149 naufrágio da condição humana: desrazão, precariedade da

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149 naufrágio da condição humana: desrazão, precariedade da
Caderno Discente do Instituto Superior de Educação – Ano 2, n. 2 – Aparecida de Goiânia – 2008
NAUFRÁGIO DA CONDIÇÃO HUMANA: DESRAZÃO, PRECARIEDADE DA
LINGUAGEM E ANIMALIZAÇÃO DO SER EM VIDAS SECAS,
DE GRACILIANO RAMOS
Izadora Rodrigues Guerreiro
Um retrato fiel da seca e da miséria do Nordeste brasileiro na década de 30, Graciliano
Ramos (escritor alagoano), em sua obra Vidas Secas publicado em 1936, transcende a
descrição dos costumes e a cultura do povo nordestino problematizando e promovendo uma
reflexão sobre a “secura” do próprio homem frente ao sistema social, político e, sua alienação
em uma condição escassa diante do uso da linguagem.
Em seu romance, o autor descreve a vida sofrida de Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória,
seus dois filhos (sem nome) e por fim, a cachorra Baleia que é tida como parte integrante da
família. Pobre e obrigada a ver-se peregrinando sem destino certo, a família de Fabiano é
descrita por Graciliano Ramos para denunciar as condições de vida dos nordestinos
(principalmente os sertanejos) e o sistema político da época. E é, nesse sentido de denúncia
social que em Vidas Secas, Graciliano descreve de maneira muitas vezes subjetiva, a
incomunicabilidade, a incapacidade de autonomia de pensamento e o descaso com a vida do
homem, abordando a relação entre os seres de uma família entre si e diante da sociedade. Ele
mostra em sua obra como o homem torna-se “bicho”, condicionado à miséria e à precariedade
de condições de vida. Há, no romance, uma desessencialização dos seres onde o próprio
Fabiano se vê em dúvida diante de sua condição humana.
Um homem incapaz de pronunciar muitas palavras, alienado frente ao sistema
político e que, dava-se por satisfeito se pudesse se alimentar, um “homem-bicho”, assim era
Fabiano descrito a partir do olhar de Graciliano.
– Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava forte, até gordo, fumando o seu
cigarro de palha.
– Um bicho, Fabiano.
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Ensaio apresentado ao Instituto Superior de Educação, da Faculdade Alfredo Nasser, como requisito parcial
dos requisitos de avaliação na disciplina de Teoria da Literatura II, do curso de Letras, sob orientação do Prof.
Dr. Paulo Petronílio.
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Fabiano era homem de poucas ou ainda nenhuma palavra, sua comunicação com os
outros estava restrita aos grunhidos, admirava aqueles que sabiam falar bem, porém,
ele mesmo estava distante de ser capaz de estabelecer uma linguagem fluente e
compreensível [...] um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo (p. 22).
A seca e a pobreza que sondavam a vida de Fabiano e sua família fizeram com que
estes seres se “silenciassem”; eles estavam ali isolados diante do mundo, e o uso da
linguagem que para eles seria uma forma de interação e compreensão do mundo e das pessoas
que os cercavam (o patrão, o soldado amarelo, Seu Tomás da Bolandeira), é a responsável
pela “secura”, incompreensão e não socialização; estavam ali em uma condição de animais,
onde o ser homem e o ser bicho estavam intimamente ligados. O não uso da linguagem aliado
à seca e à miséria fizeram da família de Fabiano um grupo de seres (homens-bichos) à mercê
da natureza, da injustiça social, abuso de poder e marginalização social: “Ordinariamente a
família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam
palavras curtas [...]. E eles [os meninos] estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano davase bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.” (p. 11-21).
A ausência de linguagem, a incomunicabilidade entre os seres da família de Fabiano,
demonstra que assim como a seca, a incapacidade de estabelecer e realizar a linguagem traz
para os personagens a mesma dor e sofrimento; se por um lado, a miséria e a seca impedem
que eles possam desfrutar de uma boa alimentação e moradia, por outro lado, a
incomunicabilidade e a ausência de conhecimento para decodificar e compreender os signos
da língua, fazem com que a família esteja alheia ao mundo que a cerca, tornando-os ainda
mais “secos”, pois a essência comunicativa existente somente entre os seres humanos tornouse ausente nestes seres que são incapazes de compreender, refletir e pensar o mundo, si
mesmos e as pessoas. Nesta perspectiva de capacidade cognitiva da linguagem, Chomsky
também a utiliza como sendo a capacidade de linguagem a ação distintiva entre o ser humano
e o animal: “[...] falta ao animal a capacidade geradora revelada no uso normal da linguagem
como instrumento livre do pensamento” (CHOMSKY, 1979, p. 22). É, portanto a linguagem
um fator tão importante quanto a miserabilidade para que estes seres sejam “desumanizados”
e igualados à condição de bicho: “Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam. Era
um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos” (p. 96).
Roland Barthes em seu livro O Grão da Voz reflete a linguagem e sua importância
social e individual para o homem. A necessidade de comunicação, segundo Barthes, é o que
torna o homem em constante interação entre o próprio pensamento e a sociedade. Para o
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autor, “[...] todo indivíduo é levado a situar-se, a marcar-se, a situar-se intelectualmente, o que
quer dizer, politicamente” (BARTHES, 1981, p. 12).
