Parte I

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Parte I
Parte I
Fotografia cedida por Louis Zamperini, feita a partir de uma imagem original de John Brodkin.
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UM
A Rebeldia Personificada
Na escuridão que antecedeu a alvorada do dia 26 de agosto de 1929,
no quarto das traseiras de uma pequena casa de Torrance, na Califórnia, um rapaz de doze anos estava sentado na cama, à escuta. Do exterior, chegava-lhe um som que estava a ficar cada vez mais intenso. Era
um ímpeto que sugeria imensidão, uma força que cortava o ar. E a sua
origem encontrava-se precisamente por cima da casa. O rapaz saltou
da cama, desceu as escadas apressadamente, abriu a porta das traseiras e correu pelo relvado. O quintal parecia pertencer a outro mundo,
envolto numa escuridão invulgar e estremecendo com o som. O rapaz
ficou parado na relva, ao lado do irmão mais velho, a cabeça caída para
trás, fascinado.
O céu tinha desaparecido. Um objeto de que apenas conseguia
distinguir a silhueta, e que se estendia ao longo de um imenso arco de
espaço, estava suspenso no ar, sobranceiro à casa. Era mais extenso do
que dois campos de futebol, tão alto como uma cidade e estava a ocultar as estrelas.
Aquilo que o rapaz estava a presenciar era o dirigível Graf Zeppelin. Com perto de duzentos e quarenta metros de comprimento e cerca
de trinta e três metros de altura, foi a maior máquina voadora alguma
vez fabricada. Mais luxuoso do que o melhor dos aviões, deslizando
sem esforço através de longas distâncias e construído a uma escala que
deixava os espectadores boquiabertos, tinha sido, no verão de 1929, a
maravilha do mundo.
O dirigível estava a três dias de completar uma sensacional proeza
aeronáutica: a circum-navegação do globo. A viagem tivera início no dia
7 de agosto, quando o Zeppelin largara as suas amarras em Lakehurst,
Nova Jérsia, se elevara, com um longo e lento suspiro, e se encaminhara
para Manhattan. Naquele verão, na 5.ª Avenida, a demolição do Hotel
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Waldorf-Astoria estava em vias de começar, abrindo espaço para um
arranha-céus de proporções sem precedentes, o Empire State Building.
No Yankee Stadium, no Bronx, os jogadores estavam a estrear equipamentos numerados: Lou Gehrig vestia o número 4; Babe Ruth, em vésperas de atingir o seu quingentésimo home run, envergava o número 3.
Em Wall Street, os preços das ações estavam a disparar e a atingir os
valores mais altos de todos os tempos.
Depois de contornar lentamente a estátua da Liberdade, o Zeppelin apontou para norte, depois virou para o Atlântico. Passado algum
tempo, a terra voltou a surgir lá em baixo: França, Suíça, Alemanha.
A nave sobrevoou Nuremberga, onde um político insignificante Adolf
Hitler, cujo partido nazi havia sido esmagadoramente derrotado nas
eleições de 1928, tinha acabado de proferir um discurso de incitamento
ao infanticídio seletivo. Em seguida, rumou para ocidente de Frankfurt, onde uma mulher judia de nome Edith Frank estava a tratar do
seu bebé recém-nascido, uma menina chamada Anne. Navegando para
nordeste, o Zeppelin sobrevoou a Rússia. Aldeões siberianos, tão isolados que nem mesmo um comboio haviam visto, caíram de joelhos
perante aquela aparição.
No dia 19 de agosto, o Zeppelin circulou sobre Tóquio e aterrou
num aeródromo perante cerca de quatro milhões de japoneses que agitavam lenços e gritavam “Banzai!”. Quatro dias mais tarde, ao som dos
hinos da Alemanha e do Japão, a nave elevou-se e foi engolida por um
tufão que a empurrou, através do Pacífico e a uma velocidade vertiginosa, na direção dos Estados Unidos. Os passageiros, olhando fixamente
pelas janelas, divisavam apenas a sombra do dirigível, seguindo-o ao
longo das nuvens, “como um tubarão gigante que nadasse ao seu lado”.
Quando as nuvens se abriam, os passageiros avistavam criaturas gigantes, deslocando-se no mar, que pareciam monstros.
A 25 de agosto, o Zeppelin chegava a São Francisco. Depois de ter
sido aplaudido ao longo da costa californiana, deslizou pelo crepúsculo,
penetrou na escuridão e no silêncio e transpôs a meia-noite. Lento como
uma brisa, sobrevoou Torrance, tendo apenas por testemunhas algumas almas dispersas e sonolentas, entre as quais o rapaz de pijama, no
quintal da casa de Gramercy Avenue.
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De pé, descalço na relva, sob o dirigível, o rapaz estava paralisado.
Aquilo era, diria ele mais tarde, “assustadoramente belo”. Conseguia
sentir o rugir dos motores da nave a revolverem o ar, mas não conseguia distinguir a sua pele prateada, as costelas arredondadas, a cauda
em forma de barbatana. Apenas via a escuridão do espaço que ela ocupava. Não era uma grande presença, mas sim uma grande ausência,
um oceano geométrico de escuridão que parecia engolir o próprio céu.
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O nome do rapaz era Louis Silvie Zamperini. Filho de imigrantes
italianos, tinha vindo ao mundo em Olean, Nova Iorque, no dia 26 de
janeiro de 1917, com cinco quilos e vinte gramas e uma cabeleira negra
mais crespa que arame farpado. O pai, Anthony, tornara-se independente aos catorze anos, trabalhando, primeiro, como mineiro e pugilista,
depois, na construção civil. A mãe, Louise, era uma mulher pequenina,
de uma beleza cheia de vida, que casara aos dezasseis anos e tivera Louie
aos dezoito. No apartamento em que viviam, e onde apenas se falava
italiano, Louise e Anthony tratavam o filho por Toots1.
A partir do momento em que começou a andar, Louie deixou de
suportar sentir-se limitado nos seus movimentos. Os irmãos recordavam-se de o ver cirandar de um lado para o outro, saltando por cima de
plantas, animais e mobília. Assim que Louise o sentava numa cadeira
e lhe dizia que ficasse quieto, ele desaparecia. Se ela não mantinha o
seu irrequieto filho bem seguro pela mão, era frequente não saber por
onde ele andava.
Em 1919, quando Louie, então com dois anos, ficou doente com uma
pneumonia, trepou para a janela do quarto, desceu do primeiro andar
e fugiu, rua abaixo, completamente nu, com um polícia no seu encalço
e uma multidão a observar, incrédula. Pouco depois, e por aconselhamento de um pediatra, Louise e Anthony decidiram mudar-se com os
filhos para o clima mais ameno da Califórnia. Assim que o comboio
1. Bebé ou queridinho. (N. da T.)
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em que viajavam saiu da Grand Central Station, Louie desatou a correr
até ao fim do comboio e saltou da carruagem do guarda-freio. Quando
o comboio rolava em marcha-atrás, à procura do rapazinho perdido,
Pete, o irmão mais velho de Louie, que estava de pé, ao lado da ansiosa
mãe, avistou o irmão a passear pelos carris numa total descontração.
Quando a mãe o tomou nos braços, Louis sorriu. “Sabia que virias atrás
de mim”, disse, em italiano.
Na Califórnia, Anthony conseguiu arranjar emprego como eletricista ferroviário e comprou um terreno com cerca de dois mil metros
quadrados no extremo de Torrance, uma cidade com 1800 habitantes.
Anthony e Louise improvisaram uma cabana de uma só divisão, sem
água corrente, com uma latrina exterior nas traseiras e um telhado que
deixava entrar tanta água que tinham de colocar baldes em cima das
camas. Tendo apenas trincos nas portas, à laia de fechaduras, Louise
começou a sentar-se numa caixa de maçãs, encostada à porta da casa,
com um rolo da massa na mão, disposta a esmagar o crânio a qualquer
meliante que se atrevesse a ameaçar os seus filhos.
Ali, e na casa de Gramercy Avenue, onde se instalaram um ano
mais tarde, Louise manteve os gatunos longe de casa, mas não conseguiu manter Louie por perto. Participando numa corrida disputada
através de uma movimentada autoestrada, por pouco não foi colhido
por uma carrinha. Aos cinco anos, começou a fumar, apanhando beatas de cigarro que encontrava a caminho do jardim-escola. Certa noite,
quando tinha oito anos, começou a beber: escondera-se debaixo da mesa
de jantar, surripiando copos de vinho que bebeu a seco, depois cambaleara até ao exterior e caíra em cima de uma roseira.
Um dia, Louise descobriu que Louie tinha espetado a perna numa
cana de bambu; noutro dia, teve de pedir a um vizinho para coser o
dedo de Louie que tinha sido quase arrancado. Quando Louie chegou
a casa encharcado em petróleo, depois de ter estado a escalar uma torre
de sondagem, ter mergulhado num poço de drenagem e de quase se ter
afogado, foram necessários quatro litros de terebintina e muita esfregadela para que Anthony conseguisse reconhecer o filho.
Fascinado pelo derrubar de fronteiras, Louie era indomável.
À medida que foi crescendo e adquirindo uma inteligência invulgar, as
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pequenas proezas audaciosas deixaram de o satisfazer. Nascia, em Torrance, a rebeldia personificada.
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Tudo o que era comestível, Louie roubava. Sorrateiro, percorria becos
com um rolo de arame no bolso, para abrir fechaduras. Donas de casa
que se ausentassem da cozinha, descobriam, ao regressar, que o seu jantar tinha desaparecido. Pessoas que acaso estivessem a espreitar por uma
janela das traseiras, eram capazes de vislumbrar um rapaz de pernas compridas fugindo com um bolo inteiro nas mãos. Quando uma família da
zona excluiu Louie da lista de convidados para um jantar, o rapaz forçou
a entrada na casa, subornando o Grand Danois da família com um osso,
e roubou tudo que encontrou no frigorífico. Numa outra festa, saiu às
escondidas, levando um barril cheio de cerveja. Quando descobriu que
as mesas de arrefecimento da Padaria Meinzer ficavam à distância de
um braço, entrando pela porta das traseiras, começou a abrir a fechadura
com o arame, a surripiar tartes, a comer até fartar e a reservar o resto para
usar como munições em emboscadas. Quando ladrões rivais começaram
a copiar o crime, ele suspendeu a atividade até os culpados serem apanhados e os donos da padaria baixarem as guardas. Nessa altura, deu indicações aos amigos para assaltarem, de novo, a Padaria Meinzer.
Era certo e sabido que todas as histórias que Louie contava sobre
a sua infância, acabavam invariavelmente com “… e, então, eu desatei a
correr como um louco”. Era frequente ser perseguido por pessoas a quem
tinha roubado, tendo pelo menos duas delas ameaçado que disparariam
sobre ele. Para reduzir o número de provas que a polícia pudesse encontrar na sua posse, quando, como era habitual, acabasse por encontrá-lo, construiu esconderijos para albergarem o fruto dos seus saques em
diferentes pontos da cidade, incluindo um buraco com três compartimentos, que escavou numa floresta das redondezas. Certa vez, Pete
encontrou, sob as bancadas do campo de jogos do liceu de Torrance,
um jarro de vinho roubado que Louie aí tinha escondido. Estava repleto
de formigas embriagadas.
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Louie bloqueava, com papel higiénico, as ranhuras das moedas dos
telefones públicos do foyer do teatro de Torrance. Regressava depois,
regularmente, para enfiar arame e empurrar as moedas que tinham ficado
presas no interior, retirar o papel e encher as mãos com elas. Um comerciante de metal nunca desconfiou que o sorridente rapazinho italiano
que frequentemente aparecia para lhe vender mãos-cheias de sobras de
cobre, tinha, na noite anterior, roubado aquele mesmo cobre das suas
próprias reservas. Tendo descoberto, durante uma escaramuça com um
inimigo que tivera lugar no circo, que os adultos, quando viam crianças
a lutar, eram capazes de lhes dar moedas para elas se acalmarem, Louie
estabeleceu uma trégua com esse inimigo e os dois começaram a deambular juntos, encenando brigas perante estranhos.
Para se vingar do condutor de uma automotora que não parara
para o deixar passar, Louie espalhou gordura nos carris. Quando
uma professora o mandou ficar de pé, num canto da sala, por ter cuspido bolas de papel, ele esvaziou os pneus do carro dela com palitos.
Depois de ter estabelecido, nos escuteiros, um recorde estatal legítimo
na obtenção de fogo por fricção, resolveu bater o seu próprio recorde,
ensopando a mecha em gasolina e misturando-a com cabeças de fósforos, o que provocou uma pequena explosão. Tendo roubado o tubo
interno da cafeteira de um vizinho, instalou, numa árvore, um ninho
de atirador furtivo, depois, enchendo a boca de bagas de pimenteiro-bastardo, entreteve-se a dispará-las através do tubo e a pôr em fuga
as raparigas da vizinhança.
A sua obra-prima tornou-se lendária. Certa noite, já a hora ia
adiantada, Louie trepou ao campanário de uma igreja batista, atou o
sino com corda de piano, prendeu a outra ponta da corda a uma árvore
ali próxima e acordou a polícia, os bombeiros e toda a população de
Torrance com um dobrar de sinos aparentemente espontâneo. Os habitantes mais crédulos atribuíram o fenómeno a um sinal divino.
Só uma coisa o assustava. Quando Louie estava a entrar na adolescência, um piloto aterrou perto de Torrance e levou-o a dar uma volta
de avião. Seria de esperar que uma criança tão intrépida ficasse maravilhada, mas a velocidade e a altitude assustaram-no. Desse dia em diante,
nunca mais quis saber de nada que envolvesse aviões.
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Numa infância esquiva e astuciosa, Louie fez mais do que apenas
tropelias. Moldou o homem que iria ser na idade adulta. Confiante em
que era esperto, engenhoso e suficientemente destemido para escapar
a qualquer situação de dificuldade, tornou-se quase incapaz de se deixar desanimar. Quando a História o arrastou para a guerra, aquele otimismo determinado iria defini-lo.
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Louie tinha menos vinte meses do que o irmão, que era tudo aquilo
que ele não era. Pete Zamperini era bonito, popular, andava impecavelmente arranjado, era educado para com os mais velhos, tratava os mais
novos como se fosse seu tio e as raparigas com meiguice, e tinha sido abençoado com um tal bom senso que, mesmo quando era criança, os pais
pediam-lhe a opinião relativamente a situações difíceis. Segurava a cadeira
da mãe para ela se sentar à mesa, deitava-se às sete, enfiava o despertador debaixo da almofada para não acordar Louie, com quem partilhava
a cama. Levantava-se às duas e meia da madrugada para fazer três horas
de distribuição de jornais, e depositava todo o dinheiro que ganhava no
banco, o qual lhe iria sugar todos os cêntimos assim que a Depressão chegasse. Tinha uma bela voz de cantor e o hábito galante de trazer alfinetes
nas dobras das calças para a eventualidade de a alça do vestido da sua parceira de dança se soltar. Uma vez, salvou uma rapariga de se afogar. Pete
emanava uma suave, mas impressionante, autoridade, que levava todas as
pessoas que conhecia, inclusivamente adultos, a deixarem-se influenciar
pela sua opinião. Até mesmo Louie, para quem não dar ouvidos aos conselhos de ninguém era quase uma religião, fazia tudo o que Pete dizia.
