Untitled

Transcrição

Untitled
DIREÇÃO DE ARTE
EDIÇÃO DE IMAGENS
Lázaro Paz Fanfa
ILUSTRAÇÕES
Felipe Eick Martins Vieira
Giusepe Fontanari
CAPA
Giusepe Fontanari
Turma de Direção de Arte I
Professor Rudinei Kopp
PUBLICIDADE
Turma de Campanha
Publicitária I
Professor Fábio Hansen
FOTOGRAFIA
Monitores do professor
Alexandre Borges
IMPRESSÃO
Graphoset
Ano 02, 1o semestre de 2007
Tiragem: 500 exemplares
REVISTA EXCEÇÃO
Produzida na disciplina de
Jornalismo Impresso III do
curso de Comunicação Social
da Universidade de Santa
Cruz do Sul.
Coordenadora do curso:
Mônica Pons
Chefe de departamento:
Rudinei Kopp
2007/01
UNISC - UNIVERSIDADE DE
SANTA CRUZ DO SUL
Av. Independência, 2293,
Bairro Universitário,
CEP:96815-900
Fone: (51) 3717-7300
Santa Cruz do Sul - RS
Os anônimos da “Big” casa
contam o que rola nos
bastidores da noite.
Facilitar o transporte e encurtar
distâncias, este era o objetivo da estrada,
mas ela também escreveu histórias.
Em busca de sossego ele decidiu se
despedir da civilização e viver sozinho.
Há 50 anos sua história é assim.
O dia em que o Periquito e o Galo
defenderam o mesmo dinstintivo.
De patricinha a moradora do
Bom Jesus. Essa foi a opção da
jornalista Melissa.
Contra todos os tabus da sociedade,
ele encarou o preconceito e realizou
seu sonho: mudar de sexo.
Entre uma cerveja e outra, a idéia
de construir um avião em Santa
Cruz parecia ser algo impossível.
Parecia.
Lado A: a profissão.
Lado B: o hobbye.
No interior a caça é liberada.
Com uma dança ou uma troca de
olhares, o resultado pode ser fatal.
Uma cidade ligada
subterraneamente. Os túneis de
Rio Pardo, lenda ou verdade?
Ele é um rapaz loiro, alegre e divertido
que gosta de orkut, msn e de ir a
bailes. Ah, e ele é padre também!
O tempo em que era preciso pular
do trem em movimento porque ele
não parava na estação.
É
tempo
de plantar e de
E
colher
is que chega às suas mãos o segundo número de sua revista
Exceção.
Mais que um exercício acadêmico,
o que você lerá nas próximas páginas
são demonstrações claras de que
a reportagem não apenas está viva
como vai muito bem obrigado.
O que soaria como um exagero
nestes dias de formatos repetitivos se
materializa na vitalidade jornalística de
cada um dos textos aqui dispostos, o
que também quer dizer que há vida
– e ela é fértil, porque gera frutos – já
a partir dos bancos acadêmicos. Mas
isso não chega a ser novidade, haja
vista a repercussão que a Exceção
alcançou quando de seu primeiro
número; e que, com certeza, há de
se ampliar a partir deste.
Para além de seu conteúdo; diferenciado, criativo, esta Exceção radicaliza
o diálogo interdisciplinar que estabelecemos ainda quando do primeiro
número. Coube às turmas capitaneadas pelo professor Rudinei Kopp,
da Publicidade e Propaganda (PP),
novamente, a confecção da capa,
que por sinal ficou muito bacana. O
que complicou por demais a escolha,
diga-se, na medida em que todas as
propostas resultaram em trabalhos
criativos e de qualidade, conforme
vocês mesmos puderam observar na
mostra exposta em nosso centro de
convivência recentemente.
O mesmo pode ser dito em relação
à inserção de anúncio publicitários,
desta vez sob a responsabilidade das
turmas do professor Fábio Hansen,
também da PP. Nós, da disciplina de
Impresso III, sentimo-nos honrados
com os esforços dispendidos não
apenas para criar os reclames, mas,
sobretudo, para fazê-los em consonância com o perfil editorial da Exceção e a partir de um diálogo muito
afinado. O resultado, claro, ficou bom.
Muito bom.
Outro passo importante para a consolidação deste projeto foi o diálogo
que mantivemos, desde o início, com
o pessoal do professor Alexandre
Borges, da fotografia, que trabalhou
junto com nossos repórteres, editores
e subeditores no sentido de garantir
as imagens fotográficas, sempre tão
necessárias a qualquer projeto jornalístico-editorial. Com isso, traduzimos
em aula uma realidade que se repete
no mercado e, sobretudo, aprendemos a trabalhar em equipe.
Com isso; com o exercício da interdisciplinaridade, pensamos ter
avançado um pouco mais em direção
a um caminho que comum a todos:
a construção do conhecimento, por
meio de sua materialização, que sugere novas perspectivas de futuro, cuja
fertilidade está fundamentalmente em
nossas mãos.
Uma boa leitura a todos.
Um dia o trem foi sinônimo
de progresso. Hoje, além das
estradas de ferro e de estações
completamente abandonadas,
restam as histórias. Histórias
como a de pessoas que
saltavam do trem em
movimento. “O trem não
parava e eu tinha que
descer”, afirma um
deles, como se fosse
a coisa mais natural
do mundo. E, de
certa forma, era.
Gelson Pereira
GELSON PEREIRA
João Pedro
“Eu vi que o trem não iria parar e não pensei duas vezes”
João Pedro volta
ao local onde
saltou do trem
há mais de 30
anos
E
ra domingo, dia 13 de
novembro de 1977, quase 1h
da madrugada. João Pedro
Pereira viajava num dos vagões do
trem que havia saído às 20h, ainda do
dia anterior, de Porto Alegre rumo à
fronteira oeste do estado.
O trem estava se aproximando de
Pederneiras, interior de Rio Pardo,
destino de João Pedro. Quando já era
possível avistar o prédio da estação,
ele se preparou para descer. Sentiu
a velocidade diminuir e colocou-se
junto à porta. Viu, em meio à escuridão total, uma luz se aproximando.
Era a luz que iluminava a plataforma.
De repente, notou que a velocidade
diminuiu, mas o trem não parou,
apenas pegou a licença no arco e
prosseguiu.
Quando percebeu já estava de
fronte à luz. Menos de um segundo
depois a claridade já havia ficado
para trás e ele estava mais uma vez
diante da escuridão. Olhando para
o lado, viu uma pessoa em cima da
plataforma, de quatro, refazendo-se
de uma queda. Alguém havia saltado. O trem começou a aumentar a
velocidade. E então, o que fazer? O
maquinista não tinha sido avisado
para parar em Pederneiras?
Se já não havia mais a possibilidade de desembarcar do modo convencional, a solução era um modo
alternativo, um plano B. Outras
vezes, na mesma estação, João Pedro
já havia descido do trem em
movimento. Saltar do trem?
Como, se a plataforma já
havia ficado para trás? Não
havia outra solução. Não
podia perder tempo. Quanto
mais o trem se distanciava,
pior ficava a situação.
Pensou nisso tudo, ou
melhor, nem pensou, pois isso
não precisava ser pensado.
Era lógico: ele precisava descer, o trem não parou.
E assim João Pedro saltou,
rumo ao nada. Pelo menos ele
não via nada. Mas certamente
alguma coisa havia na sua frente. Poderia ter a sorte de ser um gramado
macio que amortecesse a sua queda,
ou então uma pedra, que... Bom, não
precisa nem concluir. O que importa
é que ele saltou!
Hoje, voltando ao local onde tudo
aconteceu, ele diz ser impossível explicar em palavras o que sentiu, foi
rápido demais. Por sorte não era uma
pedra que havia na sua frente. Mas
naquelas circunstâncias, pela velocidade que o trem já havia alcançado,
de nada adiantava um gramado macio. Quando tocou no chão a lei da
inércia fez seu trabalho. “Todo corpo
em movimento tende a permanecer
em movimento.” E assim aconteceu.
A idéia era cair de pé, mas a velocidade que estava lhe desequilibrou
e ele foi de encontro ao solo com o
lado direito do corpo.
Na hora sentiu que tinha se ferido, mas ficou feliz por estar vivo e
acreditou ser possível caminhar os
10 Km até a casa dos pais. Na metade
Urbano Machado
“O cara tinha que se largar na sorte”
OS SALTADORES – João Pedro
não foi o único a pular de um trem
em movimento. A história dos saltadores é uma, dentre as inúmeras
escondidas por trás dos 100 anos em
que o trem de passageiros cortou o
pampa gaúcho.
Nas noites de sexta-feira e sábado,
o trem saía de Porto Alegre lotado
de trabalhadores rumo ao interior
do estado. Eram, na maioria, jovens
solteiros que largaram a enxada e o
arado e partiram para cidade grande
sonhando com dias melhores. Quando sobrava um tempo, em meio a
inúmeras horas extras, nos finais
de semana, eles aproveitavam para
visitar a família.
Viajar de ônibus não era possível.
Primeiro pelo alto custo da passagem. Segundo, porque não havia
linhas para algumas localidades do
interior, já que saíam do trabalho no final da tarde. Esperar
para o outro dia, pela manhã,
não valia a pena, pois o tempo
que passariam junto à família
não compensaria a locomoção e
o gasto com a passagem. Assim,
aproveitavam o “Trem Noturno”, como era chamado o trem
que saía às 20h de Porto Alegre,
para viajar durante a madrugada
e chegar ao destino já no amanhecer.
Contudo, esse trem noturno
não parava em todas as estações.
Onde havia alguma concentração urbana um pouco maior, sempre
havia alguém para embarcar ou
desembarcar. Já em estações mais
TÉCNICAS – Quando o trem se
aproximava da estação ele diminuía a
velocidade para pegar a licença. Essa
licença consistia num arco, feito com
uma espécie de cipó, onde era preso
um papel, que o chefe-da-estação erguia em cima da plataforma. Dentro
da locomotiva o maquinista mirava o
arco, enfiava o braço e levava preso
o papel contendo as informações necessárias para prosseguir a viagem.
Esse era o momento que os saltadores aproveitavam para pular.
Porém, alguns fatores devem ser
levados em conta. Em primeiro luGELSON PEREIRA
do caminho foi vencido pela dor e
precisou pedir ajuda numa casa da
beira na estrada.
Resultado da aventura: duas costelas quebradas e uma hemorragia
interna.
isoladas, como no caso de Pederneiras, não era freqüente a presença
de passageiros, ainda mais à noite.
Assim, para não atrasar mais uma
viagem que já era longa, de quatro
a cinco horas até Rio Pardo, o trem
só parava nas estações de maior
movimento.
Para muitos desses trabalhadores, a estação mais próxima do seu
destino era justamente uma que não
estava dentre as paradas do trem.
Desembarcar na estação principal de
cada cidade não era possível, porque
ônibus para as áreas rurais também
não rodavam durante a madrugada.
Portanto, a única solução era descer
mesmo sem o trem parar.
Destruição na
antiga Estação de
Pederneiras
LÁZARO FANFA
João Pedro
“Na época eu não tinha consciência do risco que corria”
Estação de Rio Pardo:
o prédio reformado
permanece sem
ocupação
gões, tomar o impulso no momento
certo, e ter força para segurar as
barras de ferro presentes próximo
às portas.
Urbano Machado fala com naturalidade sobre o risco de saltar de um
trem em movimento: “O cara tinha
que se largar na sorte”. Dos inúmeros saltos da sua vida, para fora ou
para dentro do trem, ele conta que
caiu apenas uma vez, na estação de
Professor Parreira. Segundo ele foi
por falta de atenção e não chegou a
se ferir.
Falta de atenção. Esse era o principal motivo dos acidentes segundo
os próprios saltadores. O excesso
de confiança também atrapalhava,
pois levava à imprudência. Às vezes,
muitos queriam saltar e a plataforma
era pequena para todos. A inércia,
ARQUIVO HISTÓRICO DE RIO PARDO
gar, isso acontecia à noite,
em lugares onde não havia
iluminação. A única forma
de se guiar era uma luz
posicionada em cima da
plataforma, a mesma luz
que João Pedro viu passar
diante de si e sentiu que
havia alguma coisa errada.
Quando chegasse em frente
à claridade era o momento
do salto. Em segundo lugar, o trem
não parava por completo, apenas
diminuía a velocidade para em torno
de 20 Km/h, considerável para os
propósitos dos saltadores.
Não apenas os passageiros saltavam dos trens em movimento.
Os próprios trabalhadores da linha
férrea e das estações eram os que
mais usavam desse método. Urbano
Machado, que trabalhou durante décadas na RFFSA, estatal proprietária
das estradas férreas gaúchas até 1996,
conta que os funcionários saltavam
porque estavam sempre transitando
entre as estações.
Para eles não bastava descer do
trem, eles também subiam. Isso
mesmo! Subir em um trem em movimento. Segundo Urbano, era necessário se concentrar num dos va-
Até a Estação de Rio
Pardo foi atingida
pela famosa
enchente de 1941
como no caso de João Pedro, era o
principal inimigo. Urbano diz ainda
que é mais perigoso saltar para cima
da plataforma, pois há o risco de
desequilibrar-se, cair para trás e ser
atingido pelos vagões.
A primeira estrada de ferro do Brasil foi empreendida pelo gaúcho Irineu
Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, em 1854. No Rio Grande do
Sul a linha férrea só chegou em 1874 e foi construída ligando Porto
Alegre e São Leopoldo, com pouco mais de 30 Km de extensão.
O primeiro trecho da estrada de ferro Porto Alegre - Uruguaiana foi
inaugurada em 1883 e chegava apenas até Cachoeira do Sul. Mais
tarde, a linha atingiria Santa Maria, que se tornou depois o eixo ferroviário do estado, pois era ali o encontro das linhas férreas construídas
a partir do norte e do sul. Com o tempo foram surgindo pequenos
ramais, como o que ligava Rio Pardo a Santa Cruz do Sul, cidade em
ascensão econômica no início do século 20.
A última viagem de um trem de passageiros no estado ocorreu em
1996 Hoje as linhas férreas gaúchas e brasileiras estão sobre o poder
de multinacionais. No caso do estado, a ALL (América Latina Logística)
é proprietária de quase toda a malha ferroviária e trabalha apenas
com trens de carga.
Grande parte das antigas estações está abandonada. Em alguns
casos, como Santa Cruz e Rio Pardo, os prédios foram restaurados por
iniciativa da comunidade e do poder público.
GELSON PEREIRA
RECORDAÇÃO – Hoje, um
ônibus não demora mais do que
duas horas para fazer o trajeto Porto Alegre - Rio Pardo. Trinta anos
se passaram desde que João Pedro
conheceu de perto a sarjeta de uma
linha férrea do interior gaúcho. Há
mais de dez anos o último vagão
transportou passageiros no estado.
Ao que parece, nunca mais alguém
precisou pular de um trem em movimento.
O acidente de João Pedro não saiu
nos jornais. Talvez porque não tenha
valor noticioso, o que é verdade. Mas
é de inúmeros desses pequenos fatos
que é construída a história dos tens
de passageiros. Trens que, por mais
de um século, cruzaram planícies e
serras, atravessando o Rio Grande de
ponta a ponta.
Os saltos continuam vivos apenas
na memória dos antigos saltadores.
Todos relembram com saudade as
aventuras da juventude. Quanto
a contar sua história em uma reportagem, João Pedro só faz uma
“exigência”: “Não esquece de colocar
que era muito divertido a viagem de
trem. Eu gostava!”
150 anos
Hoje restam apenas
os trens de carga
transitando na linha
férrea Porto AlegreUruguaiana
Ele se diz diferente. Na verdade,
todos são diferentes, segundo
ele. A sua diferença é ser igual a
maioria dos jovens. É ter orkut,
msn, google talk, gostar de ir à
bailes e de praticar
esportes. Ele é o
padre José Renato
Back, o Zé. Um rapaz
de 43 anos, loiro,
alegre, divertido,
aventureiro e
comunicativo. Mas há
muitas outras coisas
além da fé, debaixo
da batina deste
padre...
Silvana Sehnem
Por que você escolheu ser padre?
Não se trata de escolher, é vocação.
Acho que toda pessoa quer e escolhe a felicidade. Então se eu fosse
dizer, o que me determinou para
ser padre, não sei, as coisas foram se
encaminhando pra isso. Tanto é que,
se eu descobrisse, ou se eu descobrir
agora que eu não me sinto feliz
como padre, eu não teria problema
em largar.
E quantos anos tinha quando decidiu ser padre?
Eu estou decidindo hoje.
eu não posso refazer o caminho, o
caminho é um só. Ai eu parei em
Passo do Sobrado um ano, e ali sim
eu descobri que eu queria ser padre.
Quando eu fui pro estágio, a maioria
me dizia o seguinte: “O Zé vai pro
estágio, é uma forma indireta de
dizer que ele quer sair”.
Por que eles achavam isso?
Sei lá, porque quando você está tão
longe do seminário, faltando três
anos e meio pra ser padre, ai você
para um ano, e sai. E aí eles (seminaristas) pensaram que eu iria parar
um ano, porque era uma maneira
mais amena pra sair sem dar aquele
choque. Mas pra mim foi muito
tranqüilo, podia até ser que no fim eu
pudesse sair, mas não aconteceu.
Quando você disse “mãe, pai, eu
quero ser padre”?
