FACULDADES COC

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FACULDADES COC
Revista Jurídica
FACULDADES
COC
Ano VII - Nº 7 - Outubro 2010
ISSN 1806-7603
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Ficha Catalográfica
R281
Revista Jurídica UNICOC / Faculdades COC. Ano 1. n.1
(jun.2004) -.- Ribeirão Preto, SP: Editora COC, 2004.
Ano VII. n. 7 (out. 2010)
Anual
ISSN: 1806-7603 (versão impressa)
1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional. 4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Faculdades COC. II. Revista Jurídica UNICOC.
CDD 340
SUMÁRIO
O DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O DESAFIO DA EFETIVAÇÃO
DO TRABALHO DECENTE PARA AS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS ..........11
Beatriz Rigoleto Campoy
ABORTO: ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS ........................................................23
André Gonçalves Fernandes
A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA .........................33
Wagner José Penereiro Armani
OS TRATADOS INTERNACIONAIS E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS NA ORDEM
INTERNA BRASILEIRA ....................................................................................................45
Paulo Henrique Miotto Donadeli
GLOBALIZAÇÃO E OIT: ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA DAS MUDANÇAS DO
MUNDO DO TRABALHO E DO DIREITO DO TRABALHO .....................................57
César Augusto R. Nunes
ASSÉDIO PROCESSUAL NO PROCESSO DO TRABALHO .......................................73
Bruno Hiroshi Kuae Neves
LUHMANN E OS SISTEMAS SOCIAIS: APORTES TEÓRICOS PARA A
COMPREENSÃO DO DIREITO AUTOPOIÉTICO ........................................................87
Jailson José Gomes da Rocha
ASSEMBLÉIAS GERAIS EM MEIO ELETRÔNICO: VALIDADE E EFICÁCIA
JURÍDICA ...........................................................................................................................101
Felipe Alberto Verza Ferreira
REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A PRESCRIÇÃO TRINTENÁRIA RELATIVA AO
FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO - FGTS ....................................117
Mario Augusto Carboni
O NEXO TÉCNICO EPIDEMIOLÓGICO PREVIDENCIÁRIO E A GARANTIA DA
ESTABILIDADE PROVISÓRIA NOS CONTRATOS DE TRABALHO ....................135
Thássia Proença Cremasco Gushiken
SOBRE UM ENSINO JURÍDICO MAIS ZETÉTICO NO BRASIL ..............................149
Samuel Mendonça / Felipe Adaid
HOMOCONJUGALIDADE E HOMOPARENTALIDADE: REGULAMENTAÇÕES
JURÍDICAS DAS UNIÕES ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO ...........................167
Letícia Duarte Hernandez / Elizabete David Novaes / Karina Prado Franchini Bizerra
OS LIMITES DA PUBLICIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ...
...............................................................................................................................................189
Cleuber Rufino / Leticia Pozzer de Souza
O PODER DE INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ..................................203
Paulo José Freire Teotônio / Carla Toloi Pereira
DOUTRINA
O DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO
E O DESAFIO DA EFETIVAÇÃO DO TRABALHO
DECENTE PARA AS TRABALHADORAS
DOMÉSTICAS
BEATRIZ RIGOLETO CAMPOY 1
Resumo
O trabalho doméstico remunerado constitui-se hoje como uma das atividades
mais realizadas por mulheres em todo o mundo. Caracterizado pela
informalidade, clandestinidade e precariedade esta atividade fez com que a
Organização Internacional do Trabalho - OIT aprovasse no ano de 2011 a
Convenção nº 189, que visa garantir o trabalho decente para trabalhadores
e trabalhadoras domésticas em todo o mundo. Desde modo, o presente
artigo visa revelar o atual cenário mundial referente ao trabalho doméstico
remunerado, tendo em vista os parâmetros do direito internacional do
trabalho, sua constituição, organização, princípios e objetivos.
Palavras-Chave: Trabalho doméstico remunerado, convenção 189, trabalho
decente, direito internacional do trabalho, OIT.
INTRODUÇÃO
A Organização Internacional do Trabalho adotou em Junho de 2011
a Convenção nº 189, a qual visa estabelecer parâmetros internacionais de
garantia ao trabalho decente para trabalhadores domésticos em todo o
mundo. Embora constitua um grande avanço na promoção do trabalho
decente este documento, ainda não ratificado por nenhum Estado membro,
suscita diversas discussões acerca de sua viabilidade e até necessidade. Deste
modo, questiona-se, no presente trabalho, quais as razões que levaram a OIT
a adotar este documento, e neste sentido, qual o papel do direito internacional
do trabalho na proteção do trabalho decente atualmente? Para responder a
estes questionamentos é necessário, em primeiro lugar, contextualizar o
trabalho doméstico remunerado na atualidade, ou seja, como este desenvolvese no Brasil e no mundo, além de esclarecer sob que aspectos históricos ele se
desenvolveu e quais os estigmas que ainda carrega.
Este exercício de delimitação temporal e espacial da referida atividade
nos ajudará a compreender sua importância na sociedade atual, bem como
as razões que levaram a OIT a aprovar e adotar a referida convenção no ano
de 2011. Em seguida, busca-se delinear a importância do direito internacional
do trabalho na proteção do trabalho decente, não sem antes retomar a
história, estrutura e princípios da mais importante instância internacional
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/
SP, Especialista em Direitos Humanos e Democracia pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Mestranda em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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de proteção dos direitos dos trabalhadores, a Organização Internacional do
Trabalho. Com isso almeja-se traçar um panorama da relevância da temática
do trabalho doméstico remunerado na atualidade no contexto do atual direito
internacional do trabalho.
O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA: FLUXOS MIGRATÓRIOS E CADEIAIS GLOBAIS
DE CUIDADOS
A Organização Internacional do Trabalho estima que existam hoje cerca
de 100 milhões de trabalhadores domésticos em todo o mundo , dos quais 83%
são mulheres e meninas, na sua maioria imigrante. Segundo ainda a OIT, o
trabalho doméstico remunerado é essencial para a manutenção da economia
mundial, sendo certo que nos países em desenvolvimento chega a representar
10% da mão-de-obra feminina (OIT, 2010; Glantz, 2005). No entanto, esta
atividade carrega o estigma da subvalorização econômica, do colonialismo,
da informalidade e da desigualdade de gênero (OIT, 2010; Schwenken e
Heimschoff, 2011). Estes fatores refletem-se na proteção jurídica dada ao
trabalho doméstico remunerado que, apesar da heterogeneidade de situações
encontradas consoante o país analisado, possui um fator em comum, qual seja,
a desigualdade normativa existente relativa às demais atividades laborais
(Smith, 2000). Um exemplo disto é o fato de em países industrializados como
a Suíça, Canadá, Dinamarca, Finlândia e Japão os trabalhadores domésticos
não terem direito as garantias relativas ao salário mínimo, por exemplo.
Quanto à jornada de trabalho, cerca de metade dos países abrangidos
pelo estudo “Decent Work for Domestic Workers” da OIT não possui jornada
laboral delimitada por lei para os trabalhadores domésticos (OIT, 2010). No
Brasil constitui-se a seguinte realidade, a qual se pode depreender do Relatório
de 2011 do Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Doméstico designado pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal (Secretaria de
Políticas para as Mulheres, 2011), desenvolvido com base no Programa Nacional
por Amostra de Domicílio de 2008, segundo o qual está estimado o dado de
que o trabalho doméstico remunerado constitua 15,8% do total da mão-de-obra
feminina no Brasil, o que representa o número de 6,2 milhões de mulheres.
Deste percentual 74,2% de trabalhadoras não possuem inscrição na Segurança
Social através de registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social CTPS.
Ademais, entre as trabalhadoras negras este percentual é ligeiramente maior,
pois equivale a 76% do total de mulheres pesquisadas. Em relação à carga
horária de trabalho, que para os demais trabalhadores no Brasil corresponde
a 8 horas de ativação por dia, não excedendo 44 horas semanais, este número
chega a atingir, em média, 36,5 horas por semana, muito embora em algumas
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cidades este percentual seja ainda mais elevado . Quanto à remuneração
percebida, o rendimento médio mensal entre as trabalhadoras com registro na
Previdência Social é de R$ 350,77, (trezentos e cinquenta Reais e setenta e sete
centavos), enquanto que a renda média de empregadas de outras categorias
chega a R$ 826,11 (oitocentos e vinte e seis Reais e onze centavos) .
Pode-se perceber dos dados acima citados dois pontos principais: em
primeiro lugar, o trabalho doméstico remunerado continua a ter uma grande
expressividade na sociedade contemporânea tanto nos países desenvolvidos
quanto naqueles em desenvolvimento, contrariando as expectativas lançadas
nos anos 50-70 do século XX, de que este tipo de atividade tenderia a se
extinguir nas sociedades industrializadas. E em segundo lugar, apesar de
ainda subsistir hodiernamente esta atividade continua a carregar o estigma da
precariedade e de valores arcaicos como a discriminação de gênero e de raça, do
colonialismo e de todas as formas de violência e elas inerentes. Neste sentido,
duas questões são aqui de extrema importância para compreender o porquê
da persistência desta atividade nos dias de hoje, bem como das características
acima citadas: a primeira refere-se às cadeias globais de cuidados e a segunda
aos fluxos migratórios por ela acarretados. Cadeias globais de cuidados foi a
terminologia utilizada por Hondagneu-Sotelo (2007) para um fenômeno típico
da sociedade contemporânea, qual seja, a delegação das tarefas de cuidados.
Sabe-se que as mulheres foram historicamente incumbidas da realização das
tarefas de cuidados típicas do espaço privado, também conhecidas como
tarefas de reprodução, enquanto aos homens cabia o desenvolvimento das
tarefas de produção, típicas do espaço público. Os anos 1970 marcaram uma
transformação nesta realidade, principalmente nos países industrializados
ou em processo de industrialização com a entrada maciça das mulheres no
mercado de trabalho (Hirata e Kergoat, 2007).
A questão colocada neste período foi, mas quem realizaria as tarefas
de cuidados para as mulheres inseridas no mercado de trabalho? Embora
algumas discussões acerca da divisão das tarefas de cuidados no seio das
famílias entre homens e mulheres tenham surgido neste período, persistiu o
modelo da atribuição exclusiva do trabalho reprodutivo às mulheres (Hirata e
Kergoat, 2007). Uma pesquisa comparada entre a França e os Estados Unidos
da América demonstra que o tempo gasto pelas mulheres maiores de 15 anos
com trabalho doméstico nos Estados Unidos é de 3 horas e 24 minutos por
dia, enquanto dos homens é de 1 hora e 9 minutos. Já na França o tempo gasto
pelas mulheres é de 4 horas e 38 minutos por dia e pelos homens de 2 horas
e 4 minutos (Rizavi e Sofer, 2008). Deste modo, a solução encontrada foi a
delegação destas tarefas para outras mulheres. E quem seriam estas outras
mulheres? No caso dos países desenvolvidos são imigrantes oriundas de
países em desenvolvimento, normalmente que já possuem um histórico de
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colonialismo. No caso brasileiro são mulheres que migram de regiões menos
industrializadas para regiões mais industrializadas. Este fluxo migratório
caracterizado pela realização de tarefas de cuidados denomina-se cadeias
globais de cuidados (Hondagneu-Sotelo, 2007). Estas trabalhadoras imigram
muitas vezes através de redes ilegais, são vítimas de tráfico de seres humanos
e devido a sua condição de ilegalidade submetidas as mais diversas formas
de tratamentos desumanos e degradantes. Tereza Kleba Lisboa (2007) cita
algumas das principais violações sofridas por estas trabalhadoras:
[...] a falta de comprometimento por parte dos patrões em
relação à regularização dos papéis, documentos legais ou visto
de permanência; estando ilegais no país não possuem acesso aos
serviços básicos, e quando adoecem não possuem plano de saúde
que cubra atendimento e tratamento de doenças; o não pagamento
de horas extras; os baixos salários ou a negação de salário para
mulheres que comunicam “aviso prévio”; a violência e abuso sexual
por parte dos patrões. (Lisboa, 2007: 810)
Em relação à sociedade brasileira, muito embora a mão-de-obra estrangeira
para a realização destas atividades não seja comum, estas trabalhadoras
são oriundas de classes sociais mais baixas, o que aumenta sua condição de
vulnerabilidade social. Pode-se concluir, portanto, que o trabalho doméstico
remunerado na atualidade envolve questões preocupantes de violações aos
direitos humanos como o tráfico de pessoas, a violência domésticas, trabalho
infantil e condições precárias de segurança e saúde destas trabalhadoras. Em
suma, foi a partir desta realidade que após um longo período de discussões,
estudos e negociações que a Organização Internacional do Trabalho adotou
a Convenção nº 189, denominada Convenção sobre o Trabalho Decente para
as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos, fato este ocorrido na 100ª
Conferência Internacional do Trabalho. Consta no preâmbulo desta convenção:
As trabalhadoras/es domésticas/os seguem, portanto, sendo
vítimas frequentes de violação dos direitos humanos e dos direitos
fundamentais no trabalho, como o trabalho forçado, o trabalho
infantil e a discriminação. O trabalho doméstico é uma das
atividades para as quais a noção de trabalho decente2 tem especial
importância e, considerando as discriminações de gênero e raça
envolvidas, tem estreita relação com a questão mais ampla da
igualdade de oportunidades e tratamento no mundo do trabalho
(OIT, 2011: 02).
Neste sentido, a Convenção de 127 artigos subdivide-se da seguinte
maneira: os artigos 1ª e 2º conceituam o que deve se compreender por
trabalho doméstico remunerado e as atividades que não são abrangidas por
este conceito, delimitando, assim, a cobertura da Convenção; os artigos 3º e
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4º prevêem respectivamente a implementação de medidas, por cada Estado,
para a efetivação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais do
trabalho e o combate ao trabalho infantil doméstico estabelecendo a idade
mínima para a realização desta atividade em consonância com as Convenções
nº 138 e nº 182 da própria OIT; O artigo 5º determina a adoção de medidas
de combate aos abusos, assédios e violências; O artigo 6º a efetivação de
condições de emprego equitativas e trabalho decente; o artigo 7º estabelece
termos e condições mínimas que devem conter nos contratos de trabalho para
esta categoria; o artigo 8 trata especificamente da proteção às trabalhadoras
domésticas imigrantes, como a exigência de contrato escrito nos termos do
artigo 7º assinado no país de origem além de oferta de emprego também por
escrito; O artigo 9º garante a liberdade de manter a posse de seus documentos,
de decidir a respeito de sua moradia, bem como, se acompanha ou não os
empregadores em suas férias; O artigo 10º requer a regulamentação da jornada
de trabalho, a garantia de descansos diários e semanais, o gozo de férias e
o período que o empregado fica a disposição do empregador. Ademais, os
outros artigos versam sobre remuneração mínima, limites para o pagamento
in natura, condições de saúde e segurança no ambiente de trabalho, inspeção
no local do trabalho, além de estabelecer regras para as agências de empregos
privadas que atuam nessa área específica. Consta ainda no artigo 18 que as
disposições da Convenção devem ser colocadas em prática de acordo com a
legislação e práticas nacionais (OIT, 2011).
Diante de tantas discussões acerca da referida Convenção faz-se
importante estabelecer qual a relevância do contexto social que levou a
sua adoção, e qual o seu real conteúdo. Pode-se notar que não há se não
medidas que visam a garantia de direitos humanos do trabalhador. Quanto a
equiparação de diretos prevista no artigo 6º esta refere-se a: “ (…) condições
de emprego e trabalho decentes” e deverá ocorrer de acordo com as condições
sociais, políticas e econômicas de cada país (OIT, 2011). Isto demonstra a
importância deste documento no combate a discriminações e violações dos
direitos humanos do trabalhador de uma parcela da população tão vulnerável
e excluída. Este não por acaso vem sendo o papel do direito internacional
do trabalho no cenário mundial, ou seja, o estabelecimento de padrões
mínimos, de modelos de conduta a serem seguidos pelos Estados na garantia
dos direitos dos trabalhadores. É neste sentido que no próximo tópico será
traçado um sucinto quadro teórico do direito internacional do trabalho, mais
especificamente de seu organismo por excelência, a OIT. Qual a sua origem,
sua composição, suas atividades e seus princípios que hoje representam o
maior valor protetivo no universo do direito do trabalho.
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DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO NA BUSCA PELA
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DO TRABALHADOR
O direito internacional do trabalho possui hoje um papel essencial na
garantia dos direitos dos trabalhadores e do trabalho decente em todo o
mundo. Trata-se de uma função histórica que começou a ser galgada com a
constituição da Organização Internacional do Trabalho na Conferência da Paz
assinada após o fim da Primeira Guerra Mundial, em Versalhes (França), no
mês de Julho de 1919. Em 1944 os Delegados da Conferência Internacional
do Trabalho adotaram a Convenção da Filadélfia como anexa a Constituição
da OIT contendo seus princípios e objetivos. Este documento antecipou a
criação da Organização das Nações Unidas em 1946 e a incorporação da OIT
a sua estrutura como sua primeira agência especializada (Alvarenga, 2008).
Segunda Rúbia Zanotelli de Alvarenga:
A idéia da internacionalização da legislação social trabalhista surgiu,
portanto, na primeira metade do século XX, quando se generalizou,
em diversos estados nacionais, a tese de que o Estado deveria
intervir nas relações sociopolíticas e econômicas, para assegurar
um mínimo de direitos sociais aos indivíduos. Esse movimento da
classe operária subsidiou o nascimento do direito social ao trabalho,
que é considerado como um dos direitos fundamentais de segunda
geração (Alvarenga, 2008: 03).
Devido a sua construção histórica como órgão de proteção não só dos
trabalhadores, mas das relações de trabalho tidas como essenciais para o
desenvolvimento da humanidade e manutenção da paz, a OIT é estruturada
de uma maneita sui generes em relação aos demais órgãos componentes da
estrutura da Organização das Nações Unidas. Neste sentido, a OIT possui o
chamado sistema de cooperação técnica tripartida composta por representantes
dos empregadores, dos trabalhadores e dos Estados membros. A partir deste
sistema formam-se três órgãos, a Conferência Internacional do Trabalho,
o Conselho de Administração e a Repartição Internacional do Trabalho.
O primeiro é na verdade uma assembléia-geral dos Estados membros,
responsável pela elaboração das convenções e suas referentes regulamentações.
Esta convenção possui quatro representantes de cada governo membro,
dois delegados representantes dos Estados, um delegado representante dos
trabalhadores e um delegado representante dos empregadores (Alvarenga,
2008). É importante ressaltar que este é o principal órgão de deliberação
política da OIT, uma vez que, como já referido, é o responsável pela elaboração
e aprovação de convenções. As convenções nada mais são que os tratados
internacionais no âmbito da OIT. Segundo Maurício Godinho Delgado:
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Convenções são espécies de tratados. Constituem-se em documentos
obrigacionais, normativos e programáticos aprovados por entidade
internacional a que aderem voluntariamente seus membros.
Não obstante ser este o uso corrente da expressão, na verdade as
convenções podem ser também subscritas apenas por Estados, sem
a participação de entes internacionais. Tendencialmente, contudo,
a Organização das Nações Unidas e a Organização Internacional
do Trabalho (esta sempre) têm atribuído o “nome convenção aos
tratados multilaterais adotados por suas assembléia e conferências”
(Delgado, 2008: 154).
A Convenção Internacional do Trabalho ainda é responsável pela edição
de recomendações que constituem, por sua vez em “diploma programático
expedido por ente internacional enunciando aperfeiçoamento normativo
considerado relevante para ser incorporado pelos Estados” (Delgado, 2008:
155). A principal diferença entre as convenções e as recomendações é que
as segundas não constituem fontes formais do Direito e não vinculam os
organismos celebrantes à direitos e obrigações. Já as primeiras são fontes
formais do Direito. Importante ressaltar que hodiernamente existem duas
formas de ingresso dos tratados e convenções internacionais no ordenamento
jurídico brasileiro. O primeiro é que com a ratificação (devido ao principio da
soberania do Estado) estas normas ingressariam no ordenamento jurídico como
o status de normas infraconstitucionais, devendo submeter-se oportunamente
a análise de sua constitucionalidade. Ocorre que a Emenda Constitucional
nº 45 de 2004 introduziu o parágrafo 3º ao artigo 5º que determina que os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que tenham
sido aprovados com rito e quorum similares aos de emenda ingressem no
ordenamento jurídico como o status de normas constitucionais (Delgado,
2008).
Retomando a questão da composição da OIT, o conselho de administração
é um órgão de gestão responsável pela elaboração e execução de políticas e
programas da entidade. É composto por 56 pessoas, sendo 28 representantes
dos governos, 14 representantes dos trabalhadores e 14 representantes dos
empregadores (Alvarenga, 2008). Dos 28 representantes dos governos 10 são
nomeados pelos Estados membros de maior importância industrial e 18 pelos
delegados de cada Estado membro excluídos os 10 de maior importância
industrial. Os representantes dos trabalhadores e empregadores são eleitos
entre seus membros. Por fim, a Repartição Internacional do Trabalho é um
secretariado técnico-administrativo responsável pela realização dos objetivos
da OIT e será coordenado por um diretor-geral nomeado pelo Conselho de
Administração, segundo Rúbia Alvarenga:
Assim, a repartição internacional do trabalho terá por funções
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centralizar e distribuir todas as informações referentes à
regulamentação internacional da condição dos trabalhadores e do
regime do trabalho, particularmente o estudo das questões que
lhe compete submeter às discussões da conferência para concluir
as convenções internacionais, assim como realizar todos os
inquéritos especiais prescritos pela conferência ou pelo conselho de
administração (Alvarenga, 2008: 05).
Pode-se depreender desta síntese da estrutura da Organização
Internacional do Trabalho que esta funda-se no diálogo social e na cooperação
não somente entre os Estados membros, mas também entre os representantes
dos trabalhadores e empregadores na busca por relações de trabalho decentes
e pelo respeito aos direitos humanos do trabalhador. Este fato ajuda na
compreensão dos princípios que fundamentam a OIT, sempre voltados para
a primazia da cooperação, do respeito mútuo entre os Estados membros e
seus integrantes e, principalmente, pela primazia dos direitos humanos do
trabalhador. Antes de fazer menção aos princípios próprios da OIT, é importante
ressaltar que esta, por ser um organismo da Organização das Nações Unidas,
vincula-se ainda aos princípios do direito internacional público, quais sejam:
independência e igualdade jurídica, da boa-fé, manutenção da paz, proibição
da ameaça, obrigação de cooperação internacional e da não ingerência nas
matérias exclusivas do Estado (REZEC, 2005; Silva, 2002).
Mas a OIT submete-se ainda aos princípios fundamentais do direito
internacional do trabalho reconhecidos pela Convenção de Filadélfia ou
Declaração Relativa aos Fins e Objetivos da Organização Internacional do
Trabalho. São quatro os princípios fundamentais do direito internacional do
trabalho. O primeiro que “o trabalho não é uma mercadoria” (OIT, 2007).
Trata-se de um princípio fundamental ao posicionamento da OIT no cenário
internacional, o da proteção do trabalho como referencial de desenvolvimento
humano que deve ser preservado de qualquer forma de mercantilização que
retire do trabalhador sua dignidade. Este princípio encontra-se em consonância
com o próprio surgimento da OIT como um organismo de proteção das relações
de trabalho contra abusos que levem a miséria, a degradação do trabalhador e
coloque em risco a paz social (Delgado, 2006).
O segundo princípio é o de que “a liberdade de expressão e associação
é uma condição indispensável para um progresso constante” (OIT, 2007).
Este princípio preza pela liberdade de criação e adesão a sindicatos,
partidos políticos e associações de trabalhadores, bem como de expressão do
pensamento. Entende-se que o trabalho decente somente pode se concretizar
com liberdade e que o progresso está baseado no diálogo social proporcionado
por uma arena pública livre em que os atores encontrem-se em igualdade de
condições. O terceiro princípio pressupõe que “a pobreza onde quer que exista
constitui um perigo para a prosperidade de todos” (OIT, 2007). Para a OIT o
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combate a pobreza é tão importante para a manutenção de uma sociedade justa
e pacifica que ela a elevou a um status de princípio. A eliminação da pobreza
e, principalmente da pobreza dos trabalhadores e de todas as mazelas dela
consequente, são essenciais à manutenção da dignidade da pessoa humana.
Por fim a Declaração considera que “a luta contra a necessidade deve
ser conduzida com uma energia inesgotável por cada nação e através de um
esforço internacional contínuo e organizado pelo qual os representantes dos
trabalhadores e dos empregadores, colaborando em pé de igualdade com
os dos Governos, participem em discussões livres e em decisões de caráter
democrático tendo em vista promover o bem comum” (OIT, 2007). Este
princípio constitui a própria essencial da OIT, calcada no diálogo social,
na democracia e na luta contra qualquer violação ao trabalho decente e aos
direitos dos trabalhadores.
Esta breve reconstituição da formação histórica, organizacional e
principiológica da OIT demonstra seu papel na constituição e desenvolvimento
do direito internacional do trabalho e sua importância na atualidade. Em um
cenário mundial marcado pela precarização das relações de trabalho, aumento
da pobreza entre os trabalhadores e, principalmente, pelas desigualdades no
mercado de trabalho (Santos, 2002; Antunes, 1995) o papel da OIT na criação
de normas internacionais, pautadas nos princípios do direito internacional
do trabalho, afigura-se primordial para a proteção dos trabalhadores,
principalmente aqueles mais vulneráveis. São precedentes internacionais
capazes de vincular os três poderes e trazer inovações importantes ao
ordenamento jurídico nacional (Trindade, 2000).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se compreender no presente trabalho qual o cenário internacional
que leve ou a OIT a aprovar a Convenção nº. 189 que versa sobre o trabalho
decente para as trabalhadoras domésticas, e neste sentido, qual o papel
do direito internacional do trabalho na atualidade. Pode-se concluir que
em relação ao trabalho doméstico remunerado, não obstante as previsões
de meados do século XX acerca de sua potencial extinção, este manteve-se
presente em todo o mundo porém com uma nova configuração, caracterizada
pelos fluxos migratórios, pelas cadeias globais de cuidados e pelas condições
de informalidade, clandestinidade e demais formas de violações aos direitos
humanos. Este cenário já seria capaz de explicar o porquê da aprovação da
referida Convenção no ano de 2011, mas a própria formação histórica do
direito internacional do trabalho e de seu principal órgão, a OIT, dão ainda
mais respaldo a referida Convenção. Sem dúvidas, a defesa dos direitos
humanos do trabalhador, do trabalho decente, da democracia, do diálogo
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social, bem como o combate a pobreza sempre foram os referenciais desta
destacada organização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. A Organização Internacional do Trabalho
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ABORTO: ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES 1
Resumo
Os periódicos de grande circulação têm veiculado notícias sobre a adoção do
aborto como método anticoncepcional, baseado no questionável argumento
do direito à informação, à vista, inclusive, da recente decisão do STF
sobre o aborto de feto anencefálico (ADPF 54). Pensamos que a ideia da
liberalização do aborto cria um conflito de princípios e de normas, em virtude
da incidência do princípio universal da vedação de ofensa à integridade da
pessoa de outrem e da norma conjugada dos artigos 5º da Constituição
Federal de 1988 e 4º do Pacto de San Jose da Costa Rica. A digressão de
alguns aspectos históricos, políticos e jurídicos pode possibilitar uma melhor
visualização e compreensão desta questão ética que a sociedade enfrenta
em sua realidade concreta e histórica, para a qual o direito, por meio das
leis, pode fornecer uma solução que guarde foros de razoabilidade e que
corresponda aos verdadeiros ditames de justiça.
Palavras-Chave: Direito à vida; Aborto; Ética social; Constituição Federal;
Pacto San Jose da Costa Rica.
O efeito das más leis é tal que outras ainda piores são necessárias
para sustar os infortúnios das primeiras.
Montesquieu (Espírito das Leis)
Os periódicos de grande circulação, com frequência, têm veiculado
notícias sobre a adoção do aborto como método anticoncepcional, baseado
no questionável argumento do direito à informação. Tenho para mim que
a idéia da liberalização do homicídio uterino choca-se frontalmente com o
princípio universal da vedação de ofensa à integridade da pessoa de outrem.
Tal princípio já foi proclamado, há mais de dois mil anos, por Ulpiano, em
sua célebre assertiva iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, cuique suum
tribuere et alterum non laedere, o qual também encontra assento, em regra, com
outra fórmula, em uma série de correntes filosóficas e confissões ocidentais e
orientais.
Assim, para que uma discussão sobre o tema seja serena e isenta de
qualquer preconceito, faz-se necessária a digressão sobre alguns aspectos
históricos, políticos e jurídicos. Por proêmio, deve se partir de uma premissa
aceita e defendida pela biologia moderna: o princípio da vida coincide com
o da fecundação. Tal assertiva foi corroborada na primeira conferência
internacional sobre o aborto, realizada em Washington (EUA), no ano de 1967,
Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Pósgraduando em filosofia e história da educação (UNICAMP). Pesquisador do grupo Paideia (UNICAMP)
e professor da Escola do Pensamento em Filosofia do Direito do Instituto Internacional de Ciências
Sociais (IICS). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré. Articulista da Escola
Paulista da Magistratura. Membro da Associação Paulista de Magistrados.
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na qual se reuniram as maiores entidades dos campos da ginecologia e da
obstetrícia. Nesta oportunidade, somente um dos vinte participantes declinou
seu voto em favor do abortamento.
O relatório final concluía que a maioria de nós não pode encontrar nenhum
ponto ou etapa no tempo que transcorre entre a união do espermatozóide e
do óvulo e o nascimento da criança em que pudéssemos dizer que essa vida
não é humana. As mudanças que ocorrem entre a implantação, o embrião de
seis dias, o feto de seis meses e a pessoa adulta são simplesmente etapas de
crescimento e amadurecimento. A propósito, vem a calhar o seguinte relato
de Jérôme Lejeune2 , geneticista francês, já falecido, descobridor da causa da
Síndrome de Down, detentor do “Memorial Allen Award Medal”, em virtude
de seu domínio nessa ciência:
Há menos de dois anos, foi votada pela Câmara dos Lordes, em
seguida pela Câmara dos Comuns, uma lei estabelecendo que antes
do décimo quarto dia após a fecundação, o ser pode ser utilizado como
material experimental: ele não é ser humano. E o mais inacreditável
é que esta lei foi assinada pela própria Rainha da Inglaterra! Isso é
motivo de espanto para um biólogo como eu, porque se a lei inglesa
diz a verdade, é inegável que a Rainha da Inglaterra era um animal
durante os quatorze primeiros dias de sua vida. Nesse caso, como
é possível que haja uma linha da dinastia após várias centenas
de anos para se chegar à atual Rainha da Inglaterra, se a cada
substituição do reino passa-se por um animal para subir ao trono
da Inglaterra? Vocês hão de convir que não acredito nisso e que
sou bastante geneticista para imaginar que a Rainha da Inglaterra
tivesse sido um animal durante o início de sua existência. Eu penso
que a Rainha da Inglaterra também não acredita, que os Lordes
também não acreditam e que mesmo os deputados da Câmara dos
Comuns também não acreditam nisso. Então, porque eles votaram
essa lei? Para obter o direito de evisceração de pequeninos seres
humanos. Porque exigiram embriões humanos presumidamente
para fazer experiências, tendo este apetite de carne fresca levado
os parlamentares a fazer uma lei eles mesmos não podem ignorar
ser uma lei impossível. Porque é impossível que um chimpanzé se
torne um homem. Porque é impossível que um homem não seja um
homem desde o início. Então vocês podem em interrogar: mas por
que tanta insistência em experimentos com embriões humanos? É
por exigência da ciência? Não. Há cinco anos eu dei meu testemunho
pessoal sobre este assunto diante do parlamento britânico. E certos
pesquisadores diziam: “Dê-nos embriões humanos e nós vamos
estudar a muscoviscidose, a hemofilia, a trissomia 21”. E diante dos
parlamentares britânicos, disse: “Não, isso não é verdade. Num
in Genética Humana e Espírito; Conferência pronunciada no Senado Federal, no dia 27 de agosto de
1991. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, in Aborto e Sociedade Permissiva; Quadrante; São
Paulo; 2ªed.; 1995; p.25, pp.13-15.
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embrião de 14 dias, os músculos ainda não estão formados, então
como estudar uma doença como a distofia muscular; o sangue não
circula ainda, não se vai estudar uma doença de coagulação do
sangue como a hemofilia; não se pode estudar a debilidade mental
da trissomia 21, porque o cérebro ainda não está no seu lugar; se o
pulmão não está constituído, não se pode estudar a muscoviscidose
(...)”. Bem, a resposta vocês não encontrarão nos jornais. Ninguém
fala desse assunto é vergonhoso, é sórdido. A resposta prende-se
ao aspecto financeiro: um embrião de chimpanzé custa muito caro,
é preciso manter uma criação, enquanto um embrião humano, um
pequeno ser humano, se a lei não o protege, não custa nada.
E a história não andou na contramão da evidência biológica. O aborto
sempre foi punido. O Código de Hamurábi, em seus parágrafos 209 a 214,
punia a prática abortiva. No livro bíblico do Êxodo (XXI, 22-23) e no Veda
(XXI, 9 e XXVIII, 7), a interrupção da gravidez era condenada moralmente.
Platão, em “A República”, propugnou o aborto como saída para selecionar os
mais dotados e como meio de controle de natalidade num estado ideal.
A despeito da perenidade da herança filosófica platônica, todavia, sua
proposta demonstrou-se ineficaz, haja visto ter sido aplicada pelo regime
nazista, o qual entrou para a história como detentor do triste recorde do maior
e mais cruel genocídio que a humanidade já testemunhou. Aristóteles, em
“A Política”, apenas admitia o aborto até o momento em que o feto tivesse
recebido sensibilidade e vida, o que, segundo ele, dar-se-ia somente depois de
45 dias de fecundação.
Hipócrates fez inserir, em seu clássico juramento, a vedação ao médico de
fornecer à mulher remédio abortivo. No Direito Romano, havia proteção para
o nascituro, tendo sido o aborto liberalizado apenas na fase final do Império,
na qual havia o entendimento de que o feto era “mulieris portio” (Digesto, I, 1,
15). O Alcorão não fica dissonante do restante, pois há o entendimento de que
somente Deus dá a vida e a morte. E a Igreja Católica sempre proibiu o aborto
desde seu primeiro catecismo (“Didaché”), datado do ano 90-100.
Adentrando nos aspectos políticos, dois fatos merecem ser ressaltados: as
justificativas de um número grande de legislações abortistas e os fundamentos
utilizados. Tanto as leis como os projetos de lei pró-aborto apresentam uma
série de embasamentos respeitáveis, mas que, em uma apreciação mais
apurada, acabam por, no dizer de Machado de Assis, cobrir a verdade com o
manto diáfano da poesia. Veja-se.
O primeiro argumento é o direito à intimidade. No famoso “leading case”
Roy x Wade, foi afirmado que toda a mulher tem o direito de fazer o que quiser
com seu corpo, pois, ainda que o feto possua um cérebro e, biologicamente,
seja considerado um ser humano, não é pessoa ante a lei. Sopesando tal direito
com o direito à vida garantido ao nascituro pela Constituição Federal de 1988,
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elementar que este último deve prevalecer, até porque é o direito que assegura
o exercício dos demais. Qualquer raciocínio oposto, ainda que coerente, não
se sustenta, visto que sempre vai partir de uma premissa falsa: a relativização
da vida e não a vida como um valor absoluto. Acrescente-se que, a prevalecer
tal entendimento, retroagir-se-á ao tempo em que o “paterfamilias” do Direito
Romano tinha o poder de dispor sobre a própria vida de seus filhos.
Ademais, todo ser humano deveria ser reconhecido como pessoa.
Partindo do pressuposto que o ovo, o embrião e o feto são seres humanos (e
não macacos), a lei deveria reconhecê-los como pessoa, portanto, a partir da
concepção e não, como o Código Civil brasileiro, desde o nascimento com
vida, embora o aludido diploma legislativo assegure ao nascituro seus direitos
a partir da concepção (Artigo 2º - A personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro).
Deixe que a filosofia discuta, no campo da antropologia filosófica, o
que é pessoa. Assim, o argumento trazido pelos juízes da Suprema Corte dos
EUA, de que o feto não é pessoa ante a lei (como se o legislador pudesse agir
ludicamente, dando tudo a todos, inclusive a vida em momento diverso ao
da concepção), somente pode ser explicado à luz do positivismo kelseniano,
que, não obstante tenha trazido muitas contribuições epistemológicas para
o campo do Direito, acarretou outros males, ao tê-lo tornado hermético em
relação às outras ciências.
O segundo argumento político, que atende também pelo nome de “questão
de saúde pública”, é o de evitar abortos clandestinos. A experiência dos países
que legalizaram o aborto por essa razão foi contraproducente, pois os abortos
clandestinos não só não diminuíram, como aumentaram. Ademais, o aborto
clandestino tem um nicho cativo de mulheres que não querem publicidade de
sua gravidez, sob quaisquer justificativas, porquanto são casadas e grávidas
de relações extra matrimoniais; são filhas de pessoas ricas, correndo o risco de
abalar sua imagem perante a sociedade ou não querem enfrentar uma longa
fila nos hospitais, entre outros.
O terceiro argumento político repousa em uma perigosa justificativa:
o de evitar crianças defeituosas ou “inviáveis”. Sob o irracional enredo da
“raça pura” (que, do ponto de vista ontológico, é igual ao ora em comento),
o regime nazista praticou abortos dos mais abomináveis matizes à saciedade.
Crianças não sadias, do ponto de vista médico, têm o direito de nascer e de
viver, porque são pessoas humanas em substância, e, acidentalmente, têm esta
ou aquela anomalia, reversível ou não.
Como este argumento interfere diretamente na ordem natural das coisas
e do próprio homem, convém lembrar da advertência de C. S. Lewis3 :
3
in Abolição do Homem. 1ª. Edição, São Paulo: Martins Fontes. 2005; p.38.
Revista Jurídica FACULDADES COC
27
Cada novo poder conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo,
um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao
mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo
homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que
triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército
vencedor.
Também sob essa ótica, tal pensamento diz, subliminarmente, às pessoas
portadoras de quaisquer deficiências físicas, que estas não deveriam viver e
que vieram ao mundo por um lapso das “pessoas normais”. E, nesse contexto,
inclui-se o problema da anencefalia, que tem desencadeado muitos pedidos
de autorização judicial para o abortamento do feto, os quais consistem em
verdadeiros “alvarás para matar”.
Pedro-Juan Villadrich4 formula interessante suposição:
Suponhamos o caso de um casal onde o pai é sifilítico e a mãe
tuberculosa com 4 filhos: o primeiro é cego, o segundo natimorto, o
terceiro surdo-mudo e o quarto tuberculoso. Abortaremos o quinto
que está vindo, não é? Chega de sofrimentos! Pois acabamos de
matar Beethoven.
O quarto argumento político é o estupro (artigo 128, inciso II, do Código
Penal), esta realidade social e cruel que vitimiza muitas mulheres em nosso país.
Contudo, deve se acentuar que a gravidez decorrente de estupro não acontece
com a freqüência propalada pelas organizações abortistas. A mulher não se
encontra em constante estado fértil e a situação emocional pode contribuir
para evitar a concepção. Ademais, existem outros métodos alternativos para
se impedir a fecundação. E, se mesmo assim, houver concepção, não obstante
fundamentados posicionamentos em contrário, o aborto praticado, neste
caso, constitui-se em causa de isenção de pena e não excludente de ilicitude.
Suprime-se a pena por razões de política criminal. Permanece a ação típica,
ilícita e culpável, segundo a definição de crime de Heleno Fragoso ou de
Francisco de Assis Toledo.
O quinto argumento político repousa na salvação da vida da gestante
(artigo 128, inciso I, do Código Penal). Este raciocínio parte de um pressuposto,
qual seja, de que a vida do feto tem valor menor que a da mãe, na balança de
ponderação entre bens e deveres, de nítida coloração duvidosa, pois ambas,
intrinsecamente, têm o mesmo valor. Acrescente-se que há outras variáveis em
jogo nesse caso: existem outros meios para se tentar salvar a vida da gestante
em muitos dos casos, os diagnósticos médicos são imprecisos e inconclusivos
4
in Aborto e Sociedade Permissiva. 2ª. Edição, São Paulo: Quadrante. 1995; p.25.
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não raro e a intervenção abortiva acarreta maiores perigos para a vida da
gestante do que o prosseguimento da gravidez algumas vezes. Não se olvide
que a medicina evoluiu muito, a ponto de tornar tal justificativa cada vez
menos incidente na realidade hospitalar.
Mas, nas entrelinhas dos argumentos políticos, depreende-se que
há, indubitavelmente, um certo reflexo da mentalidade predominante da
sociedade dos dias de hoje: hedonista e niilista. Hedonista, porque prefere ter
mais e mais propriedades, bens de luxo, cachorros e gatos (bem alimentados,
vestidos e tratados) a filhos, o que, certamente, exige muito mais trabalho, não
obstante os esforços governamentais, sobretudo dos países europeus, para se
incentivar a natalidade, cada vez mais decrescente, em contraste com a curva
ascendente da natalidade das famílias muçulmanas.
Niilista, pois gradativamente se perde a noção do sentido da vida. A
propósito, Victor Frankl5 tece considerações dignas de reflexão:
Com relação à degeneração das ideologias em atos de violência,
gostaria de citar o psicanalista americano Lifton, que no seu
livro “History and Human Surval”, escreveu que os homens
costumam estar mais dispostos a querer matar quando estão
enredados em uma situação de ausência de sentido. Não foram
apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras
de gás de Auschwitz e Treblinka; elas foram sendo preparadas
nos escritórios e nas salas de cientistas e filósofos niilistas, entre
os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos
laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa
de um insignificante produto de combinação de umas moléculas
de proteína, pouco importa que um psicopata, cujo cérebro precise
de alguns reparos, seja eliminado por inútil e que ao psicopata se
acrescentem mais uns quantos povos inferiores. Tudo isso não é
senão raciocínio lógico e conseqüente. Mas a eutanásia só se tornou
lógica e conseqüente quando o homem passou a ser cínico e niilista.
No que concerne aos aspectos jurídicos, existe uma gama deles a ser
apreciada. Entretanto, não se pretende fazer uma varredura espectral desta
seara, até porque cada assunto, seguramente, daria margem para um trabalho
singular e com maior envergadura vertical. Assim, nota-se que as discussões a
respeito tratam o tema como se fosse uma questão eminentemente juspositiva.
Se assim fosse, isto é, se o direito se traduzisse meramente num conjunto
de convenções a serem cumpridas pela sociedade, segundo sua própria
historicidade tão somente, poder-se-ia propor um amálgama de soluções para
o aborto.
Todavia, creio que o direito positivo deve ser um reflexo do direito
5
in Sede de Sentido. 1ª. Edição. São Paulo: Quadrante. 1989; p. 39.
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natural, guardadas as devidas proporções, tal como um objeto diante do
espelho. Uma imagem especular de seus princípios. A prevalecer aquela
solução, a lei será sempre fruto da opinião que conseguir se impor nos fatos,
desde que cumprisse o ritual democrático na formação do consenso social.
A justiça, destarte, resumir-se-ia ao direito posto, passando a ser definida
pelo grupo de interesse que for capaz de exercer uma pressão decisiva e
predominante sobre o outro.
A propósito, relata Michel Schooyans6 , professor de Filosofia Política,
Ideologias Contemporâneas e Moral Social da Universidade Católica de
Louvain:
É o que se quer dizer ao afirmar que a lei deve refletir os costumes
e traduzir sua evolução. Se, numa determinada sociedade, um
grupo particular adquirir força suficiente para se impor aos menos
fortes, o grupo se esforçará em dar a seu comportamento o peso
de uma norma legal. Sua vontade particular será sancionada pela
autoridade da lei, que conferirá às determinações das vontades
particulares um alcance generalizado à comunidade política. Assim,
os mais fracos serão esmagados em nome da lei. Esta concepção
ruinosa do direito foi sistematizada por Karl Binding (1841-1920).
Ao proporcionar a cobertura da lei à força dos mais fortes, Binding
forneceu explicitamente as bases legais para a eliminação daqueles
cuja vida não era digna de ser vivida.
Ora, a tradição jurídico-política ocidental já proclamou há tempos que
o nascituro é pessoa humana, pois se rendeu a um fato biológico irrefutável:
desde a concepção, o novo ser tem um código genético diferente de seus
genitores. E, não obstante isso, nos argumentos abortistas, há sempre uma
referência unilateral à genitora, desconsiderando-se a presença objetiva de um
ser humano em seu ventre. Ignora-se o sacrifício dos embriões e fetos em prol
dos riscos de vida que ela corre mesmo na hipótese de um aborto legalizado
nos moldes dos países europeus.
Também se observa nos argumentos em favor da liberalização do aborto
uma relação de causa e efeito perniciosa. De fato, o legislador sempre sopesa
os costumes dos destinatários de uma lei quando pretende criar uma nova.
Entretanto, se sua tarefa consistisse em apenas registrar fatos sociais e ratificálos pura e simplesmente por intermédio da lei, o legislador não seria muito
diferente de um sociólogo.
O direito, visto sob esta ótica, perderia sua razão de ser. Por isso,
argumentos na linha de que a legislação sobre o aborto tornou-se uma norma
caduca, como comprovam as inúmeras transgressões que esta sofre na prática
cotidiana, e que, em razão disso, a lei deveria ser mais indulgente, porque
6
in O Aborto: aspectos políticos. 1ª. Edição. Rio de Janeiro: Marques Saraiva. 1993; p. 46.
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os costumes estão mais frouxos, portam um nexo causal falso. Na verdade,
tais teses esposam, nas entrelinhas, uma declaração de irresponsabilidade dos
cidadãos, pois são incapazes de cumprir seus deveres para com um conjunto
de seus semelhantes. Se existem infrações, a lei, realmente, não é útil. Ela deve
ser mais rigorosa, mas, principalmente, complementada por medidas sociais
que visem ao acolhimento da criança. Assim, nem sempre a lei anda de mãos
dadas com os costumes, visto que estes podem representar a ofensa a algum
direito fundamental de uma categoria de pessoas.
Michel Schooyans7 enfoca bem a questão:
Todo o problema aqui é saber se o legislador tolera deixar-se prender
numa armadilha e dedicar-se inteiramente a um certo ambiente
dominante e, se consente em ceder às pressões de que é alvo.
Nessa circunstância pode provar sua pusilanimidade ou mostrar
sua coragem. O legislador enfrenta aqui um verdadeiro desafio:
deixar-se condicionar ou acreditar que a lei deve fazer prevalecer
uma certa racionalidade sobre as paixões e os instintos, quer dizer,
positivamente, definir um raio de ação para a liberdade. Que no
primeiro caso, contudo, o legislador esteja alerta para o precedente
que abre: está renunciando à função pedagógica insubstituível
da lei. Está avalizando com sua autoridade o direito que alguns
querem arrogar-se de dispor de uma vida humana em seu começo.
Sobretudo, ao dar-lhes a ilusão falaciosa, de uma liberdade integral,
está aumentando o poder dos condicionamentos dos quais os
cidadãos já são vítimas. Torna-os mais vulneráveis às ideologias
totalitárias – nazistas, fascistas e outras que só estão esperando a
morte da liberdade para deixar cair a máscara.
A lei tem a função de prevenir, além de reprimir, mas, sobretudo, de
educar. A sociedade tem o direito de se proteger contra tudo que pode causar
sua dissolução, de todo joio que pode levar ao descontrole da agressividade.
É melhor realizar intervenções preventivas e restritivas - as quais podem
transmitir a falsa idéia de redução do âmbito das liberdades públicas num
primeiro momento, mas que a longo prazo se mostram altamente benéficas,
pois previnem derivas radicais - a ter que intervir com a força.
Nesta trilha, está a figura do aborto legal. Desde “Marbury x Madison”,
se um dispositivo infraconstitucional está em dissonância com a Constituição,
aquele carece de vigor, pois se mostra incompatível com esta, que deve
prevalecer. Tal ensinamento é aplicável ao caso em foco, porque o artigo 128
do Código Penal viola o direito fundamental à vida (artigo 5o, “caput”, da
Constituição Federal), perdendo, por conseguinte, seu assento no mundo
jurídico.
7
in op. cit.; p. 54
Revista Jurídica FACULDADES COC
31
Desnecessário, outrossim, qualquer declaração explícita a respeito,
pois sua exclusão do ordenamento jurídico é efeito imediato do vício de
inconstitucionalidade. E, se dúvida ainda houver a respeito do alcance e da
eficácia do dispositivo constitucional citado, a Convenção Interamericana dos
Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, encerrou
o assunto. Diz o inciso I do artigo 4o.: “Toda pessoa tem o direito de que se
respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o
momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Assim, a convenção aludida quis afirmar, simplesmente, que o direito
à vida deve ser protegido ordinariamente (em geral) desde a concepção.
Não existe qualquer consideração ao termo inicial da vida a partir de outro
momento que não o da concepção. E, logo, os pedidos de autorização judicial
para a prática do aborto, nas hipóteses de feto portador de alguma anomalia,
deveriam ser indeferidos, liminarmente, por absoluta falta de possibilidade
jurídica e, outrossim, dada a ilicitude do aborto em qualquer hipótese, em que
pese o respeito e o caráter vinculante da decisão contida na ADFP 54.
Traçados os ângulos históricos, políticos e jurídicos do tema em foco,
conclui-se que a vida humana perde seu valor absoluto a partir do momento
em que é permitido à mãe matar seu próprio filho e, outrossim, que o direito
deve ser utilizado como instrumento de combate à qualquer espécie de
discriminação, em nome da igual dignidade de todos os homens, sob pena de
perder sua inarredável peculiaridade de ser meio de adequação social e de,
por intermédio da lei, ser portador de justiça.
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A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE
LIMITADA
WAGNER JOSÉ PENEREIRO ARMANI 1
Resumo
O presente texto apresentará as reflexões iniciais do autor sobre as inovações
trazidas pela Lei nº. 12.441, de 11 de julho de 2011, que alterou a Lei nº.
10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir a constituição
de empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI). Referida lei
incluiu a empresa individual de responsabilidade limitada no rol das pessoas
jurídicas de direito privado, possibilitando a criação de uma pessoa jurídica
constituída por uma única pessoa que será titular da totalidade do capital
limitando-se a responsabilidade do titular ao valor não integralizado do
capital, resguardando o patrimônio da pessoa que lhe é titular.
Palavras-Chave: Lei nº. 12.441/2011 – Pessoa jurídica - Empresa individual
de responsabilidade limitada.
INTRODUÇÃO
A disposição sobre a empresa individual de responsabilidade limitada
(EIRELI) no Livro II – Do Direito de Empresa, Título I-A, do Código Civil
traduz uma tendência vinda de outros países que permite a constituição de
uma pessoa jurídica sem a necessidade de pluralidade de sócios, possibilitando
a separação patrimonial de uma pessoa que exerce atividade econômica dos
bens necessários para o exercício desta (estabelecimento)2 , diminuindo os
riscos inerentes ao negócio, protegendo seu patrimônio particular de eventual
insucesso da atividade.
A lei aprovada reflete os anseios da sociedade que, buscando acomodarse a legislação então vigente, constituía sociedade do tipo limitada artificial
com pessoas que não possuíam nenhuma ligação com a atividade desenvolvida
(parentes, amigos, “laranjas” etc) tão somente para preencher o requisito da
pluralidade de sócios exigido pela lei3.
Com esta nova modalidade se permite a constituição de uma pessoa
jurídica (EIRELI) por uma única pessoa titular da totalidade do capital
cuja responsabilidade é limitada ao capital integralizado, resguardando o
patrimônio da pessoa que a constituir.
NATUREZA
JURÍDICA
DA
RESPONSABILIDADE LIMITADA
EMPRESA
INDIDUAL
DE
Pela inclusão do inciso VI no rol do artigo 44 do Código Civil4 , a empresa
Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito Comercial
e Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Advogado. Correio
Eletrônico: [email protected].
2
Art. 1.142 do Cód. Civil. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para
exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.
1
34
Revista Jurídica FACULDADES COC
individual de responsabilidade limitada passa a ser uma espécie de pessoa
jurídica de direito privado ao lado das associações, sociedades, fundações,
organizações religiosas e partidos políticos. Por expressa disposição legal
a empresa individual de responsabilidade limitada não se confunde com
nenhuma outra espécie de pessoa jurídica e, por isso, não seria um novo tipo
societário e nem mesmo uma sociedade5.
DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
DO TITULAR
Pelo caput do artigo 980-A do Código Civil a empresa individual de
responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da
totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a
100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País6 . A primeira questão
levantada quanto a constituição da empresa individual de responsabilidade
limitada é: quem poderá ser titular dessa espécie de pessoa jurídica? Pela
leitura do caput do artigo 980-A nos parece que o titular da EIRELI pode ser
tanto pessoa física quanto jurídica uma vez que não especifica quem poderá
ser a única pessoa titular da totalidade do capital7.
Diante desta dúvida em 30/11/2011 foi publicada no Diário Oficial da
União (D.O.U.) a Instrução Normativa nº. 117, de 22 de novembro de 2011, do
Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), designada como
Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade
Limitada. Na referida Instrução Normativa havia previsão para a constituição
originária ou derivada da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada
por titular pessoa física ou jurídica.
Ocorre que o DNRC em 22/12/2011 republicou a Instrução Normativa
Art. 981 do Cód. Civil. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam
a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos
resultados.
4
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
III - as fundações.
IV - as organizações religiosas.
V - os partidos políticos.
VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada.
5
Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 409/411), sustenta que a EIRELI é na verdade uma sociedade do tipo
limitada unipessoal e não uma nova espécie de pessoa jurídica, como aqui sustentamos pela forma em
que o legislador buscou para incluí-la no ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, no rol das pessoas
jurídicas de direito privado.
6
Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa
titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes
o maior salário-mínimo vigente no País.
3
Revista Jurídica FACULDADES COC
35
nº. 117 alegando “(...) ter saído, no DOU nº 229, de 30/11/2011, Seção I, págs.
148/260, com incorreção no original do seu anexo.”, impedindo que pessoa
jurídica fosse titular da EIRELI. Para exemplificar, no item 1.2.11 da IN nº. 117,
publicada em 30/11/2011, não existia impedimento para pessoa jurídica ser
titular da EIRELI, que somente foi incluída na publicada em 22/12/2011:
1.2.11 - IMPEDIMENTO PARA SER TITULAR8
Não pode ser titular de EIRELI a pessoa impedida por norma
constitucional ou por lei especial.
1.2.11 - IMPEDIMENTO PARA SER TITULAR9
Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa
natural impedida por norma constitucional ou por lei especial.
Entendemos que tal entendimento contraria a Constituição da República
e o Código Civil que não impedem a constituição da EIRELI por pessoa
jurídica, não podendo o DNRC fazê-lo. E não há absurdo nessa proposição,
uma vez que o parágrafo 6º do artigo 980-A do Código Civil10 autoriza o uso
supletivo das normas da sociedade do tipo limitada, cujas regras autorizam
sócios tanto pessoas naturais quanto jurídicas. A permissão da pessoa jurídica
em ser titular de empresa individual de responsabilidade limitada vem ao
encontro da atual evolução da sociedade, permitindo-lhe um planejamento
econômico e patrimonial compatível com sua atividade empresária.
Tratando-se de legislação recente em vigor em meados de janeiro do
corrente ano pouco se tem na literatura nacional sobre o tema, porém tal
instituto assemelha-se a “Sociedade Unipessoal por Quotas” do direito
lusitano. Aliás, naquela terra irmã o instituto foi introduzido no “Código das
Sociedades Comerciais” em 1996 pelo DL nº. 257/96 (SANTOS, 2009), artigos
270-A a 270-G, sendo expressamente permitida a constituição por pessoa
jurídica (coletiva):
Artigo 270 - A
(Constituição)
1. A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio
único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do
capital social.
Neste sentido o ensinamento de Fábio Ulhoa Coelho (COELHO, 2012). Contrário a permissão da
pessoa jurídica ser titular da EIRELI o doutrinador mineiro Gladston Mamede (MAMEDE, 2012).
8
Texto original da IN nº. 117 publicada em 30/11/2011.
9
Texto modificado da IN nº. 117 publicada em 22/12/2011.
10
§ 6º. Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas
para as sociedades limitadas.
7
36
Revista Jurídica FACULDADES COC
De forma diferente não poderia ser em nossas terras tupiniquins vez
que o Código Civil não faz nenhum impedimento neste sentido, permitindo
tanto a pessoa natural como a jurídica de ser titular da empresa individual
de responsabilidade limitada. De fato, já existem demandas discutindo
judicialmente a ilegalidade do impedimento determinado pelo DNRC,
existindo decisões favoráveis à constituição da EIRELI por pessoa jurídica11.
Ainda, analisando o parágrafo 2º do artigo 980-A do Código Civil, verificase que em seu bojo há limitação quanto a constituição por pessoa natural12,
determinando que esta somente poderá figurar em uma única empresa dessa
modalidade. Por via de consequência, temos que questionar se no caso de
autorizada a constituição da empresa individual de responsabilidade limitada
por pessoa jurídica, a limitação do parágrafo 2º não lhe alcançaria? Se a
resposta for negativa, uma pessoa natural somente poderia figurar em uma
única pessoa jurídica dessa espécie, enquanto uma pessoa jurídica poderia
constituir diversas empresas individuais de responsabilidade limitada.
E não há absurdo nessa proposição uma vez que o parágrafo 6º do artigo
980-A do Código Civil13 autoriza o uso supletivo das normas da sociedade
do tipo limitada, cujas regras autorizam sócios tanto pessoas naturais quanto
jurídicas. Em primeira analise, ressalvando eventual modificação deste
entendimento, entendemos que tanto pessoa natural quanto jurídica pode
constituir empresa individual de responsabilidade limitada, sendo que a
vedação do parágrafo 2º somente alcançaria as pessoas naturais, autorizando
a pessoa jurídica a ser titular de quantas EIRELI’s lhe convir.