Louie idolatrava Pete, que olhava pelo irmão e pelas irmãs, Sylvia e
Virginia, com uma proteção paternal. Mas Louie vivia eclipsado e estava
constantemente a ser repreendido. Sylvia recordava-se de a mãe lamentar,
muito chorosa, que Louie não fosse um pouco mais parecido com Pete.
O que era mais exasperante é que a fama de Pete não passava, em certa
medida, de um mito. Apesar de as notas de Pete serem pouco melhores
do que as notas negativas de Louie, o diretor da escola partira do prinINVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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cípio de que ele era um aluno excelente. Na noite do milagre do sino
da igreja de Torrance, um feixe de luz bem direcionado teria revelado
as pernas de Pete penduradas da árvore, ao lado das pernas de Louie.
Assim como Louie não tinha sido o único miúdo Zamperini a ser visto
a fugir por um beco, levando comida que até então tinha pertencido aos
vizinhos. Não obstante, nunca passou pela cabeça de ninguém suspeitar de Pete, fosse pelo que fosse. “O Pete nunca era apanhado”, contou
Sylvia. “Já o Louie era sempre apanhado.”
Nada em Louie se assemelhava às outras crianças. Era um rapaz
franzino. Nos primeiros anos passados em Torrance, quando os seus
pulmões ainda se encontravam muito debilitados devido a uma pneumonia, todas as raparigas da cidade conseguiam vencê-lo nas corridas
que se faziam nos piqueniques. As suas feições, que mais tarde haveriam de chegar a um agradável entendimento, cresciam a ritmos diferentes, dando origem a um rosto peculiar que parecia estar a ser planeado
em reuniões de conselhos municipais. As orelhas estavam afastadas da
cabeça, parecendo pistolas enfiadas em coldres e, acima delas, agitava-se uma calamidade de cabelo negro que o deixava mortificado e que
ele atacava com o ferro quente da tia Margie, apertava todas as noites
numa meia de vidro e embebia em tanto azeite, que as moscas iam a
persegui-lo até à escola. Tudo em vão.
Havia, ainda, a questão da sua etnia. Nos inícios da década de 1920,
em Torrance, os italianos eram olhados com tanto desdém que, quando
os Zamperini chegaram, os habitantes apresentaram uma petição ao
conselho municipal, pedindo que interditasse a sua permanência. Louie
que, até entrar para a escola primária, apenas falava um inglês muito
rudimentar, não conseguia esconder as suas origens. Sobreviveu à pré-primária ficando calado, mas, no primeiro ano, quando gritou “Brutte
bastarde!” para um colega, os professores ouviram e prolongaram ainda
mais a sua infelicidade, fazendo-o recuar um ano.
Era um rapaz marcado. Os rufiões, atraídos pela sua peculiaridade e
na esperança de o levarem a praguejar em italiano, atiravam-lhe pedras,
insultavam-no, esmurravam-no e davam-lhe pontapés. Ele tentava comprar a clemência deles com o seu almoço, mas, ainda assim, eles continuavam a espancá-lo, deixando-o ensanguentado. Louie poderia evitar
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as agressões, fugindo ou sucumbindo em lágrimas, mas recusava-se a
fazer qualquer dessas coisas. “Podiam espancá-lo até à morte”, contou
Sylvia, “que ele jamais soltaria um ‘ai’ ou verteria uma lágrima.” Limitava-se a tapar a cara com as mãos e a aguentar.
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Ao chegar à adolescência, porém, Louie mudou radicalmente. Indiferente e agressivo, deambulava pelos limites de Torrance, forjando frágeis
amizades com rufiões que seguiam a sua liderança. Tornou-se tão “germofóbico” que não tolerava que ninguém se aproximasse da sua comida. Apesar de, por vezes, conseguir ser um rapaz meigo, era frequente ter acessos
de mau génio e de rebeldia. Fingia ser duro e destemido, mas vivia secretamente atormentado. Crianças que iam a caminho de festas, costumavam vê-lo parado, do lado de fora, incapaz de ganhar coragem para entrar.
Frustrado perante a incapacidade de se defender, fez um estudo da
situação. O pai ensinou-o a treinar com um saco de boxe e improvisou
um haltere com duas latas de café cheias de chumbo, soldadas a um
cano. Na vez seguinte em que Louie foi abordado por um rufia, inclinou
a cabeça para a esquerda e lançou o punho direito na direção do rapaz,
acertando-lhe em cheio na boca. O rufia gritou, os dentes partiram-se-lhe e desatou a fugir. Aquela sensação de leveza, que Louie experimentou no caminho de regresso a casa, nunca mais a esqueceu.
Com o passar do tempo, o temperamento de Louie tornou-se ainda
mais indomável, o pavio foi ficando cada vez mais curto e as suas tendências refinadas. Espancou uma rapariga. Empurrou uma professora.
Agrediu um polícia, lançando-lhe tomates podres. Miúdos que o importunassem, acabavam com os lábios esmurrados. Os rufias começaram,
então, a evitá-lo. Certa vez, Louie encontrou Pete no jardim de casa,
num frente a frente com outro rapaz. Estavam ambos com os punhos
junto ao queixo, cada um à espera que o outro fizesse o primeiro movimento. “Louie não se conteve”, recordou Pete. “Pôs-se a gritar: ‘Bate-lhe,
Pete! Bate-lhe!’ Mas como eu continuava à espera, ele de repente voltou-se e atingiu o rapaz bem no meio da barriga. Depois desatou a correr!”
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Anthony Zamperini estava a ficar desesperado, sem saber o que
fazer. A polícia parecia estar sempre à porta de sua casa, a tentar incutir
algum juízo na cabeça de Louie. Havia sempre vizinhos a quem pedir
desculpa, e estragos a indemnizar com dinheiro de que Anthony não
dispunha. Apesar de adorar o filho, Anthony ficava exasperado com
o seu comportamento e era frequente dar-lhe fortes tareias. Uma vez,
depois de apanhar Louie a entrar por uma janela, a meio da noite, deu-lhe um pontapé no traseiro com tamanha força que levantou o rapaz do
chão. Louie suportava os castigos em silêncio e sem verter uma lágrima,
depois voltava a cometer os mesmos crimes, única e simplesmente para
mostrar que era capaz.
A mãe de Louie utilizava uma abordagem diferente. Louie era uma
cópia exata dela própria, até tinha os mesmos olhos de um azul cintilante. Quando a empurravam, ela empurrava também; quando a carne
que lhe tinham vendido não era boa, ela era capaz de voltar ao talho de
frigideira na mão. Como adorava pregar partidas, certa vez cobriu uma
caixa de cartão com açúcar glacé e ofereceu-a, à laia de bolo de aniversário, a uma vizinha, que de imediato ficou com a faca presa. Quando
Pete lhe disse que só beberia o óleo de castor se a mãe lhe desse uma
caixa de guloseimas, ela concordou: ficou a vê-lo beber o óleo e, no fim,
entregou-lhe uma caixa de guloseimas vazia. “Pediste apenas a caixa,
queridinho, que é só o que eu tenho”, dissera-lhe, com um sorriso. Era
por tudo isto que compreendia aquela agitação do filho. Numa noite
de Halloween, vestiu-se de rapaz e percorreu a cidade, na companhia
dos dois filhos, batendo às portas e pedindo “doce ou travessura”. Um
bando de miúdos, tomando-a por um dos rufias da zona, agarrou-a e
tentou roubar-lhe as calças. A pequena Louise Zamperini, mãe de quatro crianças, estava no meio de uma multidão agitada, quando a polícia a deteve por desacato.
Sabendo que castigar Louie só serviria para atiçar ainda mais a sua
rebeldia, Louise, na sua tentativa de corrigir o filho, optou por enveredar por uma via mais sub-reptícia. Com o intuito de conseguir um
informador, começou a subornar os colegas de Louie com tartes caseiras até que encontrou um rapazinho meigo, cuja gula foi a desgraça
de Louie. De repente, Louise passou a saber tudo o que Louie estava
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a fazer, o que levou os filhos a recearem que a mãe tivesse adquirido
poderes sobrenaturais. Por suspeitar que Sylvia estivesse a denunciá-lo, Louie recusou sentar-se à mesa com ela, passando a tomar as suas
refeições na porta aberta do forno, numa solidão desdenhosa. Certa
vez ficou tão furioso com ela, que andou a persegui-la à volta do quarteirão. Conseguindo, pela única vez na vida, correr mais depressa do
que Louie, Sylvia cortou caminho pelo beco e refugiou-se no anexo
que servia de oficina ao pai. Louie conseguiu arrancá-la lá de dentro,
introduzindo a sua cobra de estimação, de um metro de comprimento,
através do espaço livre que ficava sob o soalho do anexo. De seguida,
Sylvia fechou-se dentro do carro da família, onde passou uma tarde
inteira. “Era uma questão de vida ou de morte”, contou, cerca de setenta
e cinco anos mais tarde.
Apesar de todos os seus esforços, Louise não conseguia modificar o
filho. A determinada altura, Louie fugiu de casa e andou a vaguear por
San Diego durante vários dias, dormindo sob o viaduto de uma autoestrada. Tentou montar um boi, num pasto, mas foi arremessado contra o cepo irregular de uma árvore tombada. Regressou, então, a casa, a
coxear, com um joelho aberto, atado com um lenço. Os vinte e sete pontos que levou não foram suficientes para o amansar. Agrediu um miúdo
com tanta força que lhe partiu o nariz. A outro rapaz, suspendeu-o, de
cabeça para baixo, e encheu-lhe a boca com toalhas de papel. Os pais
proibiram os filhos de se aproximarem de Louie. Um agricultor, furioso
com os furtos de Louie, encheu a espingarda de sal grosso e disparou
contra o traseiro do rapaz. Louie bateu num miúdo com tanta força,
deixando-o inconsciente numa vala, que chegou a temer tê-lo matado.
Quando Louise viu o sangue nos punhos do filho, desfez-se em lágrimas.
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Em vésperas de entrar para o liceu de Torrance, Louie assemelhava-se mais a um jovem adulto perigoso do que a um rapazinho travesso.
O liceu iria ser a última etapa da sua formação académica, dado que não
havia dinheiro para a universidade. O ordenado de Anthony esgotava-se
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antes mesmo de o mês chegar ao fim, obrigando Louise a improvisar
refeições à base de beringela, leite, pão ressequido, cogumelos selvagens e coelhos que Louie e Pete caçavam no campo. Como tinha notas
fracas e não dispunha de nenhuma aptidão especial, Louie não tinha
a mínima hipótese de conquistar uma bolsa de estudos. Era improvável que conseguisse arranjar emprego. A Depressão já se instalara e as
taxas de desemprego aproximam-se dos vinte e cinco por cento. Louie
não tinha qualquer ambição. Se lhe tivessem perguntado o que desejaria ser, teria respondido cowboy.
Na década de 1930, a América andava apaixonada pela pseudociência da “eugenia” e com a sua promessa de fortalecer a raça humana
mediante a “exclusão da piscina genética” de todos os “ inaptos”. Esta
classificação era atribuída aos “débeis mentais”, loucos e criminosos, mas
também às mulheres que tinham sexo fora do casamento (o que era considerado uma doença mental), aos órfãos, aos deficientes, aos pobres,
aos sem-abrigo, aos epiléticos, aos que se masturbavam, aos cegos e aos
surdos, aos alcoólicos e às raparigas cujos genitais excediam determinadas dimensões. Alguns eugenistas defendiam a eutanásia e em hospitais
psiquiátricos esta medida foi discretamente levada a cabo em inúmeras pessoas, quer através de uma “negligência letal” quer mediante puro
homicídio. Num hospital psiquiátrico do Illinois, aos novos pacientes
era dado leite de vacas infetadas com tuberculose, na convicção de que
apenas os indesejados morreriam. Em cada dez desses pacientes, cerca
de quatro morreram. Uma das ferramentas mais populares da eugenia
era a esterilização forçada, utilizada num elevado número de almas perdidas que, por maus comportamentos ou desventura, caíram nas mãos
das autoridades locais. Por volta de 1930, quando Louie estava a entrar
na adolescência, a Califórnia andava fascinada com a eugenia e acabaria por esterilizar cerca de vinte mil pessoas.
Nos primeiros anos da adolescência de Louie, um acontecimento
que teve lugar em Torrance despertou-o para esta realidade. Um rapaz
do bairro de Louie foi considerado débil mental, internado e só não foi
esterilizado graças aos incansáveis esforços legais movidos pelos pais e
financiados pela população de Torrance. Ajudado pelos irmãos de Louie,
o rapaz conseguiu ter excelentes notas. Louie esteve sempre a um passo
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de ser levado para um reformatório ou para a cadeia e, como desordeiro
compulsivo, mau aluno e italiano suspeito, era o tipo de vigarista a que
os eugenistas pretendiam pôr fim. Ao aperceber-se, subitamente, do
risco que corria, Louie ficou profundamente abalado.
A pessoa em que se tornara não era, sabia ele, o seu autêntico eu. Fez
tentativas hesitantes para se relacionar com os outros. Esfregou o chão
da cozinha para surpreender a mãe, mas esta convenceu-se de que tinha
sido Pete. Quando o pai se ausentou da cidade, Louie afinou o motor
do automóvel da família, um Marmon Roosevelt Straight-8. Começou
a fazer bolachas e a oferecê-las; quando a mãe, farta da desarrumação, o
escorraçou da cozinha, ele retomou a produção de bolachas na cozinha
de uma vizinha. Deu quase tudo o que tinha roubado. Era “generoso”,
contou Pete. “Era capaz de dar tudo, quer fosse seu, quer não.”
Todas os esforços que fez para se endireitar, acabaram mal. Escondia-se, solitário, lendo romances de Zane Grey e desejando fazer parte deles,
um homem e o seu cavalo na fronteira, quebrando laços com o mundo.
Deslocava-se frequentemente ao cinema, para ver westerns, mas perdia
o desenrolar do enredo porque ficava extasiado a olhar para os cenários.
Em certas noites, arrastava a roupa da cama para o jardim, para dormir
sozinho. Noutras noites, ficava deitado na cama, acordado, entre fotografias de Tom Mix, estrela de filmes de cowboys, e do seu cavalo maravilha, Tony, sentindo-se encurralado em alguma coisa da qual não se
conseguia libertar.
No quarto das traseiras, conseguia ouvir os comboios que passavam. Deitado ao lado do irmão adormecido, escutava o som amplo e
grave, primeiro ténue, depois mais forte, novamente ténue, em seguida
um apito agudo de aviso, indicando a partida. Aquele som provocava-lhe pele de galinha. Perdido em desejos, Louie imaginava-se num comboio, avançando pelo interior de terras que não conseguia vislumbrar,
ficando mais pequeno e mais distante até desaparecer.
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DOIS
Correr como um Louco
A reabilitação de Louie Zamperini teve início em 1931 com uma
chave. Louie tinha 14 anos quando, numa loja de ferragens, ouviu alguém
dizer que se introduzíssemos uma chave qualquer numa fechadura qualquer, havia uma hipótese em cinquenta de a chave funcionar. Inspirado,
Louie começou a colecionar chaves e a experimentar fechaduras. Não
teve sorte nenhuma até experimentar a chave de casa na porta das traseiras do ginásio do liceu de Torrance. Quando começou a época do
basquete, verificou-se uma discrepância inexplicável entre o número de
bilhetes de dez cêntimos que tinham sido vendidos e o número consideravelmente superior de miúdos que estavam sentados nas bancadas
mais baratas. Nos finais de 1931, alguém percebeu a razão e Louie foi
arrastado até ao gabinete do diretor, pela enésima vez. Na Califórnia,
os alunos que nasciam no inverno, mudavam de ano em janeiro; como
tal, Louie iria começar o nono ano. O diretor castigou-o, tornando-o
inelegível para quaisquer atividades desportivas ou sociais. Louie, que
nunca participava em nada, ficou perfeitamente indiferente.
