucesso financeiro, Connie tem que destruir sua família, rompendo todos os laços com um passado de atraso e miséria. Antes de Connie ir embora, Rose of Sharon parece ser intuitivamente preparada por sua mãe para enfrentar as tragédias da vida. Ma Joad, em um diálogo tocante, dá o seu único par de brincos para a filha, apesar de Rose of Sharon não ter orelhas furadas. Eles funcionam como um símbolo do papel de mãe que ela devera assumir um dia, ou como a entrega de um bastão entre líderes. Gladstein (1986) diz que Rose os Sharon deve suportar a dor de ser furada. Simbolicamente, ela deve sofrer para provar a si mesma de que está pronta para assumir algum dia a responsabilidade e a posição de sua mãe. Ma Joad ensina a sua filha sobre o curso da vida, prepa- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 271 Relações de gênero em As vinhas da ira de Steinbeck 272 rando-a para a alegria, solidão, terror e até para a dor que faz parte da continuação da vida. Rose of Sharon muda após essa espécie de rito de passagem; passa a se preocupar com o resto da família e consegue um emprego como coletora de frutas, porém seu esforço é tão grande que ela perde o bebê. Neste ponto da narrativa, a família Joad está em condições mais miseráveis do que quando iniciou sua jornada em busca de emprego na Califórnia. Até seu único bem material, um velho caminhão, fica preso na chuva torrencial que cai na noite em que Rose of Sharon perde o bebê. Para se proteger, a família vai para um galpão onde está um homem à beira da morte de tanta fome e seu filho pequeno. É neste momento que Rose of Sharon decide amamentar o homem, um desconhecido. “O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça...[Rose of Sharon] desfez-se do cobertor, deixando os seios desnudos. – Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si” (VI, p. 489). Rose of Sharon parece ter aprendido a lição que sua mãe ensinou e que pretendia prepará-la para se tornar capaz de dar continuidade ao papel de mãe. Ela parece fi- nalmente estar pronta para algum dia suceder sua mãe como matriarca, pois se torna a encarnação da mãe universal que alimenta sua família universal, não só aqueles com quem tem laços de sangue. As vinhas da ira é uma obra aberta, mas Ma Joad e Rose of Sharon têm sua história completa nessa última cena. Essas mulheres que não tinham permissão de participar das reuniões de decisão da família, não tinham voz ativa, esperavam que os homens falassem primeiro antes de expressarem qualquer coisa; além disso, sendo uma velha e a outra grávida, não tinham acesso à cabine do caminhão – lugar considerado de honra pelos homens – têm seu valor reconhecido pelos membros da família. Em um universo caótico, a relação destas duas mulheres com o masculino muda e vice-versa, e até certo ponto, suas relações consigo mesmas. Em As vinhas da ira, essa mudança não parece ocorrer apenas pelo fato de que os homens da família Joad mudaram muito sua visão em relação ao seu comportamento no tratamento para com as mulheres de sua família – com exceção de Casy. Homens e mulheres aceitam as mudanças pelo bem da família, uma vez que não têm outra saída. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Daise Lilian FFonseca onseca Dias REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Trad. 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Interessam-nos os mecanismos pelos quais a romanceira reinventa literariamente a sua experiência pessoal e qual a relação desses com os textos poéticos orais que ela canta. Os textos orais por ela produzidos tornam imprecisas as fronteiras entre o que se pode considerar textos orais “literários” e os “não-literários”. Pretende-se mostrar como literatura e a história de vida se entrelaçam em discursos que marcam uma identidade cultural. ABSTRACT This article aims to discuss the relation between the oral literature - known as “romance”, practiced by the singer D. Maria José from São Gonçalo do Amarante/RN and the personal reports of her life.The interesting point is the way the singer recreates her personal experiences and the relation with oral texts that the sings. The oral texts produced by her have made innacurate the borders between what can be considered “literary” oral texts and the “non-literary” ones. This article intendes to show how literature and personal history interact in discourse that shape a cultural identity. PALAVRAS-CHAVE Literatura oral; cultura popular; poesia popular. KEY WORDS Oral literature; popular culture; popular poetry. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Lílian de Oliveira Rodrigues Minha sorte o mar levou, minha sina a Lua comeu. D. Maria José Militana Salustino do Nascimento é o nome de registro da mais famosa e conhecida informante da manifestação de literatura popular conhecida como romance, do Estado do Rio Grande do Norte. Nascida no município de São Gonçalo do Amarante, no povoado de Barreiros, D. Maria José, como prefere ser chamada, vive até hoje no sítio Oiteiro, razão pela qual é também conhecida como A Romanceira do Oiteiro. Por toda a aura criada em torno de sua figura, chamou-me a atenção o fato de que todas as referências feitas ao destaque da informante devem-se a ser ela um arquivo vivo, guardando em sua memória mais de quarenta romances. Ressalta-se ainda a abordagem que é feita do romance enquanto manifestação cultural, seguindo uma preocupação de estabelecer as origens, captar marcas étnicas, segmentos temáticos e determinar variações na estrutura verbal do poema que revelam o grau de fidelidade em relação à matriz do texto. Essa perspectiva de estudo da manifestação cultural e sua representante destacam um enfoque dos estudos de cultura popular que tem uma preocupação com o resgate de tradições e as relações entre nossa cultura do presente e a herança cultural de povos antigos. Nesse enfoque, a cultura popular é o elemento que modera o processo cultural através do folclore, com seus instrumentos próprios e necessários para a manutenção da ordem cultural nacional. Daí é importante o esforço permanente no sentido de preservar as tradições nacionais. O fato folclórico é definido como antigo, anônimo e persistente (Cascudo, 1984), desconsi-derando as relações sociais presentes no contexto histórico-social no qual os indivíduos estão inseridos. Podemos destacar dessa abordagem a maneira de conceber o popular como anacronismo, ligado a um passado rural, anônimo e rude (Ayala, 1987.). Antonio Gramsci em seu texto Observações sobre o folclore apresenta a noção de folclore como expressão de uma ”concepção do mundo e da vida” própria de certas camadas sociais determinadas em um tempo e espaço (Gramsci, 1968). Por essa definição, a cultura popular pode ser entendida como um conjunto de significados vivos que estão em contínuo processo de modificação existindo como um elemento indissociável da vida das pessoas que dela compartilham. Por essa ótica, D. Maria José não é so- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 277 Histórias no canto 278 mente admirável por sua memória, e os romances que canta não são somente dignos de atenção e registro por serem frutos de uma herança distante. Ambos são expressão de como esse indivíduo significa e reelabora suas práticas culturais. À sombra das mangueiras do sítio Oiteiro, em São Gonçalo do Amarante, temos a oportunidade de comprovar isso. Em visitas realizadas a São Gonçalo, encontramos D. Maria José. Aos 75 anos, apresenta-se como uma personagem típica do interior. Fumando seu cachimbo, com o rosário pendurado no pescoço, revela na sua simplicidade a mesma beleza dos textos que canta. Aprendeu os romances com seu pai, Atanásio Salustino do Nascimento, figura conhecida na comunidade por ser o criador do mais famoso grupo de fandango do município, há mais de 60 anos. Ela era sua companhia no trabalho duro no roçado e na pesca. Na lida diária com a lavoura, com a fome e com o trabalho que garantia o sustento da família, o canto e os poemas aparecem como um ingrediente mágico e colorido que ameniza o ofício. Nesse cenário percebe-se a poesia confundida com um canto de trabalho que a embalava por dentro e que só muito de- pois iria brotar, como a semente do chão. Movimentos sincronizados: o do barro que era escavado e o acumular de versos que sedimentavam os longos poemas, sem lápis nem papel, guardados nos silos da memória, como se armazena feijão, fava e milho. D. Maria traduzia o suor na forma de canto, fazendo de seu canto de trabalho um ofício poético. Segundo Ayala (1989), as histórias cantadas durante a jornada de trabalho funcionam como atividade auxiliar nas práticas comunitárias. O trabalho demorado e cansativo de plantar possibilitou o aprendizado de vários cantos. Um canto solitário e silencioso, ritmado pela melodia da enxada a bater no chão de barro. O Oiteiro é um desses “cantos”. É o tema da despedida das suas apresentações, quando entoa os seguintes versos: Lá em barreiros onde eu nasci, Em Santo Antônio onde eu me criei Eu vou mim bora pra meu sítio Oiteiro Adeus, terra (Natal), adeus. O lugar de D. Maria José, para o qual ela sempre volta, é mais do que um simples espaço físico. É o espaço simbólico no qual o indivíduo se percebe como sujeito no seu tempo e espaço, inserido em de- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Lílian de Oliveira Rodrigues terminadas dinâmicas sociais. Sua terra confunde-se com sua voz, como se esse solo fosse ele próprio uma polifonia na qual várias vozes e vários discursos se intercalam. Um canto comprometido com a terra, que é roça e semeadura, que é broto e floração. D. Maria concentrada no que fazia, tendo consciência de que outra era sua lavoura. A construção dessa teia discursiva remete à definição de folclore por nôs apresentada. Mikhail Bakhtin nos diz que o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que determinam a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio social (Bakhtin, 1999). O discurso não é a expressão da consciência. No entanto a formação desta se dá pelo conjunto dos discursos interiorizados ao longo da vida do indivíduo. O universo de D. Maria José é permeado por vozes que inter-relacionam bens culturais diversos. Os textos orais por ela produzidos tornam imprecisas as fronteiras entre o que se pode considerar textos orais “literários” e os “não-literários”. Dessa forma, literatura e história de vida se entrelaçam em discursos que marcam uma identidade cultural. Os romances e a vida de D. Maria José formam um tecido narrativo no qual pode-se identifi- car as representações que essa mulher constrói do mundo e como se formam as relações do grupo social no qual ela está inserida. Uma voz que se conta enquanto canta. É possível pensar o canto da cantadora como uma poesia que transborda dos poemas para a sua vida e que se refaz no cotidiano, na relação com sua terra, sua religiosidade, seus familiares e vizinhos. Suas palavras confundem-se com seus versos. Captamos nelas uma maneira própria de “dizer” o mundo. Para narrar sua história ela utiliza os recursos da poesia. Ao evento trágico da morte de seus filhos pequenos refere-se de maneira muito singular: a riqueza que me rendeu a vida foi família. Tive dezoito filhos, sete eu criei, onze Deus criou. A mesma poeticidade que dedica ao grave fenômeno social da mortalidade infantil que atinge as classes subalternas, D. Maria aplica à análise de sua trajetória pessoal: Nasci no dia de São José, 19 de março, dia de São José, a maré tava vazante e a lua tava minguante, tenho sorte? Minha sorte o mar levou e minha sina a lua comeu. No entanto a reflexão, profundamente irônica, não aparece como um discurso conformista, mas sim revela o grau de consciência que tem a romanceira em relação às reduzidas escolhas oferecidas às que, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 279 Histórias no canto como ela, têm uma dupla condição de submissão num universo discursivo predominantemente masculino e dominado pela classe social hegemônica. Maria José tem consciência do seu “canto”, tanto como lugar social quanto como atividade artística. Quando vai cantar desenha uma postura altiva. O polegar apoiando o queixo completa a expressão introspecta do rosto. Dessa “pose” canta seus romances de forma solene, deixando fluir a voz gutural. Criticou-me quando tentei imitar seus versos. Leva o seu canto a sé- rio. Não aceita que se cante o bendito e se dance ao mesmo tempo. Não se mistura santo com brincadeira, afirma Maria José com firmeza. É esse universo particular de cantos, lugares e histórias que se percebe na trajetória de D.Maria José. Ela nos permite olhar a cultura popular a partir da ótica de quem se representa através dela. Entender as relações sociais presentes na vida e na comunidade onde está inserida a cantadora significa construir a narrativa de vida dessa mulher pela dimensão de sua voz. 280 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Lílian de Oliveira Rodrigues REFERÊNCIAS AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil; perspectivas de análise. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios). AYALA, Maria Ignez. O conto popular: um fazer dentro da vida. In: Anais do IV Encontro Nacional da ANPOLL. São Paulo, jul. 1989. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. 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E-mail: [email protected]. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas Augusto dos anjos: The allegorical poetics of the ruins 284 RESUMO Este artigo apresenta uma leitura de alguns poemas de Augusto dos Anjos, lidos a partir do aspecto de alegoria das ruínas, analisado por Benjamin. A alegoria, assim como a ironia, cria um duplo nível de leitura, pois, ao mesmo tempo que objetiva impor um sentido interpretativo de si mesma, provoca a busca da essência subjacente à aparência. A “metafísica do horror”, inserida na poética de Augusto, denuncia, através da melancolia, a decadência humana. O eu lírico, ao assumir seu destino de ruínas, torna-se capaz de distanciar-se da realidade tal qual se lhe afigura. A sua saída é a alegoria, e é através dela que ele alcança a salvação e a transcendência. ABSTRACT This article presents a reading of some poems by Augusto dos Anjos read from the perspective of the allegory of the ruins, analysed by Benjamin. Allegory, like irony, creates a double level of reading, because from one hand it has the objective of imposing an interpretative sense of itself, it provokes a search for the essence which lies under appearance. The “metaphysical of horror” in Augusto dos Anjos’ poetics, denounces through melancholy, human decadence. When the lyrical self assumes its history of ruins, becomes able to separate itself from reality, on the same way it appears. Its scape gate is allegory, and it is through allegory that he reaches salvation and transcendence. PALAVRAS-CHAVE Alegoria; ironia; melancolia; Augusto dos Anjos. KEY-WORDS Allegory; irony; melancholy; Augusto dos Anjos. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra A palavra alegoria vem do grego allós (outro) agourein (falar) que significa “outro discurso”. Como procedimento de ornamentação a alegoria pode ser analisada na leitura do Livro II de A República, de Platão2 , sendo que a primeira definição nos é oferecida por Aristóteles na Poética.3 Mais adiante Cícero e Quintiliano retomam a discussão do vocábulo dando à alegoria um novo significado. Cícero indica no De oratore, 27,4 que a alegoria é uma transição do sentido próprio ao sentido figurado. A alegoria teria para o retórico uma função didática, uma vez que a fusão dos dois sentidos constitui um objetivo de clareza. Quintiliano, em sua Instituição Oratória III, Livro VIII,4 mostra que a alegoria, em latim inversio, apresenta um sentido contrário à significação comum das palavras, e às vezes até o oposto de sua significação habitual. Inclui em sua definição de alegoria à ironia como tropo de oposição, uma vez que a ironia estabelece contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo, isto é, ela afirma para dizer outra coisa. A redefinição de alegoria na modernidade foi elaborada por Lausberg, ao retomar as definições anteriores de Cícero e Quintiliano. Para ele, a alegoria é “a metáfora continuada como tropo de pensa- mento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento.”6 João Adolfo Hansen7 apresenta dois tipos de alegorias: “alegoria dos poetas” e “alegoria dos teólogos”. A primeira indica uma técnica metafórica de representar e personificar abstrações, ou seja, a alegoria neste caso é entendida como uma representação concreta de uma idéia abstrata. Escrever sobre essa alegoria é retomar a oposição retórica sentido próprio/sentido figurado. A alegoria seria mimética, da ordem da representação, funcionando por semelhança. O segundo tipo de alegoria, a dos teólogos, é definida como interpretação religiosa de textos sagrados, que engloba na sua caracterização um valor interpretativo ou hermenêutico. Usamos, nesse trabalho, a alegoria que funciona como processo retórico, isto é, remete a outro nível de significação; diz uma coisa para significar outra, e é caracterizada pela transposição contínua do sentido próprio no figurado. Quando se afirma algo que, na verdade, se quer negar temos uma antífrase ou ironia. No caso do uso desse mecanismo lingüístico, o sentido que se deve entender é o contrário do que está dito. Com esses mecanismos, o leitor é levado a atentar melhor Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 285 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas 286 para o que foi dito e, assim, aceitar mais facilmente o que foi comunicado. Com eles, o poeta vela significados para desvelá-los, revela sentidos para escondê-los. Dessa forma, a alegoria, assim como a ironia, cria um duplo nível de leitura, pois, ao mesmo tempo que objetiva impor um sentido interpretativo de si mesma, provoca a busca da essência subjacente à aparência. Dessa conceituação genérica da alegoria, buscamos em nossa investigação a alegoria que foi usada pelo barroco, como emblema do fragmento e da ruína. Esse procedimento alegórico repete-se em grande parte na poética de Augusto dos Anjos. Segundo Sarduy, o barroco pode ser definido não somente como um período específico da história da cultura, mas também como uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem. Nesse sentido, para o autor, “pode haver barroco em qualquer época da civilização”.8 Assim, procuramos observar na poesia de Augusto dos Anjos, a alegoria que mais se identifica com sua poética, ou seja, a que traz como emblema sua construção caótica e de ruína. Em função disto, procuramos abordar o conceito de alegoria barroca analisado por Walter Benjamin9 . Nesse tipo de alegoria, “a visão de transitoriedade das coisas e a preocupação em salvá-las para a eternidade estão entre os temas mais fortes”. 