Cidades para tod@s - HIC Habitat International Coalition

Transcrição

Cidades para tod@s - HIC Habitat International Coalition
Cidades para tod@s
Propostas e experiências
pelo direito à cidade
Cidades para tod@s
Propostas e experiências
pelo direito à cidade
Ana Sugranyes
Charlotte Mathivet
Editoras
Habitat International Coalition
Habitat International Coalition agradece aos diferentes autores pela sua colaboração neste
livro. Também agradecemos a tradução voluntária dos textos ao português, bem como a
revisão.
Esta publicação foi possível graças à colaboração de MISEREOR
Cidades para todos: Propostas e experiências pelo direito à cidade.
Editado por Ana Sugranyes e Charlotte Mathivet - Habitat International Coalition (HIC)
Primeira edição - Santiago, Chile, 2010
ISBN: 978-956-208-090-3
Edição dos textos: Charlotte Mathivet e Shelley Buckingham
Tradução: Ediane Amorim
Desenho: Andoni Martija
Foto da capa: Charlotte Mathivet
Fotos do interior: arquivo de Habitat Internacional Coalition
Gestão editorial: Luis Solís
Revisão: Nelson Saule Júnior
Habitat International Coalition (HIC) www.hic-net.org
Email: [email protected]
Secretariado Geral de HIC
Coronel Santiago Bueras, 142, of. 22
8320135 Santiago, Chile
A reprodução parcial ou total deste livro é permitida, desde que sejam citadas a fonte e
os autores.
Impresso no Chile
A Han van Putten,
e a todas e todos que lutam pelo direito à cidade
Glossário
Este livro reúne experiências e propostas que surgem de diferentes contextos.
Os textos originais foram escritos em espanhol, português, inglês e francês.
Nas traduções, alguns termos foram deixados em seu idioma original para
respeitar a especificidade local ou regional. Para simplificar a leitura deste livro
apresentamos a definição de quatro deles.
Pavement dweller: Expressa uma realidade peculiar da Índia. Corresponde aos
moradores em extrema pobreza e que vivem de forma permanente nas
calçadas das ruas. Aí constroem suas moradias bastante precárias.
Población: Usado no Chile para definir um assentamento já consolidado, produto
das ocupações de terrenos dos anos 50 e 60, ou lugares precariamente urbanizados. O
processo de urbanização das poblaciones aconteceu a partir da iniciativa de seus
pobladores e através de várias intervenções de políticas públicas
Pobladores: Nos países da América Latina onde se fala espanhol, acrescenta uma
conotação social e às vezes política. Refere-se aos grupos de assentamentos
populares que lutam por seu espaço, bairro, rua e direitos na cidade.
Shack: Moradia sem segurança de posse, de construção precária e desprovida de
serviços de urbanização.
Villa: Na Argentina, são ocupações de solo urbano vazio que produzem traçados urbanos
bastante irregulares, organizados a partir de corredores pelos quais geralmente os
veículos não podem transitar. Ao longo dos anos, as villas passaram por melhorias de
diferente envergadura e qualidade.
Índice
Prólogo
Davinder Lamba
11
Introdução:
Cidades para todos: articulando capacidades sociais urbanas
Ana Sugranyes e Charlotte Mathivet
13
O direito à cidade: chaves para entender a proposta de criar
“Outra cidade possível”
Charlotte Mathivet
21
Primeiro Capítulo
Propostas para o direito à cidade
27
A democracia em busca da cidade futura
Jordi Borja
29
Contra o direito à cidade acessível. Perversidade de uma
reivindicação consensual
Yves Jouffe
43
Análise do direito à cidade sob a perspectiva do gênero
Shelley Buckingham
57
O direito à cidade e a vida cotidiana baseada no gênero
Tovi Fenster
63
Um horizonte para as políticas públicas? Notas sobre a felicidade
Patricia Ezquerra e Henry Renna
79
Os direitos nas cidades e o direito à cidade
Peter Marcuse
89
Uma nova aliança para a cidade? Oportunidades e desafios
da globalização do movimento pelo direito à cidade
Giuseppe Caruso
103
O processo de construção pelo direito à cidade: avanços e desafios
Enrique Ortiz
117
O conceito e a implementação do direito à cidade na África Anglófona
Bola Fajemirokun
125
Segundo Capítulo: Experiências de direito à cidade
135
Lutas populares contra a marginalização e os despejos
137
Abahlali baseMjondolo e a luta popular pelo direito à cidade em Durban,
África do Sul
Richard Pithouse
139
A luta de movimentos de “pavement dwellers” em Mumbai, Índia
María Cristina Harris
149
Villa Los Cóndores, Temuco, Chile. Contra o despejo e para
o direito à cidade
Ana Sugranyes
153
Os sem-teto. Uma experiência de luta pela moradia em Mar del Plata
Ana Núñez
157
A luta dos habitantes dos parques de Osaka, Japão
Marie Bailloux
163
Reivindicando os direitos do cidadão em Accra, Gana
Afia Afenah
167
Olimpíadas de Beijing 2008, China
María Cristina Harris
177
Sobre derrotas e conquistas no exercício do direito à cidade: reflexões
a partir de experiências recentes nas cidades da Argentina.