Quando Pete soube o que se passara, dirigiu-se de imediato ao gabinete do diretor. E, apesar de a mãe ainda não dominar muito bem a língua inglesa, levou-a a reboque para dar mais peso à sua exposição. Disse
ao diretor que Louie tinha muita necessidade de atenção, mas como
nunca a conseguira conquistar sob a forma de elogio, procurava obtê-la
pela via do castigo. Se Louie fosse reconhecido por fazer alguma coisa
positiva, argumentou Pete, certamente que isso transformaria por completo a sua vida. Pediu, então, ao diretor que deixasse Louie inscrever-se em alguma modalidade desportiva. Como viu que o diretor hesitava,
Pete perguntou-lhe se seria capaz de viver sabendo que tinha contribuído para o insucesso de Louie. Um rapaz de dezasseis anos falar desta
maneira com um diretor, era de um enorme atrevimento, mas Pete era
30
o único miúdo de Torrance que podia fazer semelhantes comentários
sem ser repreendido e que conseguia ser persuasivo. Louie ficou apto
para as provas de atletismo de 1932.
Pete tinha grandes planos para Louie. Finalista no ano letivo de
1931-1932, Pete ia terminar o liceu com dez distinções desportivas,
nomeadamente três em basquetebol e três em basebol. Mas era na
pista de corridas, onde ganhou quatro distinções, igualou o recorde da
meia milha da escola e estabeleceu o seu próprio recorde na prova de
uma milha (com 5 minutos e seis segundos), que se encontrava o seu
ponto verdadeiramente forte. Olhando para Louie, cuja velocidade de
arranque era a única grande qualidade, Pete pensou ter visto o mesmo
talento incipiente.
Não foi Pete, no entanto, quem levou Louie para as pistas de atletismo, pela primeira vez, mas sim a sua fraqueza por raparigas. Em
fevereiro, as colegas do nono ano começaram a formar uma equipa para
participarem numa prova de atletismo entre turmas, numa turma onde
só havia quatro rapazes. Louie era o único dos quatro que parecia ser
capaz de correr. As raparigas exerceram os seus encantos e Louie acabou numa pista de atletismo, descalço, pronto para uma corrida de uma
milha1. Quando toda a gente começou a correr, ele foi atrás, desengonçado, agitando os cotovelos, perdendo terreno. Quando finalmente
conseguiu chegar à meta, ouviu risinhos. Ofegante e humilhado, saiu
a correr da pista e foi esconder-se debaixo da bancada. Ao ouvir o treinador resmungar qualquer coisa sobre aquele miúdo ter lugar em qualquer lado menos numa pista de atletismo, Pete replicou: “Olhe que ele
é meu irmão.”
Desse dia em diante, Pete passou a estar sempre atento ao irmão,
obrigando-o a treinar e arrastando-o, depois, para uma segunda prova
de atletismo. Encorajado por miúdos que se encontravam nas bancadas,
Louie esforçou-se apenas o necessário para conseguir ultrapassar um
rapaz e terminar em terceiro lugar. Odiava correr, mas os aplausos eram
intoxicantes e a perspetiva de receber mais era incentivo suficiente para
mantê-lo minimamente comprometido. Pete mandava-o treinar todos
1. Mil e seiscentos metros. (N. da T.)
INVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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os dias, seguindo-o, na bicicleta, e espicaçando-o com um pau. Louie
arrastava os pés, queixando-se de dores de barriga, querendo desistir
ao menor sinal de fadiga, mas Pete obrigava-o a levantar-se e a continuar. Louie começou, então, a ganhar. No final da temporada, tornou-se o primeiro miúdo de Torrance a apurar-se para as finais municipais.
Terminou em quinto lugar.
Pete estava certo quanto ao talento de Louie, mas, para este, os treinos eram apenas mais uma imposição. À noite, costumava ouvir os apitos
dos comboios que passavam e, num dia do verão de 1932, não resistiu.
:::::
Tudo começou por causa de uma tarefa de que o pai o incumbira e
à qual Louie mostrara alguma resistência, o que deu origem a uma discussão e levou Louie a enfiar algumas roupas num saco e sair, intempestivamente, pela porta fora. Os pais ordenaram-lhe que ficasse, mas Louie
estava irredutível. Ao vê-lo sair, a mãe correu até à cozinha e apareceu
com uma sanduíche embrulhada em papel encerado. Louie enfiou-a no
saco e partiu. Ia a meio caminho do portão quando ouviu chamarem
pelo seu nome. Quando se voltou, viu o pai, de semblante carregado,
segurando dois dólares na mão esticada. Era muito dinheiro para um
homem cujo ordenado não chegava para uma semana. Louie aceitou o
dinheiro e foi-se embora.
Recrutou um amigo e, juntos, foram de boleia até Los Angeles.
Arrombaram um carro e dormiram nos assentos. No dia seguinte, saltaram para um comboio, treparam para o tejadilho e partiram rumo a
norte.
A viagem foi um pesadelo. Os rapazes ficaram trancados num
vagão tão quente que depressa ficaram desesperados para conseguir sair
dali. Louie descobriu uma barra de metal abandonada, trepou para os
ombros do amigo, forçou a abertura de uma janela de ventilação, conseguiu sair com grande esforço, ajudou o amigo a sair e, ao fazê-lo, fez
um corte profundo. Depois disto, foram descobertos pelo detetive dos
caminhos de ferro, que os obrigou a saltar do comboio em andamento,
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ameaçando-os com uma pistola. Ao cabo de vários dias a andar, sendo
escorraçados dos pomares e das mercearias onde tentavam roubar, acabaram sentados no chão, num terminal ferroviário, sujos, magoados,
queimados do sol e encharcados, partilhando uma lata de feijão. Um comboio passou, matraqueando. Louie levantou os olhos: “Vi… mesas com
belas toalhas brancas, cristais e comida, pessoas a rirem e a divertirem-se e a comerem”, contou mais tarde. “E ali [estava eu] sentado, a tremer, comendo uma miserável lata de feijão.” Recordou-se do dinheiro
na mão do pai e do medo nos olhos da mãe quando lhe entregara a sanduíche. Levantou-se e pôs-se a caminho de casa.
Quando Louie entrou em casa, Louise lançou os braços à sua volta,
inspecionou, à procura de ferimentos, conduziu-o até à cozinha e deu-lhe uma bolacha. Anthony chegou a casa, viu Louie e deixou-se cair na
cadeira, o rosto suavizado pelo alívio. Depois do jantar, Louie subiu ao
andar de cima, caiu na cama e murmurou a Pete a sua rendição.
:::::
No verão de 1932, Louie não fez praticamente mais nada para
além de correr. A convite de um amigo, ficou instalado numa cabana,
na Reserva dos Índios Cahuilla, no deserto do sul da Califórnia. Todas
as manhãs, levantava-se com o sol, pegava na espingarda e ia correr pelo
meio dos campos de artemísias. Subia e descia colinas, ao longo do
deserto, através de ravinas. Perseguia manadas de cavalos, lançando-se no meio dos animais em movimento, tentando, em vão, deitar a
mão a um pedaço de crina e saltar para bordo. Nadou numa nascente
de enxofre, observado por mulheres Cahuilla, que esfregavam a roupa
nas rochas, e estendeu-se a secar ao sol. Todas as tardes, na corrida de
regresso a casa, caçava um coelho para o jantar. Ao entardecer, trepava
para o telhado e deitava-se de costas a ler os romances de Zane Grey.
Quando o sol se punha e as palavras se desvaneciam, ficava a olhar para
a paisagem, tocado pela sua beleza, vendo-a passar de cinzento a púrpura antes de a escuridão fundir céu e terra. De manhã, levantava-se
para voltar a correr. Não corria de nada nem para nada, nem de ninINVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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guém ou apesar de alguém; corria porque era o que o seu corpo desejava fazer. A insatisfação, a agitação e a necessidade de desafiar haviam
desaparecido. Tudo o que sentia era paz.
Regressou a casa com a obsessão de correr. Toda a energia que em
tempos empregava a roubar, canalizou-a para a pista de corridas. Por
indicação de Pete, começou a correr durante todo o seu percurso de
distribuição do Torrance Herald, de e para a escola, para a praia e de
regresso. Raramente se mantinha no passeio – entrava nos jardins dos
vizinhos para saltar sebes. Deixou de beber e de fumar. Para aumentar a capacidade dos pulmões, corria para a piscina pública de Redondo
Beach, mergulhava até ao fundo, agarrava-se à tampa do ralo e deixava-se ficar ali, a flutuar, conseguindo aguentar, de cada vez, um pouco mais
de tempo. Por fim, já ficava debaixo de água três minutos e quarenta
e cinco segundos. As pessoas continuavam a mergulhar para o salvar.
Louie encontrou, também, um modelo a seguir. Na década de 1930,
o atletismo era extremamente popular e os seus praticantes de elite eram
nomes famosos. Entre eles, encontrava-se um corredor de provas de
uma milha, da Universidade do Kansas, chamado Glenn Cunningham.
Quando era criança, Cunningham tinha sido vítima de uma explosão
ocorrida num edifício escolar que lhe matara o irmão e o deixara com graves queimaduras nas pernas e no tronco. Glenn levou mais de um mês e
meio a conseguir sentar-se e mais tempo, ainda, até conseguir manter-se
de pé. Incapaz de endireitar as pernas, aprendeu a deslocar-se apoiado a
uma cadeira, esforçando-se por mexer as pernas. Da cadeira passou para
a cauda da mula da família e, por fim, pendurando-se na cauda de um
cavalo obediente chamado Paint, começou a correr, uma forma de deslocação que, no início, lhe provocava dores insuportáveis. Passados poucos anos, já participava em corridas, estabelecendo recordes de milhas,
ultrapassando os adversários à distância de uma volta. Por volta de 1932,
o modesto e sereno Glenn Cunningham, cujas pernas e costas estavam
cobertas de um rendilhado de cicatrizes, estava a tornar-se uma sensação nacional e, em breve, iria ser aclamado como o maior corredor de
provas de uma milha na história da América. Louie tinha o seu herói.
No outono de 1932, Pete começou a estudar em Compton, uma instituição universitária gratuita, onde se destacou como atleta. Quase todas
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as tardes ia a casa treinar com Louie, correndo ao lado dele, obrigando-o
a controlar a tendência para afastar os cotovelos e ensinando-lhe
estratégia. Louie tinha uma rara vantagem biomecânica: ancas que giravam quando corria – quando uma perna avançava, a anca correspondente
acompanhava o movimento, dando a Louie uma passada excecionalmente eficiente de dois metros e treze centímetros. Depois de o observar através da vedação do liceu de Torrance, Toots Bowersox, a chefe
da claque, precisou apenas de uma palavra para o descrever: “Suaaave”.
Pete pensou que os sprints que Louie tinha estado a fazer, eram demasiado curtos. Iria ser um corredor de provas de uma milha, tal como
Glenn Cunningham.
Em janeiro de 1933, Louie iniciou o décimo ano. À medida que
foi perdendo a sua maneira de ser, desprendida e conflituosa, foi sendo
aceite pela multidão dos populares. Convidavam-no para convívios
defronte da Kellow’s Hamburg Stand, onde Louie participava em cantorias acompanhadas por uquelele e jogos de touch football1 jogados com
uma toalha a que era dado um nó, disputas que acabavam, invariavelmente, com uma animadora de claque a ser enfiada num caixote do
lixo. Tirando partido da sua súbita popularidade, Louie concorreu para
delegado de turma e venceu, utilizando o discurso que Pete tinha feito
para concorrer a delegado da sua turma em Compton. Mas o melhor
de tudo foi o facto de as raparigas terem começado, de repente, a achá-lo maravilhoso. No dia do seu décimo sexto aniversário, ao caminhar
sozinho pela rua, sofreu a emboscada de um grupo de animadoras de
claque aos risinhos. Uma rapariga segurou Louie enquanto as outras
lhe deram dezasseis palmadas no rabo, mais uma para que se tornasse
ainda mais agradável.
Em fevereiro, quando a época das provas de atletismo teve início,
Louie começou verificar o efeito dos treinos. A transformação que nele
se tinha operado era impressionante. Competindo com uns calções de
seda preta que a mãe lhe havia feito com o tecido de uma saia, não só
ganhou a prova dos 800 metros, como bateu o recorde da escola, que
era detido por Pete e por outro aluno, em mais de dois segundos. Pas1. Variante de futebol americano. (N. da T.)
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Louis vence a prova de duas milhas em corta -mato da UCLA, de 1933, por uma diferença
de mais de 400 metros. Pete vem a correr atrás dele, para felicitá -lo.
Fotografia cedida por Louis Zamperini.
sada uma semana, durante a prova de uma milha, deixou extasiada
uma pista cheia de corredores, ao fazer parar os cronómetros nos 5:03
minutos, ultrapassando em três segundos o recorde de Pete. Numa
outra competição, completou a prova de uma milha em 4:58 minutos.
Três semanas mais tarde, estabeleceu um novo recorde estatal: quatro
minutos, cinquenta segundos e seis décimos de segundo. No início de
abril, já tinha reduzido para 4:46; e no final do mês, para 4:42. “Meu
Deus! Meu Deus”, lia-se num jornal local: “Será que este rapaz consegue voar? Sim, este Zamperini consegue voar!”
Quase todas as semanas, Louie corria uma milha, tendo completado a época sem sofrer nenhuma derrota, nem ter sido posto à prova.
Quando já não tinha colegas de liceu para vencer, desafiou Pete e treze
outros atletas universitários para fazerem uma corrida de duas milhas
em Compton. Apesar de ter apenas dezasseis anos e de nunca ter treinado aquela distância, ganhou por uma diferença de 45,72 metros. Em
seguida, tentou a prova das duas milhas no torneio de Corta-Mato da
Califórnia do Sul, da UCLA1. Correu com tanta facilidade que nem
1. Universidade da Califórnia, Los Angeles. (N. da T.)
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sentia os pés tocarem o chão, assumiu a liderança e continuou a abrir
caminho. A meio da prova, já se encontrava a um oitavo de milha de
distância do pelotão, o que levou a que os espetadores começassem a
especular sobre quando é que o rapaz dos calções pretos iria sucumbir.
Louie não sucumbiu. Depois de transpor, célere, a linha da meta, reescrevendo o recorde da prova, olhou para trás, para a longa reta. Nenhum
dos outros atletas se encontrava, sequer, ao alcance da vista. Louie tinha
ganho por mais de 400 metros de vantagem.
Sentiu-se à beira do desmaio, não devido ao esforço físico, mas sim
ao facto de ter tomado consciência daquilo que era.