10 A alegoria se instala de modo durável onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente. A alegoria, tanto a barroca quanto a do poeta alegorista, descobre a natureza e a história segundo a ordem do tempo, fazendo da natureza uma história e transformando a história na natureza. Ruína e decadência marcam o caráter saturnino11 do século barroco e da modernidade. O século barroco mostra as ruínas de tudo o que é “corpóreo, mau, temporal”; o século XIX é o mundo plasmado das coisas, das mercadorias. Mundo do homem inteiramente reificado, sem expressão ou comunicação. Seu emblema é o da ruína, o da decomposição. Para Benjamin, “por ser muda a natureza decaída é triste. Mas a inversão dessa frase vai mais fundo na essência da alegoria; é sua tristeza que a torna muda”.12 O lamento é a mais impotente expressão da natureza e da história. O homem, o déspota arbitrário, não ouve mais. “Em todo luto”, escreve Benjamin, “existe uma tendência à mudez, que é infinitamente mais que a incapacidade ou a relutância de comunicar-se”.13 Como a alegoria é uma figura muda, também a meditação melancólica é sem som: respeita o mutismo das coisas e, com isso, o seu luto. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra Para Freud 14 , o luto, embora “normal”, conserva uma relação perversa com a melancolia; não obstante a tentativa freudiana de fazer deles conceitos distintos, ambos, segundo Benjamin, se mesclam. Se o luto se caracteriza pela capacidade de o sujeito retornar o seu interesse para o mundo externo em novos investimentos, desligando-se do objeto perdido, é esse desprendimento que, na melancolia, fracassa. Se o eu é uma espécie de “precipitado” de identificações imaginárias, com a morte do objeto o eu também deverá morrer. Isso é o que se passa com o luto: para manter o objeto amado, o sujeito o imita, finge-se de morto. Em “Luto e melancolia”, Freud considera que a dor do luto não é dor da separação, mas dor de ligação, pois o que dói não é o separarse, mas apegar-se mais do que nunca ao objeto perdido. O sujeito fica surpreso ao sentir que sua dor não é tanto por não ter mais perto de si o objeto, mas por tê-lo presente, mais presente do que nunca. Assim, constatamos que a dor não é imediatamente ligada à perda, mas ao trabalho de luto; entendemos que a palavra “luto” significa não “perda”, mas reação à perda. Freud15 indica que o luto é uma retirada do investimento afetivo da representação psíquica do objeto amado e perdido. O luto é um processo de desamor. É um trabalho lento, detalhado e doloroso, que pode durar dias, semanas e até meses. Ou ainda toda uma vida. Entretanto, o trabalho de luto consiste em que, terminada a elaboração da perda, o sujeito retorna à vida, porque finalmente pôde se reportar à morte. Para Freud, o luto é a passagem do mutismo à palavra. Walter Benjamin,16 na explanação sobre O luto na origem da alegoria, afirma que a “natureza primeva é muda, e por isso é triste; ou então é a melancolia que a torna muda, mas não por uma incapacidade ou ausência de necessidade de comunicar”. É nesse âmbito que Benjamin afirma ser a alegoria a figura característica da tragédia barroca, uma vez que, para a alegoria, o mundo das coisas tem como função significar a morte. Para Benjamin, os objetos ou sujeitos da contemplação alegórica pertencem ao domínio daquilo que é fragilizado, desprezível, miserável. Não é aleatoriamente que o paradigma mais próximo da natureza no que ela tem de mais decomposto é a caveira. Para Benjamin, do ponto de vista da morte, a vida é processo de produção do cadáver. Não somente com a perda dos membros e com as transformações que se dão no corpo que envelhece, mas com to- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 287 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas 288 dos os demais processos de eliminação e purificação, o cadáver vai se desprendendo do corpo, pedaço por pedaço.17 O barroco se configura como o reino da desilusão, do fragmento, e traz a natureza como cenário desse sofrimento do mundo. É nessa correspondência entre a natureza e o homem — natureza decaída, homem decaído — que unimos a poética de Augusto dos Anjos. Na poesia estabelece a união entre dois mundos de “ruínas” que tentam se salvar buscando a transcendência através da alegoria e da ironia. Esta seria a salvação alegórica. Tal como a alegoria, a ironia também nutre esse caráter paradoxal. O homem decaído é o homem irônico. Essa “metafísica do horror” denuncia a decadência humana. O eu lírico, ao assumir seu destino torna-se capaz de distanciar-se da realidade tal qual se lhe afigura. A sua saída é a ironia, a sua saída é a alegoria; é através delas que ele alcança a salvação e a transcendência. O homem e a natureza se constituem de queda e declínio; o homem “arrasta a natureza em sua queda”, e assim, o que era representado como um ideal de harmonia e beleza, passa a não mais existir. Disso resulta a culpa, como afirma Rouanet, do homem e da natureza. Para ele, a natureza é culpada, e bus- ca reabilitar-se através da palavra pela qual o homem a nomeia, ou da leitura pela qual o alegórico lhe atribui significações; o homem é culpado, e somente nessa leitura, que proclama a caducidade do mundo e de si mesmo, pode encontrar perdão. Na alegoria, a mortalidade e a imortalidade se condensam. 18 Nesse sentido, a alegoria produz o mesmo caráter paradoxal da ironia; para Rouanet, “a alegoria remete aos sofrimentos e mutilações da história, mas com isso salva os vencidos para a vida eterna, e por outro lado exprime a vitória dos poderosos, mas ao mesmo tempo os condena ao abismo.”19 Na versão de alegoria em Benjamin, Rouanet apresenta o mundo enquanto ruína, um mundo que desmorona, típico da ambivalência alegórica que “designa o que foi destruído pelos opressores, ao mesmo tempo que aponta para a desagregação do mundo que eles construíram com os escombros”. 20 Assim, destacaremos algumas imagens poéticas que, configurando-se em representações alegóricas com relances de ironia, vinculam-se à obra de Augusto dos anjos, permeada pela “culpa, o excesso e o desejo de construir uma nova ordem”.21 Das imagens que se apresentam no Eu e outras poesias, alguns exemplos posteriormente indicados es- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra tão relacionados com a temática da alegoria no que se refere ao tema da morte como reconstrução, ou ao nascimento de uma nova vida através da morte. No poema Vozes da morte (234), por exemplo, o eu poético dirige-se ao “Tamarindo” com intimidade, considerando como evidente e real a morte de si e da árvore. 01 02 03 04 Agora, sim! Vamos morrer, reunidos, Tamarindo de minha desventura, Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu, com o envelhecimento dos tecidos! Mas é um fim que terá um recomeço após a deterioração; é a reconstrução de uma vida futura, purificada, a partir das ruínas e dos escombros aos quais serão reduzidos. É o que está presente na estrofe seguinte: 05 06 07 08 Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura Ultrafatalidade de ossatura, A que nos acharemos reduzidos! O verso 08 aponta para uma posição irônica e alegórica, pois anuncia o sentido de negatividade e decadência configurado no termo “Vencidos“. O verso 1 se compõe de uma frase exclamativa: “Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!”. O uso de uma frase exclamativa, ca- racterizada pela ironia, acontece da seguinte forma: o sujeito não diz por admiração e exaltação, e sim para enunciar e querer dizer o seu desdém, o escárnio. Além de o termo “noite” se referir ao que é sombrio e negativo, faz com que haja ênfase nesse termo: “Esta noite é a noite dos Vencidos”, com o tom exclamativo denote um tom irônico. Quando se relaciona estes versos com os versos seguintes, nota-se uma indicação de reiteração de palavras que alude ao campo semântico do baixo, do negativo: “podridão”, “ultrafatalidade”, “ossatura”, ou seja, essa estrofe anuncia toda a atmosfera de “noite de vencidos”. O termo “Vencidos” é abstrato, não exerce uma simples função adjetiva, mas assim adquire um teor alegórico, quando transformada em termo concreto. O eu lírico usa o tom retórico 22 para conferir uma tonalidade solene a algo que tende ao declínio. O eu lírico, de um modo sardônico, zomba da própria desgraça, uma vez que ele se inclui no discurso. Esse tom irônico é acentuado pela semântica da locução adjetiva “noite dos vencidos”. Outros vocábulos que vêm a seguir, como “podridão” e “ossatura”, denotam a certeza do que irá ocorrer com o corpo humano. A “podridão” aparece como o irônico destino do Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 289 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas 290 homem. A “ossatura”, por corresponder, no processo da morte, a uma fase última e resistente da matéria corporal, possui menor poder de repulsão do que a “podridão”. Inicialmente apresenta-se a função última do corpo, representada pela “ultrafatalidade de ossatura” (v. 07). Ou seja, como o homem evolui para a finitude, o corpo em decomposição se encaminha para a caveira, traço característico da alegoria. No entanto, o que significaria um fim total da existência, passa a ter o sentido de esperança apresentada nos dois tercetos: 09 10 11 12 13 14 Não morrerão, porém, tuas sementes! E assim, para o Futuro, em diferentes Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, Na multiplicidade dos teus ramos, Pelo muito que em vida nos amamos, Depois da morte, inda teremos filhos! O eu lírico conclui no último verso do segundo terceto: “Depois da morte, inda teremos filhos!” (v. 14). Ele faz da morte a imagem gloriosa de um retorno, pois da árvore morta restarão as sementes, e da carne que se decompõe restará o adubo que as nutrirá. O poema mostra a união entre homem e natureza numa contínua e perpétua simbiose. Apesar de os dois (homem/natureza) serem reduzidos a “ossos”, o corpo que se diluiu na terra nutrirá as sementes da árvore numa tentativa de reassegurar a continuidade perdida. No sentido da alegoria barroca, isso representa a construção de uma nova ordem a partir da desconstrução da ruína, que se renova com a criação de uma nova vida. As imagens da caveira como símbolo paradigmático da alegoria e, lembrando Rouanet, “o objeto mais remoto do humano, mais próximo da natureza no que ela tem de mais decomposto”, também se faz presente em Os doentes (236). Na última estrofe da Parte IV, o eu lírico, depois de mostrar as vicissitudes pelas quais pena o ser humano: 167 Em vez de prisca tribo e indiana tropa 168 A gente deste século, espantada, 169 Vê somente a caveira abandonada 170 De uma raça esmagada pela Europa! No mesmo poema, na quarta estrofe da parte V, ele mostra a caveira de modo alegórico, reafirmando uma ambivalência: a caveira é um indício de morte e, ao mesmo tempo, transfere-se à interioridade do eu lírico que é a própria imagem da ruína e do fim. A mesma alegoria da ruína está presente na parte VIII, na estrofe 9, do referido poema: Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra 183 184 185 186 Perfurava-me o peito a áspera pua Do desânimo negro que me prostra, E quase a todos os momentos mostra Minha caveira aos bêbedos da rua. (...) 363 E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos, 364 Vendo passar com as túnicas obscuras, 365 As escaveiradíssimas figuras 386 Das negras desonradas pelos brancos; As partes V e VIII revelam alegoricamente a desilusão do homem bar roco. Na visão benjaminiana a morte é o conteúdo mais geral da alegoria barroca, e é nos versos 186 e 365 onde encontramos o efeito da alegoria, a metamorfose do vivo no morto: a “caveira” como significado do tempo que tudo destrói. No início do soneto Natureza íntima (317), a Natureza aparece introspectiva. Como personificação ela se olha a si mesma, procurando respostas para sua existência e, assim como, para a sua real função no mundo: 01 Cansada de observar-se na corrente 02 Que os acontecimentos refletia, 03 Reconcentrando-se em si mesma, um dia, 04 A Natureza olhou-se interiormente! (...) 09 E a Natureza disse com desgosto: 10 “Terei somente, porventura, rosto?! 11 “Serei apenas mera crusta espessa?! Segundo Benjamin, a natureza, por ser personificada, exala uma tristeza infinita e representa o “retorno do morto”, é a ideologia do vencedor. O espaço entre a vida culpada (tomada pela violência, ruínas, dor e morte), e a vida justa é o espaço para o que pode voltar: a morte. Ao mesmo tempo que se fala da natureza propriamente dita, abre-se o espaço para sugerir uma natureza íntima, ou seja, a natureza interior que existe em cada um de nós. Os versos denunciam uma natureza que se auto-reflete e, há também uma auto-reflexão sobre o sentido último das coisas: 12 “Pois é possível que Eu, causa do Mundo, 13 “Quanto mais em mim mesma me aprofundo, 14 “Menos interiormente me conheça?!” O objeto mudo representado pela natureza recebe uma voz. O sujeito tenta reconciliar-se com o “Mundo” fazendo a natureza falar. A Natureza parece estar de luto, envolvida pela “imortal monotonia” (v. 07) em que se revela sua total indiferença ao que acontece em sua volta. Para Benjamin, “em todo luto existe uma tendência à mudez, que é infinitamente mais que a incapacidade ou a relutância de comunicar-se”23. A natureza é triste porque é muda; nesse Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 291 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas 292 impulso de se interrogar intimamente, reflete-se o caráter de ruína como elemento alegórico e se configura em um paradoxo irônico: “quanto mais se aprofunda, menos se conhece”. Nos versos 12, 13 e 14 a interrogação e o espanto deixam em suspenso uma pergunta que é feita à própria Natureza. Outro aspecto relevante na poesia de Augusto dos Anjos é a alegoria que Benjamin atribui a alguns autores que vêem na cidade a essência de ruína. Quando escreve que o “drama barroco viu o cadáver de fora, Baudelaire o vê de dentro”, Benjamin refere-se à natureza do cenário barroco (em ruínas). Ela é aquela onde o poetaalegorista contempla como ruínas internas. A ruína exterior é sentida como ruína interior, conforme demonstra essa estrofe do poema de Augusto dos Anjos, Noite de um visionário (275): 57 A cidade exalava um podre bafio: 58 Os anúncios das casas do comércio, 59 Mais tristes que as elégias de Propércio, 60 Pareciam talvez meu epitáfio. (...) 73 Um necrófilo mau forçava as lousas 74 E eu — coetâneo do horrendo cataclismo — 75 Era puxado para aquele abismo 76 No redemoinho universal das cousas! Alguns críticos condenam as elegias de Propércio,24 pelo mau gosto por seus assuntos macabros e por algumas de suas expressões de degradação humana. A morte de Cyntia e sua volta ao mundo dos vivos é tema de várias elegias. O poeta diz que as almas dos mortos existem, não é uma fábula; o fantasma dos mortos escapa da pira (fogueira em que se queimava cadáveres) e aparece entre os vivos. Para Octavio paz, “Propércio inaugura um gênero que chegará até Baudelaire e seus descendentes: a entrevista erótica com os mortos”.25 Nesse sentido, a sensação de morte que o eu lírico apresenta se assemelha as elegias de Propércio, tristes e de lamento. O aspecto de “ruína interior” é observado poema Tristezas de um quarto minguante (300), que mostra a destruição do homem a partir do que se passa dentro de si mesmo. Ou seja, a destruição exterior reflete sua ruína interior. As imagens que projetam a fragmentação no mundo exterior refletem a instabilidade do mundo, em que o homem está inserido, são reflexos de uma degradação interior: 107- Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas! 108- Quisera ser, numa última cobiça, Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra 109- A falta esponjosa de carniça 110- Que os corvos comem sobre as jurubebas! Assim, o poeta compara a tragédia de Tebas26 com o infortúnio de suas próprias misérias. Aludindo à Tebas, o eu lírico ressalta seu caráter de arruinado, pois Tebas é um topos predestinado a maldições, que resultam em ruínas, dos homens e do lugar. Após o terror da presença da Esfinge em Tebas, uma nova desgraça dizimava o país. Fenece o alimento provindo das plantações, pois sementes e grãos não mais germinam. Os rebanhos definham no pasto e as mulheres abortam. A comunidade de Tebas, frente aos terríveis males provocados e arquitetados pelos desígnios divinos do Olimpo, duplica uma só reação de enfrentamento e súplicas. O povo clama a seus reis como se fossem deuses, e deles rogam a salvação quando calamidades o abatem. Mas para as súplicas do povo tebano não havia solução, pois seu rei, Édipo, era o causador de tal tra- gédia, por cometer parricídio e incesto materno. Dessa forma, por causa da transgressão de Édipo, a justiça divina arruina o reino e torna miserável o destino do homem. Édipo decifrou o enigma da Esfinge, mas não consegue decifrar o enigma da condição humana. O eu lírico compara a sua ruína com a de Tebas. Ele deseja ser “a falta esponjosa da carniça/ Que os corvos comem sobre as jurubebas”. Os termos “carniça” e “corvos” denotam valores negativos. A transposição expressa um recurso disfêmico.27 Uma das formas mais elementares do disfemismo irônico consiste em substituir os termos objetivos por outros que designam realidades inferiores e degradantes. Nesse sentido, o desejo do eu lírico é o resultado de uma associação depreciativa do homem à categoria do aniquilado, apodrecido. Assim, esses fragmentos nos mostram que a valorização dos elementos caóticos como fonte primária da decadência do humano é mais uma necessidade de revelar o mundo dionisíaco da poética augustiana. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 293 Augusto dos Anjos: a poética alegórica das ruínas NO NOTTAS 2 294 Também denominada de “alegoria metafísica”, em que se apresenta uma relação das idéias; modelo entre o mundo sensível e o mundo idealizado por Platão com a passagem da alegoria da caverna. Cf. MORIER, Henri. Dictionnare de Poétique et de rhétorique. Èdition revue et augmentée. 4. ed. Paris: Press Universitaires de France, 1989, p. 73. 3 Aristóteles. Poética. Tradução, prefácio e notas de Eudoro de Sousa. Brasília: Imprensa Nacional, Casa da Moeda / Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1986. 4 HANSEN. Alegoria. São Paulo: Atual, 1986, p. 01. 5 HANSEN, 1986. p. 01. 6 HANSEN, 1986. p. 01. 7 HANSEN, 1986. p. 01. 8 SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega, 1988. p. 97. 9 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. 10 BENJAMIN. O luto na origem da alegoria. op., cit. p. 246. 11 SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: São Paulo: L&PM, 1986. 12 BENJAMIN. O luto na origem da alegoria. op., cit. p. 247. 13 BENJAMIN. Op. cit, 247. 14 FREUD, S. Luto e melancolia. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIV. 15 FREUD, S. Luto e melancolia. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIV. 16 BENJAMIN, 1986. p. 247 17 BENJAMIN. O cadáver como emblema, 1986. op. cit. p . 241. 18 ROUANET, Sérgio Paulo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro, 1990. p. 19. 19 ROUANET, 1990. p. 28 20 ROUANET, 1990. p. 27 21 VIANA, Chico. A alegoria em Augusto dos Anjos. In: A sombra e a quimera. João Pessoa: Idéia, 2000. p. 27. 22 PAIVA, Maria Helena de Novais. “Tom retórico”. In: Contribuição para uma estilística da ironia. Lisboa: Gulbenkian, 1961, p. 37. 23 BENJAMIN. O luto na origem da alegoria. op. cit,. p. 247. 24 Propércio - poeta latino, nascido em Assis; amigo de Ovídio. O acontecimento principal de sua vida, seu amor por Cynthia (pseudônimo de uma senhora da sociedade romana casada), fornece assunto à maioria de suas 92 elegias, que permitem reconstituir o romance de um amor violento — misto de ciúmes, brigas, acesso de furor e de ternura, rompimentos e reconciliações — entre dois parceiros igualmente sensuais. Algumas elegias do IV e último livro versam sobre a História de Roma. Cf. Maria Helena da Cruz Silva e Anice Brito L. de Oliveira. Vocabulário poético do “Eu”. João Pessoa: Academia Paraibana de Letras, 1986, p. 90. 25 PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Sciliano, 1993, p. 61. 26 Em Os sete contra Tebas, de Ésquilo, 745748, diz-se apenas que “por três vezes, em Pito, seu santuário profético, centro do mundo, Apolo revelara a Laio que ele deveria morrer sem filhos, se quisesse salvar a cidade (Tebas)”. O oráculo pítico prevê a morte de Laio e a luta dos filhos de Édipo pelo reino de Tebas. Em Édipo Rei há dois oráculos: um em que Jocasta narra ao filho e esposo como um “falso oráculo” predissera a Laio que ele seria assassinado pelo próprio filho; e outro em que Édipo diz a Jocasta que o mesmo Febo Apolo lhe vaticinara que ele desposaria a mãe e mataria o pai. Como se observa, a distância entre as duas predições da Pítia é de cerca de vinte e um anos, porquanto a primeira foi feita a Laio, após o nascimento do filho, e a segunda diretamente a Édipo, pouco antes de matar o pai e casar-se com a mãe, tornando-se rei de Tebas. Cf. In: BRANDÃO, 1998. Vol III, p. 241 – 242. 27 PAIVA, Maria Helena de Novais. “Do humano para o infra-humano”. In: Contribuição para uma estilística da ironia. Lisboa: Gulbenkian, 1961, p. 99. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Rosilda Alves Bezerra REFERÊNCIAS ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. BEZERRA, Rosilda Alves. Augusto dos Anjos: a ironia infausta. João Pessoa, UFPB, 2003. 260 f. (Tese de Doutorado em Literatura Brasileira). BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Rio de Janeiro: Vozes, v. 3, 1998. CRUZ SILVA, Maria Helena da; OLIVEIRA, Anice Brito L. de. Vocabulário poético do “Eu”. João Pessoa: Academia Paraibana de Letras, 1986. FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 1976. HANSEN, João Adolfo. Alegoria. São Paulo: Atual, 1986. MAN, Paul de. Alegorias da leitura: linguagem figurativa em Rosseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Rio de Janeiro: Imago, 1996. PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Sciliano, 1993. PAIVA, Maria Helena de Novais. “Tom retórico”. In: Contribuição para uma estilística da ironia. Lisboa: Gulbenkian, 1961, p. 37. ROUANET, Sérgio Paulo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: São Paulo: L&PM, 1986. SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega, 1988. p. 97. VIANA, Chico. “A alegoria em Augusto dos Anjos”. In: A sombra e a quimera. João Pessoa: Idéia, 2000. p. 27. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 295 296 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Literatura Da crônica à poesia: Uma leitura das crônicas de Myriam Coeli 297 Diva Sueli S. Tavares1 1 Graduada em Letras (UFRN). Mestre em Literatura Comparada (UFRN). Doutoranda em Educação (UFRN). Professora de língua portuguesa na FACEX e na Faculdade Câmara Cascudo. Professora visitante no curso de Letras e Pedagogia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Atualmente, integra a base de pesquisa “Ensino de Literatura”, no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Linguagem e Comunicação da UFRN. Rua Olavo Montenegro, Q18, C14, bl A, conjunto Village dos Mares, Capim Macio. Natal–RN. 59.078-330. [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Da crônica à poesia: Uma Leitura das crônicas de Myriam Coeli From chronicle to poetry: A reading of Myriam Coeli’s chronicles 298 RESUMO Myriam Coeli, poetisa e jornalista, além dos diversos livros que publicou, teve uma coluna diária nos principais jornais de Natal. Será com base em suas crônicas jornalísticas que faremos uma análise do gênero, numa tentativa de delimitar, ou mesmo de enquadrar esse gênero tão complexo nos textos produzidos por esta escritora. Pretendo, para essa análise, fazer um recorte dessa produção cronista para, e a partir dele, refletir acerca dos principais temas por ela abordados, como também acerca de seu peculiar estilo que consegue transformar um texto narrativo e jornalístico, em prosa poética. Assim sendo, o gênero crônica, com seus pressupostos teóricos, seus traços básicos e sua tipologia, será fio condutor da discussão. ABSTRACT Myriam Coeli was a poet and a journalist. Besides the several number of books she published, she had daily columns in the main newspapers of Natal. It will be based on her journalist chronicles that an analysis of this genre will be made, as an attempt to delimitate, or at least to frame this so complex genre, in her production. It is intended through this analysis to highlight her production as a chronicler in order to expose the main themes dealt by her, and also her unique style that was able to make poetry out of a narrative and a journalist text. Thus, the genre called chronicle and its theoretical aspects will be a major in this analysis. PALAVRAS-CHAVE Myriam Coeli; crônica; poesia. KEY WORDS Myriam Coeli; chronicle; poetry. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Diva Sueli SS.. TTaavares A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma existência literária mais duradoura. (Fernando Sabino) As redações dos jornais serviram como lugar de iniciação para vários escritores, homens e mulheres. E foi, principalmente, através das crônicas veiculadas pelos jornais que muitos escritores e cronistas se lançaram na vida literária, tornando-se conhecidos e conquistando público próprio. São muito conhecidas as crônicas de José de Alencar, publicadas no Correio Mercantil (a seção “ao Correr da pena”), as de Machado de Assis, para a revista O Espelho e para o jornal Gazeta de Notícias, ambos no Rio de Janeiro. Mais próximo de nosso tempo temos Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga. Este último entra para a história literária exclusivamente, como cronista. A origem da palavra crônica é grega vem de Crono (tempo). Na mitologia clássica, o deus Cronos, filho de Urano (o céu) e de Gaia (a terra), destronou o pai e se casou com a irmã Réia. Urano e Gaia predisseram que ele seria, por sua vez, destronado por um dos seus filhos. Para evitar a profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos que nasciam da sua união com Réia. Grávida, mais uma vez, Réia enganou o marido, dando-lhe uma pedra em vez da criança, e assim, a profecia se realizou. Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado. Zeus com seus irmãos liderou uma guerra contra o pai, derrotando-o. Cronos é a personificação do tempo. Por esse motivo, uma das características definidoras da crônica é a contemporaneidade. A lenda de Cronos pode ser lida como uma alegoria: a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole tudo o que é criado e tudo o que é criatura. No sentido primeiro, a crônica era um registro do passado e dos fatos na ordem em que sucederam, em uma nova acepção enfoca fatos apreendidos no dia-a-dia. Nas duas acepções o termo converge para o mesmo sentido, registrar o passado ou flagrar o presente, a crônica estará sempre resgatando o tempo. A crônica pode assumir diversas facetas, a depender do tema por ela desenvolvido. Assim, pode-se falar da cônica mundana (trata de fatos ou acontecimentos característicos de uma sociedade); filosófica (reflexão a partir de um fato ou evento); humorística (visão irônica ou cômica dos fatos apresentados); jornalística Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 299 Da crônica à poesia: Uma Leitura das crônicas de Myriam Coeli 300 (apresentação periódica de aspectos particulares de notícias ou fatos; pode também se policial, esportiva política, etc); e lírica (expressão de um estado de espírito do cronista). A crônica nasce do folhetim. Houve quem dissesse que traçar a crônica do folhetim poderia ser um pouco fazer o folhetim da crônica2 , pois a crônica surge nos rodapés dos jornais, local, tradicionalmente, destinado aos folhetins e variedades. No século XIX, havia duas espécies de folhetim: o folhetim-romance se constituía de textos de ficção escritos em capítulos e publicados em jornais. Deste folhetim se originou grandes romances como O Guarani, de José de Alencar, Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, entre outros. Do folhetim-variedade originou o que atualmente chamamos de crônica que, pelo seu estilo diverso, variável e leve, é de grande aceitação popular. Aos poucos, a crônica vai se firmando como gênero literário, principalmente a partir do Romantismo, quando é considerado gênero “menor”. Ainda que ganhando uma maior liberdade estética, conceitualmente, a crônica permanece um gênero bastante híbrido, isto é, ele se encontra a um meio termo entre a literatura e o jornalismo. É um texto jornalístico, visto que se insere num jornal, é despretensioso e tem vida curta. É literário na medida em que se ocupa de assuntos literários, apresenta linguagem metafórica, alegorias, repetições, antíteses, metonímias, eufemismos, ironias, diminutivos afetivos e aumentativos depreciativos. E essa indefinição permanece até hoje. Vários pesquisadores já apresentaram propostas para uma tipologia da crônica, que são sempre postas em xeque pelo dinamismo vivo dos textos e dos cronistas. A crônica, enquanto texto jornalístico, se caracteriza pela forma leve e pessoal. Trata de fatos do dia-a-dia ou idéias da atualidade, contendo teor artístico, político, esportivo, ou ser simplesmente um texto comentário, relativo à vida cotidiana. Sendo filha do jornal e nele inserida, a crônica se caracteriza pela efemeridade, como já foi citado, é um texto que não tem pretensão de durar. Como o jornal, ela é lida num dia e, no seguinte, jogada fora, servindo, muitas vezes, de papel de embrulho. Entretanto, algumas crônicas ultrapassaram a acusação de ser um mero desdobramento marginal ou periférico do fazer poético, voltaram-se para o próprio fazer poético. Assim, a estrutura do gênero crônica é ambígua, tomando as mais variadas formas. Pode se asseme- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Diva Sueli SS.. TTaavares lhar a um conto, a um poema em prosa, a um pequeno ensaio ou as três coisas juntas, mostrando que os gêneros literários não se excluem, pelo contrário, misturam-se uns aos outros. Tal procedimento permite a um jornalista ser poeta, como é o caso de Myriam Coeli cujos textos escritos para jornais transcendem o universo jornalístico e, penetrando no literário, suas crônicas enveredam pelos caminhos da poesia, como podemos perceber na crônica, Poesia. É madrugada. Levanto-me da mesa de trabalho e olho a rua. Há em toda parte uma calma e uma beleza repousantes. Lembro-me de Bilac. A poesia, entretanto, não está apenas nas estrelas. Flui em toda parte. A própria cidade que contemplo vive seu momento poético, entregue ao sono e ao silêncio. Penso fazer esta crônica. Falar no amigo que descreve em carta a natureza de sua terra, mais bonita nesta estação quando as tulipas florescem, e vivem em uma luminosa e aprazível baia equatoriana aproveitando a paisagem e o exílio para escrever um livro. Retorno à máquina e tento mais uma vez esta crônica. Sinto, porém, que hoje terei apenas essa angústia de beleza, essa emoção fortíssima que a poesia, jorrando de suas fontes misteriosas, me oferece num momento transitório quando não me é possível comunicar com os 3 homens. Myriam Coeli escritora, poetisa e jornalista foi a primeira mulher no Rio Grande do Norte a trabalhar profissionalmente em um jornal. Tornou-se conhecida pela notoriedade de seus trabalhos, e hoje é consagrada entre os grandes expoentes de nossa literatura. Seu pioneirismo não se limita apenas em ser a primeira mulher a trabalhar como jornalista, mas, também por ter sido a primeira jornalista a dar plantão noturno na redação, espaço jornalístico que era até então, reduto masculino. Trabalhou em todos os jornais da cidade como o Diário de Natal (1952-1954), Tribuna do Norte (1955-1956) e A República (1956-1958). Predomina nos textos desta escritora/jornalista/poetisa o estilo poema-crônica em prosa, uma vez que apresentam o conteúdo lírico, o extravasamento da alma ante o espetáculo da vida, das paisagens ou episódios para ela significativos. Myriam Coeli, ao escrever, não consegue exilar-se de si mesma e desenvolve em seu texto o mais puro lirismo, de comovida reflexão, através de sutil observação e análises de vivências e estados da alma. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 301 Da crônica à poesia: Uma Leitura das crônicas de Myriam Coeli 302 Sinfonia da Manhã caracteriza bem o gênero circunstancial peculiar da crônica. Neste texto, a jornalista descreve o amanhecer da cidade. É o início de um dia qualquer. “A voz de um galo quebra os cristais da madrugada”, a partir daí, ela começa uma descrição minuciosa da situação que irá configurar a cena apresentada. É o acordar dos habitantes da cidade: os homens passam para o trabalho, vendedores de munguzá e de tapioca anunciam seus produtos, verdureiros desfilam cestas coloridas de tomates, pimentões, alfaces e cenouras; garrafeiros desfilam vidros coloridos e latas. São os barulhos do amanhecer. Tal descrição é o desejo de materializar o movimento dos grupos humanos e seus múltiplos comportamentos. Embora os elementos descritivos pertençam ao mundo exterior, eles são profundamente líricos, pois transcendem o puro inventário dos seres e das coisas para residir na emoção, no sentimento e na meditação das vozes íntimas da escritora, como se percebe na crônica que se segue: A voz de um galo quebra os cristais da madrugada. O céu se ruboriza, retalhos de sombra fogem desordenado daqui e dali e, em breve, a manhã surge na graça do tempo, banhada de sol tépido. Em minha rua homens passam para o trabalho. Humildes e alegres, engrenagens de fábricas, almas de construções, vão se incorporar às sua funções. Seguem-se os pregões. Em Natal ainda há dessas gostosas vozes enchendo a manhã nascente de uma réscia poesia. Vendedores de cuscuz, de munguzá, de tapióca. Verdureiros desfilam cestos coloridos onde os tomates se amontoam entre os verdes pimentões e as laranjas, e as espirituais folhas de alface contrastam com as robustas cenouras. Os garrafeiros desfilam um mundo de vidros coloridos e latas que brilham incididas pelo sol, tudo misturado, criando uma nova melodia entre tilins e tilins e a voz grossa do pregão servindo de solista. O dia vai se enchendo de vozes. Natal se anima com as bênçãos de luz desse verão. E eu penso que os homens humildes e alegres que passaram por minha rua, a estas horas compõem a harmonia do progresso enquanto em seus corações algum sonho deve sobreviver para sustentá-los em suas canseiras e afazeres, como um vidro 4 capitoso que alegra e comunica . Em Novo Rico, a escritora discorre sobre a vida de um determinado indivíduo, o novo rico. Ela começa Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Diva Sueli SS.. TTaavares com a constatação “Eis um homem feliz”, e continua descrevendo os detalhes que caracteriza o novo rico: “tem amigos”, “bebe e se diverte”, “fala de seus amigos, do automóvel, de seus cães, do quanto custou a ornamentação da casa, das plantas exóticas, dos peixinhos do aquário, o jarro de Sévres e da pintura de Di Cavalcante.” Para este homem era preciso mostrar aos amigos o quanto era importante e tinha bom gosto. Tudo isso é dito de forma irônica, como podemos perceber nas expressões: “Seu nome se empanava entre as personalidades ilustres da terra”; “seu nome brilha nas colunas sociais”; “Nosso herói vive nas nuvens protegido pelo anjo benfazejo da fortuna.” No último parágrafo, a escritora faz uma reflexão sobre o conflito interior deste indivíduo, questionando a relação do homem no espaço público, e privado. Vejamos a crônica: Eis um homem feliz. Tem seus amigos. Bebe e se diverte com eles. Nesse doce convívio pode falar entusiasticamente de seu automóvel, de seus cães, de seus “hobbies”. Não esquece quanto lhe custou a ornamentação da casa, as plantas exóticas do jardim, os peixinhos do aquário. E aquele jarro de Sèvres e aquela pintura de Di Cavalcante? Para que os amigos com- preendam que é um sujeito de bom gosto e que não tem pena de gastar com objetos de valor. Menciona os preços dessas preciosidades com a mesma displicência que a de um balconista no fim do dia de Trabalho. É um homem feliz. O seu nome se empanava entre as personalidades ilustre da terra. Em qualquer festa é solicitado, é adulado. O seu nome brilha nas crônicas sociais, que se encarregam de trazer até nós, pobres mortais, a sua vida em família, como exemplo de educação e de bom gosto. O nosso herói vive nas nuvens, protegido pelo anjo benfazejo da fortuna. Porém quando está sozinho, passada a euforia de um dia de vitória quando teve a oportunidade de gastar com amigos solícitos, o que restará nesse cérebro que já não pensa, além de uma apatia que naturalmente deve trazer uma glória fácil? e o súbito temor de não 5 parecer ridículo aos seus amigos? Um traço comum aos cronistas é escrever sobre o exercício da escrita, o que, atualmente, chama se metalinguagem. Alguns escritores quando se sentiam sem assunto ou tema sobre os quais discorrer, falavam da própria crônica, discutindo suas propostas, finalidades, seus assuntos e até mesmo a falta de as- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 303 Da crônica à poesia: Uma Leitura das crônicas de Myriam Coeli sunto. Vinícius de Morais na crônica “O exercício da crônica” discorre sobre esse tema quando afirma: Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como fazem os cronistas....Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica “não baixa”. O cronista levanta-se, sentase, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de ins6 piração – e nada. 304 Motivo, de Myriam Coeli, se insere nesta temática. Nesta crônica, a autora sem assunto sobre o qual discorrer, utiliza a própria falta de assunto e desenvolve um texto mostrando sua dificuldade em encontrar inspiração. A crônica começa assim: “Procuro um motivo entre as pessoas que se movimentam na sala de redação”. Apesar deste motivo, aparentemente, não existir, ele serve de pretexto para a discussão sobre o ato de criar e da necessidade de todo cronista entregar diariamente sua crônica. Para o leitor escrever é fácil, é só passar para o papel o que se pensa e fala, no entanto, escrever é arte e depende de talento. O texto continua e a escritora descreve a jornada da redação, vê os amigos tra- balhando, as pessoas passando, o tempo se esgotando e a inspiração não chega. Então ela finaliza em busca do motivo. Procuro um motivo na tarde entre as pessoas que se movimentam na sala de redação. Ticiano escreve sua honda e Newton fala em um barco azul com listras vermelhas. As máquinas de escrever trabalham apressadas, ajudando os amigos a coordenar palavras. O que estarão escrevendo, que inspiração lhes sacode a alma nesse instante? Têm as suas comunicações com o misterioso mundo das idéias e é maravilhoso sentirmos o fenômeno explodindo nas frases, surpreendendo realidades metafísicas. A emoção domina os amigos nesse momento. Estão cheios de notícias, fabulosamente ricas. O motivo, entretanto não chega. Impaciento-me e procuro na janela. A vida se oferece lá fora, contagiante. As pessoas caminham e os passos levam-nos para a grande afirmação e para a triste realidade da morte. O vento que está soprando é forte e deve inchar as velas das jangadas no remanso do rio. A tarde está envelhecendo. Encontro-me cansada e sem motivo para escrever uma crônica. Sei que existem alegrias e belezas pelo mundo e que as pessoas trazem Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Diva Sueli SS.. TTaavares notícias importantes para o mundo. Em meu cansaço não há sequer uma idéia definitiva que chegue a comover essa frágil humanidade. Procuro, entretanto, alguma coisa para dizer nessa tarde cinzenta. Penso no meu priminho morto e uma solidão absoluta me afasta de todos os possíveis 7 motivos. As crônicas de Myriam Coeli parecem uma poesia vinda do mais íntimo do seu ser. Ás vezes romântica, sonhadora; outras vezes tristes e objetiva, muito sofrida e envolvida em denso mistério. Alguns de seus textos apresentam uma melancolia, sugerindo um eu sofrido e marcado por uma profunda espiritualidade que termina por transcendê-la como pessoa. Parecenos que esse tema quase que comum nos seus textos serve de leitmotiv para seus trabalhos. A melancolia não se apresenta só em relação a si mesma, mas também, numa reflexão social em que, a escritora preocupada com os problemas da sociedade, conduz-nos a uma busca consciente da realidade absoluta em que vivemos. A leitura das crônicas de Coeli nos revela, portanto, o quanto da poetisa domina a jornalista, pois mesmo quando a escritora pretende fazer um texto para jornal, – uma crônica, melhor dizendo –, termina por falar de suas emoções e impressões do dia-a-dia, tudo isto dito de forma lírica. Para concluir, façamos a leitura da crônica intitulada Brindes Para exemplificar o que foi dito. BRINDES Setembro se apresenta e está gritando nessa tarde. Em nossa alma há tristezas de dias escuros, há murmúrios de noite e o rosto se submerge silencioso no mistério. Sentimo-nos perdidos no tempo, com a nossa humilde inutilidade, sofridas pela certeza da morte. Entretanto setembro se oferece alegremente. Há cantos de pássaros e ventos fortes nessa tarde azul. Há vozes de crianças e os amigos nos saúdam eufóricos. Setembro é uma canção. Dispamos a nossa tristeza e brindemos o mês dos pomos dourados e das grandes ventanias e mais o entusiasmo desses adolescentes que desde a manhã marcham pela cidade ao compasso dos tambores e das cornetas. Brindemos as flores que se agitam nessa tarde e essas vidas heróicas que conhecemos, as que desconhecemos, profundamente e até as que nos presenteia o rio e o mar, a amarga cidade de nossa rotina. Porém, apesar de tudo, como suave milagre a “ternura floresce como um Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 305 Da crônica à poesia: Uma Leitura das crônicas de Myriam Coeli fruto escuro de um beijo amargo, quando a tarde quente chamega sobre vossas torres, abarcando compridos e sinuosos becos. Brindemos os poetas Newton, Otoniel, Sanderson e todo os iniciados na beleza que elevam os seus cânticos acima do silêncio para a pureza dos anjos e para a definitiva mensagem aos homens. Saudemos o poeta Rilke. Sim, o poeta que sentiu profundamente a fuga do tempo e a triste incomunicabilidade humana com as coisas que lhe rodeiam. Saudemos nessa tarde de desafio azul, especialmente os seus versos: 306 “Sem amor, sem lar. Sem nenhum lugar para viver. Todas as coisas a que me entrego se tornam ricas e me anulam.” Brindemos esse setembro que nos adianta para o mistério. Saudemos contritamente nesse mês a nossa velhice que se aproxima e faz de nosso rosto uma flor emurchecida.... Brindes. Jornal A República. Natal, 04 de setembro de 1956. NO NOTTAS 2 MEYER, Marlyse. Voláteis e versáteis, de variedades e folhetins se fez a crônica. Boletim bibliográfica. Biblioteca Mário de Andrade, v. 46, n. 1/ 4, p. 17–41. 1985. 3 POESIA, Crônica selecionada do Jornal A República. Natal - 17/07/1956. 4 SINFONIA DA MANHÃ. Crônica publicada no jornal A República - 28/11/1957. 5 NOVO RICO, Crônica publicada no jornal A República. Natal – 09/08/1957. 6 MORAIS, Vinícius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1962. p. 9-11. 7 MOTIVOS. Crônica publicada no Jornal A República. Natal – 06/09/1956. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Diva Sueli SS.. TTaavares REFERÊNCIAS BENDER, Flora Christina, LAURITO, Ilka Brunhilde. Crônica: História, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993. CÂNDIDO, Antônio. “A vida ao rés-do-chão”. In: Para gostar de ler crônicas. ANDRADE, Carlos Drummond et al. (Org.) São Paulo: Ática, 1979. p. 4-13. COELI Myriam. Crônicas selecionadas do jornal “A República”. A República, Natal, jul./ 1956 - nov./1957. GUIMARÃES, Ruth, Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1995. 116 p. MARTINS, Luís. “Sobre a Crônica” In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 11 jun. 1978. Suplemento Cultura, p. [ ? ] MEYER, Marlyse. “Voláteis e versáteis, de variedades e folhetins se fez a crônica”. In: Boletim bibliográfico. Biblioteca Mário de Andrade, v. 46, n. 1/4, p. 17-41. 1985. MORAIS, Vinícius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1962. p. 9-11. 307 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 308 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Química Degradação do polietileno 309 Glauber José Turolla Fernandes1 1 Químico (UFRN), Mestre em Química Analítica (USP), Doutorando em Ciência e Engenharia de Materiais (UFRN). Professor da disciplina Química Geral e Inorgânica do curso de Ciências Biológicas da FACEX. E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Degradação do polietileno Degradation of polyetylene 310 RESUMO A degradação de rejeitos de polímeros sintéticos tem sido o foco de crescente atenção, devido ao seu uso potencial como combustível e como fonte de produtos químicos. O aproveitamento de rejeitos poliméricos contribui para a solução dos problemas de poluição. O uso de catalisadores adequados pode facilitar a degradação térmica de polímeros sintéticos, a qual pode ser monitorada por métodos termoanalíticos. Este trabalho apresenta um conjunto de atividades envolvendo estudos de síntese e caracterização de catalisadores zeolíticos de estrutura faujasítica (zeólita HY e o silicoaluminofosfato SAPO-37), para serem utilizados na degradação térmica do polietileno de alta densidade (HDPE). A fim de avaliar a atividade catalítica destes materiais zeolíticos utilizou-se Termogravimetria (TG), análise térmica diferencial (DTA) e calorimetria exploratória diferencial (DSC). Os parâmetros cinéticos do processo de degradação térmica do HDPE sem e com catalisador foram calculados usandose o método integral a múltiplas razões de aquecimento de Flynn e Wall bem como o método de Vyazovkin (Model Free Kinetics). Promoveu-se também o monitoramento dos produtos formados na degradação térmica do polímero com e sem catalisador utilizandose um sistema simultâneo e acoplado TG/ DTA-GC/MS. Os resultados obtidos, mostraram que os materiais zeolíticos facilitaram o processo . ABSTRACT Degradation of waste synthetic polymers has been the focus of increased attention because of its potential use as fuel or a chemical resources. Besides, recycling of polymers from wasted products can contribute to solve pollution problems. The use of suitable catalysts can enhance the thermal degradation of synthetic polymers, which may be monitored by thermo analytical techniques. In this study, catalysts with zeolite structure (Zeolite HY and SAPO37 silicoaluminophosphate) were synthesized and characterized, in order to be screened up for the thermal degradation of high density polyethylene (HDPE). Catalytical activity was evaluated for these materials using thermo gravimetry (TG), differential thermal analysis (DTA) and differential scanning calorimetry (DSC). Kinetic parameters related to the HDPE thermal degradation process with and without catalyst were calculated employing the multiple heating rate integral method proposed by Flynn and Wall as well by using Vyazovkin (Model Free Kinetics). All the evolved products were analyzed using a TG/ DTA-GC/MS simultaneous and coupled system. The data showed a positive catalytic activity for the zeolite structure materials. PALAVRAS-CHAVE Polietileno; degradação; análise térmica. KEY-WORDS Polyethylene; degradation; thermal analysis. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Glauber José TTurolla urolla FFer er nandes ernandes 1 INTRODUÇÃO Grande parte das embalagens modernas e dos materiais possíveis de combustão encontrados em nosso cotidiano é de natureza polimérica. Por isso, tem-se verificado nos últimos anos a criação de leis e normas rigorosas para a destinação dos resíduos poliméricos, bem como o aumento significativo em pesquisas sobre novos processos de reciclagem do “lixo plástico”. O elevado consumo e a grande aplicabilidade do polietileno em diferentes campos o tornam um interessante material de estudo. Entre suas vantagens, o polietileno pode combinar baixa flexibilidade sem o uso de plastificantes, alta tensão de cisalhamento, elevada resistência à umidade e a agentes químicos, e baixa tendência à propagação de cortes (Billmeyer, 1984) Entre 1945 e 1950, cientistas começaram a ter interesse na química da degradação polimérica (Jellinek, 1995; Fettes, 1965). Esse interesse tem aumentado, continuamente, nos últimos tempos devido ao melhor conhecimento da estrutura molecular dos polímeros e pela vasta utilização e aplicação dos materiais sintéticos. Como todos os materiais orgânicos sintéticos e naturais, o polietileno se decompõe termicamente (Beltrame et al., 1989), justificando a investigação de seu processo de degradação catalítica. Especial atenção tem sido dada a degradação de resíduos de polímeros sintéticos devido ao seu uso potencial como combustível e em química fina (Kaminski, 1979; Poller, 1980). Além disso, a reciclagem do lixo plástico pode contribuir para solucionar os eventuais problemas de poluição causados por estes materiais, visto que atualmente os plásticos originários da indústria petroquímica são degradáveis apenas a longo prazo. Nem a luz e os microorganismos afetam estes materiais, cuja duração média é da ordem de meio século (Langley-Daniysz, 1990). A utilização de catalisadores adequados pode acelerar a degradação térmica dos polímeros sintéticos (Lucchesi, 1981; Audiso et al., 1984), podendo esta ser monitorada via termogravimetria (Uemichi, 1983; 1984). A degradação de polímeros em presença de catalisadores pode levar à formação de dióxido de carbono, reduzindo acentuadamente a concentração de monóxido de carbono (óxidos metálicos, por exemplo NiO) (Fernandes et al., in press) e hidrocarbonetos, predominantemente na faixa de C5-C9 (Zeólita sintética HZSM-5) (Araújo et al., in press). A utilização de catalisadores específicos na degradação de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 311 Degradação do polietileno 312 polímeros pode proporcionar a obtenção de hidrocarbonetos de interesse industrial e comercial, especificamente na faixa de combustíveis (gases leves, gasolina e óleo diesel). Zeólitas, após troca iônica, podem funcionar como adsorventes, catalisadores ou suportes, por exibirem uma apreciável área superficial e propriedades de seletividade de forma. Peneiras moleculares e, em particular, as zeólitas – são materiais que despertam o interesse tanto para pesquisa básica como tecnológica em virtude da sua vasta aplicação em muitas áreas. As zeólitas podem ser empregadas como catalisadores heterogêneos ácidos ou básicos e apresentam um notável desempenho no craqueamento catalítico e em conversões de parafinas, de olefinas e de aromáticos. Além disso, possuem a característica de seletividade de forma, não encontrada nos catalisadores amorfos. Esses materiais são também usados como suporte para metais cataliticamente ativos, gerando os assim chamados catalisadores bifuncionais, que combinam propriedades ácidas à atividade em reações de hidrogenação e desidrogenação. Este trabalho teve como objetivo geral, estudar a degradação térmica do polietileno de alta densidade na presença de materiais zeolíticos de estrutura FAU. Para isso promoveu-se a síntese hidrotérmica do SAPO-37, a modificação da zeólita NaY à HY e a subsequente caracterização destes materiais por diversos métodos físico-químicos de análise (difração de raios X, microscopia eletrônica de varredura, fluorescência de raios X, espectroscopia de absorção na região do infravermelho e análise térmica). A partir dos dados de TG e DSC, da degradação do HDPE na presença dos materiais zeolíticos, procurou-se avaliar a atuação destes materiais como catalisadores. O processo de degradação do polímero foi estudado utilizando métodos cinéticos dinâmicos integrais a múltiplas razões de aquecimento a fim de comparar os resultados obtidos por ambos os métodos (Flynn e Wall, 1969; Vyazovikin e Goriyachko, 1992). Os voláteis libertados da degradação térmica foram identificados por termogravimetria/análise térmica diferencial acopladas à cromatografia a gás/espectrometria de massa (TG/DTA-GC/MS). 