Quanto aos requisitos para pessoa natural ser titular da EIRELI, esta
deve ser capaz e não impedida legalmente pode ser titular da totalidade do
capital social14 , conforme a Instrução Normativa nº. 117 do DNRC.
DA CONSTITUIÇÃO
A empresa individual de responsabilidade limitada pode ser constituída
por via originária ou derivada. Originalmente a EIRELI será constituída
mediante assinatura do titular no ato constitutivo e registro no órgão
competente. Pela Instrução Normativa nº. 177 do DNRC o ato constitutivo
deverá conter, no mínimo, os seguintes elementos: (i) título; (ii) preâmbulo;
(iii) corpo do ato constitutivo com as cláusulas obrigatórias e; (iv) fecho15.
VALOR ECONÔMICO - LEGISLAÇÃO & TRIBUTOS - Pessoa jurídica pode abrir empresa individual
– publicado em 12/03/2012.
12
§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá
figurar em uma única empresa dessa modalidade.
13
§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas
para as sociedades limitadas.
11
Revista Jurídica FACULDADES COC
37
Do ato constitutivo da EIRELI constituída apenas por pessoa natural deverá
constar, também, cláusula com a declaração de que o seu titular não participa
de nenhuma outra empresa dessa modalidade, dispensada tal declaração
por titular pessoa jurídica. Por via derivada a EIRELI é constituída por meio
de conversão16 , nos termos do parágrafo 3º. do artigo 980-A17 e o parágrafo
único do artigo 1.03318, ambos do Código Civil, que tratam da possibilidade de
conversão de uma sociedade contratual cujas quotas se concentraram em um
único sócio em uma empresa individual de responsabilidade limitada, com
mero requerimento no órgão de registro.
A falta de pluralidade de sócios de uma sociedade não a torna
automaticamente em EIRELI, será necessário apresentação ao órgão competente
do instrumento de conversão. A sociedade em condição de unipessoalidade
poderá ter seu registro EIRELI convertido, independentemente do decurso
do prazo de 180 (cento e oitenta dias), desde que não realizada a liquidação
decorrente da dissolução a que se refere o inciso IV do art. 1.033 do Código
Civil19.
A constituição derivada foi disciplinada pela Instrução Normativa nº.
118, de 22 de novembro de 2012, do Departamento Nacional de Registro do
Comércio (DNRC)20, que assim a conceitua: “Art. 2º Transformação de registro
é a operação pela qual a sociedade, a empresa individual de responsabilidade
limitada ou o empresário individual altera o tipo jurídico, sem sofrer dissolução
ou liquidação, obedecidas as normas reguladoras da constituição e do registro
da nova forma a ser adotada”.
DA ATIVIDADE EXPLORADA PELA EIRELI
Pessoa jurídica é um ente criado para consecução de certos fins,
reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações. No caso
Sem entrar no mérito da questão, entendemos não ser possível a constituição da empresa individual
de responsabilidade limitada por incapaz, em que pese este poder ser sócio de sociedade nos termos do
artigo 973, §3º, do Código Civil.
15
Neste trabalho não trataremos desses requisitos por ter cunho científico e não pragmático.
16
A lei usa o termo “transformação”, porém tal expressão é utilizada tecnicamente como a operação
societária na qual uma sociedade muda seu “tipo” societário, por exemplo uma sociedade anônima se
transforma em sociedade limitada. Como sustentamos que a EIRELI não é um tipo societário, preferimos
utilizar o termo “conversão”.
17
§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das
quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram
tal concentração.
18
Art. 1.033...
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese
de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de
Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para
empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113
a 1.115 deste Código.
14
38
Revista Jurídica FACULDADES COC
das sociedades21 estas podem ser empresárias ou simples, cuja distinção se faz
pela forma de exploração do objeto social nos termos do artigo 982 do Código
Civil22, deste modo utilizamos novamente o parágrafo 6º do artigo 980-A que
autoriza a utilização subsidiária das regras da sociedade do tipo limitada.
Como a sociedade do tipo limitada pode ser empresária ou simples23,
cremos que a empresa individual de responsabilidade limitada poderá ter
como fim a exploração de atividade econômica civil ou empresária. Importante
destacar que a lei é omissa quanto ao objeto da EIRELI e por isso devemos
considerar que esta poderá explorar qualquer espécie de atividade econômica,
exceto aquelas proibidas em lei.
Por todo exposto, a empresa individual de responsabilidade limitada
poderá ser constituída para exploração de atividade não empresária como é
caso da prestação de serviços intelectuais, de natureza científica, literária ou
artística, atividades estas excluídas do conceito de empresário24.
A Secretaria da Receita Federal do Brasil já tem admitido a constituição
da EIRELI de natureza civil e já vem oficialmente chamando-as de Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada de Natureza Simples, nos termos da
Resolução da Comissão Nacional de Classificação – CONCLA nº. 02, de 21 de
dezembro de 2.01125.
Acreditamos ser pertinente neste momento trazer a regra do parágrafo
5º, que é válida para EIRELI, cuja atividade seja a prestação de serviços de
qualquer natureza. Pela lei poderá ser atribuída à empresa individual de
responsabilidade limitada a remuneração decorrente da cessão de direitos
patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor
o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional, nos termos
das leis de proteção a propriedade intelectual26.
DO ÓRGÃO DE REGISTRO
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com
Art. 4º da IN nº. 188 do DNRC.
INSTRUÇÃO NORMATIVA nº. 118, de 22 de Novembro de 2011- Dispõe sobre o processo de
transformação de registro de empresário individual em sociedade empresária, contratual, ou em
empresa individual de responsabilidade limitada e vice-versa, e dá outras providências.
21
Segundo o artigo 44, III, do Código Civil, a sociedade é pessoa jurídica de direito privado, cuja
personalidade jurídica é constituída com o registro no órgão competente.
22
Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o
exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.
Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e,
simples, a cooperativa.
23
Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a
1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo,
subordina-se às normas que lhe são próprias.
19
20
Revista Jurídica FACULDADES COC
39
a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro27 , logo a personalidade
jurídica de uma empresa individual de responsabilidade limitada precede
do cumprimento desta obrigação legal. A distinção trazida no item anterior
refletirá no órgão responsável pelo registro da empresa individual de
responsabilidade limitada, mesmo na omissão legislativa, pelo sistema já
criado, cremos que aquela que explorar atividade econômica civil deverá ser
registrada no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas enquanto aquela que
explorar empresarialmente na Junta Comercial, como já ocorre na prática28.
DO CAPITAL29
O caput do artigo 980-A determina que o capital deverá ser de titularidade
de uma única pessoa que deverá integralizá-lo no momento da constituição da
empresa individual de responsabilidade limitada e que não poderá ser inferior
a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Obviamente que
não será possível fracionar o capital por este ser de titularidade de uma única
pessoa. Entendemos que pelo caput a integralização realizar-se-á à vista, no
momento da constituição da pessoa jurídica, proibindo o parcelamento da
contribuição. Quanto à forma da contribuição, esta poderá ser realizada por
dinheiro, créditos ou bens, sendo vedada a integralização do capital social por
meio de prestação de serviço30.
Questão tortuosa é o valor mínimo de 100 (cem) vezes o maior saláriomínimo vigente no País no momento da constituição da empresa individual
de responsabilidade limitada para o seu registro. Tal preceito consta de
igual forma na Instrução Normativa da DNRC nº. 117, impossibilitando que
a pessoa constitua empresa individual de responsabilidade limitada com o
capital que acredita ser suficiente para atividade a ser explorada, inclusive
inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Como em
nenhuma outra espécie de pessoa jurídica há valor mínimo de capital para sua
constituição, então qual o motivo para existência deste na empresa individual
de responsabilidade limitada?
Parece-nos que a parte final do artigo 980-A do Código Civil é
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada
para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica,
literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da
profissão constituir elemento de empresa.
25
http://www1.ibge.gov.br/concla/default.php <acesso em 17/03/2012>.
26
Lei nº. 9.610/1.998 (Direitos Autorais) e Lei nº. 9.279/1.996 (Direito de Propriedade Industrial).
27
Art. 45 do cód. Civil. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição
do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação
do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
28
http://www.irtdpjbrasil.com.br/EIRELI.COSIT.pdf <acesso em 17/03/2012>
24
40
Revista Jurídica FACULDADES COC
inconstitucional por ferir o artigo 5º da Constituição da República por tratar de
forma desigual o interessado em constituir uma EIRELI de outro interessado
em constituir qualquer outra espécie de pessoa jurídica. Ainda, a parte final
do artigo 980-A do Código Civil esbarra na vedação de vinculação do salário
mínimo para qualquer fim, prevista no inciso IV, do artigo 7º da Constituição
Federal. Nesta esteira a Súmula Vinculante nº. 4 do STF impede a utilização do
salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor
público ou de empregado, ou sua substituição por decisão judicial, salvo os
casos previstos na Constituição.
Há infração também ao principio da livre iniciativa do artigo 170 da
Carta Magna, por impossibilitar a constituição da empresa individual de
responsabilidade limitada por pequenos empreendedores, para atividades
menores. Todas essas alegações estão sub judice perante o Supremo Tribunal
Federal pela propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4637,
pelo Partido Popular Socialista, cujos autos estão conclusos com o relator
Ministro Gilmar Mendes desde 12/08/201131.
DO NOME EMPRESARIAL
Como a pessoa jurídica não se confunde com o(s) membro(s) que a
compõe, resguardando seu direito de personalidade, deve-se registrar, no
momento de sua constituição, um nome pelo qual girará sua atividade. Pelo
parágrafo 1º do artigo 980-A do Código Civil o nome empresarial da empresa
individual de responsabilidade limitada seguirá as regras da sociedade do tipo
limitada32 , porém ao invés de integrar a palavra final a expressão “limitada”
ou sua abreviatura, deverá ser utilizada a expressão “EIRELI” após a firma ou
a denominação social.
Quando adotar firma, esta será formada pelo nome do titular, que deverá
figurar de forma completa, podendo ser abreviados os prenomes. Poderá
aditar, se quiser ou quando já existir nome empresarial idêntico, designação
mais precisa de sua pessoa ou de sua atividade. Adotando denominação, esta
poderá conter o nome do titular ou elemento fantasia, conforme vontade do
constituinte. No caso de optar por denominação esta deverá designar o objeto
da atividade explorada pela EITELI, de modo específico, não se admitindo
expressões genéricas isoladas, como: comércio, indústria, serviços. Havendo
mais de uma atividade, poderão ser escolhidas uma ou mais dentre elas, nos
termos do item 1.2.14 da Instrução Normativa nº. 117 da DNRC.
Apesar da expressão “capital social” constar na norma, entendemos que como a EIRELI não é uma
sociedade, não há capital “social”, mas tão somente capital.
30
Art. 1.055...
§ 2º É vedada contribuição que consista em prestação de serviços.
29
Revista Jurídica FACULDADES COC
41
Quando a EIRELI apresentar para arquivamento declaração de
enquadramento como Microempresa ou Empresa de Pequeno Porte,
simultaneamente ao ato constitutivo, é facultativa a indicação do objeto
(atividade) na denominação.
Em caso de omissão da expressão EIRELI ao nome haverá a
responsabilidade solidária e ilimitada dos administradores que assim
empregarem a firma ou a denominação.
DA ADMINISTRAÇÃO
Como dito a pessoa jurídica é um ente fictício criado pelo direito para
desempenho de fim específico, cuja sua representação deverá, necessariamente,
ser feita por uma ou mais pessoas naturais. O administrador da EIRELI será
exercida por uma ou mais pessoas designadas no ato constitutivo, cujo prazo
do mandato poderá ser determinado ou indeterminado. Por força do uso
subsidiário das regras da sociedade do tipo limitada, abre-se a possibilidade
da administração da empresa individual de responsabilidade limitada ser
exercida por outra pessoa que não o titular ou até mesmo por dois ou mais
administradores, seja um o titular ou não34.
O administrador não titular considerar-se-á investido no cargo
mediante aposição de sua assinatura no ato constitutivo em que foi nomeado.
Tal conclusão legal foi agasalhada pela Instrução Normativa nº. 117 do
Departamento Nacional do Registro do Comércio.
DA RESPONSABILIDADE DO TITULAR POR OBRIGAÇÕES DA EIRELI
Foi vetado o parágrafo 4º que dispunha: “Somente o patrimônio social da
empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade
limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa
natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens
entregue ao órgão competente”. Pelo motivo do veto: “Não obstante o mérito
da proposta, o dispositivo traz a expressão ‘em qualquer situação’, que pode
gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração
http://www.stf.jus.br <acesso em 17.03.2012>
Art. 1.158. Pode a sociedade limitada adotar firma ou denominação, integradas pela palavra final
“limitada” ou a sua abreviatura.
§ 1º A firma será composta com o nome de um ou mais sócios, desde que pessoas físicas, de modo
indicativo da relação social.
§ 2º A denominação deve designar o objeto da sociedade, sendo permitido nela figurar o nome de um
ou mais sócios.
§ 3º A omissão da palavra “limitada” determina a responsabilidade solidária e ilimitada dos
administradores que assim empregarem a firma ou a denominação da sociedade.
31
32
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Revista Jurídica FACULDADES COC
da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por
força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade
limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”.
Deste modo, mesmo pelo veto presidencial, com base em seu fundamento,
a responsabilidade do titular da empresa individual de responsabilidade
limitada se igualará a dos sócios da sociedade do tipo limitada35.
MICROEMPRESA E EMPRESA DE PEQUENO PORTE.
Adequando-se a disciplina da EIRELI introduzida pela Lei nº. 12.441/2011
a Lei Complementar nº. 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da
Empresa de Pequeno Porte) foi alterada pela Lei Complementar nº. 139/201136
, permitindo que a empresa individual de responsabilidade limitada se
enquadrasse nos conceitos de Microempresa (ME) e Empresa de Pequeno
Porte (EPP).
FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EIRELI
Pelo disposto na Lei nº. 11.101/2005 a recuperação judicial, a recuperação
extrajudicial e a falência são institutos próprios do empresário e da sociedade
empresária37. Diferentemente do que ocorreu com o Estatuto Nacional da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte a Lei de Falência e Recuperação
de Empresas, até o presente momento, não foi alterada para dirimir eventuais
dúvidas sobre a possibilidade ou não da EIRELI ser sujeita a falência ou
recuperação.
Em que pese a Instrução Normativa nº. 177 do DNRC tratar do tema,
pela linha traçada neste estudo, a EIRELI, seja de natureza empresária ou
simples, não está sujeita a Lei de Falência visto não se tratar de empresário
individual nem de sociedade empresária. Admitir a possibilidade da empresa
individual de responsabilidade limitada ser beneficiária da Lei de Falência
seria uma brecha para que outras espécies de pessoa jurídica utilizassem o
mesmo expediente.
Art. 1.060 do Cód. Civil. A sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas designadas no
contrato social ou em ato separado.
35
Art. 1.052 do Cód. Civil. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de
suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
36
Art. 3º. Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de
pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade
limitada e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil),
devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas,
conforme o caso, desde que:
37
Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.
34
Revista Jurídica FACULDADES COC
43
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Exalte-se a intenção legislativa ao prever a empresa individual de
responsabilidade limitada colocando o Brasil no status de outros países que
já a adotam. Como procuramos demonstrar neste breve artigo jurídico, a
Lei nº. 12.441/2011 trará não só a inovação festejada, mas também diversas
questões que deverão ser confrontadas pelos juristas, assim como algumas
que buscamos apresentar. Em tempo, este texto trata de mera reflexão do
autor sobre alguns dos desdobramentos da recente introdução da empresa
individual de responsabilidade limitada no Código Civil, ressalvando
eventual modificação de entendimento mediante a continuidade da reflexão e
do estudo aprofundado sobre o tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial. São Paulo:
Editora Saraiva, 1986;
BERTOLDI, Marcelo M., Curso Avançado de Direito Comercial, São Paulo:
Editora RT, 2008.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Vol. I. São Paulo: Editora
Saraiva, 2012
MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Editora
Atlas, 2012.
SANTOS, Filipe Cassiano. A Sociedade Unipessoal por Quotas – Comentários
e Anotações Aos artigos 270-A a 270-G do Código das Sociedades Comerciais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2009.
OS TRATADOS INTERNACIONAIS E SEUS
REFLEXOS JURÍDICOS NA ORDEM INTERNA
BRASILEIRA
PAULO HENRIQUE MIOTTO DONADELI 1
Resumo
O presente artigo visa analisar os Tratados Internacionais, como uma das
fontes do Direito Internacional Público mais utilizadas na regulamentação
das relações entre os membros da sociedade internacional, verificando o seu
conceito, formas, criação, eficácia e extinção, além de sua relação com o Direito
Interno Brasileiro. O artigo parte da concepção que os Estados, em razão da
sua soberania, são livres e independentes na ordem internacional e não se
submetem a nenhum poder superior. As normas do direito internacional são
construídas e aplicadas conforme a vontade dos Estados, respeitando seus
interesses e condições. Mas, uma vez criados e aceitos, os Tratados passam a
ter força jurídica, implicando na obrigação de serem respeitos e cumpridos.
Os tratados não são regras morais, mas são regras de direito e, portanto o
seu não cumprimento pode gerar uma penalização na ordem internacional.
Para entender melhor a disciplina jurídica dos tratados, o artigo analisará
a Convenção de Viena de 1969, conhecida com a Lei dos Tratados, que
padronizou a elaboração dos tratados na ordem internacional, dando aos
Estados uma maior segurança jurídica na sua adoção e aplicabilidade.
Palavras-chave: Fontes do Direito Internacional; Tratados Internacionais;
Direito Brasileiro.
O TRATADO COMO FONTE DO DIREITO INTERNACIONAL
O Direito Internacional Público é um conjunto de normas e princípios,
que visa reger as relações da sociedade internacional, estabelecendo direitos
e obrigações entre os sujeitos de direito internacional, especialmente entre
os Estados e entre os Estados e as Organizações Internacionais. As normas
do Direito Internacional são regras obrigatórias, vinculantes e restritivas do
direito de soberania. Não dá mais para negar o caráter jurídico do Direito
Internacional em razão da ausência de um poder central da sociedade
internacional, pois hoje existem várias cortes internacionais e um sistema de
solução de controvérsias, que aplicam medidas coercitivas quando há violação
das normas internacionais (ACCIOLY; SILVA, CASELLA, 2010, p.31).
O Direito Internacional Público se fortaleceu no último século,
principalmente após as Guerras Mundiais, por existir uma necessidade
imperiosa dos Estados Soberanos de se aproximarem, em razão da globalização
econômica, das novas tecnologias de comunicação, da tutela dos direitos
humanos e da garantia da segurança e da paz mundial (FERREIRA FILHO, 1995,
p.41). A criação da Organização das Nações Unidas teve papel fundamental
na integração e na regulamentação da ordem internacional, criando um novo
Advogado, Mestre em Direito do Estado, docente do Curso de Direito do UNICOC, Ribeirão Preto, e
do Curso de Direito da UNESP, Franca.
1
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Revista Jurídica FACULDADES COC
modelo de conduta nas relações internacionais, baseada na amizade mútua,
no respeito aos direitos humanos e na cooperação internacional no plano
econômico, social e cultural (PIOVESAN, 1996, p. 150).
Na Antiguidade e na Idade Média o direito era fruto da natureza, do
costume e da religião. No final da Idade Média o direito ganha autonomia, a
partir da desintegração do universalismo religioso. Com as transformações
históricas e culturais na Idade Moderna, o direito passou a ser entendido
como obra da criação humana, fruto da razão e reflexo da vontade humana. A
positivação do direito valorizou o papel do legislador e o costume cedeu lugar
à legislação. A lei tornou-se a fonte principal do direito. Com isso, foi criada
a Teoria das Fontes e seu estudo buscou responder quem tem a autorização
para criar as normas e decidir sobre seu conteúdo (AMARAL JÚNIOR, 2011).
Por fontes do Direito Internacional Público entendam-se os documentos
ou pronunciamentos que emanam direitos e deveres das pessoas internacionais.
O fundamento do Direito Internacional Público é a vontade dos sujeitos
pertencentes à sociedade internacional, que estabelecem as normas a partir
da orientação de uma consciência ética universal vinculada à concepção dos
princípios gerais do direito. Essa vontade que rege o Direito Internacional
Público esta ligada a concepção de soberania dos Estados, que tem o poder
de submeter ou não as normas internacionais, de acordo com seus interesses.
Muitos estudos existem sobre as fontes do Direito Internacional Público.
As doutrinas classificam as fontes com base no artigo 38 do Estatuto da
Corte Internacional de Justiça. Este artigo diz que cumpre a Corte decidir
as controvérsias que lhe forem submetidas aplicando: a) as convenções
internacionais; b) o costume internacional; c) os princípios gerais de direito;
d) excepcionalmente as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais
qualificados.
Hoje esta norma não é vista como um rol taxativo das fontes do direito
internacional público, mas apenas como uma ilustração exemplificativa, não
existindo hierarquia entre as estas fontes. Acrescentam-se os atos unilaterais
como fontes do direito internacional público, que é a manifestação de
vontade de um único sujeito de direito internacional, como por exemplo, uma
notificação e o reconhecimento. É importante ressaltar que os costumes, tão
utilizado no Direito Internacional, principalmente no campo privado, são uma
prática geral e constante adotada em certa situação de fato pelos sujeitos de
direito internacional, pela convicção da sua obrigatoriedade.
O presente artigo se restringe ao estudo dos Tratados como fonte do
Direito Internacional Público, centrando seu estudo na Convenção de Viena
de 1969 e sua relação com a ordem jurídica interna brasileira.
Revista Jurídica FACULDADES COC
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A CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de
1969, em vigor internacional desde 27 de janeiro de 1980, conhecida como
“Lei dos Tratados”, reconheceu a importância dos tratados como instrumento
de cooperação pacífica entre as nações e buscou reafirmar universalmente os
princípios do livre consentimento, da boa fé e a regra pacta sunt servanda. Em
seu preâmbulo de intenções acentuou:
(...) a codificação e o desenvolvimento progressivo do direito
dos tratados alcançados na presente Convenção promoverão os
propósitos das Nações Unidas enunciados na Carta, que são a
manutenção da paz e da segurança internacionais, o desenvolvimento
das relações amistosas e a consecução da cooperação entre as nações.
A referida Convenção foi criada com a intenção de padronizar a
elaboração dos tratados na comunidade internacional, tendo aplicabilidade
para o futuro, não retroagindo aos tratados passados. Tem aplicabilidade a
todos os tratados celebrados entre Estados, a todo tratado constitutivo de
uma organização internacional e a todo tratado adotado no âmbito de uma
organização internacional. Conceitua os Tratados Internacionais como ajustes
celebrados por escrito, entre dois ou mais sujeitos de direitos internacionais,
que vinculam juridicamente as partes contratadas, observando as regras e
princípios do direito internacional, independentemente de sua designação
específica. Os tratados internacionais, de acordo com o numero de participantes,
podem ser bilaterais ou multilaterais, e geralmente trazem em seu conteúdo
acordos negociais, disciplinam direitos e obrigações entre os signatários, e até
mesmo criam organizações internacionais. Os tratados podem ser celebrados
para viger por período transitório ou podem ter eficácia permanente.
Várias são as designações que um tratado pode ter de acordo com seu
conteúdo: 1. Tratados: usados para acordos solenes, como celebração de paz. 2.
Convenção: é o tratado que cria normas gerais, por exemplo, convenção sobre
o mar; convenção sobre normas de comercio internacional. 3. Declaração: é
usado para criar princípios jurídicos que afirmam uma intenção comum, ou
meta ou atitude política comum. 4. Pacto: é sinônimo de tratado. 5. Estatuto:
normas para funcionamento de organismos internacionais. 6. Acordo: tratado
para temas econômicos, financeiros, comercial e cultural. 7. Concordada:
tratado entre um Estado e a Santa Fé, para regulamentar questão de ordem
religiosa. 8. Compromisso: acordo para submissão de um litígio a arbitragem.
9 Acordos de sede: um estado permite a instalação de uma organização em
seu território. 10. Carta: tratado para estabelecer a criação de organismos
internacionais.
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Revista Jurídica FACULDADES COC
Na formação de um tratado são verificadas cinco fases:
1. Negociação: é o momento que se expressa a força soberana dos Estados
e a independência na ordem internacional. A criação do texto do tratado deve
ser feita conjuntamente e respeitar os interesses e as condições das partes.
Os interessados vão se reunir, uma ou várias vezes, para pontuarem suas
intenções e construírem um texto que congregue a vontade de todos.
2. Conclusão e Assinatura: não gera efeitos jurídicos, apenas diz que o
Estado concorda com o texto do tratado formulado nas negociações.
3. Aprovação interna do Poder Legislativo do Estado: no Brasil do
Congresso Nacional. Após a assinatura pelo chefe do poder executivo o tratado
é encaminhado ao Poder Legislativo Federal para ser apreciado e aprovado,
conforme o interesse nacional, por meio de decreto legislativo. A aprovação do
tratado pelo Poder Legislativo autoriza o Poder Executivo a ratificar o tratado.
4. Ratificação: A ratificação é a confirmação formal e definitiva do Estado
de que aceita se submeter às normas do tratado, gerando efeitos jurídicos
internacionais. O instrumento de ratificação dever ser depositado em um órgão
internacional que passa a fazer a fiscalização do tratado. Adesão é quando o
Estado não participou da negociação e vem aderir ao tratado posteriormente,
quando esta pronto.
5. Vigência: entra em vigor na forma prevista do tratado. Ausente esta
forma entra em vigor do momento que os participantes mostram o interesse
em se obrigar pelo que esta previsto no tratado. O tratado pode ou não prever
o vacatio legis. Quando o consentimento de um Estado em obrigar-se por um
tratado for manifestado após sua entrada em vigor, o tratado entrará em vigor
em relação a esse Estado nessa data, a não ser que o tratado disponha de outra
forma.
Após sua entrada em vigor, os tratados serão remetidos ao Secretariado
das Nações Unidas para fins de registro ou de classificação e catalogação,
conforme o caso, bem como de publicação. O depositário pode ser um ou
mais Estados, uma organização internacional ou o principal funcionário
administrativo dessa organização.
Os tratados para terem validade jurídica precisam cumprir na sua
elaboração quatros requisitos:
1) Capacidade das partes: O Estado e Organizações Internacionais
têm capacidade para concluírem tratados. Os beligerantes, insurgentes e
territórios internacionalizados podem celebrar tratados. A capacidade dos
Estados em celebrarem tratados é ilimitada. As organizações internacionais
podem celebrar nos limites da carta constitutiva. A Constituição Federal
de 1988 permite que União, Estados-membros, DF e municípios possam
realizar operações internacionais de natureza financeira, art. 52, V, desde que
autorizados pelo Senado Federal.
Revista Jurídica FACULDADES COC
49
2) Habilitação dos agentes signatários: consiste na concessão de
plenos poderes para negociar e concluir tratados dados aos representantes
internacionais. Eles são conhecidos como os plenipotenciários. Habilitação, de
acordo com a Convenção de Viena, é:
(...) um documento expedido pela autoridade competente de um
Estado e pelo qual são designadas uma ou várias pessoas para
representar o Estado na negociação, adoção ou autenticação do
texto de um tratado, para manifestar o consentimento do Estado
em obrigar-se por um tratado ou para praticar qualquer outro ato
relativo a um tratado.
No caso de delegações o chefe é o plenipotenciário, e os delegados são
os assistentes. Os Chefes de Estados, os Chefes de Governo, os Ministros das
Relações Exteriores, Representantes acreditados pelo Estado perante uma
Organização Internacional e chefes de missões permanentes perante Estados e
Organizações Internacionais, secretários gerais de Organizações Internacionais
não precisam apresentar a carta de plenos poderes, pois tem representação
originária, e os demais tem representação derivada.
3) Consentimento mútuo: é a aceitação dos signatários em aderir ao
tratado. É a manifestação da vontade soberana do Estado, por isso, não pode ter
vício de consentimento, como erro, dolo, corrupção e coação do representante
de um Estado. A Convenção de Viena diz: “O consentimento de um Estado
em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se pela assinatura, troca dos
instrumentos constitutivos do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou
adesão, ou por quaisquer outros meios, se assim acordado”.
4) Objeto lícito, possível e moral: o tratado deve estar de acordo com
as normas do Direito Internacional, aceitas e reconhecidas pela comunidade
internacional dos Estados como um todo. Não é possível, por exemplo,
celebrar um tratado internacional entre Estados para invadir o território de
outro Estado, pois estaria ferindo o princípio universal da não agressão e do
respeito a independência alheia.
Aparentemente a adoção do texto do tratado efetua-se pelo consentimento
de todos os Estados que participam da sua elaboração, exceto quando a adoção
do texto se dá numa conferência internacional, que nesse caso a adoção se
efetua pela maioria de dois terços dos Estados presentes e votantes, salvo se
esses Estados, pela mesma maioria, decidirem aplicar uma regra diversa.
Na adoção de um Tratado um Estado pode formular uma reserva, a não
ser que: a reserva seja proibida pelo tratado; o tratado disponha que só possam
ser formuladas determinadas reservas, entre as quais não figure a reserva
em questão; ou nos casos que a reserva seja incompatível com o objeto e a
finalidade do tratado. Uma reserva expressamente autorizada por um tratado
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Revista Jurídica FACULDADES COC
não requer qualquer aceitação posterior pelos outros Estados contratantes, a
não ser que o tratado assim disponha. Pela mesma Convenção:
(...) reserva significa uma declaração unilateral, qualquer
que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado
ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele
aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico
de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse
Estado.
Os tratados são celebrados para valer na ordem internacional, vinculando
o sujeito de direito internacional perante a sociedade internacional. Os tratados
não beneficiam e nem prejudicam terceiros, valem apenas entre as partes.
Mas existem tratados que devem ser observados por outros estados, mesmo
não configurando como partes, como, por exemplo, um tratado de fronteiras
entre dois ou mais estados, na qual gera efeitos difusos, devendo os outros
estados respeitarem. Também existe no Direito Internacional a cláusula de
nação mais favorecida, em que terceiro se beneficia de um tratado bilateral, em
razão da existência de um tratado anterior, que prevê a extensão de benefícios
concedidos posteriormente a outros estados ao estado de um tratado anterior.
Um tratado pode ser emendado por acordo entre as partes. Qualquer
intenção para emendar um tratado deve ser notificada a todos os Estados
contratantes, cada um dos quais terá o direito de participar. O acordo de
emenda não vincula os Estados que já são partes no tratado e que não se
tornaram partes no acordo de emenda.
O direito de uma parte de denunciar, retirar-se ou suspender a execução
do tratado, só pode ser exercido em relação à totalidade do tratado, a menos
que este disponha ou as partes acordem diversamente. Uma parte deverá
notificar, com pelo menos doze meses de antecedência, a sua intenção de
denunciar ou de se retirar de um tratado.
Um Estado não pode mais invocar uma causa de nulidade, de extinção,
de retirada ou de suspensão da execução de um tratado, se, depois de haver
tomado conhecimento dos fatos, esse Estado: tiver aceito, expressamente, que
o tratado é válido, permanece em vigor ou continua em execução conforme
o caso, ou em virtude de sua conduta, deva ser considerado como tendo
concordado que o tratado é válido, permanece em vigor ou continua em
execução, conforme o caso. A extinção de um tratado ou a retirada de uma das
partes pode ter lugar: de conformidade com as disposições do tratado; ou a
qualquer momento, pelo consentimento de todas as partes, após consulta com
os outros Estados contratantes. A não ser que o tratado disponha diversamente,
um tratado multilateral não se extingue pelo simples fato de que o número de
partes ficou aquém do número necessário para sua entrada em vigor.
Revista Jurídica FACULDADES COC
51
A execução de um tratado em relação a todas as partes ou a uma parte
determinada pode ser suspensa: de conformidade com as disposições do
tratado; ou a qualquer momento, pelo consentimento de todas as partes, após
consulta com os outros Estados contratantes.
Considerar-se-á extinto um tratado se todas as suas partes concluírem
um tratado posterior sobre o mesmo assunto e: resultar do tratado posterior,
ou ficar estabelecido por outra forma, que a intenção das partes foi regular
o assunto por este tratado; ou as disposições do tratado posterior forem de
tal modo incompatíveis com as do anterior, que os dois tratados não possam
ser aplicados ao mesmo tempo. Considera-se apenas suspensa a execução do
tratado anterior se depreender do tratado posterior, ou ficar estabelecido de
outra forma, que essa era a intenção das partes. Uma violação substancial de
um tratado bilateral por uma das partes autoriza a outra parte a invocar a
violação como causa de extinção ou suspensão da execução de tratado, no
todo ou em parte.
Uma parte pode invocar a impossibilidade de cumprir um tratado como
causa para extinguir o tratado ou dele retirar-se, se esta possibilidade resultar
da destruição ou do desaparecimento definitivo de um objeto indispensável
ao cumprimento do tratado. Se a impossibilidade for temporária, pode ser
invocada somente como causa para suspender a execução do tratado. A
impossibilidade de cumprimento não pode ser invocada por uma das partes
como causa para extinguir um tratado, dele retirar-se, ou suspender a execução
do mesmo, se a impossibilidade resultar de uma violação, por essa parte, quer
de uma obrigação decorrente do tratado, quer de qualquer outra obrigação
internacional em relação a qualquer outra parte no tratado.
Uma mudança fundamental de circunstâncias, ocorrida em relação às
existentes no momento da conclusão de um tratado, e não prevista pelas
partes, não pode ser invocada como causa para extinguir um tratado ou dele
retirar-se.
O rompimento de relações diplomáticas ou consulares entre partes
em um tratado não afetará as relações jurídicas estabelecidas entre elas pelo
tratado, salvo na medida em que a existência de relações diplomáticas ou
consulares for indispensável à aplicação do tratado. A extinção de um tratado
libera as partes de qualquer obrigação de continuar a cumprir o tratado e não
prejudica qualquer direito, obrigação ou situação jurídica das partes, criados
pela execução do tratado antes de sua extinção.
3 OS TRATADOS INTERNACIONAIS E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
BRASILEIRA
O tratado pode ocupar posição das normas ordinárias ou posição de
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Revista Jurídica FACULDADES COC
norma constitucional, de acordo com o que prevê o direito do estado. Para
entender a relação dos tratados de direito internacional e a ordem interna de
um país é preciso verificar qual a relação estabelecida pela Constituição de
um país com o Direito Internacional Público. Essa relação é explicada a partir,
basicamente, de duas teorias: 1. Teoria Monista: o sistema jurídico é único,
e o direito interno e internacional são apenas compartimentos de um todo,
tendo a mesma fonte de origem, portanto os tratados internacionais, uma vez
criados pelo Estado, geram efeitos jurídicos imediatos na ordem interna após
a sua ratificação 2. Teoria Dualista: existem dois sistemas jurídicos distintos e
independentes, na qual o direito interno é fruto da vontade de um único estado,
e o direito internacional é fruto da vontade coletiva. Para esta ultima teoria,
por existir dois ordenamentos jurídicos autônomos, é necessário à existência
de um ato jurídico novo para que o tratado, devidamente ratificado, ingresse
na ordem interna, gerando efeitos jurídicos. Desta forma a Teoria Dualista
se vale da Teoria da Incorporação, na qual o tratado internacional para ser
aplicado internamente é preciso ser transformado em norma interna.
Perante esta explicação, pode-se perguntar: qual teoria a Constituição
Federal do Brasil adotou? Qual a relação que a República Federativa do
Brasil adotou entre a ordem interna e a ordem internacional? A Constituição
Federal Brasileira, em seu artigo 84, VIII, estabeleceu que é de competência
privativa do Presidente da República celebrar tratados, sujeitos a referendo do
Congresso Nacional. E em seu artigo 49, I, diz ser de competência exclusiva do
Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados internacionais. A
Constituição impôs a necessidade de uma colaboração entres os Poderes da
República na formação do tratado, mas nada mencionou sobre a adoção da
Teoria Monista ou da Teoria Dualista.
A doutrina constitucional entende que a Constituição adotou indiretamente
os dois sistemas, de acordo com o conteúdo do tratado internacional. Para
os Tratados de Direitos Humanos entende-se que adotou a Teoria Monista,
onde a simples ratificação do tratado gera efeitos imediatos na ordem interna,
dispensando a edição de norma nova de incorporação. Esse entendimento
nasce da analise do artigo 5, parágrafo 3, da Constituição Federal: “Art. 5, § 3:
os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em
cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais”.
Para os tratados que abordam outras temáticas, que não direitos humanos,
após a ratificação discute-se a necessidade de um ato normativo interno para
que o tratado gere efeitos no plano interno, o decreto de execução, expedido
pelo Presidente da República e devidamente publicado na forma da lei, para
ingressar na ordem interna. A observância dessas regras é necessária para que
não se ofenda a soberania do Estado, não impondo normas supranacionais à
Revista Jurídica FACULDADES COC
53
revelia dos interesses da nação. Após a ratificação discute-se a necessidade de
um ato normativo interno para que o tratado gere efeitos no plano interno.
Em resumo, para a Teoria Monista: não precisa de ato jurídico para gerar
efeitos na ordem interna, pois a ratificação faz com que o tratado gere efeitos
no plano internacional e nacional. Para a Teoria Dualista: se faz necessário
à existência de um ato jurídico novo para que o tratado ingresse na ordem
interna, gerando efeitos jurídicos. A doutrina tem entendido que em razão
da lacuna aplica-se a Teoria Dualista para os tratados comuns, precisando do
decreto de execução, expedido pelo Presidente da República e devidamente
publicado na forma da lei, para ingressar na ordem interna.
No caso dos tratados de direitos humanos entende-se que a ratificação
gera efeitos imediatos, dispensando a edição de decreto de execução. Com isso,
verifica-se a adoção de um sistema constitucional misto, que dá aos tratados
de direitos humanos hierarquia de norma constitucional e aos outros tratados
a posição de norma infraconstitucional.
Antônio Augusto Cançado Trindade acentua que:
Se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a
intermediação pelo poder Legislativo de ato com força de lei de
modo a outorgar as suas disposições vigência e obrigatoriedade no
plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos
tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o
Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos, passam
a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e
direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico
interno. (TRINDADE, 1993)
A Constituição Federal de 1988 contém inúmeros dispositivos que
reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados internacionais de
direitos humanos, o que deixa evidente o fato de o legislador buscar inspiração
e orientação nestes instrumentos, como também, revela a preocupação do
legislador harmonizar o direito interno às exigências internacionais aceitas
pelo Estado brasileiro (PIOVESAN, 1996, p. 115).
Parágrafo 2º. do artigo 5 da CF: “que os direitos e garantias nela expressas
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte”, atribuiu aos direitos humanos presente nos tratados internacionais
uma natureza especial e diferenciada, permitindo que a norma internacional
tenha efeito de complementar e aperfeiçoe a legislação interna de direitos
humanos.
A importância dessa norma constitucional deve-se ao fato de que: “o
programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística,
ao texto da constituição. Há que desmistificar, em profundidade, as normas
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e princípios da constituição, alargando o bloco da constitucionalidade”,
(CANOTILHO, 1996, p. 982) especialmente em razão da força do princípio da
dignidade humana, que tem que ser visto como um parâmetro valorativo para
a aplicação do texto constitucional, visando a efetivação dos direitos humanos.
Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, acrescentou o parágrafo 3º; ao
artigo 5º: “os tratados e convenções de direitos humanos aprovados em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação, com quorum de três
quintos dos seus membros, serão equiparados às emendas constitucionais e
passam a integrar o elenco dos direitos consagrados constitucionalmente”.
Os direitos humanos presentes nos tratados e convenções internacionais de
que o Brasil é parte, quando observam os requisitos constitucionais, passam a
integrar o elenco dos direitos consagrados constitucionalmente. Esses tratados
ganham natureza especial, porque estão acima da questão de soberania, não
buscam somente a reciprocidade entre os Estados, mas objetivam a garantia
universal dos direitos do ser humano, indistintamente da nacionalidade.
Os direitos constantes dos tratados internacionais de direitos humanos,
uma vez integrados à Constituição, ganham roupagem de cláusula pétrea,
não podendo ser abolidos por qualquer ato infraconstitucional. Esse
dispositivo que concede natureza constitucional às normas constantes dos
tratados de direitos humanos internacionais traz relevantes conseqüências
no plano jurídico interno, permitindo ao indivíduo a invocação direta dos
direitos e liberdades internacionalmente garantidos e, ao mesmo tempo,
proíbe condutas e atos violadores a estes mesmos direitos, cabendo ao Poder
Judiciário declarar a antijuridicidade da conduta violadora e, dependendo
do caso, impor indenizações em favor da vítima que sofreu a violação a esse
direito internacionalmente tutelado.
Os Tratados de direitos humanos podem trazer vários impactos no
ordenamento jurídico brasileiro. Como foi visto, muitas normas previstas em
tratados coincidem com as normas de direito interno, e isto é positivo para
reforçar a tutela dos direitos humanos. Às vezes, os tratados trazem normas
não previstas no ordenamento interno, e neste caso têm a função de integrar
e completar ampliando a rede de tutela dos direitos humanos. A grande
questão é quando as normas de direitos humanos prevista em tratados entram
em conflito com as normas de direitos humano presentes na ordem interna.
Acontecendo este fato, a doutrina tem se posicionado em aplicar a norma mais
favorável ao individuo, considerando o principio da dignidade da pessoa
humana.
Impactos dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico
brasileiro: 1) quando as normas previstas em tratados coincidem com as
normas de direito interno, e isto, é positivo para reforçar a tutela dos direitos
humanos. 2) quando traz normas não previstas no ordenamento interno, e
Revista Jurídica FACULDADES COC
55
neste caso tem a função de integrar e completar ampliando a rede de tutela
dos direitos humanos. A grande questão é quando as normas de direitos
humanos prevista em tratados entram em conflito com as normas de direitos
humano presentes na ordem interna. Acontecendo este fato, a doutrina tem se
posicionado em aplicar a norma mais favorável ao individuo, considerando o
principio da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. São Paulo:
Saraiva, 2010.
AMARAL JUNIOR, Alberto do. Curso de direito internacional público. São
Paulo: Atlas, 2010.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra:
Almedina, 1996.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed.
São Paulo: Saraiva, 1995.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.
São Paulo: Max Limond, 1996.
REZEK, Francisco. Direito internacional público. 8. Ed. São Paulo: Saraiva,
1996.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A interação entre o direito
internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. Arquivos
do Ministério da Justiça, Brasília, n. 182, p. 28 –29, jun./dez. 1993.
GLOBALIZAÇÃO E OIT: ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA
DAS MUDANÇAS DO MUNDO DO TRABALHO E
DO DIREITO DO TRABALHO
CÉSAR AUGUSTO R. NUNES 1
Resumo
No contexto da atual globalização econômica neoliberal trabalhadores de todo
o planeta encontram-se em situações precárias e exigentes. Em tempos como
estes, indicamos a presente proposta da OIT para a defesa de um trabalho
decente como uma atual, promissora e, principalmente, efetiva medida de
oposição aos efeitos devastadores da globalização, aqui delineada no contexto
das transformações produtivas que se operam no mundo do trabalho em
flagrante ataque aos direitos humanos dos trabalhadores.
Palavras-chave: Trabalho; Direito do Trabalho; Globalização, OIT; Direitos
Humanos.
INTRODUÇÃO
No âmbito deste artigo buscamos sintetizar algumas das mais importantes
idéias e conclusões que produzimos durante a realização de um estudo teórico
no campo da sociologia jurídica, especificamente sobre o tema da globalização
econômica e o programa de trabalho decente da Organização Internacional do
Trabalho – OIT. Nosso objetivo consistia em descobrir as potencialidades deste
plano internacional como uma proposta ampla e sistemática de cooperação
técnica entre a OIT e os governos nacionais, tendo em vista a execução de
políticas e estratégias voltadas para o mundo do trabalho. Não obstante,
buscamos evidenciar quais são os principais desafios impostos pelo atual
cenário econômico e político dominado pela nova ordem mundial, designada
aqui por neoliberalismo globalizado.
De antemão, cumpre-nos estabelecer como referencial teórico os
estudos do autor português Casimiro Ferreira (2005, p. 55), segundo o qual
o surgimento da normatividade laboral e suas posteriores mudanças legais
estão ligadas desde sempre aos sistemas de relações laborais, bem como aos
processos de organização da produção. Tal afirmativa permite-nos constatar a
existência de um conjunto de realidades sociais e de questões teóricas comuns à
sociologia e ao direito do trabalho. Conforme refere, é possível observar ainda
o surgimento de: “condições político-sociais para o desenvolvimento da área
de estudos da sociologia do direito do trabalho”2. Em suma, a riqueza analítica
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP, Especialista em Direitos
Humanos e Democracia pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente, cursando
o Mestrado em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo na Faculdade de Sociologia
da Universidade de Coimbra.
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da perspectiva sócio-jurídica do mundo do trabalho, além de reconhecer
as ligações históricas e recíprocas destas disciplinas das ciências humanas,
também nos revela os impactos da globalização econômica nas relações e
nos instrumentos normativos dos Estados capitalistas, possibilitando, assim,
a compreensão real dos processos de transformação e crise do mundo do
trabalho.
O processo de globalização econômica do capitalismo, iniciado na
década de 1970, constitui-se como um fenômeno de destaque para este trabalho.
Para Mirian de Toni (2003), o estudo da globalização econômica está situado
às novas formas de organizar o plano produtivo (implementação de novas
tecnologias) e a nova organização do plano político (advento do neoliberalismo),
através dos quais o capital tem se sobressaído ao trabalho, na mesma medida
em que o mercado tem se sobressaído aos Estados na tarefa de regulamentar
a economia. Com efeito, ao refletirmos sobre a globalização econômica do
neoliberalismo, com os consequentes efeitos devastadores provocados nas
relações trabalhistas, não podemos acreditar que o capitalismo global de hoje
possa representar o melhor caminho para os trabalhadores. A soma final desse
modelo, inclusive, aponta para destruição de muitas das bases de vida das
classes trabalhadoras, legais (direito do trabalho) e sociais (segurança social),
tamanha é a perversidade com que atua na relação exploratória do capital
pelo trabalho.
Vê-se, assim, como desafio para o nosso tempo a necessidade de
criação e implementação de propostas emancipatórias possíveis de reverter
essa lógica destrutiva do capitalismo. Nesse sentido, recuperamos o programa
desenvolvido pela OIT para busca e conquista de um trabalho decente como
exemplo daquilo que acreditamos ser o referencial político para defesa dos
direitos humanos dos trabalhadores. Trata-se de uma estratégia política
que, a partir de um desenvolvimento teórico crítico mais abrangente,
poderá consubstanciar-se como um benefício para os trabalhadores em
escala internacional. Por último, é precisamente na intenção contribuir para
a elaboração de uma proposta que supere as práticas de precarização das
relações e condições de trabalho que elaboramos o presente artigo.
O PROGRAMA DE TRABALHO DECENTE DA OIT: FORMULAÇÃO,
ESTRATÉGIAS E OBJETIVOS
Considerando o que foi referido na introdução, cuidaremos nesta
primeira parte da tarefa de descrever e explicitar quais são as principais
Para o autor (FERREIRA, 2005), esta perspectiva integrada exige um estudo combinado de diferentes
níveis de análise, os quais estão abrangidos os elementos constitutivos dos sistemas nacionais de relações
e normas laborais, bem como o contexto das varias dimensões sociológicas verificadas na globalização.
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proposições e objetivos previstos no atual programa de Trabalho Decente
da OIT3 . Criado a partir das orientações legais da Declaração dos Direitos
e Princípios Fundamentais no Trabalho, adotada durante a Conferência
Internacional do Trabalho de 1998, o referido programa da OIT incorporou
as teses de direitos humanos daquele instrumento pelas quais os Estadosmembros assumiam o dever de respeitar, promover e realizar a liberdade
sindical, o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, a
eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a efetiva
abolição do trabalho infantil, bem como a eliminação da discriminação em
matéria de emprego e ocupação.
Consta ainda nas justificativas desta Declaração o consenso dos membros
da OIT na previsão de que ao garantir os direitos fundamentais do trabalho
estariam os países signatários contribuindo diretamente para a conquista do
bem-estar das pessoas, assim como para a conquista do desenvolvimento
social e econômico das nações. Sob essa orientação, portanto, no ano de 1999,
é lançado internacionalmente o programa de trabalho decente da OIT, com
as seguintes bases estratégicas para a mobilização de recursos humanos e
materiais e para o compromisso dos atores em torno da execução dos seus
quatro eixos fundamentais: a) respeito às normas internacionais do trabalho,
em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade
sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação
de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil;
eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e
ocupação); b) promoção do emprego de qualidade; c) extensão da proteção
social; d) diálogo social4.
Pretende-se com o programa fomentar o debate sobre relações
de trabalho com objetivo transformar as oportunidades de emprego em
oportunidades produtivas, assim como o modo de ingresso ao emprego um
processo mais justo para os trabalhadores. Ademais, o programa volta ações
para desenvolver melhores condições de segurança aos trabalhadores e uma
necessária proteção social para suas famílias. Entende a Organização que
somente dessa forma seria possível garantir o direito fundamental ao trabalho
em condições dignas, sem o qual estão impedidos inúmeros trabalhadores
A Organização Internacional do Trabalho – OIT foi criada no ano de 1919 e integra parte do acordo
de paz assumido no Tratado de Versalhes. Voltada para a análise e intervenção em questões laborais e
relacionadas ao mundo do trabalho, constitui-se atualmente como uma agência ligada à Organização
das Nações Unidas – ONU, cuja composição de seus membros obedece a divisão tripartite de governos,
trabalhadores e empregadores. Atualmente, a organização está constituída de 183 Estados-membros.
4
Importante salientar que todos estes eixos fundamentais do programa de Trabalho Decente estão
relacionados a Convenções Internacionais da OIT, em especial às de número 87 e 98, que tratam da
liberdade de associação, 29 e 205, que prevêem a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou
obrigatório, 138 e 182, que objetivam a eliminação do trabalho infantil e 100 e 111, contra qualquer forma
de discriminação no trabalho e no emprego.
3
60
Revista Jurídica FACULDADES COC
e trabalhadoras de alcançar o desenvolvimento pessoal, a sua integração,
o respeito a sua liberdade de expressão e de organização, o seu direito de
participação nas esferas de decisão e a real igualdade de trato entre homens e
mulheres.
A despeito do primeiro eixo estratégico do programa, destaca a OIT a
necessidade de execução de um plano internacional de direitos do trabalho
como base de outras iniciativas que visem à conquista do trabalho decente5
. Trata-se da criação de instrumentos jurídicos internacionais específicos
para a regulação das operações comerciais e financeiras dos países, de modo
a ser observado não só o desenvolvimento econômico destes como também
a preservação do meio ambiente e o respeito aos direitos humanos dos
trabalhadores. Por consequência, requer-se de todos os países do globo a
adesão às normas internacionais do trabalho da OIT, nas quais estão previstos
os princípios e direitos básicos do mundo laboral. Sistematizadas na forma
de convenções e recomendações, os instrumentos jurídicos criados de direito
internacional do trabalho desempenham um papel fundamental para o atual
sistema de controle e aplicação das legislações nacionais relacionadas.
No que tange ao eixo que pretende promover o emprego de qualidade,
chama-se a atenção ao dado mais alarmante dos últimos anos, referente ao
número de desempregados contabilizados em todo o globo. Segundo dados da
própria OIT (2010), contabilizaram-se 212 milhões de pessoas desempregadas
no ano de 2009, o que significa o aumento de 22 milhões de pessoas sem
emprego em referência ao ano anterior. Este número representa, certamente, o
maior nível de desemprego registrado na história da OIT, fato este que explica
as ações da organização no sentido de intensificar a sua agenda do Programa
Global de Emprego, a partir de estratégias que pretendem fomentar o emprego
pleno, produtivo e livremente eleito para os próximos 5 anos (2010-2015)6.
Em sequência, para o projeto de extensão da proteção social, pretende o
programa de trabalho decente da OIT corrigir o atual quadro de desproteção
social dos trabalhadores e de suas famílias, segundo o qual somente 20% do
número de trabalhadores no mundo possuem suporte adequado. Para tanto,
alerta-se à necessidade de se elevar a eficácia e a extensão de cobertura dos
sistemas de seguridade social e, por consequência, à necessidade de garantir
salários dignos, saúde e segurança no ambiente de trabalho, proteção dos
Todas as informações referentes aos eixos estratégicos que se seguem foram retiradas do sítio eletrônico
oficial da OIT, disponível em: www.ilo.org.
6
Conforme se observa nas estratégias do Programa Global de Emprego, a OIT pretende nos próximos
5 anos apoiar políticas coordenadas e coerentes que gerem empregos produtivos, trabalho decente e
oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Políticas de desenvolvimento das competências
profissionais para aumentar a empregabilidade dos trabalhadores, a competitividade das empresas e
a capacidade integrada de crescimento; e por último, políticas e programas que promovam empresas
sustentáveis e a iniciativa laboral.
5
Revista Jurídica FACULDADES COC
61
grupos vulneráveis (trabalhadores migrantes e pertencentes ao setor informal)
da economia. Ainda sobre esse tema, vale recordar a criação da Iniciativa
do Piso de Proteção Social da OIT, adotada em 2009 pela Junta de Chefes
Executivos das Nações Unidas, orientada para que os governos dos Estadosmembros possibilitem o acesso de trabalhadores a transferências sociais
básicas e serviços sociais essenciais nas áreas da saúde, água e saneamento,
educação, alimentação, lazer e crédito.
Por fim, a estratégia relativa ao diálogo social está presente neste
programa da OIT com objetivo de disponibilizar oportunidades para
trabalhadores e trabalhadoras obterem um trabalho decente e produtivo, em
condições livres, iguais, seguras e dignas. Deste modo, entende a organização
ser necessário o fortalecimento das legislações laborais, bem como a evolução
das relações entre governos, empregadores e empregados, com vistas a se
permitir avançar os processos de negociação em ambientes estáveis e de paz.
Com efeito, defende-se na esfera do diálogo social o respeito aos direitos
fundamentais de liberdade sindical e da negociação coletiva, as formas de
organização de trabalhadores e empregadores fortes e independentes, o
respaldo institucional adequado para o debate e resolução de questões com
interesses comuns, assim como a vontade política e o compromisso de todos
os interventores desse processo7. Por último, segundo consta da Declaração
da OIT sobre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa (2008, p. 7-8):
El diálogo social y la práctica del tripartismo entre los gobiernos y
las organizaciones representativas de trabajadores y de empleadores
tanto en el plano nacional como en el internacional resultan ahora
aún más pertinentes para lograr soluciones y fortalecer la cohesión
social y el Estado de derecho, entre otros medios, mediante las
normas internacionales del trabajo.
Ademais, sobre a descrição das ferramentas e políticas usadas pela OIT
para implementação do programa de trabalho decente no globo destacamos
ainda duas iniciativas fundamentais: o mapeamento de regiões com déficit de
trabalho decente e a sistematização dos Decent Work Country Programmes DWCP. O primeiro implica o estudo de locais onde se observam a exclusão
social por decorrência do desemprego e do sub-emprego, os trabalhos
de pouca qualidade e improdutivos, as situações de perigo e prejuízos à
saúde dos trabalhadores, os direitos negados, a discriminação de todas as
formas, o tratamento desumano de imigrantes, a falta de representação e
voz, bem como a concessão de proteção inadequadas para enfrentamento
A OIT já em 1951 estava empenhada em garantir os direitos fundamentais da liberdade sindical e
da negociação coletiva, tendo em vista a criação naquele ano do Comitê de Liberdade Sindical (CLS),
responsável por examinar as queixas de violação as Convenções pertinentes.
7
62
Revista Jurídica FACULDADES COC
de enfermidades, incapacidades e velhice. Já com os Decent Work Country
Programmes incorporam-se as estratégias de desenvolvimento dos países
onde são implementados, através de alguns dos programas patrocinados pela
ONU para a cooperação técnica nas áreas da elaboração, execução e avaliação
orçamentária. Refere a própria OIT sobre este assunto (2008, p. 1):
La OIT ha decidido centrar su asistencia a los Estados Miembros para
la consecución de sus objetivos de trabajo decente a través de vehículos
financiados y de duración determinada llamados Programas de Trabajo
Decente por País (PTDPs). Los PTDPs son los documentos de gobernanza
de la OIT que: especifican los resultados que la Oficina espera obtener
durante un período de tiempo específico en un país1 específico (resultados
del Programa por País o resultados del PP); son elaborados de conformidad
con el compromiso de la OIT con el tripartismo y el diálogo social y en
consulta con los mandantes (gobiernos, organizaciones de empleadores
y de trabajadores) para contribuir al establecimiento de las prioridades
del Programa por País (prioridades del PP); son implementados con el
compromiso de los mandantes; y constituyen un vehículo para que la
Oficina gestione su colaboración con otros organismos de las Naciones
Unidas e interlocutores a través de los Marcos de Asistencia de las Naciones
Unidas para el Desarrollo (MANUDs) que también comprometen a los
mandantes de la OIT.
Em síntese, o programa que rapidamente delineamos para a busca
de um trabalho decente à escala global pode ser considerado o maior e mais
elaborado projeto para a defesa do direito ao trabalho da atualidade. A nosso
ver, muito da sua força de transformação está associado ao fato de ser um
programa nascido e desenvolvido pela OIT, uma vez que reconhecemos nesta
organização uma singular capacidade de intervenção por via da normatividade
vinculante que produz aos Estados-membros. A maior potencialidade desta
iniciativa, portanto, resume-se a sua principal justificativa sócio-política, a
qual se pretende executar através de ações programáticas de combate à crise
do trabalho, ao desemprego e a precarização das relações laborais. Cabe a nós
agora identificar em que medida a crise do trabalho atinge os sistemas políticos
públicos e privados relacionados ao mundo do trabalho, e ainda, destacar as
potencialidades e desafios que se vislumbram para a Agenda Nacional de
Trabalho Decente do Brasil.
A ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA DA GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL E
DA AGENDA NACIONAL DE TRABALHO DECENTE NO BRASIL
A propósito do debate sobre a Agenda Nacional de Trabalho Decente
do Brasil e os desafios da globalização neoliberal, torna-se imperioso que
façamos uma recuperação dos pressupostos teóricos sem os quais não é
Revista Jurídica FACULDADES COC
63
possível realizar nenhuma análise sócio-jurídica deste tema. De acordo com
os argumentos de Casimiro Ferreira (2005, p. 58), uma abordagem sóciojurídica do trabalho e das relações laborais realiza-se no esclarecimento de três
questões basilares: a primeira diz respeito à centralidade de dois temas sociais
importantes: o direito laboral e o trabalho. Tanto um quanto outro, na citação
de Ferreira, representa a fonte dos problemas sociais que questionam os
modelos de organização político-social democráticos, na totalidade: “de seus
direitos de cidadania, dimensões pessoais, subjetiva e privada dos indivíduos
e os objetivos, funções e papéis desempenhados por grupos, organizações e
instituições sociais”. Ademais, é sabido que aos temas do direito laboral e do
trabalho associa-se a dimensão definidora da lógica do capitalismo, ou seja, a
lógica de conflitualidade (SANTOS, 1982), explicado pelo fato da relação de
trabalho constituir-se numa relação de subordinação (poder) e troca entre dois
pólos com interesses distintos e antagônicos (empregado e patrão).
A segunda base referida pelo autor parte da problematização de
duas questões importantes, quais sejam: como analisar sociologicamente as
defasagens observadas entre as normas sociais, jurídicas e políticas e as suas
respectivas práticas sociais reais? E ainda, como organizar efetivamente uma
sociedade de indivíduos e grupos desiguais à luz dos princípios da cidadania,
da justiça e da democracia? Para Ferreira (2005, p. 59):
A reposta a estas duas interrogações torna-se possível no quadro de
uma perspectiva de investigação que compagina o desenvolvimento
de um conhecimento crítico e profissionalmente competente com a
identificação dos modos concretos através dos quais os princípios
da cidadania e justiça são efetivamente aplicados. Deste modo, o
que se designa por análise sócio-jurídica das relações laborais,
sociologia crítica do direito do trabalho e das relações laborais ou
sociologia política do direito do trabalho e das relações laborais
pode ser concebido como um projeto de investigação sobre os
efeitos e limites da cidadania, da justiça e da democracia no mundo
do trabalho.
Por último, uma análise sócio-jurídica do mundo laboral requer a adoção
de uma metodologia que seja capaz de relacionar os múltiplos fenômenos da
globalização econômica com as diversas modificações causadas nos sistemas
nacionais para resolução dos litígios laborais. Em outras palavras, o esforço
metodológico que se propõe corrobora para a percepção da globalização
não como uma realidade única, mas sim como um conjunto de várias
“globalizações” (SANTOS, 2001)8.
Guiados por essas indicações, passamos a considerar que as
transformações produtivas executadas no atual estágio da globalização
econômica alteram radicalmente os modos de estabelecimento e regulação
64
Revista Jurídica FACULDADES COC
das relações laborais9. Conforme descreve Míriam de Toni (2003, p. 249), os
impactos da globalização no âmbito da produção ocorrem pela substituição
dos modelos clássicos (taylorismo e fordismo) pelos sistemas flexíveis de
produção (japonês, sueco e italiano). Complementa: “pode-se dizer que,
se as transformações têm apontado para a constituição de um segmento
de trabalhadores com características próximas ao do “novo trabalhador
polivalente”, elas também ampliam formas precárias e não-padronizadas
de relações de trabalho”. É verdade, ainda, que a reestruturação produtiva a
qual nos referimos ganha uma dimensão ainda mais prejudicial para a classe
trabalhadora na medida em que é acompanhada pelo aumento do desemprego,
conforme já referido anteriormente.
No campo das relações jurídicas a mudança global está evidenciada
no que Casimiro Ferreira (2002, p. 272-273) chama de mudança do paradigma
clássico do direito do trabalho. Para o autor, as novas formas precárias de
estabelecimento de vínculo laboral entre empregadores e empregados10, a
crise do emprego e a perda da dimensão coletiva do trabalho11 compõem a
chamada fragmentação da função distributiva do trabalho, estando este: “cada
vez mais dependente das “exigências” de competitividade e das “normas de
regulação” que procuram indexar a evolução dos rendimentos e salários à
evolução da produtividade”. No mesmo sentido, encontram-se os resultados
de uma pesquisa de Llona Kovács (2008, p. 3), a qual se refere a seguir:
Como há diversos tipos de trajectórias de flexibilidade, não podemos
identificar a flexibilidade de emprego com a precariedade, tão
pouco aceitar a tese da crescente oportunidade para todos. Podemos
encontrar trabalhadores com uma forte posição no mercado de
trabalho (detentores de qualificações muito procuradas), apesar da
instabilidade e carácter temporário das suas relações de emprego.
As formas flexíveis de emprego são ambíguas.
Paralelamente a mudança das relações de trabalho, vê-se que a
Para Boaventura de Sousa Santos (2002) quatro são os modos de produção da globalização: localismos
globalizados, globalismos localizados, cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade. Os
dois primeiros correspondem ao padrão da globalização hegemônica (reproduzida pelas empresas
transnacionais, pelos organismos financeiros internacionais e pelos capitalistas dos países centrais),
enquanto os dois últimos correspondem a padrão globalização contra-hegemônica (reproduzida nas
ações dos movimentos sociais e ONG’s progressistas articuladas ao Fórum Social Mundial).
9
Encontramos num importante estudo da OIT (2005) a descrição estatística das principais características
da globalização, as quais podem ser resumidas da seguinte forma: 1) rápido crescimento do comércio
mundial; 2) aumento do IDE (Investimento Direto Estrangeiro) a partir de 1980; 3) intensificação dos
fluxos financeiros; 4) revolução das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação); 5) aumento das
interdependências entre os Estados e os agentes econômicos; 6) Evolução das políticas econômicas.
11
São exemplos as mudanças do contrato típico pactuado entre empregador e empregado, a expansão das
modalidades de contrato por tempo parcial ou temporário, a subcontratação e o contrato de outsourcing
(FERREIRA, 2002; PIZARRO, 2010).
8
Revista Jurídica FACULDADES COC
65
globalização econômica provoca ainda um impacto na organização da classe
trabalhadora. Cumpre esclarecer que o principal efeito hoje debatido pelos
estudiosos diz respeito ao que Ariovaldo de Oliveira Santos (2006) chama
erosão do sindicalismo. Para o autor, o traço mais marcante do atual momento
do sindicalismo tem sido a atitude política defensiva frente ao conflito travado
com o capital, resumido em sua incapacidade de resistir ao processo de
flexibilização já descrito.
Em conclusão, parece-nos evidente que a análise relacional entre o
mundo do trabalho e o mundo do direito do trabalho, tendo em consideração
os efeitos causados pelos processos da referida globalização econômica,
permitem-nos concluir que os mecanismos de precarização do trabalho e de
flexibilização do direito do trabalho estão alterando radicalmente as bases
da sociedade moderna. Em suma, as novas formas de produção e regulação
das relações produtivas estão a intensificar, no atual quadro de relações entre
empregados, empregadores e governos, os processos de exclusão dos primeiros
dos meios sociais e materiais que permitiam uma mínima manutenção de sua
subsistência, agora vividas em condições aviltantes e desumanas.
A AGENDA NACIONAL DE TRABALHO DECENTE NO BRASIL
O desafio que a OIT enfrenta para concretização do programa de trabalho
decente está nos riscos de agravamento da crise do trabalho contemporânea.
Na leitura do programa percebe-se nitidamente o entendimento da OIT de que
se uma ação concreta não for tomada o mundo caminhará para a fragmentação,
para o protecionismo exacerbado e para conflito. O argumento escolhido
para justificar essa tese é que uma escassez prolongada de oportunidades de
trabalho decente, aliada ao baixo consumo da população, causaria a quebra
do contrato social existente nas sociedades democratas que pretendem o
progresso. Por fim, acusa a OIT que experiências mundiais em diversos países
revelaram o seguinte quadro: local onde a oportunidade de trabalho decente é
ignorada observa-se elevação no risco de desordem, por outro lado locais que
se comprometem a criar tais oportunidades o tempo para superação de crise é
menor.
Em resumo, retiramos das orientações políticas do programa para um
trabalho decente da OIT (2010) que cabe aos Estados integrar os objetivos
econômicos e sociais com uma perspectiva de proteção do trabalho produtivo
e executado em condições de dignidade. Para isso é proposto para os Estados:
Casimiro Ferreira (2002) aponta o exacerbado conjunto de medidas individualizantes, baseados em
processos de seletividade dos empregados, bem como a divisão da produção de bens de consumo
das multinacionais que se dividem por diversos países do mundo e desestrutura o núcleo estável dos
trabalhadores.
11
66
Revista Jurídica FACULDADES COC
Crecimiento, inversiones y desarrollo empresarial son claramente
necesarios. La promoción de un ambiente favorable y competitivo
para la iniciativa privada, que abarca desde la ayuda a las personas
a organizarse para salir de manera progresiva de la economía
informal hasta la mejor manera de coordinar los intereses nacionales
con las inversiones extranjeras, es clave para el futuro del trabajo.
No caso específico do Brasil, foi a partir de junho do ano de 2003, com a
assinatura do Memorando de Entendimento entre o Chefe de Estado brasileiro,
Luiz Inácio Lula da Silva, e do Diretor-Geral da OIT, Juan Somavia, que se
estabeleceu o primeiro compromisso nacional para a cooperação técnica e,
posteriormente, para elaboração de uma Agenda Nacional de Trabalho Decente.
Na oportunidade, ficou determinado a criação de um Comitê Executivo
composto por Ministérios e Secretarias de Estados com alguma relação aos
temas aludidos e coordenados pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE
brasileiro. Para esta Agenda (OIT, 2006), foram três as prioridades definidas:
1 – Gerar mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de
tratamento; 2 - Erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho infantil, em
especial em suas piores formas; e 3 - Fortalecer os atores tripartites e o diálogo
social como um instrumento de governabilidade democrática.
Para cada prioridade estabeleceram-se linhas de ação e resultados
esperados, conforme o seguinte quadro:
PRIORIDADE
1
RESULTADOS ESPERADOS
a) Política Nacional de Emprego elaborada e implementada
em um processo de diálogo
com os interlocutores sociais.
LINHAS DE AÇÃO
Investimento Público e
Privado e Desenvolvimento Local e Empresarial para a Geração de
Emprego; Políticas de
b) Metas de criação de empre- Salário e Renda; Políticas
go produtivo e de qualidade
Públicas de Emprego,
incorporadas nas estratégias
Administração e Inspeção
nacionais de desenvolvimento do Trabalho; Promoção da
econômico e social (incluídas Igualdade de Oportunias estratégias de redução da
dades e de Tratamento e
pobreza e da desigualdade
Combate à Discriminação;
social) e nas políticas setoriais Extensão da Proteção
(industrial, agrícola, agrária,
Social e Condições de
de promoção do turismo e de Trabalho.
promoção da economia criativa).
Revista Jurídica FACULDADES COC
2
3
Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Infantil e
Erradicação do Trabalho Escravo implementados e monitorados, com ênfase em estratégias de reinserção social e
de prevenção, em consonância
com o previsto nas seguintes
convenções da OIT: Convenção nº 138, de 1973, sobre
idade mínima para admissão
ao emprego; Convenção nº
182, de 1999, sobre proibição
das piores formas de trabalho
infantil e ação imediata para
sua eliminação; Convenção
nº 29, de 1930, sobre trabalho
forçado ou obrigatório; Convenção nº 105, de 1957, sobre
abolição do trabalho forçado.
a) Mecanismos de diálogo
social consolidados e institucionalizados.
b) Constituintes tripartites
capacitados para participar ativamente e incidir na
definição de políticas nacionais de fomento ao emprego e
trabalho decente.
c) Cultura do diálogo social
fortalecida.
67
Desenvolvimento de Base
de conhecimento; Mobilização e Conscientização
Social; Fortalecimento
Institucional de Políticas
e Programas Nacionais e
Estratégias de Intervenção.
Promoção das Normas
Internacionais; Fortalecimento dos Atores; Mecanismos de Diálogo Social e
Negociação Coletiva.
No que tange aos mecanismos de implementação da Agenda, a criação
de um Programa Nacional de Trabalho Decente no Brasil corresponde hoje a
mais recente medida de cumprimento dos compromissos assumidos junto a
OIT. À semelhança disto, o novo Programa Nacional de Direitos Humanos
do Brasil - PNDH-3, criado em 21 de dezembro de 2009 e aprovado pelo
mesmo Presidente, traz em seu conteúdo normativo o eixo orientador número
III (Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades) a diretriz de
68
Revista Jurídica FACULDADES COC
número 7, nomeada Garantia dos Direitos Humanos de forma universal,
indivisível e independente, assegurando a cidadania plena. Como objetivo
estratégico desta diretriz, por sua vez, prescreve-se a garantia do trabalho
decente, adequadamente remunerado, exercido em condições de equidade e
segurança. Em suma, tem-se incorporado ao novo plano de Direitos Humanos
do Brasil 14 ações programáticas para a conquista do trabalho decente.
A nosso ver, todas essas recentes ações institucionais e políticas
do Governo brasileiro, quais sejam a criação de uma Agenda Nacional de
Trabalho Decente, de um Programa Nacional de Trabalho Decente e de um
Plano Nacional de Direitos Humanos no qual se incorporam ações específicas
para o mundo do trabalho, significam um passo importante para a defesa dos
direitos humanos dos trabalhadores, tamanha a discrepância que representam
na política nacional brasileira, marcada quase sempre pelo conservadorismo
e pelo distanciamento das causas sociais. Como dito anteriormente, tais
medidas revelam a consonância de políticas com aquilo que desenvolve a OIT
sobre trabalho decente, uma vez que orientadas para a promoção dos direitos
fundamentais do trabalho, para a garantia de emprego, para o fortalecimento
da proteção social e para a realização do diálogo social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo que logramos concluir, em seu cerne, dedicou-se a realização
de uma pesquisa crítica e a busca de esclarecimentos acerca do atual estágio
do capitalismo globalizado, alterado profundamente pelo processo de
transformação das relações de produção que acompanharam o desenrolar
da globalização econômica, iniciada na década de 1970. Constatamos, por
consequência, o alarmante momento de precarização das condições de
trabalho e das relações laborais, consubstanciado num flagrante cenário de
aprofundamento das desigualdades sociais e de aviltamento dos direitos
humanos dos trabalhadores mais basilares. Delineamos, pontualmente,
algumas das principais características de transformação das relações de trabalho
e de seus respectivos impactos à esfera organizacional da classe trabalhadora.
Outrossim, não almejamos ter esgotado a análise de todas as dinâmicas sociais,
econômicas e políticas desse período, dada a amplitude e a complexidade
que o exame desta natureza exige. Não obstante, recordamos os termos de
que refere o autor Elísio Estanque (2006, p. 79), para o qual a globalização
econômica: “(...) longe de ser um processo linear e homogeneizante, é cada vez
mais polimórfica e repleta de riscos, vulnerabilidades e injustiças sociais”.
A despeito dessas variadas formas, analisamos sucintamente o
Programa de Trabalho Decente da OIT, com especial ênfase para o seu
processo de criação, planejamento e definição dos objetivos. Descobrimos,
Revista Jurídica FACULDADES COC
69
por sua vez, ser a referida plataforma de ação da OIT uma das trincheiras
de intervenção social mais revolucionária para a necessária reorganização
do mundo do trabalho, orientado para a real conquista do trabalho digno,
realizado em condições humanas e em atenção aos valorosos códigos de
proteção aos direitos fundamentais do trabalho.
Para nós, e em consonância com o que defende o autor Boaventura de
Sousa Santos (2003), uma análise sócio-jurídica crítica do mundo do trabalho
nos habilita acreditar na existência, a partir da retomada das experiências de
solidariedade e organização dos movimentos sindicais e operários, de forças
e movimentos sociais opositores ao avanço da globalização econômica e à
perda de direitos sociais básicos. Nesse sentido, corroboram os argumentos
de Casimiro Ferreira (2002) na constituição de três estratégias para conquista
do trabalho decente e democrático na sociedade globalizada neoliberal: 1)
exigência de padrões mínimos de qualidade para que os produtos possam
circular livremente no mercado mundial; 2) segurança na representação e
proteção da “voz coletiva”; e 3) transformação do sistema de relações laborais
e da normatividade laboral.
A sociedade brasileira atual vive um momento de tensão e
potencialidades. Não se trata aqui de afirmar a unilateralidade da dominação,
nem tampouco de propor idealismos ingenuistas. No campo do trabalho e
das relações entre os seus atores sociais, significativas medidas políticas e
destacados movimentos sociais convergiram no estabelecimento de recentes
iniciativas transformadoras, nomeadamente a criação da Agenda e do
Programa Nacional de Trabalho Decente brasileiro. Uma mudança dependerá,
no entanto, de novas rotinas e práticas no seio dos poderes públicos e das
instâncias privadas. Não obstante, será preciso ainda uma releitura da realidade
social e uma reorganização das estratégias políticas a serem tomadas, tanto
por parte dos órgãos públicos responsáveis por regular o mundo do trabalho,
quanto por parte do próprio movimento de trabalhadores de base. No Brasil
tais condições objetivas nunca estiveram tão historicamente dispostas. Essa
obra, por fim, será resultado de um amplo processo de educação política e
maximização do manejo dos direitos sociais e trabalhistas, no âmago dessas
forças e tarefas sociais dormita a revolução, despida de validade dogmática,
como uma original possibilidade histórica, intrinsecamente nova, politicamente
democrática e eticamente humanizadora.
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in ANTUNES, Ricardo (Org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São
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SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, o Direito e a Questão Urbana.
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Sociologias. Porto Alegre, ano 5, nº 9, jan/jun 2003, 2003, p. 246-286.
ASSÉDIO PROCESSUAL NO PROCESSO DO
TRABALHO
BRUNO HIROSHI KUAE NEVES 1
Resumo
O Assédio Processual é uma figura jurídica nova que vem ganhando força
na jurisprudência, além de se tornar cada vez mais recorrente nas lides
trabalhistas. Em geral, tal assédio se caracteriza pela conduta reiterada da
parte adversa com o objetivo manifesto de retardar a regular tramitação do
feito. No entanto, é interessante notar que não se trata de qualquer conduta,
mas de uma conduta, às vezes, amparada pelo contraditório e pela ampla
defesa, ou seja, uma conduta legítima. Assim, o que se pune em uma eventual
condenação em assédio processual é o abuso do direito de defesa, quando
a parte se vale dos instrumentos jurídicos processuais não com intuito de
solucionar a lide, mas de postergar o seu desfecho. Por fim, há de se ressaltar
que essa espécie de assédio não atinge somente a parte adversa, mas também
o Poder Judiciário, que perde credibilidade, e a própria sociedade que tem que
arcar com o custo público do interminável processo.
Palavras-chave: Assédio Processual; Razoável Duração do Processo;
Princípio do Contraditório; Princípio da Ampla Defesa; Litigância de MáFé.
A justiça atrasada não é Justiça, senão
uma injustiça qualificada e manifesta.
(Rui Barbosa)
INTRODUÇÃO
O objeto a ser pesquisado no presente artigo científico é o assédio
processual na Justiça do Trabalho. Procurou-se assim sopesar alguns princípios
norteadores do ramo processual como, por exemplo, o princípio da razoável
duração do processo e celeridade na sua tramitação. Afinal, qual o tempo
razoável para o processo chegar ao seu fim e entregar ao seu titular o direito
pretendido? O direito de defesa é um direito ilimitado? No seu exercício,
podem os meios processuais cabíveis ser amplamente utilizados? Essas são
perguntas que serviram para motivar essa pesquisa e que no decorrer do
trabalho buscarão ser respondidas.
Está cada vez mais comum no cotidiano da Justiça do Trabalho lides
infindáveis, que se encontram tramitando por anos a fio sem uma solução
jurisdicional. O motivo disso ocorre não somente pela insolvência dos
empregadores, que geralmente inviabiliza o prosseguimento da execução
trabalhista, mas também por causa da sistemática processual em que está
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Especialista
em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas – PUC-Campinas. Servidor Público Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 15 Região.
1
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assentado o direito brasileiro.
Em suma, o ordenamento jurídico processual, com o intuito de assegurar
uma prestação jurisdicional correta e reta, criou diversos mecanismos para
corrigir uma eventual má aplicação do direito pelo magistrado. Assim,
indiretamente, criaram-se recursos e mais recursos que obstam o regular
prosseguimento do feito, impedindo a solução da relação conflituosa. Não
só isso, é dado à parte a “oportunidade” de criar incidentes processuais
acobertados pelo manto do devido processo legal, princípio esse esculpido no
art. 5º da Constituição Federal, inciso LIV, em pleno detrimento do princípio
da razoável duração do processo.
A morosidade da justiça brasileira é uma realidade. Isso ocorre não
somente pelo sistema recursal em que o ordenamento jurídico está assentado,
mas também pelo grande número de demandas que são submetidas ao
Poder Judiciário, hoje, órgão incapaz de dar solução a todas em tempo
razoável. Mas isso, acreditamos, não pode ser motivo para uma inércia dos
órgãos jurisdicionais na busca de concretização do princípio esculpido no
texto constitucional que pressupõe uma solução jurídica das lides em tempo
razoável e celeridade na tramitação do feito.
RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E CELERIDADE NA SUA
TRAMITAÇÃO
A garantia fundamental da razoável duração do processo e celeridade
na sua tramitação foi esculpida no texto constitucional, no rol do art. 5º, inciso
LXXVIII, pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004. Isso ocorreu em função
da assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San
José da Costa Rica – da qual o Brasil é país signatário. Tal pacto entrou vigor
na ordem constitucional brasileira em 26 de maio de 1992. E, assim consagra
no seu art. 8º:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para
que se determinem os seus direitos e obrigações de natureza civil,
trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza2.
No mesmo sentido, o Tratado de Roma dispõe:
Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa
Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 8º, inciso 1. Disponível em: http://portal.mj;gov.
br/sedh/ct/legis_intern/conv_americana_dir_humanos.htm. Acesso em 17 de abril de 2011.
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e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente
e imparcial instituído por lei, que decidirá sobre seus direitos e
obrigações civis ou sobre o fundamento de qualquer acusação em
matéria penal contra ela dirigida3.
Dessa forma, pode se observar que o direito ao um processo célere é uma
garantia não apenas constitucional, mas uma garantia consagrada no Direito
Internacional, no plano dos Direitos Humanos. É interessante notar que essa
garantia pode ser considerada redundante, pois, por óbvio, todos têm direito
a um processo rápido e efetivo. Isso decorre da própria essência de qualquer
ordenamento jurídico que busca por meio de seus órgãos judiciais não apenas
dizer o direito, mas sim concretizá-lo em um prazo que seja razoável. No
entanto, entendemos a consagração de tal princípio no ordenamento jurídico
nacional e internacional, em que pese sua obviedade. Trata-se de medida para
reforçar a obrigatoriedade estatal na persecução dos fins judiciais, não apenas
concretizando o direito, mas o fazendo de forma efetiva e eficaz.
Por outro lado, trata-se também de uma norma principiológica, entendida
por Robert Alexy como um mandado de otimização4. Assim, por meio
dela, impõe-se ao Estado a obrigatoriedade de aperfeiçoar5 as instituições,
principalmente a jurisdicional, no sentido de melhor desenvolver sua atividade
judicativa, com mais perfeição técnica e eficiência. Não obstante a positivação
desse princípio apenas com o advento da Emenda Constitucional nº. 45, de
2004, a doutrina sinaliza que a morosidade jurisdicional já havia motivado
a consagração dos princípios norteadores do processo civil e do processo
do trabalho quanto à celeridade processual. Nesse sentido, verificam-se as
considerações de Jeane Sales Alves, citando o doutrinador Júlio César Beber:
É preciso ressaltar que, não obstante a positivação somente em
2004 do direito fundamental à razoável duração do processo, Beber
(1997, p. 452), ainda no século passado, ao estudar os princípios
aplicáveis ao processo do trabalho, já elencava o princípio da
celeridade entre eles, lembrando que, apesar de não constar
expressamente no Código de Processo Civil nem na Consolidação
das Leis do Trabalho, o princípio em questão se fazia presente tanto
no processo civil como no processo trabalhista, em decorrência do
ordenamento jurídico6.
Convenção Européia para Salvaguardar dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
art. 6º, inciso 1. Disponível em: http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163912EF12B8BA4/0/POR_CONV.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
4
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 45.
5
Nesse sentido, deve o Estado, na pessoa do administrador público, investir recursos suficientes para
que o Poder Judiciário possa exerce suas atividades de forma plena, suprindo todas as necessidades das
demandas jurisdicionais, especialmente em um prazo razoável.
3
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No mesmo sentido, a própria legislação trabalhista se preocupou com
a duração do processo judicial. Assim, deu ao magistrado certa liberdade
na condução da lide, fazendo o zelar pela rápida solução do feito. Isso está
claro na redação do art. 765 da CLT que preceitua o seguinte: “os Juízos e
Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão
pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência
necessária ao esclarecimento delas”.
Quanto à aplicação desse princípio, é preciso a investigação no caso
concreto. A tarefa do magistrado consiste em, além de garantir a eficiência da
prestação jurisdicional, reprimir a prática de manejos ardilosos no sentido de
protelar a solução da lide. Trata-se de tarefa deveras complicada, haja vista que
ao afastar uma suposta medida protelatória poder-se-ia incidir na violação de
outras garantias constitucionais, como a do contraditório e da ampla defesa.
Por isso, verifica-se certa dificuldade dos tribunais em aplicar o princípio no
julgamento das causas. Assim, podemos citar a seguinte decisão prolatada
pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região, no processo 2784.2004,
originário da 63º Vara do Trabalho de São Paulo:
[....] Não bastassem os argumentos já externados, o simples
exercício do direito de petição, bem como a utilização de todos os
meios recursais e processuais previstos na legislação, nem de longe
se apresentam como ato ilícito causador de dano ensejador de
reparação, mas ao contrário, encontram respaldo na Constituição
Federal.
Por fim, preleciona Fredie Didier Jr.7 alguns critérios para se verificar
a duração razoável do processo. São eles: a complexidade do assunto, o
comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da
defesa no processo e a atuação do órgão jurisdicional:
O reconhecimento destes critérios traz como imediata conseqüência
a visualização das dilações indevidas como um conceito
indeterminado e aberto, que impede de considerá-las como o
simples desprezo aos prazos processuais fixados.
Assim, é evidente que se uma determinada questão envolve, por
exemplo, a apuração de crimes de natureza fiscal ou econômica, a
prova pericial a ser produzida poderá demandar muitas diligências
que justificarão duração bem mais prolongada da fase instrutória.
(...)
Por outro lado, não poderão ser taxadas de ‘indevidas’ as dilações
proporcionadas pela atuação dolosa da defesa, que, em algumas
ocasiões, dá azo a incidentes processuais totalmente impertinentes
6
7
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho, p. 5.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, p. 54.
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e irrelevantes.
E, ademais, é necessário que a demora, para ser reputada realmente
inaceitável, decorra da inércia, pura e simples, do órgão jurisdicional
encarregado de dirigir as diversas etapas do processo. É claro que a
pletora de causas, o excesso de trabalho, não pode ser considerada,
nesse particular, justificativa plausível para a lentidão da tutela
jurisdicional8.
ASSÉDIO PROCESSUAL: CONCEITO
Assédio pode ser definido como “cerco; sítio; perseguição”9. Nesse
sentido, Alexandre Agra Belmonte define assédio como “agir de forma reiterada
e sistemática, com a finalidade de constranger alguém”10. Dessas definições
genéricas, decorrem as espécies assédio moral, assédio processual e assédio
sexual. O assédio moral e o assédio processual são figuras parecidas, pois
ambas visam o constrangimento de uma parte com a finalidade de prejudicála. No entanto, o que as distingui é o momento em que essas se verificam. No
tocante ao âmbito laboral, o assédio moral ocorre no desenrolar do contrato
de trabalho, enquanto o assédio processual ocorre no desenrolar da relação
processual, normalmente intentada pelo empregador com o objetivo de reparar
um direito violado. Assim, para a verificação do assédio processual podemonos valer das características apontadas pela Ministra Maria Cristina Peduzzi11
quando define assédio moral como: violência pessoal; necessariamente moral
e psicológica; multilateral; individual ou coletivamente sentida.
Jane Sales Alves, ao escrever sobre assédio processual, ressalva que,
além dos elementos caracterizadores apontados pela Ministra Maria Cristina
Peduzzi, é preciso a utilização pelas partes dos meios processuais protelatórios
capazes de produzir o retardamento do curso regular do processo, impedindo,
assim, o acesso da parte prejudicada ao bem da vida, fazendo com que esta
suporte individualmente o ônus do tempo do processo12. Nesse sentido, Mauro
Vasni Paroski definiu assédio processual como:
Um conjunto de atos que teriam por escopo retardar a prestação
jurisdicional, causando desestímulo ao adversário da demanda, por
este se sentir impotente e humilhado, reduzindo suas expectativas
quanto ao resultado justo da solução a ser ministrada ao conflito,
TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantia do processo sem dilações indevidas in Garantias constitucionais
do processo civil, p. 239-240.
9
NUNES, Pedro dos Reis. Dicionário de Tecnologia Jurídica. 12 ed. Rio de Janeiro: Freita Bastos, 1990,
p. 95.
10
BELMONTE, Alexandre Agra. O assédio moral nas relações de trabalho – uma tentativa de
sistematização. In Revista LTr, São Paulo, v. 72, n. 11, novembro/2008, p. 1329.
11
PEDUZZI, Maria Cristina I. Assédio moral. In Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v.73,
n. 2, abr/jun 2007, p. 31.
8
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ensejando ao assediador vantagens processuais indevidas, podendo
inclusive repercutir em ganhos de natureza patrimonial13.
E, Nilton Rangel Barreto e Jaime Hillesheim, em artigo publicado na
Revista LTr, no mesmo sentido do autor anterior, definiu a figura processual
como:
Um conjunto de práticas reprováveis de uma das partes do
processo observadas ao longo do seu desenrolar, que aterrorizando,
desgastando, desestimulando e humilhando a parte adversa, visam
tumultuar e protelar o feito. Práticas essas que, segundo eles, visam
obter vantagens de ordem processual14.
Por fim, Gustavo Carvalho Chehab define o assédio processual como
sendo:
O conjunto de atos praticados por um dos atores do processo,
que intencionalmente ou mediante culpa grave atinge o regular
andamento do feito, em detrimento do patrimônio moral e/ou
material da vítima, mediante ofensa da ordem jurídica e/ou da boafé processual15.
Assim, a nosso ver, o assédio processual objetiva primordialmente
impedir a regular tramitação da demanda trabalhista, desestimulando, por
consequência, o trabalhador de prosseguir com a ação e também o fazendo
desacreditar na justiça. Invariavelmente isso o força a celebrar acordos
eminentemente prejudiciais aos seus direitos por não aguentar mais suportar
o tempo e a burocratização do processo.
ELEMENTOS CARACTERIZADORES DO ASSÉDIO PROCESSUAL
A constatação do assédio processual pode ser verificada a partir
das varias investidas de uma das partes com o intuito postergar a solução
jurisdicional, se valendo de meios manifestamente protelatórios. Isso fica claro
quando a parte interpõe inúmeros embargos de declaração, alega nulidades
infundadas, interpõe recursos incabíveis, cria incidentes processuais, nomeia
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.conp edi.
org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/jeane_sales_alves.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
13
PAROSKI, Mauro Vasni. Reflexões sobre a morosidade e o assédio processual na Justiça do Trabalho.
Revista LTr, v. 72, n. 1, p. 33-44, jan. 2008, p. 41.
14
PAIM, Nilton Rangel Barreto; HILLESHEIM, Jaime. Assédio Processual no Processo do Trabalho.
Revista LTr, v. 70, n. 9, p. 1112-1118, set. 2006, p. 1114.
15
CHEHAB, Gustavo Carvalho. Celeridade e assédio processual in Revista LTr, São Paulo, vol. 74, n. 04,
abril de 2010, p. 417.
12
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bens a penhora de baixa liquidez ou até mesmo bens inexistentes. Em outras
palavras, a parte não se vale dos meios processuais adequados para discutir
teses jurídicas ainda não superadas, mas sim para criar entraves à solução
jurisdicional, fazendo com que a parte se veja constrangida a desistir da ação
ou desacreditada de que um dia o litígio chegará ao fim.
A reiteração das investida da parte com o intuito protelatório do processo
é o elemento mais importante na averiguação do assédio processual. Tratase de condutas repetidas durante todo o desenrolar do processo e não de
condutas isoladas. Nesse sentido, Jeane Salves Alves16 se manifesta:
A duração dos ataques é um dos elementos mais importantes na
caracterização do assédio processual. Assim como no assédio moral,
onde a conduta não pode ser isolada, o assédio de cunho processual,
para restar configurado, precisa considerar o tempo ganho com
os incidentes processuais e recursos interpostos pela parte que os
manejou. É muito comum a eternização do processo trabalhista, em
que ações tramitam por décadas, muitas vezes discutindo matérias
atinentes à execução, ou seja, quando o magistrado já exauriu a
cognição.
E Mauro Vasni Paroski17, em artigo escrito sobre o tema assédio
processual, faz a seguinte consideração:
(...) ao considerar os efeitos do tempo no processo afirma que sendo o
tempo a dimensão fundamental da vida humana e se o bem perseguido no
processo interfere na felicidade daquele que o reivindica, seria certo que a
demora do processo geraria, no mínimo, infelicidade pessoal e angústia e
reduziria a expectativa de uma vida mais feliz.
Posto isso, fica claro o objetivo almejado pela parte assediadora. Esta tem
o manifesto interesse em causar um desestimulo na parte assediada, fazendo
com que esta desacredite que um dia terá seu direito reparado pelo Poder
Judiciário e por consequência seja forçada a aceitar um acordo em que apenas
uma parte sai ganhando – a parte assediadora.
Na apuração da responsabilidade da parte assediadora pelos atos
praticados, o dano deve ser verificado no caso concreto, cabendo ao magistrado
de forma equitativa mensurar a potencialidade dos atos praticados para
retardar o processo. Somente assim, se os atos tiverem o condão de protelar
o processo, é que a parte assediadora poderá ser responsabilizada, pois,
conforme dispõe o artigo 944 do Código Civil, “a indenização mede-se pela
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.conpedi.
org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/jeane_sales_alves.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
17
PAROSKI, Mauro Vasni. Reflexões sobre a morosidade e o assédio processual na Justiça do Trabalho.
Revista LTr, v. 72, n. 1, p. 33-44, jan. 2008, p. 42.
16
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extensão do dano”. Nesse sentido, pede-se vênia na transcrição da autora
Jeane Sales Alves18 :
A potencialidade dos atos praticados deve ser aferida em cada caso.
Os meios processuais protelatórios devem ser capazes de produzir
o retardamento do curso regular do processo, impedindo o acesso
da parte adversa ao bem da vida, fazendo com que esta suporte
individualmente, o ônus do tempo do processo. Note-se que no
processo do trabalho, a execução provisória só vai até a penhora.
Ou seja, caso a parte tivesse acesso aos seus créditos ainda na
execução provisória, como é hoje na execução civil, não teria os
atos praticados a potencialidade lesiva necessária à configuração do
assédio processual.
Enfim, o assédio processual pode ser mensurado considerando os
seguintes elementos: a dimensão da violência empregada, o objetivo e a aptidão
dos atos praticados e a duração da conduta reprovável. Todos esses elementos
têm que ter a finalidade de retardar o andamento processual, com o fim de
impedir a eficácia da prestação jurisdicional, acarretando, por consequência, o
descrédito no judiciário e o desestimulo da parte.
ABUSO DO DIREITO DE DEFESA. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE
DA JUSTIÇA. DEVERES DAS PARTES
O abuso do direito de defesa não é uma figura típica do direito processual,
mas pode ser estendida a esse ramo jurídico por interpretação analógica da
figura do abuso de direito propriamente dito. Essa figura encontra respaldo
no art. 187 do Código Civil, a qual se pede vênia para transcrevê-lo: “Art. 187.
Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”. Assim, aquele que exerce um direito fora dos
limites impostos pelos seus fins comete ato ilícito. Isso vale também no direito
processual, pois, na pertinência do tema abordado, o exercício do direito do
contraditório e da ampla defesa pode ser considerado abusivo na medida
em que excede a sua finalidade e viola o princípio da razoável duração do
processo. Trata-se de uma ponderação entre os princípios em conflito por
meio da figura do exercício abusivo de um direito. Nesse caso, relativiza-se
um princípio constitucional em benefício de outro por aquele ser exercido de
forma abusiva.
Nesse sentido, Jeane Sales Alves coloca o seguinte entendimento:
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.conpedi.
org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/jeane_sales_alves.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
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81
“Colhe-se, por oportuno, o entendimento de que a parte, ao exceder os limites
considerados razoáveis no exercício do direito de defesa, estará cometendo
ato ilícito, plenamente apto a caracterizar assédio processual”19. Quanto aos
atos atentatórios à dignidade da justiça, estes estão delineados no artigo 600
do Código de Processo Civil, conforme a seguir:
Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do
executado que: I – frauda a execução; II – se opõe maliciosamente
à execução, empregando ardis e meios artificiosos; III – resiste
injustificadamente às ordens judiciais; e, IV – intimado, não indica
ao juiz, em cinco dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos
à penhora e seus respectivos valores.
Essas são hipóteses taxativas e verificadas especificamente no processo
de execução ou na fase de cumprimento da sentença por aplicação extensiva.
Assim, por se tratar de hipóteses únicas, não cabe o magistrado criar novas
figuras que ensejem ato atentatório a dignidade da justiça, sob pena de violação
do princípio do devido processo legal.
Na sequência, o artigo 601 dispõe sobre a multa aplicável no caso anterior,
sendo ela no valor de 20% calculado sobre o valor do débito atualizado do
devedor. No parágrafo único, o legislador processual possibilitou uma
segunda chance a parte que incorrer nessa penalidade. Assim, é possível que o
magistrado deixe de aplicar a penalidade se a parte infratora se comprometer a
não mais praticar tal conduta e prestar fiador idôneo que responda juntamente
com ela pelo débito principal, juros, despesas e honorário advocatícios.
Quanto aos deveres das partes, estes se encontram mais especificamente
no artigo 14 também do Código de Processo Civil. No entanto, esses deveres
não excluem outros encontrados ao logo da legislação processual, nem os
decorrentes da essência do ordenamento jurídico processual. Assim, dispões
tal artigo:
Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer
forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme
da verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; III – não formular
pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de
fundamento; IV – não produzir provas, nem praticas atos inúteis
ou desnecessários à declaração ou defesa de direito; e, V – cumprir
com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços
à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou
final.
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.conpedi.
org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/jeane_sales_alves.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
18
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No Parágrafo Único, está estipulada a multa de até 20% sobre o valor da
causa no caso de violação do disposto no inciso V desse artigo. Essa hipótese é
denominada ato atentatório ao exercício da jurisdição e não se confunde com a
figura anteriormente abordada - ato atentatório da dignidade da justiça. Para
as outras hipóteses, a legislação processual não estipulou multa expressa como
o fez com relação ao inciso anteriormente mencionado, mas, em contrapartida,
estipulou condutas que indiretamente serve para punir a violação dos deveres
das partes – a estas, intitulou-se de litigância de má-fé. Assim, o artigo 17
elenca sete condutas passíveis de multa de 1% mais indenização por danos
patrimoniais até o importe de 20%, ambas calculadas sobre o valor da causa.
Ressalvada as opiniões contrárias, entendemos que a multa estipulada
para as hipóteses de litigância de má-fé é inócua. Trata-se de um valor irrisório
de 1% sobre o valor da causa que a nosso ver não desestimula a parte a adotar
uma conduta diversa, condizentes com os deveres processuais. A indenização
até o montante de 20% sobre o valor da causa também é insuficiente para atingir
a finalidade da norma processual, qual seja a reparação do dano patrimonial,
bem como coibir a parte de reiterar em condutas anti-processuais. Além de a
parte lesada precisar provar os danos para ser indenizada, esta indenização
fica limitada até o valor de 20%, o que pode acontecer de o prejuízo ser bem
maior e a parte lesada não ser reparada. Deveria o legislador ter sido mais
rigoroso no sentido de reprimir condutas que atentem contra a prestação
jurisdicional, estipulando multas mais severas e dando maior liberdade ao
magistrado na fixação de indenização caso exista. Enfim, essa é nossa opinião
a qual ressalvamos.
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ X ASSÉDIO PROCESSUAL
A litigância de má-fé é uma figura processual que está definida no art.
17 do Código de Processo Civil. Nesse artigo, são elencadas de forma taxativa
sete hipóteses ensejadoras da figura mencionada e sanções para parte que
incorra naquelas condutas. Assim, define o artigo 18 e parágrafos que a multa
será de 1% e a indenização pelos danos decorrente de 20%, ambos calculados
sobre o valor da causa. A litigância de má-fé distingui-se do assédio processual
na medida em que o primeiro refere-se a uma conduta isolada, enquanto o
segundo refere-se a varias condutas reiteradas. No primeiro caso, trata-se
de conduta como, por exemplo, a de uma parte que interpõe embargos de
declaração com o intuito manifestamente protelatório. Já no segundo caso,
trata-se de condutas com o objetivo de causar um dano, é o que ocorre, por
exemplo, quando uma parte se vale reiteradamente de condutas processuais
manifestamente infundadas com o intuito de protelar a lide. Vejam que nesse
caso a parte não incorre em uma das hipóteses tipificadas no artigo 17 que
dispõe sobre a litigância de má-fé, mas incorre em outra figura já abordada
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nessa pesquisa chamada de abuso de direito. No entanto, a prática reiterada
das hipóteses do artigo 17 do Código de Processo Civil, além de ensejar a
multa tipificada naquela disposição, pode ensejar também reparação por
assédio processual.
Nesse sentido, a autora Jeane Sales Alves20 coloca:
Aquele que litiga de má-fé pratica dano processual. O dano é
sempre uma conduta isolada. A parte, por exemplo, que interpõe
embargos de declaração com intuito meramente protelatório, estará
litigando de má-fé.
O assédio processual, entretanto, para restar configurado necessita
que tenham sido praticadas inúmeras condutas, podendo elas ser
enquadradas entre os casos de litigância de má-fé (art. 17, CPC),
referir-se a atos do executado atentatórios à dignidade da Justiça
(art. 600, CPC), ou ainda estar relacionadas à inobservância dos
deveres das partes (art.14, CPC).
Na distinção entre assédio processual e a litigância de má-fé, também é
importante considerar o tempo ou o retardamento do processo conseguido pela
parte assediadora. Para que fique configurado o assédio processual é preciso
que a parte tenha efetivamente conseguido protelar a solução jurisdicional,
prejudicando tanto a parte adversa quanto o Poder Judiciário.
Outra distinção entre as figuras processuais é quanto à indenização
cabível. No caso de litigância de má-fé, a indenização está estipulada no artigo
18 e parágrafos. Nesse artigo, dispõe o legislador processual que a multa será
de 1% sobre o valor da causa e a indenização até o valor de 20% também sobre
o valor causa. Ou seja, indiretamente, a parte prejudicada poderá não ter o
dano sofrido pela demora integramente reparado caso o valor do prejuízo seja
superior ao limite estipulado no referido artigo. Já no assédio processual, a
indenização se limita à extensão efetiva do dano, pois se trata de hipótese de
reparação integral, com base nos art. 927 e 944 do Código Civil. Assim, caberá
ao juiz estabelecer de acordo com o caso em concreto, com base na repercussão
dos efeitos processuais na vida particular da parte, no sofrimento causado, no
tempo em que tramitou a causa, no patrimônio do assediador, bem como na
intensidade do dolo o valor da indenização cabível.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assédio processual é uma figura jurídica nova que está ganhando espaço
na jurisprudência dos tribunais. Ela se caracteriza pela conduta reiterada de
ALVES, Jeane Sales. Assédio processual na Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.conpedi.
org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/jeane_sales_alves.pdf. Acesso em 17 de abril de 2011.
20
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Revista Jurídica FACULDADES COC
uma parte para procrastinar a regular tramitação do feito, impedindo assim a
concretização do Direito pelo Poder Judiciário. Também se caracteriza pelos
mesmos elementos do assédio moral, como o constrangimento, a violência
que no caso é processual, e a intenção de prejudicar a parte adversa.
Enquanto uma conduta ilícita, o assédio processual é marcado por violar
o princípio da razoável duração do processo e da celeridade na sua tramitação
e os deveres das partes no decorrer da relação processual, como o dever
de probidade e de boa-fé. Por isso, é preciso que o magistrado se posicione
no sentido de reprimir tal conduta e impedir a eternização da duração do
processo.
Nesse contexto, é interessante notar que o assédio processual não se
configura apenas pelas violações acima, mas também pode se configurar
quando a parte abusa manifestamente do seu direito de defesa, valendo-se
dos diversos permissivos judiciais com o intuito de tumultuar o deslinde
processual. Assim, se verifica quando a parte ingressa com embargos de
declaração sem qualquer omissão, contrariedade ou obscuridade na sentença
judicial; interpõe recurso destituído de qualquer fundamento ou matéria
recursal; cria incidentes processuais como contradita de testemunha sem
embasamento legal ou fático, entre outros.
Em que pese o exercício regular de um direito, sobretudo de um direito
fundamental, qual seja o direito do contraditório e da ampla defesa, esse não é
absoluto e por isso merece algumas ponderações no caso concreto. Ocorrendo
o assédio processual nessa situação, tem-se o choque entre os princípios de
defesa e da razoável duração do processo. A solução é a relativização de
um em benefício do outro, conforme o doutrinador Robert Alexy. Tudo vai
depende de qual princípio teve mais peso quando em conflito com o outro,
podendo então se concluir que um precedeu ao outro.
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LUHMANN E OS SISTEMAS SOCIAIS: APORTES
TEÓRICOS PARA A COMPREENSÃO DO DIREITO
AUTOPOIÉTICO
JAILSON JOSÉ GOMES DA ROCHA 1
Resumo
O presente ensaio tem por intento traçar um esboço da teoria luhmanniana
dos sistemas sociais complexos – teorização das mais importantes do século
XX, tendo provocado uma ruptura paradigmática do pensamento sociológico
contemporâneo. O texto aqui apresentado se coloca como instrumento
facilitador de uma aproximação do leitor com a teoria dos sistemas sociais,
assim como da compreensão do Direito enquanto subsistema social
autopoieticamente organizado.
Palavras-chave: Niklas Luhmann; Teorias dos sistemas sociais; Sistema
Jurídico; Autopoiese.
INiklas Luhmann certamente figura no rol dos teóricos mais referenciados
da Sociologia e do Direito contemporâneo. Não obstante, tornou-se um autor
provocador de reações ambivalentes. A originalidade, densidade e abrangência
de sua produção teórica são gabáveis, contudo, não lhe faltaram ferrenhas
críticas, dentre elas a mais destacável certamente é a do professor J. Habermas,
segundo o qual a teoria sistêmica luhmanniana seria uma simples tecnologia
do social susceptível de ser posta ao serviço da razão instrumental2. Há ainda
doutrinadores tais como Gunther Teubner, Karl-Heinz Ladeur que beberam
da fonte luhmanniana, propondo, entretanto, uma releitura de alguns dos
seus conceitos.
Contudo – inobstante as possíveis críticas – a formulação teórica proposta
pelo sociólogo e jurista de Bielefeld é dos mais importantes legados deixado
pelo século que nos passou. A declaração de Bechmann e Stehr quando do seu
falecimento corrobora a notoriedade do mencionado estudioso, atestando a
atual incontornabilidade do estudo de sua teoria sistêmica: “Em alguns dos
muito e extensivos obituários publicados em jornais e revistas europeus em
1999, Niklas Luhmann é lembrado como o mais importante teórico social do
século 20” (Bechmann; Stehr, 2002, tradução nossa).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestre em Sociologia pela Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra; Professor substituto de Teoria Geral do Estado da Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Pernambuco.
2
O próprio Luhmann, em entrevista, esclarece o ponto de distanciamento de sua teoria com a visão
habermasiana da sociedade quando expõe que: “na verdade, Habermas sempre entendeu que a teoria
de sistemas fornece uma descrição adequada do estado de coisas na sociedade, faltando-lhe, porém, um
instrumental teórico para realizar a transformação dessa sociedade, o qual seria fornecido pela teoria
habermasiana” (Luhmann, 1997).
1
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Pode-se adjudicar à Luhmann o projeto de uma ruptura paradigmática
do pensamento contemporâneo – do estrutural-funcionalismo ao funcionalestruturalismo (problem-functionalist theory), da sociedade baseada na ação
à sociedade arrimada na comunicação e na semântica, da “máquina” social à
autopoiesis –, havendo de se destacar a pluridisciplinariedade de seu trabalho
bem como sua coragem em lidar com os desafios intelectuais que esta ruptura
engendrou.
Diante da importância do aludido quadro teórico para compreensão da
complexidade da sociedade e do sistema jurídico na pós-modernidade3 tornase desiderato do presente ensaio traçar alguns lineamentos – sem pretensão de
exaurir o tema – acerca do seu pensamento. Como ponto de partida adotarse-á a noção da sociedade como sistema social. Esta decisão se explica pela
importância da referida categoria na arquitetura da teoria, assim como pelo
seu caráter pedagógico de poder mostrar as singularidades do seu pensamento
dentro da teoria social, bem como para facilitar a compreensão da perspectiva
do Direito enquanto subsistema social autopoieticamente organizado4.
É justamente em razão singularidade e complexidade de sua teoria que
a leitura das obras de Luhmann torna-se inicialmente ardilosa. Outro fator
complicador em Luhmann é sua linguagem. D esta forma, o texto aqui
apresentado se coloca como instrumento facilitador de uma aproximação com
a teoria dos sistemas sociais5 , que hoje ocupa um lugar de destaque dentre os
“grandes” modelos de compreensão da realidade social e, especificamente, do
sistema jurídico.
II –
Luhmann nasceu em 08 de Dezembro de 1927 no distrito alemão de
Lünenburg. Seu genitor, William Luhmann, era proprietário de uma cervejaria;
A mãe, Dora Luhmann, de origem suíça, era dona de casa. Enquanto estudante,
aos dezessete anos, serviu na força aérea da Wehrmacht – conjunto das forças
armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich entre 1935 e 1945 que englobava
o Exército (Heer), Marinha de Guerra (Kriegsmarine), Força Aérea (Luftwaffe)
– tendo sido feito prisioneiro de guerra pelas forças norte-americanas em 1945.
Há de se destacar que inclusão desta teoria no quadro do que se convencionou alcunhar de “pósmodernidade” não pertence propriamente ao vocabulário luhmanniano – e sim de seus comentadores
– e é até mesmo objeto da sua ironia corrosiva (Luhmann, 1990, p. 231).
4
Muito tem se discutido acerca da autoreferencialidade do Direito (Guibentif, 2005; Neves, 1996, 2008;
Teubner, 1993). No entanto, há de se atentar que tal quadro teórico é apenas um recorte de uma teoria
geral. Desta forma, é de suma importância para compreender o Direito sob a perspectiva luhmanniana
conhecer e compreender os conceitos mais gerais e abrangentes de sua teoria social. Em razão disto se
optou no presente ensaio apresentar este arquétipo da teoria geral dos sistemas sociais.
5
Como outrora alertou André-Jean Arnaud, não se deve adentrar de improviso no universo luhmanniano;
há de se estar preparado bem como ter parcimônia e atenção aos densos meandros de seus textos.
3
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As dificuldades da Alemanha do pós-guerra fizeram-no rapidamente retomar
os estudos – entre 1946 e 1949 estudou Direito na Universidade de Friburgo –
e regressar a Lüneburg. De 1954 a 1962 foi funcionário público, primeiramente
no Tribunal Superior Administrativo de Lünenburg, onde foi assistente do
presidente (1954-1955), e posteriormente, entre 1955-1962, tornou-se membro
do Parlamento no Ministério da Cultura e Educação em Hannover, realizando
trabalhos práticos em assuntos legais da administração pública.
Entre 1960-1961 ausentou-se da Alemanha para frequentar o curso
de Políticas Públicas e Gestão na Universidade de Harvard, em Boston,
Massachusetts, onde se dedicou à sociologia a partir desse mesmo ano, sendo
influenciado pela teoria dos sistemas de Talcott Parsons, de quem foi aluno.
No mesmo ano em que ingressara em Harvard, casou-se com Úrsula Von
Walter, com quem teve três filhos: Veronika, Jörg e Clemens.
Foi docente no Instituto de Pesquisa da Faculdade de Ciências
Administrativas, em Speyer entre 1962-1965, onde desfrutou de grande
independência em seu trabalho e pôde seguir seus próprios interesses
científicos. Em Speyer publicou seu primeiro livro intitulado “Funktionen
und folgen formaler organisation” em 1964.
Sua carreira acadêmica como sociólogo teve início em 1966, quando já
acumulava cerca de 40 anos de idade. Por esse tempo Helmut Schelsky estava
envolvido na fundação de uma nova “Universidade Reformada”, que fora
implementada posteriormente em Bielefeld. Schelsky convenceu Luhmann a
ir a Dortmund para trabalhar com ele. Em 1966 Niklas Luhmann conseguiu
alcançar seu Ph.D., assim como sua Habilitação na Universidade de Münster,
com a tese intitulada “Recht und Automation in der öffentlichen Verwaltung.
Eine verwaltungswissenschaftliche Untersuchung”, passando a trabalhar com
Schelsky e Dieter Claessens.
Em Münster, Niklas Luhmann profere sua aula inaugural sobre o
“Iluminismo Sociológico”, iniciando um programa de investigação sociológica
analisando a idade das luzes com elevadas ambições para a Sociologia. Em
1968-1969 foi representante da Cátedra de Theodor W. Adorno, em Frankfurt.
Em 1968, em ocasião do décimo sexto Congresso Alemão de Sociologia,
ocorrido em Frankfurt, manteve um profícuo debate com J. Habermas,
recolhido em Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Was leistet die
Systemforschung, Suhrkamp, Frankfurt, 2 vols., 1971-1973.
Neste mesmo ano, Luhmann foi o primeiro professor formalmente
contratado na recém-fundada universidade de Bielefeld. Ali, como membro
da faculdade de Sociologia, pôde finalmente dedicar sua inteira energia a uma
teoria da sociedade moderna. Em 1977, após a morte da sua esposa mudouse para Oerlinghausen em Bielefeld. Entre 1977-1980 foi editor da revista
“Jornal de Sociologia” em Stuttgart. Em Bielefeld, realizou seus trabalhos até
90
Revista Jurídica FACULDADES COC
se aposentar em 1993. Faleceu a 6 de Novembro de 1998, em Oerlinghausen,
Bielefeld, vítima de câncer.
III –
O pensamento luhmanniano se projeta em múltiplas direções, desde a
política até a arte, da economia à religião, da cultura aos meios de comunicação.
Aborda tudo aquilo que é tocado pelo sistema social, a partir de uma ótica que
abandona a ação como centro teórico e lhe substitui pelo conceito comunicação.
Em sua obra são propostas e sintetizadas diversas influências teóricas assim
como distintas asserções analíticas da realidade.
Nega expressamente os fundamentos da razão iluminista, intitulada
por ele de velha tradição européia, uma vez que tal racionalidade não seria
suficiente para solver os problemas de uma sociedade moderna supercomplexa.
O ideário iluminista assente na crença de que o aumento constante dos
saberes tornaria o mundo proporcionalmente mais transparente e, em
consequência, as decisões tomadas pelos homens mais acertadas e evidentes,
revela-se em Luhmann como uma vã ilusão. Far-se-ia necessário, diante
disto, um “‘iluminismo do iluminismo’”, com novos conceitos adequados à
complexidade da sociedade moderna. Desta forma, distancia-se do marxismo
e do weberianismo, enveredando por áreas ainda pouco estudadas pelas
ciências sociais, até então, como a cibernética, por exemplo.
É clara a proximidade teórica com Parsons, de quem apreendeu o
estrutural-funcionalismo revisado à luz da teoria dos sistemas. Luhmann
acentuou o caráter sistêmico da análise, isto é, a referência de Bertalanffy. Há
também rastros fenomenológicos de Husserl e cibernéticos de Wiener assim
como da cibernética de segunda ordem e o construtivismo radical de Von
Foerster, sem olvidar a decisiva influência, no refinamento que sua teoria dos
sistemas adquire com a autopoyesis dos chilenos Maturana e Varela.
No que se refere à interdisciplinaridade de seus estudos Luhmann nos
expõe:
(...) em minha elaboração teórica, recorro a uma abordagem
interdisciplinar, interessando-me por estudos sobre a comunicação
humana, inclusive sobre sua base neurofisiológica, bem como
a cibernética e, principalmente, a teoria dos sistemas. Eu busco,
portanto, que essas abordagens generalistas e transdisciplinares,
que ganham cada vez mais vigor e importância, sejam aplicadas
aos estudos da sociedade, partindo da idéia básica de que ela se
constitui em um sistema que se diferencia progressivamente do
ambiente em que se insere (Luhmann, 1997, p. 95).