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TRÊS
O Tornado de Torrance
A cena repetia-se todos os sábados. Louie ia para a pista de atletismo, fazia os exercícios de aquecimento, deitava-se de barriga no relvado central, visualizando a corrida que se aproximava, depois dirigia-se
para a linha de partida, aguardava pelo disparo e desatava a correr. Pete
andava de um lado para o outro, no relvado, carregando no cronómetro
e gritando instruções ou palavras de encorajamento. Quando Pete desse
o sinal, Louie esticaria as suas longas pernas e os adversários começariam a ficar para trás, “tristemente desesperançados e desiludidos”, nas
palavras de um repórter. Louie deslizaria pela meta, Pete estaria lá
para recebê-lo e os miúdos nas bancadas iriam gritar vivas e bater com
os pés. Depois, chegariam revoadas de raparigas, pedindo autógrafos,
seguir-se-ia uma boleia até casa, beijos da mãe e fotografias no relvado
da frente, de troféu em riste. Louie ganhou tantos relógios de pulso, a
tradicional coroa de louros da prova, que começou a distribuí-los pela
cidade. De tempos a tempos, surgiria um novo menino de ouro, que
seria declarado como aquele que iria derrotá-lo, apenas para de imediato ser arrasado. Uma das vítimas, escreveu um jornalista, tinha sido
considerado como “o rapaz que nem sabe com que rapidez consegue
correr. Pois descobriu isso no sábado”.
O momento mais alto dos tempos de liceu de Louie teve lugar no
Campeonato de Pista e Corta-Mato da Califórnia do Sul, em 1934. Disputando a prova, integrado naquele que era considerado o melhor grupo
de atletas de milha de toda a História, Louie conseguiu derrotá-los todos
completando a prova de uma milha em quatro minutos, vinte e um segundos e três décimos de segundo e batendo, desta forma, o recorde nacional das escolas secundárias, estabelecido durante a I Guerra Mundial,
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por mais de dois segundos de diferença1. O seu principal adversário
ficou de tal forma exausto por ter tentado apanhar Louie, que teve de
ser levado para fora da pista. Ao trotar para os braços de Pete, Louie
sentiu algum desapontamento. Sentia-se demasiadamente fresco. Se
tivesse corrido mais depressa na segunda volta, contou, talvez tivesse
chegado aos 4:18. Na altura, um repórter previu que o recorde de Louie
iria manter-se durante vinte anos. Manteve-se por dezanove.
Louie e Pete. Bettmann/Corbis.
Louie, que em tempos tinha sido o maior delinquente da cidade,
era agora uma grande estrela, a quem Torrance tudo perdoara. Quando
1. O tempo de Louie foi considerado um recorde “mundial interescolas”, o que não terá sido uma designação muito
apropriada, dado não haver recordes mundiais oficiais a nível de liceu. Fontes posteriores iriam referir o tempo da
prova de Louie como tendo sido de 4:21,2, mas todas as fontes de 1934 têm registados 4:21,3. Dado que as diferentes organizações recorriam a diferentes métodos para verificar os recordes, subsiste alguma dúvida acerca de
qual o recorde que Louie terá batido, mas segundo os jornais da época, o anterior detentor do recorde, Ed Shields,
tinha completado a prova de 1916 em 4:23,6. Em 1925, foi atribuído a Chesley Unruh um tempo de 4:20,5, que não
foi oficialmente verificado. O recorde também foi atribuído a Cunningham, mas o tempo que fez na corrida de 1930,
4:24,7, tinha sido muito mais lento do que os de Unruh e de Shields. O recorde de Louie manteve -se até 1953, altura
em que foi batido por Bob Seaman. (N. da A.)
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treinava, as pessoas alinhavam-se junto à vedação da pista de atletismo,
gritando: “Força, Iron Man!”1 As páginas desportivas dos jornais Los
Angeles Times e Los Angeles Examiner estavam repletas de histórias sobre
este prodígio, a quem o Times chamava “Torrance Tempest”2 e a quem
praticamente todas as outras pessoas chamavam “Torrance Tornado”3.
Segundo um relato, as histórias sobre Louie eram uma fonte de receitas
de tal forma importante para o Torrance Herald, que o jornal segurou as
pernas dele em 50 mil dólares. Os habitantes de Torrance davam boleias
uns aos outros para poderem ver as suas corridas, enchendo as bancadas
dos estádios. Constrangido por todo aquele aparato, Louie pediu aos pais
para não assistirem às suas provas. Não obstante, Louise desobedecia.
Esgueirava-se até à pista de atletismo, para espreitar através da vedação,
mas as corridas deixavam-na tão ansiosa que tinha de tapar os olhos.
Havia pouco tempo, os projetos de Louie não iam mais longe do
que programar a próxima cozinha a assaltar. Agora, estava determinado e atingir um objetivo extremamente audacioso: os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Como os Jogos não incluíam nenhuma prova
de uma milha, os corredores de uma milha participavam na prova de
1500 metros, cerca de 100 metros mais curta. Era uma competição
desportiva para homens com muita experiência; a maioria dos grandes corredores de provas de uma milha da época atingia o seu auge por
volta dos 25 anos ou mesmo mais tarde. Em 1934, o favorito dos 1500
metros olímpicos era Glenn Cunningham, que estabelecera o recorde
mundial nas provas de uma milha, com um tempo de 4.06.8, apenas
umas semanas depois de Louie ter estabelecido o recorde nacional nas
provas de liceu. Cunningham já corria desde o quarto ano de escolaridade; nos Jogos Olímpicos de 1936, já estaria muito perto dos 27 anos,
e só viria a fazer a sua prova mais rápida aos 28 anos. Em 1936, Louie
iria ter apenas cinco anos de experiência e 19 anos de idade.
Louie era, porém, a nível de escolas, o corredor mais rápido de toda
a história americana e estava a fazer progressos de tal forma acentua-
1. Homem de Ferro. (N. da T.)
2. Tempestade de Torrance. (N. da T.)
3. Tornado de Torrance. (N. da T.)
40
dos que, em apenas dois anos, conseguira reduzir 42 segundos ao seu
tempo. O seu recorde nas provas de uma milha, conquistado quando
tinha dezassete anos, era três segundos e meio inferior ao melhor tempo
conseguido por Glenn Cunningham nas provas escolares de uma milha,
disputadas quando ele tinha vinte anos1. Até mesmo os mais conservadores dos especialistas em atletismo começavam a ponderar a hipótese de Louie ser aquele que iria bater todos os recordes estabelecidos,
e depois de Louie ter vencido todas as provas da época, no seu último
ano de liceu, a confiança deles ficou reforçada. E Louie acreditava que
seria capaz de o fazer, assim como Pete. Louie desejava correr em
Berlim mais do que desejara qualquer outra coisa na vida.
Em dezembro de 1935, Louie terminou o liceu e, umas semanas
mais tarde, entrava em 1936 com Berlim no pensamento. As provas
finais de apuramento para os Jogos Olímpicos iriam ter lugar em Nova
Iorque, em julho, e o Comité Olímpico iria basear a sua seleção de participantes numa série de provas de qualificação. Louie tinha sete meses
para conseguir preparar-se e ser aceite na equipa. Entretanto, tinha de
descobrir, também, o que fazer com as inúmeras bolsas de estudos universitários que lhe haviam sido oferecidas. Pete tinha ganho uma bolsa
para a Universidade da Califórnia do Sul, onde se tinha tornado um
dos dez melhores corredores de provas universitárias de uma milha, e
aconselhou Louie a aceitar a oferta da mesma universidade, adiando,
contudo, a entrada para o outono, de modo a poder treinar a tempo
inteiro. Louie mudou-se então para a residência universitária de Pete e,
sob a orientação do irmão, treinou obsessivamente. O dia todo, e todos
os dias, vivia e respirava em função dos 1500 metros e de Berlim.
Na primavera, começou a perceber que não ia conseguir. Apesar de
estar a ficar mais rápido, de dia para dia, não conseguia obrigar o corpo
a melhorar com a rapidez necessária para, no verão, estar ao mesmo
nível dos seus adversários mais velhos. Era, simplesmente, demasiado
novo. Ficou devastado.
1. Aparentemente devido às queimaduras, Cunningham só começou o liceu aos dezoito anos. (N. da A.)
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41
:::::
Em maio, Louie estava a folhear um jornal quando viu uma reportagem sobre o Compton Open, uma prestigiada prova de atletismo que iria
ter lugar no Coliseu de Los Angeles, no dia 22 de maio. O favorito dos
cinco mil metros era Norman Bright, um professor de 26 anos. Bright
tinha estabelecido o recorde das duas milhas em 1935 e era o segundo
americano mais rápido nas provas de cinco mil metros, a seguir à lendária máquina de bater recordes: Don Lash, um estudante da Universidade do Indiana, de 23 anos. Os Estados Unidos iam enviar para Berlim
três atletas dos cinco mil metros, e Lash e Bright já eram dados como
garantidos. Pete aconselhou Louie a participar no Compton Open e a
testar as suas pernas numa distância mais longa: “Se conseguires acompanhar o Norman Bright”, disse ao irmão, “entras para a equipa olímpica.”
A ideia era ambiciosa. Uma milha eram quatro voltas à pista; cinco
mil metros eram mais de doze, era o que Louie considerava ser “uma
câmara de tortura de quinze minutos”, mais do triplo da sua melhor
distância. Só por duas vezes disputara uma prova superior a uma
milha, além disso, as de cinco mil metros, tal como as de uma milha,
eram dominadas por homens muito mais velhos. Dispunha apenas de
duas semanas para treinar para o Compton e, com as provas de seleção olímpicas em julho, dois meses para se tornar no mais jovem corredor de elite dos 5000 metros. No entanto, não tinha nada a perder.
Treinou tanto que a pele de um dos dedos ficou macerada, deixando a
meia ensanguentada.
A prova, disputada perante dez mil adeptos, foi um acontecimento
impressionante. Louie e Bright partiram ao mesmo tempo, deixando o
pelotão bem para trás. De cada vez que um tomava a liderança, o outro
voltava a ultrapassá-lo como um tiro, fazendo a multidão gritar. Entraram na reta da meta, pela última vez, colados um ao outro. Bright do
lado de dentro, Louie do lado de fora. Na sua frente, um corredor chamado John Casey estava prestes a ficar com uma volta de atraso. Fiscais
da pista acenaram a Casey, que tentou dar passagem, mas Bright e Louie
chegaram ao pé dele antes mesmo de Casey ter tido tempo de se afastar. Bright conseguiu passar pelo interior, mas Louie teve de desenhar
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uma curva pela direita, para contornar Casey. Confuso, Casey desviou-se mais para a direita, obrigando Louie a fazer o mesmo. Louie acelerou para ultrapassá-lo, mas Casey acelerou ao mesmo tempo, forçando
Louie na direção das bancadas. Por fim, Louie abrandou ligeiramente
para cortar pelo interior, desequilibrou-se e tocou com uma mão no
chão. Nessa altura, Bright já levava uma vantagem que, aos olhos
de Pete, parecia ser de vários metros. Louie lançou-se no encalço de
Bright, ganhando terreno rapidamente. Com a multidão de pé e aos
gritos, Louie apanhou Brigth a cortar a meta. Chegou um pouco tarde
demais. Bright ganhou por uma unha negra. Ele e Bright tinham completado a prova de cinco metros mais rápida da América, em 1936.
O sonho olímpico de Louie ficou reavivado.
No dia 13 de junho, Louie realizou, com rapidez e sem dificuldade,
uma nova prova de qualificação olímpica de cinco mil metros, mas o
dedo do pé que tinha magoado durante os treinos, voltou a dar sinais.
Estava demasiado coxo para conseguir treinar para a sua última corrida de qualificação, e isso teve os seus custos. Bright venceu-o por 3,6
metros, mas Louie não ficou eliminado: registando o terceiro melhor
tempo em provas de cinco mil metros realizadas nos Estados Unidos
desde 1931, foi convidado para participar na final das provas de apuramento para os Jogos Olímpicos.
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Na noite de 3 de julho de 1936, os habitantes de Torrance reuniram-se para se despedirem de Louie, que se encontrava de partida para Nova
Iorque. Ofereceram-lhe uma carteira cheia de dinheiro para a viagem,
um bilhete de comboio, roupas novas, um kit de barbear e uma mala
de viagem com o nome Torrance Tornado gravado. Receando que
a mala o fizesse parecer fanfarrão, Louie colocou-a num lugar discreto,
colou fita adesiva sobre a sua alcunha e depois subiu para o comboio.
Segundo o seu diário, passou a viagem a apresentar-se a todas as raparigas bonitas com que se cruzou, incluindo as cinco que conheceu entre
Chicago e o Ohio.
INVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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Quando as portas do comboio se abriram em Nova Iorque, Louie
teve a sensação de estar a entrar num inferno. Decorria o verão mais
quente alguma vez registado nos Estados Unidos e Nova Iorque era uma
das cidades mais atingidas pela onda de calor. Em 1936, o ar condicionado era uma raridade, existindo apenas em algumas salas de teatro e em
grandes lojas, pelo que escapar-lhe era praticamente impossível. Naquela
semana, que incluiu o período dos três dias mais quentes de sempre em
todo o país, o calor mataria três mil americanos. Em Manhattan, onde
chegou a atingir 41,1 graus centígrados, morreriam quarenta pessoas.
Louie e Norman Bright dividiram entre si o custo de um quarto
no Lincoln Hotel. Tal como todos os atletas, tinham de treinar, independentemente do calor. Transpirando profusamente, de dia e de noite,
treinando ao sol, incapazes de dormir nos quartos abafados dos hotéis
e dos albergues de juventude do YMCA, com falta de apetite, todos os
atletas, sem exceção, perderam imenso peso. Segundo uma estimativa,
nenhum atleta terá perdido menos de quatro quilos e meio. Um deles, de
tal forma desesperado por um pouco de alívio, procurou um cinema com
ar condicionado, comprou bilhetes para várias sessões e dormiu durante
todas as exibições. Louie estava tão infeliz como os outros. Com uma
desidratação crónica, bebia o mais que lhe era possível; depois de realizar uma corrida de 880 metros com uma temperatura de 41 graus centígrados, bebeu de uma assentada oito laranjadas e um litro de cerveja.
Todas as noites, aproveitando o ar estar mais fresco, caminhava durante
perto de dez quilómetros. O seu peso baixou abruptamente.
A cobertura jornalística que antecedeu a corrida deixou-o furioso.
Don Lash era considerado imbatível, tinha acabado de vencer, pela terceira vez, a prova dos cinco mil metros da NCAA1, de estabelecer um
recorde mundial em provas de duas milhas e um recorde a nível nacional nas provas de dez mil metros e tinha derrotado Bright repetidas
vezes, uma delas por uma diferença de cerca de 137 metros. Bright era
apontado para o segundo lugar, uma série de outros atletas para o terceiro, quarto e quinto lugares e Louie nem era referido. Tal como todos
os outros, Louie sentia-se intimidado por Lash, mas os primeiros três
1. NCAA – National Collegiate Athletic Association – organismo que gere o desporto universitário. (N. da T.)
44
atletas iriam a Berlim e ele acreditava que poderia estar entre eles. “Se
o calor me deixar alguma energia, vou derrotar Bright e dar a Lash o
maior susto da vida dele”, escreveu a Pete.
Na véspera da corrida, Louie ficou deitado, insone, no seu quarto
de hotel insuportavelmente quente, a pensar nas pessoas que iriam ficar
desapontadas, caso ele perdesse.
Na manhã seguinte, Louie e Bright saíram juntos do hotel. As provas iriam ter lugar num novo estádio situado na Randall’s Island, na
confluência dos rios East e Harlem. Na cidade, a temperatura rondava
os 32 graus, mas quando saíram do ferry, descobriram que no estádio a
temperatura estava muito mais elevada, talvez acima dos 38. Por toda
a pista se viam atletas a tombar e a serem transportados para hospitais.
Louie ficou sentado, à espera da sua corrida, cozendo sob um sol escaldante que, segundo contou, o deixou “num frangalho”.