2 MET ODOLOGIA METODOLOGIA O material com estrutura FAU foi sintetizado hidrotermicamente (Tapp, 1988; Borade e Clearfield, 1994), a partir de fontes inorgânicas Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Glauber José TTurolla urolla FFer er nandes ernandes de alumínio (pseudobohemita – Catapal B), de silício (Sílica gel – Riedel), e de fósforo (ácido ortofosfórico 85% - Merck) e de direcionadores orgânicos (solução aquosa de hidróxido de tetrapropilamônio - TPA 20% Aldrich e solução aquosa de tetrametilamônio - TMA 25% Riedel). A fase SAPO-37 foi obtida à temperatura de 170-200ºC, sob pressão autógena, por um período de 1-3 dias, a partir de um gel com a composição definida. A zeólita Y (estrutura FAU), produzida pela Linde Union Carbide, sob o código LZY-52, na forma sódica (Na-Y), foi submetida à troca iônica seguida de tratamento térmico para substituição do sódio por H+, uma vez que a atividade destes catalisadores, para o processo de degradação do HDPE, está relacionada com os sítios ácidos presentes em sua superfície. Neste trabalho a zeólita Y e o SAPO-37 foram caracterizados pelos seguintes métodos: Espectroscopia de Absorção na Região do Infravermelho (FT-IR); Difração de Raios-X (DRX); Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV); Análise Térmica (TG/DTG, DTA e DSC) e Fluorescência de Raios-X (FRX). O polietileno de alta densidade (HDPE), foi obtido em forma de pó, numa granulometria de 50 mesh, da Balmman do Brasil. As amostras de polietileno com os respectivos catalisadores foram preparadas na concentração de 25% (m/m) e codificadas de acordo com o tipo de catalisador usado: polietileno com zeólita HY (HDPE/HY), polietileno com silicoaluminofosfato SAPO-37 (HDPE/S37) e polietileno puro (HDPE). A degradação das amostras poliméricas foi paralelamente investigada via calorimetria exploratória diferencial (DSC), termogravimetria (TG) e análise térmica diferencial (DTA). As curvas TG/DTA foram obtidas usandose o sistema simultâneo Mettler TGA/SDTA 851, numa faixa de temperatura de 30 a 900°C, a múltiplas razões de aquecimento: 2,5; 5,0; 10,0 e 20,0°C/min, empregando-se atmosfera dinâmica de nitrogênio (N2), a 60 mL/min. A massa de amostra adotada para cada ensaio foi cerca de 10 mg. As curvas DSC foram obtidas a partir da célula DSC 50 (marca Shimadzu), na faixa de temperatura de 25 a 600°C, empregando razão de aquecimento de 10°C/min, atmosfera dinâmica de nitrogênio (50mL/min), cápsula de alumínio parcialmente fechada e massas de amostras de aproximadamente 2,0 mg. A célula DSC foi calibrada utilizando In° Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 313 Degradação do polietileno 314 (99,99% de pureza) que apresenta temperatura de fusão de 156,6ºC e DH de fusão = 28,4 J/g. O processo de degradação de polímeros é bastante complexo, pois à medida que este ocorre, a degradação passa a ser não só do polímero, mas também dos produtos formados. Para avaliação dos parâmetros cinéticos, do processo de degradação térmica das amostras de HDPE, HDPE/HY e HDPE/S37, foram adotados dois tratamentos a partir dos dados TG. O primeiro, segundo o método de Flynn (Flynn e Wall, 1969) e o segundo, de acordo com o método cinético (Model Free Kinetics) de Vyazovkin (Vyazovkin e Goriyachko, 1992). O sistema empregado na detecção e análise dos voláteis liberados na degradação térmica do polímero, corresponde ao acoplamento das técnicas termoanalíticas simultâneas TG/ DTA (modelo DTG-50H) com a cromatografia gasosa e espectrometria de massa (GC/MS modelo GC14B e QP-5000), marca Shimadzu. Este sistema permite que a análise seja realizada pelos modos DTG-MS ou DTG-GC/ MS. No primeiro modo os voláteis liberados são carreados diretamente para o detector de massa, enquanto que no segundo os voláteis vão para um “trap” de condensação antes de serem separados por uma coluna cromatográfica e detectados pelo espectrômetro de massa. No presente estudo, estabeleceuse o modo DTG-GC/MS, tendo em vista que o processo de degradação térmica libera uma mistura de voláteis relativamente complexa, sendo necessária uma separação prévia na coluna cromatográfica. Para a determinação, neste modo, as amostras de polímero sem catalisador e com os respectivos catalisadores, com massa inicial em torno de 0,8 mg, foram submetidas a um processo de degradação térmica separadamente, no sistema DTG-50 sob atmosfera inerte de He com alto grau de pureza (99,999%). Os voláteis liberados foram conduzidos por uma interface, mantida a 250ºC, e retidos em um “trap”, contendo como adsorvente o Tenax TA (60/80 mesh), envolvido por uma unidade de resfriamento contendo gelo seco para condensação dos voláteis. Ao término do processo de degradação térmica, a unidade de resfriamento foi substituída por uma de aquecimento, mantida a 300ºC, o que ocasiona o deslocamento dos voláteis retidos no “trap” para a coluna cromatográfica, por um gás de arraste de vazão contínua (He, 50 mL/min). A coluna uti- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Glauber José TTurolla urolla FFer er nandes ernandes lizada é do tipo empacotada, contendo também como adsorvente o Tenax TA (60/80 mesh), onde os compostos são separados por ordem crescente de polaridade. O cromatógrafo foi programado para que o sistema fosse mantido inicialmente a 80ºC por 2 minutos e em seguida aquecido a 20ºC/min até 300ºC e mantido nesta temperatura por 4 minutos. Após separação na coluna cromatográfica, os voláteis são conduzidos para uma fonte de impacto de elétrons de alta energia (70 eV) produzindo íons positivos e negativos. Os íons formados passam por um filtro quadrupolar e em seguida chegam ao analisador de massa, obtendose como resultado os respectivos espectros de massa. HY respectivamente. Os valores de Energia de ativação (Ea) calculados pelo método de Flynn e Wall, levando em conta a taxa de degradação na temperatura em que a massa é perdida mais rapidamente (Tmáx), são apresentados na Tabela 1. 315 Figura 1 - Micrografia eletrônica de varredura do SAPO-37 (aglomerado de cristais). 3 RESULTADOS A morfologia dos cristais sintetizados foi avaliada por microscopia eletrônica de varredura (MEV), comprovando uma simetria e estrutura cristalina típica da faujasita, apresentando cristais de geometria bipiramidal de base quadrada. As figuras 1 e 2 apresentam as micrografias eletrônicas de varredura para o SAPO-37 e para a zeólita Figura 2 - Micrografia eletrônica de varredura da zeólita Hy (aglomerado de cristais). Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Degradação do polietileno Tabela 1 - Valores de Ea e Tmáx em função da razão de aquecimento para as amostras analisadas. Amostra Razão de aquecimento (ºC/min) 2,5 T(máx) 476 5,0 10,0 487 498 20,0 2,5 510 469 HDPE + HY 5,0 10,0 479 492 20,0 2,5 502 453 HDPE + SAPO-37 5,0 10,0 468 479 20,0 494 HDPE Ea (kJ/mol) 286 278 223 316 Tabela 2 - Percentuais de intensidade relativa na obtenção dos prováveis voláteis liberados na degradação térmica das amostras de HDPE, HDPE/HY e HDPE/S37, com destaque para os principais valores em função do número de átomos de carbono. Voláteis prováveis (Cn) C1 HDPE (% Cn liberado) 6,07 HDPE/HY (% Cn liberado) 10,45 HDPE/S37 (% Cn liberado) 8,00 C2 C3 18,41 12,16 11,65 18,40 C4 C5 1,95 14,73 18,22 12,82 C6 C7 2,35 21,86 2,53 19,28 19,64 3,62 C8 C9 1,94 9,93 20,21 11,48 9,17 C 10 C 11 7,20 11,53 5,51 2,40 7,39 C 12 4,03 - 18,26 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Glauber José TTurolla urolla FFer er nandes ernandes 4 DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Foram obtidos os materiais zeolíticos: a peneira molecular SAPO-37 via método hidrotérmico e a zeólita Y modificada via troca iônica para obtenção da forma HY. Os materiais foram caracterizados por métodos físico-químicos de análise, com o intuito de avaliar a morfologia dos cristais, a composição, a cristalinidade da estrutura e as propriedades ácidas. Os dados analíticos permitiram comprovar a obtenção dos materiais com estrutura FAU e com propriedades necessárias para a utilização dos mesmos, como catalisadores para o processo de degradação térmica do HDPE. A utilização destes materiais nesse processo, foi avaliada via análise térmica; para isso foram promovidos ensaios envolvendo TG, DTA, DSC e TG/ DTA-GC/MS. A partir das técnicas termoanalíticas foi possível caracterizar as amostras de HDPE, HDPE/HY e HDPE/S37, comprovando que se tratava do polietileno de alta densidade, e promover um estudo cinético da degradação térmica utilizando dois métodos cinéticos integrais a múltiplas razões de aquecimento (Flynn e Wall, 1969; Vyazovikin e Goriyacko, 1992). Os resultados permitiram confrontar os dados relativos às amostras sem e com cada um dos catalisadores. Verificou-se que a termogravimetria mostrou-se uma eficiente ferramenta de investigação no processo de degradação térmica do HDPE. Permitiu avaliar o comportamento do polímero frente aos catalisadores, que por sua vez contribuíram para a redução da energia de ativação do processo. Os métodos cinéticos mostraram-se coerentes quanto aos valores de energia de ativação obtidos, tendo o método de Vyazovikin mostrado-se mais versátil para a análise da degradação de polímeros, pois aplica-se a reações de qualquer ordem, independente do grau de conversão. Pode-se concluir que os materiais zeolíticos empregados, atuaram como catalisadores para o processo de degradação térmica do HDPE, tendo o SAPO-37 promovido maiores diminuições na energia de ativação. Trata-se de um estudo relativo e indicativo, visto a complexidade do processo de degradação polimérica. Procurou-se identificar os voláteis liberados na degradação térmica do HDPE, a fim de avaliar a atividade catalítica dos materiais zeolíticos, quanto a obtenção de prováveis produtos de interesse comercial e industrial. Observou- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 317 Degradação do polietileno se de forma qualitativa que para cada amostra, contendo ou não catalisador, os prováveis voláteis foram obtidos em diferentes percentuais de intensidade relativa, quanto ao número de átomos de carbono. Constatou-se que independente da amostra, houve um predomínio de frações com um baixo número de carbonos. Em vista disso observou-se que estu- dos posteriores necessitam ser realizados, com maior refinamento, objetivando a precisa caracterização dos voláteis oriundos da decomposição térmica do HDPE com e sem catalisadores, e com base nesses resultados avaliar se o processo é realmente viável para obtenção de espécies de interesse, com uso potencial como combustível. 318 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Glauber José TTurolla urolla FFer er nandes ernandes 5 REFERÊNCIAS ARAÚJO, A. S.; FERNANDES Jr., V. J.; FERNANDES, G. J. T.; Degradation of High Density Polyetylene by HZSM-5 Zeolite. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 319 Degradação do polietileno 320 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Serviço Social Ética e política: um breve percurso filosófico 321 Aione Maria da Costa Sousa1 1 Assistente Social. Mestre em Serviço Social (UFPE). Professora do Curso de Serviço Social da FACEX. E-mail: [email protected]. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ética e política: um breve percurso filosófico Ethics and politics: A brief philosophycal way 322 RESUMO Nas ultimas décadas, discussões que ressaltam o tema “Ética” tem sido alvo de debates não só nos meios intelectuais, tomando uma dimensão maior, fazendo parte de discursos políticos, onde se busca recuperar um pouco a credibilidade da população em relação a determinados partidos e/ou representantes que ocupam de cargos públicos, em face aos vários momentos em que vem à tona atos de corrupção. Neste contexto, torna-se fundamental a retomada de uma velha discussão, que esteve presente desde a antigüidade, nas reflexões filosóficas dos gregos, que é a relação entre Ética e Política. ABSTRACT In the last decades, discussions have highlighted the theme “ethics” which has been a target of debates not only in the intellectual circles; these discussions have taken a further dimension. They are present in political speeches, where the politics try to regain a little of their lost credibility specially in relation to a certain numbers of Parties and their representatives who have public jobs. That task has been extremely hard, mainly because of the number of corrupted acts spread through the media. In this context, it is important to bring back the old Greek philosophical discussion about ethics and politics. PALAVRAS-CHAVE Ética; política. KEY-WORDS Ethics; politics. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aione Maria da Costa Sousa A indicação de uma relação entre ética e política tem sido alvo de discussões, ao longo da história, passando por processos fracionários, em virtude das várias etapas em que se sucedem transformações tanto no pensamento intelectual, como nas for mas de organização das sociedades. O Estado e a Sociedade como partes de um mesmo processo, ou seja, da história da humanidade, da organização do ser humano genérico e social, não podem ser percebidos como dimensões separadas, mas como espaços coletivos onde se constrói, na prática, essa organização social. Neste sentido, a ética se define dentro de uma realidade social onde os homens, convertidos em cidadãos, possam ter acesso aos bens produzidos socialmente, como também tomar parte nas decisões sobre todas as questões que se fazem presentes nesse processo de construção social. As reflexões que tomam como objeto a relação Ética e Política, já estavam presentes nas análises filosóficas da Grécia Antiga. Pela complexidade e profundidade do tema, não temos aqui a pretensão de aprofundar essa discussão filosófica. Na realidade, pretendemos abordar algumas definições da ética e sua relação com a moral e com a política. Na concepção de Vergenières (1998, p. 5), Aristóteles foi o primeiro filósofo a apresentar um conceito integral do ethos, dando lugar a um estudo específico da virtude ética, isto é, da virtude do caráter, designando-a como uma disposição adquirida pelo hábito. Essa preocupação de Aristóteles se manifesta em suas obras sobre a Ética e a Política.2 A Ética aristotélica está fundamentada em uma compreensão de que as ações do sujeito que determinam a natureza de suas disposições morais, cuja finalidade é o bem supremo. A concepção de política têm sua base na Pólis grega, estando definida no livro “A Política” (1998), pela pluralidade dos cidadãos e pela participação destes na vida da Pólis. Sendo o homem um animal social e político, a principal finalidade de suas ações é algo comum a todos, e a cada um em particular o que mostra que o homem foi feito para a sociedade civil. O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão meios para isso. (...) Não existe Estado feliz por si mesmo senão o que se constitui sobre as bases da honestidade.(...) Sua felicidade não deixará de estar garantida, desde que ele use de civilidade e de leis virtuosas. (Vergenières, 1998: 61) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 323 Ética e política: um breve percurso filosófico 324 Mustafá (1991, p. 1) ressalta a importância da concepção aristotélica na relação entre ética e política, fundamentando que tal concepção baseia-se na noção de ciência prática, onde o fim está na ação do sujeito, o que a configura como uma ética de 1ª pessoa. Neste sentido, segundo a autora, se a ética se ocupa do agir humano e a política se interessa pela capacidade do homem em agir consciente e livremente para atingir um determinado fim, não se pode considerá-las isoladamente. Na realidade, a importância que a autora estabelece a esta concepção é baseada na idéia de uma racionalidade existente na concepção da ética aristotélica, que, concebendo o homem como sujeito da ação, aponta para essa racionalidade, onde o homem é visto como sujeito político, sendo introduzido em uma noção de práxis humana, mesmo que no sentido restrito à dimensão de ação prática. Neste sentido, compreendemos que a importância da tese aristotélica está na relação que estabelece entre ética e política. Pois, é pela ética que se verificam os fundamentos das ações humanas concretas e pela política que se afirma a capacidade do homem em agir consciente e livremente com perspectiva a uma finalidade que é o bem coletivo. Partindo de algumas noções básicas da ética aristotélica, São Tomás de Aquino, vai defini-la com um sentido de ética cristã. Assim, a filosofia tomista defende que o ideal é o bem comum, na busca da justiça e da igualdade, tendo como fim último: a elevação ao reino de Deus. Na filosofia cristã, o homem é uma concepção divina, cuja essência encontra-se em Deus. No século XVIII, a tendência da filosofia iluminista foi a de desvincular essa referência absoluta do homem a Deus, permanecendo, contudo a abstração idealista de uma natureza humana desvinculada da história . (Silva, p. 8) As grandes transformações que dão origem ao Estado Moderno, modificam não só a estrutura econômica e as formas de organização política da sociedade, mas, conduzem a um processo de mudanças nas concepções éticas e filosóficas, voltando-se para a individualização, o que ocasiona um processo de cisão na relação entre Ética e Política. Na realidade, a convivência humana em sociedade é estabelecida de forma consensual, se houver um sistema ético-político, onde se concretize o reconhecimento do indivíduo em si e dos outros como Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aione Maria da Costa Sousa sujeitos históricos e sociais. Na visão de Rios, homem é um ser no mundo, o qual também é parte do seu ser. Mas, este mundo só existe para o homem na medida em que este o conhece e o transforma. Porque o mundo se apresenta ao homem numa dupla dimensão: 1) Através da natureza, que não depende do homem para existir, mas pode ser transformada pela sua ação. 2) Na sua dimensão cultural, onde é transformado pelo homem a partir de necessidades criadas por ele mesmo.3 Então, ética