Revista Jurídica FACULDADES COC
91
IV –
Pois bem, passemos agora aos axiomas propriamente ditos da teoria
dos sistemas sociais. Luhmann parte da idéia segundo a qual a Sociologia –
assim como qualquer parcela de conhecimento com aspirações à cientificidade
–, para fundar-se, necessita dispor de um arcabouço teórico global que
confira unidade à disciplina, ou noutras palavras que “reflicta a unidade da
especialidade” (Luhmann, 2005, p. 71). Parte-se, então de uma visão holística
da sociedade, uma vez que “existem fenômenos que só podem ser explicados
tomando em conta o todo no qual está compreendido” (Johansen Bertoglio,
1992, tradução nossa).
Cremos – e tentar-se-á demonstrar ao cabo do presente ensaio – que a teoria
sistêmica, assente na afirmação da sociologia enquanto ciência dos sistemas
sociais, prospera no que concerne à pretensão teórica de universalidade,
uma vez que justifica, através da análise funcional-estrutural da sociedade, a
sociologia como um todo unitário de forma coerente. Vale ainda ressaltar – na
esteira das lições de Luhmann – que:
(...) a pretensão à universalidade da teoria significa apenas que a
teoria da unidade da disciplina se procura justificar; apresenta,
portanto, a sugestão de um princípio unitário de investigação
para a sociologia total. Não existe aqui a pretensão muito diversa
à exclusividade, à correcção única, à verdade absoluta (Luhmann,
2005, p. 72).
Não se pode perder de vista que ao descrever e explicar as peculiaridades
da sociedade em que vivemos, a Sociologia realiza tal desiderato inserida na
própria sociedade, ou seja, a Sociologia/ciência é parte da sociedade que
descreve. Dentro desta linha de raciocínio, a Sociologia/ciência enquanto
observadora deve ser capaz de observar-se enquanto tal e descrever-se em
seu papel descritivo, sendo capaz de observar seus próprios pontos cegos,
ressaltando a “consciência” que não pode ver o que não pode ver. Alude-se
aqui à metáfora introduzida pelo Físico Heinz von Foerster de que se não vejo
que estou cego, estou cego, mas se vejo que estou cego, vejo.
Deste modo, Luhmann pretende descrever a sociedade moderna sob o
crivo de uma teoria geral, que visualize a completude da totalidade, sem visões
monolíticas, parciais e estéreis, incapazes de apreender toda a complexidade
da realidade social. Neste sentido, Luhmann constata esta necessidade e critica
a “indolência” dos doutrinadores contemporâneos no que se refere ao projeto
de construção de uma teoria global do social:
Creio que a sociedade moderna de alguma maneira tem que
produzir uma descrição convincente das realidades nas quais nos
92
Revista Jurídica FACULDADES COC
encontramos hoje em dia. A resignação neste aspecto tem a ver
com o fato de esta tarefa pertence a um umbral muito distinto
de preparação conceitual e de complexidade do que aqueles
enfrentados pelos clássicos. São requeridos preparativos imensos
para elaborar uma teoria da sociedade moderna. São necessários,
ademais, contatos interdisciplinares, desenvolvimentos realizados
fora da sociologia, como por exemplo, os da teoria geral dos
sistemas, da cibernética, da teoria da comunicação ou da teoria da
evolução, ou as análises genéricas das relações auto-referenciais em
geral. Parece-me que muitos sociólogos simplesmente não podem
ou não querem fazer este esforço preparatório (Luhmann, 1992,
tradução nossa).
Na atual conjuntura da produção científico-jurídica brasileira podese facilmente observar referida indolência em parcela da doutrinária que
se abstém do poder intelectivo e criativo para se tornarem comentadores
de jurisprudência e citadores manuais. Há uma tendência de um processo
circular em que a doutrina recepciona acriticamente a posição jurisprudencial
dominante, que por sua vez cita esta doutrina, qualificada como “a melhor
doutrina”. Ao invés de engendrar esforços no sentido de contribuírem
para a construção do conhecimento jurídico crítico, deparamo-nos com
uma desenfreada reprodução acrítica e estéril do Direito, impregnada de
manualismos, universalismos a-históricos e reverencialismos desnecessários6.
V–
Cabe-nos, ainda, precisar o que se compreende por sistema social, bem
como delimitar sua unidade elementar. Na perspectiva sistêmica entende-se
por sistema social um plexo de conexões de sentido delimitáveis, contrapostos
a um ambiente complexo e não pertinente. Pode-se visualizar uma hiper teia
de comunicações integradas. Parte-se, na estruturação do conceito, de uma
diferenciação de pertinência, entre o que está dentro e fora, o que é definível
como sistema e o que é excluído resta em seu entorno (ambiente). Neste
sentido, para Luhmann a sociedade é constituída única e exclusivamente por
comunicação. A sociedade seria a redução comunicativa definitiva possível
que separa o indeterminado do que é determinável. Tudo que é social é
identificado como comunicação. Há de se destacar que entre o ambiente e o
sistema não ocorre comunicação. Toda e qualquer comunicação é realizada no
âmbito do sistema auto-referente.
Os indivíduos fariam parte da complexidade do ambiente (entorno) e não
dos sistemas sociais. A humanidade se enquadraria em outro tipo de sistema,
Neste sentido, merecem destaque as críticas tecidas por Luciano Oliveira (2004) e João Maurício
Adeodato (1999).
6
Revista Jurídica FACULDADES COC
93
os sistemas psíquicos. Esta afirmação demonstra uma clara ruptura com o
modelo de racionalidade ocidental tradicional. Esta reorientação de termos e
relações implica uma viragem radical relativamente ao pensamento europeu
predominante e tem, como última consequência, o abandono definitivo do
modelo organicista – de uma relação parte-todo, em que a posição central
estava sempre reservada ao indivíduo. Em termos macro-sociológicos ocorre
uma desantropomorfização da noção de organismo, conseqüentemente,
o homem deixa de ser considerado como parte fundamental desse mesmo
organismo social e torna-se-lhe exterior - passa a constituir um meio ambiente
do sistema e, como tal, fonte permanentemente geradora de problemas,
criadora de complexidade.
A comunicação destina-se a produzir a eficácia simbólica generalizante
que torna possível a regularização da vida social sob a forma de uma
organização sistêmica e, ao mesmo tempo, cria condições de estabilidade
favoráveis a este tipo de organização social e ao seu desenvolvimento.
Diante do exposto pode-se concluir que a comunicação é justamente a
unidade elementar da sociedade. É uma síntese de seleções processadoras.
São elas a Informação, transmissão e compreensão. A resultante dessas três
seleções é um evento autorreferencial e fechado. Diante disso, pode Luhmann
afirmar a autoconstituição do que é social, do que são sistemas sociais. Nesse
contexto comunicacional, o ambiente não determina a dinâmica do sistema,
como pretendia o evolucionismo darwiniano, mas se presta tão somente a
estimular o sistema como uma fonte real de informação.
VI –
Diante do exposto até aqui cumpre perquirir acerca do mundo. De acordo
com Luhmann: “o mundo não pode apreender-se como sistema, porque não
tem nenhum `fora´, frente ao qual ele se delimite” (2005, p. 76). Dado que
o mundo não possui um contraponto a si mesmo, ou seja, um entorno que
passe a ameaçá-lo, sua existência não se torna problemática. Desta forma,
“todo o perigo da existência se deve pensar, pois, como possibilidade no
mundo, toda a aniquilação da existência ocorre no mundo. O mundo torna-se
problema, não sob o ponto de vista do seu ser, mas sob o ponto de vista da sua
complexidade” (Luhmann, 2005, p. 77). O mundo não se torna problemático
de per se, sua “existência” materializa-se factualmente. A problemática recai
não sobre a existência do mundo, mas sobre a complexidade dele advinda.
Deparamo-nos aqui com a noção de complexidade.
Depreende-se, pois, que há mais possibilidades de operações no plano
hipotético do que a capacidade humana de realização/concretização no plano
fático. Pode-se referir a isso, em termos luhmannianos, à complexidade,
94
Revista Jurídica FACULDADES COC
querendo dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode
realizar em concreto (Luhmann, 1998, 2007).
Desta forma, complexidade pode ser definível pela incapacidade humana
de apreensão e processamento da totalidade de acontecimentos possíveis no
mundo. Não se pode perder de vista que “a complexidade do mundo depende
dos sistemas no mundo; também se pode dizer: o que pode acontecer depende
das existências” (Luhmann, 2005, p. 78).
Ainda se pode destacar a possibilidade de não ocorrência do efeito
esperado das possibilidades, ou seja, corre-se o perigo de não ocorrência de
um dado evento de acordo com as expectativas projetadas, ou ainda com
esteio nas palavras de Luhmann: “entendemos o fato de que as possibilidades
apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas”
(Luhmann, 1983, p. 45). É, desta forma, caracterizada pelo sociólogo de
Bielefeld, a contingência. Neste sentido afirma Brüseke: “em decorrência
do aumento da complexidade das sociedades modernas, resultado da sua
diferenciação funcional, crescem as opções de ação para cada indivíduo. Isso,
por sua vez, resulta no aumento de experiências da contingência por parte do
ator social” (Brüseke, 2007, p. 72).
O mundo contemporâneo é marcado pela multiplicação exponencial das
possibilidades de agir. Por outro lado o individuo possui um potencial limitado
de percepção, visualização, compreensão, assimilação e ação conscientemente
direcionada. Essa complexidade gera alto grau de incerteza no concernente
à adequação do resultado ocorrido com o resultado expectável. Desta forma,
pode-se inferir que: “em termos práticos, complexidade significa seleção
forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de
assumirem-se riscos” (Luhmann, 1983, p. 46).
Chegamos, assim, ao estabelecimento da função dos sistemas sociais:
apreender e reduzir a complexidade e contingência do mundo. Os sistemas
sociais acabam por intermediar a relação entre a extrema complexidade do
mundo e a reduzida capacidade humana de lidar com tal complexidade,
orientando sua existência.
Referida função é implementável através da estabilização da diferenciação
entre o interno e o externo. Esta “diferença-entre-dentro-e-fora torna possível
formar e preservar constantemente ilhas de menor complexidade no mundo”
(Luhmann, 2005, p. 81). Não obstante o afirmado, a distinção entre sistema
social e ambiente não dirime totalmente a complexidade. Ao diferenciar-se do
seu entorno o sistema delimita sua própria complexidade, em outros termos,
a redução da complexidade gera nova complexidade, desta vez, no âmago do
próprio sistema. Os sistemas sociais são complexos na medida em que acolhem
uma pluralidade de possibilidades, consentâneas com sua estrutura interna.
Isto quer dizer que a complexidade do sistema é menor que a do mundo posto
Revista Jurídica FACULDADES COC
95
que a gama de possibilidades no mundo é exponencialmente maior que a
possibilitada pelas estruturas sistêmicas.
Não se pode perder de vista que as barreiras dos sistemas de sentido,
tais como os sociais, não podem ser estabelecidas de forma engessada
ou invariante. Hão de ser concebidas: “como fronteiras de sentido, como
elementos de um complexo de informações, cuja actualização permite que se
possam abordar informações de acordo com determinadas regras internas ao
sistema” (Luhmann, 2005, p. 83).
VII –
A perspectiva sistêmica da sociedade intenta solver a problemática do
mundo, qual seja, a extrema complexidade daquilo que o sentido se refere
como possível, e desta forma, os sistemas sociais funcionalmente diferenciados
podem desempenhar tal papel, pois:
(...) graças à sua complexidade peculiar, um sistema pode, cada vez
mais, introduzir em si problemas do ambiente, dar-lhes uma versão
diferente, muitas vezes incomparável, e criar assim um marco de
referência simplificado para a inserção, consciente ou inconsciente,
de técnicas de resolução de problemas internos ao sistema, que não
se encontram à disposição no meio ambiente e que também não se
podem aplicar sem mediação ao meio ambiente (Luhmann, 2005,
p. 85).
O sistema categorizará, através de critérios internos de relevância,
proximidade, interesse, capacidade axiológica, etc., o problema para sua
estrutura interna. Afora aquela “fatia de ambiente” operacionalizada pelo
sistema, os demais elementos do mundo restam irrelevantes, permanecendo
na complexidade do mundo, em estado de latência, como possibilidade futura
(Luhmann, 1986).
O manejo da alta complexidade traz consigo a necessidade prévia da
depuração, através de uma filtragem, em um processo gradual, das outras
possibilidades. Isto se faz mediante a seleção de um código de significações
capaz de operacionalizar as entradas e saídas do sistema. Assim: “a estrutura
é, por conseguinte, projecto de sentido para o incerto, é já realização selectiva
e não apenas directiva” (Luhmann, 2005, p. 91). Vale salientar que em se
tratando de sistemas funcionais de sentido, para a construção da estrutura é
essencial
(...) uma certa medida de latência funcional que neutraliza uma
reproblematização da estrutura e um fornecimento de mecanismos
que regulam o trato com as inevitáveis decepções – sejam eles
96
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mecanismos de esclarecimento da ilusão e de desvio dos sentimentos
de insegurança para sendas que não põem em questão a estrutura;
sejam eles mecanismos de alteração das estruturas que, com base
em competências particulares, olham pela regular adaptação da
estrutura às probabilidades de acontecimentos (Luhmann, 2005, p.
92).
Ao definirem as fronteiras do sistema pela sua estrutura, os sistemas
sociais generalizam expectativas para comportamento pertinentes ao sistema.
De acordo com Luhmann: “A generalização significa, no essencial, uma
indiferença inofensiva perante as diferenças, uma simplificação e, nessa
medida, uma redução de complexidade” (Luhmann, 2005, p. 94).
O sistema, desta forma, é caracterizado pela produção de suas próprias
estruturas bem como de seus elementos constituintes, em outros termos,
reflete a autorreferencialidade da constituição do sistema, ou dito ainda
de outra forma, a autopoiese sistêmica. Os biólogos chilenos Maturana e
Varela caracterizaram os seres vivos como seres autopoiéticos uma vez que
seriam capazes de produzir suas próprias células, ou seja, se auto-constituir/
reproduzir. Luhmann estende tal característica aos sistemas sociais e sistemas
psíquicos. São as próprias estruturas do sistema que definem as condições
de possibilidade intrasistêmica, a comunicação. Os ruídos, irritações surgidos
no ambiente apenas entram no sistema se relidos através de sua ótica, pelos
seus próprios códigos internos. Esses ruídos são, neste sentido, estímulos à
autopoiese do sistema.
No que concerne à importância do conceito “autopoiese” no quadro
geral da teoria luhmanniana, afirma Guibentif que: “Luhmann considera o
modelo elaborado a partir do conceito de autopoiesis como suficientemente
consistente para poder iniciar a redacção da parte principal da sua obra,
uma sociologia da sociedade moderna, abordada a partir dos seus sistemas
funcionalmente diferenciados” (Guibentif, 2005, p. 223).
Não se pode perder de vista que embora o sistema seja auto-referente,
fechado operacionalmente, ele encontra-se aberto cognitivamente, ao ambiente,
ao conhecimento. Essa abertura permite o sistema selecionar os elementos do
ambiente dando-lhe sentido intra-sistêmico através da sua releitura procedida
por seu código interno. Os elementos que não têm sentido atribuível
instrasistemicamente são descartados, remanescendo na complexidade do
ambiente: “O ambiente não contribui para nenhuma operação do sistema,
mas pode irritar ou perturbar (como diz Maturana) as operações do sistema
somente quando os efeitos do ambiente aparecem no sistema como informação
e podem ser processados nele como tal” (Luhmann, 1997, p. 42).
Revista Jurídica FACULDADES COC
97
VIII –
Após discorrer acerca do quadro teórico geral dos Sistemas Sociais,
calha, adiante, realizar o enquadramento do Direito na referida teoria7. Para
Luhmann, os sistemas sociais são funcionalmente diferenciados. O subsistema
social Direito teria por função a generalização congruente de expectativas
normativas (Luhmann, 1983). Tal função seria implementada através de um
código binário, ou seja, o que é direito e o que não é direito (código lícito/
ilícito). Portanto, o direito seria, em última análise, determinado pelo próprio
direito em um processo de autodeterminação positiva. Essa autodeterminação
estabilizaria as expectativas, utilizando-se das sínteses comportamentais,
reduzindo e simplificado a convivência social, estabilizando as expectativas
de forma generalizada.
A estabilização dá-se, portanto, na capacidade seletiva proporcionada
pela auto-referencia comunicativa de aplicação do código direito/não direito,
dessa forma, ao mesmo tempo em que se diferencia do ambiente, se reproduz
continuamente.
Diante disto, o direito seria um sub-sistema social, um sistema de
comunicações jurídicas que funciona com o seu próprio código binário: legal/
ilegal (lícito/ilícito; direito/não-direito). Seria ainda um ambiente que rodeia
os outros sub-sistemas sociais na mesma medida em que estes são o meio
ambiente do Direito. Mas, seja quais forem as irritações ou perturbações que
um dado sistema, em conseqüência da sua interdependência funcional ou
coexistência, possa “causar” noutro sistema, elas serão irrelevantes se não
forem convertidas em respostas ou reações autopoiéticas (Luhmann, 1989).
Nos dizeres de Teubner, em sua obra O Direito como Sistema Autopoiético,
tem-se que:
(...) o Direito retira a sua própria validade dessa auto-referência
pura, pela qual qualquer operação jurídica reenvia para o resultado
de operações jurídicas. Significa isto que a validade do Direito não
pode ser importada do exterior do sistema jurídico, mas apenas
obtida a partir do seu interior. Nas palavras de Luhmann, ‘não
existe direito fora do direito, pelo que sua relação com o sistema
social, o sistema jurídico, não gera nem inputs nem outputs’ (1993).
Há de se salientar a dinâmica do sistema jurídico autopoieticamente
organizado é circular e pressupõe, diante de sua complexidade e autoreferencialidade, que há possibilidade de modificação interna e sistêmica.
Para um maior aprofundamento da visão luhmanniana do Direito vide Le Droit Comme Système Social
(1989); Law as a social system (2008); Sociologia do Direito I (Luhmann, 1983); O enfoque sociológico da
teoria e prática do direito (1994).
7
98
Revista Jurídica FACULDADES COC
Neste sentido cabe expor o afirmado por Guerra Filho:
Note-se que a autonomia do sistema jurídico não há de ser
entendida no sentido de um isolamento deste em face dos demais
sistemas sociais, o da moral, religião, economia, política, ciência,
etc., funcionalmente diferenciados em sociedades complexas
como as que se têm na atualidade. Essa autonomia significa, na
verdade, que o sistema jurídico funciona com um código próprio,
sem necessidade de recorrer a critérios fornecidos por algum
daqueles outros sistemas, aos quais, no entanto, o sistema jurídico
se acopla, através de procedimentos desenvolvidos em seu seio,
procedimentos de reprodução jurídica, de natureza legislativa,
administrativa, contratual e, principalmente, judicial (Guerra Filho,
2009, p. 224).
IX –
Diante do exposto pode-se constatar o empenho teórico e metodológico
do professor de Bielefeld em traçar novas estruturas de compreensão da
sociedade moderna. Luhmann rompe com a tradição iluminista ocidental,
reformulando o conceito basilar da sociologia: a sociedade. O quadro teórico
dos sistemas sociais complexos é rico e vasto, denso e coerente em si. Pelos
motivos já alinhados, fica claro a importância da teoria luhmanniana para o
conhecimento científico contemporâneo, pela sua inovatividade, lançando
uma nova forma de olhar para a sociedade.
Assim, em linhas sintéticas e derradeiras podem-se lançar algumas
premissas como porta de entrada do pensamento luhmanniano:
a.
A sociedade não é constituída por pessoas. A unidade da
sociedade é a comunicação.
b.
A sociedade é um sistema autopoiético que produz/reproduz a
si própria e os seus elementos constituintes com vias a reduzir e lidar com a
complexidade do mundo;
c.
O Direito é entendido enquanto um sub-sistema social que
ao mesmo tempo em que é “normativamente fechado”, ao estabelecer que
somente a norma decide a relevância legal, é “cognitivamente aberto” na
medida em que é estimulado pelas informações do ambiente e em contínua
adaptação às exigências do ambiente.
Enfim, o paradigma luhmanniano pode ajudar-nos a compreender os
diversos e distintos meandros da realidade social, através da proposição de
um arquétipo teórico inovador, mais consentâneo com a hipercomplexidade
do mundo atual. Lança-nos um modelo analítico que nos permite notar o que
outros paradigmas não conseguem explicar ou simplesmente ignoram. No
entanto, não se devem superestimar as potencialidades da teoria, ou seja, dela
Revista Jurídica FACULDADES COC
99
não devemos esperar mais do que nos pode dar. Do seu programa não constam
as respostas aos problemas da dinâmica social, das tendências inovadoras e
da mudança estrutural. É uma rica e densa teoria descritiva da sociedade –
não há em Luhmann prescrições em busca das luzes –, não mais do que isso.
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ASSEMBLÉIAS GERAIS EM MEIO ELETRÔNICO:
VALIDADE E EFICÁCIA JURÍDICA
FELIPE ALBERTO VERZA FERREIRA 1
Resumo
O trabalho tem como objetivo demonstrar as hipóteses de validade e eficácia
jurídica da realização de Assembléias Gerais, total ou parcialmente, em meio
eletrônico. Para tanto, primeiramente serão apresentadas as bases do direito,
consistentes nos fatos, atos e negócios jurídicos, passando por seus elementos
essenciais e atributos. Em segundo momento é apresentada a assembléia
geral enquanto negócio jurídico e os requisitos essenciais necessários para
sua validade e eficácia. Por fim, serão abordados os conceitos de assembléia
geral virtual, contratos em meio eletrônico, princípio da funcionalidade e
criptografia assimétrica, e sua conjugação com os requisitos de validade
para apuração da possibilidade de realização da assembléia geral em meio
eletrônico.
Palavras-chave: Negócio jurídico, assembléia geral, meio eletrônico, validade
e eficácia.
INTRODUÇÃO
Fato notório que, com o surgimento da Internet, foi previsto por muitos
que a rede mundial de computadores afastaria as pessoas, as quais ficariam
enclausuradas em suas conchas, amealhando relacionamentos virtuais. Porém
o sucesso das redes sociais no Brasil tem provado que as previsões catastróficas
estavam longe de se realizar e que a internet enquanto ferramenta tem o
condão de aproximar pessoas.
Por sua vez, com o desenvolvimento caótico da sociedade, o agravamento
das condições de trânsito e de transporte, a ampliação no acesso à tecnologia,
à informação e o fenômeno da globalização em si, acentuado nas duas
últimas décadas, as pessoas passaram a contar com menor quantidade de
tempo disponível, tendo que optar pelas atividades a serem praticadas.
Como consequência, se tem verificado o crescimento diário das abstenções
nas assembléias gerais – condominiais, de associações, de sociedades por
ações, etc. –, desvirtuando inclusive sua função enquanto órgão deliberativo;
sustentando Modesto Carvalhosa (2012, p. 601) seu declínio.
Várias são as soluções apresentadas para reduzir o absenteísmo nas
assembléias gerais. Entretanto, em termos de efetividade, reduzir distâncias
e facilitar acesso e participação é a melhor medida para resgatar sua função
precípua: atuar efetivamente como órgão deliberativo. É nesse contexto que se
inserem as tentativas de realizações de assembléias gerais em meio eletrônico,
possibilitando aos membros a participação ainda que remota, que não seria
possível de outros modos.
1
Advogado Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
102
Revista Jurídica FACULDADES COC
Uma vez existentes as ferramentas tecnológicas que permitem a
realização de assembléias gerais em meio eletrônico e a participação efetiva
de seus membros, com segurança dos dados e da verificação das identidades
dos participantes, através das assinaturas digitais, necessário se faz o
desenvolvimento da tecnologia jurídica para assegurar a validade e eficácia
jurídica de tal forma de deliberação.
FATO, ATO E NEGÓCIO JURÍDICO
A discussão sobre possibilidade da realização de assembléia geral, total
ou parcialmente, em meio eletrônico, demanda prévia análise sobre os fatos,
atos e negócios jurídicos, possibilitando a fixação das bases e dos requisitos
legais e formais necessários à validade e eficácia de uma assembléia geral
“virtual”. Etimologicamente a expressão “fato” advém do latim factum, de
facere, significando fazer, causar, executar, desempenhar (Diniz, 2004, p. 342).
Fatos são acontecimentos, eventos de origem natural ou humana, que podem
ou não ter relevância jurídica, na medida em que são geradores de direitos e
obrigações.
Leciona de forma clara e simples o eminente comercialista Fábio Ulhôa
Coelho, em sua incursão pela área do Direito Civil (2006, p. 278), que as normas
jurídicas recolhem da realidade certas ocorrências (fatos), determinando que
na sua verificação devam seguir-se os resultados (consequências) definidos
por elas (normas). Em suma, uma vez que nem todos os fatos possuem
consequências definidas em normas jurídicas, então será considerado como
“jurídico” o fato (evento de origem natural ou humana/pessoal) descrito na
norma jurídica como gerador da consequência por ela imputada.
Maria Helena Diniz, em seu Curso de Direito Civil Brasileiro (2004, p. 342),
com base nas lições de Savigny, Washington de Barros Monteiro e Caio Mário
da Silva Pereira, define fatos jurídicos como: “os acontecimentos previstos
em normas de direito, em razão dos quais nascem, se modificam, subsistem
e sem extinguem as relações jurídicas”. De outro lado Silvio Rodrigues (2007,
p. 155) conceitua a expressão fatos jurídicos em como sendo: “todos aqueles
eventos, provindos da atividade humana ou decorrentes de fatos naturais,
capazes de ter influência na órbita do direito, por criarem, ou transferirem, ou
conservarem, ou modificarem, ou extinguirem relações jurídicas”.
Academicamente a doutrina civilista classifica os fatos jurídicos em
sentido amplo como naturais ou humanos, sendo pertinente, a fim de ilustrarse tal esquematização, a reprodução do quadro sinótico apresentado por Silvio
Rodrigues (2007, p. 158):
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103
O artigo 81 do revogado Código Civil de 1916, inspirado na teoria
francesa dos atos jurídicos, expressamente definia ato jurídico como: “todo ato
lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar
ou extinguir direitos”, todavia tal definição foi suprimida no Código Civil de
2002, o qual, como ensina de Washington de Barros Monteiro (2012, p. 229),
optou por adotar a teoria Alemã dos negócios jurídicos, pouco versando sobre
os atos jurídicos.
Maria Helena Diniz (2004, p.343) define os atos humanos (ou simplesmente
atos jurídicos) como sendo aqueles fatos oriundos da vontade humana, sendo
voluntários quando produzirem os efeitos desejados pelo agente (abrangendo
o ato jurídico em sentido estrito quando se objetivar a mera realização de
vontade do agente, e o negócio jurídico quando se procura criar normas
para regularem-se interesses das partes, independente do querer interno), ou
involuntários quando acarretarem consequências jurídicas alheias à vontade
do agente (atos ilícitos). Posição divergente apresenta Fabio Ulhôa Coelho
(2006, p. 280) ao distinguir o negócio jurídico dos atos meramente lícitos pela
intenção do agente. Sustenta o jurista que para a configuração do negócio
jurídico se faz necessária a intenção do agente de produzir os efeitos jurídicos
previstos na norma, sem esta intenção ocorre somente um ato jurídico em
sentido estrito.
Apesar das diferenças doutrinárias no tocante à definição de atos jurídicos
em sentido estrito (atos meramente lícitos) e negócios jurídicos (necessidade
ou não da intenção do agente), o Código Civil de 2002, em seu artigo 184 (única
menção sobre atos jurídicos lícitos) determina expressamente que, aos atos
jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se as disposições
atinentes aos negócios jurídicos, sendo, portanto irrelevantes as discussões
sobre as diferenças entre ato jurídico e negócio jurídico.
104
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1.1. Elementos constitutivos do negócio jurídico
Em síntese, tem-se a definição geral de negócio jurídico como sendo o
fato (acontecimento) oriundo de um ato humano/pessoal através do qual o
agente, de forma volitiva e consciente, pratica um ato - previsto em norma
jurídica - com a intenção de gerar a consequência legal a ele determinada
na referida norma. Todavia, a doutrina enumera três elementos/requisitos
constitutivos do negócio jurídico: elementos essenciais, elementos naturais e
elementos acidentais, como se pode visualizar pelo quadro sinótico abaixo
(Diniz, 2004):
Pertinente, portanto, discorrer sobre cada um dos elementos essenciais do
negócio jurídico a fim de melhor analisar seu preenchimento nas assembléias
gerais ocorridas, total ou parcialmente, em meio eletrônico, utilizando-se para
tanto da sistematização apresentada por Washington Barros Monteiro (2012,
p. 228).
1.1.1. Elementos Essenciais
Os elementos essenciais são a substância do negócio jurídico,
subdividindo-se em gerais – aqueles comuns a todos os atos – e particulares
– dizendo respeito à peculiaridades existentes em determinadas espécies de
negócios. Tais elementos estão insculpidos no artigo 104 do Código Civil, o
qual preceitua que a validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II
- objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou
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105
não defesa em lei. Os elementos essenciais gerais estão relacionados à pessoa,
ao objeto e ao consentimento.
Quanto à pessoa preceitua o art. 104, I, do Código Civil a necessidade
de agente capaz, devendo essa capacidade ser interpretada de forma ampla
para, não somente abranger-se a capacidade civil, mas também regularidade
de representação (para menores e incapazes ou pessoas jurídicas e entes
despersonalizados) e legitimação para o ato (requisito legal que, apesar de
específico ao ato, diz respeito à capacidade do agente). Com relação ao objeto o
art. 104 do Código Civil em seu inciso II requer que o objeto – objeto entendido
como o cerne do negócio jurídico e não somente como um bem material – seja
lícito (salvo exceções, incluindo-se no conceito de licitude os atos contrários
à moral, bons costumes e ordem pública, sob pena de nulidade), possível
(devendo ser física e juridicamente possível de forma relativa ou absoluta, ou
seja, sendo obstáculo somente a impossibilidade absoluta também sob pena
de nulidade), determinado ou determinável.
O último elemento essencial, consentimento, está intimamente relacionado
à capacidade e representação do agente e à intenção em praticar o ato e gerar
o efeito a ele atribuído. Por ser o negócio jurídico um negócio voluntário, é
por óbvio necessário que a manifestação da vontade do agente se dê de forma
livre e de boa fé, sem a ocorrência de qualquer vício de consentimento ou
social (defeitos do negócio jurídico). Enquanto manifestação de vontade,
o consentimento pode ser expresso ou tácito, dependendo da natureza do
negócio.
Já o elemento essencial particular é o constante do inciso III do art. 104 do
código Civil: forma prescrita ou não defesa em lei. Diz-se particular por tratar
de elemento relacionado à forma/solenidade específica do negócio jurídico a
ser praticado.
1.1.2. Elementos Naturais
Tem-se por naturais os elementos peculiares ao negócio em questão;
são eles as conseqüências que decorrem da própria natureza do ato sem a
necessidade de expressa menção. Tratam de qualidades e atributos definidos
pela lei, ao disciplinar aquele negócio jurídico.
1.1.3. Elementos acidentais
Acidentais são aqueles elementos que podem ou não figurar no negócio
jurídico (clausulas acessórias), porém, quando existentes, são indispensáveis
para que o negócio se aperfeiçoe. São eles: condição, termo e modo ou encargo.
106
Revista Jurídica FACULDADES COC
1.2. Defeitos do negócio jurídico
Sendo o consentimento um elemento essencial do negócio jurídico
qualquer vício a ele atinente (erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão) implica
na invalidade do ato jurídico. Da mesma forma, e de certo modo atrelado ao
consentimento, a lei considera como viciada a vontade do agente quando
emanada com vício social (quando objetivar a fraude contra credores). A
existência dos defeitos (vícios) afeta a essência do negócio jurídico tornando-o
passível de anulação (como expressamente preceitua o artigo 171, II, do Código
Civil), ou convalidação (salvo direito de terceiros, art. 172 CC).
1.3. Atributos do negócio Jurídico
Conforme construção doutrinária de Pontes de Miranda se pode
considerar o mundo jurídico como dividido em três planos – plano da
existência, plano da validade e plano da eficácia – através dos quais nascem e
se desenvolvem os fatos, atos e negócios jurídicos (Mello, 2012, p. 134). Assim,
além dos elementos constitutivos do negócio jurídico, a doutrina civilista
apresenta com base na classificação dos planos de Pontes de Miranda os
atributos do negócio jurídico: existência, validade e eficácia.
1.3.1. Existência
Considerado como o primeiro degrau na “Escada Pontiana”, o plano da
existência é do plano do “ser”: nele não se discute validade ou eficácia do
negócio. Nas palavras de Marcos Bernardes de Mello (2012, p. 134), os fatos,
sendo eventos de origem natural ou humana, ao sofrerem a incidência da norma
jurídica juridicizante, têm a parte relevante – assim considerado pela norma –
transportada para o mundo jurídico ingressando no plano da existência. Sobre
o fenômeno da normatização e juridicização dos fatos, pertinente a transcrição
das palavras de Taísa Maria Macena de Lima (1999, p. 209):
Nem todos os comportamentos são objeto de normação jurídica,
e muitos comportamentos podem ser simultaneamente normados
pelo Direito e outros instrumentos de controle social. Para delimitar
o chamado mundo jurídico, procede-se a um corte no mundo
social, separando os fatos irrelevantes para o Direito dos fatos
juridicamente relevantes.
O nexo entre fato e norma jurídica é observável mediante dois
fenômenos: o da nomogênese e o da juridicização. A passagem
do meramente factual para o jurídico dá-se com a nomogênese,
partindo-se da constatação de que determinado fato natural ou ato
humano, por sua repercussão na comunidade, deve ser coibido,
Revista Jurídica FACULDADES COC
107
incentivado ou simplesmente autorizado. Feita tal avaliação, são
elaboradas normas (jurídicas), cuja estrutura comporta a descrição
de um fato (hipótese legal, hipótese de incidência, suporte fáctico,
tatbestant etc.) e as conseqüências desencadeadas com a verificação
do fato previsto. Nem sempre o Direito recebe o dado factual como
ele se apresenta. A hipótese de incidência pode ser cópia de fatos
observados no mundo social ou um modelo instaurado exatamente
para dar outra configuração ao fato.
O fenômeno da juridicização é lógica e cronologicamente posterior
ao da nomogênese. Juridicizar significa tornar jurídico, implicando,
assim, a entrada decerto evento (fato natural ou conduta do ser
humano) no mundo jurídico. O evento somente entra no mundo
jurídico quando preexiste norma que o discipline. A juridicização
assinala a existência do fato no mundo jurídico, ainda que esse
implique violação de norma positivada.
Sustenta Fabio Ulhôa Coelho (2006, p. 312) que para existência do
negócio jurídico é necessária a conjugação de seus elementos essenciais –
sujeito de direito, declaração intencional e objeto possível – com a juridicidade
– definição de tal fato pela norma jurídica genérica, como desencadeador
dos efeitos pretendidos pelo agente. Uma vez existente pode ser válido ou
inválido.
1.3.2. Validade
O segundo plano do mundo jurídico é o da Validade. Existindo o negócio
jurídico será ele válido ou não se existentes os pressupostos de sua validade: a)
verificação de todos os elementos essenciais do negócio jurídico (insculpidos
no Código Civil Brasileiro em seu artigo 104): agente capaz; objeto lícito,
possível e determinado ou determinável, forma prescrita ou não defesa em
lei; b) inexistência de qualquer vício de formação (erro, dolo, coação, estado
de perigo, lesão ou fraude contra credores). Segundo Mello (2012, p. 136): “no
plano da validade é onde têm atuação as normas jurídicas invalidantes. A
incidência delas se dá, na verdade, quando o suporte fático ocorre, mas os
seus reflexos, as suas conseqüências aparecem somente nesse plano” via de
regra não transpondo para o plano da eficácia, salvo se tratar-se de negócio
jurídico anulável ou alguns tipos específicos de negócios jurídicos nulos (como
o casamento putativo).
1.3.3. Eficácia
No plano da eficácia é onde os negócios jurídicos produzem os efeitos
pretendidos pelos agentes, independentemente da validade, haja vista que
negócios jurídicos inválidos (anuláveis) podem gerar os efeitos pretendidos
108
Revista Jurídica FACULDADES COC
pelos agentes e inclusive serem posteriormente convalidados (Coelho, 2006,
p.319). Destaca Mello (2012, p. 138/139) que muitas vezes pode ocorrer que o
negócio jurídico seja nulo sem eficácia, ou apenas ineficaz, mas apesar disso
dele sejam irradiados efeitos, não os próprios do negócio, porém outros, em
virtude de dado invalidante ou ineficacizante. Como exemplo apresenta a venda
de um mesmo imóvel por duas vezes para dois compradores distintos, onde
para um dos compradores o negócio não poderá ter sua eficácia (transcrição
da propriedade), mas uma vez assegurando a lei o direito do comprador à
indenização o ato ilícito cometido pelo vendedor gera uma eficácia advinda
da invalidação da venda.
Figuram também no plano da eficácia os elementos acidentais do negócio
jurídico – condição, termo e modo ou encargo – na medida em que, na sua
existência, o negócio depende do preenchimento dos requisitos impostos ao
negócio para gerar os efeitos pretendidos pelo agente e ter sua eficácia plena.
1.3.4. Inter-relação entre os atributos e Escada Pontiana
De forma sucinta apresenta Ulhôa Coelho (2006, p. 285) a inter-relação
entre os atributos:
São três os atributos do negócio jurídico: existência, validade
e eficácia. O negócio existe se preenchidos dois pressupostos:
a conjugação dos seus elementos essenciais (sujeito de direito,
declaração de vontade com intenção de produzir certos efeitos e
objeto fisicamente possível de existir) e a juridicidade (descrição pela
lei como fato jurídico). Uma vez existente, será válido, se atendidos
os requisitos de validade (agente capaz, objeto lícito e determinável,
forma legal) e desde que inexistente vício de formação (erro, dolo
coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores). Existente,
válido ou inválido, o negócio jurídico será eficaz quando os efeitos
pretendidos pelo sujeito ou sujeitos declarantes se realizarem
espontaneamente ou com a intervenção do poder judiciário.
Marcos Bernardes de Mello (2012, p. 133) e Fábio Ulhôa Coelho (2006,
p. 286) apontam um número limitado de alternativas de combinações dos
atributos do negócio jurídico, sendo a existência, entretanto, suporte básico
para a ocorrência dos demais atributos:
a) Existente, válido e eficaz: Compra e venda sem vícios de validade na
qual as partes cumpriram suas obrigações;
b) Existente, inválido e eficaz: Compra e venda com vícios de validade
na qual as partes cumpriram suas obrigações (negócio jurídico anulável, antes
da decretação da anulabilidade);
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c) Existente, válido e ineficaz: Compra e venda sem vícios de validade na
qual ao menos uma das partes deixou de cumprir suas obrigações;
d) Existente, inválido e ineficaz: Compra e venda com vícios de validade
na qual as partes deixaram de cumprir suas obrigações / doação feita
pessoalmente por pessoa absolutamente incapaz;
e) Inexistente: Compra e venda de bem impossível de existir.
À “transição” dos negócios jurídicos entre os planos propostos por Pontes
de Miranda deu-se a denominação de “Escada (ou escalada) Pontiana”, a qual
pode ser verificada pelo modelo didaticamente esquematizado por Flávio
Tartuce através do quadro abaixo:
Desse modo a verificação dos requisitos essenciais, conjugada com a
utilização da “Escada Pontiana”, tem se revelado o melhor meio de análise do
negócio jurídico, com a finalidade de aferir-se a validade e eficácia do ato em
questão.
2. ASSEMBLÉIA GERAL
Modesto Carvalhosa (2009, p. 607) apresenta como fundamento da
assembléia geral a formação da vontade do grupo a partir das vontades
individuais, após uma confrontação de interesses onde se proporciona um
conflito de idéias, mediante a discussão das matérias pelos presentes. Em
termos simples, assembléia é a reunião de uma coletividade de pessoas com
um fim determinado. Juridicamente pode a assembléia geral ser considerada
110
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como a reunião de uma coletividade de sujeitos de direito (pessoas físicas
e jurídicas), vinculados entre si (com o qual possuem determinado vínculo
jurídico comum) e legitimados para participar do ato, para deliberar por
maioria de votos sobre matérias de sua competência enquanto órgão.
José Edwaldo Tavares Borba (2007, p. 374) ao tratar da assembléia geral
das sociedades anônimas, ressalva que: “as atribuições da assembléia são, na
sua totalidade, de natureza deliberativa, não lhe competindo a prática de atos
executivos os quais estão reservados pela diretoria”. Assim, segundo o jurista,
a assembléia não possui poderes para obrigar a sociedade perante terceiros,
somente para autorizar a obrigação pela diretoria. Além de órgão deliberativo
nas sociedades anônimas, em algumas sociedades simples e limitadas, nas
cooperativas, condomínios, associações e sindicatos (pessoas jurídicas), a
assembléia geral possui também papel importante na lei falimentar (Lei
11.101/2005) sendo o órgão através do qual os credores expressam sua vontade
nos processos de recuperação e falência (concurso de credores). Apesar da
pluralidade de “espécies” de assembléias gerais compartilham todas dos
mesmos requisitos de validade e eficácia.
Adverte Carvalhosa (2009, p. 613), ao discorrer sobre a natureza jurídica
do ato, que: “as deliberações sociais são declarações da vontade coletiva da
companhia e, nesse sentido, entram na categoria de negócios jurídicos”. No
entanto destaca que, apesar de ser resultado da deliberação de uma coletividade:
“trata-se de um negócio jurídico unilateral, formado pela coincidência de
vontades individuais que se fundem para expressar a vontade coletiva”.
No plano da validade há que se distinguir a validade da assembléia
geral e a validade das deliberações da assembléia. Carvalhosa (2009, p. 612)
aponta como requisito de validade da assembléia geral, sua convocação e
instalação de acordo com as normas legais e estatutárias, sob pena de nulidade
absoluta. Por essa visão, mesmo que as deliberações sejam legais e válidas, o
vício de instalação e realização da assembléia geral as invalidará, de forma
absoluta. Por sua vez, além da convocação e instalação da assembléia geral,
para validade das deliberações assembleares é necessária a conjugação dos
seguintes requisitos (Carvalhosa, 2009, p. 612):
a.
Capacidade jurídica dos participantes de acordo com a lei e o
estatuto;
b.
A matéria das deliberações deve estar de acordo com a lei e
estatuto, possuindo a assembléia geral competência para sua deliberação;
c.
Que as deliberações sejam tomadas com maioria de votos em
razão da matéria apreciada;
d.
Que a manifestação de vontade não seja viciada por erro, dolo,
coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores;
e.
Regular registro da presença e das disposições assembleares em
Revista Jurídica FACULDADES COC
111
ata e registro desta nos órgãos competentes.
Sendo válidas a convocação e instalação da assembléia, serão também
válidas as deliberações sociais se cumpridos os requisitos de validade do
negócio jurídico (capacidade das partes, inexistência de vícios na vontade,
objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não
defesa em lei).
No plano da eficácia, com base no conteúdo das decisões da assembléia
geral, classifica Carvalhosa (2009, p. 615) três espécies distintas de atos: a)
puramente internos, aqueles que se referem à verificação da legalidade dos atos
praticados pelos demais órgãos do ente (como aprovação de contas e eleições);
b) de eficácia imediatamente externa, aqueles que objetivam manifestar a
vontade nas relações com terceiros (aprovação de celebração de um contato
ou da recuperação judicial de uma empresa). c) de eficácia interna, porém
integrativa de atos jurídicos envolvendo outras pessoas jurídicas, aqueles que
acarretam modificações institucionais no próprio ente (como fusão, cisão,
incorporação).
3. ASSEMBLÉIA GERAL VIRTUAL
Apesar de amplamente utilizado, o termo “virtual” apresentase tecnicamente falho para representar a utilização da rede mundial de
computadores (internet) na realização das assembléias gerais, vez que, como
bem colocado por Fabio Ulhôa Coelho (2008, p. 02): “a comunicação por meio
eletrônico faz-se através de sensibilizações elétricas, e, portanto, de meio
físico, que de virtual não tem nada”. Desse modo, afigura-se tecnicamente
mais adequada a aplicação do adjetivo “eletrônico” para definição do meio
de realização (suporte), bem como da locução “on line” para definir o
acompanhamento dos trabalhos assembleares em tempo real.
Sendo a assembléia geral um negócio jurídico formal e complexo,
classicamente se desenrola no mundo fenomênico com as deliberações dos
participantes e é registrado em suporte papelizado (livros de registro de ata e
presença).
Em virtude do princípio da equivalência funcional, preconizado em
1996 pela UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil
Internacional), diferem os registros negociais realizados em meio eletrônico
dos registros em papel apenas pelo suporte, ou seja, “o contrato pode ter
hoje dois diferentes suportes: o papel, no qual se lançam as assinaturas de
punho dos contratantes (contrato-p), e o registro eletrônico, em que as partes
manifestam suas vontades convergentes através da transmissão e recepção
eletrônica de dados (contrato-e).” (Coelho, 2007, p. 37/41). Leciona Coelho
112
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(2008, p. 41) que o pressuposto do princípio da equivalência funcional é a
constatação de que o meio eletrônico cumpre as mesmas funções do papel em
relação ao registro de informações de relevância jurídica, em decorrência não
se pode negar juridicidade a um documento eletrônico apenas em razão da
natureza de seu suporte. Resume o jurista que ambos os suportes, para sua
validade e eficácia, devem desempenhar em relação ao documento jurídico
(negócio), as seguintes funções:
1. Acessibilidade. As partes e, se o documento for público, todos
os interessados podem ter acesso às informações registradas.
No documento papelizado, como assinalado, basta que o leitor
conhecedor da linguagem em que foi escrito tenha o suporte em
mãos e o leia. No eletrônico, o acesso é garantido ao conhecedor
da linguagem em que o documento foi escrito mediante seu
processamento em computador que o traduza da seqüência binária
para caracteres legíveis na tela.
2. Integridade. Acostumados que estamos com o intenso uso do
papel, depositamos nele demasiada confiança no sentido de que
ele garante a integridade das informações registradas. Mas, todos
sabemos, o papel pode ser adulterado. A integridade é assegurada
na medida em que a adulteração deixa pistas que podem ser
detectadas por perícia. Pois bem, à semelhança do papel, um
arquivo eletrônico adulterado também deixa pistas detectáveis por
perícia. A única diferença é que as deixadas pelo papel são físicas e
as do meio eletrônico, eletrônicas.
3. Reprodutibilidade. No passado, o documento em papel podia ser
copiado em outro papel (manuscrito ou datilografado), de modo
a possibilitar que todas as partes tivessem seu próprio exemplar.
Algumas pessoas ainda devem se lembrar do papel-carbono,
usado para confeccionar o documento em duas ou mais vias. Hoje,
a reprodução do papel faz-se com o emprego do meio eletrônico,
como no escaneamento da petição inicial para se enviar por
e-mail, na transmissão da ordem de pagamento por fax ou mesmo
na extração de cópia xerográfica do contrato. O meio eletrônico
possibilita, assim, maior segurança na reprodução do que a simples
cópia de um papel em outro.
4. Autenticação por assinatura. O documento eletrônico pode
ser autenticado por assinatura digital, feita com o emprego da
criptografia assimétrica, no contexto da ICP-Brasil, a Infra-estrutura
de Chaves Públicas Brasileira. Garante-se, com essa assinatura, a
autenticidade e a integridade do documento, e eventualmente sua
privacidade (quando o documento é criptografado simultaneamente
com a chave privada do emissor e com a pública do destinatário).
Cumpre o documento eletrônico, quando observada essa técnica
(ou outra que venha a ser criada com o mesmo grau de segurança),
idêntica função à do papelizado. Pode-se ter certeza de que a
declaração (informação) partiu de um determinado sujeito de
direito e foi recebida por outro.
Revista Jurídica FACULDADES COC
113
5. Função probatória. Os documentos eletrônicos são admitidos
como prova em juízo ou perante a Autoridade Administrativa tal
como os que têm o papel como suporte.
De especial importância na realização eletrônica das assembléias gerais
tem-se a função exercida pela criptografia assimétrica que, regulada pela ICPBrasil (Infra-estrutura de Chaves Publicas Brasileira), instituto criado pela
Medida Provisória Nº. 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, concedendo segurança
dos dados e sua validação, permite se ter certeza de que a declaração de vontade
(informação) partiu de um determinado sujeito de direito. Considerando as
deliberações e o registro das mesmas, e sua ocorrência, total ou parcialmente,
em meio eletrônico, geram-se as seguintes hipóteses possíveis de assembléia
(Coelho, 2008, p. 4/5):
1º) Assembléia realizada em ambiente físico e documentada em papel:
Modelo tradicional de assembléia, tem suas deliberações tomadas em ambiente
físico e posteriormente transcritas em ata papelizada.
2º) Assembléia realizada em ambiente eletrônico e documentada em
papel: Tem suas deliberações realizadas (total ou parcialmente) através de
vídeo-conferência ou conferência escrita, digitalmente certificadas através
das Chaves Públicas e Privadas, e posteriormente, é feita a formalização dos
trabalhos em papel, com a transcrição da ata da vídeo conferência ou impressão
do histórico das deliberações realizadas, sendo posteriormente coletadas as
assinaturas.
3º) Assembléia realizada em ambiente físico e documentada em meio
eletrônico: Cenário ainda não totalmente aplicável haja vista a ausência de
regulamentação do registro das atas em ambiente eletrônico nas juntas
comerciais e cartórios, sendo, entretanto, questão de tempo para que tais
medidas sejam implantadas, ante desenvolvimento a passos largos da
tecnologia da informação, à informatização dos serviços públicos.
4º) Assembléia realizada em ambiente eletrônico e documentada em
meio eletrônico: Como na hipótese anterior, este cenário não é admissível,
ainda, simplesmente por não ser possível o registro dos instrumentos
formalizadores nos órgãos competentes.
Assevera Fabio Ulhôa Coelho (2008, p. 3) que independentemente do
tipo de assembléia geral realizada são três os instrumentos necessários à sua
formalização: assinatura dos participantes no livro de presença; transcrição
da ata no livro de atas com a assinatura em quantidade suficiente para a
validação das deliberações (quorum ratione materiae) e a certidão do livro de
atas assinada pelo presidente e o secretário dos trabalhos para fins de registro
nos órgãos competentes.
Assim, dependendo das formalidades legais e estatutárias exigidas
para validade da assembléia geral e sua deliberação, poderão as deliberações
114
Revista Jurídica FACULDADES COC
assembleares e parte de sua formalização ocorrer em meio eletrônico, através
das assinaturas digitais, sendo somente emitida em forma papelizada a
certidão do livro de atas para registro.
4. CONCLUSÃO
Analisando as hipóteses supra de realização da assembléia geral à luz dos
requisitos de validade apresentados e das ferramentas tecnológicas (criptografia
assimétrica e assinatura eletrônica), conclui-se que: tanto a ocorrência em
ambiente físico quando em ambiente eletrônico podem ser consideradas
válidas e eficazes. Contudo, a despeito do princípio da equivalência funcional
preconizado pela UNCITRAL, somente serão consideradas válidas e eficazes
as assembléias gerais documentadas em papel, uma vez que a legislação
brasileira e os órgãos registrais não compreendem como válidos os registros
em suporte digital.
Identificado o empecilho, se faz necessária a elaboração de material
técnico-jurídico sobre o assunto, como forma de pressão sobre os legisladores
e responsáveis pela formulação das políticas públicas com vias à aceitação do
futuro inevitável: registro eletrônico de documentos pelas juntas comerciais,
cartórios, entre outros órgãos assemelhados. Até lá, afigura-se como ótima
alternativa para superar o absenteísmo atualmente predominante, a realização
das deliberações em meio eletrônico com sua formalização em papel – em
alguns casos sendo apostas assinaturas digitais para registro interno e certidão
papelizada para arquivamento nos órgãos registrais –, mantendo dessa
forma a validade e eficácia da assembléia geral, mas ampliando os meios de
participação.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 576p.
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COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à nova Lei de Falências e de recuperação
de empresas: (Lei 11.101, de 9-2-2005). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 536p.
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TARTUCE, Flávio. Escada Pontiana. Disponível em: http://www.flaviotartuce.
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REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A PRESCRIÇÃO
TRINTENÁRIA RELATIVA AO FUNDO DE
GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO - FGTS
MARIO AUGUSTO CARBONI 1
Resumo
O presente artigo tem por escopo analisar as bases jurídicas sobre as quais
se apóiam teorias divergentes dos Tribunais Superiores a respeito do prazo
prescricional para as ações judiciais promovidas pelo Poder Púbico e pelos
trabalhadores para cobrança dos créditos devidos pelos empregadores
ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, mediante reflexão
crítica e apontamento de proposta de solução razoável fundamentada em
interpretação constitucional da matéria.
Palavras-chave: FGTS, prescrição, efetividade, direito fundamental.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Segundo ensinamentos de Joaquim José Gomes Canotilho2, o Estado de
Direito pode ser considerado como um paradigma jurídico-político da cultura
ocidental e do Estado liberal do ocidente, cujos fundamentos são o governo de
leis gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão
de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes,
reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político,
funcionamento do sistema organizatório estatal subordinado aos princípios
da responsabilidade e do controle, exercício do poder estatal através de
instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados.
Sem dúvidas, o instituto da prescrição afigura-se como um dos
instrumentos do Estado de Direito, tendo em vista que é um dos guardiões
do importante valor que é a segurança jurídica, na medida em que busca a
perenidade e estabilização das relações jurídicas por meio da fixação um lapso
temporal para que o titular de direito violado busque, por meio do exercício
do direito de ação, sua satisfação perante o Poder Judiciário.
No que tange ao tema da legitimação e prescrição para recuperação dos
créditos devidos pelos empregadores ao Fundo de Garantia do Tempo de
Procurador-Seccional da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto-SP. Mestre em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Especialista em Direito Público pela Universidade
de Brasília-UnB. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Ensino Superior COC.
Pós-graduação em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP. Professor na Pósgraduação em Direito da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Professor na Faculdade de
Direito do Centro Universitário UniSEB-Ribeirão Preto-SP. Professor na Universidade de Ribeirão Preto.
Formação complementar: Corso di Specializzazione en Diritto Italiano pela Università degli studi di
Modena i Reggio Emilia – Facoltà di Giurisprudenza - Modena - Itália; e Las relaciones laborales en
Europa en la actual situación de crisis económica - Departament de Dret Mercantil, Dret del Treball i de
la Seguretat Social pela Univesitat de Barcelona – Espanha.
2
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Edição Gradiva, 1999, p.7.
1
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Revista Jurídica FACULDADES COC
Serviço - FGTS tem-se um complexo duplo de relações jurídicas e obrigações
distintas a serem consideradas.
De um lado existe o vínculo entre as partes da relação de trabalho,
conforme se extrai do artigo 15 da Lei 8.036/90, o qual cria para o empregador,
dentre outros, o dever principal de efetuar recolhimentos mensais e rescisório
da contribuição ao FGTS em conta vinculada, aberta junto à Caixa Econômica
Federal, em nome do empregado. Desse vínculo surge para o empregado o
direito subjetivo de instar o empregador ao cumprimento da obrigação de
efetuar os depósitos mensais e ou rescisório em sua conta vinculada.
De outro lado há o vínculo entre a União e o empregador. Esse vínculo
decorre de lei e encerra o poder estatal de fiscalizar o cumprimento das
obrigações impostas ao empregador pela legislação de regência do FGTS, de
aplicar as penalidades e sanções correspondentes na hipótese de inobservância
dos deveres legais e também de arrecadar os depósitos mensais e rescisórios,
bem como promover a cobrança administrativa e judicial dos respectivos
créditos em face dos empregadores.
As figuras do empregado e da União como legitimados para a cobrança
das contribuições relativas ao FGTS devidas pelos empregadores estão ligadas
às finalidades do Fundo, que podem ser desdobradas numa faceta trabalhista,
configurada pelo crédito compensatório do tempo de serviço do trabalhador
para albergá-lo diante de contingências legalmente previstas e servir como
regime de indenização por sua dispensa arbitrária ou sem justa causa, bem
como numa faceta econômico-social, identificada pelo financiamento de
programas sociais de habitação, saneamento básico e infraestruturas urbana e
de base, promotores do desenvolvimento nacional e da geração de empregos.
Considerada a relação entre trabalhador e empregador, o processo para
recuperação dos valores devidos ao FGTS se dá por meio das ações judiciais
trabalhistas promovidas perante a Justiça do Trabalho, tendo como autor o
empregado, e como réu o empregador, nos termos do artigo 25 da Lei 8.036/90,
e do artigo 114, I, da Constituição Federal.
De outro lado, considerado o vínculo entre o empregador e a União,
o processo de recuperação dos créditos do FGTS desdobra-se numa fase
administrativa seguida de uma fase judicial de cobrança, por meio das
execuções fiscais promovidas em sede da Justiça Federal pela ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional e pela Caixa Econômica Federal, esta na qualidade
de substituta processual por força de convênio firmado em junho de 1995 com
base no art. 2º da Lei 8.844/94.
No que respeita aos créditos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
a legislação ordinária, por intermédio do §5º, do artigo 23, da Lei n. 8.036/90,
determina que seja respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária.
Entretanto, o tema do prazo prescricional trintenário para cobrança dos
depósitos devidos ao FGTS encerra importante celeuma interpretativa no seio
Revista Jurídica FACULDADES COC
119
da doutrina e jurisprudência nacionais.
O ponto nevrálgico da questão envolve desvendar se o tratamento
do FGTS como direito de natureza trabalhista deve atrair a aplicação da
prescrição trabalhista quinquenal e bienal previstas no inciso XXIX, do art. 7º,
da Constituição Federal, em prejuízo da prescrição trintenária estabelecida na
legislação ordinária.