Não, ah, acho que são decisões que
a gente vai amadurecendo. Tinha
momentos na vida que eu até pensava: “Opa acho que não
Qual a profissão que
é por ai”, mas depois
você seguiria se não
Se você olhar
retomava as decisões.
fosse padre? Tem
Lembro que eu queria pras gurias, você alguma paixão?
ser padre pra andar de é mulherengo, se Ah eu tenho sim, eu
jipe, porque lá onde eu
assim várias painão olhar, você é tenho
morava, em Boa Vista,
xões. Se eu não fosse
cheio
o nosso padre andava
padre, por exemplo, eu
de jipe, e nós nunca
gosto muito e já trabaandávamos de carro, sempre só à
lhei com educação, fui professor.
pé e, a única forma, eu pensava de
A psicologia me fascina e a área da
eu andar de carro era sendo padre.
saúde também. Quando eu tenho
Então é evidente se hoje eu olho,
tempo eu estou no hospital.
não teria nenhum fundamento, mas
de repente era uma forma que Deus
Mas fazendo o quê?
usou para me dizer. Mas depois ele
Conversando com os doentes, não
foi substituindo, porque a gente não
como médico, mas pra ser solidário.
pode ficar nestas motivações ingênuAgora a comunicação evidente que
as, infantis.
eu gosto. Talvez também por que
nossa função como padres a gente
E quando entrou na parte dos estrabalha em muitas áreas, nós somos
tudos, na parte séria mesmo, você
pessoas públicas, então tu é médico,
nunca pensou em desistir?
tu é professor, tu é comunicador, tu
Pensei, tanto é que quando eu estava
é conselheiro, tu é psicólogo, tu é
no 1º ano da Faculdade de Teologia
orientador.
eu parei um ano, claro, motivado
também pela questão da saúde.
Você se acha um padre diferente
Existem várias formas de Deus
dos outros?
manifestar se estamos no caminho
Eu acho que todos são diferentes, eu
certo. Se eu acerto, eu sou feliz, se
acho que não existem pessoas iguais,
eu não descubro, eu perdi a chance,
e todos são especiais. Cada um tem
porque eu não tenho duas vidas,
coisas diferentes.
1
E quais são as suas diferenças?
Depende, acho que o tipo de trabalho traz algumas caracterizações
diferentes. Eu não sei, eu não me
vejo tão diferente, agora acho que
o meu trabalho com a juventude
também faz com que traz algumas
exigências.
2
Já sabe quase de tudo?
Não, tudo não, mas a gente vai
aprendendo, quer dizer, tu navegar
nisso ali, é um mundo que é muito,
não digo complicado, mas é um
mundo que a cada dia tu vai aprendendo, evoluindo...
As pessoas o buscam na internet
pra dar conselhos?
Você está na internet há quanto
Não, poderia até ser, mas nunca
tempo?
aconteceu. (risos)
Desde que eu tenho computador,
não é muito tempo, agora fazem dois
Imagina começar a
anos que eu comprei o
Quando criança fazer confissões pela
computador.
internet.
eu queria ser
(risos) Não, mas uma
Fez algum curso?
padre
para
poder
orientação poderia ser,
Não, eu nunca fiz curso.
Aliás, como em tudo. andar de jipe, já não teria problema..
mas o que aconteEu nunca fiz curso de
que nunca tinha Não,
ce
muito
é as reuniões
violão. Aprendi ao ver
andado
de
carro
de um grupo de estudo,
os outros tocar. Meu
no qual, através da injeito é assim, fazer as
ternet nós fizemos uma
coisas por conta, e assim foi no comsíntese dos cursos e até por causa
putador também.
disso vai sair agora um livro.
Mas você aprendeu a lidar com
E na internet você não recebeu
orkut, msn como? Por meio de
ainda nenhuma cantada?
parentes?
(Neste momento, pela primeira vez
Não, isto eu aprendi agora em deele fica ruborizado). Não, bom, não,
zembro, eu nem sabia, como. Veio
vem mensagens. Mas isto se vem, é
um colega que fez o curso de jovens
vírus. (risos)
comigo, e ele me apresentou. Nem
sabia como é que funcionava. Aí ele
Ah, então quer dizer que nenhuma
me disse: “Tu quer que instale?”.
mulher tentou passar uma
Daí eu disse: “Instala ali, como é que
cantada?
funciona?”. Aí eu falei com o meu
Não, isto não. Cantada não...
sobrinho, ele disse: “Não, é assim...
daí tu vai adicionando, vai adicioNem na igreja?
nando, e tal”. E ai eu fui... mexe aqui,
Não sei, cantada isso o pessoal canta.
mexe ali. Aí foi indo.
3
(risos) Isto é coisa pequena, não me
esquento.
E você nunca se apaixonou por
ninguém?
Ah, sim, muito já. Eu vivo apaixonado.
Na época que era leigo?
Sim, graças a Deus..
E não deu certo o namoro...
Não, namorar não, mas paixões eu
tive..
Nunca namorou?
Não, mas o que você entende por
namoro? Aí que tá, a gente tem que
discernir a função do namoro.
Mas antes de entrar pro seminário?
Mas é que eu entrei com 13 anos pro
seminário.
E nessa época você nunca se apaixonou por alguma mulher?
Não, gostar sim. Eu até gostava. E
tinha até gente que gostava de mim,
outros talvez que eu nem sabia, pode
4
ser. Mas a gente também não quer
sofrer de graça. Eu tive momentos
assim que tava em dificuldade, mas
eu nunca estive indeciso quanto a
ser padre.
E essas dificuldades envolviam
outras pessoas?
Não nesse sentido. Mas é que às vezes tu tá desanimado, tu tá afim de
chutar o balde mesmo.
Não é uma profissão muito sozinha,
a de padre?
Sim, só que eu sempre digo que tem
pessoas que fogem da multidão pra ir
pra solidão. Aí se vê que a solução é a
felicidade. Mas, às vezes também em
busca da felicidade, as pessoas fazem
de tudo, largam família, largam casa,
largam carro, abandonam tudo.
Já que mora sozinho, você não
sente falta de ter alguém para
conversar?
Isto certamente é uma das carências
que a gente sente. Mas com essa
minha vida agitada, o momento
FOTO 1 - Tá me olhando por quê??? Eu tbém tô.... Sentadinho na casa de
um amigo lá nas “Alemanhas”.
FOTO 2 - Que tal o traje que os colombianos trouxeram!!! E o sorriso do
Camilo, da Colômbia...
FOTO 3 - Essa é a Mamãe, que gerou 15 filhos (13 ainda vivos). Obrigado
Dª Suzanna
FOTO 4 - Eu, entre 1 jovem da Itália e da Irlanda, durante a Jornada
Mundial da Juventude na Alemanha/2005
que eu consigo ficar sozinho, é um
momento único, que todo mundo
precisa, que é fazer as tuas coisas e
ficar no seu cantinho. Agora, mas a
bem da verdade a gente sente, sente
sim, tem momentos nessas datas especiais em que as famílias se reúnem,
que a gente sente mais.
sozinho, você não vai, sozinho você
não vai, porque não se lembra.
Mas quando você lembra, você vai
com amigos?
Às vezes, que nem no ano passado
na Oktoberfest eu fui praticamente
todos os dias.
Há muitas discussões que abordam
Você aprendeu a dançar como?
a questão do casamento entre reliDisseram-me que você dança muito
giosos. Qual é a sua opinião?
bem...
Eu acho que deveria de ser repenNão sei. Mas eu gosto de dançar,
sada essa questão e deixar uma
dancei muito já. Mas a gente aprende
alternativa. Mas no inicio da Igreja
na prática, né. É que eu danço muito,
não foi sempre assim como é agora.
desde o tempo do seminário eu fui
Chegou o momento
muito em festas, em
em que a Igreja penEu já gostei de baile, desses de comusou que pastoralmente
nidade. Mas que nem
mulher sim, e
seria mais convenienem Santa Clara, que
te os padres viverem
tinha até gente tem o famoso Carnaval
no celibato. Eu acho
com 16 mil pessoas. Eu
que gostava
que eu não sou radical
ia lá, porque lá estavam
de
mim
nisso, minha opinião
todas as pessoas que iam
pessoal, não como um
na missa. Então porque
padre mas como pessoa, eu acho que
que eu não iria? Eu ia lá como padre,
poderia ser repensado. Eu sempre
e eles me viam como padre. Eu fui
acho que poderia se oferecer essa
e me diverti também, pronto. Acho
alternativa.
que muitas vezes nós nos retiramos,
não ocupamos o nosso lugar.
Você teria esposa, se fosse autorizado, ou continuaria solteiro?
Há gente que condena esse seu lado
É que quando eu fiquei padre eu
de ir em festas?
sabia que não poderia casar. Agora
No dia que eu fiquei padre a minha
eu não sei se casaria, poderia ser,
irmã leu um poema, e pra mim
ou não. Porque hoje em dia, tantos
aquilo foi um marco, ela disse assim:
leigos que não são padres também
“Lembre, se você for numa festa eles
não casam. Tantos optam pela vida
vão reclamar que você vai. Se você
de solteiro e que poderiam casar.
não for eles vão reclamar que você
Então os padres também talvez não
não vai. Se você dançar, eles vão dicasariam.
zer que você é dançarino e festeiro.
Agora se você não dançar, eles vão
Voltando ao assunto, o que você faz
reclamar que você é exibido. Se você
nas horas de folga?
olhar pras gurias, pras mulheres eles
Eu gostava muito de futebol, mas
vão dizer que você é mulherengo. Se
por causa da coluna escolhi agora o
não olhar eles vão dizer que você é
vôlei, então duas ou três vezes por
cheio. Seja Zé Renato como Deus te
semana. E, é claro, eu gosto muito
fez e seja Padre como Deus hoje te
de ir em festa, então eu vou, aí um
consagrou, o resto é o que as pessoas
pouco essa dificuldade pelo fato de
falam.” Porque sempre vai haver
estar sozinho, porque se você está
gente que vai falar.
Letícia Pacheco
Rio Pardo, “Cidade
Histórica”. Mais do que
isso, uma cidade cheia
de histórias. Lendas,
mitos, assombrações,
maldições, promessas, o
imaginário e o mistério
pairam pela cidade. Os
túneis de Rio Pardo
são apenas mais uma
lenda perdida entre
tantas outras? Essa é
uma das histórias mais
conhecidas e intrigantes
para moradores e
historiadores da cidade.
M
isteriosos túneis que ligam
diversos pontos da
cidade. Essa é uma das
lendas de Rio Pardo. Lenda? Ou
história escondida pelo tempo? Há
quem garanta sua existência. Há
quem afirme sua improbabilidade.
Quem está com a razão? Remover
o que cobre essa história, esse é
meu objetivo. Trazer à luz o que
por muito tempo permaneceu nas
profundezas dos porões e em sombrias lembranças quase esquecidas.
Primeiro passo: conhecer o terreno.
Hora de ir ao trabalho.
Sílvia Barros, professora de História. Mais do que isso, ela respira
e convive com a história. Uma das
poucas riopardenses que não se limitaram a apenas ouvir e divulgar
uma lenda. Ela foi além, pesquisou,
vasculhou porões de Igrejas, apesar
do pânico de aranhas. Foi em busca
de respostas concretas. Ela possuía as
ferramentas que eu necessitava para
prosseguir minha missão.
Primeira pedra: o medo. Quando
cheguei a casa de Sílvia, hesitei, des-
confiei, desacreditei de que
houvesse alguém capaz de
viver ali. Uma grande casa
antiga, intrigante e sombria.
Mas vivia, ou melhor, vive.
Silvia é uma mulher decidida, de coragem, embora
não durma após assistir um
filme trash dos mais baratos.
Sempre pronta para uma
conversa com quem quer
que tenha disposição para
ouvi-la e um bom papo
para acompanhá-la. Foi
numa dessas conversas, em meio a
livros, quadros antigos e inúmeras
fotos que descobri grande parte da
história de Rio Pardo. Eu, que me
julgava amante de História, percebi
que nada sei.
Uma tampa difícil de remover.
Os argumentos levantados por Sílvia para a não existência dos túneis
são muitos: o relevo da cidade, que
dificultaria as escavações, a falta de
vestígios, a precariedade de ferramentas da época e por fim, a falta
de necessidade de construir-se um
túnel. Um sonho de infância de
Sílvia: a tampa fica mais pesada.
“Sonhava que embaixo do porão da
minha casa havia uma outra casa
e eu abria o alçapão e entrava por
esses caminhos, e hoje voltei a ter
este sonho. Acredito que túneis são
os porões que não encontramos em
nossas casas.” Silvia diz acreditar
que esse mistério, assim como tantos
outros, faz parte de uma necessidade
das pessoas de criarem histórias para
tudo. “São o nosso imaginário”.
Finalmente retiro a primeira
pedra: encontro um pequeno facho
de luz. Comento com Sílvia sobre o
homem que afirma ter entrado em
Sílvia Barros
“O homem quando não sabe explicar um fato ele cria histórias”
LÁZARO FANFA
Colégio Auxiliadora,
o possível início do
túnel
LETÍCIA PACHECO
um túnel. Os olhos de Sílvia vacilam.
O olhar fixo, decidido, não é mais o
mesmo. Ela solta o cigarro sobre a
poltrona. Olha para o lado. Respira,
pensa. Seus olhos agora brilham. E
finalmente consegue falar: “Improváveis, mas não impossíveis. Quem
sabe você encontre o que eu sempre
procurei?”, completa ela. Não, ela já
não tem mais certeza.
Hora de partir em busca de novas
pistas. O esconderijo. Onde encontrar o único homem que relata ter
conhecido os túneis? Buscas, novas
pedras, solo rígido demais. Sumira
sem vestígios. Parecia fugir. A luz
ressurge. Surpresas fazem parte da
vida de Beromildt Rodrigues de Lara.
Surge, na farmácia onde trabalho, uma figura inconfundível:
chapéu largo, cabelos grisalhos,
inúmeros papéis embaixo do
braço, procurando um produto
para empalhamento de animais. Não acreditei. Impossível
errar. Beromildt é o único que
ainda preserva esse hábito na
cidade.
Em meio as suas pastas de
arquivos históricos, que exibe orgulhoso, ele fala sobre muitas histórias.
O brilho dos olhos, os gestos exagerados, as falas teatrais demonstram
a emoção que ele sente ao reviver
aquelas histórias. O pipeiro da cidade, o homem mais rico que ficou
mais pobre, os tesouros escondidos.
A memória não falha. E se falha, a
criatividade supera qualquer esquecimento.
A tampa se abre: iniciam-se os
primeiros passos. “Quando eu era garoto me escondia no túnel junto com
meus amigos, ele saia do portão do
colégio e ia dar lá na São Francisco.
Era por onde os militares passavam
para ver o rio, para se proteger dos
LÁZARO FANFA
Sílvia Barros
“Toda lenda de Rio Pardo tem uma história real em sua origem”
Sílvia em seu
lugar preferido
na casa
O início: a
surpreendente
casa de Sílvia
inimigos. Como podem dizer que
não existe túnel, se ele sempre esteve lá para todo mundo ver e entrar
quando quisesse?”.
O caminho é escuro. “Tem gente
que critica diz que é história, mas
como pode se eles também entravam
no túnel quando eram crianças?”.
As tochas de pouco serviam, mas já
era possível ver algo. “Tinha quase
um metro e meio de altura por um
metro de largura, era estreito, todo
escorado com madeiras e pedras, mas
muitos morcegos faziam ninho lá,
isso dificultava a entrada. Percorri
uns quinze metros, mas era escuro e sujo demais”. De volta à luz.
Embora não existam vestígios que
comprovem sua história, a certeza
com que ele afirma isso, faz crer que
na década de 40 alguma coisa existia
naquele lugar. A tampa se fecha.
Em cada esquina um sussurro de
histórias do passado recontadas pela
imaginação dos presentes. Essa é a
cidade de Rio Pardo.
OUTROS TÚNEIS – Assim
como em Rio Pardo, muitas outras
cidades do país possuem lendas sobre
túneis. Esses geralmente estão ligados a antigos postos de militares, ou
possuem alguma ligação com fugas
e guerras.
Blumenau(SC): Existe na cidade
a história de um túnel que ligaria o
Colégio Sagrada Família, o Colégio
Pedro II, o Bom Jesus Santo Antônio
(antiga Escola Alemã Franciscana),
o Parque São Francisco e o Teatro
Carlos Gomes. Uma das hipóteses
da existência dos túneis é por causa
da 2ª guerra mundial. Como os habitantes de Blumenau eram todos
alemães, seria um bom lugar para
refugiados da guerra. Até hoje o
mistério é comentado pelos jovens,
assim como uma suposta vinda de
Hitler à Blumenau, caso fosse necessária sua fuga da Alemanha.
Porto Alegre: Existe no Palácio
Piratini dois túneis com cerca de
dois metros de altura e um metro
de largura.. Mesmo assim, o imaginário deu versões inusitadas para a
Além da entrada
Muitos riopardenses cresceram ouvindo histórias sobre um suposto
túnel que ligaria as igrejas da cidade, embora ninguém afirme ao
certo quais igrejas. A lenda perpassa décadas e hoje continua viva,
não só entre os antigos moradores, pois muitos jovens conhecem e
muitos acreditam na lenda, embora nunca tenham pesquisado nada
sobre o tema.
São inúmeras as versões de trajetos: Igreja Matriz à São Francisco,
Igreja dos Passos à São Francisco. Forte Jesus Maria José à Igreja
Matriz e até mesmo Igreja dos Passos, São Francisco, Matriz e Forte
Jesus Maria José. As explicações para existência são muitas: esconder
tesouros jesuítas, embora esses nunca tenham chegado a cidade e
passassem por tempos de miséria, esconderijo de militares, fugas,
encontros amorosos, entre outros.
Embora escavações, construções, calçamentos, já tenham sido feitos e
nunca tenha se encontrado vestígios que comprovem que os túneis
existem ou existiram um dia, a lenda persiste.
Beromildt Lara
“Quando eu era garoto me escondi no túnel com meus amigos”
LETÍCIA PACHECO
Contar histórias
é a especialidade
de Beromildt
LÁZARO FANFA
finalidade e extensão desses túneis.
O folclore que envolve as duas
construções afirma que existiriam
ligações desses subterrâneos com a
Catedral. Durante a Campanha da
Legalidade, o Piratini foi utilizado
por Brizola, líder do movimento, e
esses canais serviriam para o abastecimento de alimentos e possibilitariam uma fuga ao político. Ainda
assim, até hoje, só foi comprovada
a existência dos túneis dentro do
Palácio e esses não passariam de cem
metros de extensão.