Disseram-lhes, por fim, para alinharem. A pistola disparou, os
homens lançaram-se para a frente e a corrida teve início. Lash assumiu
a liderança, com Bright no seu encalço. Louie colocou-se atrás deles e o
pelotão lançou-se numa extenuante tarefa. Do outro lado do continente,
em Torrance, uma multidão de habitantes reunira-se em torno do aparelho de rádio de casa dos Zamperini. Estavam numa verdadeira agonia.
A hora em que a prova de Louie devia iniciar-se, já havia passado, mas
o apresentador da estação da NBC continuava a falar das competições
de natação. Pete sentia-se de tal forma frustrado que estava a ponderar
dar um pontapé no aparelho de rádio. Finalmente, o locutor referiu a
posição dos atletas da prova dos cinco mil metros, mas não mencionou
o nome de Louie. Incapaz de suportar aquela tensão, Louise refugiou-se na cozinha, para não ouvir.
Os atletas percorreram a sétima, oitava e nona voltas. Lash e Bright
mantinham-se na liderança. Louie estava algures no meio do pelotão,
aguardando para dar o seu melhor. O calor era sufocante. Um dos concorrentes tombou e os restantes não tiveram outra alternativa senão
saltar-lhe por cima. Depois caiu outro e, mais uma vez, os adversários
saltaram-lhe por cima. Louie sentia os pés a escaldar; os pitões dos sapatos estavam a transmitir o calor da pista. Os pés de Norman Bright
ressentiram-se imenso. Sofrendo de dores terríveis, Bright deu um passo
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surpreendente para fora da pista, torceu o tornozelo, depois voltou a
saltar para dentro da pista, mas o tropeção parecia ter acabado com ele.
Foi perdendo contacto com Lash. Quando Louie e o resto do pelotão o
alcançaram, Bright já não oferecia resistência, mas continuava a correr.
Quando os atletas entraram na última volta, Lash concedeu a si próprio um pouco de descanso, deixando-se ficar atrás de Tom Deckard,
seu colega de equipa do Indiana. Bem atrás dele, Louie estava pronto
para o ataque. Apontou para o interior da pista e acelerou. As costas
de Lash foram ficando mais próximas até estarem apenas um metro
ou dois à sua frente. Ao ver o movimento da cabeça do poderoso Don
Lash, Louie sentiu-se intimidado. Durante alguns passos, ainda hesitou, depois viu a última curva na sua frente e foi como se uma bofetada
o tivesse acordado. Desatou a correr o mais depressa que conseguiu.
Inclinando-se para fazer a curva, Louie aproximou-se de Lash no
preciso momento em que este se desviou para a direita, para ultrapassar
Deckard. Louie foi obrigado a atravessar três faixas, perdendo terreno
precioso. Deixando Deckard para trás, Louie e Lash correram lado a
lado ao longo da reta da meta. Tendo cerca de cem metros pela frente,
Louie ganhou uma ligeira vantagem sobre Lash, mas este, debatendo-se
furiosamente, alcançou-o. A nenhum dos homens restava mais velocidade para dar. Louie constatou que Lash estava a menos de um palmo
de distância e não ia deixar escapar aquela oportunidade.
Com a cabeça deitada para trás e as pernas movimentando-se em
sincronia, Louie e Lash correram para a linha da meta. Quando restavam
uns escassos metros, Lash começou a abrandar, deixando-os empatados.
Os dois atletas, sentindo as pernas debilitadas pela exaustão, lançaram-se para a meta e passaram pelos juízes tão próximos que, como diria
Louie mais tarde, “nem um cabelo teria cabido entre nós dois”.
A voz do locutor ecoou pela sala de estar de Torrance. Zamperini,
disse ele, ganhou.
Na cozinha, Louise ouviu a turba que se encontrava na sala ao
lado gritar subitamente. Lá fora, os carros apitaram, a porta de entrada
abriu-se de rompante e deu-se uma enchente de vizinhos. Enquanto
uma multidão de habitantes de Torrance festejava em seu redor, Louise
chorou lágrimas de alegria. Anthony sacou a rolha de uma garrafa de
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vinho e começou a encher copos e a entoar brindes, sorrindo, contou um
dos convivas, “como um tolo comendo catos”. Momentos mais tarde, a
voz de Louie chegou-lhes através das ondas de rádio, gritando saudações a Torrance.
O locutor, porém, tinha-se precipitado. Os juízes decidiram que
tinha sido Lash, e não Zamperini, quem tinha ganho. Deckard tinha
conseguido chegar em terceiro lugar. O locutor de imediato corrigiu a informação, mas isso em nada fez diminuir o espírito festivo de
Torrance: o filho da cidade tinha conquistado o seu lugar na equipa
olímpica.
Alguns minutos depois da corrida, Louie enfiou-se debaixo de
um duche frio. Sentia uma dor aguda nas feridas dos pés que eram um
decalque exato da forma dos pitões. Depois de se secar, pesou-se. Tinha
destilado um quilo e trinta e seis gramas. Olhou-se num espelho e viu
uma imagem fantasmagórica olhando para si.
Louie e Lash na linha da meta, na eliminatória para os Jogos Olímpicos de 1936.
Fotografia cedida por Louis Zamperini.
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Do outro lado do balneário, Norman Bright estava caído num
banco, com um tornozelo apoiado no joelho da outra perna, olhando
fixamente para o pé que, tal como o outro, estava de tal forma macerado que a pele se descolara. Tinha terminado a prova em quinto lugar,
a dois lugares de ficar aprovado para a equipa olímpica1.
Quando o dia chegou ao fim, Louie tinha recebido 125 telegramas.
torrance está eufórica, dizia um deles. a cidade está louca, lia-se noutro. Até havia um telegrama do Departamento de Polícia de
Torrance, que deve ter ficado aliviada por ter sido outra pessoa a perseguir Louie. Naquela noite, folheou os jornais vespertinos, que traziam
fotografias do final da sua prova. Em algumas, parecia estar colado a
Lash; noutras, parecia estar mais à frente. Na pista, tinha tido a certeza que tinha ganho. Os três primeiros tinham ficado apurados para
os Jogos Olímpicos; não obstante, Louie sentia-se ludibriado.
Como Louie pôde constatar pela leitura dos jornais, os juízes tinham
estado a rever fotografias e um filme da prova dos cinco mil metros. Mais
tarde, Louie enviou um telegrama para casa dando conta das novidades:
os juízes consideraram um empate. parto para berlim quarta-feira ao meio-dia. vou esforçar-me ainda mais em berlim.
No dia seguinte, quando Sylvia regressou do trabalho, a casa estava
cheia de amigos, que tinham ido desejar felicidades, e de repórteres.
Virginia, a irmã de Louie, que na altura estava com doze anos, segurou num dos troféus do irmão e disse aos jornalistas que planeava ser a
próxima grande atleta Zamperini. Anthony zarpou para o clube Kiwanis, onde ele e o chefe dos escuteiros de Louie iriam ficar a brindar a
Louie até às quatro da madrugada. Pete andou a circular pela cidade,
recebendo palmadas nas costas e felicitações. “Sinto-me sempre feliz”,
escreveu a Louie. “Tenho de andar sempre com a camisa aberta para
me caber o peito.”
1. Norman Bright não voltaria a ter outra oportunidade para participar nos Jogos Olímpicos, mas continuaria a correr
até ao fim dos seus dias, estabelecendo importantes recordes em provas de veteranos, já numa idade avançada.
A determinada altura, ficou cego, mas continuou a correr, segurando a ponta de uma corda, enquanto um guia segurava a outra. “O único problema é que a maioria dos guias não conseguia correr tão depressa como o meu irmão,
mesmo quando ele já tinha setenta e muitos anos”, escreveu a irmã, Georgie Bright Kunkel. “Já com oitenta e muitos
anos, os sobrinhos netos acompanhavam -no à volta do lar da terceira idade, para ele poder cronometrar a sua cami nhada.” (N. da A.)
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Louie Zamperini estava de partida para a Alemanha para competir nos Jogos Olímpicos, numa prova que apenas disputara quatro
vezes. Era o mais jovem corredor de fundo a integrar a equipa olímpica.
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QUATRO
Pilhando a Alemanha
O vapor de luxo Manhattan, que transportava para a Alemanha
a equipa olímpica norte-americana de 1936, ainda mal passara a Estátua da Liberdade e já Louie tinha começado a roubar. Diga-se, em sua
defesa, que não fora ele quem começara. Ciente de que não passava de
um adolescente desconhecido na companhia de tão grandes e experientes vultos do atletismo, como Jesse Owens e Glenn Cunningham,
Louie controlou os seus impulsos irresponsáveis e começou a deixar
crescer o bigode. Em breve, porém, se apercebeu de que praticamente
todos a bordo eram “colecionadores de souvenirs”, surripiando toalhas,
cinzeiros e tudo o mais que fosse facilmente transportável. “Ninguém
era melhor do que eu”, contou mais tarde. “Eu [era] mestre na arte do
furto.” O bigode foi abandonado. Enquanto a viagem decorria, Louie e
os outros larápios foram delapidando o Manhattan.
Todos se debatiam para arranjar espaço para treinar. Os ginastas montaram os seus aparelhos, mas, com os balanços do barco, passavam o tempo a ser cuspidos. Jogadores de basquetebol faziam passes
no convés, mas o vento teimava em lançar-lhes as bolas para o Atlântico. Esgrimistas executavam movimentos abruptos por todos os cantos do navio. Atletas dos desportos aquáticos descobriram que a água
salgada da minúscula piscina do barco chocalhava violentamente, para
a frente e para trás, e que se num dado momento a piscina tinha 60
centímetros de profundidade, no momento seguinte ficava com mais
de dois metros, o que dava origem a ondas tão grandes que um jogador de pólo aquático chegou a fazer bodysurf. Cada movimento acentuado do barco atirava fora a maior parte da água, e toda a gente que
se encontrava dentro da piscina, para o convés, pelo que os treinadores tiveram de amarrar os nadadores à parede. Para os atletas de corrida, a situação pouco melhor era. Louie descobriu que a única forma de
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treinar era correr em torno do convés da primeira classe, aos ziguezagues, desviando-se de espreguiçadeiras, de estrelas de cinema reclinadas e de outros atletas. No alto mar, os atletas chocavam uns contra os
outros, correndo todos de forma instável, primeiro numa direção, depois
noutra. Louie tinha de se movimentar tão lentamente que não conseguia
afastar-se do maratonista de marcha atlética que se arrastava ao seu lado.
Fotografia cedida por Louis Zamperini.
Para um adolescente da época da Depressão, habituado a ter um
pequeno-almoço de pão seco e leite, e que apenas por duas vezes tinha
comido num restaurante1, o Manhattan era o paraíso. Assim que se
levantavam, os atletas bebiam cacau e devoravam pratos de bolos. Às
nove, serviam bife e ovos na sala de jantar. Seguia-se um intervalo para
um café, o almoço, o lanche e o jantar, tudo de enfiada. Entre as refeições, bastava um toque de campainha para que o paquete trouxesse tudo
1. Louie iria recordar, mais tarde, ter comido num restaurante apenas uma vez, quando um amigo da família lhe
comprou uma sanduíche num snack-bar. Porém, e de acordo com o seu diário olímpico, depois da eliminatória dos
5000 metros, um admirador convidou -o para jantar num arranha -céus de Manhattan. A refeição custou 7 dólares,
uma soma inacreditável para Louie, que andava a pagar entre 65 cêntimos e 1,35 dólares pelas suas refeições e a
assentar os preços, cuidadosamente, no seu diário. (N. da A.)
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aquilo que se desejasse e, já noite adiantada, os atletas faziam uma incursão à cozinha do barco. Percorrendo, sorrateiro, o convés da primeira
classe, Louie descobriu uma pequena janela na qual iam aparecendo,
como que por magia, canecas de cerveja. Que ele fazia desaparecer também por magia. Quando o enjoo fazia diminuir o número de passageiros na sala de jantar, eram colocadas à disposição sobremesas extra e
como Louie não padecia de enjoos, não deixava que nada se desperdiçasse. O seu apetite tornou-se lendário. Recordando que o navio tinha
tido necessidade de fazer uma escala não programada para reabastecimento das despensas, o corredor James LuValle comentou, sorrindo:
“É claro que grande parte da escassez de comida se deveu a Lou Zamperini.” Louie adquiriu o hábito de se sentar ao lado do gigantesco lançador de peso Jack Torrance que tinha um apetite inexplicavelmente
reduzido. Quando Torrance não conseguia terminar a entrada, Louie
lançava-se ao prato dele como um abutre.
Na noite do dia 17 de julho, Louie regressou do jantar tão impressionado com o que conseguira ingerir, que decidiu fazer um registo para
a posteridade, escrevendo a lista no verso de uma carta:
1 litro de sumo de ananás
2 taças de caldo de carne
2 saladas de sardinha
5 pães
2 copos grandes de leite
4 mini pepinos de conserva
2 pratos de frango
2 doses de batata-doce
4 pedaços de manteiga
3 doses de gelado com wafers
3 fatias de bolo “manjar de anjo” com cobertura glacê
700 gramas de cerejas
1 maçã
1 laranja
1 copo de água com gelo
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“Foi a maior refeição que já comi em toda a minha vida”, escreveu.
“Até a mim me custa acreditar… Onde foi que meti aquilo tudo, não
sei.” Mas em breve iria saber. Pouco antes de os atletas desembarcarem em Hamburgo, um médico reparou que alguns deles estavam a
engordar. Um lançador do dardo tinha aumentado três quilos e seiscentos gramas em cinco dias. Vários lutadores livres, pugilistas e halterofilistas tinham ultrapassado o peso máximo permitido para a sua
categoria, o que impossibilitou alguns de competirem. Don Lash tinha
aumentado quatro quilos e meio, mas Louie superou todos, tendo
recuperado a totalidade do peso que havia perdido em Nova Iorque e
acrescentado mais algum. Quando desembarcou do Manhattan, estava
com mais cinco quilos e quatrocentos gramas do que quando embarcara, nove dias antes.
No dia 24 de julho, os atletas foram transferidos do barco para
um comboio. Depois de uma paragem em Frankfurt, para um jantar
de boas-vindas, reembarcaram no comboio, levando consigo alguns dos
preciosos copos de vinho dos seus anfitriões. As autoridades alemãs percorreram o comboio, revistaram as bagagens, repatriaram os copos e
mandaram os americanos seguir para Berlim. Aqui, o comboio foi cercado por adolescentes que empunhavam tesouras e entoavam: “Wo ist
Jesse? Wo ist Jesse?”1 Quando Jesse Owens desembarcou, foi rodeado
pela multidão que logo começou a cortar pedaços da sua roupa, levando
Owens a saltar de novo para dentro do comboio.
Os atletas foram transportados para a Aldeia Olímpica, uma obra
de arte arquitetónica concebida por Wolfgang Fürstner, um comandante
da Wehrmacht. Aninhados numa ondulante manta de retalhos, composta de florestas de faias, lagos e clareiras, encontravam-se 140 chalés, um centro comercial, uma barbearia, uma estação de correios, um
consultório de dentista, uma sauna, um hospital, infraestruturas para
treinos e refeitórios. Uma nova tecnologia chamada televisão estava em
exibição no escritório da aldeia olímpica. Havia trilhos entre as árvores, por onde circulava uma enorme variedade de animais importados.
Os atletas japoneses ficaram especialmente encantados com os veados
1. “Onde está o Jesse?”, em alemão no original. (N. da T.)