Os órgãos judiciários competentes para as ações de cobrança dos débitos
dos empregadores ao FGTS, respaldados em súmulas do Superior Tribunal de
Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho, mantêm interpretações divergentes
sobre a questão da prescrição dos créditos do FGTS, em prejuízo à segurança
jurídica e à harmonia do sistema jurídico nacional.
O presente artigo pretende analisar as bases jurídicas sobre as quais se
assentam as teorias sobre os prazos prescricionais de cobrança dos créditos
do FGTS e apresentar proposta de solução consentânea com a razoabilidade e
efetividade das respectivas ações de cobrança.
2. PRESCRIÇÃO RELATIVA AO FGTS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES
O tratamento dado ao FGTS no âmbito da Justiça do Trabalho é
eminentemente pautado pela sua natureza jurídica de direito trabalhista,
associando-o a uma indenização ou compensação pelo tempo de serviço,
premiação diferida no tempo ou mesmo uma forma de pecúlio forçado em
nome do trabalhador3.
Adotando-se a natureza jurídica híbrida do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço, a ser tratada mais adiante, como sendo trabalhista para
o trabalhador e tributária para o empregador, construiu-se nos Tribunais
brasileiros uma situação de difícil aceitação à luz dos princípios jurídicos da
unidade do Direito e da lógica quanto à prescrição dos créditos do FGTS em
face do seu titular.
Com efeito, na seara trabalhista a prescrição é regida pelo quanto
estabelecido no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal de 1988, com redação
dada pela Emenda Constitucional nº 28, de 25/05/2000, no seguinte sentido:
Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)
XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho,
com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos
e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de
trabalho; (...)
SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009, p. 370.
3
120
Revista Jurídica FACULDADES COC
Dessa forma, na vigência do contrato de trabalho, a prescrição dos
créditos trabalhistas se dá pelo decurso do prazo de cinco anos, contados a
partir da ciência pelo trabalhador da violação a seu direito, segundo a teoria
da actio nata, adotada em diversas oportunidades pelo Tribunal Superior do
Trabalho, no sentido de que “o termo inicial do biênio prescricional previsto
no artigo 11, da Consolidação das Leis do Trabalho, coincide com a ciência do
empregado do prejuízo sofrido, quando nasce o direito de ação para buscar a
reparação do direito violado4”.
Segundo a Súmula 308 do Tribunal Superior do Trabalho, a prescrição
quinquenal da ação trabalhista alberga as pretensões imediatamente anteriores
a cinco anos do ajuizamento da ação trabalhista e não da extinção contratual,
respeitada a prescrição bienal.
Ainda no que tange ao tema da prescrição, no direito do trabalho a
jurisprudência e doutrina fazem distinção entre a prescrição parcial e a
prescrição total.
No curso do contrato de trabalho o lapso prescricional quinquenal
estará sujeito à prescrição parcial na hipótese em que a lesão ao direito atingir
prestações sucessivas, fundadas em lei, alcançando-se as verbas vencidas a
mais de cinco anos contados do ajuizamento da ação trabalhista. Na hipótese
de prescrição parcial a lesão ao direito renova-se constantemente, sempre
que se tornar exigível a prestação quitada indevidamente, surgindo em cada
oportunidade de lesão a pretensão e fluência do prazo prescricional5.
Por outro lado, na hipótese de alteração contratual por ato negocial,
cujo objeto não seja contemplado ou assegurado por preceito legal, incide
a regra da prescrição total, pela qual a fluência do lapso prescricional terá
origem com a ciência pelo trabalhador da primeira violação do direito. Na
hipótese de cessação do contrato de trabalho o seu termo representa o início
do lapso prescricional bienal, que por sua própria natureza póstuma ao
contrato de trabalho somente admite a prescrição total. Essa orientação consta
da Súmula 294, do Tribunal Superior do Trabalho, segundo a qual, “tratandose de demanda que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de
alteração do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela
esteja também assegurado por preceito de lei”.
A prescrição trabalhista quinquenal ou bienal é matéria constitucional
(artigo 7º XIXX), ao passo que a prescrição total ou parcial é um efeito daquela.
Deveras, a prescrição prevista na Constituição Federal é aplicável a todo e
qualquer crédito resultante das relações de trabalho, inclusive nas hipóteses
previstas na Súmula 294, do TST, sendo que sua aplicação se diferencia apenas
TST, RR-35018/91.4, Rel. Min. Afonso Celso, DJU 27.11.92, p. 22437. Apud FERRARI, Irany; MARTINS,
Melchíades Rodrigues. Julgados Trabalhistas Selecionados. São Paulo, LTr, 1992, v. III, p. 483.
5
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 1045/1046.
4
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121
quanto aos efeitos.
No tocante aos créditos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o §
5º, do artigo 23, da Lei n. 8.036/90, estabelece a regra da prescrição trintenária.
De se registrar que a prescrição trintenária dos créditos do FGTS teve
origem no artigo 20, da Lei 5.107/66, que lhe determinava a aplicação das
regras e privilégios das contribuições devidas à Previdência Social, sendo,
na ocasião6, o prazo prescricional das contribuições previdenciárias de trinta
anos, previsto no artigo 144 da Lei 3.807/60 (Lei Orgânica da Previdência
Social - LOPS), referenciado pela Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais - LEF),
e repetido nas leis do FGTS nº. 7.839/89 e nº. 8.036/90.
Diante dessa conjuntura normativa a Justiça do Trabalho construiu
entendimento específico quanto à aplicação aos créditos do FGTS do prazo
prescricional determinado pelo artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal de
1988, e do prazo trintenário determinado pela lei ordinária, tomando-se como
parâmetro a prescrição da pretensão salarial para a incidência do recolhimento
da parcela correspondente ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, sob a
parêmia de que o acessório segue o principal7.
Essa é a conclusão da Súmula 206, do Tribunal Superior do Trabalho,
segundo a qual “a prescrição da pretensão relativa às parcelas remuneratórias
alcança o respectivo recolhimento da contribuição para o FGTS”.
Dessa forma, o recolhimento dos valores devidos ao FGTS fica atrelado
ao pagamento das verbas remuneratórias que constituiriam sua base de
cálculo, e se tais verbas não foram pagas e não mais existe a possibilidade de
cobrança em função da prescrição trabalhista (quinquenal ou bienal), também
não será possível cobrança das correspectivas parcelas do Fundo de Garantia,
uma vez que não haveria base para incidência e sem o principal não se pode
exigir o acessório8.
Por sua vez, a prescrição trintenária dos créditos dos trabalhadores
relativos ao FGTS segue a diretriz apontada pela Súmula 362, do Tribunal
Superior do Trabalho, que fixa o entendimento de que “é trintenária a
prescrição do direito de reclamar contra o não-recolhimento da contribuição
para o FGTS, observado o prazo de 2 (dois) anos após o término do contrato
de trabalho”.
Neste panorama da prescrição dos recolhimentos do FGTS no âmbito
de ação trabalhista é possível diferenciar duas situações: uma na qual o
Ao contrário do FGTS, que, desde a Emenda Constitucional nº 8/77, e com interpretação dada pelo
Supremo Tribunal Federal (RE100.249-2; RE 117.986-4), teve fixada sua natureza de direito social
trabalhista, as contribuições previdenciárias, após a Constituição Federal de 1988, definitivamente
integram uma espécie de tributo e se submetem ao prazo prescricional de cinco anos, consoante previsto
no artigo 174 do Código Tributário Nacional e declarado pela Súmula Vinculante nº 8 do Supremo
Tribunal Federal.
7
SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Op. cit., p. 371.
6
122
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empregador não efetua os depósitos do FGTS sobre as verbas trabalhistas
pagas ao empregado, e outra na qual os depósitos são efetuados, restando,
contudo, diferenças decorrentes de pagamento a menor ou de parcelas outras
não pagas no curso da relação de emprego e que compõem sua base de cálculo.
Na primeira situação a prescrição aplicada pela Justiça do Trabalho
é a trintenária, consoante entendimento exarado na Súmula 362, do TST,
observada a prescrição bienal após a extinção do contrato de trabalho.
De outro lado, na segunda situação, o Judiciário trabalhista aplica a
prescrição quinquenal prevista no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal
de 1988, consoante balizas fixadas pela Súmula 206, do Tribunal Superior do
Trabalho, observada também a prescrição bienal após a extinção do contrato
de trabalho.
De todo modo, clama-se identificar uma harmonização para o embate
entre a conformação dos créditos do FGTS ao histórico prazo prescricional
trintenário e ao prazo prescricional trabalhista previsto na vigente Constituição
Federal, especialmente por se encontrar em plano oposto ao tratamento dado
à prescrição da recuperação de créditos do FGTS perseguidos pela União nas
ações de execução fiscal correlatas.
Com efeito, na relação entre Estado e empregador, com base no artigo
23, §5º, da Lei n. 8.036/90, é observado o prazo prescricional trintenário9 da
respectiva ação de cobrança dos créditos do FGTS mencionados. A Súmula
210, do Superior Tribunal de Justiça, desde 02.06.1998, fixou entendimento no
sentido de que “a ação de cobrança das contribuições para o FGTS prescreve
em 30 (trinta) anos”.
A dúplice realidade de tratamento quanto ao prazo prescricional para
cobrança judicial dos créditos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
estabelecida pelas Súmulas 206 e 362, do TST, e pela Súmula 210, do STJ,
evidencia questão juridicamente inconciliável diante da possibilidade de
cobrança pelo Estado, administrativamente ou em execução fiscal, dos mesmos
créditos do FGTS, que à luz da Justiça do Trabalho já se encontram prescritos
para o trabalhador.
Tome-se como hipótese o caso de empresa que é demandada em ação
trabalhista na qual se pleiteia reconhecimento de vínculo empregatício,
diferenças de verbas salariais em relação ao piso salarial profissional e
correspondentes recolhimentos de parcelas do FGTS, não pagos ao tempo da
execução do contrato de trabalho. Se o ajuizamento da ação trabalhista ocorrer
após cinco anos dos vencimentos das verbas pleiteadas, ou dos dois anos da
extinção do contrato de trabalho, incidirá, na hipótese, a prescrição do direito
do trabalho, prevista no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal.
OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Comentários às Súmulas do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 419.
8
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E considerando o entendimento de que a prescrição da pretensão relativa
às parcelas remuneratórias alcança o respectivo recolhimento da contribuição
para o FGTS (Súmula 206, TST) tem-se que a prescrição trabalhista atingirá
também os créditos dos depósitos devidos ao Fundo.
De outra sorte, na hipótese de ser a mesma empresa submetida à
fiscalização do trabalho, obrigatoriamente se fará a verificação de regularidade
dos recolhimentos do FGTS e das contribuições sociais. E, diante dessa
verificação, a fiscalização do trabalho, em procedimento especial para apuração
do recolhimento e base de cálculo do FGTS, à vista de documentação que
propicie a identificação de empregados em situação irregular, procederá ao
levantamento dos débitos do Fundo por recomposição de folha de pagamento
e notificará o empregador a recolher a importância devida. Nesse caso, incide
a regra da prescrição trintenária previstas no artigo 23, §5º, da Lei n. 8.036/90,
e na Súmula 210, do STJ, e o débito notificado será cobrado pelo Poder Público
independentemente do prazo de prescrição trabalhista ou da data de extinção
do contrato de trabalho.
Na hipótese considerada, a ação trabalhista ajuizada pelo empregado em
face da empresa adota o lapso prescricional trabalhista (quinquenal ou bienal),
representando óbice à pretensão de recebimento dos créditos do Fundo de
Garantia, ao passo que a sua satisfação poderá decorrer do resultado de uma
fiscalização administrativa pelos auditores fiscais do trabalho, mediante o
débito individualizado e notificado, uma vez que o Estado conta com prazo para
recuperação dos créditos do FGTS de trinta anos, independente da prescrição
das verbas trabalhistas que compõem sua base de cálculo. Enfim, restará ao
trabalhador a esperança de recuperação de seus créditos pela União10.
A doutrina trabalhista identifica nessa dualidade de interpretações
insegurança jurídica, “pois o empregador não poderá ficar sujeito a não ser
acionado pelo empregado, mas ficar sujeito a ter de recolher a contribuição
num prazo de 30 anos, caso seja processado pela Procuradoria da Fazenda
Nacional”11.
De se advertir sobre divergência, não solucionada, no sentido de que o prazo trintenário do artigo
23, § 5º, da Lei n. 8.036/90, não se impõe na hipótese de cobrança de crédito relativo a FGTS contra
a Fazenda Pública, a qual deve observar a prescrição quinquenal, no termos do Decreto 20.910/32.
Confiram-se os dispositivos: Decreto nº 20.910/32: Artigo 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados
e dos Municípios, bem como assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual
ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato
do qual se originaram. Decreto-lei nº 4.597/42: Artigo 2º. O Decreto no 20.910, de 6 de janeiro de 1932,
que regula a prescrição qüinqüenal, abrange as dívidas passivas das autarquias ou entidades e órgãos
paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas
em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os
mesmos.
9
124
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3. BUSCA DA UNIDADE DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA
RECUPERAÇÃO DOS VALORES DEVIDOS ÀS CONTAS VINCULADAS
DO FGTS
O tratamento diferenciado do prazo prescricional dos créditos do FGTS
em função do autor da demanda e jurisdição competente para sua cobrança é
ponto sensível que tem impacto negativo na recuperação dos créditos devidos
às contas vinculadas do Fundo de Garantia pelos empregadores.
Inicialmente pode-se apontar descrédito ao princípio da isonomia,
pois a aplicação da prescrição trabalhista, quinquenal ou bienal prevista no
inciso XXIX, do artigo 7º, da Constituição Federal, aplicada aos créditos do
FGTS cobrados em ação trabalhista pelo próprio trabalhador, consoante o
teor das Súmulas 206 e 362, do TST, evidencia injustificável desigualdade de
tratamento à vista da cobrança dos créditos realizados pelo Poder Público com
prazo prescricional trintenário.
Ora, o trabalhador como destinatário das verbas que devem ser recolhidas
à sua conta vinculada do FGTS tem tratamento mais restrito quanto ao prazo
prescricional e se insere em condição de submissão de atuação estatal para
cobrança dos depósitos devidos ao Fundo após o transcurso da prescrição
quinquenal ou bienal, nas hipóteses dos citados enunciados de Súmula do
TST.
Em crítica à Súmula 362, do TST, Francisco Antonio de Oliveira12 aponta
que os depósitos do Fundo de Garantia, além de componente dos direitos dos
trabalhadores, tem alcance muito maior, pois dá suporte ao financiamento de
moradias populares. Além disso, o Governo Federal não tem possibilidades
de exercer a fiscalização imposta pela Lei 8.036/90 e levantar os débitos
inadimplidos de milhares de empresas que não depositam a contribuição
do FGTS à espera da prescrição trabalhista, incentivando e premiando a
inadimplência. E mais, cria uma situação inusitada, eis que o Poder Público
tem poderes para exigir os créditos do Fundo no prazo de 30 (trinta) anos, ao
passo que o trabalhador poderá ajuizar ação trabalhista em até 2 (dois) anos
da extinção do contrato de trabalho.
E ainda, numa dimensão mais técnica, a apontada interpretação do lapso
prescricional dos créditos do FGTS dada pelo Tribunal Superior do Trabalho
invade competência do Superior Tribunal de Justiça, posto que a este sodalício,
nos termos da Constituição Federal, compete exclusivamente decidir sobre o
real alcance de lei federal (artigo 105, III, letras a, b e c da Constituição Federal
de 1988).
OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Op. cit., p. 418.
MARTINS, Sérgio Pinto. Manual do FGTS. Op. cit., p. 234.
12
OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Op. cit., p. 640/641.
10
11
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125
A melhor solução para as divergências interpretativas encontra-se na
busca da unidade dos prazos para a prescrição das ações de cobrança dos
depósitos devidos ao FGTS, seja promovida pelos trabalhadores ou pela União
e Caixa Econômica Federal.
A busca de um prazo único de prescrição dos créditos do FGTS que tenha
aplicação em todas as instâncias judiciais perpassa pela fixação da natureza
jurídica do instituto.
Diversas são as teorias que tentam explicar a natureza jurídica do FGTS,
seja em relação ao trabalhador, seja em relação ao empregador.
No que concerne à relação entre o empregado e os recursos do FGTS há
a teoria que os considera como salário diferido, salário social ou socializado
devido pela sociedade ao trabalhador, indenização semipública por
responsabilidade objetiva do tipo risco social, crédito-compensação do tempo
de serviço do empregado, e fundo contábil de reserva ou provisão legal em
face de contingências.
Por seu turno, também são diversas as teorias jurídicas que se ocupam
de explicar a natureza jurídica dos recursos do FGTS em sua relação com
o empregador, no que tange à obrigação principal de realizar o depósito
mensal ou rescisório na conta vinculada do empregado. Nesse diapasão a
doutrina jurídica aponta: a teoria da indenização, que enxerga nos depósitos
a substituição das indenizações de antiguidade do empregado13; a teoria do
tributo, a qual propugna a obrigação de depósito como contribuição social de
intervenção no domínio econômico, adaptada perfeitamente no artigo 3º. do
Código Tributário Nacional; a teoria da contribuição previdenciária, segundo
a qual identificam-se semelhanças entre as finalidades do Fundo de Garantia e
as finalidades do sistema previdenciário14; além das teorias do salário diferido,
da indenização semipública e do crédito-compensação.
As teorias acima citadas se ocupam de buscar a natureza jurídica do
FGTS tomando-se por base as relações jurídicas que se estabelecem entre o
Fundo e o empregado e o Fundo e o empregador, de modo que evidentemente
haveria uma natureza híbrida: trabalhista quanto ao empregado e tributária
em relação à obrigação do empregador em realizar os depósitos ao FGTS.
Inobstante as discussões doutrinárias de que se ocupam as teorias
apontadas, mister se faz desvendar a natureza essencial do FGTS. Para esse
fim, deve-se tomar como referencial a consagração e finalidade constitucional
do Fundo de Garantia.
A Constituição Federal por meio do inciso III, do artigo 7º., insere o FGTS
no rol dos direitos fundamentais do trabalhador, de modo que seus recursos
perfazem créditos compensatórios do tempo de serviço do trabalhador. E
ainda, consoante mandamento constitucional do art. 10, I, do ADCT, o FGTS
13
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. Op. cit., p. 125.
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constitui sistema que dá suporte à indenização por dispensa arbitrária ou sem
justa causa, substitutivo da estabilidade decenal e protetivo da relação de
emprego.
Dessa forma, a natureza jurídica essencial do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço é de direito fundamental do trabalhador, revelada pelo
tratamento constitucional do instituto.
Registre-se que o Supremo Tribunal Federal reconhece a natureza
trabalhista do FGTS desde o julgamento do RE 100.249/SP, por força do qual
entendeu que a contribuição pelo empregador ao FGTS deflui do fato de ser ele
o sujeito passivo da obrigação, de natureza trabalhista e social, que encontra
na regra constitucional sua fonte.
O §3º, do artigo 2º, da Lei 8.844/94, ao dispor sobre a fiscalização,
apuração e cobrança judicial as contribuições e multas devidas ao Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço consagra a sua natureza trabalhista,
estabelecendo expressamente que os créditos relativos ao FGTS gozam dos
mesmos privilégios atribuídos aos créditos trabalhistas.
Pois bem, a busca do prazo prescricional para recuperação dos créditos
do Fundo de Garantia deve partir da premissa de que o FGTS é essencialmente
de natureza trabalhista, de modo que fica afastada a incidência do Código
Tributário Nacional para esse mister.
Fixada a natureza trabalhista do FGTS surge o embate interpretativo
entre a aplicação integral da prescrição trabalhista quinquenal e bienal prevista
no artigo, 7º, XXIX, da Constituição Federal, ou sua atenuação por força do
princípio tuitivo que garante a aplicação da norma mais favorável à proteção
do trabalhador, no caso, o lapso prescricional mais alargado estipulado pelo §
5º, do artigo 23, da Lei n. 8.036/90.
O princípio da norma mais favorável impõe ao operador do direito,
diante da pluralidade de normas, o dever de aplicar ao caso concreto aquela
que mais favorece ao trabalhador, de forma que, “independentemente da sua
colocação na escala hierárquica das normas jurídicas, aplica-se, em cada caso,
a que for mais favorável ao trabalhador”15.
Ensina Maurício Godinho Delgado que não só na interpretação das
normas o princípio da norma mais favorável deve ser observado, mas também:
No instante de elaboração da regra (princípio orientador da ação
legislativa, portanto) ou no contexto de confronto entre regras
concorrentes (princípio orientador do processo de hierarquização
de normas trabalhistas) ou, por fim, no contexto de interpretação
das regras jurídicas (princípio orientador do processo de revelação
do sentido da regra trabalhista)16.
SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários à Lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. São Paulo:
LTr, 1995, p.283
14
Revista Jurídica FACULDADES COC
127
O princípio da norma mais favorável, corolário do princípio protetor,
proporciona dinamicidade ao Direito do Trabalho ao flexibilizar a pirâmide
hierárquica kelseniana para atender a necessidade do hipossuficiente na
relação de emprego. Salienta Amauri Mascaro Nascimento que:
Ao contrário do direito comum, em nosso direito entre várias
normas sobre a mesma matéria, a pirâmide que entre elas se
constitui terá no vértice, não a Constituição Federal, ou a lei federal,
ou as convenções coletivas, ou o regulamento de empresa, de modo
invariável e fixo. O vértice da pirâmide da hierarquia das normas
trabalhistas será ocupado pela norma mais favorável ao trabalhador
dentre as diferentes em vigor17.
Assim, considerando a fluidez da hierarquia das normas no ordenamento
jurídico trabalhista determinada pelo princípio da norma mais favorável
ao trabalhador, pode parecer crível que o FGTS, em que pese ter natureza
essencialmente trabalhista, não se encontre integralmente sujeito à prescrição
trabalhista estabelecida no inciso XXIX, do artigo 7º, da Constituição Federal,
já que expressamente ressalvado o privilégio à prescrição trintenária pela
norma do artigo 23, § 5º, da Lei n. 8.036/90.
A questão da identificação do prazo de prescrição dos créditos relacionados
aos depósitos devidos ao regime do FGTS encontra-se pendente de julgamento
no Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extraordinário nº. 522897/
RN, por meio do qual o relator Min. Gilmar F. Mendes defende a aplicação do
prazo prescricional de cinco anos previsto no artigo 7º, XXIX, da Constituição
Federal, declarando a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que fixam
o prazo de trinta anos para a prescrição dos créditos de FGTS, ou seja, do§ 5º,
do artigo 23, da Lei 8.036/90 e do artigo 55, do Decreto 99.684/90.
Segundo o ministro Gilmar Mendes18 a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal sobre o tema, fixada no julgamento do RE 100249, é
consentânea com o disposto na atual Constituição quando determina que o
FGTS é um direito de índole social e trabalhista, que não tem caráter tributário,
entretanto, o mesmo não ocorre em relação ao prazo prescricional trintenário
para a propositura das ações relativas ao não pagamento do FGTS, um crédito
resultante das relações de trabalho e que, portanto, deve seguir a regra do
inciso XXIX, do artigo 7º, da Constituição Federal de 1988. Assim, à vista da
existência de disposição constitucional expressa acerca do prazo aplicável à
cobrança do FGTS, após a promulgação da Carta de 1988 não mais subsistem
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de
direito do trabalho. Op. cit., p. 134.
16
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2006, p. 199.
17
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 34ª ed., São Paulo: LTr, 2009, p.
235.
15
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as razões antes invocadas para a adoção do prazo de prescrição trintenário.
Ao defender a aplicação do prazo de cinco anos previsto no inciso XXIX,
do artigo 7º, da Constituição Federal, o ministro Gilmar Mendes, acompanhado
pela ministra Ellen Grace, em seu relatório declarou a inconstitucionalidade
dos dispositivos legais que fixam o prazo de trinta anos para a prescrição dos
créditos de FGTS, ou seja, do § 5º, do artigo 23, da Lei 8.036/90 e do artigo 55,
do Decreto 99.684/90.
Levando em consideração que por mais de vinte anos o Supremo Tribunal
Federal e o Tribunal Superior do Trabalho mantém o prazo trintenário de
prescrição aos créditos do FGTS, propôs-se modulação dos efeitos da decisão
como forma de preservar o princípio da segurança jurídica, com sugestão de
que os efeitos de inconstitucionalidade das normas somente tenham eficácia
para processos ajuizados após a decisão do Supremo sobre o tema.
Como visto, o embate entre a aplicação aos créditos do FGTS da prescrição
trintenária ou da prescrição trabalhista prevista no inciso XXIX, do art. 7º, da
Constituição Federal ainda pende de solução na jurisprudência nacional.
Encaminhando o apontamento de interpretação razoável na busca pela
unidade do prazo prescricional relativo aos valores devidos ao regime do
FGTS devem ser levadas em consideração algumas reflexões.
Com efeito, não apenas sob o viés da segurança jurídica, mas
essencialmente para fins de efetividade da recuperação dos créditos do FGTS
em face do empregador inadimplente, seja por parte do trabalhador ou do
Poder Público, o elemento tempo afigura-se como de extrema relevância.
Nesse sentido, quanto maior o lapso temporal para ajuizamento da ação
de cobrança dos créditos do FGTS, menor será a probabilidade de êxito na
demanda e recuperação dos valores devidos, tendo em vista os diversos fatores
que podem se revelar contrários ou negativos à efetividade da cobrança, tais
como dissolução irregular das atividades do empregador, esvaziamento
patrimonial, liquidação ou falência da empresa, morte dos responsáveis ou
dos próprios credores, dificuldade de individualização dos trabalhadores,
dentre outras contingências.
Considerando que o elemento tempo é de extrema relevância para a
efetividade da recuperação dos créditos do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço, o prazo prescricional menos elastecido apresenta-se mais adequado e
efetivo à garantia do direito do trabalhador em ter os valores depositados em
sua conta vinculada do FGTS.
De toda forma, mister a aplicação do mesmo prazo prescricional
uniformemente aos dois modelos de recuperação judicial dos créditos do
FGTS, quais sejam, a cobrança pelo trabalhador de seus créditos por meio de
ação trabalhista, e a cobrança dos créditos do FGTS pelo Poder Público (União
18
STF, RE 522897/RN, relator Min. Gilmar F. Mendes.
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129
e Caixa Econômica Federal) por meio da execução fiscal.
Como já afirmado, não se apresenta razoável que ao trabalhador se
aplique o prazo de prescrição trabalhista previsto no inciso XXIX, do artigo
7º, da Constituição Federal e ao Poder Público seja aplicável a prescrição
trintenária quanto às ações de cobrança dos créditos do FGTS, posto tratar-se
do mesmo instituto.
No que respeita à prescrição trintenária aplicável ao Poder Público,
reconhecida pela Súmula 210 do Superior Tribunal de Justiça, inobstante as
considerações jurídicas a respeito da natureza jurídica do FGTS como direito
fundamental do trabalhador que leva à aplicação da prescrição trabalhista, no
campo prático deve ser levado em conta que os atuais recursos tecnológicos
e de informática contribuem sobremaneira para a celeridade da instauração
da cobrança de valores devidos ao Fundo, o que desfaz o argumento de que
o aparato estatal seria insuficiente para tal mister em curto espaço de tempo.
Ora, os empregadores prestam diversas informações eletronicamente
aos órgãos públicos de fiscalização e arrecadação do FGTS, a exemplo da
obrigatoriedade de apresentação da Guia de Recolhimento do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social - GFIP,
determinada pela Lei nº. 9.528/97. Todas as pessoas físicas ou jurídicas sujeitas
ao recolhimento do FGTS, conforme estabelece a lei nº. 8.036/90 e legislação
posterior, bem como às contribuições ou informações à Previdência Social,
conforme disposto nas leis nº. 8.212/91 e 8.213/91 e legislação posterior, estão
obrigadas ao cumprimento da obrigação de informar os dados da empresa
e dos trabalhadores, os fatos geradores de contribuições previdenciárias e
valores devidos de contribuições previdenciárias, bem como as remunerações
dos trabalhadores e valor a ser recolhido ao FGTS. A empresa ou empregador
estão obrigados à entrega da GFIP ainda que não haja recolhimento para o
FGTS, caso em que será declaratória, contendo todas as informações cadastrais
e financeiras de interesse da Previdência Social e do Fundo de Garantia.
Diante desse quadro, nada veda que o Poder Público, firme no princípio da
participatividade do cidadão decorrente do Estado Democrático de Direito,
considere as declarações apresentadas pelos empregadores como confissão
dos créditos relativos ao FGTS, dotados, portanto, de liquidez, certeza e
exigibilidade desde então.
Nessa linha de raciocínio sobre a aplicação da prescrição trabalhista aos
depósitos do FGTS, deve ser feita uma ressalta no sentido de que a prescrição
trabalhista prevista constitucionalmente não deve ser aplicada em sua inteireza
quando se tratar da cobrança dos créditos do FGTS promovida pela União e
Caixa Econômica Federal.
De se recordar que a prescrição trabalhista biparte-se em quinquenal
e bienal, conforme se identifique a extinção da relação de emprego. Ocorre
130
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que a prescrição bienal prevista no dispositivo constitucional considerado é
inaplicável ao Poder Público, uma vez que este não está submetido à relação
de emprego extinta e não pode ser atingido por prazo prescricional cujo termo
inicial se refere a fato ou relação jurídica da qual não participa.
Rememore-se que nem sempre a extinção da relação de trabalho
albergada pelo regime do FGTS encontra-se submetida à homologação perante
a autoridade do trabalho, não podendo ser imputado ao Estado um lapso
prescricional desgarrado do princípio da actio nata, de forma que apenas se
faz aplicável ao Poder Público a prescrição trabalhista quinquenal em relação
aos créditos do FGTS, cujo termo inicial reporta-se ao fato do vencimento dos
valores inadimplidos e não a fato estranho à relação Estado-empregador.
Assim, interpretação razoável que reflita a necessidade de garantia dos
princípios da segurança jurídica e da isonomia, bem como da efetividade na
recuperação dos créditos do FGTS, seja pelo Poder Público ou pelo próprio
trabalhador, pressupõe a necessidade de um prazo prescricional unificado
para sua cobrança, de modo que se deve harmonizar a regra da prescrição
trabalhista prevista no inciso XXIX, do artigo 7º, da Constituição Federal,
aplicando-se a prescrição quinquenal ao trabalhador e ao Poder Público, e
na hipótese de extinção da relação de emprego, que a prescrição bienal seja
aplicada apenas ao trabalhador, o qual sendo parte da relação de trabalho
extinta tem conhecimento imediato do fato e pode proceder ao ajuizamento da
cobrança das verbas trabalhistas e do FGTS que lhe foram sonegadas.
4. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Diante das presentes considerações conclui-se que a questão da prescrição
dos créditos relativos aos depósitos devidos pelos empregadores ao FGTS
representa ponto sensível diretamente conectado com a garantia da isonomia,
da segurança jurídica e da efetividade do seu modelo de recuperação judicial,
tanto pelo trabalhador quanto pelo Poder Público, de modo que se torna
forçoso novo direcionamento no entendimento consagrado nas Súmulas 362
do Tribunal Superior do Trabalho e 210 do Superior Tribunal de Justiça.
A interpretação reclamada deve partir juridicamente da premissa da
natureza jurídica essencial do Fundo de Garantia como direito fundamental
do trabalhador, e pragmaticamente, do fato de que quanto maior o lapso
temporal para ajuizamento da ação de cobrança dos créditos do FGTS,
menor será a probabilidade de êxito na demanda de recuperação dos valores
devidos, tendo em vista os diversos fatores que podem se revelar contrários
ou negativos à efetividade da cobrança.
A partir dessas premissas a conclusão necessária e juridicamente
sustentável revela-se pelo reconhecimento da aplicabilidade aos depósitos
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do FGTS da prescrição trabalhista prevista no inciso XXIX, do artigo 7º,
Constituição Federal, com a ressalva de que a prescrição bienal se aplica
apenas ao trabalhador, posto que somente este é parte na extinta relação
jurídico-laboral.
Merece registro que a modificação interpretativa para redução e
adequação do prazo prescricional dos depósitos do FGTS nos moldes da
prescrição trabalhista quinquenal e bienal não afronta o princípio da proibição
do retrocesso social, pois o direito ao regime do Fundo de Garantia é mantido
incólume, não sendo extirpado do ordenamento jurídico, pois a mudança de
interpretação reflete o alcance da natureza essencial do FGTS como direito
fundamental do trabalhador e serve de reforço a outros direitos fundamentais
do cidadão relacionados à segurança jurídica e incentivo à sua participação, na
qualidade de trabalhador, num modelo mais célere e efetivo de recuperação
dos valores relativos aos depósitos do Fundo de Garantia devidos pelos
empregadores.
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O NEXO TÉCNICO EPIDEMIOLÓGICO
PREVIDENCIÁRIO E A GARANTIA DA
ESTABILIDADE PROVISÓRIA NOS CONTRATOS
DE TRABALHO
THÁSSIA PROENÇA CREMASCO GUSHIKEN 1
Resumo
O presente artigo objetiva analisar a importância no nexo técnico
epidemiológico previdenciário para a garantia da estabilidade provisória
prevista em Lei para os trabalhadores que sofreram acidente de trabalho.
Esta abordagem é de enorme relevância, uma vez que o nexo técnico
epidemiológico trouxe grande inovação na caracterização do acidente de
trabalho, já que facilitou o reconhecimento do acidente e, consequentemente,
passou a facilitar o reconhecimento dos direitos trabalhistas decorrentes do
acidente de trabalho.
INTRODUÇÃO
Os direitos trabalhistas que estão previstos em Lei em caso de acidente
de trabalho (sendo que nesta expressão já incluímos a doença do trabalho e a
doença profissional) são diversos, entre eles: o direito a indenização por danos
morais, materiais, bem como o pagamento do FGTS durante todo o período
em que o trabalhador esteve afastado do trabalho em virtude do acidente.
Porém, o presente estudo foca-se no direito a estabilidade provisória que
surge com o acidente de trabalho, este reconhecido através do nexo técnico
epidemiológico.
Diante desse quadro, a discussão central quanto à aplicação da
estabilidade provisória decorrente do acidente de trabalho nos acidentes
reconhecidos através do nexo técnico epidemiológico previdenciário,
pontuamos os entendimentos favoráveis à aplicação da estabilidade assim
como os entendimentos contrários, para que somente então possamos chegar
a nossa conclusão.
1. NEXO TÉCNICO EPIDEMIOLÓGICO PREVIDENCIÁRIO
O instituto do Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP) está previsto no
Decreto nº. 6.042/07 e na Lei 11.340/06, que acresceu o artigo 21-A a Lei
8.213/91:
Art. 21-A. A perícia médica do INSS considerará caracterizada a
natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência
Bacharel em Direito pelas Faculdades de Campinas (FACAMP). Especialista em Direito do Trabalho
e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em
Direito Previdenciário pela UNIDERP-LFG- Instituto Brasiliense de Direito Público.
1
136
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de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo,
decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade
mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação
Internacional de Doenças - CID, em conformidade com o que
dispuser o regulamento2.
Resumidamente, essas normas passaram a prever que haverá a presunção
de que o agravo é decorrente de doença ocupacional quando a doença estiver
relacionada com a atividade desenvolvida pelo trabalhador na empresa, nos
termos da Classificação Internacional de Doenças – CID. Portanto, podemos
conceituar o Nexo Técnico Epidemiológico como uma metodologia que
verifica quais as doenças e acidentes decorrem do exercício de certa atividade
profissional, ou seja, aquela que determinará a relação existente entre a
classificação internacional de doenças (CID), reconhecida na Perícia Médica,
com a atividade desempenhada pelo segurado, permitindo o reconhecimento
da doença decorrente do trabalho com uma maior facilidade.
Assim, quando um benefício previdenciário for requerido com base
em um documento médico que conste o código da doença (CID) relacionado
com o Código Nacional da Atividade Econômica (CENAE) da empresa
empregadora do trabalhador, será reconhecido automaticamente pela Perícia
Médica do INSS o acidente de trabalho.
1.1. Das Consequências decorrentes da caracterização do Acidente de
Trabalho através do NTEP
Com o reconhecimento do acidente de trabalho através do NTEP, o
segurado do INSS terá direito ao benefício acidentário independente da
emissão do CAT (Comunicado de Acidente de Trabalho), ocorrendo também
a inversão do ônus da prova, já que caberá a empresa comprovar que a
doença não foi adquirida ou desenvolvida pelo exercício do trabalho em suas
dependências, e não mais ao trabalhador, a quem competia esse ônus.
No caso da empresa, ou mesmo do trabalhador, não aceitar a declaração
do acidente de trabalho a norma prevê a possibilidade de recurso, garantindo
o contraditório e a ampla defesa, cabendo a quem interessar comprovar que
não há o nexo causal entre a doença/acidente e o trabalho realizado. Ocorre
que esta caracterização proporcionará ao trabalhador os direitos decorrentes
do acidente de trabalho, dentre os quais destacamos o direito a estabilidade
provisória ao emprego, e caberá a empresa que discordar da caracterização do
acidente de trabalho provar que o trabalhador não sofreu acidente do trabalho.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de
Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
2
Revista Jurídica FACULDADES COC
137
1.2. Da Inversão do Ônus da Prova
Em caso de conflitos entre empregado e empregador envolvendo os
direitos decorrentes do acidente de trabalho, este reconhecido através do
NTEP, será do empregador o ônus de comprovar que o trabalhador não sofreu
acidente, de modo a desconstituir o direito pleiteado. Caso o empregador não
se desincumba desse ônus, o trabalhador fará jus a todos os direitos previstos
em lei para o trabalhador acidentado, entre eles o da estabilidade acidentária.
Considero ser razoável a inversão do ônus da prova cabendo ao
empregador comprovar que a doença não decorreu do trabalho, já que este
detém mais conhecimentos, documentos e meios, que permitem uma maior
facilidade em comprovar a origem da doença. Basta citar que as empresas
detêm documentos importantes para essa análise, tais como o PPP (Perfil
Profissiográfico Previdenciário), PCMSO (Programa de Controle Médico de
Saúde Ocupacional), PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) e
ASO (Atestado de Saúde Ocupacional), laudos periciais, exames admissionais,
demissionais e outros.
Importante salientar que a norma que prevê o nexo técnico epidemiológico
somente foi possível por estudos e levantamentos de dados que demonstram
o quadro de acidentes e doenças decorrentes do trabalho no Brasil nos mais
diferentes setores da economia. Desse modo, passa-se a reconhecer uma
realidade já existente, uma vez que determinadas atividades laborais já
causavam certas doenças. Entretanto, cabia ao trabalhador o ônus de provar
o nexo entre a doença e o trabalho exercido. Já com o NTEP esse nexo passa a
ser presumido, cabendo a parte interessada provar o contrário.
Como ponto negativo do NTEP, grande parte daqueles que defendem o
empresariado afirma que este não leva em conta fatores biológicos, tais como a
idade, o sexo, a genética, que certamente influenciam o surgimento de doenças,
incapacidades e morte. Afirmam ainda que o NTEP nem sequer considera
as melhorias realizadas na área de saúde e segurança do trabalho, e ainda,
que desta forma as empresas sentem-se estimuladas a buscar profissionais no
mercado que tenham uma condição física perfeita, com grande resistência a
esforços físicos, de modo a evitar que doenças ocorram e os empregadores
sejam responsabilizados. Ou seja, estimula-se a discriminação no ambiente de
trabalho3.
1.3. O NTEP e o incentivo para as empresas melhorarem seu ambiente de
trabalho.
A meu ver, apesar dos pontos negativos acima elencados, a inclusão do
3
Conforme: http://jus.uol.com.br/revista/texto/11729/nexo-tecnico-epidemiologico.
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NTEP no ordenamento jurídico representa um avanço, já que antes caberia
ao trabalhador que sofria acidente ou doença do trabalho comprovar perante
o INSS o nexo de causalidade entre a doença e as atividades desenvolvidas
junto à empresa, o que certamente é um enorme ônus ao trabalhador já que as
empresas recorrentemente se recusam a abertura do CAT, de modo a evitar
que sejam responsabilizadas pela doença/acidente.
É bastante comum, mesmo após o advento do NTEP, verificarmos na
prática que casos de doença decorrentes do trabalho exercido junto a empresa
sejam considerados como doença comum, cabendo ao trabalhador, se assim
desejar, buscar a Justiça para que se reconheça o acidente de trabalho e
consequentemente tenha garantido o direito aos depósitos do FGTS durante o
período de afastamento, bem como a estabilidade acidentária disposta no art.
118, da Lei n. 8.213/91.
Porém, acreditamos que com o NTEP esta situação paulatinamente
melhorará, já que o registro de doenças ocupacionais tem aumentado e
moléstias que antes eram tidas como comuns hoje são consideradas como
ocupacionais, garantindo o direito dos trabalhadores, assim como o incentivo
ao desenvolvimento dos mais diversos setores da economia que trabalham no
sentido de diminuir os índices de acidentes e doenças do trabalho.
A maior cautela das empresas visando a diminuição dos acidentes
do trabalho decorre do fato do Decreto nº. 6042/07 determinar além da
implementação do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP),
a implementação do Fator Acidentário Previdenciário (FAP), que permite
averiguar quais são as empresas que mais causam acidentes e doenças do
trabalho, sendo que a definição das alíquotas de Seguro Acidente de Trabalho
(SAT) decorrerá desses dados.
Com isso, o Poder Executivo está autorizado a aumentar as alíquotas do
SAT para as empresas que não invistam em prevenção e controle de acidentes
de trabalho. As alíquotas SAT de 1 %, 2 % ou 3 % sobre a folha de salário
poderão ser aumentadas em até 2 %, 4 % ou 6 %, respectivamente, quanto
maior for o fator de risco do setor de atividade econômica.
Assim, o FAP mede o índice de doenças e acidentes de trabalho em cada
uma das empresas e serve como incentivo para as empresas investirem na
saúde e segurança do trabalho4.
As empresas são avaliadas anualmente e classificadas conforme o
indicador de sinistralidade, que é calculado levando-se em conta: a gravidade,
a frequência e os custos dos acidentes de trabalho. Com isso, as empresas que
investirem seus esforços para que haja a diminuição dos acidentes e doenças
do trabalho poderão diminuir até metade a alíquota do SAT.
Do mesmo modo que o Estado incentiva as empresas que atuam de forma
4
Conforme: http://www.sindicatomercosul.com.br/noticia02.asp?noticia=33204.
Revista Jurídica FACULDADES COC
139
diligente e responsável, também pune aquelas empresas que têm índices de
acidentes acima da média do setor de atividade econômica a qual pertencem,
já que a alíquota poderá ser dobrada. O FAP demonstrará quais empresas
merecem ser premiadas com uma taxação a menor, pois estão contribuindo
para a sociedade e com os trabalhadores, agindo de modo a reduzir os acidentes
e doenças de trabalho, e quais merecem ser punidas, já que tem trazido danos
a sociedade.
Estas medidas certamente contribuem para a melhoria no ambiente de
trabalho, já que além de trazer a prevenção dos acidentes e doença do trabalho,
ainda garantem que os danos a saúde dos trabalhadores sejam tratados de
maneira adequada, responsabilizando as empresas pelos danos que causarem.
As empresas que respeitarem as normas de medicina e segurança do
trabalho, com baixo índice de acidentes e doença do trabalho também serão
beneficiadas com a redução tributária e com o reconhecimento de que tratam
com seriedade o tema saúde e segurança do trabalho.
2. ESTABILIDADE DO EMPREGADO ACIDENTADO
Analisadas as consequências decorrentes da caracterização do Acidente
de Trabalho através do NTEP, passemos a analisar a disposição prevista na
Lei 8.213/91, em seu artigo art. 118, e que traz ao empregado acidentado a
garantia de emprego de 12 meses após a alta previdenciária. Tem-se:
Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida,
pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de
trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário,
independentemente de percepção de auxílio-acidente.
Alguns juristas afirmavam que esta disposição era inconstitucional, uma
vez que o art. 7º, inc. I, da Constituição Federal, bem como o art. 10 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias exigiam a regulamentação da
proteção da relação de emprego mediante lei complementar, sendo que a Lei
8.213/91 trata-se de lei ordinária.
Entendemos que não há que se falar em inconstitucionalidade do
dispositivo supra citado, uma vez que a exigência da Constituição Federal
de lei complementar é para os casos em que se trata de proteção de emprego
contra a despedida arbitraria de uma forma genérica.
Portanto, é totalmente possível que a lei ordinária traga previsões de
estabilidades provisórias, que abrangerá um grupo limitado de trabalhadores,
como é o caso dos empregados acidentados.
Este entendimento já está consolidado na jurisprudência, inclusive no
Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior do Trabalho, conforme
140
Revista Jurídica FACULDADES COC
Súmula 378 sobre esta espécie de estabilidade:
Súmula 378 I- É constitucional o artigo 118 da Lei nº 8.213/1991 que
assegura o direito à estabilidade provisória por período de 12 meses
após a cessação do auxílio-doença ao empregado acidentado. (exOJ nº 105 da SBDI-1 - inserida em 01.10.1997) II - São pressupostos
para a concessão da estabilidade o afastamento superior a 15 dias
e a conseqüente percepção do auxílio-doença acidentário, salvo
se constatada, após a despedida, doença profissional que guarde
relação de causalidade com a execução do contrato de emprego.
(primeira parte - ex-OJ nº 230 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)
Este período de garantia no emprego visa proteger os trabalhadores
das frequentes despedidas discriminatórias que sofrem após terem sua
saúde afetada por um acidente de trabalho, bem como objetiva proteger os
trabalhadores que encontram enormes dificuldades para obtenção de um
novo emprego, principalmente quando o acidente lhe causa sequelas.
Este período de estabilidade ainda permite que o trabalhador acidentado
possa recuperar a sua saúde de forma plena, e caso assim não seja possível, que
ao menos o trabalhador tenha como se adaptar as limitações que o acidente de
trabalho lhe causou.
Portanto, esta estabilidade provisória prevista em lei proporciona ao
trabalhador segurança em uma fase que poderá apresentar a redução do
seu ritmo de trabalho e uma determinada fragilidade em sua saúde física e
psicológica.
Passemos a analisar o papel do NTEP para a caracterização da estabilidade
provisória acidentária, dada a importância da mesma para a garantia dos
direitos fundamentais dos trabalhadores.
3. DA IMPORTÂNCIA DO NTEP PARA A GARANTIA DA ESTABILIDADE
PROVISÓRIA
Ficando o trabalhador afastado pelo Instituto Nacional do Seguro Social
por mais de 15 dias, basta saber se este afastamento decorre ou não de acidente
de trabalho para saber se estão preenchidos os requisitos para a concessão da
estabilidade provisória.
A grande problemática encontra-se exatamente em caracterizar o acidente
de trabalho. Antes da criação do NTEP só havia uma regra a ser seguida para
a caracterização do acidente de trabalho, era a regra constante no art. 333,
do Código de Processo Civil, qual seja: o ônus da prova incumbe ao autor,
quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à existência de fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Ou seja, cabia ao trabalhador o enorme ônus de comprovar que sua
Revista Jurídica FACULDADES COC
141
doença ou lesão decorreu do trabalho, para somente então ter reconhecido
os seus direitos decorrentes dessa condição, tal como o direito a estabilidade
provisória.
Com a criação do NTEP o trabalhador acidentado passa a ter o
reconhecimento do acidente de trabalho com maior facilidade. Esse
reconhecimento é de extrema relevância para que se garanta a eventual
estabilidade acidentária, bem como o direito de ter o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço recolhido e a indenização por danos morais e materiais.
Desse modo, o reconhecimento do acidente de trabalho, dificulta a rescisão
do contrato antes do término da estabilidade, já que a sua dispensa antes desse
prazo certamente contraria os princípios da boa-fé, da proteção ao trabalhador
e da dignidade da pessoa humana, pois causará um abalo psicológico e físico
ainda maior ao trabalhador, que se encontra em uma situação de fragilidade,
merecendo todo o respaldo para a recuperação da sua saúde.
Qualquer homem médio que fosse dispensado nesse contexto se sentiria
discriminado e descartado, daí porque mecanismos trazidos pela lei para
facilitar a estabilidade provisória no emprego, bem como para garantir os
demais direitos previstos em Lei são de grande valia.
A dispensa antes desse período, a nosso ver, representa um descaso e
presume-se discriminatória e, certamente, desumana. O trabalhador que
acaba de ser afastado por mais de 15 dias decorrente de doença ou acidente
de trabalho, ao ser demitido, provavelmente enfrentará dificuldades para se
reinserir no mercado de trabalho, pois além de enfrentar o desemprego, estará
em situação de inferioridade em relação aos demais candidatos às vagas de
emprego, uma vez que sua saúde ainda estará em recuperação.
4. A CONSTITUCIONALIDADE DO NTEP
Constituição é a norma que traz as aspirações sociais e o conceito de
justiça que a sociedade elegeu. Além de a Constituição Federal ser uma
importante fonte para que formemos o conceito de equidade, ainda temos que
ter em mente que por ser esta a norma que rege todo o ordenamento jurídico,
a interpretação das normas trabalhistas e previdenciárias também deve estar
em conformidade com as suas disposições.
Marcus Orione Gonçalves (2006, p.121) tratando sobre a importância
de se interpretar todo o ordenamento jurídico através das disposições
constitucionais, afirma que:
O que se sugere é que façamos a leitura a partir da Constituição. Há
uma dificuldade enorme, percebe-se, dos operadores do direito, na
utilização do sistema constitucional. Muitas vezes esses esgotam as
possibilidades nos atos administrativos, quando muito chegam as
142
Revista Jurídica FACULDADES COC
leis ordinárias e, se restar fôlego, alguns ainda conseguem visitar o
texto constitucional.
A interpretação segundo os ditames constitucionais é necessária para
a busca da Democracia econômica e social, bem como é essencial para a
interpretação de conceitos indeterminados e para a resolução de conflitos que
não estejam disciplinados em lei, isso em qualquer ramo do Direito.
Quando tratamos de leis trabalhistas e previdenciárias, ainda mais o
seu conteúdo tem de ser interpretado segundo um critério sociológico, já que
visam proteger os interesses das categorias dos trabalhadores e os interesses
individuais dos mesmos, desde que não contrariem o interesse público.
Visam, ainda, a paz social, dispondo os deveres e os direitos de cada
uma das partes que formam a relação de emprego. Sem essas regras, não
subsistiria o capitalismo minimamente equilibrado como verificamos
atualmente. Portanto, o conteúdo humano do Direito do Trabalho e do Direito
Previdenciário deve buscar a promoção da justiça social e o aprimoramento
da condição social do trabalhador5.
Passemos a analisar algumas disposições constitucionais que devem
ser atendidas sempre que ocorre a aplicação da legislação trabalhista e
previdenciária.
Como um dos princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil, temos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Em conformidade com esses princípios a Constituição Federal traz em seu art.
170 a chamada justiça social como um dos seus primados, estabelecendo ainda
que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano,
visando a busca do pleno emprego, e que a propriedade privada atenderá à
sua função social:
Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços
e de seus processos de elaboração e prestação;
Por exemplo, o art. 5° da Lei de Introdução do Código Civil dispõe que na aplicação na lei o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e as expectativas do bem comum. Reforçando mais uma vez
a preocupação dos legisladores com o fim social e com o bem comum.
5
Revista Jurídica FACULDADES COC
143
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
Desse modo temos em especial o direito do trabalho e previdenciário
como um instrumento concretizador da justiça social, devendo para tanto
respeitar a dignidade do trabalhador, reconhecendo-o como cidadão para que
possa reivindicar a sua posição política na sociedade, bem como para que lhe
seja garantida uma vida digna.
Para que isso ocorra as relações de trabalho não podem ser precarizadas,
pelo contrário, somente com o reforço dos direitos trabalhistas e previdenciários
é que podemos formar uma sociedade mais justa, já que toda situação de
miséria provocada pelo afastamento da dignidade nas relações de emprego
cria a instabilidade social, sendo vítima o empresário e toda a sociedade.
Assim, para que se busque a justiça social, bem como para que se
concretize o princípio da dignidade da pessoa humana, do valor social do
trabalho e da função social da propriedade, temos que garantir o atendimento
a valorização do trabalho, conforme disposto na Constituição Federal.
Deve-se ainda aplicar as garantias sociais previstas nos arts. 7° e 8° da
Constituição Federal, bem como das garantias individuais previstas no art. 5°
da mesma Carta.
Arion Sayão Romita (1998, p. 34) constata a dificuldade de se efetivar os
ditames constitucionais, no que se refere aos direitos fundamentais e a justiça
social:
Vale transcrever elucidativo trecho da autoria de Jose Eduardo Faria:
‘Eis aí, de modo esquemático, o dilema hoje enfrentado pelo Poder
Judiciário brasileiro- ao menos em suas instâncias inferiores: cobrir
o fosso entre esse sistema jurídico-positivo e as condições de vida de
uma sociedade com 40% de seus habitantes vivendo abaixo da linha
de pobreza, em condições sub-humanas em consciência de que a
atividade judicial extravasa os estreitos limites do universo legal,
afetando o sistema social, político e econômico na sua totalidade.
Com a expansão dos direitos humanos, que nas ultimas décadas
perderam seu sentido liberal originário e ganharam uma dimensão
social, ficou evidente que pertencer a uma dada ordem política
jurídica é, também, desfrutar do reconhecimento da condição
humana. Quando essas condições não são efetivamente dadas, os
segmentos mais desfavorecidos se tornam párias, no sentido dado
por Hannah Arendt. Esse tem sido o grande paradoxo dos direitos
humanos- e também dos direitos sociais- no Brasil: apesar de
formalmente consagrados pela Constituição, em termos concretos
eles quase nada valem quando homens historicamente localizados
144
Revista Jurídica FACULDADES COC
se vêem reduzidos à mera condição genérica de humanidade;
portanto, sem a proteção efetiva de um Estado capaz de identificar
as diferenças e as singularidades dos cidadãos, de promover justiça
social, de corrigir as disparidades econômicas e de neutralizar
uma iníqua distribuição tanto de renda, quanto de prestígio e de
conhecimento.
Mesmo diante das dificuldades de se concretizar os ditames
constitucionais nas relações de trabalho, considerando as desigualdades
existentes entre o empregador e o empregado, o direito do trabalho e
previdenciário devem trabalhar na busca constante pela sua concretização.
Em não sendo assim, estará ferindo o seu principal objetivo. Não podemos
ter o direito do trabalho e previdenciário sob a perspectiva das conveniências
econômicas. Devemos ter em mente que o direito social tem enorme relevância
para a sobrevivência de toda sociedade, sendo que o Estado de Bem Estar
Social deve ser objetivado para a implementação das sociedades que buscam
a justiça social e o atendimento as garantias mínimas de sobrevivência digna
dos seus indivíduos.
A valorização do trabalho permitirá que essa garantia seja atendida na
prática. Já são muitos os estudos apontam que a precarização do trabalho
não eliminará o desemprego, já que este possui causas ligadas a estrutura
da sociedade e da economia. Desse modo, o Estado e mais especificamente o
Poder Judiciário tem o dever de defender o direito social do trabalho, já que
os interesses neles defendidos são os interesses de toda a sociedade, que foi
transposto para a Constituição Federal.
Josephat Marinho (1998, p. 45) trata sobre o papel do Estado na garantia
dos direitos sociais:
Cumpre ver, ainda, que a política neoliberal, superveniente a
Constituição, tem perturbado a execução desses direitos, ou lhes
reduzido o alcance, pela excessiva transferência à ordem privada
de instrumentos, deveres e fins inerentes ou vinculados ao Estado.
As desigualdades existentes e os critérios do poder econômico
de privilegiar o lucro e os que o detêm, sem os freios devidos,
enfraquecem os direitos, destinados, formalmente, à maioria
destituída de força e fortuna. Essa maioria é a pobreza que não tem
onde reclamar as franquias da lei.
O mesmo autor dispõe que (1998, p. 47):
No trato específico dos direitos sociais, esse cuidado de preencher
o espaço cinzento das leis é indeclinável, pelos reflexos da relação
criada na vida das pessoas. Não se trata, apenas, de conseqüências
sobre o patrimônio material, mas de repercussões que alcançam o
individuo nos seus valores subjetivos de ser sensível e ético. Dando
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relevo singular aos “direitos sociais, econômicos e culturais”,
o professor Gomes Canotilho acentua que eles “constituem em
direitos a prestações ou atividades do Estado (...)”.
Com isso, podemos concluir que somente o progresso material não
caracteriza o desenvolvimento, sendo necessária a sensibilidade do Poder
Judiciário ao aplicar as normas trabalhistas e previdenciárias, para que estas
sejam colocadas de acordo com os primados constitucionais. O Brasil em sua
Constituição Federal se preocupou com o desenvolvimento e com o progresso
social, vejamos o art. 3° inc. I, II e III e o art. 7º, caput:
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
(...)
Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
Resta claro, portanto, que a criação do nexo técnico epidemiológico
previdenciário visa o fim social e o bem comum, bem como busca que a
dignidade da pessoa humana e a justiça social sejam atendidos.
Somente com medidas como estas atenderemos os ditames constitucionais
e os princípios que regem o direito do trabalho e previdenciário, pois retira-se
do trabalhador um ônus, por muita das vezes impossível de se desvencilhar,
já que reconhecendo-se uma presunção (com bases cientificas) de que
uma determinada atividade gera uma doença, e detectada esta doença no
trabalhador, essa condição é logo reconhecida pelo INSS, cabendo a parte
interessada provar o contrário.