Santa Cruz do Sul: Conta a história que existe uma ligação subterrânea entre a Faculdade Dom Alberto
(antigo Colégio Sagrado Coração de
Jesus) a antigos quartos na Catedral
que serviam como alojamento para
os padres antigamente. Este “túnel”
estaria localizado em uma área que
seria um porão da escola. Também
existem histórias de um túnel que
ligaria o Sagrado Coração direto ao
Colégio São Luís. No São Luís esse
túnel estaria em baixo do palco do
auditório.
Santo Amaro: Distrito pertencente a General Câmara, no Vale do Rio
Pardo. Diz a lenda que embaixo da
Igreja Matriz passaria um túnel, esse
seguiria até o Rio Taquari. Segundo
os moradores, teria sido usado pelos escravos para fugas e existiriam
esqueletos em toda a extensão do
túnel.
Igreja São
Francisco: final
do trajeto
Final de semana é período de caça nas
colônias. Entre estradas dignas de um rali,
os predadores se espalham pelos salões do
interior, atraídos pela fartura das mulheres
locais. Cerveja, automóvel, dança, troca de
olhares e até drogas servem como auxílio
para derrubar a vítima. A atração sexual
dá o tom dessa empreitada embalada
pelos sucessos de Cesar Menotti,
San Marino, Brilhasom e outros.
Nessa reportagem, a trajetória,
os métodos e as aventuras
dos caçadores de bailão.
Guilherme Mazui
Entre um bote e
outro, o intervalo
do lanche
é só aproveitar.” Esse é o diferencial
desse tipo de festa.
Para os homens, balada sem o
sexo oposto não serve. Caçando
apenas pelo prazer do ato, os machos passam por estradas de chão,
chegam a minifúndios e entram
nos pavilhões perdidos pelas zonas
rurais das cidades. No encalço deles,
migram junto as fêmeas da cidade.
“A gente entra no baile atrás de um
ficante. Caso não dê certo, vale ao
menos as risadas”, afirma Gabriela
Vasconcellos.
Sob o assoalho repleto de frestas,
entre casais dançando e homens
MORGANA ROHDE
E
xiste uma modalidade de caça
que pouca gente conhece: os
caçadores de bailão. Como
toda a caça, essa especialidade exige
suas armas e técnicas.
Para ser letal em um bailão, é
preciso no mínimo saber dançar.
Junto, o guerreiro deve empunhar
sua garrafa de cerveja, ter as fichas
guardadas na cartucheira e a chave
do carro sempre a mão. Pronto. Depois, dependerá apenas da perícia do
indivíduo. Com talento, até o final
da noite os bancos do seu automóvel
poderão estar reclinados.
Palavras ditas por um especialista nesse assunto, chamado
por seus amigos de “artilheiro
do amor”. Vestindo Reef,
Billabong, Quicksilver, Júlio
Cesar Drescher, 19 anos, troca
todos os finais de semana o ar
magrão de Porto Alegre, pelo
interiorano da sua Candelária.
Faminto por um contato com
as fêmeas, ele não hesita: “Se
vejo que a noite não terá mulher, vou direto para o bailão.
Lá elas vão cheias do veneno,
Júlio César Drescher
“Se vejo que a noite não terá mulher, vou direto para o bailão”
GUILHERME MAZUI
Cerveja: arma básica
no kit de sobrevivência
de qualquer caçador
GUILHERME MAZUI
Gabriela Vasconcellos
“A gente entra no baile atrás de um ficante. Caso não dê certo, vale as risadas”
O bom caçador
não falha: mata
sempre
brigando, começa o real processo do
bote. Eles com os olhos bem atentos,
sorrateiros, escolhendo as vítimas e
analisando o momento do abate. As
interioranas ficam soltas, monitoradas de perto pelas cosmopolitas.
Ainda estudando o espaço, os
homens tomam baldes de cerveja
no gargalo. Copo é perfumaria. Três
garrafas por R$ 10,00. Caso o álcool tire a mobilidade do predador,
uma pratada de lingüiça cozida, um
pedaço possante de cuca ou alguns
pastéis fritos, servidos no refeitório,
devolvem a perícia dos caçadores.
Primeiro eles miram as suas
vizinhas de rua. “Se tu tiveres um
filtro fica difícil de pegar mulher em
bailão. Então se tenta as da cidade
que estão por lá. Se não der, o nível
de exigência diminui conforme a
bebedeira cresce. Daí é hora de chegar nas pratas da casa”, explica Júlio.
Nessa hora, um velho ditado tem a
ordem alterada, ganhando um novo
sentido: antes mal acompanhado do
que sozinho.
EMBALOS – As bandas nos bailões possuem até fã-clubes. Portanto,
os músicos têm garantia de mesa
farta no final da noite. Os demais
seguem na luta, mas auxiliados pelo
pessoal da trilha sonora. O momento
de encantar a presa é a dança. “No
interior, a paquera rola durante
uma volta no salão. Você fica mais
próxima da pessoa, tem um contato
mais forte”, conta Luana Rodrigues,
21 anos, universitária, apreciadora
de Juanes e Marisa Monte. Essa
bailada facilita a definição do alvo,
afirma Julio.
Após ter a vítima em potencial
bem definida, ele explica que o caçador de bailão aponta suas armas e
põe a estratégia em prática. Alguns
se aproximam e dopam a presa. As
interioranas ficam pela cerveja, já
as cosmopolitas se apegam a drogas
como maconha e cocaína. Dependendo do alvo, a técnica tem êxito
garantido. Outros predadores são
mais brutos, atacam logo. Júlio prefere o observar, cercar e abater em
um momento de descuido. “Sendo
pé de valsa é meio caminho até a
taça (sexo). Só daí é preciso estar por
dentro dos sucessos do momento,
15 segundos
A falta de timidez das moças do interior cativa o pessoal da cidade.
Saber escolher a presa certa diferencia o bom do mau caçador. Júlio
explica. “No bailão, a mulherada ataca sem vergonha nenhuma. Então,
tem que cuidar com a turma do local, que não curte ver os “forasteiros”
levando as fêmeas deles.”
Por isso ele aconselha cuidado. Se ela estiver acompanhada, saia
de perto. Se estiver sendo cuidada por um cara da casa, mantenha
distância. Do contrário, você poderá estar no meio do evento chamado
“15 segundos mágicos”.
“Cerca de 90% das brigas acontecem no final da festa, e por causa
de mulher! São os 15 segundos mágicos, quando a briga começa
de vez. É lindo de ver – se tu não tá no meio. É aquele tumulto no
centro, seguranças correndo, derrubando gente, é mulher gritando,
homens urrando, até a banda pára. São 15 segundos. E depois, tudo
volta ao normal.”
OS CAÇADORES – Na savana,
muitos tipos de caçadores dividem
o mesmo espaço. Assim como nos
bailões. Eis alguns dos exemplares
encontrados em maior abundância
na natureza.
O observador: este se inspira na
classe dos felinos. Além de observar,
Uma dança bem
sucedida pode
valer a noite
Júlio César Drescher
“No interior é na raça. É jogo de Gauchão na chuva e no barro”
estuda bem a presa antes do bote. Chega
de mansinho, lança charme, oferece cerveja, dá as costas, volta, faz seu jogo de
sedução. Conforme a abertura da vítima,
dá o bote. Nessa hora, o golpe é violento.
Aí é só apanhar o corpo.
O predador: não possui um vasto repertório de métodos, simplesmente ataca.
Muitas vezes ganha pela insistência. São
tantos tiros, que em algum momento
ele acerta. A qualidade da carne abatida
é discutível, mas a fome é tamanha que
vale qualquer carcaça.
O falador: esse mal aprendeu a segurar
a espingarda e já se considera atirador
profissional. Diz que coleciona a pele das
presas em uma sala especial da sua casa.
No bailão canta, ri, dança com todas, mas
dificilmente tem êxito na missão. Às vezes, compra a carne no açougue e vende
a história de uma caçada bem sucedida.
O perdido: tem a mesma dificuldade
do exemplar citado acima, porém é humilde. Admite ser um desastre na arte
de caçar. Assim reúne colaboradores em
potencial, que, em atos de generosidade,
seguram a presa para ele apenas ter o
prazer de abater.
MORGANA ROHDE
como “Os Atuais”, “César Menotti
e Fabiano”, “San Marino”. Assim
você se aproxima e consegue aquela
brecha que te levará a outra mais
carnuda.” Na busca dessa brecha, um
dos obstáculos é a claridade.
A penumbra das baladas da cidade não existe no bailão. Nada de
canhões de laser, gelo seco ou luzes
que tonteiam. “No interior é na raça.
É jogo de Gauchão na chuva e no
barro”, brinca o rapaz.
Como em toda caçada, aparecem
presas mais interessantes ao longo
da noite. São as meninas da cidade,
tentando ganhar terreno. Elas também são caçadoras. “A gente vai no
bailão pra se divertir, rir, mas ataca
os guris da cidade”, relata Natália
Machado, 21 anos. Mais discretas,
elas optam pela técnica do encontro
marcado. “Combinamos com o guri
de nos acharmos lá. Como a energia
do local é forte, facilita as coisas.”
Quando essa estratégia falha, o jeito
é ficar por perto. “Dar umas olhadas,
marcar território, sempre é válido.
Você demonstra estar interessada,
mas caso não role, o jeito é trocar.
Nada de barraco”, afirma. Dentro de
todo o processo da procura, azaração
e abate, tanto os machos quanto
as fêmeas ficam preparados para
eventuais frustrações. Afinal, nem
sempre o dia é de caça. Nesse caso,
o remédio é simples – rir e seguir a
festa.
Greice Guilhermano
Um é analista de
sistemas e curte
voar de paraglider.
Outro é bombeiro
e cultiva orquídeas
nas horas vagas.
Um outro trabalha
em uma biblioteca e
laça bois nos finais
de semana. Mais
do que hobbyes,
são formas que
encontraram para
fugir do estresse.
ARQUIVO PESSOAL
V
ivemos todos os dias, de
segunda a sexta, às vezes
aos sábados e domingos
também, rotinas extenuantes de
trabalho. Todos os dias levantamos
às 7 h, almoçamos ao meio-dia e
batemos o cartão às 17h ou 18 h
da tarde. Outros, ainda seguem até
bem mais tarde. Chegamos em casa e
cuidamos um pouquinho do lar, nos
organizamos para o dia posterior e
nos preparamos para dormir. O sono,
muitas vezes, é a única “válvula de
escape” que nos resta. E com razão:
sem ele, não teremos energia suficiente para o dia seguinte. Isso tanto
é verdade que há muitas pessoas que
sofrem de insônia em decorrência
da ansiedade, por não conseguirem
relaxar totalmente, ou simplesmente
por não terem um antídoto contra o
estresse.
Para algumas pessoas, no entanto,
a fuga da rotina e o equilíbrio necessário, são encontrados por meio da
prática de hobbyes que pouco têm a
ver com a profissão descrita em suas
carteiras de trabalho. É o c a s o
de Francisco Ramazzini, Robson
Vicente, Tiago Baggiotto e Valdir
de Castro, que tentam compensar
o estresse do dia-a-dia plantando
orquídeas, voando de paraglider,
laçando bois ou cantando e tocando
baixo. “Tarefas” que nada têm a
ver com suas rotina usuais. São oito
atividades diferentes, mas com algo
em comum: a busca por momentos
de lazer e prazer, além, claro, de
descarregar as tensões
do dia-a-dia.
Mas, parando pra
pensar: o que leva
pessoas tão centradas
em seu trabalho a se
aventurar em hobbyes
tão peculiares? Eles garantem que as escolhas
foram feitas por acaso,
mas quem visualiza um indivíduo
que passa o dia na frente do computador e depois do expediente sai
para voar, só pode pensar em uma
coisa: essa pessoa está em busca do
equilíbrio do corpo e da mente.
PLENITUDE – Francisco Carlos
Ramazzini, o Chico, tem 43 anos.
Gosta da função que exerce diariamente. Ele faz parte do suporte
técnico da empresa de softwares
HGM System, em Montenegro.
Desde 2002 ele passa os dias sentado
em frente a um microcomputador,
prestando assistência técnica às mais
variadas empresas que optaram por
utilizar os programas da HGM. Porém, muito antes de ser analista de
sistemas, Chico optou por um hobby
um tanto quanto diferente: ele voa
de paraglider. E essa aventura já tem
13 anos.
ARQUIVO PESSOAL
Francisco Carlos Ramazzini
“Quando estou voando procuro desligar e ficar curtindo lá de cima”
Novos ares
Chico analisa
sistemas,
literalmente
Robson Lemes
“A orquídea é fascinante, algumas possuem um perfume inédito”
ARQUIVO PESSOAL
Trabalho
gratificante...
APTIDÃO – O bombeiro Robson Marcelo Vicente Lemes, 34
anos, faz plantões de 24 horas no
Corpo de Bombeiros de Santa Cruz
do Sul, onde atende a qualquer tipo
de emergência – de gatinho preso na
árvore até incêndios.
Robson começou nesta função
pela oportunidade de emprego, fez o
concurso e passou. Hoje, ele diz que
sabe a importância da profissão: “O
fato de ajudar as pessoas em perigo,
ou quase à beira da morte, me fez
passar a trabalhar mais por idealismo
e amor a profissão”.
Porém, a vida do bombeiro não
é um “mar-de-rosas”. Ocorrências
desagradáveis já deixaram Robson
bem chateado. Existem muitos casos
em que a equipe se empenhou em
salvar pessoas, mas não obteve êxito.
Para superar isso, Robson escolheu
cultivar orquídeas. Quase que diariamente, ele cuida das 60 espécies
que possui em casa.
A escolha por esse hobby se deu
por acaso: possuía apenas algumas
orquídeas, até o dia que comprou
uma espécie amarela “linda”. Mas
foi no início do ano passado que ele
passou a estudar as plantas para cuidá-las de maneira adequada.
Então, dia sim, dia não, Robson
se concentra em adubar, controlar as
pragas, observar se as plantas estão
no ambiente certo, checar a lumino-
...em dose
dupla
ARQUIVO PESSOAL
Chico diz que, de todos os esportes que já praticou, foi com o paraglider que mais se identificou, “devido ao prazer que a gente sente ao
praticá-lo, a liberdade que sentimos
estando lá no alto e sozinhos, podendo ir onde quisermos”, destaca.
Há dois motivos que fazem Chico
voar todos os finais de semana. O
primeiro é mais óbvio para quem
entende de paragliders: não se deve
ficar muito tempo sem praticar. O
ideal é pelo menos uma vez ao mês.
O segundo é de ordem subjetiva: “A
emoção de voar é muito boa”. Chico
diz que quando está voando procura
desligar-se, não pensar em nada, só
“curtir” o momento.
Quando alguém pergunta o que
aconteceria se, por um acaso, ele
não pudesse mais voar, Ramazzini é
taxativo: “Não gosto nem de pensar
nessa hipótese, certamente eu daria
um jeitinho de voar”.
ARQUIVO PESSOAL
sidade, entre ouras tantas tarefas de
um orquidófilo. “Cuidar de orquídeas é algo muito gratificante. Você
aprende a ter paciência, disciplina
e sente-se vitorioso quando a flor
desabrocha, o que ocorre somente
uma vez ao ano.”
IDEAL – Tiago Baggiotto tem 27
anos, é formado em Direito e trabalha como assistente administrativo
da biblioteca da Universidade de
Santa Cruz do Sul desde 2001. No
dia-a-dia, auxilia a coordenação do
setor em suas rotinas administrativas, ou seja, ele faz parte do trabalho
interno e burocrático da biblioteca.
Baggiotto considera o trabalho bastante dinâmico e curte o ambiente,
mas, para preencher seus finais de
semana, ele optou por um hobby
bem diferente da sua rotina: Tiago é
laçador e narrador de rodeios.
O bibliotecário/laçador considera
o hobby uma “válvula de escape”
contra o stress e a correria do dia-adia, mas, mais do que isso, Baggiotto
diz que o esporte que pratica é uma
paixão desde os tempos de criança.
“É um ciclo todo, um ritual, desde as
vestimentas, a afinidade com os cavalos, que são nossos grandes companheiros, o culto às nossas tradições.”
Mesmo essa atividade exigindo
bastante preparo físico de Tiago, ele
garante que por ser algo que faz com
muito prazer torna-se renovador ao
invés de cansativo. E se, de alguma
maneira, ele não pudesse fazer mais
isso? “De certa forma seria uma frustração. Mesmo assim, não deixaria de
acompanhar”.
SATISFAÇÃO – Valdir de Castro, 30 anos. Eletricista e músico.
Curte ambas as atividades. Aliás,
diz-se privilegiado por fazer coisas
ARQUIVO PESSOAL
Tiago Baggiotto
“O rodeio, além de um esporte, é uma paixão”
Concentração no
trabalho...
...e nos fins de
semana também.
ARQUIVO PESSOAL
de que gosta muito. Apesar de gostar,
reconhece que o dia-a-dia é tenso e
desgastante. Ele faz parte de uma
equipe que é responsável por toda
a parte elétrica do campus da Universidade de Santa Cruz do Sul. Seu
trabalho consiste em desde a simples
troca de lâmpadas até a instalação de
alarmes ou telefones.
Na Unisc ele está desde 2002, mas
faz 10 anos que toca baixo e canta.
Embora considere essa atividade
uma segunda profissão, Valdir diz
que ela também serve como alívio
para o estresse. “No momento em
que eu subo no palco e apresento
meu trabalho é uma válvula de escape”, diz isso frisando o “é”. Para
ele, o contato com o público é uma
maneira de liberar energia acumulada durante a semana, pois “ver as
pessoas cantando junto, se divertindo, é muito prazeroso”.