e moral são relações criadas pelo homem e determinadas historicamente, através desse movimento de transformação social, que se verifica em seus aspectos econômico, social, político e cultural das sociedades humano genéricas. Quando os homens interferem na natureza usam razão e criatividade, que resultam no trabalho, ou seja, na intervenção intencional e consciente dos homens na natureza e na realidade social, que são parte de sua própria essência. A idéia de trabalho não se separa da idéia de sociedade, pois na medida em que os homens trabalham e criam a cultura conjuntamente, através de um processo histórico de transformação social e concreta da realidade, constróem essa sociedade. Neste sentido, a ação dos homens em sociedade tem um caráter político, na medida em que representa uma maneira decisiva de constituição da organização da produção, de integração da coletividade, de realização da consciência do ser social, de definições de poderes e de decisões, mediante as quais se apresentam várias alternativas de escolha, de possibilidades de ação. A atividade dos homens em sociedade tem sempre um caráter político, na medida em que a organização da vida material de uma maneira peculiar determina, ao mesmo tempo, uma maneira peculiar de organização das idéias e das relações de poder. (...) Ser político é tomar partido. (Idem, p. 41) Desta forma, concordamos que através do trabalho os homens intervêm na realidade, transformando-a e, pelo mesmo processo transformam si mesmos, onde, através das relações sociais, definem seus papéis sociais, construindo o espaço de realização da práxis social. A não compreensão dessa realidade pode conduzir a um processo de alienação 4 , onde a falta de clareza desta questão leva a uma Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 325 Ética e política: um breve percurso filosófico 326 descaracterização da ação pelo próprio indivíduo, que não se reconhecem como sujeitos de sua prática. Portanto, o entendimento da dimensão ético-político da ação dos sujeitos, está na compreensão das contradições da realidade social e capacidade dos homens agirem de forma ativa e consciente no processo de transformação dessa realidade e de construção da história. Então, como podemos contribuir para que não se abstraia a ética do seu conteúdo político ?. No nosso entendimento, essa dimensão pode ser preservada se compreendermos que existe uma dimensão de subjetividade presente em cada ser. Nem todos pensam de forma coesa, mas estes podem entrar em consenso em determinadas questões que se refiram à coletividade, preservando-se a individualidade. É na vida em sociedade que se adquire essa individualidade, nas relações que se estabelecem com o conjunto da coletividade, e no seu reconhecimento como parte dessa coletividade. Refletindo sobre a questão do Indivíduo, Ética e Práxis, Rios define a ética como uma reflexão crítica sobre os valores que sustentam os princípios e ações dos indivíduos e grupos nas sociedades. Afirma, então, a estreita relação entre ética e política, que, na sua opinião está situada no horizonte do bem coletivo ou público da cidadania democrática. Neste sentido, a concretização dos direitos civis, políticos e sociais se faz necessário na realização de um projeto de construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Partindo dessa compreensão, Rios (1998, p. 30) aponta para a necessidade de uma recuperação do sentido de uma vida digna, verdadeiramente humana, na qual haja um reconhecimento do ser para além de sua dimensão biológica, onde a satisfação dos desejos esteja integrada pelo respeito mútuo, pelo diálogo, pela justiça, pela solidariedade. Enfim, por uma vida humana que tenha em vista a realização dos indivíduos enquanto sujeitos de sua história. Desta forma, o processo de reconhecimento e concretização da cidadania, é colocado como meio para que se possa ter uma vida verdadeiramente humana. Para isso é preciso enfrentar os desafios presentes no mundo atual: da globalização, da fragmentariedade, acreditando e criando as possibilidades de superação desses desafios em todos os espaços em que ocupamos na sociedade: no cotidiano, no trabalho, na escola, entre outros. De acordo com Rios (1999, p. 9), a dicotomia entre Ética e Política pode ser evitada, e superada se tomarmos consciência de que há uma dimensão ética articulada à dimensão política e à dimensão técnica. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aione Maria da Costa Sousa É partindo da discussão em torno da competência profissional que a autora discute a questão, colocando que há uma preocupação com o dever ser do desempenho, do saber fazer bem que remete ao valor da responsabilidade do dever, ao qual se agregam o saber, o querer e o poder, que articulam o domínio de conteúdos e técnicas a um determinado contexto social. Assim, uma vontade política determina a intencionalidade da ação e o seu sentido real de práxis e de trabalho. (Rios 1998, p. 53) As interpretações de Heller e Barroco, dentro de uma fundamentação ontológica de base lukasciana, adotam uma compreensão da moral como atitude prática dos indivíduos na sua singularidade, e a ética como uma reflexão teórica e uma ação voltada para a realização humano-genérica. Nesta compreensão, o indivíduo é um Ser ético quando, conscientemente, se reconhece como indivíduo singular, e ao mesmo tempo, e pelo mesmo processo se reconhece como Ser humano genérico. Assim, enquanto a moral situa-se no espaço cotidiano, se objetivando por meio dos valores e da relação dos indivíduos em face de seu entendimento, a ética reflete sobre o significado e importância desses valores para a dimensão coletiva do Ser social. É nessa reflexão que o indivíduo toma consciência do “nós”, se afirmando como Ser humano genérico. Ou seja, reconhece a sua singularidade e genericidade e, portanto, a sua universalidade. Se o indivíduo alcança a consciência da universalidade, se reconhecendo como ser humano genérico, assume uma atitude de reconhecimento face às questões que se referem à coletividade, e, portanto se compromete com projetos coletivos. Esse compromisso se concretiza pela tomada de posição, pela escolha face à determinada situação social concreta. Essa tomada de posição, consciente, caracteriza a relação da ética com a política. A adesão consciente à norma supõe a autonomia diante das escolhas morais; o sujeito ético é capaz de deliberar diante do possível historicamente, de forma responsável e livre. Mas a consciência, o conhecimento crítico não são suficientes para garantir a ampliação dessa autonomia; sua realização objetiva supõe a unidade entre a ética e a política, pois esta se faz no campo dos conflitos, da oposição entre projetos sociais, caracterizando-se, pois, pela organização coletiva na luta entre idéias e projetos que contém valores e uma direção ética. (Barroco, 1999, p. 127) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 327 Ética e política: um breve percurso filosófico 328 Por essa práxis social os indivíduos se elevam à sua universalidade, mas sem perder sua singularidade. Mas, nesse processo enfrentam contradições que dificultam que esse processo ocorra de forma consciente. Tais contradições tornam-se mais visíveis quando verificamos o conflito de interesses particulares de indivíduos com relação aos interesses coletivos. Nas sociedades capitalistas essas contradições são mais intensas e complexas, em virtude da fragmentação da moral que é tomada de forma diferente em várias esferas da sociedade. A ideologia dominante possibilita o ocultamento das contradições entre a existência objetiva de valores humanogenéricos (expressos pelas normas abstratas) e sua forma de concretização (seus significados históricos particulares), entre os valores humano genéricos e sua não realização prática. (Barroco, 1996, p. 86) Na compreensão de Barroco, a ideologia está vinculada à práxis política tanto como expressão da alienação, como possibilidade de conquista da liberdade. Portanto, é na práxis política que os sujeitos podem responder aos conflitos morais de forma concreta. A atividade política supõe a projeção ideal do que se pretende transformar, em qual direção, com quais estratégias; por isso, implica em projetos vinculados a idéias e valores de uma classes, de um estrato social ou de um grupo. A ideologia, tomada enquanto uma forma de enfrentamento dos conflitos sociais, é parte da práxis política. (Idem, p. 89) Então compreendemos que formas de apreensão do significado da ética que se vinculam a pontos de vista diferenciados: Um que limita à sua compreensão como prática moral, definida no cotidiano pela obediência à normas e deveres, desvinculada de sua relação com a política e do seu sentido genérico social . O outro ponto de vista, a moral é uma relação social e a ética uma ação e reflexão teórica. Onde o individual e o coletivo são duas partes de um mesmo processo que se complementam. O ser é entendido em sua totalidade, na compreensão da sua universalidade, como ser humano genérico. É a partir dessas fundamentações teóricas e filosóficas que vai se constituir a ética das profissões, onde se definem princípios, normas, orientações gerais e específicas para a inserção de uma determinada profissão no contexto da prática social. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Aione Maria da Costa Sousa NO NOTTAS 2 Tal discussão pode ser encontrada nas obras de Aristóteles: A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. e Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury, 3. ed. Brasília: UNB, 1999. 3 Cf. Rios, Terezinha A. Ética e Competência, 7. ed. São Paulo: Cortez,1999. 4 A alienação é um conceito amplo, de um modo geral se refere a “não apropriação, por parte dos indivíduos, da riqueza material e espiritual produzida socialmente”. Neste sentido, “os indivíduos não reconhecem na realidade social, a sua ação, não se reconhecem como sujeitos históricos.” (Barroco,1999, p. 128) 329 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Ética e política: um breve percurso filosófico REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: UNB, 1999. BARROCO, Maria Lúcia S. O Novo Código de Ética Profissional do Assistente Social, In: Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1993. n. 41, p. [?] BARROCO, M. L. Silva. Ontologia Social e Reflexão Ética. 1996. [?] f. Tese de Doutoramento. Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. BARROCO, M. L. 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E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada The local power: A category to be rethought. 332 RESUMO O presente trabalho aborda o novo papel designado ao poder local no contexto contemporâneo ,sem contudo supervalorizar em demasia o local, mas ressaltar o local como um âmbito propício às iniciativas inovadoras e criativas de gestão, com vistas à construção de uma cultura política cidadã, onde a participação se perceba como um mecanismo de aprofundamento de temáticas sociais emergentes, favorecendo a formação de espaços públicos novos capaz de resistir, denunciar, desobedecer a cultura política tradicional, conservadora e excludente . ABSTRACT The present work explains the new role designated to the local power in the contemporary context, without however, to value it in surplus, but to point out the local power as a favorable ambit to the innovative and creative administration. The local power seems to be looking for the construction of a political culture focused on the citizens where the participation is noticed as mechanism to accomplish deep study of emergent social thematic, favoring the formation of new public spaces capable to resist, to denounce and to disobey the traditional political culture which is conservative and excluding. PALAVRAS-CHAVE Poder local; globalização; Estado Nacional; participação cidadã. KEY-WORDS The local power; the global world; National State; citizen participation. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro A sociedade moderna foi desenvolvida pelo impacto da ciência e da racionalidade que emergiu na Europa nos séculos XVII e XVIII. E os escritos dos intelectuais modernos se opunham à influência da religião e do dogma, desejando substitui-los por uma vertente respaldada em princípios: mensuráveis e racionais. Os iluministas acreditavam que a ciência moderna, quanto mais capaz de compreender racionalmente o mundo e a humanidade, mais chances teriam de moldar o curso da história para nossos próprios propósitos. A construção do Estado Moderno nos conduziu ao “esvaziamento” dos poderes locais, libertando os indivíduos das dominações tradicionais, e submetendoos ao poder público com a supremacia do Estado Nacional2. Acreditou-se que com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, o mundo seria estável e ordenado. Porém, o mundo em que vivemos hoje, em vez de estar sob nosso comando, parece estar um mundo em descontrole, termo utilizado por Giddens3. Segundo Bava (1996, p. 55), tal descontrole decorre: (...) na busca de maior produtividade e competitividade internacionais, aprofunda a dualização de nossa sociedade, a concentração da riqueza e a disseminação da pobreza, o desemprego estrutural, a exclusão social, a degradação ambiental, a perda das identidades culturais da população, entre tantas outras nefastas conseqüências. Atualmente, acredita-se que estamos atravessando um período marcante de transição histórica. A partir do final da década de 60, assiste-se um estilhaçamento das identidades sociais, com a globalização de hábitos culturais e de consumo. A vida tornou-se imprevista, insegura e incerta. Os denominados novos riscos (armamento nuclear, poluição crescente, stress, nova configuração da questão social) afetam a todos, onde quer que vivamos e quão privilegiados ou carentes sejamos. O termo global é discutido em toda parte do mundo. A globalização é política, tecnológica, cultural e econômica. Globalização tornou-se um conceito em moda no mundo acadêmico e político, hoje referência obrigatória nas análises econômicas, sociais, políticas e culturais. A palavra globalização já estar devidamente incorporada à mídia e, mesmo, ao linguajar corriqueiro do dia-a-dia e parece ter algo de mágico que provoca encantamento ou pânico. (Carvalho, 1998, p.7) Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 333 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada 334 As grandes empresas operam no mundo inteiro controlando usualmente os capitais voláteis e fazendo investimentos especulativos nas bolsas de valores de todo o mundo, movimentando-se rapidamente e comandando a economia mundial sobre seus interesses. Nessa dinâmica do capitalismo contemporâneo, voltado para o capital especulativo de curtíssimo prazo, verificam-se contradições econômicas e políticas que agravam os geradores de desigualdades e exclusões sociais. A globalização é conduzida pelo Ocidente, mas afeta a todos os países indistintamente. É um conjunto complexo de processos que opera de maneira contraditória e que está reestruturando profundamente o modo de vida. O processo de globalização afeta os grandes sistemas sociais, bem como os aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas. Ele é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais. Os nacionalismos locais emergem com uma resposta às tendências globalizantes. A noção de globalização acompanha o declínio do grau de liberdade das políticas macroeconômicas nacionais. Quando o mundo moderno se globaliza, há o retorno do local, da comunidade. Com isso se aponta para o for- talecimento dos municípios, como condição para resgatar a cidadania, uma vez que na esfera local a participação popular é mais viável, visto que a administração municipal trata dos assuntos mais ligados ao cotidiano das comunidades, haja vista que apresenta um “universo novo”. (...) Em pouco mais de um século nos tornamos sociedades urbanas, freqüentemente jogados em megalópoles de dezenas de milhões de habitantes, acotovelados em espaços de densidade impressionante, encavalados em transportes coletivos com pessoas que nunca vimos, surpresos de ver o rosto de um vizinho que nos era desconhecido, enfrentando a difícil convivência do luxo e da miséria.Esta mistura de anonimato, de distâncias sociais e de proximidade física gera um universo novo que ainda não aprendemos a administrar. (Dowbor, 1995, p. 369) Verifica-se, uma mudança na imagem do local, a partir da solidificação do processo de mundialização. Há uma crescente descrença na amplitude de respostas políticas e econômicas globais partindo dos Estados Nacionais. Até então, os estudos influenciados pela vertente marxista pensavam o local a partir das determinações Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro gerais do Estado capitalista, identificando-o como forma particular da reprodução da sociedade capitalista. Até os anos 80, a imagem do local vincula-se a idéias negativas, como: lugar de captura da esfera pública pela privada; espaço onde predominava elementos inerentes à lealdade pessoal, favor, relação familiar. Pensava-se, ainda, o local como entrave ao desenvolvimento político e econômico. No decorrer dos anos 80, com a transição do regime autoritário para a democracia política, impulsionada pelos novos atores sociais e políticos, o local passa a ter uma imagem respaldada num estatuto de positividade. As novas demandas, a fomentação da participação popular e as experiências de gestões democráticas a nível local, constituem-se num novo patamar para a reflexão sobre o poder local. A Constituição de 1988 deve ser vista como parte de um processo mais amplo de mudanças sociais e políticas, contribuindo para a descentralização e autonomia dos municípios. Concomitantemente, verifica-se o tratamento positivo dos meios de comunicação frente ao poder local. Compreendendo-o