5. CONCLUSÃO
Verificamos que a legislação trabalhista e previdenciária deve sempre
ser interpretada à luz dos princípios do direito, principalmente os princípios
e normas constitucionais, já que estes são os guias de todo o ordenamento
jurídico, não sendo lícito que nenhuma norma infraconstitucional contrarie
suas disposições. No presente artigo vimos que se a continuidade da relação
de emprego é necessária para que o trabalhador garanta o seu próprio
sustento e de sua família, bem como assuma compromissos futuros. Assim
a prioridade deve ser a manutenção do emprego, principalmente quando se
encontra o trabalhador em uma situação de necessidade, de fragilidade, diante
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Revista Jurídica FACULDADES COC
da ocorrência de um acidente de trabalho.
Vimos, ainda, que a República Federativa do Brasil tem como objetivo
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais. Desse modo, normas que privilegiem essa situação, como a
que cria o nexo técnico epidemiológico, passando a parte mais forte da relação
jurídica o ônus de provar a não ocorrência do acidente de trabalho, quando
pela própria natureza da atividade econômica este se presume, são bastante
convenientes.
E ainda, o nexo técnico epidemiológico (NTEP), permite o reconhecimento
da doença decorrente do trabalho com maior facilidade, buscando-se o respeito
a dignidade da pessoa humana, já que desautoriza a prática das empresas
que se furtam de suas responsabilidades decorrentes do acidente de trabalho,
pois não os reconhecendo passam ao trabalhador o difícil ônus de comprovar
esta condição na esfera administrativa e judicial. E ainda contabilizando
os acidentes e doenças do trabalho é possível punir as empresas que não
respeitam a saúde do trabalhador e “premiar” aquelas que a respeitam.
Diante do exposto temos que este estudo contribuiu para contextualizar
a problemática decorrente dos acidentes de trabalho e sua caracterização
através do NTEP, bem como a sua relação com os direitos trabalhistas, em
especial a estabilidade provisória, já que o tema em tela é pouco debatido pela
doutrina pátria.
Com este trabalho esperamos ter contribuído para um melhor
entendimento das questões envolvidas no tema, bem como para que se
alcance uma solução mais justa e adequada nos conflitos que envolvam os
trabalhadores acidentados, o NTEP e a estabilidade acidentária.
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LTr, 1998.
SOBRE UM ENSINO JURÍDICO MAIS ZETÉTICO NO
BRASIL
SAMUEL MENDONÇA 1
FELIPE ADAID 2
Resumo
Muito se tem criticado a respeito da fundamental importância de um ensino
jurídico mais crítico e zetético, não obstante, o que invariavelmente se
observa na prática é a ausência desta criticidade. Em absoluto, é evidente
que há exceções e esta afirmação não deve ser interpretada como derradeira,
entrementes, no que se refere especificamente aos cursos jurídicos, pode-se
observar uma grande influência da formação tecnicista e dogmática. Este
tipo de pensamento, ainda bastante arraigado nas instituições brasileiras,
é decorre possivelmente da própria concepção limitada de Direito. O
Direito enquanto disciplina dogmática e tecnicista por excelência, deriva do
positivismo jurídico, o qual considera a ciência jurídica como meramente
dogmática, sendo impossível uma visão zetética e crítica. Em suma, segundo
esta escola, este Direito é tido como um conjunto de normas derradeiras.
Desta forma, o professor jurídico se apresenta como um singelo expositor das
leis, e não como um crítico intérprete. Ora, utilizando-se desta perspectiva,
a considerar o Direito como técnica e dogma, qual o interesse em tornar este
ensino mais crítico? Ou ainda, será possível pensar em um ensino jurídico
verdadeiramente zetético no Brasil? Uma vez que o pensamento monista
considera o Direito uma ciência dogmática, seu operador se torna apenas
um ordinário decorador e aplicador legislativo. Neste sentido, não há que
se preocupar com uma formação específica e sólida para este professor, uma
vez que seu papel será apenas o de fazer seus alunos decorarem normas,
princípios e conceitos. De outro lado, novas formas de se pensar o direito
surgem juntamente com as demandas da pós-modernidade, o Direito passa
a não ser mais considerado uma ciência dogmática, a exigir do educando e
do jurista uma capacidade cada vez maior de observar os fatos mundanos e
interpretá-lo de forma crítica e zetética.
Palavras-chave: Direito; Educação; Ensino Jurídico; Zetética.
As armas não tinham conseguido submetê-los a não ser
parcialmente; foi a educação que os domou (BRANDÃO,
1983)
INTRODUÇÃO
Pretendemos corroborar neste artigo com a discussão da atual situação
da educação jurídica no Brasil, apontando alguns aspectos que consideramos
conflitantes e pertinentes à figura do educador. Na tentativa de cogitar
soluções para o aperfeiçoamento do ensino do Direito, basear-nos-emos nas
ideias de zetética e dogmática do jurista alemão Theodor Viehweg. Como
principal expoente do pensamento viehwegiano no Brasil, utilizaremos Tercio
Sampaio Ferraz Júnior, tradutor e comentador de grande propriedade. Além
desses autores, a leitura da obra de Cerqueira (2008, organizada pela Abedi –
Associação Brasileira de Ensino de Direito), foi de grande valia.
Partiremos do pressuposto de que nosso modelo de ensino é, em suma,
demasiadamente dogmático e tecnicista. Neste sentido, consideramo-nos
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diante da inquietante busca de uma educação jurídica cada vez mais satisfatória
e contextualizada. Pensando na obrigação do Estado e instituições de ensino
frente ao direito de todos à educação de qualidade, juntamente com o papel
de cada educador na construção da formação de um profissional voltado às
demandas de nossa sociedade, será possível afirmar que a solução habita na
incitação de um paradigma educacional de cunho mais zetético?
Para iniciarmos nossa argumentação, colocaremos como questão
propulsora a celeuma da classificação dos conhecimentos humanísticos como
ciência, visto que ela encontra total intersecção com o saber jurídico: será o direito
uma ciência? Esta é uma discussão bastante complexa e que mereceria muito
mais consideração e estudo. Após confrontarmos o leitor com a abrangência
desta problemática do direito enquanto entidade do conhecimento – seja
científico ou filosófico, iremos introduzir os conceitos de zetética e dogmática,
seu surgimento na doutrina e sua influência no pensamento jurídico brasileiro.
A despeito de sua a priori antagonia, apontaremos suas possíveis diferenças e
semelhanças teóricas.
Feita esta breve introdução conceitual – ciência, direito, zetética e
dogmática –, daremos início a uma sucinta análise do surgimento do ensino
superior no Brasil, inaugurado pelo curso de Direito. Veremos que os dois
primeiros cursos – em São Paulo e Olinda – foram criados por motivos políticos.
O Estado brasileiro era absolutamente omisso até este período imperial, não
havia uma efetiva preocupação educacional.
Sequencialmente confrontaremos estas raízes históricas com a presente
situação da educação no direito. Será comparado o modelo de aula utilizado
na época de Dom Pedro I – quando surgiu – com a atualidade. Será que houve
uma real evolução da estrutura de ensino? Ou será que em quase duzentos
anos de tradição educacional o direito pouco foi aperfeiçoado?
Observaremos algures que as reformas de diretrizes vêem trazendo aos
cursos de direito uma abordagem cada vez mais multidisciplinar, recheando
a grade curricular com diversas disciplinas não-jurídicas. Será que estas
pequenas reformas são suficientes para o aprimoramento do ensino jurídico?
No entanto, o fomento à pesquisa pelo Estado e pelas próprias instituições
ainda fica em segundo plano. A excessiva preocupação com o tecnicismo e
dogmatismo é reflexo de um curso voltado à mera formação de um operário
do Direito. Em que medida os cursos jurídicos abarcam uma formação
humanística? Passamos à discussão do conhecimento jurídico.
1. DO DIREITO NA GNOSEOLOGIA
1.1. Dos Tipos de Conhecimento
Existe, na gnoseologia, a sedimentada ideia da tripartição do
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conhecimento: científico, vulgar e filosófico. Dentro desta, entendemos como
característica principal da ciência a generalização, alcançada por meio do
rigor do método na busca do que é comum e justificável. Desde a antiguidade
o homem vem se preocupando com a questão da subjetividade. Até o século
XVIII, essa subjetividade – na psicologia, na sociologia, na antropologia e na
política – era objeto de estudo exclusivo da filosofia, enquanto que a ciência
propriamente dita se ocupava com a física – φύσις, natureza (DICIONÁRIOS
ACADÊMICOS, 2008). Esta divisão era bastante adequada, dado que os
fenômenos físicos são passíveis de serem empiricamente observados e
testados. Não obstante, a partir do século XIX, a ciência passou a considerar o
homem como objeto cognoscível também, dando origem às ciências humanas.
Neste período surge então o Positivismo, iniciado com Augusto Comte, cuja
ideia era empregar a metodologia da ciência natural nas humanas (CHAUI,
1999)3. Durhkeim também foi outro prodigioso expoente desta tentativa de
tornar o conhecimento humano – e toda sua subjetividade – passível de ser
analisado pela metodologia científica natural.
(…) como, entretanto, não era possível realizar uma transposição
integral e perfeita dos métodos, das técnicas e das teorias naturais
para os estudos dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram
trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados
tornaram-se muito contestáveis e pouco científicos (CHAUI, 1999,
p. 271).
Satisfatório ou não, este novo pensamento gerou grande instabilidade
entre os intelectuais, dando início a um período crítico. Segundo Boaventura
de Souza Santos, as ciências naturais passaram por um momento de “crise do
paradigma dominante” (SANTOS, 2001). Este contexto de embaraço científico
afeta veementemente a teoria do direito e, indiretamente, sua aplicabilidade.
Uma vez que a prática jurídica tem seu baldrama erguido na própria essência
duvidosa de direito.
1.2. Do termo “Ciência” e a Cência Jurídica
Mesmo o significado do termo “ciência” não é pacífico na literatura.
Observamos que a gênese do vocábulo não nos diz muito: scientia, usada
pelos romanos para designar um conhecimento em lato sensu (DICIONÁRIOS
ACADÊMICOS, 2008, p. 181). A despeito disto, Reale descrimina a existência
de duas acepções para a palavra “ciência”:
“Para Comte, a Filosofia só é digna desse nome enquanto não se diversifica da própria ciência, marcando
uma visão orgânica da natureza e da sociedade, fundada nos resultados de um saber constituído
objetivamente à luz dos fatos ou das suas relações”. (REALE, 1983, p. 15)
3
152
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Conjunto de conhecimentos ordenados corretamente segundo
determinados princípios; e o conjunto de conhecimentos verificáveis
através de um determinado método geral. Grosso modo, a primeira
perspectiva de ciência é aquela que pode ser valorada: Psicologia,
Sociologia, Política. Já a outra é destinada aos conhecimentos
objetivos e isentos de valor: Química, Física, Matemática. A
Filosofia, mesmo considerada como conhecimento sui generis, pode
ser classificada como ciência – pela primeira acepção (REALE, 1983,
p. 73)4.
Na realidade, Miguel Reale não vai muito além do que acreditavam
os pensadores do século XIX. Assim como eles, Reale divide as ciências entre
naturais e humanas, considerando a filosofia como conhecimento à parte –
sui generis. Logo, a diferença entre as entidades naturais e humanas está na
axiologia.
Embora haja certo acordo em classificar o direito como ciência, este
pensamento é relativamente recente. Iniciado pela Escola Histórica alemã,
no século XIX, pretendia-se dar ao direito um caráter científico. Contudo, ao
realizar suas ordenações sistemáticas, a ciência jurídica do Século XX percebeu
o equívoco do método dedutivo no jusnaturalismo. Esta multiplicidade
de conhecimentos inseridos ao direito levou Hans Kelsen a propor o que
chamou de Teoria Pura do Direito. Uma manifesta pretensão de reduzir todos
os fenômenos jurídicos a uma dimensão exclusiva e própria: a normativa
(FERRAZ, 1980). Segundo Kelsen, o direito deveria se preocupar apenas com
a questão normativa – dever ser –, enquanto as outras disciplinas ficariam
responsáveis pelo ser (KELSEN, 1991). O caráter científico dado ao direito na
teoria kelseniana, na verdade, confere-lhe perspectiva ainda mais dogmática
(FERRAZ, 1994)5. A questão que se propõe aqui é: em que medida este
dogmatismo, implantado no pensamento jurídico ocidental há mais de meio
século, influencia nosso direito hoje e, consequentemente, nossa educação?
1.3. Do Direito Zetético e Dogmático
A dicotomia entre a teoria zetética e dogmática do direito foi proposta
originalmente por Theodor Viehweg (COSTA, 2001): jurista alemão que, além
de Direito, estudou Filosofia e exerceu a atividade de magistratura. Entretanto,
com o advento da Segunda Guerra Mundial, ficou desempregado. Graças ao
A ciência opera sempre uma generalização e, em certo sentido, só há ciência do geral, ou melhor,
do genérico. As generalizações da ciência, porém, tornam possível uma explicação mais geral ainda,
pondo a exigência de certas generalidades que não comportem redução a uma generalidade mais ampla.
Quando atingimos explicações tão gerais que não seja possível pensá-las mais gerais ainda, dizemos
que atingimos explicações universais. É por isso que podemos dizer que a ciência é conhecimento do
genérico, ao passo que a filosofia é conhecimento do universal” (REALE, 1983, p. 65) .
4
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153
ócio lhe foi possível a produção da obra Tópica e Jurisprudência (VIEHWEG,
1974), que lhe rendeu o título de livre-docente em 1953 na Universidade de
Monique (BITTAR; ALMEIDA, 2002).
A terminologia ganhou grande notoriedade, sendo difundida no
Brasil apenas no final da década de 70 pelo jurista brasileiro Tercio Sampaio
Ferraz Jr., aluno de Viehweg na Universidade de Mainz. Sobre a terminologia
viehwegiana, o autor comenta:
A dogmática – do grego dókein, ensinar, doutrinar – cumpre
uma função informativa combinada com uma função diretiva, ao
acentuar o aspecto resposta de uma investigação. A zetética – do
grego zetéin, procurar, inquirir – cumpre uma função informativoespeculativa ao acentuar o aspecto pergunta de uma investigação
mantendo, dessa maneira, aberto à dúvida, às premissas e aos
princípios que ensejam respostas (FERRAZ, 1997, p. 90)6.
A despeito de não haver uma linha divisória radical entre as duas
terminologias (FERRAZ, 1994), o cerne da dessemelhança se baseia no fato de
que o direito dogmático é fixo e fechado, devendo ser aceito como é. Enquanto
o direito zetético é mais aberto e flexível, sendo constantemente alvo de
questionamento. Por este motivo que Ferraz considera a linguagem zetética
informativa e a dogmática diretiva, além de informativa (FERRAZ, 1994).
Segundo Viehweg, o pensamento dogmático se refere à formação da opinião
derradeira, já o zetético se relaciona com a investigação propriamente dita,
isto é, justamente com a dissolução, através da dúvida, das meras opiniões
(VIEHWEG Apud. PESSÔA, s/d).
A dogmática jurídica pode ser passivamente comparada com a teologia.
Como é evidente, nesta ciência não se questiona a existência de Deus, os
estudiosos já partem da premissa de que Deus existe. A partir do momento
em que um teólogo cogitar sobre a existência de Deus, então ele deixará de ser
teólogo e passará a ser um filósofo ou um cético. Logo, a zetética jurídica se
aproxima da investigação sobre a existência de Deus.
Na prática do direito, a dogmática aparece de forma constante. É
intuitivo para todos que as normas são criadas para serem cumpridas e existe
um motivo para sua existência. Quando tomamos conhecimento de uma lei e
a obedecemos, estamos agindo dogmaticamente. Não obstante, ao pararmos
para refletir sobre a mesma norma, analisando se ela é justa ou não, então esta
“O pensar dogmático, como temos visto até agora, é um saber bitolado por dois princípios: o da
inegabilidade dos pontos de partida e o da proibição do non liquet, isto é, o da compulsoridade de uma
decisão. Para a decisão que será tomada diante de um conflito, mas se sabe, desde logo, que uma decisão
ocorrerá. Esta compulsoriedade é que confere ao saber dogmático a necessidade de criar as condições de
decibilidade” (FERRAZ, 1994, p. 264).
5
154
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é a zetética jurídica (FERRAZ, 1994)7. Em última instância, a zetética jurídica
se aproxima da atitude filosófica, na medida em que o momento de reflexão
remete à perspectiva de se olhar com rigor o fenômeno em questão.
Quando o principal compromisso de uma ciência é com a descrição
de uma realidade, ela tem que deixar os seus conceitos fundamentais sempre
abertos à discussão e, portanto, ela pode ser classificada como zetética.
Entretanto, determinadas ciências não se limitam à singela descrição da
realidade. “Isso acontece particularmente no estudo dos sistemas normativos
– direito, ética e religião –, na medida em que esses conjuntos de regras têm
como principal objetivo orientar a conduta das pessoas” (COSTA, 2001, p. 160).
Neste caso não há como se perder totalmente seu caráter dogmático. No caso
do direito, observamos que sua própria essência é enunciativa e imperativa,
grosso modo, regula o comportamento humano. Logo, não há como se pensar
num direito totalmente desatrelado à dogmática.
Um exemplo clássico da faculdade zetética no direito vem da mitologia
grega na história de Antígona, contada por Sófocles. Segundo o mito, Creonte,
rei de Tebas, ordenou que Polinice, irmão de Antígona, fosse enterrado sem
os ritos funerários necessários, a pena mais grave para os povos antigos. Sua
irmã, achando injusta a ordem imperada pelo tio, descumpriu-o e enterrou o
irmão. Ferraz cita um exemplo ainda mais ilustrativo em sua obra:
Sócrates estava sentado à porta de sua casa. Neste momento, passa
um homem correndo e atrás dele vem um grupo de soldados. Um
dos soldados então grita: agarre esse sujeito, ele é um ladrão! Ao
que responde Sócrates: que você entende por “ladrão”? (FERRAZ,
1994, p. 40).
O que há de comum nos dois exemplos é a presença de uma resistência
em aceitar uma questão previamente estabelecida. Antígona, seguindo seu
instinto de justiça, reage a uma norma derradeira imposta pelo tio. Enquanto
Sócrates questiona o significado do termo “ladrão”, que na perspectiva dos
soldados era algo óbvio e impossível de ser questionado. Porém, em que
medida esta questão diz respeito à educação jurídica brasileira?
Os cursos jurídicos têm, desde a sua implementação no Brasil,
“Entre elas, como dissemos não há uma separação radical; ao contrário, na totalidade do discurso
jurídico, elas se entremeiam, referem-se mutualmente, às vezes se opõem, outras se colocam
paralelamente, estabelecendo um campo de possibilidades bastante diversificado” (FERRAZ, 1997, p.
90).
7
“Esta ciência prática é dogmática porque se baseia no princípio da aceitação sem discussão os pontos
de partida. A proibição da negação dos pontos de partida – o dogma – obedece a uma razão técnica: a de
permitir a decisão com base no direito, que não pode ser posto em questão sob pena de não se alcançar,
numa sociedade, a decibilidade jurídica dos conflitos” (FERRAZ, 1994, 67).
6
Revista Jurídica FACULDADES COC
155
como característica marcante a transmissão de um conhecimento
reproduzido e sem grandes inovações, tendo como finalidade
preparar um profissional do direito estritamente tecnicista, refém
do sistema normativo codificado como se essa fosse a essência do
direito (ALVES in CERQUEIRA, 2008, p. 241).
Os próprios estudantes que ingressam no curso de direito já possuem
esta imagem de conhecimento técnico. O objetivo desses estudantes não é o
de conhecer o direito, mas de aprende a operá-lo, tal como um mestre-de-obra
que é capaz de erguer uma casa, embora não conheça os fundamentos da física
e da engenharia. Ensinar a técnica e o dogma sem os pressupostos éticos e
axiológicos que tangem a realidade social, só reforça a mentalidade jurídica
dogmática dominante (COSTRA, 2001) e a fragilidade da educação8.
Neste sentido, nosso intuito é corroborar em apontar as possíveis falhas
de nosso sistema educacional. A mentalidade de nossos juristas, estudantes,
professores e leigos não surgiu arbitrariamente. Se hoje os estudantes entram
nas universidades visando apenas ao bacharelado em ciências jurídicas, com
o único propósito de se tornar um mero operador do direito, é porque existe
uma ideologia de que o direito é apenas uma área prática. Como iremos expor
a seguir, esta perspectiva de educação e da essência do direito têm origem
histórica em nossa tradição jurídica.
2. DO DIREITO NA EDUCAÇÃO
2.1. Das Raízes Históricas do Ensino Jurídico
Desde o início do período colonial brasileiro era usual que os filhos
das famílias ricas fossem estudar fora do país. Nossos primeiros intelectuais
tiveram sua formação acadêmica na França ou em Portugal (CASTRO, 2010).
Por nossa relação colonial, o mais prosaico era que estes jovens abastados
fossem estudar na universidade lusitana de Coimbra, já considerada tradicional
naquela época.
Com o advento da nossa independência, decidiu-se pela implantação
de cursos superiores aqui, garantindo que os filhos da elite não precisassem ir
estudar no exterior. A verdade é que havia um motivo político: a preocupação
de um possível confronto entre Portugal e Brasil (RUDNICKI in CERQUEIRA,
2008). Visando à nossa autonomia intelectual, foram criados dois projetos
para cursos superiores jurídicos, um na próspera cidade de Olinda e outro na
pobre e chuvosa cidade de São Paulo (HIRONAKA in CERQUEIRA, 2008)9.
Nasce no Brasil a educação superior – mais de trezentos anos depois de nossa
descoberta européia. Então, em agosto de 1827, D. Pedro I assinou a lei que
daria início à tradição jurídica no Brasil. A mesma lei também determinava
156
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os regulamentos para se tornar professor universitário – Lentes – e quem
receberia o título de Doutor:
Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e unanime acclamação dos
povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil:
Fazemos saber a todos os nossos subditos que a Assembléia Geral
decretou, e nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1º - Crear-se-ão dous Cursos de sciencias jurídicas e sociais, um
na cidade de S. Paulo, e outro na de Olinda (…)
Art. 9º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos
Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados.
Haverá tambem o gráo de Doutor, que será conferido áquelles
que se habilitarem som os requisitos que se especificarem nos
Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão
ser escolhidos para Lentes (sic) (BRASIL, 1827).
O estatuto a que se refere o texto é o “Estatuto para um Curso Jurídico”
– mais conhecido por “Estatuto do Visconde de Cachoeira” –, publicado em
janeiro de 1825 pelo então Conselheiro de Estado Visconde de Cachoeira. Este
estatuto estabelecia, entre outras coisas, como seriam ministradas as aulas nos
cursos de Olinda e São Paulo. O artigo 6º menciona: “Será mui breve nas suas
explanações. Não ostentará erudição por vaidade, mas aproveitando o tempo
com lições úteis, tratará só de doutrina o que for necessário para perfeita
inteligência das matérias ensinas (sic)” (BRASIL, 1827).
Quando foram criados os cursos, havia a preocupação em focar os
estudos nas questões propriamente jurídicas. Existia o temor de que, sem
este foco tecnicista e dogmático, bacharéis saíssem da academia eruditos,
porém pouco hábeis à prática jurídica. Ademais, como alhures exposto, não
havia nenhuma preocupação pedagógica, a legislação fornecia apenas breves
indicações de como aos professores deveriam ministrar suas aulas (RUDNICKI
in CERQUEIRA, 2008). O pensamento tecnicista e dogmático, voltado a
mera atividade no mercado de trabalho, juntamente com falta de formação
pedagógica dos professores é um problema tão genético quanto nosso legado
BIESTA, G. On the weakness of Education. In Philosophy of education. Illinois: University of Illinois,
2009, p. 354. “This may well have been the reason why Sigmund Freud identified education as one
of the three “impossible professions” - the other two being government and psychoanalysis - “in
which one can be sure beforehand of achieving unsatisfying results”. But whereas some would see the
weakness of education as something that ought to be overcome, I wish to argue that the weakness of
education is actually something that belongs to education and is proper to it. This means that, if we fail
to acknowledge the fundamental weakness of education, we run the risk of forgetting what may well
matter most in our education endeavors”.
9
“Por obra do Visconde de São Leopoldo, paulista de nascimento, uma das cidades escolhidas para
sediar os cursos jurídicos foi a justamente pobre São Paulo de então. Aponta-se inclusive, que o
argumento usado pelo Visconde foi a necessidade de se recompensar a província que primeiramente
apoiara a independência nacional” (HIRONAKA in CERQUEIRA, 2008 p. 15).
8
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157
jurídico.
O paradigma de ensino adotado nas Universidades de Olinda e de São
Paulo – estrutura curricular, modelo de aula e doutrina – foi copiado ipsis
litteris do modelo de Coimbra, que já era decrépito para a época (HOLANDA
in CERQUEIRA, 2008). No que intersecta o pensamento jurídico europeu
do século XIX, muito se criticava do descompasso entre Portugal perante os
outros países. Em seu texto “Isto aqui é Coimbrã?”, Oswald de Andrade faz
severas críticas à perspectiva jurídica brasileira:
O vosso mal é um mal coimbrão, um mal portuguez agravado pela
nossa situação de colonia-mental. A nossa velha Faculdade, é como
a de Recife, apenas um pedaço do projeto escolar, que não foi avante
no Primeiro Império e assim reprezou o pensamento brasileiro na
bacharelice.” (sic) (ANDRADE in CERQUEIRA, 2008, p. 53).
As críticas, sapientissimamente colocadas por Andradre, diziam respeito
ao atraso dos conteúdos ensinados. Causado pela permanência do espírito
de colônia e a demasiada influência do ensino religioso – jusnaturalismo.
A consequência disto foi a falta de produção intelectual e a transformação
dos cursos de ciências jurídicas em simples forma de ascensão profissional
(RUDNICKI in CERQUEIRA, 2008). Não nos olvidaremos de que, no período
destas críticas, já haviam passado praticamente cem anos do surgimento das
faculdades jurídicas no Brasil. Durante todo esse processo pouco evoluímos
de fato em nível pedagógico e científico.
Outro marco histórico da educação brasileira foi a publicação do Decreto
nº. 7.247 (BRASIL, 1879), em abril de 1879 pelo Ministro do Império Carlos
Leônico de Carvalho. Em seus vinte e nove artigos, a norma trazia regras tanto
para o ensino primário e secundário – hoje fundamental e médio –, como o
ensino superior – curso jurídico e médico. No curso de direito ressaltamos a
introdução das disciplinas de direito romano, medicina legal e história dos
tratados. Outro fato notável foi a primeira citação da mulher na legislação
educacional superior.
Porém, o avanço ainda estava muito aquém das expectativas. Um
exemplo da vagarosidade evolutiva do pensamento jurídico é a questão da
inclusão da Psicologia. No final do século XIX, Clóvis Beviláqua já criticava
a ausência da disciplina de Psicologia nos cursos de Direito, necessário aos
conteúdos de filosofia do direito e direito criminal. Todavia, a compreensão
da importância dos estudos psicológicos só foi admitida a partir da década de
sessenta e colocada em prática pelo Conselho Nacional de Educação, por meio
da Resolução nº. 9, apenas em 2004 (HOLANDA in CERQUEIRA, 2008):
Art. 5°: O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu
Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos
158
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e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de
formação: I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo
integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito
com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos
que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência
Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia;
(grifamos) (BRASIL, 2004).
A obrigação da introdução da disciplina de Psicologia no currículo
jurídico – discutida há pelo menos um século e só implementada agora – é
apenas um exemplo da vagarosidade em que caminha a evolução na educação
jurídica brasileira na construção de um Direito menos dogmático. Se não
fosse o bastante, esta letargia é somada ao descaso com que muitas vezes são
tratadas essas disciplinas não-jurídico-dogmáticas – de cunho mais zetético.
Esse pensamento retrógrado é empiricamente comprovado no cotidiano
universitário – como algures citado. Consiste em professores, estudantes e
leigos – que de alguma forma se encontram envolvidos na atividade jurídica –
que estão totalmente alheios à importância da não-dogmação jurídica. Diante
disto, só nos cabe citar o famoso mito das irmãs Danaides (BULFINCH, 1967)10
, como metáfora a esta situação mesmística.
2.2. Do Ensino Jurídico Contemporâneo
O início do século XXI significa para a sociedade ocidental um momento
de crise. Fenômeno este que se reflete em todos os estratos da sociedade
– político, religioso, ético, dentre outros. Esta crise é compreendida por
diversos autores como um novo movimento que se intitula pós-modernidade
(SANTOS, 2001). Este contexto somado à tardia e retrógrada tradição jurídica
desenvolvida no Brasil é resultado da nossa atual situação educacional. Pois
há quase uma década de completar duzentos anos, o nosso ensino jurídico é
um espaço de transmissão de dogmas tecnicistas, ideologias e preconceitos de
uma “pseudo-superioridade hierárquica do direito” (CRUZ, 2008, p. 216).
Obviamente que a educação jurídica já começa deficitária pelo próprio
problema da educação fundamental e média, visto que o aluno cresce com um
modelo de conhecimento insular, onde as diversas disciplinas são ensinadas
fragmentadamente e sem nenhuma interconexão (CRUZ, 2008). Além disso,
observamos, em detrimento do legado positivista, a própria redução do
conhecimento humanístico a uma enciclopédia das ciências (REALE, 1983).
Este movimento de fragmentação do conhecimento nos parece uma
demanda própria do homem moderno. Num contexto social de trocas de
informações cada vez mais dinâmico e caótico, vemo-nos obrigados a dividir
todo o conhecimento que apreendemos – não só na escola e na faculdade –
para que ele possa ser processado e introspectado. Este fenômeno faz com
Revista Jurídica FACULDADES COC
159
que, cada vez mais, percamos nossas faculdades críticas e associativas.
2.2.1. Da Interdisciplinaridade e da Transdisciplinaridade Jurídica
Segundo Paulo Freire, ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar
as possibilidades para a sua produção ou construção (FREIRE, 1996). Esta
afirmação traduz com muita competência o verdadeiro propósito da educação.
Ao compararmos essa perspectiva pedagógica freireana, de preocupação com
a efetiva formação do aluno, com o modelo de ensino jurídico que vem sendo
adotado no Brasil, notamos uma grande discrepância.
Um ensino jurídico que se caracteriza por ensinar a lei – por priorizar
sua memorização – é resultado de uma sociedade iníqua. Ao se adotar o
tecnicismo em detrimento da reflexão filosófica, o jurista converteu o direito
em instrumento de resolução de problemas. Em lugar da memorização, os
cursos deveriam investir na capacitação crítica, de maneira a fazer o estudante
a pensar (NALI in CERQUEIRA, 2008).
A formação crítica do aluno é tão fundamental quanto sua formação
profissional propriamente dita. As matérias referentes à atividade prática e
técnica jurídica – e.g.: processo civil, direito penal, direito constitucional –
devem ser propostas de forma o mais interdisciplinar possível. O aluno tem
que ter a certeza de que as disciplinas estudadas por ele se relacionam entre
si. Consequentemente, o direito também se relaciona com as demais áreas do
conhecimento. E todos esses elementos encontram fundamentos na legislação:
Art. 2°.: (…) § 1° O Projeto Pedagógico do curso, além da clara
concepção do curso de Direito, com suas peculiaridades, seu
currículo pleno e sua operacionalização, abrangerá, sem prejuízo de
outros, os seguintes elementos estruturais:
Art. 5°.: O currículo de graduação em Direito deverá contemplar, em
seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos
e atividades que atendam aos seguintes eixos de formação:
I – Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o
estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com
outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que
envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência
Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia
II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do
enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas
as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer
natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo
“Segundo a mitologia grega, as irmão Dadaides assassinaram seus maridos e foram condenadas no
Hades – inferno – a encher um jarro com água. Entretanto, este jarro era furado, então, por mais rápido
que elas trouxessem a água, jamais ele seria enchido.” (BULFINCH, 1967, p. 213)
10
160
Revista Jurídica FACULDADES COC
a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças
sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações
internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros
condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre
Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário,
Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do
Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual (BRASIL, 2004).
A despeito disso, ressaltamos que a interdisciplinaridade não deve
ser encarada como mera inclusão de matérias de cunho zetético no currículo
acadêmico. A introdução dessas disciplinas, que visam dar ao aluno maior
senso crítico e poder de raciocínio, parte da premissa falsa de que elas são
críticas por si mesmas. Quando na verdade se tornam dogmáticas quando
agregadas ao dogmatismo do nosso direito (RODRIGUES in CERQUEIRA,
2008).
A inclusão dessas disciplinas foi de suma importância para a formação
dos estudantes. Sem embargo, a tentativa de programar nossa educação
jurídica por meio de resoluções que recheiam os currículos de matérias – a
priori – extrajurídicas não nos parece ser a melhor solução. Quiçá o fomento à
pesquisa – por meio de grupos de iniciação científica, mestrado e doutorado –
e o aprimoramento da formação docente sejam soluções mais plausíveis.
2.2.2. Do Fomento à Pesquisa
O descaso estatal que a educação sofria até poucas décadas não se
resumia apenas à falta de incentivo em relação à formação pedagógica dos
docentes. As poucas instituições que dispunham de pós-graduação dificultava
a ascensão acadêmica dos professores. Por outro lado, a continuidade da
carreira de pesquisador não deve ser encarada como vaidade, uma vez que
a pesquisa é inerente para a atividade da docência. Nas palavras do saudoso
Paulo Freire:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses fazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continua
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer
o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade
(FREIRE, 1996, p. 29).
A falta de incentivo à pesquisa é uma realidade em diversas faculdades
de Direito. É comum que um aluno, passado cinco anos frequentando
diariamente o ambiente universitário, forme-se sem ter uma noção satisfatória
do que seja pesquisa (CRUZ, 2008). Dois fatores podem explicar esta situação:
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161
o precário investimento na área da pesquisa por parte da instituição, ou a total
inexistência desta; e a incipiente experiência dos docentes como pesquisadores.
Porém, a legislação é categórica a este respeito:
Art. 43. A educação superior tem por finalidade:
(…)
III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica,
visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e
difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do
homem e do meio em que vive;
(…)
VII - promover a extensão, aberta à participação da população,
visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação
cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição
(negritamos) (BRASIL, 1996).
O que se tem observado no meio jurídico acadêmico, felizmente, sendo
alvo de várias críticas, é a demasiada quantidade de produção acadêmica
meramente reprodutora dos conteúdos legais e doutrinários. Essas paráfrases,
não obstando o intuito nobre de facilitar o entendimento jurídico, carecem de
análise crítica e de inovação.
A superação deste status quo depende, mormente, da adoção
de um paradigma de pensamento que esteja dirigido à ideia de que o
compartilhamento é fundamental na estruturação do saber e de que a verdade
só pode ser concebida como fruto da dialogicidade. Ademais, é fundamental
a atuação e o incentivo à pesquisa como catalisador de uma evolução da
educação jurídica no Brasil (BITTAR in MENDONÇA, 2009).
Não há dúvida de que o incentivo à pesquisa é importante, tanto por
parte dos professores para com os alunos, como das instituições de ensino para
com os professores. Todavia, é evidente que a prática profissional é também
fundamental, o direito não pode ficar só no campo das ideias. Em momento
algum negamos a importância das disciplinas pertinentes a essa atividade –
que são justamente os conhecimentos que consideramos dogmáticos dentro
do curso de direito. No entanto, devemos sopesar em que medida podemos
aliar a atividade da pesquisa com a prática profissional.
2.2.3. Das Demandas do Mercado de Trabalho e do Objetivo com a Educação
Jurídica
O direito tem por objetivo primordial zelar pela organização social,
através do regramento do comportamento humano. Muito desses imperativos
normativos se materializam na lei, tornam-se jurisprudências, súmulas, ou
simplesmente permanecem como costume. Reconhecer esses institutos requer
162
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uma aprendizagem da área dogmática do direito. Necessariamente, saber
operar o direito é ter consciência de sua técnica.
Não obstante, espera-se de um curso de direito, além de toda sua
formação dogmática, o desenvolvimento das aptidões críticas, consciência
dos valores de ética, justiça e realidade social (COSTA, 2001). Pois de outra
maneira seria impossível a formação satisfatória de um operador do direito
que tivesse razoável pensamento lógico e humanístico. O bacharel precisa de
uma formação que lhe dê autonomia intelectual, necessidade básica não só
para sua vida profissional. Neste sentido, a disposição que regula as Diretrizes
Curriculares assevera:
Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil
do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica,
capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia
jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização
dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva
e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a
aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da
Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da
cidadania (BRASIL, 2004).
Novamente voltamos à questão do educador. Parece difícil que essas
competências e habilidades possam ser desenvolvidas nos alunos de direito
por professores que não possuam uma formação docente sólida e cuidadosa
(CARLINI in CERQUEIRA, 2008). O início da docência já pressupõe o ingresso
na pós-graduação. Contudo, muitas vezes a própria carreira de pesquisa –
com o mestrado e o doutorado – não traz embasamento suficiente para esta
formação.
O curso de direito não pode ser passivo-dependente do mercado de
trabalho (RODRIGUES in CERQUEIRA, 2008). O professor, preso pela sua
atividade profissional – e.g.: advocatícia, magistratura ou promotoria –, não
consegue se desfazer de seu pensamento tecnicista e sistemático. A docência
requer mais do que a singela vontade de ensinar. É primordial que haja, além
do óbvio conhecimento da área lecionada, uma notória habilidade didática e
pedagógica.
2.2.4. Do Papel do Professor Frente às Adversidades
Acreditamos que o papel do professor em nossa sociedade complexa
é – ou deveria ser - o de promover a emancipação do homem, ao estimular
o desenvolvimento das potências intelectuais” (MENDONÇA, 2011). No
processo de educação, a relação entre aquele que ensina e aquele que aprende
é a mesma em todas as sociedades, a grande diferença está no modo como
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163
estes resultados afetarão a vida deste indivíduo e sua relação com os outros
(BRANDÃO, 1983)11. O professor deve ter consciência de que ao mesmo tempo
em que é agente ativo no processo de aprendizagem, também é agente passivo.
Quem proporciona saber também apreende e deve buscar cada vez mais o
conhecimento, tanto na teoria, quanto na prática, características fundamentais
da docência em quaisquer esferas, inclusive a jurídica.
A despeito dessa relevância, o que observamos é uma notória inércia
dos professores em se dedicarem às atividades de pesquisa. Não estamos
falando apenas da continuidade da pós-graduação – doutoramento e pósdoutoramento – e dos cursos de especialização lato sensu. A produção
científica – seja por meio de artigos ou livros –, ou mesmo a participação em
congressos e bancas, por exemplo, é basilar à docência.
Grosso modo, os professores de direito não tem qualquer tipo de
formação pedagógica, muitas vezes nem terminaram o processo de
pós-graduação. (…) Não é raro achar professores que adotem um
único doutrinador há anos, ministrando suas aulas unicamente por
este (CARLINI in CERQUEIRA, 2008, p. 337).
Muito da ineficácia e obsoletude da educação jurídica no Brasil se deve
ao próprio modelo adotado (RODRIGUES in CERQUEIRA, 2008). Nosso
espírito colonialista e imaturidade política fizeram com que optássemos pelo
paradigma mais próximo. Ademais, grande parte dos juristas brasileiros era
formada em Coimbra e já estavam acostumados com sua doutrina. Todavia,
quase que duzentos anos depois da primeira aula de direito, ainda percebemos
as mesmas falhas de sua origem.
A aula-conferência, modelo importado lusitano, exempli gratia, é alvo
de críticas até hoje. De acordo com os críticos, as aulas meramente expositivas
não influenciam os alunos de modo crítico, fazendo deles apenas espectadores
passivos. Data venia, discordamos deste pensamento. Acreditamos que pouco
importa o estilo da aula, tudo depende do modo como o professor a direciona:
Com relação à questão da aula-conferência, no lugar de outras
estratégias didático-pedagógicas mais participativas, reside aí uma
falsa questão. A aula dialogada, o seminário, ou qualquer outra
forma de aula participada pode ser tão autoritária e dogmática
quanto a preleção. (…) Isto, pois:
a) o aluno, em geral, não tem conhecimento suficiente dos temas
para superar a visão dos professores;
“Ela [educação] ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar
de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo
de produção de crenças ideias, de qualificações e especialistas que envolvem as trocas de símbolos, bens
e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta é a sua força” (BRANDÃO, 1983, p.
11).
11
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b) de qualquer forma o professor continua sendo o mediador do
processo (CARLINI in CERQUEIRA, 2008, p. 338).
O professor autêntico limita-se a equacionar os problemas emergentes,
oferecer informações atualizadas e discutir as propostas que lhe pareçam
cabíveis; mas não impõe o seu ponto de vista. Ao contrário, estimula o espírito
crítico, ajudando cada um a descobrir o seu próprio rumo (RODRIGUES in
CERQUEIRA, 2008). Deste modo, mesmo a pluralidade de métodos é ineficaz.
O fator determinante na qualidade da aula é a perspectiva zetética do direito. O
melhor professor é aquele que constantemente se indaga, buscando respostas.
O domínio do conhecimento é importante, mas sempre deve estar atrelado a
este pensamento. A interdisciplinaridade também é relevante ao educador,
pois é por meio dela que se fazem os paralelos com outros contextos.
Acreditamos que a superação deste modelo está na “formação
de professores enquanto intelectuais transformadores” (WANDER in
CERQUEIRA, 2008). Neste diapasão, há pouco o que se criticar na omissão do
Estado ou mesmo nas instituições de ensino. A ideologia dos professores é o
que mais influencia o ambiente universitário. Destarte, enquanto não houver
uma efetiva modificação no pensamento deles continuaremos com a mesma
mentalidade dogmática e tecnicista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esquecendo a rica cultura milenar dos povos indígenas, não podemos
evitar o lugar-comum e afirmar que o Brasil – de meio milênio de civilização
moderna – ainda é um país efebo. Agregado a nossa história colonial e
escravagista, é evidente que nosso desenvolvimento intelectual e científico
seja deficitário. Entrementes, nossa tradição jurídica não poderia ser menos
original, ainda mais se sopesarmos que temos apenas dois séculos de ensino
jurídico formal.
A falta de maturidade científica incide axiologicamente na educação
jurídica, criando um crítico estado de insegurança. Obviamente que esta
problemática vai muito além das meras atividades acadêmicas. Ela está
inserida justamente na concepção dogmática de direito, criando um nefasto
estado de vassalagem frente ao decrépito modelo educacional adotado.
Nossa intenção não é, em absoluto, o total desprezo ao conhecimento
técnico e a dogmática jurídica. Uma vez que o objeto cognoscível “direito” tem
por essência um caráter normativo e hipotético, sendo impossível sua total
descaracterização como conhecimento de dogmas. Portanto, não defendemos
uma mudança deste aspecto intrínseco, mas sim, a mudança do pensamento
cognoscente. Por isso, nosso estudo tem como objetivo demonstrar a
importância da maior participação do modelo zetético de direito na vida
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165
acadêmica.
Em epítome, cogitar uma hipotética emenda às diretrizes curriculares
de nossos cursos, implementando mais matérias de cunho zetético; juntamente
com a reforma do modelo pedagógico, quiçá seria um primeiro passo. Não
obstante, de pouco adiantaria sem a efetiva participação de cada educador
e aluno na construção de uma nova perspectiva de ensino, uma vez que a
idiossincrasia deste funesto dilema reside em nossa própria ideologia de
direito, a qual está impregnada em todos os meios de conhecimento jurídico e
no espírito de cada estudante, jurista e leigo deste país.
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HOMOCONJUGALIDADE E
HOMOPARENTALIDADE: REGULAMENTAÇÕES
JURÍDICAS DAS UNIÕES ENTRE PESSOAS DO
MESMO SEXO
LETÍCIA DUARTE HERNANDEZ 1
ELIZABETE DAVID NOVAES 2
KARINA PRADO FRANCHINI BIZERRA 3
Resumo
Buscou-se realizar uma análise acerca da realidade da união homoafetiva,
especialmente a partir das garantias normativas pertinentes a tal fenômeno
social. Enfatizou-se a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em
2011, quando a Suprema Corte reconheceu como entidade familiar a união
homoafetiva, atribuindo-lhe as mesmas regras e consequências aplicadas à
união estável heteroafetiva. As entrevistas realizadas com sujeitos sociais que
vivenciam relações homoafetivas permitiram a constatação de que embora o
direito muito tenha avançado, os homossexuais ainda anseiam pelos mesmos
direitos e garantias fundamentais assegurados aos heterossexuais.
Palavras-Chave: União homoafetiva; Família; Direitos e garantias
fundamentais.
1. APRESENTAÇÃO DO TEMA
No decorrer da história da humanidade, as constantes alterações na
estrutura sociocultural ocasionaram mudanças nas relações humanas e, por
consequência, na organização das entidades familiares.
Apesar de a homossexualidade existir em diferentes contextos históricos,
e em diferentes culturas, em nossa sociedade contemporânea ainda tem sido
possível observar que as pessoas que mantêm relações com companheiros do
mesmo sexo não desfrutam dos mesmos direitos e garantias constitucionais e
legais que são assegurados a casais heterossexuais.
A importância do tema dá-se especialmente pelo fato de que
“A homossexualidade não se limita mais aos homossexuais. Hoje, a
homossexualidade diz respeito a todo mundo, porque ela nos obriga a
confrontar questões que se tornaram centrais para todos nós.” (CASTAÑEDA,
2007, p. 13). Em decorrência da atualidade do tema, consideramos adequado e
relevante desenvolvermos uma pesquisa de campo acerca da problemática da
união homoafetiva, complementada por um estudo teórico, de modo que haja
uma melhor compreensão sobre essa temática ainda marginalizada no âmbito
jurídico e social.
O desenvolvimento da pesquisa realizada deu-se no sentido de analisar
os subsídios doutrinários para a compreensão e defesa jurídica acerca da
homossexualidade e das relações homoafetivas, especialmente no que
concerne à homoconjugalidade e homoparentalidade, visto que se trata de
168
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novas formas jurídicas de regulamentação dos relacionamentos sociais e
composição familiar.
Para tanto, buscou-se, de forma mais específica, levantar e analisar
as percepções sociais de homossexuais acerca da problemática da
homoconjugalidade; verificar se a igualdade, constitucionalmente prevista,
vem sendo assegurada de forma efetiva pelo ordenamento jurídico; e, assim,
verificar quais os elementos presentes na dogmática jurídica que demonstram
a união entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e não como
uma mera sociedade de fato.
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para cumprir com os objetivos propostos, foi realizada pesquisa teórica e
empírica, por meio da qual se buscou estabelecer uma comparação entre o que
ocorre na realidade de fato (a existência da união entre iguais) e o que existe
na realidade do âmbito jurídico, em termos de garantias normativas.
A pesquisa empírica obedeceu a uma metodologia qualitativa de
levantamento e análise de dados. Numa primeira etapa do trabalho, foram
realizadas entrevistas com homossexuais. Essas entrevistas possibilitaram
conhecer o que tais sujeitos investigados pensam sobre a homossexualidade,
o que sabem a respeito dos direitos que possuem enquanto companheiros
de outra pessoa do mesmo sexo. Os entrevistados foram escolhidos
aleatoriamente por meio de uma rede informal de contatos sociais. Cada um
deles foi entrevistado isoladamente, para que eventuais constrangimentos ou
inibições fossem evitados, garantindo desse modo respostas mais fidedignas
às questões formuladas.
A pesquisa teórica, por sua vez, voltou-se para a análise acerca da
problemática de gênero, bem como para uma compreensão conceitual acerca
da homoconjugalidade e da homoparentalidade, bem como uma compreensão
jurídico-doutrinária sobre tal fenômeno. Para tanto, recorreu-se a uma
metodologia descritiva, no sentido de estudar e descrever as características,
limitações e especificidades existentes no ordenamento jurídico, no que se
refere à problemática em pauta.
3. RECORTE CONCEITUAL
3.1. Homoconjugalidade
O fenômeno da homossexualidade apresenta-se em nossa sociedade
como um modo diferente de ser, sendo que todos os efeitos dela decorrentes
ainda são incertos e não plenamente conhecidos pela sociedade, de modo que,
Revista Jurídica FACULDADES COC
169
usualmente, se associa a homossexualidade à promiscuidade. Entretanto, a
homoconjugalidade, entendida como a relação afetiva e sexual mantida por
duas pessoas do mesmo sexo, possibilita que preconceitos sejam desfeitos e
que idéias sejam revistas, dado que, assumindo a condição de relação estável,
ganha o status de aceitação e reconhecimento da sociedade. Isto ocorre
especialmente porque o casal que mantém uma relação homoafetiva, ao
apresentá-la a todos como uma relação sólida e baseada em vínculos afetivos
e interesses comuns, procura demonstrar que vivencia experiências cotidianas
semelhantes, senão iguais, às dos casais heterossexuais.
Nota-se, atualmente, que há uma aceitação maior dos casais
homossexuais. No entanto, “(...) o que os casais heterossexuais aceitam cada
vez mais não é necessariamente a homossexualidade em si. Estão dispostos
a tolerar indivíduos e casais homossexuais desde que se assemelhem ao
modelo heterossexual.” (CASTAÑEDA, 2007, p. 204). Pode-se dizer que
isso ocorre porque “nada incomoda mais as pessoas do que a preferência
sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da
heterossexualidade.” (BRITTO, 2011, p. 4).
Constata-se, portanto, que não há fatores impeditivos para que as
relações homoafetivas tenham os mesmos direitos pertencentes aos casais
heterossexuais, como, por exemplo, a possibilidade de reconhecimento de
sua união, a constituição de uma família e a proteção jurídica que ampara as
pessoas que mantêm uma relação heteroafetiva.
3.1. Homoparentalidade
Elizabeth Zambrano (2006) afirma que o fato de a família desempenhar
uma função fundamental na reprodução biológica e social, colocando-se como
um núcleo organizador essencial em nossa sociedade, ocasiona a tendência
a considerá-la também universal, com um padrão aparentemente único de
configuração e existência. A autora ressalta que:
A maioria dos antropólogos concorda que uma instituição chamada
“família” é encontrada em praticamente todas as sociedades, mas
sua configuração é tão variada que pode ser ou não considerada
universal, dependendo da forma como for definida (ZAMBRANO,
2006, p. 11).
Por sua vez, também Maria Berenice Dias (2010), reforça a ideia de que
a família natural não corresponde de forma absoluta à família juridicamente
regulada. A família natural preexiste ao Estado e está acima do direito.
A família é uma construção cultural. Dispõe de estruturação psíquica
na qual todos ocupam um lugar, possuem uma função – lugar
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Revista Jurídica FACULDADES COC
do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos -, sem, entretanto, estarem
necessariamente ligados biologicamente. É essa estrutura familiar
que interessa investigar e trazer para o direito. É a preservação do
LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e Respeito
(DIAS, 2010, p. 27) (destaques do original).
Tendo em vista que as relações humanas baseiam-se em vínculos afetivos
e não apenas em fatores biológicos e de parentesco, podem ser verificadas
inúmeras formas de estruturação familiar em nossa sociedade, o que exige
que o conceito de família não seja limitado a apenas uma dessas formas, dadas
as diferentes estruturas familiares existentes.
Para se referir a uma estrutura familiar composta por pares homoafetivos,
surge o termo “homoparentalidade”, referente a “um neologismo criado em
1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), em Paris,
nomeando a situação na qual um adulto que se autodesigna homossexual é
(ou pretende ser) pai ou mãe de, no mínimo, uma criança.” (ZAMBRANO,
2006, p. 10).
A homoparentalidade pode ser feminina ou masculina. Na atualidade, a
ciência e a tecnologia possibilitam considerarmos duas mulheres como mães,
através da técnica de inseminação com sêmen doado a uma delas. Em famílias
assim constituídas, por duas figuras femininas, ocorre, inevitavelmente, uma
transformação dos conceitos e das posições ocupadas pelos membros das
famílias tradicionais. Há uma clara separação entre a filiação biológica e a
socioafetiva, sendo a primeira muitas vezes superada pela segunda, posto ser
a afetividade considerada como fator fundamental para a constituição de uma
relação familiar estável. As Famílias assim constituídas divergem do modelo
tradicional, o que exige um reconhecimento social, não preconceituoso.
Da mesma maneira que a feminina, a homoparentalidade masculina
também existe na sociedade contemporânea. Quando dois homens decidem
ter um filho, a situação é um pouco mais complexa, posto necessitarem da
doação de embriões, além de um útero alheio para gerar a criança.
As relações de parentesco sofrem transformações de acordo com a
evolução da sociedade e seus conceitos tradicionais passam a ser objeto de
constantes reflexões. O elemento fundamental da Família contemporânea é a
afetividade como um sentimento natural, que não decorre do que estabelece a
lei, mas sim da convivência cotidiana entre os seus membros, o que independe
da opção sexual de cada um deles. A sociedade contemporânea passa por
momentos de mudanças de paradigmas, o que gera incertezas e indefinições
que refletem diretamente na Instituição Familiar. Há necessidade de uma
postura reflexiva para resgatar o verdadeiro sentimento do justo e enfrentar
estas incertezas.
Vale lembrar os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos que afirma:
Revista Jurídica FACULDADES COC
171
Um período histórico é uma mentalidade. É um período histórico
que não se sabe bem quando começa e muito menos quando acaba.
É uma mentalidade fraturada entre lealdades inconsistentes e
aspirações desproporcionadas entre saudosismos anacrônicos
e volutarismos excessivos. Se, por um lado, as raízes ainda
pesam, mas já não se sustentam, por outro, as opções parecem
simultaneamente infinitas e nulas. A transição paradigmática é,
assim, um ambiente de incerteza, de complexidade e de caos que
se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e
nas ideologias, nas representações sociais e nas inteligibilidades, na
vida e na personalidade (SANTOS, 2000, p.51-52).
É notória a resistência da admissão da família homoparental, pois o senso
comum acredita que a criança pode sofrer danos futuros irreparáveis pela
ausência da referência de comportamentos e traços de personalidade de um
dos sexos (masculino ou feminino). A sociedade teme que a criança suporte
abalos psicológicos ao ser criada por dois pais ou duas mães.
Também há o mito de que os filhos de homossexuais teriam a
tendência a se tornarem homossexuais. Mas vale lembrar que os
homossexuais são frutos de relacionamentos heterossexuais; logo,
não há relação direta entre aquilo que se vive, a formação e uma
escolha futura (DIAS, 2009, p. 211).
Não existe comprovação acerca da predisposição de filhos de
homossexuais se relacionarem afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo
sexo em virtude da convivência com seus pais gays ou suas mães lésbicas.
Como pontua Elizabeth Zambrano, “O temor de que a orientação sexual dos
filhos de homossexuais seja, também, homossexual, além de não encontrar
suporte nos resultados das pesquisas, demonstra que essa questão é, em si
mesma, preconceituosa” (ZAMBRANO, 2006, p. 26).
3.2. Regulamentações Jurídicas da Homoparentalidade
No que se refere à filiação proveniente de uma relação homoafetiva,
no Brasil não há norma jurídica que a vede ou a autorize expressamente.
Considerando-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código
Civil não determinam restrições quanto ao sexo, estado civil e à orientação
sexual do adotante, e que o legislador preocupa-se com o bem-estar da criança
sujeita à adoção, “(...) nenhum motivo legítimo existe para deixá-la fora de
um lar. Constituindo os parceiros – ainda que do mesmo sexo – uma família,
é legítimo o interesse na adoção, não se podendo deixar de ver a existência de
reais vantagens a quem não tem ninguém” (DIAS, 2009, p. 214).
Por sua vez, é importante considerar que embora biologicamente não seja
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possível que um casal de lésbicas e um casal de gays tenham filhos gerados
a partir de relações sexuais, há a possibilidade de homossexuais terem filhos
por outros métodos. A esse respeito, foi observado por Miriam Pillar Grossi
(2003), que um casal de pessoas do mesmo sexo pode ter filhos das seguintes
formas: 1) uma das partes, no decorrer de um relacionamento heterossexual,
gera uma criança, e em momento posterior, sua homossexualidade vem a
ser assumida/percebida; 2) um casal homoafetivo adota uma criança; 3) um
indivíduo alheio à relação homoafetiva procria uma criança por meio da
utilização de tecnologias como, por exemplo, a inseminação artificial, que
pode ser utilizada pelas lésbicas, e pela barriga de aluguel, no caso dos gays;
4) uma lésbica se relaciona sexualmente com um gay e procriam uma criança.
Vale salientar, como faz Miriam Pillar Grossi (2003, p. 274) que: “No
Brasil, não há qualquer restrição à inseminação artificial de lésbicas.” No que
diz respeito à coparentalidade, um casal de lésbicas recorre a um gay, para
que uma das mulheres tenha relação sexual com ele, possibilitando assim que
ela fique grávida e depois do nascimento da criança elas criem seu filho do
modo como julgarem adequado, dando-lhe afeto e noções dos valores que
devem reger sua vida; ou um casal de gays procura uma lésbica, para que ela
engravide e a criança gerada seja dada ao casal, para que ele a crie de acordo
com seus valores e suas condições.
3.3. Regulamentações Jurídicas da Adoção em Face da Homoparentalidade
Em relação à adoção, disciplinada pelo ECA - Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), não há qualquer vedação imposta pelo
mencionado estatuto para que homossexuais possam realizá-la. Isso porque
está disposto em seu artigo 42, caput, que: “Podem adotar os maiores de 18
(dezoito) anos, independentemente do estado civil”. Ademais, nos termos
do artigo 42, parágrafo 2º: “Para adoção conjunta, é indispensável que os
adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada
a estabilidade da família”.
Por sua vez, considerando a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal
Federal, que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar e
atribuiu-lhe todas as características e regras da união estável heteroafetiva, é
possível que um casal, de mulheres ou de homens, que mantém uma relação
duradoura, pública e contínua, com o intuito de constituir uma família, adote
uma criança, desde que preenchidos os requisitos legais. A Constituição
Federal enquanto Lei Fundamental do Estado deve ser interpretada de
forma a contemplar os fatos concretos da vida. Ou seja, a Constituição está
condicionada pela realidade histórica e concreta do momento.