Valdir começou a tocar por influência, cresceu ouvindo a família do
pai “viver” a música. Talvez por isso
ele diga que se ocorresse algo que
o impedisse de continuar com essa
atividade, estaria sempre envolvido
“seja num barzinho, som mecânico
ou numa rádio, envolvido com a
música vou estar sempre”.
O prazer de divertir
as pessoas
Daniele Horta
Sancler Ebert
A década de 30 foi particularmente
importante para a história da
humanidade. O filme “Luzes da
Cidade”, de Charles Chaplin estréia
em 1931, em 1932, o dirigível
Graf Zeppelin faz seu primeiro vôo
comercial regular para a América
do Sul e no ano seguinte, Hitler é
nomeado chanceler alemão. Já em
Santa Cruz do Sul, uma cidade situada
entre o nada e lugar nenhum, no
mesmo ano, sem nenhum suporte
técnico, glamour ou aprovação, um
grupo de rapazes decide construir um
avião.
Nossos heróis
descansando
do trabalho
Ottmar Reichert
“A gente pegava as madeiras, ia cortando e montando como achava que era”
U
ma balada num sábado à
noite na Sociedade
Ginástica, centro de Santa
Cruz. Papo rolando solto, muita
paquera e bebida. Entre um trago e
outro, um grupo de amigos começa
a discutir sobre a fotografia de um
avião, encontrada numa enciclopédia trazida da Alemanha. No meio da
conversa, alguém resolve tirar sarro
da idéia de construir a tal máquina
na cidade. Os engraçadinhos do
grupo não perdem a oportunidade
e começam a desafiar os amigos a
concretizar a idéia. Com a cerveja
fazendo efeito, os caras topam.
Poucas horas depois, enquanto
as famílias da cidade se preparavam
para a missa do domingo, seis jovens
ressacados, carregando consigo
olheiras profundas, uma noite mal
dormida e um gosto de “guarda-chuva” na boca, colocavam em prática o
plano mirabolante da noite anterior.
Estes jovens se chamavam Rodolfo
Stahl, Willy Stahl, Ottmar Reichert,
Hugo Reichert, João Carlos Kolberg
e Lauro João Host.
A empreitada proposta já não
seria fácil nos dias de hoje, com todo
aparato tecnológico e informações ao
clique de um mouse. Entretanto, essa
ARQUIVO PESSOAL
ARQUIVO PESSOAL
Reunião de
fundação do ASC
história se passou no ano de 1933 e
os nossos seis personagens tinham
entre 17 e 21 anos. E mais: moravam
numa Santa Cruz essencialmente
agrícola, que não possuía nem um
terço da atual população. O automóvel sequer era um veículo popular
e os caras ainda queriam construir
um avião! Isso sim que era missão
impossível... Exceto para eles.
O local escolhido para a construção da tal “máquina de voar” foi um
galpão abandonado que se situava na
rua Gaspar Silveira Martins, próximo
à casa de Ottmar Reichert, líder do
grupo. Com a tal fotografia em mãos,
eles começam a desenhar o projeto
do avião, que se chamaria Santa Cruz
1, ou SC1.
O material escolhido para a construção (ou melhor, a única opção que
possuíam na época) foi madeira para
a estrutura e tecido para o revestimento. Todo material era doado por
amigos empresários que apoiavam
a idéia, ou simplesmente queriam
ver no que ia dar. Um ano se passou
enquanto nossos aventureiros se encontravam todo final de semana para
concluir o invento. Sem nenhuma
noção de aeronáutica, os comandos
foram arquitetados na base do “achômetro”, e na prática funcionavam
totalmente ao contrário do utilizado
na aviação. Além disso, a “capa”
para impermeabilizar a aeronave foi
ARQUIVO PESSOAL
Ottmar Reichert
“A gente puxava com um carro para levantar, só que o primeiro não deu, caiu”
Fundação do
antigo prédio
fabricada utilizando “Pó Pelotense”
e ovo de galinha. Não caro leitor,
você não leu errado. “Pó Pelotense”
e ovo mesmo! Misture tudo e passe
uma fina camada sobre o tecido.
Impermeabilidade certa!
Quando o avião ficou pronto, surgiu então a questão crucial não cogitada até então: onde, como e quem
faria o vôo inaugural? Ninguém ali
havia sequer andado de avião na
vida, eles não possuíam uma pista
para decolagem e o avião, por ser
do tipo planador, não possuía motor
para realizar a façanha. Começam
então as presepadas.
Várias tentativas frustradas e uma
surpresa que muda para sempre a
história da cidade. As conquistas
alcançadas na época trazem suas
conseqüências até os dias de hoje,
porém, como tudo começou, já foi
apagado pela história.
DESVENTURAS – O local
escolhido para ser utilizado como
“pista de decolagem” ficava nas
proximidades de onde hoje se situa
a sede da Metalúrgica MOR, no
distrito industrial da cidade. Como
não possuíam um avião a motor para
rebocar a aeronave recém construída, um automóvel da FORD fazia as
vezes de rebocador, usando um cabo
de aço para puxar e colocá-la no ar...
ou pelo menos tentar.
A escolha do piloto quase aconteceu no par ou ímpar “Era todo
mundo medroso, queriam construir
mas tinham medo de testar, daí eu
fui. Tinha medo também, mas não
queria passar por medroso.”, confessa Reichert, hoje com 93 anos de
idade e uma memória impecável.
O avião era levado até o campo
de decolagem carregado nas costas.
Seus construtores o fizeram desmontável, e as asas podiam ser destacadas
do corpo da aeronave. Os seis amigos
se revezavam na tarefa de carregar
a pé o material por cerca de 10km!
E realizavam o percurso quase todo
final de semana após seu primogênito ficar pronto.
Porém, apesar de todo o esforço
dispensado na aventura de construir
um avião sem ter noção alguma do
que se estava fazendo, nossos amigos
se depararam com a parte óbvia: o
SC1 jamais sairia do chão! Mesmo
após inúmeras tentativas, não tinha
jeito, a aerodinâmica do novíssimo
ARQUIVO PESSOAL
MÃOZINHA – Mas nem todo
o esforço foi em vão. Desde 1929
a VARIG já realizava vôos para a
cidade, onde em 1933 já possuíam
inclusive um campo de pouso com
linha comercial freqüente entre
Porto Alegre e Santa Cruz. Como a
pista da VARIG ficava próxima ao
campo escolhido por nossos aventureiros para os testes com seu avião, os
pilotos que para cá vinham realizar a
rota comercial muitas vezes viam o
“bando de malucos” tentando fazer
um avião levantar vôo. Eles então
comunicaram para o fundador da
empresa, o imigrante alemão Otto
Ernst Meyer, o que estava acontecendo em Santa Cruz, e este solicitou
que um representante do grupo fosse
a Porto Alegre para realizar um curso de pilotagem.
E lá se foi o jovem Reichert realizar os primeiros vôos de sua vida,
e de brinde, receber a proposta para
fundação de um aeroclube na cidade
de Santa Cruz do Sul, com a ajuda da
recém criada VARIG Aero Sport. O
objetivo era que o grupo de amigos
pudesse receber um material que
viria da Alemanha para construção
de um planador. Junto deste “kit”,
viriam outros dois destinados às cidades de Osório e Rio Grande.
O resultado foi a fundação do primeiro aeroclube do interior do Estado, e o mais interesseiro também.
Deixem-me explicar, não que nossos
personagens o fossem, mas no final
das contas, o único motivo pelo qual
existe hoje o aeroclube na cidade, é
porque um dia um grupo de rapazes
queria ganhar um kit para construir
um planador e para isso teriam que
obrigatoriamente fundar o nosso
aero. “Não tinha diretoria nem nada,
a gente montou só pra ganhar o kit
mesmo” orgulha-se Reichert.
E assim, em agosto de 1934, era
Mesmo com ajuda
o transporte não
era fácil
Ottmar Reichert
planador não se adequava às requeridas para que ele conseguisse alçar
vôo. A empreitada não foi bem
sucedida.
“O carro mais quebrava do que andava para ir, mas era divertido”
ARQUIVO PESSOAL
Aeronave era
montada no local
dos testes
ARQUIVO PESSOAL
Ottmar Reichert
“Não sobrou nada além de fotos e um modelo igual só que pequeno”
A criação
alcança os ares
realizada a reunião que fundou
oficialmente o Aeroclube de
Santa Cruz do Sul, popularmente denominado ASC. Com
a oficialização, começa a arrecadação de verbas para a construção de um hangar próprio e
também a construção do SC2,
bem mais demorada que a do
primeiro, porém desta vez com
o kit e instruções específicas, o
que resultou em um vôo bem
sucedido, mas nem tanto assim.
ARQUIVO PESSOAL
SC2 – As primeiras tentativas de
vôo do Santa Cruz 2 – SC2, também
não deram muito certo, mas no mesmo dia da primeira tentativa, passava
por ali um senhor em um novíssimo
Ford com motor mais potente, que
se ofereceu para rebocar o planador
com seu carro. Lá se foi o jovem
Ottmar pilotar novamente sua criação, pela primeira vez levantando
do chão e chegando a uma altura de
aproximadamente dois metros do
solo, sentindo o vento em seu rosto,
toda a liberdade de estar pairando no
ar... sentindo a emoção de conquistar
os ares... e então PUFT! O avião está
no chão. “O avião quebrou, mas daí
a gente montou de novo. Caiu um
monte de vezes, mas sempre a gente
chamava a Varig e eles mandavam
mais coisas e a gente montava de
novo. Por isso que deu certo, porque
muita gente tentava construir na
época, mas sempre quando não dava
certo, desistiam. A gente não, a gente
não parava. Caía e a gente montava
de novo (risos).”, conta Reichert. Isto
é que é persistência.
Só dois anos após a conclusão do
SC2, um dos membros do fabuloso
grupo teve a “genial” idéia de construir um carrinho para transporte da
aeronave. Sim, até então eles ainda
realizavam religiosamente a tarefa
de, aos finais de semana, carregar nas
costas as partes montáveis do avião.
Mas não que isto tivesse facilitado
muito a vida do grupo. O carro
comprado para o aeroclube e que
servia de reboque do “carrinho” não
costumava funcionar por
muito tempo, e agora,
ao invés de carregar as
partes do avião, eles tinham que empurrar um
automóvel bem mais
pesado.
O “troféu” feito com
tanto empenho é
esquecido pela história.
E o Vento Levou
No ano de 1959, um temporal fortíssimo atingiu a cidade de Santa
Cruz do Sul. Muitas casas foram atingidas, mas para nossa história
aconteceu um fato marcante. O primeiro prédio construído do Aeroclube
de Santa Cruz foi abaixo e com ele todas as aeronaves e documentos
que se encontravam em seu interior. Foi este o motivo que levou à
transferência do ASC para o local onde se encontra hoje, em linha
Santa Cruz.
Quanto aos planadores, SC1 e SC2, bom, certamente eles deveriam estar
em um museu construído especialmente para esta história na cidade,
mas o fato é que com a chegada dos novos aviões à motor, eles foram
considerados ultrapassados, e para dar espaço ao novo, deixados ao
relento do lado de fora dos hangares. Com o tempo e sua deteriorização, um belo dia uma das diretorias decidiu atear fogo às aeronaves,
e delas resta apenas a história e algumas poucas fotografias.
A TRADIÇÃO – Com os vôos
bem sucedidos, o ASC passa a ser freqüentado pelas famílias dos jovens
aviadores, que realizam piqueniques
enquanto observam o decolar e aterrissar da aeronave. Logo são seguidos
por outras famílias, e aí começa uma
tradição que dura até hoje na cidade.
Outras aeronaves são adquiridas pela
entidade, e logo aviões movidos a
motor são doados para o ASC através
de campanhas de empresas nacionais
incentivadoras da aviação. O “aero”
cresce e até uma diretoria é formada, presidida pelo atual patrono da
entidade, Luiz Beck da Silva, que
por sinal, segundo nossos pioneiros,
sequer voava de avião, mas esta já é
outra história.
O aeroclube pioneiro no interior
do Estado conquista seu espaço, e os
jovens festeiros que em uma noite
de balada receberam um desafio desacreditado, conquistam seu espaço
definitivo nos ares. Porém, não conquistaram o mesmo merecido espaço
na história, e pouco se encontra
sobre o que realmente aconteceu
na época. São seus protagonistas
as únicas fontes que ainda restam
sobre esta incrível façanha pouco
registrada e da qual apenas o nome
ASC ainda persiste.
Fernanda Almeida
FOTOS FERNANDA ALMEIDA
Não, nós não
esquecemos um A no
final do título. O nome
dela é mesmo, Manuel.
Depois de 18 anos vivendo
como homem, Manuela
(nome fictício), hoje feliz
com a identidade que tanto
sonhou, mostra a sua cara e
o seu belo corpo, como tantas
mulheres não possuem. Apesar
de ainda conviver com as mágoas
do passado, ela reúne forças para o
acréscimo da letra A no final do seu
nome.
Como foi fazer a cirurgia?
Eu fui atrás, informei-me com umas
amigas travestis que eu tinha. Para
poder fazer a cirurgia tem que passar
dois anos fazendo terapia com uma
psicóloga, e é totalmente de graça.
meu problema psicológico mesmo é
morar nessa cidade. As pessoas não
me respeitam, não me vêem como
eu deveria ser.
E como você queria que elas te
vissem?
Como uma pessoa normal, sou igual
a todos, não é porque eu troquei de
sexo e fugi dos padrões que devo ser
ignorada como uma selvagem. Quero ser respeitada, mas os homens não
me respeitam muito (risos).
Não têm nenhum gasto para fazer a
cirurgia?
Não, só os hormônios. Eles te dão um
monte de hormônio, tem as reuniões com travestis que tu conversa,
daí é marcado o dia da cirurgia. No
dia chegou a me dar um negócio,
Tem alguma situação chata que
aquele dia foi muito estranho. A
já passou por causa da sua opção
cirurgia durou quatro horas e fiquei
sexual?
dois dias de repouso, tive que ficar
Antes da cirurgia, tinham os caras
duas semanas usando absorvente. Eu
que se apaixonavam e
me senti castrada, na
hora me deu até uma Eu acho que se eu eu fugia, porque eles
crise: meu Deus, será
tivesse uma arma não sabiam que eu
ainda era homem. A
que vou ter prazer de
eu matava umas situação chata mesnovo?
mo é que eles me
pessoas. Sabe
Quanto tempo tem
aquele filme, “Tiros tratam de uma forma
muito estranha, mas
que ficar sem relação
em
Columbine”?
não deixam de ficar
sexual?
comigo, só que por
Tem que ficar três
debaixo dos panos.
meses sem fazer nada, mas eu estava de namorado, não esperei bem o
E já teve algum cara que quis te
tempo certo.
bater?
Já, uma vez só, porque aqui em Santa
Não deu problema?
Cruz eu evito ficar com alguém.
Não, dói um pouco e sangra muito.
E por que resolveu trocar de sexo?
Foi uma coisa que eu sempre quis,
estava sempre com as gurias, a única
coisa de guri que eu gosto é de jogar
videogame. Gosto muito, mas o resto
é uma coisa que tava sempre dentro
de mim, eu já sabia desde criança,
por isso que quando a gente vê essas
crianças meio afeminadas, já é um
indício muito grande. Eu comparo
como eu era, quando a gente é criança não dá bola.
Como você se sente depois da
cirurgia?
É uma coisa que eu fiz pra mim e
me sinto realizada por isso, mas o
Por que ele quis te bater?
Porque eu não quis ficar com ele, e
no final da festa contaram para ele
que na verdade eu era homem. Não
entendo por que ficou tão bravo,
saiu correndo atrás de mim com uma
garrafa de cerveja na mão, pois não
fiquei justamente porque ele não
sabia. Será que ele queria que eu
chegasse nele e falasse: Olha, na verdade eu não sou bem isso que você
tá vendo.... Ele deve é me agradecer
que eu ainda não fiquei com ele.
Como foi enfrentar essa tua opção
em ser mulher?
No colégio eu enfrentei muitas
barreiras. Quando eu estudei em
colégio público não era tanto quanto no particular, era um repúdio
muito grande, eu deixava as pessoas
pisarem em cima de mim e quando
eu mais precisava de ajuda eu não
tive, (pausa para poder falar)... Eu
acho que dentro da tua cabeça é bem
difícil, tu sofre bastante.
Muitas mágoas?
Eu acho que se eu tivesse uma arma
eu matava umas pessoas. Sabe aquele
filme, “Tiros em Columbine”? Onde
dois alunos mataram outros alunos?
Às vezes eu entrava dentro do colégio e sentia uma raiva, dava vontade
de fazer a mesma coisa.
nuel”, isso não mudou (risos). Mas meus parentes
todos aceitaram, família,
não tenho nenhum pouco
com o que me revoltar,
por isso que eles ficam
revoltados comigo se eu
faço alguma coisa de errado, porque em questão de
aceitação, eles me deram
todo apoio.
Com o que a sua família se preocupa?
Com questão de drogas e violência,
como todo pai tem essa preocupação
normal. Por isso que a minha cabeça
é mais aberta, eu sinto a necessidade
de carregar uma responsabilidade
Tinha amigos no colégio?
de ter uma personalidade boa. Pra
Não. As gurias pensavam: Não vou
ser a pessoa que eu sou, não é fácil,
ficar aqui com esse “putinho”, vou
ninguém escolhe, e eu também sou
ficar com as minhas
realista, penso se sou asamigas... Me tiravam
As gurias
sim, seja uma pessoa boa
pra chato, grudento, eu
de cabeça e que o único
pensavam:
não tinha ninguém para
mal é que faça para si
Não vou ficar mesmo e assim tu vai te
conversar. Eu era muito
carente, então as pessoas aqui com esse
reciclando, é isso que eu
me tiravam pra chato.
penso.
putinho
Quando se descobriu e assumiu
essa identidade?