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e começaram a dar-lhes guloseimas com uma tal frequência que os alemães os retiraram discretamente. Um britânico folião começou a perguntar, em voz alta, por onde andariam as cegonhas. No dia seguinte,
apareceram duzentas cegonhas.
Louie ficou instalado num chalé, juntamente com vários outros atletas, entre os quais Owens. O grande corredor de velocidade mantinha
um olhar atento e paternal sobre Louie, que retribuía a atenção roubando o sinal de “não incomodar” e deixando o pobre Owens à mercê
dos caçadores de autógrafos. Louie nadava nos lagos, comia quantidades
abissais de comida e convivia. Os mais populares do aldeamento eram
os japoneses, cuja tradição de oferecer presentes prodigiosos os tornou
numa espécie de Pai Natal coletivo dos Jogos Olímpicos.
No dia 1 de agosto, Louie e os outros atletas olímpicos foram transportados através de Berlim para assistirem às cerimónias de abertura.
Tudo na cidade sugeria um controlo absoluto. Viam-se pendões nazis
por todo o lado. Cerca de um terço da população masculina estava de
uniforme, tal como muitas crianças. Unidades militares exercitavam-se abertamente, e apesar de os aviões motorizados serem proibidos, de
acordo com o Tratado de Versalhes, a força da promissora Luftwaffe
estava a ser declaradamente exibida sobre um aeródromo, onde planadores volteavam perante turistas impressionados e perante a Juventude Hitleriana. Os autocarros tinham metralhadoras montadas nos
tejadilhos e chassis que podiam ser convertidos num sistema de tração
semelhante aos dos tanques. A cidade estava imaculada. Nem mesmo
se viam vestígios dos cavalos que puxavam as charretes, uma vez que
os seus dejetos eram de imediato recolhidos por varredores fardados.
Os ciganos e os estudantes judeus tinham desaparecido de Berlim – os
ciganos haviam sido despejados em acampamentos, os judeus confinados ao campus da Universidade de Berlim – tendo ficado apenas arianos sorridentes. O único vestígio de confrontos eram os vidros partidos
das montras das lojas de judeus.
Os autocarros dirigiram-se para o estádio olímpico. Participando
numa parada de nações e mantendo-se em sentido, os atletas estiveram sujeitos a um espetáculo ruidoso que culminou com a libertação
de vinte mil pombas. Enquanto as aves giravam numa desordem de
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pânico, canhões começaram a disparar, levando as pombas a aliviarem-se sobre os atletas. A cada disparo, as aves libertavam uma descarga.
Louie manteve-se em sentindo, mas sacudido pelas gargalhadas.
Em quatro provas de 5000 metros, Louie tinha progredido o suficiente para competir com Lash, mas sabia que não tinha a mínima hipótese de ganhar uma medalha olímpica. Não apenas por ter perdido força
física devido à longa inatividade em que estivera no navio, mas também
por estar quase gordo do muito que comera a bordo e na aldeia olímpica.
Poucos países se haviam destacado tanto em eventos olímpicos como a
Finlândia nas provas dos 5000 metros, tendo conquistado a medalha de
ouro nos Jogos de 1912, 1924, 1928 e 1932. Lauri Lehtinen, que tinha
ganho a medalha de ouro em 1932, estava de regresso para mais uma
tentativa, juntamente com os seus brilhantes colegas de equipa Gunnar Höckert e Ilmari Salminen. Quando Louie os viu treinar, ficou de
olhos arregalados, relatou um jornalista. Louie era demasiado novo e
estava demasiado verde para derrotar os finlandeses, e tinha perfeita
consciência disso. O seu dia iria chegar, estava certo, daí a quatro anos
e na prova dos 1500 metros.
Nos dias que antecederam a primeira eliminatória, Louie foi ao
estádio ver Owens dominar a pista nos 100 metros e Cunningham bater
o recorde mundial nos 1500 metros, mas, ainda assim, perder a prova
para o neozelandês Jack Lovelock. O ambiente era surrealista. De cada
vez que Hitler entrava, a multidão saltava de um pulo e fazia a saudação nazi. A cada vitória de um atleta estrangeiro, era tocada uma versão abreviada do hino do seu país. Quando um atleta alemão ganhava,
todo o estádio se enchia com cada estrofe de “Deutschland über Alles” e
os espetadores gritavam interminavelmente “Sieg heil!”, de braços estendidos. Segundo a nadadora Iris Cummings, aquele nacionalismo servil
era uma anedota para os americanos, mas não para os alemães. A Gestapo percorria o estádio, observando os fãs. Uma mulher alemã, que
estava sentada junto de Iris Cummings, e que se recusou a fazer a saudação, encolheu-se entre Iris e a mãe dela, sussurrando: “Não deixem
que eles me vejam! Não deixem que eles me vejam!”
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:::::
No dia 4 de agosto, foram realizadas três rondas de qualificação dos
5000 metros. Louie participou na terceira, tendo Lehtinen por adversário. Os primeiros cinco qualificados em cada uma das rondas iriam participar na final. Na primeira, Lash ficou em terceiro lugar. Na segunda,
Tom Deckard, o outro americano, não conseguiu ficar apurado. Louie
realizou a terceira ronda com grande esforço e dificuldade, sentindo-se
gordo e com as pernas pesadas. Com dificuldade conseguiu conquistar
o quinto lugar. Estava, escreveu no seu diário, “terrivelmente cansado”.
Dispunha de três dias para se preparar para a final.
Enquanto esperava, chegou um envelope de Pete. No interior, estavam duas cartas de jogar. Numa, um joker, Pete tinha escrito: “Qual
vais ser, o joker, que é o mesmo que palhaço ou incompetente, ou o
melhor de todos: o ás de espadas? O melhor do grupo? O mais valioso
do baralho? Escolhe!” No ás, escrevera: “Destaca-te como o melhor do
baralho. Se o joker não te agrada, deita-o fora e guarda esta carta para
te dar sorte. Pete.”
No dia 7 de agosto, Louie deitou-se de bruços no relvado central
do estádio olímpico, preparando-se para a final dos 5000 metros. Cem
mil espectadores rodeavam a pista. Louie estava aterrorizado. Pressionou a cara contra a relva, inalando profundamente, tentando controlar
a ansiedade. Quando chegou a altura, ergueu-se, caminhou até à linha
da partida, inclinou-se para a frente e aguardou. A folha de papel com
o seu número, o 751, agitava-se de encontro ao peito.
Ao soar da pistola, o corpo de Louie, galvanizado pela energia nervosa, quis lançar-se, mas Louie fez um esforço consciente para descontrair, sabendo o que tinha pela frente. Enquanto os atletas avançavam,
acelerados, Louie manteve uma passada curta, deixando os líderes da
corrida imporem o ritmo. Lash assumiu a liderança, seguido por uma
troika de finlandeses. Louie deslizou pela esquerda e assumiu posição
na segunda fila de corredores.
As voltas foram-se sucedendo. Lash permanecia na liderança, com
os finlandeses colados aos seus calcanhares. Louie continuava a avançar
no segundo grupo. Subitamente, começou a sentir um cheiro enjoativo.
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Olhando em redor, percebeu que o cheiro provinha de um atleta que
se encontrava na sua frente e que tinha o cabelo empestado de uma
brilhantina fétida. Sentindo uma onda de náusea, Louie abrandou e
desviou-se ligeiramente, sentindo o cheiro dissipar-se. Lash e os finlandeses estavam a ficar fora de alcance. Louie queria juntar-se-lhes,
mas sentia o corpo ensopado. Enquanto o grupo de homens se desdobrava numa corrente longa e descontínua, Louie foi perdendo terreno, descendo para décimo segundo lugar, ficando apenas com três
atletas atrás de si.
Na dianteira, os finlandeses aproximaram-se sorrateiros de Lash
e agrediram-no. Lash manteve-se firme mas, na oitava volta, Salminen
levantou um cotovelo e lançou-o contra o peito de Lash, que se dobrou
abruptamente, em manifesta dor. Os finlandeses afastaram-se a correr.
Entraram na décima primeira volta muito juntos, decididos a colher
todas as medalhas. Então, por uns instantes, aproximaram-se demasiado uns dos outros. A perna de Salminen bateu na perna de Höckert.
Höckert tropeçou e Salminen caiu pesadamente na pista. Levantou-se, atordoado, e retomou a corrida, mas a sua corrida, tal como a de
Lash, ficou condenada.
Louie não viu nada disto. Ultrapassou o ofegante Lash, mas isso
pouco significado teve para ele. Estava cansado. Os finlandeses estavam pequenos e distantes, demasiado longe para serem alcançados. Deu
consigo a pensar em Pete e numa coisa que ele tinha dito, anos antes,
quando os dois estavam sentados na cama que partilhavam: uma vida
de glória vale um momento de dor. Louie pensou: Vai em frente.
Ao aproximar-se da linha da meta pela penúltima vez, Louie fixou
os olhos na cabeça cintilante do adversário da brilhantina, que estava
várias posições à frente. Iniciou, então, uma impressionante aceleração.
Ao fazer a curva antes de entrar na reta final, Louie deu um impulso,
lançando as pernas com toda a força, os pitões calcando a pista, a velocidade estonteante. Um a um, os adversários foram surgindo na sua frente
e desaparecendo atrás de si. “Dei tudo o que tinha”, contaria mais tarde.
Quando Louie descreveu, voando, a última curva, já Höckert tinha
ganho a prova, logo seguido por Lehtinen. Louie não estava a vê-los.
Mantinha-se na sua perseguição à cabeça lustrosa, ainda distante. Captou
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um burburinho geral e constatou que a multidão tinha captado o seu
extraordinário esforço de recuperação e estava a gritar palavras de incitamento. Até mesmo Hitler, que tinha estado a contorcer-se em sintonia com os atletas, estava a observá-lo. Louie continuava a correr,
ouvindo as palavras de Pete martelarem-lhe a cabeça, sentindo o corpo
em brasa. O cabelo lustroso estava longe, depois foi ficando mais perto
até que se encontrou tão perto que Louie voltou a sentir o cheiro da brilhantina. Com as forças que ainda lhe restavam, Louie lançou-se para a
meta. Naquela última volta, tinha compensado 45 metros e batido o seu
recorde pessoal em mais de oito segundos. O seu tempo final, 14.46.8
minutos, foi, de longe, o mais rápido conseguido por um americano
numa prova dos 5000 metros realizada em 1936. Conseguira ser doze
segundos mais rápido do que Lash na sua melhor prova daquele ano.
Foi por pouco que não conseguiu alcançar o sétimo lugar.
Ao dobrar-se, ofegante, sobre as pernas exaustas, Louie não pôde
deixar de se maravilhar com a velocidade que tinha conseguido arrancar do seu corpo. Sentia que tinha sido extremamente rápido. Dois treinadores ficaram a olhar, boquiabertos, para os seus cronómetros, onde
haviam acabado de marcar o tempo da última volta de Louie. Os cronómetros marcavam exatamente o mesmo tempo.
Nas corridas de longa distância, disputadas na década de 1930, foi
excecionalmente raro um homem conseguir correr a última volta em
apenas um minuto. O mesmo se passou nas provas comparativamente
mais curtas de uma milha: nas três corridas de uma milha mais rápidas de todos os tempos, a volta final do vencedor foi cronometrada em
61.2, 58.9 e 59.1 segundos, respetivamente. Nessas três provas históricas,
nenhuma das voltas foi concluída em menos de 58.9 segundos. Numa
prova de 5000 metros, depois de percorridos mais de 4.8 km, fazer a
última volta em menos de 70 segundos era uma proeza monumental.
Nos Jogos Olímpicos de 1932, quando Lehtinen batera o recorde nas
provas de 5000 metros, fizera a última volta em 69.2 segundos.
Louie tinha percorrido a última volta em 56 segundos.
58
:::::
Depois de se refrescar, Louie subiu às bancadas. Não muito longe,
encontrava-se Adolf Hitler no seu camarote, rodeado pela sua entourage. Alguém apontou um homem de aspeto cadavérico que se encontrava perto de Hitler e disse tratar-se de Joseph Goebbels, o ministro
da Propaganda. Louie nunca tinha ouvido falar dele. Sacou da máquina
fotográfica, levou-a até Goebbels e perguntou-lhe se podia tirar uma
fotografia do führer. Goebbels perguntou-lhe o nome e a prova em que
participara, depois pegou na máquina, afastou-se, tirou uma fotografia, falou com Hitler, regressou e disse a Louie que o führer queria vê-lo.
Louie foi conduzido à secção do führer. Hitler inclinou-se do seu
camarote, sorriu e estendeu a mão. Louie, estando num plano inferior,
teve de se esticar muito. Os seus dedos mal se tocaram. Hitler disse
qualquer coisa em alemão que um intérprete traduziu: “Ah, é o rapaz
do final rápido!”
:::::
Satisfeito com a sua performance, Louie estava desejoso de ir “partir a loiça”. Tinha tido esperança de poder dar uma volta com Glenn
Cunningham, mas o seu herói tinha-se revelado demasiado adulto
para ele. Em sua substituição, descobriu uma companhia adequadamente irresponsável. Vestiu o uniforme olímpico e partiu para Berlim. Os dois percorreram bares, galantearam raparigas, saudaram com
um “Heil Hitler!” todos os indivíduos de uniforme com quem se cruzaram e roubaram tudo o que era “Germanish” e a que puderam deitar
a mão. Servindo-se num dispensador automático, descobriram a cerveja alemã. As doses eram de litro, o que fez com que Louie demorasse
algum tempo a terminá-la. Eletrizados, continuaram a circular, depois
deram meia-volta e regressaram para mais uma dose, que escorregou
bem melhor do que a primeira.
Vagueando por Berlim, pararam defronte da Chancelaria do Reich.
Um carro estacionou e saiu Hitler, que entrou na Chancelaria. Ao observar o edifício, Louie descortinou uma pequena bandeira nazi sobranceira
INVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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à porta. Daria uma excelente recordação de viagem e parecia fácil de
alcançar. No verão de 1936, aquela bandeira ainda não tinha alcançado
um grande significado simbólico, quer para ele, quer para muitos outros
norte-americanos, porém, Louie tinha, na cabeça, uma enorme propensão para roubar e, no estômago, dois persuasivos litros de cerveja alemã.
Dois guardas percorriam, para trás e para diante, o passeio em
frente à Chancelaria. Estudando os seus passos, Louie reparou que, a
cada passagem, havia uma altura em que ficavam os dois de costas para
a bandeira. Quando os soldados se voltaram, Louie correu para a bandeira, percebendo, de imediato, que ela estava colocada bem mais alto
do que lhe parecera. Começou a dar pulos, tentando apanhar a ponta
da bandeira. Ficou tão absorvido nesta tarefa que se esqueceu dos guardas que, entretanto, já vinham a correr para ele, aos gritos. Fazendo um
último esforço para chegar à bandeira, Louie conseguiu agarrá-la por
uma ponta e caiu na calçada, arrastando a bandeira na queda, depois,
pôs-se de pé, cambaleante, e desatou a correr como um louco.
Nisto, ouviu um estalido atrás de si: um guarda vinha a correr na
sua direção, de arma apontada ao céu, gritando “Halten Sie!”, palavras
que até mesmo Louie conseguiu perceber. Estacou. O guarda agarrou-o
pelo ombro, fê-lo voltar-se, viu o uniforme olímpico e hesitou. Pediu a
Louie que se identificasse. A única coisa que Louie sabia sobre os nazis
é que eram antissemitas por isso, quando proferiu o seu nome, fê-lo
com uma entoação italiana exagerada, fazendo rolar os erres, contaria
depois, “durante uns bons dois minutos”.