María Carla Rodríguez, María Laura Canestrar e Marianne von Lücken
181
Habitantes da Ilha de Gazirat al-Dhahab, Cairo, Egito
enfrentam da expulsão
María Cristina Harris
191
Do protesto à proposta e da proposta ao projeto, Villa Esfuerzo,
Santo Domingo, República Dominicana
Steffen Lajoie
195
Iniciativas populares de empoderamento
201
Construir a cidade para e pelos cidadãos: O direito à cidade na África.
El derecho a la ciudad en África
203
Joseph Fumtim
Movimiento de Pobladores en Lucha: Santiago, Chile
Charlotte Mathivet e Claudio Pulgar
209
As crianças no planejamento do espaço urbano, Santiago, Chile
Felipe Morales e Alejandra Elgueta
221
A Campanha OUR Orla: Defendendo o Direito à Cidade em Nova Iorque
Shelley Buckingham
227
Os Comitês de Terra Urbana
Héctor Madera
231
Organização, poder e apoio político em Caracas, Venezuela
Steffen Lajoie
235
Estamos fazendo a cidade, Bolivia
Rose Mary Irusta Pérez
243
Organizando a comunidade, construindo poder e ganhando o direito à cidade nos bairros pobres de Toronto
249
Steffen Lajoie
Marco legal do direito à cidade
257
A trajetória da Reforma Urbana no Brasil
Nelson Saule Júnior e Karina Uzzo
259
Carta da Cidade do México: o direito a construir a cidade que sonhamos
Lorena Zárate
271
Políticas e perspectivas legais sobre a realização do direito à cidade na Nigéria
Mobola Fajemirokun
279
O caminho do direito à cidade na Bolívia
Uvaldo Mamani
283
O Contrato Social pela Moradia, Equador
Silvana Ruiz Pozo e Vanessa Pinto
291
Planejamento e políticas públicas
299
O conceito de cidade global e suas repercussões no planejamento
urbano para as cidades da Região da Ásia-Pacífico
Arif Hasan
301
Considerações sobre a segurança urbana das mulheres através
do direito à cidade, Polônia
Shelley Buckingham
313
Graz, a Cidade dos Direitos Humanos na Europa ou Direito
a uma “Cidade Humana” na Europa?
Marie Bailloux
319
Elogio à lentidão: Desaceleremos a cidade! O movimento “Cittaslow”
Charlotte Mathivet
325
Biografias
331
Prólogo
Habitat International Coalition (HIC) é uma rede global de movimentos sociais,
organizações e pessoas que, em mais de cem países, de norte a sul, lutam pela
aplicação do direito a um lugar onde se possa viver em paz e com dignidade.
Por mais de trinta anos o enfoque de Habitat International Coalition prioriza
o enlace entre o habitat humano, os direitos humanos e a dignidade, junto ao
reconhecimento das reivindicações dos povos e de suas capacidades, bem como
suas aspirações de liberdade e solidariedade. As perspectivas de HIC vão mais
além dos direitos individuais e afirmam que o compromisso da sociedade civil e
do estado1 com os direitos e as responsabilidades coletivas é fundamental para
desenvolver um mundo justo e habitável para todas e todos e não apenas para
alguns.
As reivindicações populares, como nos mostra a história, transformamse em direitos através de lutas prolongadas. O pensamento e as ações de HIC
apoiam as lutas pela implementação de vários direitos emergentes, como dos
povos indígenas, dos emigrantes, a soberania alimentar e o direito à cidade. HIC
assume-os como desafios da sociedade civil, do local e do global; confronta-os
e promove avanços em função das visões populares de que “outro mundo é
possível”.