Quando eu fui morar em Porto
Alegre eu me liberei. Aqui era uma
coisa mais enrustida, fui pra lá, alisei
o meu cabelo, era uma coisa mais de
transformação. Usava umas roupas
mais justinhas, foi bem aos pouquinhos. Foi tão fácil que eu nem sei te
explicar. Quando vi, aconteceu.
E a reação dos teus pais?
Considero eles uma família muito
neutra para tudo. A minha mãe expõe os sentimentos muito seco, ela
não é de sentar e conversar, tipo: Tu
faz o que tu quer. Quem aceitou mais
foi o meu pai, em geral me deram
tudo o que eu quis, todo o apoio, me
tratam super bem, apesar de que aqui
dentro de casa eles me tratam “o Ma-
Quanto à cirurgia, eles reagiram
como?
Bem, eles agiram normalmente, só
se preocuparam com a operação e foi
uma coisa que eu quis, são escolhas,
eu abracei, hoje eu estou muito bem,
até na hora do ato. (risos)
Dá para notar diferença no órgão
sexual?
Até hoje dois homens
viram que é diferente e
os outros não viram nada.
Tem os retoques que tu
faz, para deixar maior,
menor, mais profundo,
ou menos profundo. É
colocado uma prótese
para não fechar, vai diminuindo aos pouquinhos e
o clitóris é super sensível,
agora tá melhor, por isso
que eu pergunto, porque
eu não sei pra mulher,
pode me responder eu
nunca perguntei (risos).
Claro, pergunta, aproveita essa chance, já que
sou mulher.
O clitóris é bem sensível
no começo e depois como
fica? Porque no começo
pra mim dói horrores. (risos)
E na relação sexual como é a sensação?
Antes eu era virgem, nunca tinha
feito nada. É bom, claro que no começo foi doloroso, eu dizia: “Aí não
quero”, mas depois foi indo Só que eu
não tenho lubrificação, sempre levo
um gel, daí vai,...vai bem normal.
Quanto custam os programas?
(Risos), Ah geralmente é na base
de R$80,00, R$100,00, R$150,00,
depende do cliente, do lugar, de
quem tu vai fazer, do momento é
uma coisa muito abrangente. Eu faço
por R$50,00 às vezes, só oral faço por
R$30,00, esse tipo de coisa.
Tem alguma situação com algum
cliente que você mais repudiou?
A ignorância de não querer usar preservativo, a maioria, 80% não usa.
E vocês o que fazem quanto a isso?
Tem que pedir para usar, a maioria
das gurias tem AIDS, esse é o meu
medo. E se olha não diz, são chiquérrimas, tem carro.
Já teve que fazer sem camisinha?
Já fiz sim, às vezes pinta uns corpinhos né, (risos) que não dá para
Nunca tinha tido relaresistir, mas foi coisa que
ção sexual antes de
Eles me tratam eu estava bêbada e me
fazer a cirurgia?
arrependi depois. Mas
de uma forma eu sou enjoada, tenho
Nunca.
muito estranha, muito orgulho de ser
Nunca chegou a ficar
mas não deixam nojenta quanto a exigir
com mulher?
preservativo. Estou num
Já fiquei, já tentei ex- de ficar comigo grupo de risco, fazer exaperimentar, porque
mes periódicos, essa é a
eu sou super liberal, já tentei, até
responsabilidade.
mesmo hoje em dia, foi uma coisa
que eu nunca quis, só de brincadeira
Quer parar de fazer programa?
mesmo, mas nunca cheguei a tranPretendo. Primeiro eu estou me
sar, mas eu tentei, foi uma coisa de
desintoxicando. Quero parar de beinterpretar uma artista.
ber, quero investir em mim, no meu
corpo, na minha beleza. Tem muita
E você faz programas?
coisa que eu quero melhorar, por
Faço por fora, é uma grana
peito, quero estar de bem comigo,
rápida, mas tudo que vem
tendo o meu dinheiro, tendo as mifácil, vai fácil também.
nhas coisas, seguir o meu caminho.
Quero ter o que é meu primeiro para
Você faz só por causa da
ser independente.
grana?
Deixa eu só vê o horáComo é viver em uma cidade como
rio, desculpa é que eu to
Santa Cruz do Sul?
preocupada com o meu
Pra minha pessoa é horrível, não
ônibus....
sei a palavra certa... Revoltante e
Só por causa do dinheienclausurante, sabe aquele lugar que
ro.
te sufoca?
Aquele lugar que tu ficas louca para
sair?
Exatamente esta a palavra, até hoje
em qualquer lugar que eu saio aqui
para me sentir bem eu tenho que
beber umas, porque sempre tem
alguém que vai te fazer um comentário, e parece que eu sinto.
Qual foi o pior comentário que já
escutou?
“A não, àquilo ali já foi homem”.
E esse corpão?
Eu tomo vários anticoncepcionais,
tenho que parar um pouco, e agora
eu dei uma engordada, antes eu tinha
uma cinturinha bem fininha e não
tinha tanta bunda.
Mas você ainda tem cinturinha.
Mas tu não viu antes, era bem menor
Não colocou silicone?
Não, nada além da cirurgia, sou original de fábrica (risos).
E essa pele maravilhosa?
Eu cuido, fiz um curso de estética
facial, a questão genética também
influencia, pode olhar para minha
mãe, hoje ela está meio enjoada,
mas ela é simpática, ela tem uma
pele super boa, eu cuido, ainda mais
quando a gente estuda sobre isso,
passa uns cremes, acho que era isso...
o meu tempo está estourado, vou
viajar pra Porto Alegre e depois pra
Florianópolis fazer uns shows, tenho
que tirar umas notas.
Daiane Balardim
Luciana Mandler
Possuir um diploma acadêmico é ter em mãos um passaporte para uma vida
melhor. É uma chance de seguir uma carreira bem sucedida que lhe renda bons
frutos. Não para todos. Há também quem resolva interromper essa viagem e
trocar as salas de redação por um trabalho inteiramente social. Esse é o caso da
jornalista Melissa Braga, 28 anos.
ARQUIVO PESSOAL
Melissa Braga
“É uma luta de grandes contra pequenos, é uma guerra”
Antes de conhecer o mundo
real da periferia, Melissa no
seu “mundinho” onde tudo é
perfeito e fácil
M
elissa Braga é formada em
jornalismo em 2004 na
Unisc, ela teve muitas
oportunidades em sua trajetória acadêmica. Trabalhou como voluntária
na Unisc TV, estagiou por um ano e
meio na RBS TV e foi Assessora de
Imprensa do Riovale Jornal. Durante o curso a jovem descobriu uma
grande paixão: a fotografia, que lhe
rendeu um estágio na Zero Hora. Já
formada e há três anos trabalhando
neste veículo, prestes a ser contratada como repórter, Melissa largou
a carreira profissional para trabalhar
em prol da comunidade.
A jovem, que produzia uma revista voltada para a alta sociedade
da região, hoje ensina as crianças
da periferia a produzirem o próprio
jornal do bairro. Depois de formada
continuou trabalhando para a Zero
Hora, mas como o trabalho de fotógrafa lhe exigia tempo integral, não
foi possível conciliar com seus projetos no centro comunitário. Ela não
teve dúvidas. Decidiu abrir mão do
emprego. Em novembro de 2005 seu
projeto começou a sair do papel. Sua
intenção era reunir as crianças do
bairro para participarem de oficinas,
onde aprendem a fazer reportagens,
buscar pautas e diagramar o jornal.
Deixar de lado a carreira
profissional não foi à única
transformação que Melissa
enfrentou. A partir do seu
trabalho, ela foi criando
vínculos com a comunidade,
que a levou a fixar residência
na periferia. Para concretizar
seu objetivo de se incluir
junto a eles, Melissa teve
que se desfazer de alguns
bens materiais que possuía.
Por conta disso, trocou seu
duplex por uma pequena
casa no bairro Bom Jesus.
A jovem investiu todo seu
dinheiro na compra de um terreno
e na construção de um galpão, que
sedia as oficinas.
MILITÂNCIA – Melissa conheceu o movimento de luta popular
por meio do convite de um colega
de faculdade, que mais tarde se
tornou seu marido. Sua primeira
participação nessas causas foi trabalhar com o Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR). “Eu era de classe média,
não conhecia comunidades pobres.
Não me envolvia muito com esses
projetos, eu sempre me indignava
em ver como o país era desigual e
tinha muita pobreza, mas não lutava
para mudar isso”, relata Melissa.
A jovem considera muito importante todo conhecimento que
adquiriu em seus trabalhos profissionais, mas diz que somente agora
está fazendo uma comunicação social. Começou ajudando em alguns
projetos para ganhar experiência,
trabalhando a comunicação nos bairros e logo se inseriu no movimento
da Resistência Popular. “O nosso
objetivo é organizar os moradores
da periferia, que são excluídos da
sociedade, para lutar pelos seus direitos”, ressalta.
GELSON PEREIRA
críticas referentes à sua aparência,
pois emagreceu muito. Entretanto,
ela atribuiu seu aspecto abatido e
seu emagrecimento a uma vida de
sofrimento, de luta e não uma vida
de prazer e alegrias. Obstáculos são
para serem enfrentados. Ela afirma
que não vai desistir de lutar por uma
sociedade melhor, para os seus filhos,
e os de todas as mulheres. Para ela
o mundo todo é uma grande família
que precisa lutar junta.
A mudança de Melissa não agradou a todos. Muito menos a sua mãe.
Dona Liane Glória Braga, teve seu
sonho interrompido. Ver sua filha
trilhando um caminho de sucesso
era seu desejo. Para dona Liane
essa atitude foi uma grande frustração. “Agora olho para trás e vejo
a carreira que ela poderia ter.
A Melissa poderia se dedicar
a essas causas, mas sem abrir
mão da sua profissão e das realizações financeiras”, comentou
dona Liane. A mãe conta que
Melissa se desfez até mesmo
de suas roupas. “Minha filha só
usava roupas das lojas mais conceituadas da cidade, e acabou
trocando todas em um brechó,
por roupas mais simples”. E diz
também que Melissa não parece
A entrega
do Jornal na
comunidade
Melissa Braga
Hoje Melissa é uma militante social, que optou em
morar na vila e não tem vergonha disso. Ela conta que foi
uma decisão muito difícil, até
mesmo por conta da sobrevivência e diz: “Eu perdi tudo.
Até pastel na rua eu vendi,
fiz um monte de coisa que eu
nunca imaginei fazer como
jornalista”. Apesar das dificuldades
não deixa de defender seu bairro,
que tem a fama de ser muito perigoso
e violento. “Claro é muito diferente
da realidade que eu vivia antes,
não tenho mais o mesmo conforto.
Quando eu morava no centro, eu ia
ao cinema, passeava de carro e agora
saio pra rua e vejo cachorro morto,
criança de pé descalça, não é uma
vidinha fácil”.
Melissa conta que muitas vezes
sente falta da sua vida de antes,
principalmente quando a questão
é financeira. Chora quando algo
não dá certo, mas que jamais se arrepende. Acredita que o tempo vai
ser o melhor remédio para superar
os desafios. Além do preconceito, a militante sofre ainda com as
“Não tenho vergonha de morar na vila, coloco meu pé no barro”
GELSON PEREIRA
Voluntários
trabalhando duro
no Projeto
GELSON PEREIRA
Melissa Braga
“Acho que eu vivo em um mundo mais real”
Melissa, hoje ao
lado do maior
símbolo de um
sonho sendo
alcançado
ser mais a mesma pessoa. “Ela não se
cuida, não se arruma mais”, desabafa.
A mãe julga ainda, que ela está desperdiçando a capacidade que tem. “A
Melissa é inteligente, tem um dom,
ela tem todas as ferramentas, só falta
trabalhar”.
COMPANHERISMO – A jornalista se deparou com o outro
lado da moeda quando começou a
namorar Fagner Antonio Jandrey.
Ele é um militante político-social e
trabalha como catador de material
reciclável. Ao ser perguntado sobre
a transformação de Melissa, ele diz
com certa impaciência: “A essência
dela é a mesma, porque antes de
participar do movimento de luta,
ela já possuía sua personalidade e
caráter próprio”. Fagner acredita que
hoje Melissa está comprometida não
só com sua vida, mas também com
um sonho que se concretiza pouco a
pouco. E afirma que não existe nada
mais gratificante do que realizar suas
alegrias e rebeldias.
O casal conta com o apoio da
família de Fagner, mas sofre a repressão por parte da mãe de Melissa.
“A questão não é de ser contra ou a
favor, e sim de entender as opções
que as pessoas tomam em suas vidas.
Algumas pessoas preferem ter vidas
cômodas e adestradas, outras preferem se libertar”, destaca o catador.
Apesar de o movimento popular demandar muito tempo e
dedicação, eles não deixam de
curtir a vida. Tomar chimarrão
no parque gruta é um dos passatempos preferidos. A base da
relação é o companheirismo, já
que ambos lutam pelo mesmo
ideal.
“De nada vale uma carreira
profissional que vise apenas se integrar no mercado capitalista”, salienta
Fagner. Para ele, optar em manter
sonhos coletivos e utopias é uma
construção diária de uma alternativa
libertaria e de uma cultura solidária.
E diz ainda : “A mudança parte de
dentro para fora, e ao se relacionar
com as pessoas cria-se uma teia cada
vez maior e essa é uma das chaves do
poder adormecido nas consciências
humanas”.
O informativo popular “A Comunicação faz a Força” teve sua primeira edição em novembro de 2005.
Ainda em formato tablete. Após
dois anos de oficinas e com a ajuda
da Fundação Luterana de Diaconia
o projeto pode lançar seu primeiro
exemplar em formato tablóide. As
oficinas são mensais e realizadas
na sede da Resistência Popular, no
Bairro Bom Jesus. O informativo é
bimestral e tem uma tiragem de três
mil exemplares. A distribuição do
jornal é por conta dos voluntários.
O repórter popular aprende a
fazer reportagens, entrevistas, fotos
e programas de rádio. Enquanto os
voluntários adquirem experiência, a
diagramação e as principais matérias
ficam a cargo da jornalista. Melissa
conta que os moradores se emocionam quando são procurados para dar
entrevistas. Pois muitas vezes eles
são procurados apenas para falarem
de seus problemas “A mídia só vai
ouvir a periferia quando se trata de
roubos, crimes ou quando tem uma
enchente lá no bairro”. Para ela
é muito gratificante o reconhecimento que a comunidade tem pelo
seu trabalho. Mas tem algo que a
deixa triste. “Só não gosto quando
eles falam, olha a jornalista, isso me
distancia um pouco deles. Então eles
falam a repórter, aí eu digo repórter
somos todos nós”.
Melissa considera uma construção lenta, pois é muito difícil
mudar uma realidade e fazer com
que as pessoas participem. O seu
objetivo não é só a inclusão social e
sim a transformação social, para que
ninguém mais precise ser incluído
em algum grupo, e sim que todos
tenham a mesma oportunidade.
Como jornalista já fez muitos trabalhos, mas segundo ela nenhum foi
tão sofrido e ao mesmo tempo tão
realizante. “Quando eu vi o jornal,
quase chorei, foi muito bom ver as
fotos das pessoas, as matérias, ele
completamente pronto”, finaliza
Melissa.
O jornal conta com a participação
de dois voluntários. Amarildo Laerte
Rodrigues, 30 anos, é operário e trabalha como repórter na Resistência
Popular. Para o jovem, conhecer
as histórias dos moradores é uma
forma de enriquecer sua cultura.
Amarildo fala também que: “A Melissa é muito corajosa e batalhadora,
por ter largado tudo para se dedicar
ao movimento”. Márcia Santos, 30
anos, estudante de jornalismo, foi
indicada pela faculdade para contribuir com o projeto. Quando questionada se pensa em seguir o mesmo
caminho de Melissa ela é objetiva:
“Meu sonho é terminar a faculdade
e ter um bom emprego. Até porque
não tenho condições financeiras de
viver apenas para o projeto”.
Crônica
Dinheiro
é 100%
Cláudio Froemming
Dizem que o dinheiro não traz felicidade. Mas em
muitos casos manda buscar! Dizem que o dinheiro não
compra as amizades. Porém a maioria prefere ter amigos
ricos! Dizem que o dinheiro não garante saúde e vida
longa. No entanto quem é pobre adoece também e
morre bem mais rápido! Dizem que o dinheiro não é
tudo. Mas é quase!
Vivemos, estudamos e trabalhamos sempre pensando
no dinheiro, pois sem ele, o que é possível fazer? Sem
grana, daria para passear no parque, conversar com os
amigos, tomar um banho de chuva e pegar um sol, mas
não no horário do meio dia, pois com a destruição da
camada de ozônio, você poderia provocar um câncer de
pele, que necessitaria de muito dinheiro para curá-lo.
Tudo funciona em torno do dinheiro, pois é ele quem
faz o mundo acontecer. Eu só estudo jornalismo, porque
pago uma mensalidade bem cara, e também porque
gasto com transporte, xerox e alimentação. Em contra
partida, tenho professores competentes por conta de sua
formação, que exigiu altos investimentos e que agora,
requerem altos salários para dar aulas. E é claro, eu estudo para poder ganhar mais dinheiro, que não é tudo na
minha vida, mas é muito importante!
Quem tem dinheiro faz dinheiro, principalmente em um
regime capitalista, como é o nosso. Nós seres humanos
temos uma necessidade de poder sonhar, comprar e
realizar, e isso só com “money”, “bufunfa”, “dólares”, ou
como queira chamá-lo. Para termos algum tipo de posse,
como um carro novo, casa própria com piscina, viajar e
até mesmo para construir uma família com dignidade,
temos que ter o tal do dinheiro. Por isso dedicamos 70%
do nosso tempo útil em busca dele, o realizador de sonhos
e fantasias, o idolatrável e tão almejado dinheiro.
Eu vivo fazendo contas, pois afinal de contas, preciso
saber o quanto posso gastar com o que ganho mensalmente, para pagar minhas contas. Se puder, ainda quero
comprar um carro novo, viajar aos Estados Unidos e ter
uma vida com algumas mordomias, mas isso só se eu
conquistar o tal do real.