como espaço democrático, participativo e de desenvolvimento. Aumenta-se, também, a descrença na capacidade do Estado de responder as novas e velhas questões sociais. Essa descrença é produto do discurso neoliberal, que propõe um Estado minimizado. Configura-se, assim, uma liberalização do mercado alicerçado num programa de “estabilização” de uma política de abertura comercial intensa, onde a intervenção do Estado na economia e na sociedade é compreendida como algo a ser evitado. Na verdade o neoliberalismo é uma super-estrutura ideológica e política que, acompanha uma transformação histórica do capitalismo moderno. A federação nos anos 80 estabelece uma ligação entre a luta pela democracia e o fortalecimento dos entes federados, em especial os municípios. Ao local, confere-se então, um novo papel, em que os municípios podem e devem superar a ótica do desenvolvimento com o enfoque meramente econômico e tecnológico. Os municípios passam a ter um quadro social complexo e dinâmico, com vários problemas sociais derivados de uma estrutura social contraditória e perversa. Face ao processo de globalização dominado pela progressiva deterioração da qualidade de vida Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 335 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada 336 que afeta os cidadãos, tanto nos países centrais do capitalismo quanto no hemisfério sul, impõe-se uma problemática, com vistas a garantir uma qualidade de vida que assegure formas solidárias de sociabilidade e de dignidade a todos os cidadãos. Há indicadores sobre a deterioração da qualidade de vida nas cidades, como: a violência urbana, congestionamento do trânsito, desemprego, subemprego, desintegração social, perda de identidade cultural, etc. A relação do município com o desenvolvimento social é bastante complexa, não podendo pensá-la sem considerar as situações macros e os contrastes sociais, o progresso com a ameaça de destruição, a riqueza com a proliferação da exclusão. O impacto das transformações de ordem internacional, combinado com a violação de direitos sociais, faz produzir uma situação que coloca o Brasil entre os países mais injusto e desigual do globo. Na visão tradicional, mais capacidade de governo implicava mais poder no topo da pirâmide, porém, na sociedade atual mais capacidade de governo implica maior capacidade de gestão e de decisão política na base da sociedade. Há fortes razões para acreditar que estamos atravessando um pro- cesso de transição de uma administração ultracentralizada e extremamente excludente para novas formas de gerenciamento do poder público local. No entanto, percebe-se um deslocamento generalizado dos problemas para a esfera local, mas as estruturas político-administrativas continuam centralizadas dificultando o gerenciamento dos problemas pelo poder local. Novas “bandeiras contestatórias” vêm gerando transformações inerentes a ação municipal: melhoria da qualidade de vida, democratização do poder , defesa do meio ambiente,etc. As iniciativas locais estão ultrapassando as atribuições atreladas aos serviços de “maquiagem” urbana, assumindo questões de maior complexidade, indicando a ampliação de ações que estão contribuindo para o desenvolvimento local/regional. A agricultura, o comércio, as atividades turísticas passam a ser vistas como “vocações” viáveis ao desenvolvimento local. O acesso ao emprego e a distribuição de renda são elementos cada vez mais considerados, numa vertente de melhoria da qualidade de vida. A preservação do meio ambiente é um outro enfoque para ser tratado como fator necessário ao desenvolvimento. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro Faz-se mister a elaboração de um “diagnóstico social” para a obtenção de parcerias nos mais diversos níveis, com vista a uma maior equidade social. A parceria pressupõe a existência de benefícios para os envolvidos. Assim, o setor público deverá ser capaz de gerar credibilidade, objetivando atrair a iniciativa privada como forma de captar recursos e transformá-los em serviços. A transferência de responsabilidade para o poder local deve ser acompanhada de um suporte financeiro e de uma capacidade de gestão. Na verdade, os projetos de desenvolvimento que existiam até então submeteram a ação estatal aos interesses privados e os governos locais foram e continuaram sendo, em sua maioria, instrumentos de apropriação privada do espaço público e de manutenção das oligarquias regionais e municipais. Colocar o Estado a serviço do interesse público requer , ao mesmo tempo, uma reforma no aparelho estatal e um processo de educação política de toda a população, ambos apoiados em mudanças estruturais... (Gondim, 1994, p. 17). Um projeto de desenvolvimento local precisa se apoiar nas iniciativas da sociedade civil, e, simultaneamente precisa do estimulo e da articulação dos governos locais para se viabilizar. A geração de uma sociedade bem informada pode assegurar a possibilidade de decisão flexível , sem perder de vista os interesses sociais do conjunto social. A sociedade deve dotar-se de mecanismos reguladores mais amplos, envolvendo as macroestruturas econômicas e políticas. Na verdade, avolumam-se os problemas na sociedade, produto de uma ocupação espacial gerida por um processo selvagem da especulação, da corrupção e da violência, em que o uso predatório dos recursos naturais liquida a cobertura vegetal, produzindo um caos climático. Os rios inundados de substâncias químicas colocam em perigo o nosso planeta. Diante deste quadro social, coloca-se a necessidade da construção de capacidade do governo local, tendo em vista melhorar seu nível de organização política, econômica e cultural. Enfatiza-se a questão do orçamento participativo e se introduz os conceitos de parceria, de desenvolvimento econômico local como elementos fundamentais para uma administração bem-sucedida. A organização das parcerias sociais na gestão do nosso desenvolvimento implica justamente Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 337 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada 338 que todos os atores sociais busquem na gestão compartilhada, e desde o início das ações, o objetivo humano maior (Dowbor, 1995, p. 382) De acordo com Soares e Gondim (1998), a necessidade de uma visão estratégica cidade em seu conjunto se tornou inadiável para o enfrentamento da crise social. Reconhece-se, ainda, a relevância da promoção de uma imagem positiva da cidade. A solução da questão urbana não deve se restringir à ampliação de acesso aos bens de consumo coletivo, pois extrapola esta esfera. Requerendo o fortalecimento das cidades como espaços de produção, de serviços. O novo papel colocado para o poder local, não implica na extinção das tarefas de conservar e embelezar a cidade. Tais ações, constituem-se alto valor simbólico para a preservação histórica e cultural da imagem da cidade. O poder local aparece como novo modelo de regulação entre Estado, mercado e sociedade. (...) o que está em jogo é uma nova lógica institucional que toma corpo no processo de crise do EstadoNação, no desenvolvimento das instituições supranacionais e na transferência de competências e iniciativas mais amplas para os governos locais ou regionais.(Soares e Gondim, [199-?], p. 91). Apesar da persistência de traços conservadores que buscam reproduzir o favoritismo nas relações do poder no Brasil, há também significativas mudanças respaldadas na construção de uma nova consciência de direitos. Os entraves para o desenvolvimento da cultura participativa no Brasil, remetem as seguintes questões: o processo tardio de urbanização do país e a organização da sociedade civil que sempre foi fortemente reprimida, perseguida e canalizada, dificultando, assim, a construção de uma estrutura democrática no Brasil. Estudos revelam que as idéias de descentralização, democratização e participação vêm sendo disseminadas, passando a se constituírem em discursos políticos de candidatos dos mais diversificados matizes ideológicos. Em muitas administrações, tais elementos aparecem no processo decisório, de forma limitada ou não ultrapassam o nível do discurso. Evidencia-se que a crise estatal, o desprestígio do sistema partidário, o aguçamento dos conflitos sociais e a crescente conscientização de vários segmentos sociais, oportunizaram o surgimento de novas temáticas para serem discutidas, com vistas à criação e efetivação de direitos e a valorização da ação Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro coletiva. A combinação de vários tipos de mediação e a criação de espaços múltiplos de interlocução entre os diversos atores levam-nos à redefinição da participação como exercício da cidadania ativa. (Teixeira, 1996, p. 30). A participação se insere num contexto histórico específico que permite avanços e recuos. A participação cidadã é o processo social em construção hoje, com demandas especificas de grupos sociais, expressas e debatidas nos espaços públicos e não reivindicadas nos gabinetes do poder, articulando-se com reivindicações coletivas e gerais, combinando o uso de mecanismos institucionais com sociais, inventadas no cotidiano das lutas, e superando a já clássica dicotomia entre representação e participação. (Teixeira, 1996, p. 31). Concebe-se, então, o conceito de cidadania como um processo histórico em permanente construção que elastece suas demandas a partir do patamar de conquistas sociais já consolidadas. De acordo com Teixeira (1996), participação cidadã se diferencia da denominada participação social e comunitária. Pois, a participação cidadã não busca a mera prestação de serviços à comunidade ou a sua organização. Não se trata de uma simples participação em grupos ou associações, para a defesa de interesses específicos ou expressões de identidades.Esses elementos podem fazer parte do processo, mas seus objetivos são mais abrangentes. Verifica-se a dimensão expressivo-simbólica na prática políticoadministrativa, sobretudo, no capitalismo contemporâneo, onde as trocas simbólicas exercem papel relevante no mercado de bens e serviços, bem como tudo o que indica status, prestígio , desejo e prazer. A dimensão simbólica da participação indica que : Seus mecanismos e instrumentos são específicos e diversificados, muitos resultantes da criatividade e da não-submissão aos padrões estabelecidos, indo das formas leves e lúdicas, como o abraço de milhares de pessoas a um sítio que se quer preservar, às mais agressivas, como o fechamento de uma rua, uma greve de fome, protestos, etc. (Teixeira,1996, p. 40). Conforme Teixeira (1996), a sociedade civil institucionaliza três complexos de direitos fundamentais: reprodução cultural, socialização e direitos relacionados com a economia. Os direitos são assegurados por leis e muitos deles têm sido reconhecidos no decorrer de Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 339 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada 340 lutas históricas. Tais leis não são suficientes para evitar a exclusão, mas podem constituir-se em instrumento de luta contra a dominação, à medida que os excluídos tenham acesso aos espaços públicos e possam discutir temáticas e ações coletivas que representem seus interesses. Teixeira (1996) coloca, ainda, a necessidade de haver uma cautela sobre a ênfase demasiada no local, inclusive, constituindo-se em suporte para políticas neoliberais de desoneração do Estado central, expressando-se num processo perverso de descentralização, de privatização, podendo significar, ainda, uma estratégia de elites tradicionais que controlam o poder local, reproduzindo o favoritismo, o clientelismo. Apresenta-se assim o problema de como responder aos interesses gerais em face do particularismo e do corporativismo dos atores, exigindo-se condições objetivas e subjetivas e espaços públicos onde possam ocorrer negociações e compromissos para que as argumentações, livremente expostas, permitam chegar-se a um consenso traduzível em decisões no sistema político. (Teixeira, 1996, p. 27). No entanto, as reações criativas locais vêm provocando a intensifi- cação de estudos de diferentes modelos de governos locais e seus rebatimentos sobre a sociedade como um todo. As experiências de iniciativas inovadoras e criativas de gestão vêm estimulando à formação de uma cultura política cidadã que supere a tradicional e conservadora cultura política vigente no Brasil. A nova concepção de cidadania deve consistir na construção de novos direitos que se realizem nos espaços públicos e se consolidem na esfera pública estatal. A construção de novos espaços públicos, implica na resistência e denuncia de ações excludentes e autoritárias através de atores sociais ativos. A participação cidadã é processo contraditório que envolve várias dimensões, papéis e desafios. A base social para o exercício da participação cidadã é a sociedade civil, através de sua mediação com o Estado, o mercado e a própria sociedade. Porém, a sociedade civil não pode tomar para si, responsabilidades que são do Estado, mas poderá exercer uma função política sobre o Estado no intuito de possibilitar e assegurar o atendimento das necessidades da sociedade como um todo. Para Teixeira (1996, p. 27): (...) a participação significa fazer parte, ser par- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro te de um ato ou processo, de uma atividade pública, de ações coletivas. Segundo Dowbor (1995), a descentralização é uma condição necessária, mas não suficiente para o funcionamento integrado das iniciativas da reprodução social; já o espaço local é um espaço fundamental de organização social, porém, não é o único. Dowbor (1995) considera, ainda, como necessária a gestão estatal e um deslocamento de um segmento dominante de atividades reguladoras diretamente para a sociedade civil, objetivando processos mais amplos de re-equilíbrio social. Isto é, uma mudança paradigmática da passagem de uma visão de pirâmides verticais de autoridade à de redes interativas horizontais (...) a grande questão não é mais a opção entre privatizar e estatizar, e sim a reconstrução, ou estruturação, da relação entre a sociedade civil e as diversas macro-organizações, estatais e privadas, que de fato nos dirigem. (Dowbor, 1995, p. 358) O próprio Dowbor (1995), aponta que o novo estilo de governar passa pela criação de instr umentos de comunicação, participação, flexibilização de mecanismos financeiros, controle direto de comitês e conselhos da comunidade. Passa, ainda, pela ampliação do espaço de interesse municipal, para ultrapassar as preocupações com a cosmética urbana e algumas áreas sociais, para se tornar o catalisador das forças econômicas e sociais da região. Na visão de Bava (1996, p. 58), o que se destaca num projeto de desenvolvimento local é: a possibilidade, por um lado, de articular, a partir de iniciativas dos governos locais, um conjunto heterogêneo de forças sociais locais em torno de um projeto comum e, por outro , de direcionar essa energia para o aproveitamento das oportunidades locais, viabilizando a produção de specialities, eliminando atravessadores, estimulando micro e pequenas empresas, formas cooperadas de produção e comercialização de produtos e serviços, enfim, articulando e estimulando uma série de iniciativas que abram novas oportunidades de trabalho, distribuição de renda, mercado. Para tanto, é necessário ao desenvolvimento local, buscar contribuir para a melhoria dos mecanismos democráticos, visualizando os problemas sob o enfoque do desenvolvimento social e humano, ao mesmo tempo Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 341 Poder local: uma cate goria categoria a ser repensada em que o econômico, com vista a desenvolver formas solidárias de sociabilidade e de dignidade a todos os cidadãos. Enfim, o repensar do poder local é uma categoria em construção, hoje, que remete a um processo histórico, caracterizado por elementos divergentes e não lineares, implicando pois, um desafio a ser discutido e operacionalizado, a partir das peculiaridades e demandas dos cenários locais. NO NOTTAS 2 Forma de Estado que se estruturou na Europa a partir do final da Idade Média e que definiu a fisionomia territorial e política das modernas nações européias. Corresponde ao período de consolidação do absolutismo monárquico, quando os reis, apoiados pela burguesia, conseguiram firmar seu poder perante o papado e os senhores feudais.A política econômica dos Estados nacionais foi o mercantilismo, que favoreceu a acumulação primitiva de capitais, posteriormente aplicados na Revolução Industrial. In: SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia.São Paulo, Best Seller, 1999, p. 221. 3 GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo com nós. Rio de Janeiro. Record, 2000. 342 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Deyse Silvana dos Santos Sena Gildeci Batista Alves Pinheiro REFERÊNCIAS CARVALHO, Alba Pinho de. A questão social e as transformações nas políticas sociais: as respostas do Estado e da sociedade civil. Fortaleza: Oficina Regional da ABESS, 1998. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. COSTA, João Bosco Araújo da. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 343 344 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Turismo O profissional de turismo e sua absorção 345 Mabel Simone Guardia1 1 Turismóloga. Especialização em Qualidade Total (UFRN). Professora da FACEX. Rua Ind. João Motta, 1541 - Bloco F - Apt. 301, Capim Macio. CEP 59.080-000 Natal, RN Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 O profissional de turismo e sua absorção The professional of tourism and the workmarket 346 RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa empírica sobre a absorção do turismólogo no mercado de trabalho, especialmente, nos ramos de hotelaria, agências de viagens e instituições de ensino. Para tanto, utilizou-se como suporte teórico um levantamento bibliográfico, em que enfatiza a necessidade deste profissional adequar-se as perspectivaas da indústria do turismo, no mundo globalizado. A exigência do profissional qualificado e de nível superior, como é o caso do turismólogo, prevista nas discussões de estudos acadêmicos se confirma dentro da realidade de Natal - RN, que serviu de área de estudo da presente investigação. ABSTRACT This work presents the results of an empiricist research about the workmarket for a professional of tourism, specially in relation to hotel jobs, travel agencies and schools. For the theoretical support, books that highligth the need for qualification of the professional in a globalized world were selected. In Natal there is a great need of qualified professionals with college education, and this is the area of research of this work. PALAVRAS-CHAVE Turismo; mercado de trabalho; profissionais. KEY- WORDS Tourism; workmarket; professionals. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Mabel Simone Guardia 1 INTRODUÇÃO Escrever sobre a necessidade do mercado e sua exigência quanto a qualidade do profissional é bem curioso, pois sabe-se que a formação existe partindo do pressuposto de sua necessidade. A idéia de escrever sobre a absorção do turismólogo, surgiu da curiosidade de saber como o mercado estava se comportando diante da colocação desse profissional especializado, visto que se há uma profissionalização, é esperada sua colocação, pois há uma demanda. Definiu-se uma breve investigação junto aos hotéis filiados à ABIH, agências de viagens vinculadas à ABAV e unidades de ensino superior na cidade do Natal (RN), onde se avaliou a inserção do profissional de turismo. 1.1 O que é o turismo? É uma atividade social, pois lida diretamente com pessoas, e tem se desenvolvido com velocidade, ao mesmo tempo em que se busca qualidade nos serviços. Segundo Barreto (1997), turismo é o movimento de pessoas, é um fenômeno que envolve, antes de mais nada, gente. É um ramo das ciências sociais e não das ciências econômicas... No entanto alguns escritores colocam sua importância econômica, pois é uma atividade que movimenta 45 bilhões de dólares ao ano no mercado nacional e emprega cerca de um em cada onze trabalhadores. 1.2 Qual a importância do profissional de turismo? É de fundamental importância a sua existência, pois é a única forma de garantir qualidade a quem procurar utilizar o serviço turístico. Após um longo ano de trabalho é normal que as pessoas queiram sair de férias e contem com que tudo dará certo, sem imprevistos, após o pagamento de um serviço complexo e intangível. 2 O SURGIMENT SURGIMENTOO DDAA INDÚSTRIA DO TURISMO Este fenômeno social teve origem espontânea, decorrente da inerente vontade das pessoas conhecerem culturas e lugares diferentes, pelos mais variados interesses, como por exemplo, explorar novos mercados. O turismo tem crescido, pelo número de pessoas que emprega, pela sua contribuição na economia, geração de receitas e impostos. Trata-se de uma indústria de múltiplos componentes. Outrora, usufruir desse serviço era luxo; hoje, está classificado como necessidade e contando com mais essa necessidade na vida das pessoas é que o turismólogo deve buscar seu espaço. De acordo com o artigo 180 da Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 347 O profissional de turismo e sua absorção Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988: A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo. Isso mostra que a promoção da atividade está prevista, o que encurta o caminho para a luta pelo reconhecimento e obrigatoriedade de profissionais qualificados para administrar a Indústria do Turismo 3 DESEMPREGO 348 Desemprego, qualidade, capacitação, qualificação e absorção de profissionais são preocupações hoje no mundo todo. Essa preocupação estimulou pessoas como Cifuentes a pesquisar sobre o grande número de pessoas desocupadas ou ainda ocupadas com os trabalhos informais. Segundo Cifuentes (1995, p. 28)2, ninguna nación inventou hasta hoy sueldos perfectos e ocupación total. A importância da qualidade do trabalho veio com o paradoxo de sua quantidade; com a globalização o mundo tornou-se mais exigente, no entanto de acordo ainda com Cifuentes (1995, p. 113)3 : Puede afirmarse que es la baja calidad que genera el desempleo . Levando em consideração toda a preocupação com o desemprego, formar bons profissionais que sejam capazes de entender a totalidade do processo e intervir nele criativamente é uma questão que pode vir a ser resolvida para que o número de pessoas desocupadas seja menor, porém parte desta responsabilidade depende muito do candidato ao mercado de trabalho, em alguns casos mais do que das instituições de ensino ou empregadoras. 4 A CAP ACIT AÇÃO PROFISSIONAL CAPACIT ACITAÇÃO Pode-se afirmar que a necessidade de qualificar a mão-de-obra veio a partir de todas a mudanças na força de trabalho; conforme Barreto (1997, p. 144), precisa-se hoje de um trabalhador com visão global e responsabilidade, capaz de ‘gerenciar o aleatório’, de solucionar rápido e eficazmente uma contingência que não foi prevista pela máquina. A tecnologia de informação e a integração entre os povos fizeram com que atualmente o nível de instrução, seja melhor que antes. De acordo com Barreto, uma capacidade de abstração mais acurada só pode ser dada por intermédio da escolaridade. Segundo Leite (apud Barreto 1997, p. 144), há uma tendência na indústria mundial (apesar de um pouco mais lento no Terceiro Mundo) há exigência de novos requisitos de qualificação relacionados, (...) à capacidade, confiabilidade e confiança de tarefas variadas. 5 A ABSOR ÇÃO DO TURISMÓLOGO ABSORÇÃO PELO MERCADO DE TRABALHO Devido a insuficiência de mate- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Mabel Simone Guardia rial didático sobre a absorção de profissionais de turismo no mercado de trabalho local, foi feita uma pesquisa de campo, nos hotéis, agências de viagem e instituições de ensino superior, a fim de verificar a admissão destes profissionais durante o ano de 1997. A metodologia aplicada na realização deste estudo contemplou técnicas de observação, leitura bibliográfica e a aplicação de um questionário, dirigido ao gerente geral ou representante dos estabelecimentos investigados. Com relação ao questionário, este tinha como principal objetivo detectar se o estabelecimento pesquisado possuía ou não bacharel em turismo no seu quadro de funcionários. A leitura bibliográfica propiciou a ampliação de conhecimentos sobre o mercado de trabalho de forma geral no atual estágio em que se encontra a sociedade, os desafios, as perspectivas e as tendências deste mercado. O resultado da pesquisa foi o seguinte: Hotelaria – Atividade que compreende vários setores oferecendo serviços agrupados ou não, como por exemplo, hospedagem, lazer, alimentação e eventos. Utilizou-se como universo de pesquisa nesse setor, hotéis associados à Associação Brasileira da In- dústria de Hotéis (ABIH). De uma amostra de 8 hotéis, (equivalente a 33% do total de 24 credenciados), apenas 1 (13%) possui bacharel em turismo no quadro de funcionários. Agências de viagens – Empresas ou sociedades comerciais que exercem, privativamente, o trabalho de repasse de locação de carros, passagens, passeio e pacotes. Para verificar a inserção do bacharel em turismo nessa atividade utilizou-se uma amostra de 12 agências (equivalente a 32% de um total de 38 agências associadas à Associação Brasileira de Agentes de Viagens - ABAV), das quais apenas 5 delas possuem profissionais formados em seus quadros de funcionários (42%). Instituições de ensino superior - Juntamente com a expansão do turismo veio a necessidade de um profissional para a área. Criouse escolas específicas, sendo que a primeira surgiu em São Paulo, a Faculdade Anhembi Morumbi, instituição que tem como objetivo capacitar profissionais para as diversas atividades dentre elas para o turismo local, regional ou internacional. Em Natal existem três instituições de ensino superior que possuem cursos de Turismo. Foram investigadas duas dessas instituições (66%), tendo sido constatado que as mesmas tem absorvido bacharéis em turismo. Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 349 O profissional de turismo e sua absorção 6 CONCLUSÃO 350 A ascensão da atividade turística é um fato; no entanto, dos 6 milhões de pessoas envolvidas no setor, apenas 0,3% são turismólogos4. Esse número é pequeno e torna-se mais significativo quando se considera o fato de que para algumas empresas ou instituições não existe diferença do técnico para o graduado em turismo. É acreditando em um crescimento real da atividade, que tem havido uma procura pelo curso de turismo nos últimos vestibulares. No ano de 1996, segundo o Ministério da Educação o curso não estava entre os NO NOTTAS 2 Tradução do autor: Nenhuma Nação inventou até hoje salários perfeitos e ocupação total. 3 Tradução do autor: Pode afirmar-se que é a baixa qualidade que gera o desemprego. mais procurados5; no entanto em 1997, de acordo com a FUVEST, o curso de turismo foi o mais procurado para o vestibular 98. Os resultados da pesquisa desenvolvida com relação a utilização deste profissional no mercado de trabalho, tem demonstrado, que apesar da atividade ser emergente e estar em expansão, não tem absorvido de for ma satisfatória o turismólogo. Espera-se que a categoria una-se e lute pelo seu reconhecimento, mas vale ressaltar que o mais importante é qualificar-se com idiomas e cursos técnicos para um melhor entendimento do todo, criando-se assim um diferencial do mero técnico. 4 5 Revista VEJA. 20 de agosto de 1997 - p. 66 Revista Época. 03 agosto de 1998 - p. 41 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 Mabel Simone Guardia 7 REFERÊNCIAS BARRETTO, Margarita. Manual de iniciação ao estudo do turismo. Campinas: Papirus, 1997. CASTELLI, Geraldo. Administração hoteleira. Caxias do Sul: EDUCS, 1992. CIFUENTES, Carlos Llano. La creación del empleo. San Rafael: Panorama, 1996. DUNNINGHAM, Andréa; FRAGA, Érica. Procura-se empregado qualificado. Rio de Janeiro: O Globo, 10 jan., 1998. Caderno de Economia, p. [?] FERRAZ, Joandre. Regime jurídico do turismo. São Paulo: Papirus, 1995. p. 13-49. GALERO, Alvaro Lopez. El impacto de la globalizacion sobre el turismo. In: LEMOS, Amalia Inês de. In: Turismo: Impactos socio-ambientais. 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Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 351 Norm as para apresentação de trabalhos Normas A revista Carpe Diem destina-se à divulgação de trabalhos inéditos relativos a estudos de natureza teórica e experimental no campo da pesquisa, resumos de teses ou dissertações, monografias, trabalhos de conclusão de cursos, comunicações e artigos de revisão produzidos pelo corpo docente e discente desta e de outras instituições. Os trabalhos encaminhados para publicação deverão obedecer as seguintes normas: 352 1. Os originais devem ser submetidos ao Conselho Editorial em português, inglês ou espanhol, de preferência em disquete HD de 3 ½, com a indicação do(s) autor(es) e do arquivo, gravado no “Word for Windows ou uma versão mais nova, acompanhado de 02 (duas) cópias impressas em papel A4 (210 x 297 mm) e com os seguintes atributos: 1.1 espaço simples entre linhas e espaço duplo entre parágrafos; 1.2 espaço duplo entre partes e entre texto e exemplos, tabelas, figuras ou ilustrações (gráficos, fotos, gravuras, esquemas) e citações; 1.3 letra “Times New Roman”, de tamanho 18 para títulos, 14 para subtítulos, 12 para nome(s) do(s) autor(es), texto e ilustrações (tabelas, figuras etc), 10 para epígrafes e citações, 9 para notas de rodapé; 1.4 margens (superior e esquerda) de 3 cm e (inferior e direita) de 2 cm; 1.5 tabulação padrão de 1,27 cm (1/2 polegada); 1.6 alinhamento justificado. 2. O trabalho deve conter no máximo 20 (vinte) páginas com o seguinte formato: 2.1 Título O título, em português, (inglês ou espanhol, quando for o caso), deve ser digitado em letras maiúsculas, em negrito e centralizado no alto da primeira folha; 2.2 Nome(s) do(s) autor(es) O(s) nome(s) do(s) autor(es), em negrito, deve(m) ser mencionado(s) por extenso, centrado(s) em letra minúscula, duas linhas abaixo do título e numerado, (exemplo.: José Francisco de Oliveira1), separados por ponto e vírgula (;), no caso de mais de um autor. Ainda na primeira página, em nota de rodapé, deve(m) ser mencionado(s) dados relativos a qualificação do(s) autor(es), instituição, endereço, telefone, fax e e-mail, (quando for o caso). Ex.: Economista. Especialista em Administração de Empresas (UFRN). Professor do Curso de Administração da FACEX. Av. 21 de Outubro, 25 – Centro; CEP 59.075-840 – Natal, RN; Tel.: (0xx84)225-2222; e-mail: [email protected]. 2.3 Resumo A palavra Resumo, em negrito, seguida de dois pontos (:) deve estar duas linhas abaixo do(s) nome(s) do(s) autor(es), sem adentramento e, na mesma linha, o início do texto digitado em português, não podendo exceder o limite de 200 palavras; 2.4 Palavras-chave A expressão “Palavras-chave”, em negrito, deve estar duas linhas abaixo do final do Resumo, sem adentramento, devendo conter, no máximo, 5 palavras; Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 2.5 Abstract O Abstract, em negrito, deve estar duas linhas abaixo do final das Palavras-chave, sem adentramento, podendo ser a versão para o inglês do Resumo; 2.6 Key-words A expressão “Key-words”, em negrito, deve estar duas linhas abaixo do final do Abstract, podendo ser a versão para o inglês das Palavras-chave; 2.7 Texto do trabalho Os subtítulos do texto, sem adentramento, devem estar em negrito e em letras minúsculas, sendo apenas a primeira letra de cada subtítulo em maiúscula. O texto do trabalho deve obedecer ao sistema de numeração progressiva de acordo com a ABNT. Quando o artigo for descrição de trabalho de pesquisa experimental, deve conter os seguintes subtítulos: a) Introdução A introdução deve apresentar o(s) objetivo(s) do trabalho, a sua relação com outros da mesma área de pesquisa e as razões que levaram o(s) autor(es) realizar(em) o trabalho. b) Metodologia A metodologia ou material e métodos deve conter informações disponíveis na revisão de literatura que permitam o desenvolvimento do trabalho. c) Resultados Os resultados devem ser apresentados de forma clara e sucinta, podendo ser utilizadas TABELAS (numeradas em números romanos – Ex.: TAB. I) ou ilustrações (gráficos, fotos, gravuras, esquemas) denominadas FIGURAS, numeradas no texto com algarismos arábicos, de forma abreviada, entre parênteses ou não, de acordo com a seguinte redação: (FIG. 1), FIG. 2, que permitam uma melhor compreensão dos dados obtidos. As tabelas e as figuras devem trazer abaixo um título ou legenda digitada, com indicação da fonte, se for o caso. d) Discussão e conclusão A discussão deve analisar os resultados, tentando relacioná-los com dados existentes na literatura, devendo ser encerrada com as principais conclusões do trabalho. e) Referências bibliográficas A expressão “Referências bibliográficas”, sem adentramento, deve ser colocada duas linhas antes dos autores, relacionados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e de acordo com as normas da ABNT (NBR6023/2002) Para LIVROS: a) autor; b) título da obra em negrito; c) número da edição (se não for a primeira); d) local da publicação; e) nome da editora; f) data de publicação. Ex.: GIL, Antonio Carlos. Metodologia do Ensino Superior. São Paulo: Atlas, 1990. Para ARTIGOS: a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico em negrito; d) local da publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. Ex.: ANDRADE, Ana Maria Cardoso de. Novas possibilidades em informação popular. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, p. 23-41, jan./jun. 1991. f) Notas de rodapé As notas (não bibliográficas) devem ser resumidas ao máximo e colocadas ao pé das páginas, ordenadas por números arábicos que no texto se- Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 353 354 rão colocados logo após a frase a que diz respeito e elevadas. g) Citações Citações de até três linhas deverão vir entre aspas, ao longo do texto. Citações com quatro ou mais linhas deverão com recuo de 2,5 cm da margem esquerda e ter espaçamento simples. Citações, paráfrases e dados devem incluir a indicação da fonte ( sobrenome do autor, ano e página). Ex.: [(Lima, 1994, p. 45)] 3. O trabalho deve ser inédito e não ter sido enviado para quaisquer outros órgãos editoriais ou anais de congresso para publicação. 4. O trabalho deve ser redigido em português, inglês ou espanhol e estar sob a forma de artigo (máximo de 20 páginas), comunicação (máximo de 10 páginas), resenha ou ensaio científico (máximo de 10 páginas), resumo de tese ou dissertação (máximo de 2 páginas). 5. Os artigos e outras publicações deverão ser avaliados pelo Conselho Editorial ou por con- sultores ad hoc. 6. O Conselho Editorial não se responsabiliza pelos conceitos ou afirmações expressos nos trabalhos assinados, que são de inteira responsabilidade do(s) autor(es). 7. Os originais do trabalho, inclusive o disquete, não serão devolvidos ao(s) autor(es). 8. O(s) autor(es) terão o direito a 02 (dois) exemplares, por artigo, da Revista FACEX. 9. O trabalho deve ser enviado à Coordenação de Pesquisa e Extensão da FACEX, aos cuidados do Prof. Francisco de Assis Maia de Lima, no seguinte endereço: Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX Coordenadoria de Pesquisa e Extensão – CPE A/C Prof. Francisco de Assis Maia de Lima Rua Orlando Silva, 2897 – Capim Macio CEP 59.080-020 – Natal, RN Tel.: (0xx84)217-8348 E-mail: [email protected] Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003 355 Carpe Diem, Natal, Ano 2/3, n. 2/3, 2002/2003