A palavra (falada e/ou escrita) que é abordada como foco nesta obra por Barthes, é
ausente em Vidas Secas. Esse poder de pensar e agir com as palavras não é ação em Fabiano e
sua família, é ausência. Ao falar sobre a palavra propriamente dita (a fala), Barthes diz como
há todo um conjunto que é posto em ação quando falamos e pensamos as palavras, o jogo
pessoal do nosso eu em que há a ação (quando dizemos) e a reflexão (quando pensamos o que
foi dito), e partindo desta importância que é dada a palavra por Barthes é que chegamos a
compreensão do que foi tentado ser dito por Graciliano em Vidas Secas, além da precária
condição de vida, os seres daquela família estavam privados daquilo que é concedido a todos
os seres humanos independentemente de condição social: a linguagem. Em O Grão da Voz,
Barthes mostra, pouco a pouco, como a linguagem está penetrada no mais profundo da
essência e também o quanto há nela do reflexo das contradições humanas:
[...] o jogo pessoal do nosso eu; a palavra é perigosa porque é imediata e não volta
atrás (exceto para se complementar através de uma repetição explícita) [...] tem
tempo à sua frente, tem esse tempo próprio que é necessário para a língua dar sete
voltas na boca [...] quando falamos, quando expomos o nosso pensamento à medida
que a linguagem surge, pensamos que é bom exprimir em voz alta as inflexões [...]
porque lutamos à luz do dia com a língua [...] na verdade falava pouco. Admirava as
palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em
vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas [...] ( BARTHES,1981, p.
10).
A linguagem de Fabiano e sua família pode ser comparada ao balbucio que é citado
por Barthes em sua obra O Rumor da Língua (1988), a mensagem mal compreendida, que
exige esforço. Esse sofrimento de expressão, de linguagem, é constante na vida daquelas
pessoas; o medo do falar, do compreender o que para eles é incompreensível, é o balbuciar da
grande máquina que é a linguagem para Barthes:
[...] o balbucio é uma mensagem duas vezes marcada: por uma parte, compreende-se
mal; mas, por outra, com esforço, chega-se a compreender apesar de tudo; não está
verdadeiramente nem na língua nem fora dela [...] O balbucio (do motor ou do
sujeito) é, em suma, um medo [...] ela pode ser dolorosa para o homem se este a
descreve como a de um bicho [...] tememos a máquina por ela funcionar sozinha,
desfrutamos dela por funcionar bem. (1981, p. 92).
Para atribuir à família de Fabiano a condição de animais, Graciliano não contente em
narrar a vida seca e pobre destes retirantes, inclui em seu romance a cachorra Baleia, que, a
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todo momento, tem atributos de sentimentos e comportamentos tipicamente humanos.
“Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergue-se nas pernas traseiras, imitando gente”
(p. 40). Essa mobilidade de troca entre homem - Fabiano, Baleia - bicho e vice-versa faz com
que não só a ausência de linguagem e a marginalização social sejam responsáveis pela
condição animalizada da família de Fabiano, mas também, pela própria comparação que é
feita entre um bicho e Fabiano: “vivia preso como um novilho amarrado ao mourão [...]” (p.
37), e a humanização da cachorra, que oferece a narrativa uma inversão de papéis: Um
homem “animalizado” e uma cachorra “humanizada” se encontram em condições iguais (por
conta da miséria e a seca) e diferente (por conta da condição natural de cada espécie). A
cachorra que era parte da família mostra então como a ligação entre animal e ser humano
estava estreita, não havia mais distinção entre eles: “Ela era como uma pessoa da família:
brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam”.
Estava então estabelecida claramente pelo autor, a condição da Família e da cachorra;
“seres e bichos” simultaneamente. A precariedade da linguagem, a ausência do discurso, a
incompreensão dos signos da língua e do próprio sistema político e social, a miséria e claro a
seca, foram fatores mais que significativos em Vidas Secas para que houvesse o naufrágio da
existência humana, a animalização e a desessencialização do ser humano. A ausência daquilo
que é permitido e dotado em todo ser, aquilo que distingue, capacita, socializa e permite a
oportunidade de se ser “Homem” que é a linguagem e o discurso tornou se vaga, seca, morta.
Essa possibilidade de vida que é proporcionada a partir da condição de comunicação e
linguagem é que se torna tão constante, presente e real que não só Graciliano como Clarice
Lispector trouxeram para a Literatura Brasileira essa discussão, “Ela falava, sim, mas era
extremamente muda” (LISPECTOR, 1988, p. 29), assim, eles promoveram com Fabiano e
Macabéia (personagem de A Hora da Estrela de Clarice Lispector) uma possibilidade de se
refletir sobre o poder da palavra, da linguagem, do discurso enfim, o próprio pensamento
humano que pode ser expressado pela grande “máquina” da língua.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 92-95.
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______. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 10-16.
CHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. São Paulo: Vozes, 1979.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1975.
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