A dignidade humana, como princípio jurídico, deve ser obrigatoriamente
Revista Jurídica FACULDADES COC
173
observada por todos os profissionais do Direito e pelos membros da sociedade.
Todo ser humano tem direito de ter reconhecida a sua dignidade humana,
inclusive as crianças, os adolescentes e os homossexuais. É de conhecimento
de todos que milhares de crianças e adolescentes são vítimas de maus-tratos e
passam a viver em abrigos ou nas ruas por muito tempo. Para a maioria deles
os abrigos transformam-se em situação definitiva, e lá permanecem, sem estar
inseridos no convívio de uma família estável, até completarem 18 (dezoito)
anos.
A Constituição Federal de 1988 estabelece como dever da família, da
sociedade e do Estado, a proteção da criança. O Estatuto da Criança e do
Adolescente prevê que não sendo possível manter a criança ou o adolescente
no seio da família de origem, deverá ser colocado em família substituta,
enfatizando-se nestes casos, os laços de afeto e não os laços de sangue. Neste
sentido, diante da realidade de várias crianças e adolescentes, cujos vínculos
familiares encontram-se falidos, devemos considerar que homossexuais
solteiros ou casais que têm constituídas uniões homoafetivas podem dar um
desenvolvimento digno a estes menores. A verdadeira filiação não se determina
pela genética, mas sim pelos laços de afeto que se constroem, principalmente
no caso da adoção.
A sociedade e o Estado não podem fechar os olhos ao sofrimento destes
menores que vivem em abrigos, privados da convivência familiar, mas sim,
devem ter a responsabilidade de buscar sempre o melhor interesse da criança.
4. A VIVÊNCIA DA HOMOAFETIVIDADE E AS RELAÇÕES DELA
DERIVADAS
Para tratar desse tópico referente às vivências da homoafetividade,
recorreu-se à pesquisa empírica, por meio da qual foram entrevistas pessoas
inseridas em relacionamentos homoafetivos. Foram realizadas entrevistas na
cidade de Ribeirão Preto, em janeiro de 2011, mediante uma seleção aleatória
feita a partir de uma rede de contatos informais com os sujeitos investigados.
Seguiu-se um detalhado roteiro de questões, que serviram de base para o
desenvolvimento das 5 (cinco) entrevistas gravadas, realizadas com 2 pessoas
do sexo feminino e 3 pessoas do sexo masculino, estando todos na faixa etária
de 21 a 30 anos.
Cada pessoa foi entrevistada individualmente, como forma de evitar
possíveis constrangimentos ou até mesmo respostas não correspondentes ao que
os homossexuais pensam. Por uma questão ética, os nomes dos entrevistados
não são divulgados, mesmo porque esta identificação não representa
nenhuma espécie de interesse neste trabalho. Para efeitos de organização e
sistematização dos depoimentos, os entrevistados foram identificados com
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letras A e B (entrevistadas sexo feminino); C, D, E (entrevistados do sexo
masculino).
Como a metodologia da pesquisa empírica é qualitativa, percebeu-se que
com a realização das 5 entrevistas a temática pôde ser esgotada, a medida que
os entrevistados forneceram informações bastante aprofundadas acerca de
suas vivências na homoafetividade. Das entrevistas realizadas foram extraídos
os seguintes tópicos de análise: a identidade homoafetiva, as discriminações
sofridas; expectativas sobre conjugalidade e parentalidade homoafetiva, os
quais são teoricamente discutidos a seguir.
4.1. A Identidade Homoafetiva
A sociologia há muito aponta para o fato de que a identidade do
indivíduo é socialmente construída. Do mesmo modo, Castañeda (2007, p. 20)
afirma, ainda, que “A identidade homossexual não é dada. Constrói-se aos
poucos e nem sempre se expressa da mesma maneira: muda de acordo com
o contexto imediato e os momentos da vida”. Isso significa que a percepção
da homossexualidade por uma pessoa pode ocorrer em diferentes ocasiões de
sua vida. Tudo depende das experiências que ela já vivenciou, das vontades
que já reprimiu por medo ou receio de não aceitação da família e da sociedade,
das pessoas com as quais ela se relaciona, do ambiente no qual ela vive, se ele
possibilita ou não a manifestação de suas vontades e desejos. Em razão disso
existem pessoas que se identificam como homossexuais quando são jovens e
solteiras e outras quando são mais maduras, independente de seu estado civil.
É o caso, por exemplo, da Entrevistada A, que descreveu o processo de
descobrir-se homossexual e aceitar-se como tal:
Foi gradativo, demorou dois anos. Essa demora aconteceu para eu
me conhecer, me entender, me aceitar, porque depois que eu me
senti à vontade comigo mesma, sabendo o que eu queria, foi mais
fácil. Fui jogando devagar pra minha mãe as coisas, mudando os
hábitos. Provocando minha mãe aos poucos pra ver a reação dela.
E uma das coisas que me ajudou a assumir foi a minha 1ª Parada
Gay, porque eu não fui lá pra brincar, eu cheguei em casa com uma
sensação de conscientização. Eu não queria mais mentir pra minha
mãe, esconder isso dela.
Para o Entrevistado D houve também uma fase transitória, repleta de
mudanças, para que ele pudesse entender melhor a forma como é e assumi-la
para a sociedade:
Foi solitário. Tive que abandonar os meus dogmas religiosos, tive
que buscar argumentos contra a religião cristã, tive que provar que o
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errado da história não era eu, tive que me ascender financeiramente.
Tive que estudar e tive que me ascender intelectualmente. Esse
processo foi árduo. Hoje sou muito mais tranquilo, reflito mais.
Entretanto, para o Entrevistado E assumir-se homossexual para a família
foi um fato natural e repentino, mas expor sua homossexualidade aos amigos
requereu mais cautela:
Eu pensava como seria esse dia, mas foi do nada, por causa de uma
briga com minha mãe a respeito de uma conta de telefone. Para a
família foi do nada, não foi algo programado. Para os amigos foi um
pouco mais pensado.
Nota-se que o principal problema decorrente da homossexualidade não
reside no fato de ser uma orientação sexual diferente da comumente vivida
por todas as pessoas, e sim, na dificuldade de assumi-la perante si mesmo e
diante dos outros. Portanto, como aponta Castañeda (2007), poderíamos dizer
que a homossexualidade provoca, em certas condições, conflitos psicológicos.
Nas palavras da autora:
Assumir-se homossexual não parece uma volta ao lar, mas, antes,
um exílio. (...) o homossexual que se assume como tal não tem
nem modelos, nem experiência, nem aprendizagem anteriores (...).
Descobre que entra subitamente em um país desconhecido, sem
mapa nem indicações, no qual precisará viver (CASTAÑEDA, 2007,
p. 46).
A este respeito, o depoimento do Entrevistado C, é elucidativo:
Foi muito traumático, porque eu mesmo não me aceitei de primeiro
momento. Achei que haveria rejeição da minha família.
Alguns entrevistados, indagados sobre como foi a descoberta de sua
homossexualidade, assim se manifestaram:
No 3º colegial eu conheci uma colega de classe e eu não conseguia
ter uma conversa com ela. Só com ela que eu travava todas as vezes.
E de noite eu ainda tinha sonhos com essa menina. E ficou meio
que um amor platônico durante o ano inteiro. Ai passou uns dois
anos e eu conheci uma pessoa da minha classe também, que era
assumidamente gay, e comecei a me interessar pelos assuntos dela.
E ela me envolveu e nós acabamos ficando. (...) Não gosto muito de
rótulos, mas sinto atração por pessoas do mesmo sexo e o papo flui
muito mais no ambiente gay do que no ambiente normal, me sinto
mais à vontade. (ENTREVISTADA B)
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Revista Jurídica FACULDADES COC
De uma forma bem simples, uma garota mais velha me conquistou
emocionalmente. Num primeiro momento foi uma coisa muito
emocional, não foi atração física. Quando isso aconteceu, eu
comecei a me considerar bissexual. Até que em dois anos depois, eu
percebi que perdi totalmente o interesse por homens. Perante isso,
eu me assumi lésbica perante minha família e a sociedade. (...) me
sinto atraída completamente por mulheres. Homossexuais pensam
de forma diferente de hetero. Eu penso como gay. Ser héteroé um
pressuposto, pra ser gay você tem que se manifestar. Caso eu não o
fizesse, é como se eu estivesse me negando. (ENTREVISTADA A)
Conflitante, pois eu era evangélico e era muito fanático porque eu
tentava me esconder atrás da religião. Desde a infância eu sabia
que eu era diferente da maioria. Sempre me dei muito bem com
as professoras e não com meus colegas de sala de aula. Sempre
estive em grupos de pessoas mais velhas porque era o grupo que
me acolhia. O meu objetivo sempre foi agradar os outros, uma
busca muito grande por aceitação. E o meu perfil era de menino
bom, educado, estudante, legal, gracinha, que respeita, que não fica
correndo, pulando, brincando, mais sensato. (ENTREVISTADO D)
Embora o Entrevistado E, tenha afirmado: “Não, foi super tranquilo,
sempre me aceitei bem, nunca tive problema com isso”, nota-se que o processo
de percepção e aceitação da identidade homoafetiva mostrou-se bastante
complicado para a maioria dos entrevistados.
4.2. Discriminações Sofridas
A discriminação deve ser percebida como a manifestação concreta do
preconceito, ou seja, o preconceito manifesto em ações, e a intensificação
da discriminação contra o homossexual aparece como atitude homofóbica.
De acordo com a psicoterapeuta Marina Castañeda (2007) a homofobia tem
como função tornar legítima a orientação sexual do heterossexual perante a
sociedade, bem como permitir a negação de qualquer desejo homoerótico.
Segundo a autora, isso ocorre com base na projeção - mecanismo de defesa
inconsciente por meio do qual lançamos a outros sentimentos, valores,
pensamentos que não aceitamos em nós mesmos.
Investimos os outros com as tendências ou desejos homossexuais
que não podemos ou não queremos ver em nós mesmos: a projeção
homofóbica faz com que os homossexuais sejam sempre os outros.
Assim, a homofobia “salva” o heterossexual da homossexualidade
(CASTAÑEDA, 2007, 147).
A existência da discriminação em virtude da orientação sexual ou
identidade de gênero é fato corriqueiro, que ocorre tanto no seio da família
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quanto em nossa sociedade, predominantemente machista e heterossexual.
Como afirmam os entrevistados, a discriminação pode ser direta ou indireta:
Aconteceu dentro da minha família uma única vez, em que meu
pai, meu irmão e minha madrinha se rebelaram contra minha ex,
ofendendo a mim e a ela. Disseram que a sociedade não aceita esse
tipo de relação, porém, a única sociedade visível ali era a minha
própria família e não qualquer outra pessoa. A minha madrinha
tem 51 anos, todos da minha família sabem que ela é gay, porém
ela não se assume. Minha família começou a desconfiar, pois dos 5
irmãos, ela é a única que não é casada e aparece temporariamente
com algumas “amigas”, que da mesma forma que aparecem, saem
da vida da minha madrinha, como se nunca tivesse existido um
vinculo de amizade (ENTREVISTADA B).
A minha mãe teve uma atitude discriminatória por causa da religião
dela. E minha avó paterna também, por causa de seus princípios.
Hoje minha mãe aceita normal e minha vó “tampa o sol com a
peneira”. Me trata bem, mas vive rezando para ver se isso passa.
Ela acha que isso é fase (ENTREVISTADO C).
(...) as crianças da minha idade me discriminavam muito. Sofri
discriminação desde criança, inclusive na família, parentes
(ENTREVISTADO D).
Eu nunca sofri nada direto, mas já vi colegas e pessoas desconhecidas
sofrerem. E já tive reação de ódio, raiva, vontade de matar a pessoa
(ENTREVISTADO E).
Curioso atentar para o fato de que a homossexualidade feminina muitas
vezes é considerada por heterossexuais, especialmente por homens, como uma
característica decorrente de frustração sexual ou frustração amorosa vivenciada
pela mulher em relação a um homem. A esse respeito, a Entrevistada A, que
também já sofreu discriminação por ser lésbica, afirma:
Têm certas coisas que a gente tem que engolir, às vezes a gente
tem muitos argumentos pra lidar com isso, mas as pessoas têm
preconceitos e não estão interessadas em ouvi-los (os nossos
argumentos), mas enquanto eu puder deliberar sobre isso, eu vou
fazer. Mas acontece muito ainda. Uma coisa que me ofende muito
são os homens, quando eles dão em cima, de uma forma agressiva,
eles não te respeitam como lésbica. E fazem piadas do tipo: “você é
lésbica porque não teve um cara que não te fez mulher direito.” Isso
me incomoda muito, é muito desagradável.
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4.3. Expectativas Sobre Conjugalidade e Parentalidade Homoafetiva
A pesquisa empírica realizada para o desenvolvimento deste trabalho
contou com a colaboração e as informações de homossexuais que não são
casados, sendo que apenas alguns deles mantêm uma relação mais estável
com outra pessoa. Assim, os depoimentos expressaram desejos de alguns
entrevistados em constituir uma família, bem como a importância e o interesse
que eles têm no reconhecimento e no amparo efetivo da união homoafetiva
pelo ordenamento jurídico e pela sociedade brasileira.
A Entrevistada B, tendo vivenciado um relacionamento homoafetivo
relativamente longo, relata que pretendia morar com sua namorada, para que
juntas pudessem ter dois filhos, cada um deles a ser gerado por cada uma
delas. A esse respeito, expressa a importância do reconhecimento legal do
relacionamento:
(...) a nossa União prevê que as pessoas sejam tratadas igualmente.
E duas pessoas, quando elas se juntam e começam a namorar, elas
pensam em ter uma casa, filhos e pelo direito brasileiro, se uma
pessoa se junta com outra do mesmo sexo, podem passar anos juntas
e uma vem a falecer, a divisão dos bens, pelo ângulo patrimonial,
o companheiro não tem direito a nenhum bem do outro. Se uma
pessoa tem filhos, e eles estão registrados apenas em nome de um
dos companheiros, caso o outro venha a falecer, ele não consegue o
reconhecimento paternal.
O Entrevistado E, reforça a importância do reconhecimento jurídico da
união entre iguais:
Eu acho super importante e ficaria extremamente feliz que isso
desse certo porque eu acho que atrapalha bastante no caso do plano
de saúde, imposto de renda e na construção de um lar, de uma
família. E acho que desse jeito, se houver reconhecimento da união,
o preconceito pode diminuir, porque as pessoas acham que gays e
lésbicas não tem a capacidade de ter um amor, um relacionamento
como é o heterossexual, parece que é uma tara, como algo físico.
Parece que a gente nem é ser humano... Eu me sinto assim.
Nota-se que a relação homossexual muitas vezes é vista como uma
relação baseada na promiscuidade. Entretanto, acerca disto argumenta a
Entrevistada A:
Existem pesquisas que afirmam que os homossexuais têm uma vida
sexual mais ativa do que os héteros, mas não acho que isso seja
sinônimo de promiscuidade.
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Interessante resgatar as constatações feitas por Marina Castañeda (2007,
p. 197-198), que estabeleceu um paralelo entre as relações homoafetivas e as
heteroafetivas:
O casal homossexual é muito mais livre: não está preso ao modelo
de comunicação homem-mulher que limita tanto a intimidade
no casal heterossexual. (...). Muitos homossexuais encontram em
suas relações de casal uma franqueza e uma camaradagem que
são raras nas relações heterossexuais. O casal homossexual se
distingue também pela equidade e pela reciprocidade na relação.
Claro, sempre há assimetrias no poder, como em todas as relações
humanas. Mas não são dadas pelos papéis masculinos e femininos,
como acontece no casal heterossexual. As desigualdades de poder
não provêm do gênero, mas de diferenças mais “reais” como a idade,
o temperamento, ou o nível social. Isso é evidente sobretudo entre
as mulheres que, na maior parte das vezes, ocupam uma posição
de fragilidade no casal heterossexual. Quando elas constituem uma
relação amorosa com outra mulher, elas descobrem uma igualdade,
um respeito e uma reciprocidade que não conheciam. Mas os homens
também percebem e apreciam essa diferença entre as relações
homossexuais e heterossexuais. Como diz um homossexual: “Não
gostaria de me responsabilizar por uma mulher que dependesse de
mim. É quase sempre impossível ter uma relação de igualdade com
uma mulher, e agora estou acostumado com uma transparência e
uma franqueza que eu não teria se fosse heterossexual.”
Verifica-se que a liberdade apontada por Castañeda é a existente entre
o par que compõe o casal homoafetivo e não entre o casal homoafetivo e a
sociedade. Isso é esclarecido pelo Entrevistado C, ao afirmar que:
O casal heterossexual pode ficar mais à vontade no meio de todo
mundo com beijos indecentes e abraços escandalosos enquanto um
casal homossexual nem pode andar de mãos dadas.
5. Normas Jurídicas e Relações Homoafetivas
A Carta Constitucional brasileira não discrimina a condição sexual dos
noivos para a efetivação matrimonial. Por sua vez, conforme enfatiza Maria
Berenice Dias (2009), as referências feitas a homem e mulher pelo Código Civil
(Arts. 1.514, 1.517, 1.565) não expressam a heterosssexualidade do par como
condição para o casamento.
Nenhum desses dispositivos diz que o casamento é exclusivamente
entre um homem e uma mulher; só afirmam que, para casar, tanto
homens como mulheres precisam ter 16 anos; que o casamento se
realiza com a manifestação de vontade do homem e da mulher; e
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que tanto um quanto o outro, ao se consorciarem, são responsáveis
pelos encargos da família. Aliás, cabe o questionamento de Nuno
de Salter Cid: Homem e mulher; o homem e a mulher; é o direito a
casar reconhecido ao homem e à mulher? Somente ao homem com
a mulher e a esta com aquele, ou a qualquer deles com homem ou
mulher? (DIAS, 2009, p. 135-136).
Deste modo, entende-se que devem ser aplicados às uniões homoafetivas
os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, igualdade e da
segurança jurídica, pois a mera possibilidade de desrespeitar ou prejudicar
alguém em função de sua orientação sexual causaria flagrante afronta aos
princípios constitucionais, bem como aos direitos e garantias fundamentais.
O artigo 1º da Constituição Federal dispõe que a República Federativa
do Brasil é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a
soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa e o pluralismo político. No que diz respeito à dignidade
da pessoa humana e à orientação sexual, Carlos Ayres Britto, em sua decisão
prolatada como relator da ADPF nº. 132 (convertida em ADI) e da ADI n.º
4277, pelo Supremo Tribunal Federal, afirma que:
(...) a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio
da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e,
assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De autoestima no mais elevado ponto da consciência. Autoestima, de
sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade,
tal como positivamente norma da desde a primeira declaração
norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do
Estado da Virgínia, de 16 de junho de 1776) e até hoje perpassante
das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas
de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes
heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem a
mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente.
A dignidade abarca condições de existência, integridade física e valores
morais e espirituais que devem existir na vida das pessoas pelo simples
fato de elas terem nascido e viver. Portanto, a homossexualidade e a relação
homoafetiva não podem ser excluídas da abrangência do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Além da dignidade da pessoa humana está assegurada, no artigo 5º,
caput, da Constituição Federal, a garantia à liberdade. Ainda no mencionado
artigo, inciso X, está disposto que são invioláveis a intimidade, a vida privada,
a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação. Também a este respeito, Carlos
Ayres Britto (2011, p. 22) afirma, ainda, que “(...) nada mais íntimo e mais
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privado para os indivíduos do que a prática da sua própria sexualidade.”
Pode-se, então, extrair do artigo 5º, caput e inciso X, da Carta Política, que
a vivência da sexualidade é uma escolha livre e privativa de cada pessoa,
sendo assegurada constitucionalmente e devendo o seu desenvolvimento
ser incentivado por instituições políticas e jurídicas. Tendo em vista que as
normas relativas aos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade
imediata (artigo 5º, parágrafo 1º, CF), Ayres Britto (2011, p. 22) entende que:
(...) a liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se
inscrever no âmbito de incidência desses últimos dispositivos
constitucionais (inciso X e § 1º do art. 5º), se houvesse enunciação
igualmente constitucional em sentido diverso. Coisa que não existe.
Considerando o fato de a vivência da sexualidade ser uma escolha feita
pelo indivíduo à medida que ele conhece seus próprios desejos e vontades,
a sociologia e a psicologia permitem entender que a homossexualidade não
deve ser percebida como anomalia patológica, e sim, como identidade psíquica
e social, fruto do processo de individuação vivenciado pelo indivíduo. Tal
percepção é reforçada pela consagração do princípio da igualdade, previsto
no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, os homossexuais têm o direito
de desfrutar das mesmas condições das quais desfrutam os heterossexuais,
já que “(...) o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em
contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica.” (BRITTO, 2011,
p. 10).
Por sua vez, o princípio da segurança jurídica abrange a tutela de valores,
dentre os quais se encontram a previsibilidade de condutas e a estabilidade
das relações jurídicas, que deve ser feita pelo Estado e pelo Direito mediante
a aplicação de instituições e institutos que incluem o próprio Poder Judiciário,
cuja finalidade precípua é assegurar o primado da Constituição e das leis,
por intermédio da proteção de seus direitos e garantias fundamentais. Desta
forma, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 05 de maio de
2011, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar. Com esse
entendimento, houve efetivo respeito também ao princípio da segurança
jurídica no que diz respeito ao tratamento jurídico das questões decorrentes
da relação entre homossexuais, tendo em vista que:
O desenvolvimento de um projeto de vida comum tende a produzir
reflexos existenciais e patrimoniais. Diante disso, é natural que as
partes queiram ter previsibilidade em temas envolvendo herança,
partilha de bens, deveres de assistência recíproca e alimentos,
dentre outros. Todos esses aspectos encontram-se equacionados no
tratamento que o Código Civil dá às uniões estáveis.
182
Revista Jurídica FACULDADES COC
Isso posto, reforça-se o fato de que atualmente devem ser aplicados à
união homoafetiva os mesmos efeitos e regras aos quais é submetida à união
estável heteroafetiva. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal, prevê que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Diante
disso, o fato de uma pessoa ser homossexual e manter relação com pessoa
do mesmo sexo que o seu não pode ser fator que ocasiona a desigualdade
de tratamento entre heterossexuais e gays, nem tampouco “(...) se pode
alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham.”, segundo
entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto
(2011, p. 46).
Constata-se que o reconhecimento da união homoafetiva não caracteriza
fator que causa a desigualdade de homossexuais e heterossexuais. Ademais,
está constitucionalmente previsto que a República Federativa do Brasil deve
promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV, CF).
Para que seja proporcionado o bem estar de todos é necessária a adoção
de medidas capazes de garantir a integridade física e psicológica de cada
indivíduo, bem como que haja efetividade na proteção de seus direitos e
garantias fundamentais. Em razão disso, a Carta Magna veda expressamente
o preconceito e a discriminação, sejam eles decorrentes de quaisquer motivos.
Afora todas estas previsões constitucionais, permanecem alguns
aspectos omissos no Código Civil, dado que o atual Código Civil, cujo projeto
inicial é de 1975, data anterior à Lei nº. 6.515/1977 (Lei do Divórcio), tramitou
pelo Congresso Nacional antes da promulgação da Constituição Federal de
1988 e entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003. Cumpre notar que a ordem
cronológica dos fatos acima mencionados ocasionou diversas alterações no
Código Civil, que apesar de novo demonstrou-se em desarmonia com a Carta
Magna. Isso porque a Constituição Federal introduziu em seu texto valores
que antes não eram consagrados, como, por exemplo, a dignidade da pessoa
humana, princípio não abarcado de forma suficiente pelo Código Civil.
Como afirma Maria Berenice Dias (2010, p. 32):
O Código Civil procurou atualizar os aspectos essenciais do direito
de família. Apesar de ter preservado a estrutura do Código anterior,
incorporou boa parte das mudanças legislativas que haviam
ocorrido por meio de legislação esparsa. Mas não deu o passo mais
ousado, nem mesmo em direção aos temas constitucionalmente
consagrados, ou seja, operar a subsunção, à moldura da norma civil,
de construções familiares desde sempre, embora completamente
ignoradas pelo legislador infraconstitucional.
Embora tenham ocorrido inúmeras alterações no Código Civil de 2002, ele
não disciplinou a união mantida entre duas pessoas do mesmo sexo, um novo
Revista Jurídica FACULDADES COC
183
modelo de família presente em nossa sociedade, mas ainda não regulamento
pela legislação brasileira.
Com o intuito de assegurar aos homossexuais o direito à família,
considerada pela Constituição Federal (artigo 226, caput, e parágrafo 3º) como
a base da sociedade que merece especial proteção do Estado, sendo, inclusive,
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
o Supremo Tribunal Federal interpretou o artigo 1.723 do Código Civil, no
qual está previsto que “É reconhecida como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”, com
fundamento na Carta Magna. Veja-se a decisão prolatada pelo Ministro Carlos
Ayres Britto (2011, p. 48-49):
(...) dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à
Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça
o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta
como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da
união estável heteroafetiva.
Diante disso, e como já posto anteriormente, a união homoafetiva
encontrou seu amparo jurídico efetivo, ainda mais que a decisão prolatada
pelo Supremo Tribunal Federal possui eficácia erga omnes e apresenta efeito
vinculante, subordinando dessa maneira todos os juízes a reconhecerem
a união homoafetiva, desde que preenchidos os requisitos legais exigidos
para o reconhecimento da união estável heteroafetiva. Por sua vez, a Lei nº.
11.340/2006, conhecida nacionalmente como Lei Maria da Penha, dispõe
sobre mecanismos destinados a coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher. Esta se coloca como a primeira lei infraconstitucional brasileira
que traz, em seu texto normativo, expressa proteção à relação homoafetiva
como entidade familiar, pois prevê em seu artigo 2º, caput, que “Toda mulher,
independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual (...) goza de direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana (...)”. Ademais, o artigo 5º, parágrafo
único, da mencionada lei prevê que “As relações pessoais enunciadas neste
artigo independem de orientação sexual”.
Embora a Lei Maria da Penha disponha apenas sobre métodos cuja
finalidade é evitar a violência doméstica e familiar contra a mulher, independente
de sua orientação sexual, também devem ser por ela amparados o homem e
a relação homoafetiva mantida entre gays. A lei trouxe uma nova definição
sobre entidade familiar, não atribuindo mais às relações homoafetivas caráter
de sociedade de fato, tendo em vista que o vínculo que une duas pessoas é
essencialmente afetivo. A este respeito, Maria Berenice Dias entende que:
184
Revista Jurídica FACULDADES COC
Ao afirmar a Lei que está sob o seu abrigo a mulher, sem distinguir
sua orientação sexual, está assegurada proteção tanto às lésbicas
como às travestis, às transexuais e aos transgêneros com identidade
social feminina e que mantém relação íntima de afeto em ambiente
familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as
situações de violência contra o gênero feminino justificam especial
proteção. (DIAS, 2009, p. 141)
Em 22 de março de 2011 foi realizada audiência pública na qual foi
aprovada a elaboração do Estatuto da Diversidade Sexual e a nomeação dos
advogados escolhidos para redigi-lo. Contudo, a elaboração do mencionado
estatuto contou também com a participação das Comissões da Diversidade
Sexual das Seccionais e Subseções da OAB instaladas, ou em vias de instalação,
e de movimentos sociais. Em 23 de agosto deste ano o anteprojeto do Estatuto
da Diversidade Sexual foi apresentado ao Presidente do Senado, José Sarney,
juntamente com uma Proposta de Emenda Constitucional, destinada ao
reconhecimento da proibição de discriminação em virtude de orientação
sexual ou identidade de gênero.
A PEC mencionada também tem como finalidade promover a inserção
na Carta Política de dispositivos que reconheçam a família homoafetiva e
assegurem todos os direitos decorrentes da homoparentalidade. Em relação
ao Estatuto da Diversidade Sexual, está previsto em seu artigo 1º que ele:
(...) visa a promover a inclusão de todos, combater a discriminação
e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero e
criminalizar a homofobia, de modo a garantir a efetivação da
igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais,
coletivos e difusos.
O mencionado estatuto dispõe também de forma específica sobre os
direitos e garantias fundamentais que devem ser efetivamente assegurados às
pessoas que apresentam orientação sexual e identidade de gênero diferentes
das convencionais. Ademais, prevê a criação de políticas públicas destinadas
à conscientização da sociedade sobre a igualdade que existe entre todas as
pessoas, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
5.1. Da Competência Para Analisar e Julgar Ações Relacionadas a Direitos
Homoafetivos
A união homoafetiva era vista pela maioria dos tribunais do país
como uma sociedade de fato. Diante disso, as ações que discorrem sobre a
homoafetividade eram ajuizadas em varas cíveis comuns, e não nas varas
especializadas de família. Isso só não era verificado, em regra, no Rio Grande
Revista Jurídica FACULDADES COC
185
do Sul, cuja justiça determinou, em 1999, que a competência para julgar ação
decorrente de relacionamento homossexual é da vara de família. A fixação
da competência ocorreu em sede de liminar, sob o fundamento de que o
casamento entre homem e mulher, previsto no artigo 226, parágrafo 3º, da
Constituição Federal, não exclui a possibilidade do reconhecimento da união
estável homoafetiva.
O Tribunal do Rio Grande do Sul fundamentou sua decisão também
no fato de não ser possível a discriminação referente à orientação sexual,
princípio vedado expressamente pela Carta Magna. Em algumas decisões
recentes, os Tribunais de Justiça do Paraná, de São Paulo, de Santa Catarina
e do Rio de Janeiro fixaram como sendo de competência das varas de família
o processamento e julgamento de ações nas quais são discutidos direitos
homoafetivos.
Diante de tantas controvérsias e decisões proferidas de forma contraditória,
em 05 de maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão na qual,
por votação unânime, julgou procedente a ADPF nº. 132-RJ, que foi convertida
em ADI, e a ADI 4.277-DF, ajuizadas, respectivamente pelo Governador do
Estado do Rio de Janeiro, e pela Procuradoria Geral da República. Ambas as
ações foram movidas com a finalidade de obter do Supremo Tribunal Federal
o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, sendo que
a ADPF nº. 132-RJ foi ajuizada também com o intuito de obter a extensão de
benefícios previdenciários e licenças ao funcionário fluminense homossexual
e à sua família.
A Suprema Corte declarou a eficácia erga omnes da decisão acima
mencionada, bem como o seu efeito vinculante, conforme Ofício nº. 81/P-MC,
expedido em 09 de maio de 2011 pelo Ministro Cézar Peluso, presidente do STF.
Quanto ao pedido da concessão de benefícios previdenciários ao funcionário
fluminense homossexual e à sua família houve perda do objeto da ação, posto
que em 2007 foi editada a Lei estadual n.º 5.034/2007, que reconhece a união
estável entre companheiros homoafetivos para fins previdenciários (artigos 1º
e 2º da mencionada lei estadual).
Constou de mencionada decisão proferida pelo Relator Carlos Ayres
Britto (2011, p. 8-9) que a união estabelecida e mantida entre duas pessoas do
mesmo sexo trata-se de:
União (...) com perdurabilidade o bastante para a constituição de
um novo núcleo doméstico. (...) vínculo de caráter privado, mas
sem o viés do propósito empresarial, econômico, ou, por qualquer
forma, patrimonial, pois não se trata de uma sociedade de fato ou
interesseira parceria mercantil. Trata-se, isto sim, de um voluntário
navegar por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que
não seja a experimentação de um novo a dois que se alonga tanto
que se faz universal.
186
Revista Jurídica FACULDADES COC
A partir da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, todas
as ações fundadas em direitos homoafetivos devem ser ajuizadas nas varas
especializadas de família, sendo que as ações que já tramitam nos juízos cíveis
devem ser redistribuídas às varas de família. Ademais, as decisões de todos os
magistrados devem respeitar e seguir a decisão proferida pela Suprema Corte,
guardiã da Constituição Federal.
6. CONCLUSÃO
Embora a homossexualidade esteja presente em nossa sociedade, ainda
não há norma jurídica que discipline plenamente direitos e deveres dos
homossexuais. Sabe-se que na ausência de legislação que disponha sobre
determinado fato que apresenta relevância jurídica, devem ser aplicados
os princípios gerais de direito, os costumes e a analogia. Em razão disso,
questões relacionadas aos direitos homoafetivos, como a homoconjugalidade
e a homoparentalidade, embora não estejam previstas em nosso ordenamento
jurídico, foram com frequência levadas ao Poder Judiciário, para que ele
concedesse aos homossexuais os seus direitos.
Após sucessivas decisões contraditórias proferidas por cada juízo, a
união homoafetiva foi levada ao Supremo Tribunal Federal, que a reconheceu
como entidade familiar e atribuiu-lhe todos os efeitos e regras aplicadas à
união estável heteroafetiva. Muito se avançou. Entretanto, constata-se que
nas últimas décadas as leis vigentes, assim como os aplicadores do direito,
colocaram-se frequentemente de forma omissa em relação às relações
homoafetivas e seus efeitos. Assim, partindo-se do pressuposto de que é
injustificável e qualificadamente injusto o não reconhecimento da união
homoafetiva e dos efeitos dela decorrentes, consideramos que ainda persiste
uma omissão legislativa referente ao tema, dificultando às pessoas envolvidas
em uniões homoafetivas o direito à vida digna, uma vez que lhes são coibidas
a constituição de família e de patrimônio.
Diante de todo o exposto, nota-se que o avanço relativo à união
homoafetiva foi parcial. Resta agora que o Poder Legislativo esqueça eventuais
preconceitos e argumentos religiosos para que edite lei regulamentando a
união entre pessoas do mesmo sexo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS
BRITO, Ayres. ADPF 132/RJ, Relator Min. AYRES BRITTO, j. 05/05/2011,
Tribunal Pleno, DJe-198 13-10-2011 e ADI 4277/DF, Relator Min. AYRES
BRITTO, j. 05/05/2011, Tribunal Pleno, DJe-198 13-10-2011.
Revista Jurídica FACULDADES COC
187
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico
das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.lbarroso.
com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf>. Acesso em: 23 fev.
2011.
CASTAÑEDA, Marina. A experiência homossexual: explicações e conselhos
para os homossexuais, suas famílias e seus terapeutas. São Paulo: A Girafa
Editora, 2007.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª. Ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4ª. Ed.
rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
GROSSI, Miriam Pillar. Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil.
Cadernos Pagu (21) 2003: pp.261-280.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. Contra o
desperdício da experiência. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.
ZAMBRANO, Elizabeth. O direito à homoparentalidade. Cartilha sobre as
famílias constituídas por pais homossexuais. 2006.
OS LIMITES DA PUBLICIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
CLEUBER RUFINO 1
LETICIA POZZER DE SOUZA 2
Resumo
O presente artigo busca contribuir com os limites da publicidade no
ordenamento jurídico brasileiro através de um levantamento bibliográfico,
jurisprudencial e de auto-regulamentação acerca da temática da publicidade
no Brasil e suas limitações legais. Nesta pesquisa, foram identificadas as
modalidades mais utilizadas para regulamentar a atividade publicitária
no Brasil, distinguindo as formas privadas de Auto-Regulamentação
promovidas pelo CONAR e as formas estatais tradicionais, como o Código
de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em
suma, a atividade criativa da publicidade no Brasil encontra limites na sua
elaboração, criados por força da própria atividade publicitária ou por conta
da legislação vigente no país.
Palavras-Chave: Publicidade, auto-regulamentação, CONAR, ética,
propaganda enganosa e abusiva.
1. INTRODUÇÃO
A publicidade na sociedade moderna mostra-se extremamente
relevante, capaz de determinar atitudes e comportamentos no mundo atual.
Esta publicidade, como fenômeno social contemporâneo, deve ser limitada
e controlada de forma que não haja abusos e nem ofensas, uma vez que a
sociedade tem direito a uma informação fundada na verdade, justiça e
liberdade. Porém, o processo criativo do publicitário não pode ser rechaçado
ou censurado, devendo haver uma combinação entre a informação e os limites
impostos pela legislação brasileira.
Para tanto, existem algumas maneiras de estabelecer tais limites sem que
ocorram abusos ou vedações extremas ao processo criativo do publicitário,
maneiras estas, divididas em privadas e estatais.
2. CONSELHO NACIONAL DE AUTO-REGULAMENTAÇÃO (CONAR)
O sistema privado é denominado de autorregulamentação e é realizado
por uma associação civil organizada por agentes econômicos do próprio meio
publicitário (incluindo os anunciantes e veículos de comunicação) denominado
Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (CONAR). Esse
Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, especialista em relações internacionais e
comércio exterior pela PUC-SP. Ocupa o cargo de CEO da LexMercatoria Importação e Exportação em
Ribeirão Preto e é Professor de Direito Internacional da UNISEB e da Universidade de Ribeirão Preto.
E-mail: [email protected].
2
Bacharel em Direito pela UNISEB e advogada em Ribeirão Preto. E-mail: [email protected].
1
190
Revista Jurídica FACULDADES COC
Conselho é composto pela Assembléia Geral, Conselho Superior, Conselho de
Ética e Conselho Fiscal, sendo o Conselho de Ética de grande importância para
decisão dos casos denunciados ao CONAR. Para fundamentar as decisões
dessa associação, existe o Código de Auto-regulamentação Publicitária e o
Código de Ética Publicitária.
O CONAR é muito importante, pois é avesso ao formalismo, o que torna,
muitas vezes, eficiente por refletir os avanços da sociedade, sendo regido pelas
leis do país, por estatutos e pelo Código de Auto-regulamentação Publicitária,
cujos princípios são de obediência obrigatória apenas para os associados.
Para José Jorge Tannus Jr.:
O CONAR vem mostrando-se um tribunal capaz de acompanhar a
evolução da sociedade em todos os seus aspectos, pois publicidade
e conservadorismo não combinam. As decisões proferidas pelas
comissões de ética do CONAR são acatadas e respeitadas por todo
o profissional de comunicação envolvido nos seus mais diferentes
segmentos. (TANNUS JR., 2010, p. 98).
Essa entidade não tem poder algum de prender ou multar, o foco é a
ética na publicidade e, nesse aspecto, a questão ética tem forte influência,
pois, muitas vezes transforma-se em código de procedimento aplicáveis às
determinadas sociedades e segmentos, com normas do que se deve ou não
fazer.
O CONAR tem personalidade jurídica e patrimônio distintos em relação
aos seus associados e integrantes, os quais não respondem subsidiária ou
solidariamente pelas obrigações por ele contraídas. Já o patrimônio do
CONAR será constituído do acervo material representado por todos os seus
bens móveis ou imóveis, títulos e produtos de doações e legados, dos quais
será feito, ao fim de cada exercício social, o respectivo inventário.
Esse Conselho deve oferecer assessoria técnica sobre ética publicitária
aos seus associados, consumidores em geral e às autoridades públicas, sempre
que lhe for solicitada. Deverá também atuar como instrumento de concórdia
entre veículos de comunicação e anunciantes. Importante ressaltar, que o
CONAR repudia qualquer tipo e não exerce em nenhuma hipótese censura
prévia sobre peças de propaganda. Ele irá receber as denúncias, que podem
ser informadas por cartas ou telefonemas, de qualquer setor da sociedade,
não sendo necessário pagamento algum, tampouco comparecimento pessoal.
Porém se for anunciante deverá se associar ao Conselho.
Esse Conselho também pode agir sem denúncias externas, ou seja, ele
mesmo pode tomar a iniciativa de instaurar o processo, tomando sempre
decisões apenas com força interna, pois trata de um conselho que se baseia
na autorregulamentação, e não regulamentação da atividade publicitária,
Revista Jurídica FACULDADES COC
191
obrigando apenas os associados. A recomendação do Conselho poderá
determinar a alteração do anúncio, suspensão ou impedir que ele venha a ser
veiculado novamente. Poderá, ainda, propor a advertência do anunciante e
sua agência e, excepcionalmente, a divulgação pública da reprovação.
Podemos citar como exemplo de suspensão, realizada pelo CONAR, a
representação nº. 306/2009, na qual a empresa de telefonia Claro representou
contra a empresa Tim. No caso em questão, a denunciante Claro alega que ao
usar a cor vermelha na mala direta, a empresa denunciada estaria referindo-se
àquela. Há questionamento também sobre a falha na informação das condições
do beneficio de falar de graça após o primeiro minuto em determinadas
ligações.
O relator deferiu medida liminar para sustação imediata da distribuição
da mala direta alegando que não se deve comparar planos com características
que diferem entre si, tampouco empregar sinais distintivos da Claro na peça
publicitária. Porém, se resultar que o anúncio não fere qualquer dispositivo do
Código de auto-regulamentação, a denúncia será arquivada.
Existem também súmulas editadas pelo CONAR, como, a Súmula nº. 4,
de 07 de junho de 1990, a respeito de arma de fogo:
Anúncio de armas de fogo não deverá ser emocional; não deverá
sugerir que o registro do produto seja uma formalidade superada
facilmente com os serviços oferecidos pelo anunciante; não fará
promoções, não apregoará facilidade de pagamento, redução de
preços, etc.; além disso, não será veiculada em publicação dirigida a
crianças ou jovens e nem na televisão, no período que anteceder às
23 hs até as 6 hs. Deverá, por outro lado, evidenciar que a utilização
do produto exige treinamento e equilíbrio emocional e aconselhará
a sua guarda em lugar seguro e fora do alcance de terceiros.
(Fundamento: Artigos 1º, 3º, 6º e 50, letra “c”, do Código Brasileiro
de Autor regulamentação Publicitária e seu Anexo “S”, itens de 1,
2, 3, 4 e 5).
Essas decisões do CONAR são rigorosamente respeitadas pelos veículos
de comunicação, que não voltarão a veicular o anúncio reprovado. Segundo
Fábio Ulhoa Coelho (1997, p. 186) “A auto-regulamentação publicitária é, no
Brasil, a mais interessante experiência de disciplina de atividade econômica
por iniciativa dos próprios agentes nela envolvidos”.
Importante destacar que produtos defeituosos, serviço não prestado
e atendimento inadequado não são julgados pelo CONAR, pois estes fatos
constituem a relação comercial entre vendedor/prestação de serviços e o
consumidor e são de responsabilidade dos PROCONs, que aplicam o Código
dos Direitos do Consumidor. Acontece que, por não ter poder coercitivo e
ter a função de defender interesses dos associados, embora às vezes beneficie
192
Revista Jurídica FACULDADES COC
o consumidor, é necessário paralelamente a esse sistema um controle estatal
com função de proteger o direito do destinatário direto da publicidade.
3. LIMITES ESTATAIS PARA ATIVIDADE PUBLICITÁRIA
Essa segunda forma de controle é realizada por um sistema estatal, no qual
a pessoa que se sentir lesada tem garantias, dadas pelo Estado, para pleitear
seus direitos junto ao Poder Judiciário. O disciplinamento da publicidade
no ordenamento jurídico brasileiro não está codificado, pois não existe um
diploma legal destinado à publicidade de forma exclusiva. O que existe
são dispositivos diversos contidos em vários diplomas, sendo considerado
assim, um sistema desconcentrado, por não haver uma centralização da
regulamentação em um único órgão.
4. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL E A ATIVIDADE
PUBLICITÁRIA
Analisaremos alguns diplomas legais que fundamentam e disciplinam
essa atividade. A Constituição Federal estabelece proteção à liberdade de
pensamento (art. 5, IV), liberdade de expressão da atividade intelectual, artística
e de comunicação, independente da censura ou licença (art. 5, IX e XIV), e
ainda, a manifestação do pensamento, criação e informação, que é a principal
forma de exercer a atividade publicitária. No seu capitulo V, artigo 220, trata
de comunicação social (a publicidade é uma espécie dessa comunicação),
deixando claro que a Lei Federal respaldará esses valores sociais.
220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição.
§1 – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço
à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5, IV, V, X, XIII e
XIV”.
§2 – É vedada toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística.
§3 – Compete à Lei Federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder
Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que
não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se
mostre inadequada;
II- estabelecer os meio legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de
radio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como
da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser
nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Revista Jurídica FACULDADES COC
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§4 – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias estarão sujeita às restrições
legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá,
sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes
de seu uso.
§5 – Os meios de comunicação social não podem, direta ou
indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
§6 – A publicação de veículo impresso de comunicação independe
de licença de autoridade. (BRASIL, Constituição, 1988).
Portanto, é possível notar que a nossa Constituição determina que a Lei
Federal respalde valores sociais tanto relativos à família, como da própria
pessoa. O artigo 221 traz, ainda, vários princípios constitucionais que limitam
a liberdade de expressão:
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e
televisão atenderão aos seguintes princípios:
I- preferência às finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção
independente que objetiva sua divulgação.
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística,
conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
(BRASIL. Constituição, 1988).
Porém, mesmo diante desses dispositivos de proteção à informação,
é possível notar, na própria Constituição, sistemas de frenagens a abusos,
arbítrios e excessos como forma de preservar outros direitos individuais e
coletivos que recebem igual proteção constitucional. Portanto, a Constituição
garante o direito à liberdade de expressão, mas faz ressalvas demonstrando
que deve haver limites para que não haja ofensa aos direitos individuais e
coletivos.
5. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: PROPAGANDA
ENGANOSA E PROPAGANDA ABUSIVA
Já no Código de Defesa do Consumidor é possível encontrar limites mais
definidos sobre a atividade publicitária de forma que, se não for respeitada
as determinações legais, a publicidade abandona sua função de meio
informativo do mercado para tornar-se instrumento nocivo. Neste momento
que a publicidade percorre o campo da ilicitude, ocorre o dano publicitário,
configurando-se como lesão de direito sofrido por meio da mensagem
publicitária.
Podemos citar como exemplo várias normas trazidas pelo Código de
194
Revista Jurídica FACULDADES COC
Defesa do Consumidor que protegem este tema: artigo 6, inciso IV; artigo 30;
artigos 35 ao 38; artigo 56, inciso XII e artigo 60. Destes artigos é possível extrair
alguns princípios que também orientam a publicidade, são eles: princípios
corolários, boa fé e liberdade; princípio da identificação da publicidade,
previsto no artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, determinando que
toda publicidade deve ser veiculada de forma clara ao consumidor; princípio
da veracidade das mensagens publicitárias, tratado no artigo 37 desse
Código; princípio da não abusividade, regulamentado artigo 37; princípio da
vinculação da oferta e da transparência respectivamente no artigo 30 e 35 do
mesmo código; princípio da correção do desvio publicitário e da inversão do
ônus da prova dentro da matéria publicitária.
Logo, para que o consumidor conheça o produto e o adquira, utilizandose de forma adequada sem colocar em risco sua saúde, é preciso que a
informação seja clara. Se essa informação for transmitida com algum vício,
ou seja, em desconformidade com os preceitos já analisados, pode levar o
consumidor a erro e consequentemente à aquisição de produto indesejado.
Este Código limita claramente o uso da propaganda enganosa, que é
capaz de induzir o consumidor ao erro a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedade, origem, preço e quaisquer outros dados
sobre os produtos e serviços por ela divulgados, sendo considerada enganosa
também a propaganda que for omissa, ou seja, que deixar de divulgar alguma
informação essencial do produto ou serviço anunciado. Segundo Marques
(2008), um parâmetro para determinar se a publicidade é enganosa seria o
observador menos atento, tendo em vista que ele é o representante de uma
parte não negligenciável dos consumidores e telespectadores.
Existem várias jurisprudências a respeito da publicidade enganosa,
como por exemplo:
Processo Civil – Recurso Especial – Ação de Conhecimento – Rito
Ordinário – Promessa de Recompensa – Premiação de Tampa
de Vasilhame de Refrigerante – Código Ilegível – Julgamento
Antecipado da Lide – Cerceamento de Defesa – Preclusão
– Inexistência – Produção de Prova Pericial – Necessidade –
Publicidade Enganosa – Pré-questionamento – Ausência. Pugnando
o réu em contestação, pela produção de prova pericial, capaz de
afastar a exigência do fato constitutivo do direito do autor, não
poderia o M.M., Juízo proceder ao julgamento antecipado da lide,
sob pena de cerceamento do direito de defesa do réu (STJ – 3 T.
– Resp 289346/MG – rel. Des. Min. Fátima Nancy Andrighi – j.
22.05.2001).
O efeito da publicidade enganosa é induzir o consumidor a acreditar em
alguma coisa que não corresponda à realidade do produto ou serviço em si,
ou relativamente a seu preço e forma de pagamento, ou, ainda, a sua garantia.
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Estabelecendo esse limite, ou seja, a proibição da publicidade enganosa, o
código que defende o consumidor quis que, efetivamente, o consumidor não
seja enganado.
Um segundo tipo de propaganda que sofre limitação pelo Código de Defesa
do Consumidor é a abusiva. Por esta há uso de informações discriminatórias,
violentas, que explorem o medo, que se aproveite da inocência de crianças, que
desrespeitem valores ambientais, ou ainda, que possam induzir o consumidor
a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. A
publicidade abusiva, por sua vez, é tratada no parágrafo 2º. do artigo 37 do
Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:
§2. É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de
qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a
superstição, se aproveite da deficiência do julgamento e experiência
da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de
induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou
perigosa à sua saúde ou segurança. (CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR).
O caráter de abusividade não tem necessariamente relação direta com o
fornecimento do produto ou serviço, mas sim com os efeitos da propaganda
que possam causar algum mal ou constrangimento ao consumidor.
6. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS DIRETRIZES
DA PUBLICIDADE
Como não poderia deixar de ser, o Estatuto da Criança e do Adolescente
também apresenta em seus artigos dispositivos de proteção contra a publicidade
abusiva e enganosa quando disciplina em seu artigo 70 que o estatuto busca
prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do
adolescente. O artigo 71 desse Estatuto menciona que a criança e o adolescente
têm direito à informação e a produtos e serviços que respeitem a condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, isso inclui que a publicidade respeite
também o menor, pois muitas vezes traz uma informação persuasiva de cunho
comercial que objetiva mudar a ação ou inação do consumidor para que este
adquira produto ou serviço anunciado por qualquer veículo de propagação.
Nota-se então, que o Estatuto da Criança e do Adolescente procurou,
além de garantir o acesso das crianças e adolescentes a uma série de atividades
e informações, buscar também resguardar sua condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento. Assim, embora não venha expressa neste Estatuto a
proteção contra a publicidade abusiva e enganosa, fica claro que o publicitário
também deve respeitar a disciplina contida no Estatuto.
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7. A LEI DOS DIREITOS AUTORAIS DIANTE DA PUBLICIDADE NO
BRASIL
Em relação à Lei de Direitos Autorais, a publicidade não está
regulamentada diretamente, mas as relações complexas que implica, impõe
um regime especial. Os problemas manifestam-se desde logo na própria
delimitação da obra publicitária. Ocorre que os aspectos dos direitos autorais
estão sempre ocorrendo dentro da publicidade, seja quando alguém cria uma
peça publicitária, ou cede o uso para que outro a veicule.
A Lei de Direitos Autorais nº. 9610/19983 dá a prerrogativa ao criador
da peça publicitária de ser reconhecido como autor da obra e inclui também o
direito da retirada de circulação a peça que criou. Para que a obra publicitária
venha a ser protegida pela Lei Autoral, decorrendo daí a vedação de seu uso
por quem não estiver autorizado, se faz necessário que estejam presentes os
elementos de criatividade e originalidade, como obra intelectual que é.
Marco Antonio Marcondes Pereira ensina que:
[...] pode-se afirmar que a publicidade enquanto “obra complexa”
representa um feixe de direitos protegíveis pelo direito autoral,
mas enquanto pura mensagem comercial de produtos ou serviços
do anunciante, com contornos singelos da abordagem da massa
consumidora, tem proteção nas regras de concorrência desleal,
as quais podem atingir qualquer pessoa que tenham agido em
desconformidade com a boa fé ou correção profissional. Noutras
palavras, o mínimo que se confere à publicidade comercial contra
a imitação é a representação pela concorrência desleal. (PEREIRA,
2001, p. 87).
O direito autoral pode ser dividido em direitos morais e direitos
patrimoniais do autor da criação publicitária, sendo que, os primeiros para
sempre permanecerão sob o domínio do autor, já os patrimoniais seriam de
uso econômico da obra publicitária sob qualquer aspecto, por exemplo, sua
veiculação e tradução para outro idioma.
Os direitos autorais patrimoniais podem ser cedidos a terceiros para que
utilize ou veicule a criação publicitária. Um exemplo de cessão ocorre quando
o autor permite a utilização de sua música em determinada propaganda.
O titular, ou autor da peça publicitária, pode ainda abrir mão do direito
patrimonial se assim concordar em sua cessão. Porém ele nunca perderá o
direito de ter a autoria da peça atribuída a si (direito autoral moral).
A obra publicitária é enquadrada como coletiva, segundo definição dada
Lei 9610 de 1988 sobre os direitos autorais - Brasília, 19 de fevereiro de 1998; 177º da Independência e
110º da República.
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pelo artigo 5, inciso VIII, alínea h da Lei em questão:
Coletiva: a criada por iniciativa, organização e responsabilidade de
uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca
e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas
contribuições se fundem numa criação autônoma. (BRASIL. Lei nº.
9.610, de fevereiro de 1998).
Considerando que a agência irá atuar na organização das atividades
destinadas a uma obra coletiva, os direitos autorais de ordem patrimonial
sobre as obras intelectuais criadas por ela e sob sua orientação serão de sua
titularidade, ficando os direitos autorais morais resguardados aos criadores,
pessoas físicas. É o que estabelece o artigo 17, parágrafo segundo, desta mesma
Lei:
Art. 17 – É assegurada a proteção às participações individuais em
obras coletivas.[...]
§ 2º Cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais
sobre o conjunto da obra coletiva. (BRASIL. Lei nº. 9.610, de
fevereiro de 1998).
Importante observar que não cabe qualquer titularidade sobre a obra
publicitária ao cliente anunciante, salvo se os direitos patrimoniais forem
cedidos pelos titulares originais através de contrato de cessão de direitos.
Porém, a Lei nº. 9610/1998 permite que essa cessão de direitos autorais
seja prevista em contrato de trabalho, via do qual o criador irá transferir a
titularidade dos direitos autorais patrimoniais sobre os trabalhos que por ele
sejam criados, por prazo não superior a cinco anos ou durante o período do
tempo do vínculo laboral, como descreve Galvão (2002).
Existem casos em que não são respeitadas estas regras ou limites impostos
para a atividade de criação da obra publicitária, ocorrendo o plágio. O plágio,
na publicidade, é a apropriação da ideia de outro, em geral, na sua forma, para
vender outro produto, havendo, portanto é uma cópia não autorizada. Em
várias culturas o plágio é considerado antiético e é considerado como crime
de violação do direito autoral. Vê-se totalmente proibido, o uso de qualquer
anúncio que tenha por base o plágio ou imitação, salvo casos em que a imitação
é comprovadamente um deliberado e evidente artifício criativo, o que prova a
limitação da atividade criativa.
8. ATOS ADMINISTRATIVOS: ANVISA E A PUBLICIDADE DE
PRODUTOS REGULADOS
Além das maneiras citadas acima usadas como limite da atividade
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publicitária, existem ainda os atos administrativos do Governo, como por
exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)4. Esse limite
ocorre da seguinte maneira, a ANVISA faz uma resolução sobre o assunto
que achar pertinente delimitando como deverá ocorrer a publicidade de
algum tipo de produto relacionado com tal assunto. Essa resolução deverá
ser respeitada de forma obrigatória. Um exemplo disso é uma resolução
baixada recentemente por esta Agência, determinando que a publicidade de
refrigerantes e alimentos ricos em gordura saturada, gordura trans, açúcar e
sódio deverão mudar.
Portanto, a liberdade de expressão existe e é assegurada, porém não
poderá ocasionar ofensa a outros direitos e garantias fundamentais.
Em relação à responsabilidade publicitária, serão responsáveis todos
àqueles que participam da produção do anúncio e de sua veiculação. Essa
responsabilidade vem do efeito vinculativo da propaganda, através do qual
o fornecedor obriga-se por toda e qualquer informação que fizer veicular.
É necessário ter em vista que há presunção de culpa nos casos em que a
publicidade ilícita é veiculada, já que era proibido fazer e mesmo assim o
fornecedor o fez, tendo noção do ilícito que estava cometendo.
Só estarão livres da acusação se a veiculação ocorrer por caso fortuito, ou
seja, se a propaganda se tornou ilícita através de uma situação externa à vontade
do fornecedor e de seus auxiliares, sendo ela completamente imprevisível e
sem chances de modificação. O anunciante será sempre responsável pelos
danos que seu anúncio causar, sendo que, ainda responde pela nulificação
contratual em função do anúncio. A agência, por sua vez, como produtora do
anúncio, responderá solidariamente com o anunciante, independentemente
do tipo de contrato que com ele tenha estabelecido.
Havendo dano, a pessoa lesada pode acionar um dos dois (anunciante
ou agência) ou os dois simultaneamente (já que são solidários), e, depois que
eles pagarem a indenização pelos danos causados, acertarão entre si os gastos,
com base no que estabeleceram contratualmente.
Importante ressaltar que o veículo pode se negar a inserir em seu meio o
anúncio se achar que este é ilícito, a fim de garantir os limites a essa atividade
de acordo com as leis vigentes no país.
9. CONCLUSÃO
Nota-se, que para ser exercida a divulgação e veiculação de produtos e
serviços, há necessidade de estabelecer algumas regras ou limites para essa
atividade criativa e, para tanto, existem vários dispositivos e institutos que
Agência Nacional de Vigilância Sanitária é uma agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde
do Brasil
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objetivam regulamentar a publicidade. Essa limitação ocorre, principalmente,
para que a publicidade não se desvirtue, desequilibrando as relações de
consumo.