Os guardas conferenciaram, entraram no edifício e voltaram a sair
acompanhados de alguém que parecia ser mais influente do que eles.
O terceiro alemão perguntou-lhe se tinha roubado a bandeira. Louie,
numa bajulação excessiva, respondeu que tinha querido levar uma recordação dos tempos felizes que tinha passado na bela Alemanha. Os alemães deram-lhe a bandeira e deixaram-no ir.
Quando a imprensa teve conhecimento da aventura de Louie, os
repórteres deram largas à criatividade: Louie tinha “invadido o palácio
de Hitler”, para roubar a bandeira, sob fogo cerrado que tinha “passado
mesmo rente à sua cabeça”. Mergulhando de “cinco metros e meio de
altura”, tinha desatado a correr, perseguido por “duas colunas” de guar-
60
das armados, que o haviam agarrado e espancado. No preciso momento
em que a coronha da espingarda de um guarda estava prestes a esmagar
a cabeça de Louie, o comandante-chefe do exército alemão tinha mandado cessar o ataque e Louie conseguira convencer o general a poupar-lhe a vida. Numa das versões, tinha sido o próprio Hitler quem o
deixara ficar com a bandeira. Numa outra, Louie tinha escondido tão
bem a bandeira que ela nunca mais fora encontrada. E havia feito tudo
aquilo, prosseguia a história, para conquistar o coração de uma rapariga.
:::::
No dia 11 de agosto, Louie empacotou os seus pertences, a bandeira e uma série de outras coisas teutónicas roubadas e deixou o seu
quarto da aldeia olímpica. Os Jogos Olímpicos estavam a chegar ao fim
e os atletas de pista iam partir mais cedo para participarem em provas em Inglaterra e na Escócia. Uns dias mais tarde, uma exibição de
fogo de artifício daria por encerradas as olimpíadas que haviam constituído um sucesso. A exibição de Hitler tinha decorrido sem sobressaltos.
O mundo estava cheio de admiração.
O jogador norte-americano de basquetebol Frank Lubin ficou em
Berlim por mais alguns dias. Os seus anfitriões alemães tinham-no convidado para jantar fora e estavam a percorrer as ruas de Berlim, à procura de um restaurante, quando um lugar atraente captou a atenção de
Lubin. Porém, quando o sugeriu, os seus anfitriões opuseram-se: uma
Estrela de David estava pendurada na montra. Serem vistos ali, explicaram, poderia causar-lhes sérios problemas. O grupo descobriu um
restaurante gentio e, em seguida, visitaram uma piscina pública. Ao
entrarem, Lubin viu um letreiro onde se lia juden verboten1. O letreiro
não tinha estado ali durante os Jogos Olímpicos. Por toda a cidade de
Berlim, estavam a ressurgir tabuletas como aquela e o jornal nazi Der
Stürmer, virulentamente antissemita e que durante os Jogos nunca fora
visto, estava de regresso às bancas de jornais. Lubin tinha ganho uma
1. “Proibida a entrada a judeus”, em alemão no original. (N. da T.)
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medalha de ouro em Berlim, mas, quando deixou a cidade, a única coisa
que sentiu foi alívio. Algo de terrível se avizinhava.
A aldeia olímpica não ficou vazia por muito tempo. Os chalés
transformaram-se em aquartelamentos militares. Com o fim das olimpíadas e extinta a sua utilidade para a propaganda, o arquiteto do aldeamento, o capitão Fürstner, soube que ia ser dispensado da Wehrmacht
por ser judeu. Suicidou-se. A menos de 30 quilómetros de distância, na
cidade de Oranienburg, os primeiros prisioneiros estavam a ser levados
à força para o campo de concentração de Sachsenhausen.
:::::
Na noite do dia 2 de setembro, quando Louie chegou a Torrance,
foi atirado para um trono improvisado na caixa aberta de um camião
e recebido em festa na estação de caminhos de ferro, onde quatro mil
pessoas, incentivadas por uma banda, por sirenes e apitos de fábricas,
o saudaram. Louie apertou mãos e posou, sorridente, para as fotografias. “Eu comecei muito lento”, ia explicando. “Corri muito devagar.”
Enquanto se instalava de novo em casa, Louie pensou no que tinha
pela frente. Ter participado na prova de 5000 metros dos Jogos Olímpicos, com 19 anos e tendo apenas quatro provas por experiência, havia
sido uma verdadeira proeza. Participar na prova dos 1500 metros nos
Jogos Olímpicos de 1940, com 23 anos e depois de anos de treino, iria
ser muito diferente. O mesmo pensamento andava às voltas na cabeça
de Pete. Louie podia ganhar a medalha de ouro em 1940, e os dois
irmãos sabiam-no.
Umas semanas antes, as autoridades tinham anunciado a cidade que
iria ser a anfitriã dos Jogos Olímpicos de 1940. Louie começou, então,
a moldar os seus sonhos em função de Tóquio, Japão.
62
CINCO
A Caminho da Guerra
Na Universidade da Califórnia do Sul, Louie deparou-se com um
campus infestado de atletas de pista de classe mundial. Passava as manhãs
nas aulas e as tardes a treinar com o seu melhor amigo, Payton Jordan.
Corredor de velocidade sensacionalmente rápido, Jordan não vira, nas
eliminatórias dos Jogos Olímpicos de 1936, outra coisa que não as costas de Jesse Owens e, tal como Louie, estava a trabalhar para a medalha de ouro em Tóquio. Aos serões, Louie, Jordan e os seus colegas
de equipa apertavam-se no Ford de 1931 de Louie e seguiam até Torrance, para comerem o spaghetti de Louise Zamperini. Consideravam-se tão íntimos da família que, certa vez, Sylvia encontrou um atleta de
salto em altura a dormir na sua cama. Nas horas vagas, Louie invadia
casamentos da alta sociedade, trabalhava como figurante em cinema e
importunava, com as suas partidas, os colegas com quem partilhava a
casa, substituindo o patê de fiambre por comida de gato ou o leite de
vaca por leite de magnésia. Fazia tudo o que estava ao seu alcance para
chamar a atenção das colegas, tendo conseguido convencer uma delas a
aceitar sair com ele, depois de se ter pendurado no lado de fora do carro
dela e fingido ter-se magoado.
Entre as aulas, Louie, Jordan e os amigos reuniam-se junto ao
edifício dos serviços administrativos, sentando-se aos pés da estátua
de Tommy Trojan, o símbolo da UCS. Nalguns dias, juntava-se-lhes
um emigrante japonês, impecavelmente vestido, que se deixava ficar
à margem do grupo. Chamava-se Kunichi James Sasaki. Conhecido
por Jimmie, tinha vindo para os Estados Unidos no final da adolescência e instalara-se em Palo Alto, onde tinha suportado uma verdadeira provação social: ter frequentado uma escola primária sendo já
adulto. Entre os amigos de Louie, não houve ninguém que se lembrasse do que estudara Sasaki na UCS, mas todos se recordavam da
INVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
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sua presença discreta; não dizia quase nada, mas estava constantemente a sorrir.
Sasaki era um admirador fervoroso do atletismo e desejava conhecer Louie. Louie, por seu lado, estava particularmente impressionado
com a escolaridade de Sasaki. Jimmie contava que antes de se ter matriculado na UCS, tinha obtido licenciaturas nas universidades de Harvard, Princeton e Yale. Unidos por interesses comuns em termos de
desporto e de música, os dois tornaram-se bons amigos.
Treinando para os Jogos Olímpicos, 1940. Bettmann/Corbis.
Louie e Jimmie tinham uma outra coisa em comum. Algures no
decurso da sua amizade, Louie soube que o amigo estava a fazer deslocações diárias a Torrance. Resolveu, então, perguntar a Jimmie se vivia
aí, ao que Jimmie respondeu que não, explicando que apenas estava
preocupado com a pobreza do seu Japão natal e que ia a Torrance dar
palestras aos residentes de origem japonesa, para encorajá-los a enviarem
para o Japão dinheiro e os invólucros de folha de alumínio dos maços
de tabaco e das pastilhas elásticas, como forma de ajudar os pobres.
64
Louie achou admiráveis os esforços do amigo, mas estranhou que ele
se deslocasse todos os dias a Torrance, dado serem tão poucos os japoneses que aí residiam.
Jimmie Sasaki não era quem dizia ser. Jamais frequentara Harvard, Yale ou Princeton. Os amigos calculavam que ele tivesse cerca de
trinta anos; na verdade, tinha quase quarenta. Era casado e tinha duas
filhas, se bem que nem Louie nem nenhum dos seus amigos soubessem
da sua existência. Embora passasse muito tempo no recinto da universidade e tivesse feito crer aos amigos que era estudante, não o era. Tinha,
com efeito, frequentado a UCS, cerca de dez anos antes, altura em que
se licenciara em Ciência Política. Nem Louie nem ninguém suspeitava
que as tentativas de Jimmie para se fazer passar por estudante, faziam,
aparentemente, parte de um plano elaborado.
:::::
Na equipa de atletismo da UCS, Louie era a locomotiva. Decidido
a vencer em Tóquio, nos Jogos Olímpicos de 1940, foi batendo recorde
atrás de recorde em provas de diferentes distâncias, derrotando, sistematicamente, os seus adversários com margens gigantescas e vencendo
determinada corrida com uma diferença de 90 metros. Na primavera
de 1938, já tinha conseguido encurtar a duração das suas provas de uma
milha para 4.13.7 minutos, ficando a cerca de sete segundos do recorde
mundial que, na altura, se encontrava nos 4:06.4. O treinador antevia
que Louie iria bater esse recorde. O único corredor que poderia batê-lo, dizia o treinador, era Seabiscuit1.
Certa tarde de 1938, depois de ganhar uma corrida, Glenn Cunningham ficou nos balneários do Los Angeles Coliseum, a conversar com os
jornalistas. “Ali está o próximo vencedor das corridas de uma milha”,
declarou, desviando os olhos para o outro lado do balneário. “Quando
começar a concentrar-se nessa distância, vai ser imbatível.” Os jornalistas
1. Famoso cavalo de competição americano, da década de 1930, cuja história deu origem a um livro e dois filmes,
sendo o mais recente Nascido para Ganhar, de 2003. (N. da T.)
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voltaram-se para ver a quem Cunningham se referia. Era Louie, que
corou até à raiz dos cabelos.
Na década de 1930, os especialistas em atletismo estavam a começar a ponderar a ideia de se realizar uma prova de uma milha em quatro minutos. Muitos observadores, nos quais se incluía Cunningham, há
muito que acreditavam que tal era possível. Em 1935, quando o recorde
pertencia a Cunningham, com 4:06.7, a Ciência juntou-se ao debate.
Com base na informação sobre os limites estruturais humanos que os
matemáticos finlandeses haviam compilado, o famoso treinador de atletismo Brutus Hamilton escreveu um artigo para a revista Amateur Athlete
declarando que era impossível realizar-se uma prova de uma milha em
quatro minutos. O mais rápido que um ser humano conseguia correr
uma milha, escreveu, eram 4:01.6.
Pete discordou. Desde os Jogos Olímpicos que estava convencido de
que Louie tinha dentro de si a capacidade de fazer uma milha em quatro minutos. Louie recusara-se sempre a tentar, mas, na primavera de
1938, reconsiderou. O treinador tinha-o proibido de correr em colinas,
no pressuposto errado, se bem que comum, de que isso poderia afetar-lhe o coração, mas Louie ignorou os avisos. Todas as noites de maio
daquele ano, trepava a vedação do coliseu1, saltava para dentro do estádio e subia e descia as escadas até as pernas deixarem de lhe obedecer.
Em junho, o seu corpo estava cheio de energia, capaz de uma velocidade
e de uma resistência como nunca antes sentira. Começou a pensar que
Pete estava certo, e não era o único. Especialistas em corrida, nomeadamente o campeão olímpico de velocidade Charlie Paddock, publicaram artigos declarando que Louie poderia ser o primeiro homem a
conseguir percorrer uma milha em quatro minutos. Também Cunningham tinha mudado de ideias. Considerava que os quatro minutos
poderiam estar ao alcance de Louie. Zamperini, disse Cunningham a
um repórter, tinha mais probabilidades de ultrapassar a barreira dos
quatro minutos do que ele próprio.
1. Los Angeles Memorial Coliseum, estádio inaugurado em 1923, anexo ao campus da universidade da Califórnia
do Sul. (N. da T.)
66
Em junho de 1938, Louie chegava aos campeonatos da NCAA1, em
Minneapolis, decidido a alcançar os quatro minutos. Transbordando
de excitação, revelou aos outros atletas qual era o seu novo regime de
treino, a sua estratégia de corrida e que velocidade conseguiria atingir.
Começou, então, a constar que Louie estava a preparar-se para uma
prestação fora de série. Na noite da véspera, um treinador da Universidade de Notre Dame bateu à porta do quarto de hotel de Louie, exibindo um semblante grave. Disse a Louie que alguns dos treinadores
adversários estavam a dar instruções aos seus atletas para que afiassem
os pitões dos seus sapatos e agredissem Louie com eles. Louie não fez
caso do aviso, seguro de que ninguém seria capaz de fazer semelhante
coisa deliberadamente.
Estava enganado. A meio da prova, no preciso momento em que
Louie se preparava para assumir a liderança da corrida, vários corredores rodearam-no e começaram a agredi-lo. Louie tentou repetidas
vezes libertar-se do cerco, mas não conseguia abrir caminho por entre
os outros homens. Subitamente, o indivíduo que se encontrava ao seu
lado, voltou-se para ele e pisou-lhe o pé, empalando um dedo de Louie
com um piton. Instantes mais tarde, o homem que estava na sua frente
começou a dar coices, rasgando as duas tíbias de Louie. Um terceiro
homem deu-lhe uma cotovelada no peito com tal violência que lhe partiu uma costela. A multidão ficou boquiaberta.
Sangrando e cheio de dores, Louie continuou encurralado. Durante
uma volta e meia, correu no meio daquele enxame de homens, incapaz de se libertar, refreando o passo para evitar colidir com o indivíduo que se encontrava na sua frente. Por fim, ao aproximar-se da última
volta, viu abrir-se uma pequena brecha na sua frente. Lançou-se através dela, ultrapassou a alta velocidade o líder da corrida e, com o sapato
rasgado, as pernas a sangrar e cheio de dores no peito, ganhou a prova
com enorme facilidade.
Parou, amargurado e frustrado. Quando o treinador lhe perguntou
que tempo julgava ele ter conseguido, Louie respondeu que era impossível ter conseguido menos de 4:20.
1. National Collegiate Athletic Association – Associação norte -americana de Atletismo Universitário. (N. da T.)
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O tempo da corrida foi exibido no quadro. Das bancadas elevou-se um súbito Aaahh! Louie tinha terminado a prova em 4:08.3. Tinha
sido a prova de uma milha mais rápida da história da NCAA e a quinta
milha disputada em espaço aberto mais rápida de todos os tempos. Louie
não batera o recorde mundial por apenas 1,9 segundos. O tempo que
atingiu iria manter-se o recorde da NCAA durante 15 anos.
Com uma costela partida e feridas de perfuração nas duas pernas e num dos pés, Louie
celebra a sua vitória, e o estabelecimento de um novo recorde, no campeonato do NCAA.