O dinheiro, moeda de compra inventada no início do
século XIX aqui no Brasil, até os dias de hoje, é realmente
uma das grandes invenções do homem, mesmo que uma
parcela da população possua pouco dele, pois alguns não
obtiveram as mínimas chances necessárias para tentar
ganhá-lo dignamente.
Mas mesmo assim, ainda é uma forma democrática
de dar condições de livre arbítrio às pessoas, para que as
mesmas escolham o que querem fazer para ganhar muito
ou pouco dinheiro. Por isso digo e repito: dinheiro não
é tudo, mas é 100%.
Filipe Faleiro
Thiago Maurique
Imaginem os jogadores de Grêmio
e Inter atuando juntos, pelo
mesmo clube. Imaginem, então, os
torcedores dos dois times juntos
na arquibancada, sem grades ou
policiais entre eles. Impossível?
Em santa Cruz do Sul aconteceu.
Os dois times da cidade, Avenida e
Santa Cruz, se uniram e formaram
uma única equipe, em uma tentativa
mal sucedida de transformar
o clube em uma potência do
futebol gaúcho.
E
m 1972 o Avenida Futebol
Clube e o Futebol Clube Santa
Cruz fizeram campanhas medíocres no Campeonato Gaúcho e estavam à beira da bancarrota. A idéia
salvadora, defendida por lideranças
políticas e pela imprensa local, prometia ser uma “luz no fim do túnel”
para o futebol santa-cruzense: unir
o patrimônio dos dois times e formar
uma única equipe. Foi assim que surgiu a Associação Santa Cruz do Futebol. “A própria federação gaúcha
apoiava a idéia das associações em
todo Estado, porque acreditava que
as cidades do interior deveriam ter
apenas um time”, explica o Dalton
Luiz Melo, gerente do departamento
do futebol amador do Juventude e
ex-jogador da Associação.
Conhecido por Foguinho, ele foi
o capitão de 1975, ano da melhor
campanha da curta história da Associação. Com fortes investimentos e
a contratação do experiente técnico
Daltro Menezes, a equipe montada
era uma verdadeira seleção de craques do interior gaúcho. “Os dois
melhores ponteiros que eu vi jogar
estavam naquele time”, lembra Sérgio Machado; ex-líder da torcida
Ala Jovem. Com o apoio maciço da
torcida a Associação fez jogos memoráveis naquele ano, terminando em
terceiro lugar da primeira divisão do
Campeonato Gaúcho.
Se tornar a terceira força do
futebol gaúcho era o objetivo
principal do clube. Mesmo
antes da primeira temporada,
em 1973, a diretoria recém formada projetava a futura equipe
pensando em rivalizar com a
dupla grenal. Para isto contava
com apoio financeiro da prefeitura e de diversas empresas.
“Era um tempo em que não havia
leis que impediam o investimento
público no futebol”, explica Hélio
Almeida, dirigente do Futebol Clube
Santa Cruz, na época, conselheiro da
Associação. Porém, mesmo nos primeiros anos, a idéia tinha resistência
de ambos os lados.
Se a rivalidade entre os clubes
gerava desconfiança, os bons resultados obtidos logo na primeira
temporada maquiaram as desavenças. “A ascensão da Associação foi
muito rápida, a equipe passou por
todas as etapas e chegou com força
na elite do futebol gaúcho”, afirma
Sérgio Machado. Os números confirmavam as boas expectativas. Num
total de 40 jogos, foram 21 vitórias,
11 empates e apenas 8 derrotas, campanha que classificou a equipe para a
divisão principal. “Em 73 perdemos
apenas uma partida em casa, para o
Encantado, nos Eucaliptos”, afirma
Gabriel Porto, o Cuca, ex-ponteiro
direito que jogou em todos os anos
da associação.
Mesmo que Avenida e Santa Cruz
fossem clubes acostumados a disputar a primeira divisão do Gaúchão,
a Associação passou por dificuldades
típicas de time estreante. Perdeu
jogos importantes e acabou não se
classificando para o quadrangular
final. A velha disputa entre os rivais
também atrapalhava. Começavam a
Hélio Almeida
“A rivalidade entre Avenida e Santa Cruz era mais forte que grenal”
ARQUIVO PESSOAL
Em 75 o time de
Santa Cruz beliscou o
título comandado por
Daltro Menezes
ARQUIVO PESSOAL
Hélio Almeida
“Se tivessem fundido os patrimônios, a Associação estaria viva até hoje”
Cuca pretende
escrever um livro
sobre sua carreira
aparecer na imprensa notícias sobre
desentendimentos na diretoria da
associação, que eram prontamente
desmentidas em notas oficiais, divulgadas com um certo ar solene. Porém
com a chegada do ano seguinte tudo
foi esquecido e os bons resultados
ajudaram a botar panos quentes nos
problemas.
ARQUIVO PESSOAL
Torcedores tinham
de conseguir ônibus
em cidades vizinhas
NOVA TORCIDA – Um dos
motivos para a rápida ascensão da
equipe foi a presença do torcedor.
Empolgados com a idéia da fusão, a
juventude da cidade se organizou e
criou a Ala Jovem, que acompanhava
a ASCF em todas as partidas. Sérgio
Machado traduz o espírito da nova
fase do futebol na terra do fumo; em
matéria do jornal Gazeta do Sul no
mês de fevereiro no ano de 73. “Se a
outra parte da torcida quiser vaiar,
mas nós nunca. Só incentivamos.
A Associação merece. Vamos tocar
com força”. Esta postura da torcida
embalou o novo clube no torneio
classificatório para o Gaúchão de
74.
“A Ala Jovem aterrorizava”,
relembra Sérgio. A torcida ficou
conhecida no estado pelo fanatismo, pela quantidade de pessoas que
acompanhava a equipe e, principalmente, pelo barulho inconfundível
das buzinas de caminhão. “Alguns
diretores cederam tubos de ar. Então
nós pegamos as buzinas, montamos
um teclado e estava pronta a zuera”,
conta o ex-líder. Os dirigentes da
época argumentavam que no ano de
72 a dupla Ave-Cruz perdia pontos
preciosos em casa por falta de apoio
da torcida, o que não ocorria mais
com a Associação.
Com o estádio sempre cheio,
muitos jogadores sentiram a pressão.
O ex-atacante Palito, formado nas
categorias de base do Santa; e que
jogou na ASCF em 75, lembra da
cobrança dos torcedores: “A torcida
era uma loucura. Os caras acompanhavam o time onde fosse. Por causa
da pressão da torcida tinha
jogadores que passavam mal;
sentiam dor de estômago”. A
proximidade dos torcedores
com os atletas acentuavam as
cobranças por resultados. Sérgio conta que a relação entre
torcida, diretoria e atletas era
familiar.
INVASÃO – Com a rivalidade entre os times da cidade
encerrada, os municípios vizinhos passaram a ser o alvo dos
torcedores. No dia 18 de fevereiro a Associação disputaria a
A equipe da
ASCF em 1972
Gabriel Porto, o Cuca
“A cidade inteira se uniu para torcer pela associação”
Naquele dia ele não assistiu ao
jogo. Quando o portão foi derrubado
ele estava à frente, junto dele uma
torcedora caiu e foi pisoteada. “Eu
levei ela ao Pronto Socorro, fiquei lá
até o fim do jogo. Eu não sabia o que
estava acontecendo no estádio, sabia
apenas que o resultado era bom para
nós. Quando saímos do PS o taxista
contou que tinha ocorrido a invasão,
que a torcida da Associação tinha
bagunçado. Mas essa não foi nossa
intenção”. O jogo sem gols favoreceu
a Associação que seguiu para o melhor resultado de sua história.
O FIM – Depois de uma temporada como a de 75, todos esperavam
que o ano seguinte fosse de vôos mais
altos. Porém uma forte crise financeira abalou os cofres do clube, o que
fez com que as desavenças ficassem
mais fortes. As tratativas para a união
dos patrimônios sociais cessaram de
vez e junto com elas promessa de
construção de estádio municipal.
Os dirigentes e associados do Avenida também se incomodavam com
um fato que foi determinante para
a ruptura com a Associação. “Em
todos os lugares onde a Associação
jogava, falavam no nome Santa Cruz,
e o pessoal do Avenida não gostava
nada disso por que parecia que era o
Futebol Clube Santa Cruz que estava
ARQUIVO PESSOAL
liderança. O adversário: Associação
Lajeado – outra equipe fruto de
fusão. Comentarista esportivo do
jornal Gazeta do Sul na época, Ernani Aloísio, destacava o que entrava
em jogo numa partida de cidade
vizinhas: “Não tenho bronca com
eles. Todavia, no futebol, como no
esporte em geral, eles têm uma cisma contra nós e; porque esconder o
leite, nós contra eles também”. Com
estes ingredientes fervia o caldeirão
do futebol no interior em 73.
Encarado como o grande clássico da região, a rivalidade entre
Santa Cruz e Lajeado mobilizou a
população das duas cidades. Sérgio
Machado lembra deste jogo como
a “1º grande invasão”. Segundo ele,
foram 17 ônibus com torcedores de
Santa Cruz. “Nós provocamos, pelas
rádios e jornais, os torcedores de lá
para um desafio. Ao chegar em Lajeado, os torcedores da casa contavam
os ônibus. Quando chegou no 12º
carro eles calaram”.
O jogo de 12 de julho de 1975,
contra o São José de Porto Alegre
ficou marcado na vida da Associação. Todos jogadores e dirigentes
guardam na memória esta data,
principalmente os torcedores. Naquela ocasião o time de Santa Cruz
precisava do empate para se classificar. Em uma manhã chuvosa
partiram 46 ônibus com destino
ao estádio Passo d’Areia. “Quando
aquela multidão chegou, os portões
do estádio estavam fechados. Os
funcionários do Zequinha, responsáveis pela bilheteria, faziam corpo
mole para repassar os ingressos. A
Brigada Militar também tentava
impedir uma possível invasão. Mas
quando a massa desceu dos ônibus
foi impossível segurar; o portão que
dava acesso às arquibancadas foi
derrubado”, conta Sérgio.
Sérgio Machado
“Em dias de jogos os bares da cidade fechavam por causa das brigas”
As divergências entre
os dirigentes provocava
mudanças constantes no
uniforme da equipe
GELSON PEREIRA
jogando”, explica Sérgio Machado.
As dificuldades em 76 se refletiram em campo e os maus resultados
diminuíram a empolgação da torcida.
O Avenida reabriu o departamento
de futebol amador e ameaçava se
desligar da Associação. A torcida
do periquito abandonou os jogos da
Associação e passou a freqüentar os
jogos do campeonato amador. Finalmente, no dia (12 de dezembro) de
1976, foi realizada uma assembléia
no clube para acertar a ruptura.
Depois disso a associação jogou por
mais dois anos. Porém, sem o apoio
dos avenidenses ficou difícil manter
nível do futebol.
Oficialmente a Associação do
Futebol de Santa Cruz do Sul foi
fundada em uma Assembléia Geral
em dezembro de 72. Na ocasião foi
eleita a diretoria e escolhido o nome
e o uniforme do novo clube. A des-
confiança diante da rivalidade histórica entre eles fez com que apenas
o departamento de futebol ficasse
unido, diferente do projeto original,
idealizado pelo então gerente do
banco do Brasil João Gouveia. “A
idéia era unir os dois patrimônios,
se isso fosse feito talvez a associação
ia estar viva até hoje”, acredita Hélio
Almeida.
Em 1978 a Associação Santa Cruz
do Futebol jogou seu último campeonato, já em tom de despedida.
O Esporte Clube Avenida já havia
reaberto as atividades profissionais
no futebol e jogava a divisão de acesso do campeonato gaúcho daquele
ano. O último jogo da equipe
foi uma derrota melancólica em
casa contra o Cruzeiro de Porto
Alegre. Em 1979 o Futebol Clube Santa Cruz voltou a disputar
o campeonato gaúcho, voltando
à primeira divisão em 1982, mas
sem o brilho dos velhos tempos.
O Avenida voltou a disputar
a primeira divisão apenas em
1999, e foi rebaixado novamente
em 2000. Da Associação sobraram apenas as histórias de pessoas que participaram da época de
ouro do futebol santacruzense.
Sérgio Machado
comandava as
provocações aos clubes
das outras cidades
Cláudio Froemming
Um homem, com 83 anos de
idade, vive há mais de 50 anos
à beira de uma lagoa do Rio
Jacuí, próximo à Vale Verde, município do Vale do Rio Pardo. Solitário por opção, essa figura ganhava
a vida catando conchinhas no passado e vendia-as em Porto Alegre, onde
remava de canoa pelo rio, por vários
dias, até chegar à capital. Não tem
cachorro, nem gato ou papagaio.
Nunca visitou um médico,
nem dentista, além de não
precisar de tecnologia
ou luxo algum para
ser feliz.
Geib
“Sem endereço e sem patrão é assim que gosto de viver”
CLÁUDIO FROEMMING
U
m homem chamado
Siegfried Helmut Geib,
saiu de São Leopoldo quando tinha aproximadamente 30
anos de idade, década de 1950 e se
aventurou pelo Rio Jacuí, em busca
de conchas, mais conhecidas como
madre-pérola, que eram muito usadas na época para confecção de botão
para camisas, casacos e ternos, entre
outros. Ele enchia sua canoa e remava até Porto Alegre, uns 120 km de
distância para vender seu produto.
A jornada levava em média uma
semana, isso com tempo bom.
Quando chovia, a canoa era
atracada em uma barranca e um
acampamento era montado pelo
navegador solitário. Quando a chuva
parava, era hora de prosseguir a viagem, que nestes casos levava o dobro
do tempo. Outro empecilho era o
vento, que muitas vezes soprava ao
contrário, impedindo a navegação e
fazendo com que o aventureiro parasse com sua viagem novamente.
Ao chegar em Porto Alegre se
dirigia a uma fábrica que comprava
suas conchinhas, que eram pagas por
quilo. O material, muito valioso na
época, não era só uma peça decorativa, e sim, fonte de renda para o
sustento de um homem solitário por
opção, que não gostava de ter chefe
e nem obedecer a ordens.
A solidão como
parceira no meio
da mata
Já a volta para casa, muitas vezes era mais rápida, pois Siegfried
geralmente conseguia uma carona, ou seja, era rebocado por uma
embarcação a vapor, que o deixava no seu destino em menos de
um dia. Atualmente, as conchas
não servem mais, pois a indústria
já produz a matéria-prima para
confecção de botões. Hoje em dia, as
conchinhas ainda são encontradas à
beira do Rio Jacuí, mas não chamam
mais a atenção, pois não possuem
mais valor comercial.
SEM ENDEREÇO – Em pleno
século 21, o que mais atrai as pessoas
é a facilidade de acesso às tecnologias, que estão presentes na vida
da grande maioria da população.
Internet, celular, carros importados
e robôs são evoluções humanas que
fazem a cabeça de homens e mulheres, pela questão da comodidade que
podem oferecer, e, até mesmo, pela
vaidade de possuí-los. A concepção
de felicidade nos dias de hoje é ter
uma bela casa, com um lindo carro,
ter um emprego de status, ter contatos influentes e viajar pelo mundo.
Você pode até concordar que
esse é o caminho para ser feliz de
verdade. Porém Siegfried é muito diferente e não concorda com isso, pois
mora em um local totalmente isolado, em frente à uma lagoa que sai
do Rio Jacuí, sozinho, há mais de 50
anos, sem ninguém. Nem cachorro,
nem gato, nem papagaio. Somente a
mata no jardim do quintal, o céu azul
como um cartão postal e as águas que
cruzam em frente a sua casa.
Geib, como é mais conhecido,
resolveu viver uma vida diferente,
sem endereço, sem carteira assinada
e sem patrão e muito menos mulher
e filhos. Construiu uma casinha
CLÁUDIO FROEMMING
simples, de tábua, com dois andares por causa das enchentes. Para
se chegar ao local, não existe uma
referência concreta, pois o rio é sua
rodovia estadual e uma lagoa é sua
estrada vicinal, que leva à moradia
deste homem, que vive de modo
muito simples, mas feliz. A única
localização que serve como ponto
referencial é o trajeto do Rio Jacuí
que corta o município de Vale Verde, nas proximidades do Balneário
Monte Alegre.
Seu único meio de transporte é
uma canoa, que há pouco tempo recebeu um motorzinho. Seus braços,
cansados de muitas remadas, já não
suportam mais distâncias longas.
Em seu paradeiro no meio do mato,
os únicos vizinhos são os animais
silvestres, que se aproximam de vez
em quando, como os graxains, capivaras, tatus e os chatos dos
mosquitos, que são capazes de
afugentar até os passarinhos
em determinadas épocas, mas
que não chegam a chatear esse
velho homem.
Conchinhas à beira do
Rio Jacuí já foram o
principal sustento por
vários anos
Sua rotina de vida é
pescar, descansar, dormir,
comer, meditar e não se
preocupar com o que acontece no planeta. Sabe exatamente os lugares onde
sempre dá peixes, pois já
conhece cada pedaço do rio
e das lagoas. Mesmo quando
liga seu radinho a pilhas e
houve algum noticiário,
Geib sabe que não há crise
mundial que o afete, pois
ele não tem investimentos na bolsa
de valores, nem emprego para perder, muito menos conta telefônica,
luz, água e IPTU para pagar e nem
família e filhos para sustentar.
Sua única preocupação é não
ser chateado por algumas visitas
indesejadas de pessoas que querem
saber um pouco mais sobre esse seu
estilo de vida pouco comum. Para
sua sorte, quem aparece só de vez em
quando são alguns pescadores, que
moram na redondeza e são velhos
conhecidos seus. Além deles, muito
raramente aparece alguém, a não
ser uns poucos amigos que querem
prosear com o morador solitário.