Porém, para ser efetivo, é necessário que a sociedade civil participe,
denuncie e aponte suas críticas fundamentais para a edificação responsável
e para manutenção dos princípios éticos da propaganda brasileira. Portanto,
diante de um anúncio que, de alguma forma, viole a sociedade ou uma
pessoa de forma direta poderão ocorrer as seguintes situações: após veiculado
o anúncio, o CONAR pode determinar a retirada ou mudança deste, por
entender que está prejudicando, ou pode prejudicar os destinatários dele ou se
o anúncio causar um dano a alguém, essa pessoa pode ingressar ao Judiciário,
tendo como base os dispositivos legais citados (ou outros existentes) para a
reparação desse dano.
Diante disso, fica evidente a importância e necessidade de se estabelecer
limites a uma atividade criativa, como a publicidade, respeitando sempre a
ética, o ordenamento jurídico do país, bem como, as normas estabelecidas
pelos próprios profissionais, a fim de que não seja causado qualquer prejuízo
decorrente dessa atividade.
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O PODER DE INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO
PAULO JOSÉ FREIRE TEOTÔNIO 1
CARLA TOLOI PEREIRA 2
Resumo
O presente artigo, sem maiores pretensões acadêmicas ou políticas, visa
exclusivamente dar contribuição para o debate, atual e pertinente, acerca
da polêmica possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público,
de acordo com a Constituição Federal de 1988, entendimentos firmados pela
doutrina e jurisprudência, buscando demonstrar, ao final, a necessidade
de sua efetivação no meio jurídico, como elemento para completo exercício
não somente do jus puniendi estatal, mas como forma de pacificação social,
função essencial do Direito, rejeitando-se, a par disso, o emprego de filigranas
jurídicas para afastamento da verdade real, com o intuito exclusivo de
perpetuar a impunidade reinante no país, máxime quando se trata de delitos
denominados de colarinho branco.
Palavras-Chave: Ministério Público; Investigação; Atribuição investigatória;
Conflito de atribuições; Constituição Federal.
1.1. INTRODUÇÃO
O Ministério Público, enquanto instituição essencial ao desenvolvimento
e manutenção do Estado Democrático de Direito, hodiernamente encontrase respaldado nos artigos 127 a 130, no capitulo IV, intitulado “Das funções
essenciais à Justiça”, inserido da Constituição Federal de 1988.
Trata-se de instituição com formal autonomia administrativa, financeira
e orçamentária, atuando expressamente na defesa da ordem jurídica, dos
interesses sociais e individuais indivisíveis, dentre outras imprescindíveis
atribuições, sendo o dominus litis, ou seja, o titular da ação penal de iniciativa
pública.
É subdividido em níveis federal (Ministério Público da União, que
compreende os Parquets Federal, Militar, do Trabalho) e estadual (incluindo
o do Distrito Federal e dos Territórios). É também na atual Constituição que
o Ministério Público consolida-se como defensor dos direitos, garantias e
prerrogativas da sociedade.
Situado em capítulo à parte, não permanece, hoje, vinculado a nenhum
dos demais poderes Estatais. É por isso, talvez, que segundo alguns
doutrinadores, o Ministério Público pertenceria a um quarto poder, o que
não nos parece razoável, dada a sua conotação, essência e vinculação formal
ao Poder Executivo, inclusive no que pertine a participação na escolha do
Procurador Geral de Justiça.
Promotor de Justiça em Ribeirão Preto e docente de Direito Penal do Curso de Direito do UNISEB.
Bacharel em Direito pelo UNISEB. Pós-graduanda em Direito Empresarial. Estagiária do Ministério
Público do Estado de São Paulo.
1
2
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1.2. Do Exercício do Controle Externo da Atividade Policial
Faculta-se ao representante ministerial, para cumprimento do seu
valoroso mister principal, a adoção de medidas visando proteger a regular
tramitação de procedimento investigatório, de modo a assegurar a aplicação
do poder punitivo estatal.
Salutar, pois, a atuação conjunta e integrada entre polícia e Ministério
Público, de modo a trabalhar da melhor forma possível, obtendo o resultado
necessário a obter a pacificação social e punição dos responsáveis por infrações
penais. Tal integração colaborativa, no mais das vezes, apesar de desconhecida
da grande maioria, é prática comum nas cidades pequenas e médias.
A atuação institucional é ainda mais importante em se tratando de
situação em que há patente corporativismo por parte do órgão que preside as
investigações, como, v. g., no envolvimento de policiais na prática de crimes.
Luiz Flávio Gomes (2009) comenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº. 4271, interposta pela Adepol (Associação dos Delegados de Polícia)
questionando o supramencionado inciso:
Enquanto aguardamos o juízo de admissibilidade do Pleno na
nova ADI 4271, convém ressaltar que não há dúvida em relação
à necessidade e, até mesmo, da imprescindibilidade, de o MP
acompanhar a investigação preliminar de perto, exercendo um
controle não da conduta dos policiais, mas de caráter procedimental,
em contato direto com a atividade da Autoridade Policial, no
sentido de profundidade, qualidade e legalidade. Incluindo-se aqui
o respeito às formalidades constitucionais a serem preenchidas, ou
seja, uma regulamentação feita por meio de Lei Complementar.
1.3. Da Faculdade de Requisitar Diligências Investigatórias e a Instauração
de Inquéritos Policiais
É prerrogativa institucional do Parquet a requisição para instaurar
inquérito policial ou termo circunstanciado, podendo, inclusive, conduzir a
realização de diligências, determinando a sua realização, ante a necessidade e
possibilidade de sua execução.
Fato bastante comum é a colheita de provas determinadas no âmbito do
próprio Ministério Público, como, por exemplo, a oitiva de testemunhas ou
vítima ante o conhecimento de determinado ilícito penal, com a formalização
de depoimento a ser prestado junto ao próprio promotor, sem que haja
qualquer ilegalidade em tal ato.
É possível ao representante ministerial, assim que recebe o inquérito
policial, a adoção de três medidas: a) o oferecimento da inicial acusatória – ante
a existência de fato típico, certeza da materialidade e indícios suficientes de
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autoria; b) a determinação de novas diligências, remetendo as peças à Delegacia
de origem e; c) o arquivamento dos feitos, ante a inexistência de indícios que
apontem para o sucesso da instrução criminal, dando-se oportunidade para o
desarquivamento e reabertura das investigações ante a notícia de fatos novos
a embasarem a denúncia.
Importa ressaltar que é possível o chamado conflito de atribuições entre
dois representantes institucionais, semelhante ao conflito de competência
jurisdicional.
Também é possível, dentro da teoria dos freios e contrapesos, mesmo
fundamento para a invocação do controle externo, o magistrado discordar
da promoção de arquivamento formulada pelo Parquet e determinar a
sua remessa, consoante o artigo 28 do Código de Processo Penal, ao chefe
institucional (Procurador-Geral de Justiça ou da República, conforme o caso),
que também poderá adotar três posições: concordar com o arquivamento, o
que vinculará o ato jurisdicional; oferecer ele próprio a denúncia, o que na
prática é raro; ou designar outro representante para o oferecimento da inicial
acusatória, sendo que este não agirá em seu próprio nome (o que é bastante
discutido na doutrina, em razão da quebra do princípio da independência
funcional), mas sim em nome do Procurador-Geral. É o chamado princípio da
devolução.
2. O PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
2.1. Antecedentes Históricos e Jurisprudenciais
Necessário analisar, como antecedente lógico ao enfrentamento da
questão central do tema em comento, os estudos relacionados às correntes
favoráveis e contrárias, além adotada pelos Tribunais Superiores, em especial
pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, sobre o poder de
investigação do Ministério Público.
Avaliamos, conforme anteriormente exposto, que o Ministério Público
defende, sobretudo, os interesses primários da sociedade, na função de custos
legis, em consonância com o seu crescimento histórico e institucional.
A discussão acerca do tema é antiga. Um dos primeiros Habeas Corpus3
impetrados ante a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal visava o cerceamento
da atividade investigatória exclusiva pelo Parquet e foi indeferido, acolhendo
o Pretório Excelso a tese do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais,
no sentido de que o promotor que conduz ou auxilia nas investigações
preparatórias não se torna suspeito ou impedido para oferecer denúncia,
dando início, assim, à persecutio criminis.
Por sua vez, a questão foi novamente alvo de apreciação quando
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Procurador da República em Alagoas requisitou ao Delegado da Receita
Federal daquele Estado diligências no sentido de apurar supostas práticas de
crime contra a ordem tributária.
Ante a recusa da autoridade policial, o órgão ministerial determinou
a instauração de inquérito contra o delegado, pela prática de prevaricação,
passando a colher provas diretamente quanto ao fato anteriormente narrado,
sendo o impasse novamente levado ao Supremo4, que se pronunciou no
sentido de inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, CF, no fato de a autoridade
administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público
no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações
penais.
Entretanto, a questão acerca da possibilidade ou não de investigação
direta pela Instituição ganhou novos contornos a partir do Recurso Ordinário
nº. 81.326-7-DF5, em que Delegado de Polícia investigado pela prática de crime
funcional passou a questionar a validade da investigação feita exclusivamente
pelo Parquet, ante o recebimento de notificação para o comparecimento para
depor sobre os fatos.
Irresignado, impetrou Habeas Corpus preventivo, visando obter ordem
para deixar de cumprir o pretendido pelo órgão do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios, já que, consoante o alegado, o seu comparecimento
perante o representante institucional caracterizaria constrangimento ilegal,
por se tratar de procedimento eivado de nulidade, posto que conduzido por
parte ilegítima para tanto.
Ante a denegação junto ao juízo competente, ingressou com o Recurso
Ordinário supramencionado no Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente,
no Supremo Tribunal Federal, obtendo êxito nessa última tentativa, cuja
apreciação foi feita pela 2ª Turma, sendo relator o Ministro Nelson Jobim.
Por sua vez, o Inquérito 1.968-DF, formalizado em desfavor do então
deputado federal Remi Trinta, pela suposta prática de desvio de verbas
públicas destinadas ao Sistema Único de Saúde – SUS – levado ao Supremo
Tribunal Federal, cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio Mello, sequer
foi conhecido, ante a perda do objeto da ação, visto que o parlamentar não foi
reeleito para o exercício do seu mandato, sendo remetido para apreciação da
Justiça Federal no Maranhão, cuja investigação restou infrutífera, em razão
dos crimes já se encontrarem prescritos.
Questionava o averiguado a investigação direta perpetrada pelo
Ministério Público Federal, com provas colhidas junto ao Ministério da
Saúde, visando confirmar a prática em testilha. Inconformado com a denúncia
STF - HC nº. 75.769-3-MG – T1- 1ª T., Rel. Min. OCTÁVIO GALOTTI - DJU 28. nov. 1997.
STF – RExtr. nº. 205.473-9-AL, T2 - 2ª Turma - Rel. Min. CARLOS MÁRIO VELLOSO. DJU 19.3.99.
5
ROHC nº. 81.326-7-DF, T2- 2ª T., Rel. Min. NELSON JOBIM. DJU. 1.8.2003.
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oferecida pelo Parquet federal, o deputado rebateu a acusação, arguindo
em sua defesa a inconstitucionalidade da investigação feita pelo Ministério
da Saúde e pelo Ministério Público, sustentando, em síntese, o monopólio
das investigações à polícia judiciária, em tese, conferido pelo artigo 144 da
Constituição Federal de 1988.
Embora a discussão acerca do Inquérito 1968-DF tenha se encerrado
prematuramente, consigne-se, a título de curiosidade, o constante no
informativo nº. 325 sobre o assunto, posto que o voto, emanado pelo Ministro
Marco Aurélio Mello, foi desfavorável àqueles que defendem a possibilidade
de investigação pelo órgão ministerial.
A questão em estudo também foi arguida em defesa de Sérgio Gomes
da Silva, conhecido como “Sombra” e investigado pelo Grupo de Atuação
Especial no Combate ao Crime Organizado (GAECO) do Ministério Público
de São Paulo pela suposta participação na morte do ex-prefeito de Santo
André, Celso Daniel, o responsável pela denúncia de esquema de lavagem de
dinheiro na Prefeitura Municipal até então.
Impetrado Habeas Corpus (HC nº. 84.548/SP) em favor do paciente
investigado, alegavam os seus patronos a inépcia da inicial acusatória,
chegando a questão ao Supremo Tribunal Federal em junho de 2007,
tendo proferido seus votos os Ministros Marco Aurélio Mello (contrário à
possibilidade investigatória) e Sepúlveda Pertence (favorável). Interrompeu a
apreciação do mérito o Ministro Cezar Peluso, até então não retomada.
2.2. Conceito de Investigação Criminal
Consoante lição de Valter Foleto Santin (2001, p. 31):
Investigação criminal é a atividade destinada a apurar as
infrações penais, com a identificação da autoria, documentação
a materialidade e esclarecimento dos motivos, circunstâncias,
causas e conseqüências do delito, para proporcionar elementos
probatórios necessários à formação da opinio delicti do Ministério
Público e embasamento da ação penal. Representa a primeira fase
da persecução penal estatal; a ação penal corresponde à segunda
fase da persecução.
2.3. Hipóteses de Investigação Direta
Sabino Pontes (2006) faz a seguinte classificação quanto às hipóteses
de investigação, dividindo-as nos seguintes grupos: a) Investigação
direta originária: é aquela em que o representante institucional inicia de
forma autônoma a apuração de determinado fato delituoso, sem que haja
o envolvimento de outros órgãos, como a polícia judiciária, ainda que
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posteriormente venha a requerer o concurso de forças a fim de auxiliá-lo na
empreitada. Um exemplo claro é quando o promotor, por exemplo, determina
a oitiva de certa testemunha em seu gabinete, reduzindo a termo as suas
declarações, instaurando um procedimento administrativo para apurar os
fatos por ela trazidos; b) Investigação direta derivada: é deflagrada por conta
própria, mas o órgão acusatório toma ciência da infração penal por outro
tipo de procedimento instaurado previamente, como por exemplo, uma ação
civil pública que repercute na esfera penal; c) Investigação direta revisora:
é caracterizada quando o representante institucional recebe a investigação já
pronta, por exemplo, com o recebimento do inquérito policial, mas por algum
motivo resolve reavaliar as provas ali existentes, seja por permanecer alguma
dúvida, seja por desconfiança quanto à forma de atuação ou imparcialidade
da autoridade policial na apuração dos fatos.
3. A DIALÉTICA DOUTRINÁRIA SOBRE O TEMA
Apresentaremos, a partir de agora, alguns dos argumentos favoráveis e
desfavoráveis à investigação perpetrada pelo órgão ministerial, ressaltando
que a função do presente trabalho não é esgotar o debate acerca de tão relevante
tema, mas sim oferecer subsídios para a sua expansão, lembrando que o
assunto sempre deve ter por interesse primordial o combate a impunidade,
talvez o maior mal que aflige o nosso país no início do novo milênio, posto que
responsável por nossas atuais maiores mazelas.
3.1. Da Alegada Exclusividade Conferida Pelo Artigo 144 da Constituição
Federal às Polícias
Um dos argumentos mais comumente utilizados é a suposta atribuição
exclusiva da polícia judiciária para a condução das funções investigatórias,
traçada pelo artigo 144 e seus parágrafos da Constituição Federal de 1988.
Semelhante entendimento encontra respaldo na ausência de dispositivo
expresso na própria Constituição Federal de 1988 a prever a atuação
investigatória do Ministério Público e o possível e monopólio atribuído pelo
Constituinte à polícia judiciária.
Nesse sentido, anote-se o entendimento firmado pelo Ministro do
Supremo Tribunal Federal e ex-Advogado-Geral da União, Antonio José
Toffoli, exarado no parecer relacionado à Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº. 4271-8, proposta pela ADEPOL (Associação dos Delegados de Polícia),
contrário, pois, à tese investigatória firmada pelo Ministério Público.
Entretanto, esquecem-se aqueles que sustentam tal prerrogativa a
condução de investigações perpetradas pelas Comissões Parlamentares de
Revista Jurídica FACULDADES COC
209
Inquérito, pela Receita Federal, as previstas no Código Penal Militar em se
tratando de infrações cometidas por miliciano no exercício de suas funções, as
empreendidas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal no caso de
ato ilícito praticado por um de seus membros ou tendo um deles como vítima
nas dependências do prédio em que se localizam os seus recintos.
Nesse contexto, imperioso trazer a presente discussão o princípio da
verdade real, trazida pelos Códigos de Processo Penal Contemporâneos, que
vieram a findar com o até então vigente princípio da verdade formal civilista.
Trata-se, como é cediço, da possibilidade do Magistrado buscar em outros
pontos a dedução da pretensão punitiva, não se limitando a, estaticamente,
observar a formulação de provas e argumentos trazidos aos autos pela acusação
e pela defesa. Na condição de destinatário final do produzido até então, como
representante do Estado-juiz, o magistrado pode livremente movimentar-se na
instrução criminal, respeitados os princípios vigentes na teoria processualista,
cabendo-lhe não apenas a viabilidade, mas a obrigatoriedade de, ante a
existência de outros elementos de convicção quaisquer que não os trazidos
pelas partes, alcançá-los e analisá-los em conjunto com todo o teor probatório
produzido.
Assim, se ao próprio Magistrado é possível a adoção de atos
investigatórios, embora limitados, assegurados pelo legislador pátrio, em
reflexo ao princípio constitucional supramencionado, como se sustentar que a
atribuição de semelhantes atos é exclusiva da polícia?
Entendemos que o artigo 144 da Constituição Federal traz em seu bojo
o intuito de unicamente regular as funções que competem a cada esfera da
polícia, seja federal, estadual, militar, civil ou rodoviária. O que o § 1º do
artigo 144 da atual Carta Magna prescreve é somente o exercício as atividades
de polícia judiciária da União, de tal sorte, não se possibilita à Polícia Civil ou
Militar, v. g., o exercício de sua parcela constitucionalmente fixada.
Inequivocamente, o intuito do legislador foi o de possibilitar a atividade
investigatória também à autoridade policial, mas não somente a ela.
O conceito de polícia judiciária trazido pelo Código de Processo Penal, em
seu artigo 4º define as seguintes atribuições ”A polícia judiciária será exercida
pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e
terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria”.
Percebe-se, por uma análise interpretativa da Constituição, que a
atribuição investigatória foi conferida à polícia judiciária, mas não em caráter
absoluto, pois, segundo célebre frase emanada pelo hoje ministro do Supremo
Tribunal Federal, Eros Grau, “não se interpreta a Constituição Federal, em
tiras, aos pedaços”.
Ora, quando o Constituinte quis a fixação de atribuição exclusiva das
funções de polícia judiciária da União (ou seja, impedindo-se o exercício de
semelhante parcela por outros órgãos da esfera policial dos Estados), a fez
210
Revista Jurídica FACULDADES COC
de modo expresso. Também aqui é possível inferir que o legislador retirou
da competência da polícia civil ou militar dos Estados a possibilidade de
investigação das infrações militares, a serem apuradas em sede própria, junto
a órgão autônomo, que é a Corregedoria da Polícia Militar, com legislação
específica para tanto.
Por fim, consigne-se a diferença entre polícia investigativa e polícia
judiciária. A segunda, segundo apontamentos da doutrina, consiste no
concurso policial visando o cumprimento de decisões na esfera judicial, como,
por exemplo, busca e apreensão, o cumprimento de prisão preventiva, ou seja,
sem caráter antecipativo ou que colabore com a formação probatória para a
persecução penal.
Por fim, colacione-se a seguir o seguinte aresto, emanado pelo E. Superior
Tribunal de Justiça6:
[...] Diversamente do que se tem procurado sustentar, como resulta
da letra de seu art. 144, a Constituição da República não fez da
investigação criminal uma função exclusiva da polícia, restringindose, como se restringiu, tão-somente a fazer exclusivo da Polícia
Federal o exercício da função de polícia judiciária da União (§ 1º,
IV). Essa função de polícia judiciária - qual seja, a de auxiliar do
Poder Judiciário - não se identifica com a função investigatória,
qual seja, a de apurar infrações penais, bem distinguidas no
verbo constitucional, como exsurge, entre outras disposições, do
preceituado no § 4º, do art. 144 da CF [...].
3.2. A Substituição da Função Investigatória da Autoridade Policial Pelo
Ministério Público
Argumenta-se aqui que o representante ministerial, ao requisitar
investigações e documentos à autoridade policial para instruí-lo junto ao
inquérito policial ou o oferecimento da denúncia, substituiria a função
investigatória da autoridade policial e não a controlaria.
É assegurado ao Ministério Público a requisição de informações
e documentos a fim de instruir procedimentos administrativos de sua
competência, bem como requisitar diligências investigatórias, nos casos em
que fundamentadamente, julgar imprescindíveis.
Vislumbra-se, aqui, não uma função substitutiva, mas sim auxiliar, em
se tratando de órgãos associados visando a promoção e a recuperação da paz
social. Assim é incorreto afirmar que o Parquet substitui a função investigatória
perpetrada pela polícia. Trata-se de uma determinação, não de singelo pedido
a ser discricionariamente apreciado pela autoridade policial. Mas a falar que
6
STJ – Resp 2001/0191236-6, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJ 15.12.2003, p. 413.
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211
o órgão institucional toma a frente das investigações, trata-se de exceção, não
de regra.
O Supremo Tribunal Federal7 já se pronunciou no sentido de que a
negativa à requisição de documentos e diligências ofertada pelo representante
ministerial afronta a Constituição Federal, sendo causa de nulidade, em razão
do cerceamento da tese acusatória.
O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades
afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário
não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere
explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério
Público — art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art.
8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº. 75/1993. Não cabe
ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre
nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição,
com recursos subsidiados pelo erário federal, sob invocação do
sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e
documentos para instruir procedimento administrativo instaurado
em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art.
37 da Constituição.
3.3. Do Alegado Excesso do Ministério Público no Controle Externo da
Autoridade Policial
A justificativa da existência do controle exterior da atividade policial,
derivada da teoria dos freios e contrapesos, é bastante polêmica e envolve mais
do que a mera atuação das Autoridades Policiais, mas a própria possibilidade
do ser humano, detentor não apenas de qualidades, mas de defeitos, de ceder
às paixões humanas. Thomas Hobbes já dizia: “O homem é o lobo do homem”.
Sendo assim, com integral respeito a Polícia Judiciária, imperioso demonstrar,
sem afronta direta às relevantes funções correlacionadas à atividade policial,
doutrinária e jurisprudencialmente, a necessidade de controle por outro órgão,
autônomo e isento, com especial rigor em casos específicos.
Necessário apontar que o destinatário direto do produzido pela
autoridade policial não é o Magistrado, mas sim o representante ministerial. É
ele que terá acesso ao inquérito policial, v.g., que deduzirá a pretensão punitiva
em juízo, o que o autoriza a formular análise valorativa do até então colhido.
Se as provas, por ineficiência da autoridade policial (o que, felizmente,
não é prática comum, para não sermos levianos), ou até mesmo por desiderato
impeditivo, como na possibilidade de prevaricação, impossibilitarem ou
prejudicarem o ajuizamento da ação penal, é possível ao promotor assumir
a sua função investigatória, buscando ele próprio, o titular da ação penal, os
7
STF - MS 21.729, Rel. Min. MARCO AURÉLIO MELLO, DJ 19.10.01.
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elementos de convicção que ainda forem possível de se obter. Lembre-se que
pela redação do atual artigo 155 do Código de Processo Penal, as provas obtidas
exclusivamente na fase inquisitiva não servem mais como embasamento para
a pretensão condenatória.
Como é notório, entretanto, o que até então colhido na investigação
preliminar serve como suporte indispensável para a obtenção de êxito no
exercício do jus puniendi estatal, tratando-se, na grande maioria, de provas
ratificáveis perante juízo, ou seja, uma vez produzidas, apenas confirmadas
ante a autoridade competente.
Assim, justifica-se, por exemplo, a urgência na produção de determinada
prova cuja imprescindibilidade seja latente, mesmo na fase do inquérito, não
podendo ser ratificada em juízo, em virtude das próprias condições ou cujo
titular da parcela investigatória (autoridade policial) a ignora ou não a produz
a contento, ocasionando nítido periculum in mora para o representante
institucional (v.g., quando a vítima de uma tentativa de homicídio se encontra
internada, correndo risco de morte, mas ainda sim pode oferecer apontamentos
ou esclarecimentos acerca da materialidade ou da autoria).
É bastante plausível que, ante a inexistência de garantias institucionais
ao exercício das atividades das autoridades policiais, o que se lamenta, possam
ocorrer, de fato, desvios na conduta funcional de alguns, que, por medo,
pressão, interesses ou quaisquer outros argumentos, cedam aos anseios de
outrem, deixando de atuar de forma conveniente ao objetivo social.
Guilherme Costa Câmara (2009), em artigo publicado na rede mundial
de computadores, salienta:
Como se sabe, as “cifras negras” reportam-se à intransparência
ou opacidade de determinados comportamentos delitivos, sendo
de relevo observar em grande medida, são produzidas pelas
instâncias formais de controle social principalmente pela polícia,
instituição que desempenha intenso papel seletivo), traduzindo o
desfasamento entre a criminalidade conhecida pelo sistema penal e
a criminalidade “real”.
[...] Representam, assim, a criminalidade oculta, não registrada,
podendo-se falar graficamente de um “efeito funil”, pois apenas
uma pequena parcela da criminalidade ingressa no sistema.
Nessa zona criminógena, malgrado a irrecusável importância (e a
necessidade) de uma intervenção dinâmica da polícia, constata-se,
inversamente, uma atuação negativa, de sinal contrário (que não se
restringe, todavia, simplesmente a um não agir, isto é, não investigar,
uma vez que também implica em um fazer falho ou imperfeito,
tributável a uma gama de fatores, dentre os quais merecem destaque
a ascendência, a influência e o prestígio social dos presumidos
delinqüentes), que se revela decisiva para a solidificação de um
nível demasiadamente elevado de óbitos de casos penais. [...] De
modo que o elevado déficit de persecução que as “cifras negras”
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213
ocultam, máxime no campo da criminalidade estruturada, e isto
atesta de modo contundente a realidade empírica (9), afeta menos
o prestígio (já demasiadamente comprometido) da atividade
investigativa desenvolvida pela polícia brasileira.
Bruno Calabrich (2007, p. 138), nesse sentido, traz incremento ao tema:
Com efeito, a polícia representa a linha da frente da repressão penal
– e não se deve deixar de consignar sua fundamental importância
para toda a sociedade e para a construção do Estado Democrático
de Direito. É a quem primeiro chega a maior parte das informações
sobre a prática de crimes. Com isso, a autoridade policial é dotada
de algum espaço para a discricionariedade (de fato), a regular
sua postura diante da notícia da prática de um ilícito. Esse espaço
muitas vezes compreende uma zona cinzenta, em que licitude e
arbítrio podem se cruzar. A atuação da polícia, desta sorte, tende a
conferir tratamentos diferenciados a determinados fatos ou pessoas
identificadas, distribuindo impunidade às classes mais abastadas
e abusos aos que integrem estratos economicamente inferiores
da sociedade. Alguns fatores que conduzem a esse tratamento
diferenciado são: (a) a natureza e a gravidade do delito (cuja escala
de valoração policial sofre influências de toda sorte, especialmente
no que diz respeito a crimes de vitimização difusa ou afastados de
sua realidade social); (b) a atitude do denunciante (a tendência é
que sejam evitadas investigações se a vítima não concorda, não
importando se o crime a ser investigado é de ação penal pública
incondicionada; essa tendência pode simplesmente acarretar a
impunidade de muitos crimes em que a vítima é o Estado ou
não há vítimas precisas, como sói acontecer em delitos afetos à
macrocriminalidade); (c) o distanciamento da realidade social entre
as autoridades policiais e os investigados leva a posturas extremas
– aos mais pobres, tratamento mais rigoroso; aos mais abastados
e poderosos, tratamento condescendente; (d) como mecanismo de
potencialização da efetividade da atividade policial, a tendência é
que se dê uma compreensão restritiva (para alguns, a presunção
de inocência não seria mais que uma ficção jurídica, desprovida de
aplicabilidade prática.
O controle externo da atividade policial, assim, não é, por assim dizer, uma
tentativa de cerceamento do exercício funcional de autoridades policiais. Em
determinadas situações, com pertinência, a própria sociedade exige um maior
controle da atividade investigatória e acaba cobrando de seus responsáveis a
efetivação do acesso à justiça social e a preservação dos direitos fundamentais.
Consigne-se, a título de exemplo, o famoso caso da favela Naval, em
Diadema, ocorrido em 1997, em que policiais militares torturaram e mataram
civis em ação desencadeada isoladamente, atraindo a mídia nacional e
estrangeira para o abuso de autoridade por parte de representantes da polícia
214
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brasileira.
A propósito, Mazzilli (2007, p. 400) expressa o seu entendimento da
seguinte forma: “Tanto na área cível como criminal, admitem-se investigações
diretas do órgão titular da ação penal pública do Estado. Para fazê-las, não
raro se valerá de notificações e requisições”.
Vislumbra-se, pois, não a necessidade de retirar a possibilidade de
atuação investigatória em todo e qualquer caso das mãos da polícia, mas em
determinadas situações em que o interesse social está em jogo, como a suspeita
de atuação inidônea por parte dos capacitados ou a ineficiência dos meios para
tanto. Ademais, o controle externo das funções policiais é atribuição direta do
Ministério Público, assegurado constitucionalmente no artigo 129, inciso VII,
como critério de controle dos poderes exercidos por outro órgão como no caso
em estudo.
Um argumento muito utilizado pelos contrários à investigação direta
pelo Ministério Público é a suposta existência de interesse na atuação somente
em casos de grande repercussão, o que não deixa, em parte, de ser pertinente,
em face da necessidade de alguns em atrair holofotes, nos casos denominados
“capa de revista”, onde o interesse prevalente, ao que parece, seria não o de
atender ao interesse social, mas o de marketing pessoal. Felizmente, contudo,
os praticantes de tais equívocos vêm perdendo espaço no bojo da instituição.
A verdade, porém, é que a atuação única e exclusiva da polícia em um
caso como o da favela Naval, v. g., é passível de ser considerada apenas como
desvio de função, sujeita à burocratização e corporativismo existente em todos
os órgãos, acarretando a impunidade de seus agentes.
Manoel Sabino (2006) traça as seguintes considerações acerca do tema:
Observe-se que o controle externo da atividade policial atribuído
ao Ministério Público pela Constituição Federal não é um controle
interna corporis, mas sobre a atividade fim da polícia, ou seja, a
investigação com o escopo de apurar a pratica de crimes. Desta
maneira, cabe ao Ministério Público acompanhar o trabalho
da polícia, buscando evitar ofensas às garantias dos acusados,
bem como orientar as apurações para que cumpram seu fim.
Esta atividade é assaz importante. A atividade investigatória é o
alicerce de toda a persecução penal. Uma investigação displicente,
na prática, impossibilita a busca da verdade. Uma investigação
truculenta é capaz de deixar sequelas permanentes no indivíduo.
Por fim, de se considerar a existência de outros órgãos que atuam no
controle externo do próprio Ministério Público e Poder Judiciário (como os
Conselhos Nacionais de Justiça – CNJ – e do Ministério Público – CNMP).
Destarte, bem ou mal, em sendo possível – e prevista – a fiscalização de tais
instituições, por que não o seria com a polícia judiciária?
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215
Afinal, a investigação isenta de paixões e desprovida de interesse
diverso do social é direito subjetivo do averiguado e deve ser seguida à risca,
como preceito supraconstitucional, ratificado pelos tratados e convenções
internacionais que versam sobre a aplicabilidade dos direitos humanos.
3.4. Ausência de Previsão Expressa Sobre os Poderes Investigatórios do
Ministério Público na Constituição Federal.
Em nosso entendimento, trazendo a colação o entendimento de Eros Grau,
no sentido de que “a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços”,
a atribuição investigatória do Parquet encontra-se, em consonância com
demais incisos que possibilitam a adoção de atos preparatórios à investigação,
plenamente admitida no inciso IX do artigo 129 da Constituição Federal de
1988 (exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis
com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas).
Sendo assim, se é possível a adoção e exercício de outras funções que
lhe foram conferidas pelo Constituinte, aqui se incluem aquelas correlatas ao
exercício do jus puniendi, como a investigação criminal. Necessário frisar que,
de forma categórica, quando o legislador quis limitar a atuação ministerial
em tal inciso, a nosso ver, bastante amplo, o fez de forma expressa (vedada a
representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas).
Salta aos olhos que, por ocasião das grandes discussões emanadas às
vésperas da promulgação da Magna Carta de 1988, conforme salientado no 1º
capítulo, o interesse social era no sentido de evitar a atuação do promotor, lato
sensu, em áreas contraditórias e que o desviasse frontalmente da finalidade
de proteger a sociedade e não lutar contra ela. Tanto é que a Carta de Curitiba
que sintetizou com brilhantismo os anseios e preocupações envolvendo a
classe, lato sensu, foi abraçada praticamente em sua totalidade pela nascente
Constituição, incluindo em seu parágrafo 3º, do artigo 3º, o mesmo sentido
de conferir o exercício de outras funções, desde que não vedadas, ao órgão
ministerial.
Outra justificativa trazida à discussão pelos defensores da atividade
investigatória criminal do Ministério Público é a chamada teoria dos poderes
implícitos, de origem saxônica. Segundo essa corrente, nem sempre tida como
coerente com as especificidades das funções atribuídas pela Constituição,
“quem pode o mais, pode o menos”. Tal entendimento, todavia, está sendo
consolidado ao longo das últimas décadas, tanto na doutrina e jurisprudência
pátrias, ganhando notório aspecto no sentido de preservação de uma finalidade
comum. In casu, a reparação e manutenção da paz social.
O cerne do argumento traz a idéia de que retirar a parcela investigatória do
216
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Parquet seria tolher o exercício de uma atividade englobada dentro da própria
instauração da ação penal. Desta forma, se é atribuição constitucionalmente
fixada a persecutio criminis e assegurada aos representantes ministeriais como
atividade-fim para o sucesso da lide penal, visando um objetivo (satisfação
do interesse público), não há justificativas que impeçam a elaboração da
atividade-meio (e indissoluvelmente vinculada) por aqueles.
Alexandre de Moraes leciona sobre a chamada inherent powers:
Incorporou-se em nosso ordenamento jurídico, portanto, a pacífica
doutrina constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes
implícitos — inherent powers —, pela qual no exercício de sua
missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor
de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que
não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos US — 272
— 52, 118), consagrando-se, dessa forma, e entre nós aplicável ao
Ministério Público, o reconhecimento de competências genéricas
implícitas que possibilitem o exercício de sua missão constitucional,
apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição
Federal (MORAES, 2009, p. 610).
Nesse sentido, a jurisprudência trazida pelo E. Superior Tribunal
de Justiça, nosso tribunal superior mais coerente, admitindo a validade e
aplicabilidade de semelhante princípio com relação à atividade investigatória
perpetrada pelo Parquet8:
O entendimento consolidado desta Corte é no sentido de que
são válidos, em princípio, os atos investigatórios realizados pelo
Ministério Público. A interpretação sistêmica da Constituição
e a aplicação dos poderes implícitos do Ministério Público
conduzem à preservação dos poderes investigatórios deste Órgão,
independentemente da investigação policial. O Supremo Tribunal
Federal decidiu que a vedação dirigida ao Ministério Público é
quanto a presidir e realizar inquérito policial. [...] Precedentes.
Recurso desprovido.
Consigne-se, ainda, o lecionado por Celso Ribeiro Bastos (1992, p. 167):
Se o Ministério Público é o único legitimado a exercer a ação penal
de iniciativa pública e se este exercício lhe é obrigatório a partir
do momento em que se reúnem no procedimento preparatório as
condições da ação e os pressupostos processuais, por conseguinte,
tem que poder colher os meios de que necessita para o desempenho
STJ - RMS 17884 SC 2004/0021295-0 - Rel(a): Ministro GILSON DIPP - J. 16.11.2005 - T5 -5ª T - DJ
19.12.2005 p. 444; STJ - HC 47757 PA 2005/0150509-5 – Rel.(a): Min. GILSON DIPP – J. 16.11.2005 - T5 –
5ª T. – DJ 12.12.2005 p. 409.
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de seu munus constitucional que, antes de um direito, é um dever
que decorre das normas infranconstitucionais que regulam o
exercício da ação de iniciativa pública. Não se pode conceber que
o órgão privativamente legitimado ao exercício da ação penal, ação
esta que é obrigatória, possa ficar refém da autoridade policial e, se
por fás ou por nefas esta não lhe municia dos elementos necessários
ao exercício da demanda penal, possa ter o cumprimento de sua
obrigação constitucional obstacularizada.
O membro institucional é legitimado a instaurar, sob sua presidência,
procedimentos investigatórios diversos do inquérito policial, visando apurar
infrações penais cuja iniciativa da ação penal seja o titular privativo.
Em nenhum momento, insta-nos consignar, há assertiva de que deva
o representante ministerial assumir a presidência do inquérito policial,
certamente de competência do Delegado de Polícia. O que se questiona é, por
vezes, a possibilidade do Parquet tomar a frente de procedimentos apuratórios
próprios, instaurados no âmbito do Ministério Público, como os conhecidos
procedimentos administrativos, de natureza acautelatória e investigativa,
perpetrados no seio do próprio Ministério Público Federal.
Necessária, pois, uma aplicação analógica dos dispositivos encontrados
no Código de Processo Penal, no que tange ao inquérito policial, inserindo-se
no contexto dos procedimentos investigatórios instaurados por membro do
Ministério Público.
Nesta linha de raciocínio, aliás, a ponderação de Osvaldo Capelari Junior
(2001, p. 147):
Em definitivo, a investigação preliminar realizada pelo Ministério
Público seguirá, em linhas gerais, a normativa existente para o
inquérito policial, no que lhe for aplicável. Afinal, ambos são
procedimentos pré-processuais, que se destinam a formar a opinião
do Ministério Público e justificar o oferecimento da denúncia
ou o pedido de arquivamento. [...] Por outro lado, como vimos,
a legislação constitucional e ordinária outorga toda uma série de
poderes ao Ministério Público que nos levam a afirmar que o sistema
permite a figura do promotor-investigador. A falta de um regime
jurídico que defina alguns aspectos de tempo e forma dos atos não
é empecilho para que o promotor instaure e realize a investigação,
pois são perfeitamente aplicáveis por analogia os dispositivos do
CPP que disciplinam o inquérito policial.
O Conselho Nacional do Ministério Público, importante destacar, através
da Resolução nº. 13 de 02 de outubro de 2006, regulamentou o artigo 8º, inciso
V, da Lei Complementar nº. 75, de 20 de maio de 1993, e o artigo 26, inciso IV,
da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, disciplinando, no âmbito do
Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório
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criminal.
Entretanto, a supramencionada Resolução foi objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº. 3836-DF proposta pelo Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil, no nosso entendimento, por crasso equívoco, uma
vez que, em poucas linhas, o § 2º do artigo 127 da Constituição Federal, dispõe
sobre a autonomia funcional do Ministério Público, inclusive no que tange à
regulamentação das atividades empreendidas pela e em nome da Instituição.
Sobredita ação, caso julgada pertinente, coisa que não acreditamos
em respeito a razoabilidade constitucional, poderá lesionar seriamente os
interesses sociais, mormente o da segurança social e da verdade real.
Registre-se, oportunamente, a existência de autorização concedida
pela própria Carta Magna de 1988, em seu artigo 130-A, § 2º que permite a
elaboração de regulamentação própria pelo Conselho Nacional do Ministério
Público, órgão fiscalizatório e exercente do controle externo da Instituição.
De se destacar que, embora se diga que não existe regulamentação
que permita ao Parquet investigar, o poder investigatório do MP encontra
respaldo em nosso sistema jurídico nos seguintes Estatutos, dentre outros:
artigos 128 e 129 da Constituição Federal de1988, Lei 7.347/85, Lei 8.429/92,
Lei 8.069/90, Lei 8.078/90, Lei 10.741/03; podendo-se sublinhar, ainda, o
Estatuto do Ministério Público da União (Lei Complementar nº. 75/93), que
compreende a atividade investigatória ministerial em seu artigo 8º, inciso V.
Já a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº. 8625/93), dispõe
expressamente sobre o assunto em seu artigo 26.
3.5. O Comprometimento da Imparcialidade do Órgão Ministerial no
Exercício das Atividades Investigatórias
O Ministério Público não é, de fato, órgão imparcial, requisito exigível
aos magistrados. Entretanto, os defensores de tal argumento se confundem, ao
afirmar que a Instituição “se contamina”, ao buscar provas que proporcionem
elementos de convicção acerca dos fatos.
Ora, é exatamente para isso que existe o Ministério Público, com a
finalidade de se desincumbir de sua função persecutória. Não obstante, outra
corrente, correlacionada, aduz que a Instituição, ao investigar, acaba por buscar
unicamente provas que servirão para a base acusatória. Tais argumentos não
devem prosperar.
Uma das atribuições fixadas constitucionalmente ao órgão ministerial é
a função de fiscal da lei. A isso se dá a prerrogativa de defender, sobretudo,
a aplicabilidade da Constituição Federal e dos estatutos infraconstitucionais,
assegurando a efetividade do ordenamento jurídico brasileiro.
Como custos legis, cabe ao representante institucional, corolário
das garantias da ampla defesa e da presunção de inocência, defender não
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somente o jus puniendi estatal, mas o exercício das garantias e prerrogativas
fundamentais, asseguradas supraconstitucionalmente.
Goldschmidt (2001) traz importante diferenciação acerca os conceitos de
parcialidade e partialidade. Para o autor, o primeiro seria atributo de quem
é parte em uma relação jurídico-processual, já o segundo corresponde à nãoafetação da conduta do agente processual por questões de índole puramente
pessoal ou subjetiva.
Em sentido contrário à investigação, pela suposta ausência de
imparcialidade do órgão ministerial, consignemos o entendimento manifestado
por Célio Jacinto Santo (2006) delegado da Polícia Federal e ex-delegado da
Polícia Civil:
O MP é parte, portanto não é imparcial, não consegue ser fiscal da
lei e acusador ao mesmo tempo, esconde as provas de descarga e
supervaloriza a prova de carga, há o risco de busca orientada da
prova. No sistema acusatório, vigente entre nós, o MP é parte, e
a imparcialidade é necessariamente atributo do juiz, conforme
Carlos Velloso no RE 215.301-CE. Contraria a lógica uma parte
investigar, acusar e defender posições do acusado. A titularidade
da investigação pelo MP provoca uma desigualdade de armas, pois
o MP filtrará somente as provas favoráveis à acusação, restando
apenas ao acusado a solicitação durante a fase processual, com isso,
ensejará erros judiciários, afetará o status dignitatis do cidadão, o
direito de defesa e a balança da Justiça penderá para um lado[...].
O doutrinador afirma, de modo incisivo, que o Ministério Público
somente produzirá provas relativas à tese acusatória, o que parece não se
compatibilizar com o mandamento constitucional. Esse é um desdobramento
da atual corrente pesquisada, que prega a partialidade da Instituição na
apuração dos fatos anteriores ao início do quadro processual.
Em que pesem tais argumentos, diferentemente do exercício da advocacia,
em que o combativo causídico ficará adstrito apenas a uma possibilidade
assim que assume o munus, ou seja, a defesa, um dos erros mais comuns é
apontar-se ao Ministério Público apenas a sua parcela acusatória, o que não é
verdade. Se assim fosse, o órgão institucional estaria sempre impossibilitado
de postular pelo arquivamento do inquérito policial, pela absolvição em fase
de alegações finais ou até mesmo na recursal, contrariu sensu do que lhe é
possibilitado fazer e é muito frequente no dia-a-dia nas promotorias de justiça
criminais, por exemplo.
Ora, o argumento é lógico: se o Parquet fosse obrigado a sempre adotar
uma postura radical ante determinado fato, como v.g., o Advogado-Geral da
União, que é obrigado a adotar ante a arguição de inconstitucionalidade de
determinada lei, aí é que estaria se ferindo mortalmente o princípio equitativo
da imparcialidade, pois o representante ministerial, mesmo consciente da
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ausência de condições para a propositura e continuidade da ação penal, seria
forçado a dar início a algo que afrontaria a Constituição Federal, a legislação e
a sua própria consciência, no sentido da aplicabilidade da ética deontológica.
Aqui, vislumbra-se claramente o sentido de imparcialidade a ser adotada
pelo Ministério Público em sua área de atuação.
Saliente-se a existência da Súmula 234, do Superior Tribunal de Justiça,
que pacifica e silencia a questão de vez, conforme o seu enunciado a seguir: a
participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal
não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.
Nesse ínterim, anote-se, por fim, o entendimento de José Frederico
Marques (MARQUES, 1961, p. 40):
[...] não há que falar em imparcialidade do Ministério Público,
porque então não haveria necessidade de um juiz para decidir
sobre a acusação: existiria, aí, um bis in idem de todo prescindível
e inútil. No procedimento acusatório deve o promotor atuar como
parte, pois, se assim não for, debilitada estará a função repressiva
do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu,
nem o de juiz, e sim o de órgão do interesse punitivo do Estado.
Complemente-se a afirmação do mestre José Frederico Marques,
ressaltando que o papel do Ministério Público no processo não é o de defensor
do acusado, nem o juiz, mas sim defensor da sociedade, exercitando, ante a
viabilidade de sustentação do jus puniendi, a parcela acusatória do Estado.
Fechamos o assunto com o entendimento de Marcelo Batlouni Mendroni
(2002, p. 273-274):
Entendemos que a imparcialidade não está correlacionada com o fato
de o Ministério Público ser ou não parte, pois, como demonstrado,
considerando que não atua em nome próprio, - portanto, não
defende interesse próprio, - não tem interesse pessoal na solução
da demanda. A questão da imparcialidade deve ser enfocada por
outro ângulo – o da independência. O atuar com imparcialidade
sim está correlacionado com o fato do Ministério Público ter ou não
independência – política e funcional. Apesar do fato de o Ministério
Público ser considerado como parte, acreditamos que atua e atuará
com a necessária imparcialidade sempre que tenha liberdade e
consciência desta mesma liberdade no desenvolvimento de suas
funções, é dizer, sempre que não esteja comprometido de qualquer
forma com o Poder Executivo e possa desenvolver as suas funções
livremente, sem controle de chefes dentro da própria Promotoria
de Justiça, assim como sói acontecer em alguns sistemas jurídicos.
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3.6. O Entendimento Firmado Pelo Supremo Tribunal Federal, O Guardião
da Constituição
A questão da investigação direta sob a ótica do Supremo Tribunal
Federal, de acordo com os sucessivos votos emanados por seus Ministros,
como é evidente, não é pacífica na Suprema Corte.
Da análise dos votos-vista proferidos pelos Ministros do Supremo
Tribunal Federal, todavia, vislumbra-se a mudança de paradigma entre eles.
A questão, que será finalmente decidida pelo Pleno na apreciação do Habeas
Corpus 84548/SP e na análise das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº
8386 e 8306, propostas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil e pela Associação dos Delegados de Polícia, encontrando-se apensadas
e cujo relator é o Ministro Ricardo Lewandowski, poderá ter pacificação ainda
neste ano de 2010.
Até o momento, o entendido prevalente é o de que ao Ministério Público
pode realizar diligências investigatórias, entretanto, não pode presidir o
inquérito policial, atribuição exclusiva da polícia judiciária.
4. CONCLUSÃO
O presente artigo, de forma descompromissada de razões políticas,
ideológicas ou mesmo interesses corporativos, buscou sintetizar a possibilidade
de investigação criminal perpetrada pelo Ministério Público. Apesar das
divergências e entendimentos contrários, semelhante acautelamento pelo
representante ministerial traz benefícios a toda a sociedade, em se tratando de
hipótese em que, mais que o interesse estatal em punir, o próprio sentimento
de justiça social está em jogo.
Mais do que fomentar discussão corporativa, no nosso entender, importa
também oferecer à polícia judiciária condições adequadas e garantias de que
o seu trabalho não será abruptamente interrompido ou sujeito a interesses de
terceiros, como pudemos visualizar em inúmeros casos.
Em nenhum momento se cogitou a possibilidade do Ministério Público
assumir a presidência de inquéritos policiais, tarefa certamente atribuível com
exclusividade às autoridades policiais. Entretanto, o que se tem em mente é a
possibilidade de, ante determinado fato em concreto, o promotor-investigador
assumir para si o ônus da produção de determinada prova, que, ressalte-se,
não serve como juízo valorativo apenas de sua opinio delicti, como titular da
ação penal pública, mas também da viabilidade da própria ação a ser proposta.
Não sem razão, em outros casos peculiares, as atividades investigatórias
são adequadas a outros tantos outros órgãos autônomos, como é o caso das
perpetradas pela Receita Federal, Banco Central, Controladoria-Geral da
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União, IBAMA (nos casos de crimes ambientais), sem contar as investigações
a cargo das famosas Comissões Parlamentares de Inquérito, dentre outros,
sendo de todo defensável a não exclusividade da Autoridade Policial em
determinadas ocasiões, justificáveis e específicas.
Seria paradoxal, ou no mínimo curioso, imaginar o reconhecimento de
semelhantes atribuições por instituições que não desempenham atribuições
voltadas para o jus puniendi estatal, negando-se, contraditoriamente, o
exercício da parcela investigatória pelo Ministério Público, titular da ação
penal pública.
Devemos nos afastar do mero corporativismo ou, pior ainda, do
interesse daqueles que querem sepultar qualquer tipo de apuração real, uma
vez que proibir a investigação criminal perpetrada pelo Parquet, em razão de
conveniência política ou em atenção a interesses privados, seria o mesmo que
garantir a impunidade de determinadas pessoas ou fatos, alguns de gravidade
ímpar.
A história ministerial no país aponta, também, a realocação da instituição
para função essencial a Justiça, ou seja, sem subordinação a quaisquer outras
esferas que compõe o poder tripartite brasileiro. Sendo assim, são evidentes
os interesses no prejuízo de uma atuação isenta de paixões, em razão de sua
autonomia e independência, conquistadas na Carta Magna de 1988, afinal o
Ministério Público é o legitimado social para a persecução da paz pública e
promoção do bem comum.
No cotidiano das promotorias de justiça, deparando-se com a necessidade
de complementação do caderno apuratório, nada pode ser invocado como
fundamento para impedir a adoção de medidas que garantam a procedibilidade
e viabilidade daquela prova, sem a necessidade de remeter o inquérito à
polícia, visando à apuração da verdade real e o imperioso combate a lacerante
impunidade reinante no país.
Imaginemos, verbi gratia, uma situação em que é necessária a oitiva de
uma testemunha, com o a fim de embasar a inicial acusatória. É algo simples,
mas, ante o tumultuado expediente das delegacias de polícia, mesmo com
um pedido de urgência, é possível que se demore muito tempo até que se
satisfaça o pretendido pelo Parquet, talvez até correndo-se o risco de perdê-la
pela demora, o que caracteriza o periculum in mora e o fumus boni juris.
É evidente que em todos os órgãos, sejam policiais, ministeriais ou
judiciários, existem bons e péssimos profissionais. Estes últimos certamente
obstarão sobremaneira a fluência do trabalho diário, sobretudo no que tange
ao mais complexo, sendo pertinente, a par disso, considerar que o trabalho
policial é supervisionado pelo Ministério Público, o qual, por sua vez, sofre o
controle de legalidade do Estado-Juiz, que tem o condão de ratificar ou eliminar
determinada prova, como, por exemplo, aquela obtida de modo ilícito.
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É importante ressaltar que a criminalidade que prejudica o nosso país é
aquela que vem, principalmente, de poderosos e influentes e não de classes
mais pobres.
Assim, o interesse social é diretamente afetado com a ocorrência de
delitos de pequena divulgação na mídia (pela preservação da imagem de seus
responsáveis), mas de nítida lesão ao patrimônio público.
O que impulsiona a continuidade de tais práticas é exatamente o
sentimento de impunidade que reina para tais criminosos, que descaradamente
riem do poder público por acreditar que nunca sofrerão as sanções de uma
máquina punitiva estatal falida e retrógrada.
E é exatamente um Ministério Público atuante, como um sopro de
inovação (ante as suas novas atribuições conferidas pela Constituição Federal
de 1988), que os “ladrões de colarinho branco” temem e buscam tolher.
A denominada Constituição Cidadã, contrariamente, tem como
fundamento e esteio o interesse social. Desta forma, ante a discussão de quem
detêm ou não o monopólio das investigações criminais (se é que monopólio
existe), a quem deve ser atribuído, deve-se levar em conta o que surtirá
melhores efeitos para a sociedade, o que gerará efetivo combate a impunidade.
Em se tratando da necessidade de prevenção e reparação de fatos lesivos,
o que se pode inferir como imprescindível do ponto de vista social é que a
atuação conjunta e subordinada entre polícia judiciária e Ministério Público,
de modo harmonioso e integrado, nos moldes do almejado pelo Constituinte,
constituindo-se numa das saídas para a diminuição da criminalidade
organizada que tanto vem amedrontando a população.
A leitura sistemática da Constituição, com balizamento na doutrina
e da jurisprudência consolidadas, leva à conclusão, inexorável, conforme
defendemos, de que a investigação criminal perpetrada pelo representante
ministerial não é ilegal, tampouco inconstitucional. De se observar que,
embora a Carta Magna não trate diretamente sobre o assunto, ela tampouco
proíbe a colheita de atos investigatórios pelo órgão ministerial.
Não é possível a arguição de nulidade de referidos atos investigatórios,
sob pena de extinção da punibilidade de muitos averiguados pelo Parquet
em fase pré-processual, quando o interesse social exige que tais indivíduos;
meliantes da pior estirpe, no mais das vezes protegidos por gordas contas
bancárias e amizades poderosas, pela culpabilidade e gravidade de suas
condutas; sejam duramente repreendidos pela justiça pública, como forma de
repressão e prevenção, conforme pauta a Legislação Penal. É o que a sociedade
deseja. É o que o Ministério Público busca, como legítimo representante da
coletividade.
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A Revista Jurídica FACULDADES UNICOC publica
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a contribuições de juristas e demais profissionais do
Direito, as quais devem observar a seguinte linha
editorial:
Remessa de artigos e resenhas
A remessa dos textos a serem avaliados pelo Conselho
Editorial da Revista Jurídica FACULDADES COC deve
ser por meio eletrônico, via e-mail revistajuridica@
coc.com.br ou por correio convencional, com envio
do material em disquete ou CD para o endereço: Rua
Abrahão Issa Halack, 980 – Ribeirânia – CEP: 14096160 – Ribeirão Preto-SP – A/C Conselho Editorial –
Revista Jurídica FACULDADES COC.
Os artigos devem ter até 30 laudas e ser redigidos
conforme os padrões da Associação Brasileira de
Normas Técnicas – ABNT (NBR6023/NBR10520/
NBR14724). Devem ser precedidos de resumo. Textos
mais extensos, acima do limite estabelecido, podem
ser publicados, a critério, justificado, do Conselho
Editorial da Revista Jurídica FACULDADES COC.
As resenhas, por sua vez, devem conter no máximo 10
laudas, também de acordo com as normas da ABNT,
acima mencionadas. Devem conter um título e não
precisam ser precedidas de resumo.
Formatação
Os textos enviados ao Conselho Editorial da Revista
Jurídica FACULDADES COC devem respeitar as
regras abaixo:
Folha: A4
Editor de texto: Word for Windows 6.0 ou superior
Margens esquerda, direita, superior e inferior: 2,0 cm.
Fonte: Arial
Tamanho da Fonte: 12
Espaçamentos anterior e posterior do parágrafo: 0 cm.
Espaçamento entre linhas: 1,0 (simples)
Tabulação do parágrafo: 3,0 cm.
Estilo do parágrafo: justificado.
A primeira página do artigo deve conter:
a) título, com palavras maiúsculas, em negrito;
b)
nome(s)
completo(s)
do(s)
autor(es),
qualificação(ões), cargo(s), intituição(ões) à(s) qual(is)
pertence(m);
c) resumo em português (se possível, também em
inglês) com no mínimo 100 e no máximo 150 palavras.
d) cinco palavras-chave, em português (e inglês, se o
resumo for também realizado na referida língua);
e) em seguida, deve ser iniciado o texto do artigo.
Referências bibliográficas
Devem ser citadas em nota de rodapé com a indicação
de sobrenome, nome, título da obra, local, editora, ano
e página referenciada na publicação.
As referências completas devem ser apresentadas
no final do texto, em ordem alfabética, conforme as
normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas
– ABNT (NBR6023).
Informações complementares
No final do texto, após as referências bibliográficas,
devem constar informações complementares sobre o
autor, como o nome completo, endereço, fone, fax e
e-mail.
Os artigos assinados são
exclusiva do(s) autor(es).
de
responsabilidade
Avaliação dos artigos
A avaliação dos artigos é de responsabilidade do
Conselho Editorial da Revista Jurídica FACULDADES
COC. O referido Conselho, após a análise do
conteúdo do texto enviado para avaliação (de acordo
com o processo Blind Peer Review), poderá propor
modificações para a sua adaptação à política editorial
da Revista. Os autores serão informados por e-mail
sobre o andamento da avaliação e a possibilidade de
publicação.
* As opiniões expressas pelos autores em seus
trabalhos, artigos e entrevistas não refletem
necessariamente a opinião das FACULDADES
COC, do Sistema COC de Educação e Comunicação,
de seus mantenedores, diretores, coordenadores,
docentes, discente e membros do Conselho Editorial.
Por terem ampla liberdade de opinião e de crítica,
cabe aos colaboradores das Revistas Jurídicas
FACULDADES COC a responsabilidade pelas idéias
e pelos conceitos emitidos em seus trabalhos. Aos
colaboradores não serão devidos direitos autorais ou
qualquer remuneração pela publicação dos trabalhos
nas Revistas Jurídicas FACULDADES COC. O autor
receberá gratuitamente um exemplar do número da
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sido publicado.