O compromisso de HIC, nas duas últimas décadas, foi avançando no
entendimento e na determinação do direito à cidade em sua complexidade.
Entre outras tarefas, HIC envolveu-se na criação de seu marco teórico e prático.
A primeira edição do livro em três idiomas é um esforço muito importante nesse
sentido. Esperamos que este livro seja uma fonte de inspiração para avançar na
1
Neste livro, sociedade civil e estado estão escritos com letras minúsculas, para assim respeitar a
ligação entre esses dois atores de igual importância.
luta pelo direito emergente de todas e todos a um lugar onde se possa viver em
paz e com dignidade, em todas as cidades do mundo.
Em nome de HIC, agradeço enormemente todas as contribuições que tornaram
possível esse livro.
Davinder Lamba, Presidente de HIC
Introdução
Cidades para todos: articulando capacidades sociais
urbanas1
Ana Sugranyes e Charlotte Mathivet
Durante o Fórum Social Mundial de Belém, em janeiro de 2009, o geógrafo norteamericano David Harvey declarou na tenda de Reforma Urbana: “Estou muito
agradecido por este convite porque sempre aprendo muito com os movimentos
sociais”2. Terminou sua conferência afirmando que “chegamos a um ponto em que
já não podemos aceitar o que disse Margaret Thatcher “não existe alternativa”;
temos que dizer que deve haver uma alternativa para o capitalismo em geral. E
podemos nos aproximar desta alternativa concebendo o direito à cidade como uma
demanda popular e internacional. E espero que todos nos unamos nessa missão.” 3
Este livro responde a esta esperança e chamado para a união sob a bandeira
do direito à cidade, concedendo a palavra a diversos atores que lutam por ele.
Esta diversidade de pontos de vista, discursos, culturas, experiências é o fio
condutor desta publicação. Propomos articular as diferentes ideias e fazê-las
convergir para um mesmo objetivo: o direito à cidade como bandeira de luta
contra o neoliberalismo. Não estamos falando de uma abstração ideológica,
mas sim referindo-nos aos efeitos sofridos pelos habitantes no seu cotidiano,
considerando, entre outros fatores, o acesso à terra e aos serviços, a segurança da
posse, os despejos; todos gerados por causas múltiplas, tais como privatizações,
especulação imobiliária, mega-projetos e mega-eventos; abusos e tráfico de poder,
desregulamentação do espaço público, planejamento urbano para os interesses
de poucos
1
2
3
O Fórum Urbano Mundial, na sua quinta sessão, em 2010, tem como lema em inglês “The Right
to the City –Bridging the Urban Divide”. Em português o lema foi traduzido como: “O Direito à
Cidade: Unindo o Urbano Dividido”. Mais que enfatizar a divisão, HIC trabalha na articulação
das forças positivas para o direito à cidade.
http://www.hic-net.org/articles.php?pid=3107, David Harvey no Fórum Social Mundial 2009:
oDireito à Cidade como alternativa ao neoliberalismo, Harvey, David, 2009.
Loc.cit
14 Cidades para tod@s
Assim, aborda-se a ideia de apropriar-se do direito à cidade como proposta política
de mudança e alternativa às condições de vida urbana criadas pelas políticas capitalistas,
hoje neoliberais. Segundo Purcell, “O direito à cidade de Lefebvre implica reinventar
radicalmente as relações sociais do capitalismo e a estrutura espacial da cidade”4. É
assim como Lefebvre afirmava que “o direito à cidade não pode ser concebido como
o simples direito de visita ou de regresso às cidades tradicionais. Pode somente ser
formulado como direito à vida urbana, transformada e renovada. 5”
Esta reformulação da vida urbana propõe maior igualdade, onde a maioria
dos habitantes possa ser feliz e solidário, gerando e redistribuindo os benefícios
da cidade para todas e todos. Somos conscientes dos desafios desta aspiração
de justiça social; alguns chamam quimera ou ilusão. Nós chamamos de utopia
indispensável para outro mundo possível.