AMIGOS – Hilberto Kellermann
é um mecânico de Vale Verde que o
visita regularmente, pois gosta muito
de conversar com o Geib e ouvir
CLÁUDIO FROEMMING
Geib
“Minha rotina é pescar e depois descansar, olhando o tempo passar”
Pescaria é o melhor
passatempo e ainda
rende o jantar preferido
Geib na sacada do seu
rancho no meio da mata
e rodeado por muita
água e solidão
CLÁUDIO FROEMMING
debater assuntos dos mais diversos, pois durante esta entrevista,
demonstrou ter um conhecimento
bem amplo e até aprofundado em
alguns assuntos, mas principalmente
sobrevivência e solidão.
Mesmo enxergando com um
olho só, não usa óculos e consegue
colocar uma linha em uma agulha.
Sua saúde é muito boa, pois nunca
visitou um médico e quando aparece
algum incômodo, ele se cura com
chás e ervas que aprendeu a usar.
Adora fumar cigarros além de tomar
cerveja e cachaça.
O visual do rio
Jacuí no anoitecer
é sisplesmente
deslumbrante
SEM PRESSA – Geib se diz
muito feliz com o modo de vida que
leva, sendo que não pretende mudar
em nada sua rotina, quer continuar
vendo os dias amanhecerem e anoiCLÁUDIO FROEMMING
dele histórias do passado e
das vantagens e dificuldades
de morar sozinho no meio
do nada. Outro amigo que o
visitou recentemente, e isso
depois de 15 anos sem terem
tido algum contato, se chama
Dalmeci Teixeira, um agricultor que mora em Monte
Alegre, interior do município a aproximadamente dez
quilômetros de distância. Os
dois viveram muitas histórias
juntos e tem vários amigos
em comum. Outro parceiro
seu é um pescador chamado
Podolirio Manoel de Souza
que mora em uma ilha do Jacuí a
aproximadamente três quilômetros
de distância e leva um estilo de vida
parecido em alguns aspectos. Porém,
este tem família, animais de criação
e convive com um número maior
de pessoas.
De temperamento forte, esse
velhinho tem uma lucidez incrível
e é capaz de falar sobre qualquer
assunto. Porém, usa o método da
tolerância zero para perguntas ou
afirmações que considera inúteis ou
idiotas, como por exemplo: Ao ser
perguntado por um visitante sobre
quais espécies de peixes poderia
pescar na lagoa em frente a sua casa,
respondeu: “– O senhor não vai
querer que eu mergulhe para saber
quais peixinhos estão nadando aqui
por perto? Vai?”
Geib fala alemão e espanhol,
além do português e é um ótimo
cozinheiro, pois aprendeu a arte da
cozinha enquanto serviu o quartel.
Seu prato predileto é o ensopado de
peixe com pirão. Também adora comer banana. Mesmo não convivendo
com os acontecimentos mundiais
diariamente, ele não se aperta para
Curiosidades:
-Banho de corpo, até alguns meses atrás, só de vez em quando, nas
águas do Rio Jacuí. Agora tem um poço artesiano e um chuveiro
aquecido por um gerador.
-Sua ligação com os acontecimentos locais e mundiais chegam
por meio de um radinho a pilhas e também por uma TV movida a
bateria.
-Serviu no quartel no ano de 1941, ano em que a região foi atingida
pela maior enchente já registrada.
-Participou da Segunda Guerra Mundial na Itália, época em que era
um dos cozinheiros do exército brasileiro.
-Se um dia precisar de socorro médico, terá que torcer para que consiga
navegar por aproximadamente três quilômetros, até encontrar um
vizinho que possa lhe ajudar.
-Foi assaltado uma vez em sua casa, por um grupo de pessoas que
o amarraram e fugiram levando alguns pertences.
-Durante estes anos todos, nunca teve contato com algum familiar
seu.
tecerem, sempre do mesmo jeito,
sem novidades, sem compromissos
e sem surpresas desagradáveis. Para
ele o tempo passa muito lentamente,
tanto que um ano parece três, e isso o
deixa feliz. Afirma que não tem pressa nenhuma de envelhecer e muito
menos de morrer, pois se sente um
velho jovem.
Acordar e dormir sem o barulho
dos vizinhos, sem a zoeira do trânsito e sem as sirenes da polícia são
fatores que fazem com que Siegfried
viva convicto de que escolheu o
lugar certo para morar. Para ele
não tem sentido viver em meio à
ganância, mentira e maldade só para
conquistar bens materiais. Estresse
é uma palavra que não faz parte do
vocabulário deste homem, que tem
uma riqueza interior maior do que
se possa imaginar.
Enquanto o mundo ferve com
acontecimentos dos mais variados,
um homem de 83 anos vive em um
elo perdido, onde a ganância não
existe, em que a paz ainda é uma
bênção e a natureza um paraíso. Se
viver assim é certo ou errado, ninguém poderá julgar, porque a única
coisa que se leva da vida, é a vida
que se leva.
A saga
do Leiro
Crônica
Rodrigo Nascimento
Leiro é um cara bacana, acomodado, mas
bacana. Dizem os “outros” que o Leiro é muito
faceiro, inteligente e festeiro.
Leiro é grande, bonito, mas não tem autoconfiança. Porém,
tem muita gente por aí que confia nele. Nem ele mesmo sabe
disso.
Leiro é um cara que trabalha pra caramba. Sai todo dia, às 5 da
manhã, toma duas, às vezes três conduções e chega sorridente
ao trabalho, na hora marcada. Quando chega o meio-dia, às
vezes almoça, de vez em quando faz de conta. O Leiro é bóiafria, mas nem sempre. Já existe o microondas que salva o Leiro.
Quando já escuro, assim como na partida, o Leiro volta pra casa,
sorrindo por mais um dia que passou. Que respirou.
Chega em casa vê os filhos estudando. Lembra de quando era
criança. Lembra do tempo em que devia ter estudado mais. Do
pai, que se esforçava como ele para dar uma vida melhor aos
seus. Chora. As lagrimas escorrem de felicidade e de frustração.
Felicidade porque, assim como o pai, sua existência sub-existe
em função dos filhos. Frustração porque o tempo passa, ele
sabe que os filhos precisam crescer e daqui a pouco estarão
voando sozinhos.
Leiro precisa descansar, porque amanhã tudo acontece de
novo. Vai ao banheiro, toma o rápido banho. Rápido porque
além de escassa a água é cara. Não só a água como a luz.
Lembra das faturas que nunca erram o endereço e a data do
vencimento. Deixa que as poucas e preciosas gotas o refresquem
da fadiga da maratona do dia.
A Leira, esposa do Leiro, esforça-se também. Trabalhou o dia
todo, apanhou as crianças na creche, limpou a casa e fez aquele
jantar especial: arroz, feijão e bife. Às vezes não tem bife, mas tem
ovo, tem amor. O casal é feliz na condição que lhes foi imposta
desde que existem e que se conhecem por “gente”.
O Leiro deita e dorme. Não por que seja bom de cama.
Dorme porque o corpo precisa, mas a cabeça fica a mil. Essa
nuca dorme, dentro dela, Leiro imagina uma vida um pouco
menos corrida. Com menos compromisso. Com mais amor, mais
respeito, menos despeito.
Mas de onde vem o Leiro? Nem ele mesmo sabe ao certo.
Seu povo foi “descoberto” e (de)formado a partir dos “outros”.
Aqueles que mudaram até a cor do Leiro. Hoje ele não é mais
puro, nem tão branco, nem tão preto.
Aqueles que tinham inveja da terra do Leiro. Uma terra, que
tinha uma madeira cor de brasa. Vermelha, da qual vem o
sobrenome do Leiro, Brasi.
Henrique Lindner
Helmuth Lindner, 94 anos, quando entrou para o
Exército Brasileiro não imaginou que logo iria para uma
operação de guerra. Nem que fosse usar pás e picaretas
no lugar dos fuzis e granadas. O campo de batalha
seria uma estrada.
V
oltar ao passado pode ser
uma tarefa dolorosa,
emocionante. Ainda mais se
as lembranças estão muito vivas. Mas
o que dizer se nesse regresso o que
se quer rever está totalmente transformado, encoberto? Foi assim que
um agricultor de 94 anos, ex-soldado
do exército, encontrou o lugar onde
passou um ano inesquecível de sua
juventude. Seria apenas uma história
pessoal se não tivesse a ver com as
milhares de pessoas que cruzam diariamente a fronteira do Rio Grande
do Sul com Santa Catarina, entre
Vacaria e Lages, pela BR 116.
Os motoristas que passam por lá
não imaginam a riqueza de fatos que
o local guarda. Se soubessem, talvez
rendessem uma homenagem a quem
derramou seu suor e até perdeu a
vida pela construção desta rodovia.
Os bonitos campos da região serrana foram o cenário do trabalho de
verdadeiros heróis operários, muito
antes de o asfalto cobrir o caminho
que cruza o Rio Pelotas, no nordeste
gaúcho.
Eles eram soldados e uma de suas
armas era a sapa, uma espécie de pá.
Essa história é de 1934, quando uma
fração do 3º Batalhão de Engenharia
do Exército Brasileiro foi transferido
Seu Helmut, com
94 anos, exibe
o certificado de
reservista
HENRIQUE LINDNER
ARQUIVO PESSOAL
“...eram soldados e uma de suas armas era a sapa”
A única proteção
contra o frio eram
pequenas barracas
de Cachoeira do Sul para Vacaria.
Objetivo: abrir a estrada que ligaria
a cidade até Passo do Socorro, na
divisa. Mais tarde, este trecho faria
parte da BR 116, uma das
estradas mais importantes do
país, que atravessa o território brasileiro de Norte a Sul.
Naquele tempo não existiam
máquinas pesadas para este
tipo de serviço. Era no braço
mesmo, na base do picão, da
enxada e da sapa. Por isso, o
grupo também era chamada
de Batalhão de Sapadores.
Civis também foram contratados pelo exército para o trabalho, a partir de 1935, lembra o
advogado e historiador de Vacaria
Adhemar Pinotti. Ele cita o livro
“Vacaria dos Pinhais”, escrito por
Fidélis Dalcin, em 1978, um dos
poucos registros que falam dessa
historia. Nele consta ainda que, além
da BR 116, os Sapadores ajudaram
a construir a BR 285, na mesma
região.
A obra, na divisa com Santa Catarina, serviria para aproximar o Sul e
o Centro do país, já que esta ligação
dependia basicamente das ferrovias.
Também para o exército seria uma
via importante, conta o coronel
da reserva Cláudio Moreira Bento,
presidente do Instituto de História
e Tradições do Rio Grande do Sul.
Helmuth Lindner
“Chegamos a construir aterros de até cinco metros de altura”
ARQUIVO PESSOAL
Civis também
trabalharam na
abertura da estrada
FRIO – Já em Vacaria,
uma das cidades mais frias
do Estado, o recruta logo
percebeu que marchar e
instruções para a guerra
ficariam em segundo plano. A ordem era trabalhar
na abertura da estrada.
Como se não bastasse o serviço pesado, alguns dos integrantes da unidade iriam passar por mais uma prova
de resistência. Não havia lugar para
todos no alojamento e alguns teriam
HENRIQUE LINDNER
O Brasil vivia uma época conturbada. Getúlio Vargas monitorava os
passos dos comunistas, que esperavam contar com a ajuda de oficiais
rebeldes do exército para derrubar
o governo. Deslocamento de tropas
para controlar motins era sempre
uma possibilidade presente.
Entre os sapadores estava Helmuth Germano Lindner, um jovem que havia deixado a roça no
interior de Agudo – que na época
não passava de um povoado pertencente à Cachoeira do Sul - para
prestar o serviço militar. Nascido
em 1912, seu Helmuth conta que
foi de caminhão para Cachoeira
se apresentar ao exército, em abril
de 1935. Lá ficou sabendo que seu
destino seria outro. A viagem agora
seria de trem até Caxias do Sul e de
lá até os Campos de Cima da Serra
novamente de caminhão,
já que ônibus ainda era
algo raro naquele tempo.
de dormir em barracas perto do local
de trabalho. Hemuth e outros cinco
colegas estavam entre eles. Quatro
eram conterrâneos seus.
Para enfrentar as temperaturas
negativas durante o inverno as condições eram precárias. Nada além de
uma cama feita de algumas estacas,
capim e lona, e um cobertor para
cada soldado. Era comum dormir de
farda para enfrentar as noites geladas. O frio era tanto que em alguns
dias formava-se geada nos bonés
que os soldados usavam durante o
trajeto entre a barraca e a frente de
trabalho, conta o velhinho, dono
de uma memória de dar inveja. Eles
passaram cerca de meio ano assim.
Apesar de tanto sofrimento, esta é
uma das histórias que o aposentado,
descendente de imigrantes alemães,
mais gosta de contar nos encontros
de sua família, em que já comparecem trinetos.
Higiene não era o forte daquele batalhão. Os banheiros eram
improvisados para os mais de 400
homens da tropa. Meio envergonhado, Helmuth lembra que tomou
banho apenas uma vez naquele
ano. A remuneração dos milicos era
Helmut na estrada
que ajudou a
construir
A SAUDADE – A vida
de soldado-operário durou um ano e dez dias para
seu Helmuth. Durante
este período ele não foi
para casa nenhuma vez.
“Era muito longe, o prazo
de dispensa era curto e o dinheiro,
pouco”. E para matar a saudade da
namorada? Cartas. Elas eram escritas
por um de seus colegas já que ele só
sabia desenhar o nome. Além de um
bandonion de um soldado, uma das
diversões nos dias de folga era caçar
tatu, que servia para incrementar o
cardápio, sempre a base de feijão,
arroz e carne. Também era comum
ver javalis e cervos em meio aqueles campos. “Até onças diziam que
tinha, mas eu nuca vi uma”, conta
o ex-soldado.
Seu Lindner é um homem forte,
embora tenha de se apoiar sobre duas
bengalas para andar. Mesmo com a
idade avançada e seu corpo arcado,
ainda ajuda na lida com o fumo, na
propriedade de um de seus filhos, em
ARQUIVO PESSOAL
Helmuth Lindner
“Até onça diziam que tinha, mas eu nunca vi uma”
dividida em duas partes. Uma fixa
e outra variável, de acordo com a
produção. Além das ferramentas
manuais, havia também as galeotas
- um tipo de carroça puxada por
mulas - usada para carregar terra.
“Chegamos a construir aterros de
até cinco metros de altura”, conta o
veterano. Para remover as rochas era
usada dinamite. Foi o explosivo que
levou a vida de um dos sapadores.
Velório e enterro foram ali mesmo,
em meio às araucárias que predominavam naquela região. Era o próprio
treinamento para a guerra. Outros
poderiam ter morrido durante um
desentendimento quando
um dos soldados chegou a
disparar alguns tiros. Ele
não acertou ninguém.
Linha Teutônia, mesma localidade
onde nasceu. Corpo calejado, mas
não os sentimentos. O velho colono
se emociona e seus olhos se enchem
de lágrimas quando ele lembra do dia
em que teve de se despedir de seus
colegas. Depois de cumprir um ano
de serviço eles voltavam para casa.
Ele ainda ficaria alguns dias.
Lembranças que emocionam, mas
nada de saudosismo. Helmuth não
ficou triste ao ver o asfalto que agora
cobre toda essa história. Em 2000
ele voltou ao local que nunca vai
esquecer. Achou bonita a paisagem,
a rodovia. A cidade não reconheceu,
mas apontou para um gramado nas
margens do Pelotas: “Lá ficava nosso acampamento”, disse ele a seus
familiares que o levaram para uma
espécie de viagem no tempo. Hoje
Seu Helmut
(segundo da direita
para a esquerda)
em momento de
confraternização
o ex-soldado do Exército Brasileiro
diz que não queria passar por tudo
aquilo novamente. Mas pela forma
entusiasmada com que fala daquela
época, seu Helmuth não consegue
esconder que esta foi uma das experiências mais marcantes de sua
vida.
A antiga unidade dos sapadores
ainda existe, mas com outra denominação, e claro, outras ferramentas.
Em 1950 passou a ser o 3º Batalhão
Rodoviário e mudava de sede de
acordo com suas obras. Hoje, está
sediado em Cuiabá, Mato Grosso.
É o 9º Batalhão de Engenharia de
Construção.
Daniele Horta
Marisa Lorenzoni
Invadimos a boate
de shows eróticos
mais famosa de
Santa Cruz do Sul,
para que pudéssemos
ver além das garotas
de programa que lá
trabalham. Fomos
descobrir quem são
as pessoas comuns
que ganham a vida
com o trabalho que
torna possível o
funcionamento da
“Grande Casa”.
MARISA LORENZONI
DJ Zé
“Muitos pensam que trabalhar aqui nos faça perder o respeito”
N
oite de quinta feira, 19h.
Estacionamos o carro em
um local discreto para não
chamar a atenção, afinal não seria
muito agradável ser vista entrando
em uma casa de prostituição, especialmente a mais conhecida da
cidade. Na portaria, um simpático
senhor nos recebe desconfiado, mas
logo abre um sorriso confirmando
se éramos esperadas para permitir
nossa entrada.
Os passos trêmulos de mulheres
desacompanhadas entrando em território proibido nos levam até um
grande salão bem iluminado, com
muitos espelhos, sofás e um bar que
divide o ambiente. Portas enormes
do outro lado do recinto indicam
que existe muito mais espaço pela
frente. Tudo limpo, organizado, parecendo até um ambiente familiar,
não fossem pelos palcos e mastros
espalhados pelo salão.
No pátio interno, estátuas ornamentam o corredor que leva até um
quiosque com churrasqueiras e outro
bar. Árvores e diferentes flores emolduram a piscina, o aquário natural de
proporções gigantescas, com carpas
chinesas e uma cascata artificial.
No palco externo, as colunas gregas
contrastam com a modernidade dos
holofotes coloridos e do globo espelhado. A casa, que promete satisfazer
os mais íntimos desejos masculinos,
nos surpreendeu por sua beleza; à
luz do dia, passaria tranquilamente
por um clube social. Um local para
ser curtido com a família.