Fotografia cedida por Louis Zamperini.
Semanas mais tarde, o Japão desistia da organização dos Jogos
Olímpicos de 1940, sendo o evento transferido para a Finlândia. Deslocando as suas aspirações de Tóquio para Helsínquia, Louie continuou
a correr, ganhando todas as provas em que participou no ano letivo de
1939. Nos primeiros meses de 1940, numa série de milhas disputadas,
em pista coberta, contra os maiores atletas da América, Louie esteve
magnífico, fazendo dois segundos lugares e dois quartos lugares, vencendo Cunningham por duas vezes e tornando-se progressivamente
68
mais rápido. Em fevereiro, no Boston Garden, realizou uma prova em
4:08.2 minutos, menos seis décimas de segundo do que a prova da
milha mais rápida de sempre, realizada em pista coberta1. Duas semanas mais tarde, no Madison Square Garden, conseguiu completar a
prova em 4:07.9 minutos, tendo sido apanhado, já em cima da linha da
meta, pelo grande Chuck Fenske, cujo tempo foi igual ao do recorde
das provas em pista coberta. Com os Jogos Olímpicos a meses de distância, Louie estava a atingir o seu auge no momento ideal.
:::::
Enquanto Louie ia resplandecendo ao longo dos anos da faculdade,
bem distante dele a História estava a mudar. Na Europa, Hitler definia
os seus planos para conquistar o continente. Na Ásia, os líderes japoneses tinham desígnios de igual magnitude. Pobre em recursos naturais,
com um comércio afetado por impostos elevados e uma baixa procura,
o Japão estava a ter dificuldade em suportar uma população em crescimento. Olhando os países vizinhos, ricos em recursos, os líderes do
Japão viram a oportunidade de se tornarem economicamente independentes e não só. Uma das peças fulcrais da identidade dos japoneses
era a sua convicção de que o Japão tinha, por mandamento divino, o
direito de governar os seus vizinhos asiáticos, que consideravam intrinsecamente inferiores. “Existem, no mundo, raças superiores e raças inferiores”, declarou, em 1940, o político japonês Nakajima Chikuhei, “e é
dever sagrado da raça dominante governar e iluminar as raças inferiores.” Os japoneses, prosseguira, são “a única raça superior do mundo”.
Movidos pela necessidade e pelo destino, os líderes japoneses planearam “plantar o sangue da raça Yamato [japonesa]” no solo das nações
vizinhas. Pretendiam subjugar todo o Extremo Oriente.
O governo japonês, dominado pelos militares, há muito que se
1. Dado que as pistas cobertas são mais curtas do que as pistas descobertas, obrigando os corredores a fazerem
mais voltas para compensar essa diferença, os recordes de pista coberta são geralmente mais lentos. Em 1940,
o recorde mundial da milha em pista descoberta era um segundo mais rápido do que o recorde da prova em pista
coberta. (N. da A.)
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vinha a preparar para essa missão. Ao longo de décadas, tinha formado
um exército e uma marinha robustos e tecnologicamente sofisticados,
e mediante um sistema de ensino militarizado, que treinava as crianças de forma persistente e violenta para o destino imperial da nação,
tinha moldado o seu povo para a guerra. Por fim, e através de uma
intensa doutrinação, agressões e ações de dessensibilização, o exército
cultivara e enaltecera a brutalidade extrema entre os seus soldados.
“Imbuindo a violência de um significado sagrado, o exército imperial
japonês transformou a violência num imperativo cultural tão poderoso como aquele que impeliu os europeus durante as Cruzadas e a
Inquisição Espanhola”, escreveu a historiadora Iris Chang. Chang citou
ainda um discurso proferido em 1933 por um general japonês: “Cada
bala deve ter gravado Caminho Imperial, e a ponta de cada baioneta
deve exibir as palavras Virtude Nacional gravadas a fogo.” Em 1931,
o Japão lançou-se às águas, invadindo a província chinesa da Manchúria e instaurando um Estado-fantoche ferozmente opressivo. Tratava-se apenas do princípio.
Nos finais da década de 1930, tanto a Alemanha como o Japão estavam prontos para avançar. Foi o Japão que atacou primeiro, em 1937,
ordenando aos seus exércitos que avançassem, com toda a sua potência,
pelo interior da China. Dois anos mais tarde, Hitler invadiu a Polónia.
Os Estados Unidos, país há muito isolacionista, viram-se arrastados para
os dois conflitos: na Europa, os seus aliados encontravam-se no caminho de Hitler; no Pacífico, a China, aliada de longa data, estava a ser
devastada pelos japoneses; e os seus territórios do Havai, Wake, Guam
e Midway, bem como a sua Comunidade das Filipinas encontravam-se
ameaçados. O mundo estava a cair numa catástrofe.
Num dia negro de abril de 1940, ao regressar ao seu bungalow, Louie
encontrou o campus da UCS num alvoroço. Hitler tinha lançado a sua
Blitzkrieg1 através da Europa, os seus aliados soviéticos tinham-se-lhe
seguido, e o continente tinha explodido numa guerra total. A Finlândia, que já se havia preparado para receber os Jogos Olímpicos de verão,
estava em estado de choque: o estado olímpico de Helsínquia ficara par1. “Guerra Relâmpago”. (N. da T.)
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cialmente em ruínas, depois de ter sido bombardeado pelos soviéticos.
Gunnar Höckert, que tinha agredido Louie e conquistado para a Finlândia a medalha de ouro dos 5000 metros, em Berlim, tinha morrido
a defender a sua terra-mãe1. Os Jogos Olímpicos foram cancelados.
:::::
Louie ficou à deriva. Adoeceu, primeiro com uma intoxicação alimentar, depois com pleurisia. A sua velocidade abandonou-o e foi perdendo
corrida atrás de corrida. Quando terminou o semestre da primavera na
UCS, recolheu o anel de formatura e abandonou a universidade. Estava
quase a concluir a licenciatura, mas tinha todo o ano de 1941 para a
terminar. Arranjou emprego como soldador na Lockheed Air Corporation e carpiu os seus Jogos Olímpicos perdidos.
Naquele verão de 1940, enquanto Louie trabalhava, os Estados Unidos eram arrastados para a guerra. Na Europa, Hitler tinha repelido os
britânicos e os seus aliados para o mar de Dunquerque. No Pacífico, o
Japão estava a irromper pela China, avançando em direção à Indochina.
Num esforço para travar os japoneses, o presidente Franklyn Roosevelt
foi impondo embargos cada vez maiores aos materiais, como sucata de
metal e combustível de avião. Nos meses que se seguiram, iria declarar
o embargo ao petróleo, congelar os bens dos japoneses que se encontravam nos Estados Unidos e, por fim, declarar um embargo comercial
total. O Japão, porém, continuava a avançar.
A Lockheed estava a preparar-se para a guerra, produzindo aviões
para o Army Air Corps2 e para a Royal Air Force3. Do hangar onde
trabalhava, Louie conseguia ver caças P-38 cruzando o ar por cima da
sua cabeça. Desde aquele passeio pelos ares, quando era criança, Louie
sempre se sentira pouco confortável com os aviões, mas ao ver os P-38,
sentiu uma atração. Ainda a sentia quando, em setembro, o Congresso
1. O colega de equipa de Höckert, Lauri Lehtinen, campeão olímpico dos 5000 metros de 1932, em homenagem a
Höckert, ofereceu a sua medalha de ouro a outro soldado finlandês. (N. da A.)
2. Força Aérea dos Estados Unidos. (N. da T.)
3. Força Aérea Britânica. (N. da T.)
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aprovou uma proposta de lei: aqueles que se alistassem antes de serem
recrutados, poderiam escolher o ramo de serviço. No início de 1941,
Louie alistou-se nos Army Air Corps1.
Enviado para o Hancock College of Aeronautics, em Santa Maria,
Califórnia, Louie aprendeu que andar de avião nada tinha a ver com
observá-lo do chão. Ficava nervoso e era atormentado pelo enjoo. Retirou-se da Força Aérea, assinou papéis que nem se deu ao trabalho de ler e
arranjou trabalho como figurante. Estava a trabalhar na produção de
Todos Morreram Calçados, protagonizado por Errol Flynn e Olivia de
Havilland, quando chegou uma carta. Tinha sido recrutado.
Louie em treino. Fotografia cedida por Louis Zamperini.
A data em que teria de se apresentar era anterior àquela em que
a rodagem do filme de Errol Flynn deveria ficar concluída, e Louie
candidatava-se a receber um bónus se ficasse até ao final das filmagens.
1. Muitos outros grandes atletas também se alistaram. Quando Norman Bright tentou alistar-se, foi rejeitado devido
à sua pulsação alarmantemente lenta, consequência da sua condição física extrema. Resolveu o problema correndo perto de cinco quilómetros antes de se dirigir a outro posto de recrutamento. Cunningham tentou alistar-se
na Marinha, mas os recrutadores, ao verem as suas pernas grotescamente cicatrizadas, partiram do pressuposto
de que ele estava demasiado incapacitado para servir. No entanto, quando alguém entrou e referiu o seu nome,
perceberam de quem se tratava e alistaram -no. (N. da A.)
72
Imediatamente antes da inspeção física do Exército, comeu uma mão-cheia de chocolates e, graças ao subsequente aumento da glicemia no
sangue, não ficou aprovado no exame. Recebendo ordens para voltar
daí a uns dias para repetir os exames, regressou ao local das filmagens e
recebeu o seu bónus. Depois, a 29 de setembro, alistou-se no Exército.
Quando terminou o treino básico, teve uma desagradável surpresa.
Como não tinha lido os documentos que assinara ao deixar a Força
Aérea, não fazia ideia de que tinha concordado em regressar à aviação
para serviço futuro. Em novembro de 1941, chegava a Ellington Field,
em Houston, no Texas. Os militares iam fazer dele um tripulante de
bombardeiros.
:::::
Naquele outono, enquanto Louie se preparava para se tornar um
elemento da força aérea, uma carta urgente aterrava na secretária de
J. Edgar Hoover, o diretor do FBI. Tinha sido enviada por um brigadeiro-general da Divisão dos Serviços Secretos Militares do Departamento
da Guerra. A carta informava que uma fonte credível havia alertado
os serviços militares de que um californiano, que se julgava trabalhar
para uma inócua organização japonesa local, tinha estado, na verdade,
a trabalhar para a Marinha japonesa, numa missão destinada a angariar dinheiro para o esforço da guerra do Japão. Recentemente, dissera
ainda o informador, os responsáveis pela Marinha japonesa haviam
transferido o homem para Washington, para aí continuar a atuar sob
as suas ordens. Segundo o informador, o homem era conhecido por “Sr.
Sasaki”. Tratava-se do amigo de Louie.
Apesar do relatório do referido informador não conter quaisquer
pormenores sobre as alegadas atividades de Sasaki, de acordo com as
notas elaboradas, mais tarde, por um capitão da polícia de Torrance,
Sasaki costumava visitar, com regularidade, um campo anexo a uma
central elétrica, próximo da Torrance Boulevard. Aí, instalara um
potente transmissor de rádio, que usava para enviar informações para
o governo japonês. Se essas alegações tinham fundamento, isso expliINVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
73
caria as misteriosas deslocações de Sasaki a Torrance. O bom amigo
de Louie poderá ter sido um espião.
Com efeito, Sasaki havia-se mudado para Washington, ao serviço
da Marinha japonesa. Trabalhou na embaixada do Japão e viveu num
bloco de apartamentos muito popular entre os congressistas. Tornou-se muito conhecido entre a elite de Washington, misturando-se com
membros do Congresso em festas dadas no prédio, jogando golfe num
Country Clube da Marinha e do Exército, convivendo com oficiais da
polícia e funcionários do Departamento de Estado, e voluntariando-se para servir de motorista depois das festas. De que lado estava, não
se sabe ao certo: num cocktail, transmitiu a um congressista uma informação sensível sobre a construção aeronáutica japonesa.
A carta do FBI fez disparar o alarme. Hoover, preocupado em
informar o Secretário de Estado, ordenou de imediato que fosse feita
uma investigação a Sasaki.
:::::
Num domingo de dezembro, pouco depois do nascer do sol, um
piloto conduziu um pequeno avião sobre o Pacífico. Por baixo dele, a
escuridão do mar cedeu lugar a uma faixa branca: eram ondas batendo
a ponta norte da Ilha de Oahu. O avião voava através de uma radiosa
manhã havaiana.
Oahu estava a começar a acordar. Em Hickam Field, soldados lavavam um carro. Em Hula Lane, uma família vestia-se para a missa. Na
messe dos oficiais, em Wheeler Field, homens deixavam a meio um
jogo de póquer. Numas casernas, dois homens debatiam-se numa luta
de almofadas. Em Ewa Mooring, Mast Field, um primeiro-sargento
estava a espreitar, através das lentes de uma câmara, para o filho de três
anos. Ainda quase ninguém tinha chegado às cantinas. Uns quantos
homens continuavam a dormir nos seus beliches, nos navios de guerra
que baloiçavam suavemente no porto. A bordo do USS Arizona, um
oficial equipava-se para participar num jogo do torneio de basebol da
esquadra norte-americana. No convés, homens reuniam-se para içar
74
bandeiras enquanto uma banda tocava o hino nacional, uma tradição
das manhãs de domingo.
Lá no alto, bem acima deles, o piloto do avião contou oito couraçados, a composição total da Esquadra do Pacífico. Uma neblina ténue
pairava baixo, rente ao solo.
O nome do piloto era Mitsuo Fuchida. Fez deslizar a cobertura do
cockpit do avião e enviou um foguete sinalizador que riscou de verde o
céu. Em seguida, deu ordens ao radiotelegrafista para que transmitisse
um grito de batalha. Atrás de Fuchida, surgiram 180 aviões japoneses que mergulharam sobre Oahu1. No convés do Arizona, os homens
olharam para cima.
Nas casernas, um dos homens da batalha de almofadas tombou
subitamente. Estava morto – um buraco de sete centímetros e meio de
diâmetro atravessava-lhe o pescoço. O amigo correu para uma janela
e viu um edifício elevar-se no ar e cair aos pedaços. Um bombardeiro
de voo picado lançara-se sobre ele. Viam-se círculos vermelhos nas
suas asas.
:::::
Naquela manhã, Pete Zamperini estava em casa de um amigo a
jogar às cartas, antes de sair para uma partida de golfe. Atrás dele, o
crepitar de waffles numa grelha competia com a estática de uma telefonia. Uma voz premente interrompeu a emissão. Os jogadores pousaram as suas cartas.
No Texas, Louie estava no cinema, em licença de fim de semana.
A sala estava apinhada de soldados, que aproveitavam as pausas entre
os intermináveis treinos que constituíam a vida de um soldado em
tempos de paz. A meio da exibição, o ecrã ficou branco, a sala encheu-se de luz e um homem subiu a correr para o palco. Será um incêndio?,
interrogou-se Louie.
1. Cento e oitenta e três aviões foram lançados naquela primeira de duas ofensivas, mas perderam -se dois na
descolagem. (N. da A.)
INVENCÍVEL :: LAURA HILLENBRAND
75
“Todos os militares devem regressar de imediato às suas bases”,
anunciou o homem. “O Japão atacou Pearl Harbour.”
Louie lembrar-se-ia por muito tempo de ter ficado ali sentado, de
olhos esbugalhados, o raciocínio toldado. A América estava em guerra.
Pegou no quépi e saiu a correr do edifício.
B -24 LIBERATOR
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