A maior casa de comércio do sexo
é o sonho de noitada dos “festeiros”
de plantão. Rapazes cheios de testosterona economizam dinheiro
para pagar os R$ 30,00 reais cobrados apenas para entrar no local. A
competição é grande quando lá se
encontram muitos estrangeiros à
procura de diversão na cidade e com
os bolsos cheios de dinheiro para
bancar a folia.
Mas a engrenagem que faz a
casa manter-se em funcionamento
vai muito além das meninas e seus
shows de strip-tease. Existem outras
pessoas que fazem a parte de suporte, muitas vezes sem sequer serem
vistas. São os anônimos da noite.
Essas pessoas da retaguarda vivem
ali experiências não tão distintas
da realidade de outro trabalhador
qualquer. E ficou claro ao conhecer
Tia Nina é uma das
responsáveis pelo
almoço
Chico
“Aqui a gente vê de tudo, um cara é sério lá fora e aqui dentro se libera”
DONAS DE CASA – A “tia”
Nina, como é conhecida e carinhosamente chamada, se reveza durante
o dia com outra funcionária na tarefa
de alimentar as meninas, já que elas,
na sua maioria, moram ali e, também
em vários serviços de limpeza.
Aos 45 anos, Nina é das antigas,
trabalha na Big House há seis anos,
destes, mais da metade foi durante a
noite. Foi logo nos convidando para
sentar em umas das aconchegantes
salas do recinto. A “tia” não nega
que quando começou ficou bastante preocupada, afinal, não sabia o
que esperar desta nova experiência.
Chegou a passar por sua cabeça que
só encontraria ali mulheres loucas e
agressivas, mas passada a insegurança inicial, Nina percebeu que seria
um trabalho como outro qualquer.
“Eu logo vi que é um ambiente bom
aonde vêm pessoas de bem.” Entretanto, a perfeição não existe, e lá, nos
anos em trabalhou à noite, precisou
lidar com alguns percalços causados
pelo consumo excessivo de bebidas
alcoólicas entre as meninas.
SERVIÇOS GERAIS – Na manutenção, encontramos o Paulo e
o Gerson. São eles que cuidam do
jardim, da piscina, do aquário, trocam lâmpadas, enfim, serviços que
fazem parte do dia a dia de uma casa
comum.
Paulo, 29 anos, também tem um
bom tempo de casa, são oito anos
de trabalho, muito à vontade, abriu
logo a guarda e contou que foi um
início contrastante com o que estava
habituado: antes trabalhava na construção civil. No princípio ele precisava trabalhar algumas noites no
atendimento, ou seja, acompanhar
de perto os shows das garotas. “Eu
via as meninas dançando, fazendo
strip-tease, aquele movimento todo.
No início é novidade. Aquilo pra ti é
a sétima maravilha do mundo, mas
com o passar do tempo tu te acostumas, se torna natural.”
Quem nunca gostou muito do
trabalho de Paulo é a sua mulher.
Situação perfeitamente compreensível, afinal durante alguns anos ele
precisou dormir nos alojamentos
ali disponíveis, pois fazia parte de
suas obrigações abrir o portão para
as meninas que voltavam de seus
programas.
Dos anos em que esteve no atendimento, traz apenas uma lembrança
MARISA LORENZONI
esses funcionários, que, para eles,
o local não possui o tom extraordinário dado por quem o vê de fora,
com olhos famintos. É um trabalho
comum, que garante o sustento de
famílias que dão o apoio para estes
trabalhadores assumirem com orgulho: eu trabalho na Big House sim,
algum problema?
Com a chegada de clientes, decidimos nos recolher para um ponto
mais discreto (difícil de encontrar
ali, mas tudo bem) e conhecer melhor a vida de quem passa as noites
em claro para garantir que o show
continue. Começamos a missão de
saber, afinal, como é trabalhar na
noite mais famosa da cidade.
DIVULGAÇÃO
ruim. Foi quando um cliente gringo,
desconfiado do valor que Paulo o cobrara sobre uma bebida, lhe dirigiu
ofensas verbais, que o magoaram
muito.
O jovem Gerson, 20 anos, na
época da entrevista, trabalhava há
pouco mais de três meses na casa.
É de Encruzilhada e lá deixou uma
namorada, porém, sequer sabia se
continuava comprometido ou não.
Algumas noites ele também precisa
trabalhar, e teve oportunidade de
presenciar shows ao vivo que antes
nem imaginava. Apesar de encabulado, contou que em alguns momentos
perdeu um pouco da concentração
no trabalho, mas sem nunca perder
“a classe”.
VAI ENTRAR? – Boate
que é boate precisa ter um
porteiro, e na Big House não
é diferente. Ninguém entra
sem passar antes pela portaria
do seu Calmo. Homem, como
diz ele “de pouco estudo, mas
muita vivência”, afinal, já
são 72 anos de muita luta e
trabalho. Sempre sorridente
e solícito ao bombardeio de
perguntas, o já aposentado
Calmo fala com prazer sobre
seu trabalho, que começou
praticamente desde o início
das atividades da casa.
Paulo limpa tudo,
inclusive o aquário
Em todo esse tempo, ele presenciou diferentes momentos da Big
House, que já passou por épocas de
vacas magras a áureos anos onde
os gringos esbanjavam muita grana
lá dentro. Seu serviço consiste em
entregar uma comanda ao cliente
que chega e verificar se a mesma foi
paga quando o mesmo sai, e claro,
controlar a entrada de mulheres no
local, permitidas apenas com acompanhante.
Perguntado se assistia aos shows,
foi categórico “Fico lá na minha
portaria. De lá olho, mas já passei
dessas coisas todas... Deixo isso para
a juventude e vou cuidar do que
tenho em casa com a mulher. Não
vou desrespeitar.” Calmo conta que,
no passado, viu passar por ali muitas
gurias mal educadas, ao ponto de
se tornar difícil lidar com elas. Ele
revela que as meninas ficavam muito
estressadas quando não conseguiam
fazer um programa, e sem programa,
ficavam logo sem dinheiro.
Calmo, nos confessa nunca ter
visto uma situação que não pudesse
MARISA LORENZONI
Chico
“No início me chocava, mas hoje em dia não me causa mais espanto”
Zé escolhe o
repertório junto
com as meninas
Chico é o que tudo
sabe e tudo vê
ele mesmo se diz, Zé tem um filho
de 7 anos do primeiro casamento.
Sua atual esposa sofreu um pouco
no início, mas acostumada com o
companheiro trabalhando sempre na
noite, se acostumou logo com a idéia.
Já para ele, trabalhar em um local
tão diferente impactou no início
“Não mudou muito do que eu fazia,
mas os shows em si, pra mim foi
bem diferente... eu não freqüentava
boates desse tipo, vontade até tinha,
mas não dava tempo. Em questão
de uma semana e meia, eu já estava
adaptado.”
DRINKS E HISTÓRIAS – Chico
foi uma das figuras mais marcantes a
se sentar em nossa mesa inquisitória.
Com um jeito inocente e vocabulário
simples, encanta pelas histórias e
aprendizados adquiridos lá. Nascido
Curiosidades
-Grande parte do público da Big House é formado por estrangeiros que vem para a cidade a trabalho. Mas como pessoas
tão simples se comunicam com a clientela de fora? A resposta é até óbvia: os clientes trazem tradutores, mas mesmo assim
os funcionários “arranham” um inglês para facilitar o entendimento quando algum deles resolve aparecer sozinho.
-E como fica a relação com os clientes fora da Big House? Seu Calmo explica que jamais cumprimenta algum cliente sem
que antes este se manifeste, e o mesmo garantem os outros funcionários. Discrição é a palavra- chave para quem trabalha
em um local como este, mesmo que lá dentro se crie uma amizade grande, como eles afirmam existir com alguns clientes
mais freqüentes, fora a história é outra.
-No pátio interno, em meio à perfeita ornamentação algo grita aos nossos olhos: um grotesco orelhão telefônico verde
limão ao lado da piscina é desajeitadamente oferecido a quem está no local e, provavelmente sem outra opção mais
discreta, precise usá-lo.
-Apesar de termos sido informadas sobre o grande consumo de drogas entre clientes e as garotas, a Big House possui
uma política rígida quanto ao consumo no recinto. Segundo a responsável pela administração do local, a menina que for
pega tendo uma atitude não condizente à esta política proibitiva recebe uma multa, o que segundo ela é castigo suficiente
para inibir as atitudes incorretas.
-Todos os funcionários solicitaram que seus apelidos reais fossem utilizados na matéria. Segundo eles, é apenas desta
forma que seriam reconhecidos, e não por seus nomes próprios.
Paulo
“No início era difícil se concentrar 100% no trabalho”
NAS PICK-UPS – A música é algo imprescindível em
locais como este, e ela precisa
ser de qualidade. De instalador de parabólica a DJ, “Zé”,
como é conhecido, é o grande
responsável por animar as noitadas
do recinto. Aos 29 anos ainda é vítima do impacto recente de começar a
trabalhar em um local tão diferente.
Ele relata que o som que toca na noite é bastante variado, indo do dance,
passando pelo hip hop, pagode,
até o bailão e as animadas músicas
tradicionalistas. Esporadicamente,
para agradar os clientes de fora, toca
alguma música específica de países
estrangeiros.
O show das meninas é um caso
à parte. Quando são feitas performances de strip-tease, Zé vai cedo
para a “Big” preparar o repertório,
escolhido juntamente com as garotas. Cada uma possui uma pasta no
computador, com as músicas de sua
preferência, tudo muito organizado
e profissional.
Informalmente casado, como
DIVULGAÇÃO
ser controlada dentro da casa,
inclusive se quando alguma
esposa ou namorada aparece.
Calmo também ajuda a controlar a situação, “mas é raro
isso acontecer” alivia-se ele.
Tia Nina
“O que se vê aqui, vê em qualquer outra festa. Às vezes lá fora é pior”
na localidade de Sinimbu, aos 36
anos de idade, Chico é responsável
pelo bar da Big House, e juntamente com Calmo, é um dos veteranos
do local, trabalhando na “Big” há 9
anos.
Afirma que trabalhar ali fez com
que ele amadurecesse bastante “Eu
tenho certa facilidade de lidar com
o público, mas aqui eu aprendi
muita coisa porque a noite te ensina
muito.”
Por ser um dos funcionários que
mais lida diretamente com o público do local, mesmo com seu jeito
simples, Chico demonstra muito
jogo de cintura com as situações que
acontecem lá dentro. Ele se diverte
relatando alguns fatos engraçados
“Faz poucos dias que uma mulher
apareceu por aqui procurando pelo
marido. Quando ele a viu, pagou a
conta rapidinho e foi embora com
ela. Não houve escândalo... mas não
sei o que aconteceu depois.”
Entre uma pausa e outra para
atender os clientes que começam a
chegar na casa, Chico, com seu jeito
um tanto inquieto e curioso, nos
conta sobre a experiência na noite
“A noite não é o que muita gente
pensa que é. Se não houvesse show
ninguém veria nada... é uma opção
de quem vem na Big House. E não é
para qualquer um, ela se torna cara.”
Referindo-se aos valores astronômicos cobrados pelas bebidas.
Para o barman e sua família, o
trabalho na Big House é algo comum, inclusive trazendo durante
o dia a esposa, e os filhos, de 5 e 13
anos, para conhecer o lugar. “Aos
domingos usamos o local tipo como
um clube. Fazemos churrasco... usamos a piscina.” gaba-se.
Terminadas as perguntas, nos
despedimos. Passando pelos cômodos do lugar, agradecemos a cada
um dos simpáticos funcionários, que
gentilmente nos abriram suas vidas
para quebrar o tabu de trabalhar em
uma casa de prostituição.
Crônica
Perigo
Guilherme Mazui
Cuidado. Elas são perigosas. Trazem essa característica no DNA. Caso um dia você se envolva
com uma delas, fuja. Sua vida estará a perigo.
Digo pela experiência do meu vizinho. Após a realização da
leitura scanner (rosto, peito, bunda e pernas),virá o momento
crucial. A primeira frase bastará. “Olá, tu gostarias de me acompanhar em uma xícara de café?” Corra! Corra muito! Ou seus
dias de cão sem dono, de cabelos e unhas por cortar, arrotos
na mesa, pés em cima do sofá, estarão contados.
Mulheres que falam conjugado são uma ameaça. Carregam
o complexo da governanta nas veias. Nos primeiros encontros
elas mostram cultura e finesse. Legítimas ladies. Até entrarem
na sua casa. Fim da linha. O lobão estará domesticado. “Tadeu!
Por obséquio, não molhe tanto o banheiro. Não és filho de
pato.” Não há flagelo e tortura maior do que ser xingado em
bom e correto português. E não existe coisa mais “brochante”.
Na hora do calor, Camões que se f.! No entanto essa língua
parece atrair.
Cuidado. Tape os ouvidos. Caso o contrário,
esta cena poderá se tornar realidade. Após horas de conversas sobre história da arte, filosofia; após devorar o almoço e a
sobremesa; após agüentar mais conversas, finalmente chega a
hora desejada.
- Gostei de você. Quer dá uma volta?
- Ok. Poderíamos ir no seu apartamento.
Não! Faça de conta que não ouviu. Porém você não dá
bola. As coisas avançam. Os dois estão perto do apê, sobem as
escadas, param, e nada da chave.
- Perdeste a chave?
Você pensa: “cala a boa Aurélio ambulante”, mas prefere se
calar. Afinal, o objetivo está próximo. A porta abre, as roupas
somem. O ato evolui. E o português derruba o tesão.
- Oh, iremos, iremos juntos, iremos...
Só ela foi. Mas você gostou. Esse tipo de mulher fica leve
como um anjo e possui um apetite singular. Apesar da aparente decepção, o casal marca mais um encontro. Não dá certo.
Os mesmos problemas se repetem. Mais uma tentativa, e mais
uma, e mais uma. Sem saída. Assim está você. Os xingamentos,
as palavras corretas nas horas erradas, não são suficiente para
afastar seu corpo do dela. Por mais que as mulheres que falam
conjugado sejam chatas, que os verbos matematicamente empregados doam nos ouvidos, um homem precisa deste tipo de
fêmea. Precisa receber ordens. Andar na linha. A vida boêmia
não pode ser eterna. O juízo já passou da época de chegar. O
jeito é se entregar, usar tampões de ouvidos... e gozar!
Crônica
...e a vaca foi pro brejo
Filipe Faleiro
Nosso churrasco, tradição da cultura gaúcha,
entra numa sinuca de bico. Segundo um relatório por ora chamado de Picanha’s Protocol,
o consumo de carne assada é um dos vilões do
processo de aquecimento global.
O estudo parte de cientistas ingleses e
olhar incisivo na realidade posta: Ocupação
americanos que freqüentaram, casas, chádo Iraque (por petróleo), investimentos em
caras, sítios e condomínios.
países como Venezuela e Angola, onde há
Eles perceberam o fenômeno da queima
necessidade de capital estrangeiro para exde carvão e de lenha; o consumo de carne
plorar o combustível fóssil. Nada mudou na
de gado, além do número elevado de piz“terra do nunca”.
zarias e churrascarias no país. Esta notícia
Dia 25 de fevereiro, o New York Times
saiu na revista CartaCapital, texto de Marcio
exibia em sua primeira página: “A Goldman
Alemão e destaca que Tony Blair e Al Gore
Sachs é uma das empresas que estão toestão de posse deste relatório. Nosso assado
mando as medidas mais enérgicas contra
está queimando!
as mudanças climáticas; à noite, a compaA atual situação do planeta inspira prenhia manda seus banqueiros para casa em
ocupação. Os relatórios da ONU culpam os
limusines de combustível híbrido”. Destaco
países ricos pelos estragos na
o “enérgicas” para expor como
Acho mais fácil
terra, que por sua vez, numa
a hipocrisia venceu a conscitentativa de defesa, financiam cientistas criarem uma ência. Enquanto Leonardo Dimáquina do tempo,
estudos e pagam pesquisadoCaprio e Al Gore discursavam
do que os Estados
res para encontrarem outros
sobre o aquecimento global
Unidos aceitar
motivos do efeito estufa e,
durante a entrega do Oscar e a
assim, dividir a culpa e poder abandonar o petróleo Academy Awards divulgava ter
dormir um pouco mais tranadquirido créditos de carbono
qüilos.
(que nada mais é do que negociar com um
Para reverter esta “crise ambiental”, a
“corretor de carbono”, que após ficar com
ONU afirma que teríamos de plantar uma
sua fatia, promete diminuir em algum lugar
nova floresta amazônica nos próximos anos
do planeta a emissão de gás carbônico), mais
- além de forçar a economia dos países dee mais geleiras derretiam na Antártida.
senvolvidos para uma mudança de rumo,
A bem da verdade é que como nosso boi
substituindo o uso de derivados do petróleo.
“ta na chapa”, ainda não pelo relatório citado
A união européia mostra preocupação com
no início do texto; mas pela desvalorização
estas questões, mas parece impossível criar
da atividade de criação e pela diminuição
um novo modelo econômico mundial, pelo
da área de pasto pelo programa de refloresqual a substituição do petróleo por fontes retamento implementado por multinacionais
nováveis de energia, como a cana-de-açúcar
de celulose. Ainda assim, sabemos que não
e o milho, teoricamente, beneficiariam o Brairão acabar com nosso churrasco do fim de
sil. É uma revolução Industrial às avessas.
semana, nem que tenhamos de começar
Acho mais fácil cientistas criarem uma
uma guerra, pois a identidade de homem
máquina do tempo, do que os Estados
do campo, peão de estância criador de gado,
Unidos aceitar abandonar o petróleo. E
ultrapassa gerações e sempre foi motivo de
para chegar a essa conclusão não precisa
orgulho. E Se a vaca for pro brejo, monto no
ser analista econômico ou gênio, basta um
meu pingo e vou atrás!

Documentos relacionados