Nesta grande tarefa de (re)inventar condições de “bem viver”6 – como
reivindicam os indígenas andinos quéchuas e aymaras – é imprescindível
construir estratégias globais para criar outra cidade e outras relações humanas. Os
movimentos sociais, como afirma Harvey, possuem um papel importante nesse
contexto através de suas lutas cotidianas por uma sociedade mais igualitária e
especificamente por uma cidade mais justa
Recordemos o contexto histórico do surgimento do direito à cidade, conceito,
ideia, programa (e não somente slogan) definido no livro “Le droit à la ville”
7
do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968. Efetivamente, nessa
época Lefebvre era professor de sociologia urbana na Faculdade de sociologia de
Nanterre, de onde partiu o movimento de maio de 68. Para muitos, as ideias de
Lefebvre sobre o direito à cidade influenciaram os acontecimentos de daquele mês
de 68. É verdade que no imaginário coletivo não se vincula automaticamente este
movimento social francês com Lefebvre, mas sim com sobrenome mais famosos,
como Lévi-Strauss, Debord e Lacan; estes intelectuais (e outros) se apropriaram
do movimento de maio de 68, apesar de o movimento haver sido impulsionado
pelas ideias de Lefebvre e seus assistentes. É assim que “Maio de 1968 não é a
obra dos acadêmicos das grandes escolas, mas sim do povo. Lefebvre não foi à
4
5
6
7
Purcell, Mark, Le Droit à la ville et les mouvements urbains contemporains, 2009, Droit de Cité,
Rue Descartes, N.63, p42. Citação original em francês: «Le droit à la ville de Lefebvre implique de
réinventer radicalement les relations sociales du capitalisme et la structure spatiale de la ville Lefebvre, Henri, 1968, Le droit à la ville, Ed. Economica, 3ième édition, 2009, p108. Citação
original em francês : le droit à la ville ne peut se concevoir comme un simple droit de visite ou
de retour vers les villes traditionnelles. Il ne peut se formuler que comme droit à la vie urbaine,
transformée, renouvelée Sumak kawsay é quichua equatoriano e expressa a ideia de uma vida não melhor, nem melhor que
a de outros e tampouco um contínuo desvelar por melhorá-la, mas sim uma vida simplesmente
boa” www.kaosenlared.net/noticia/sumak-kawsay-suma-qamana-buen-vivir, Sumak Kawsay,
Suma Qamaña, Buen Vivir, Tortosa, José María, 2009
Ibid. Préface, Hess, R, Deulceux S Weigand , G.
Introdução 15
l’École Normale Supérieure […]. Aprendeu sociologia dirigindo um táxi em Paris
nos anos 20” 8. Além disso, recordemos que a universidade de “Nanterre era uma
faculdade construída perto de casebres” 9. É a relação entre a pobreza urbana, a
formulação intelectual crítica contra o sistema e o movimento social de 1968, que
retroalimentam o direito à cidade formulado por Lefebvre. Então é assim que se
afirma que “Lefebvre teve muita influência na formação dos militantes10.”
Observando os diversos atores e a partir deles os movimentos sociais que
reivindicam o direito à cidade em suas lutas, acreditamos que este direito continua
tendo importância na vigência do pensamento de Lefebvre e os que continuaram
com a questão depois dele. Esta vigência e persistência no tempo aparecem como
sua grande força. Embora tenha sido Lefebvre11, com seus escritos e debates
nas aulas sobre direito à cidade, quem alimentou o movimento estudantil
para a subversão e a rebeldia contra a ordem estabelecida em 1968; hoje são os
movimentos sociais com a bandeira do direito à cidade que fortalecem suas lutas
contra os efeitos nefastos já mencionados do sistema neoliberal.
Quarenta e dois anos depois da primeira formulação do direito à cidade é
surpreendente que esta ideia continue em pé e convoque os movimentos sociais,
acadêmicos, organizações da sociedade civil, tão heterogêneos e em diferentes
partes do mundo. Nem tão surpreendente, já que as estratégias populares para
lutar contra a lógica da globalização mercantil atuam a partir do local com a
perspectiva do global do direito à cidade.
Habitat International Coalition (HIC) é parte desta história e desta proposta.
Por isso decidiu publicar uma compilação de textos relatando experiências e
análises que consideram o direito à cidade como uma bandeira de luta e proposta
política de mudança. Este propósito vislumbra de maneira mais ou menos clara
até chegar, em alguns casos, a não mencionar diretamente o direito à cidade. Os
diferentes textos também o consideram de formas bastante diferentes: como uma
ferramenta política, jurídica e cultural.
Este livro busca articular as lutas, descobrindo-as em função de cada contexto
local, com um olhar global para gerar nexos, criar redes e definir alianças. Não é
um estudo teórico desconectado da realidade, mas sim parte de um processo de
ação e reflexão no qual os movimentos comprometem-se em suas lutas diárias.
8
Ibid. p VI Citação original em francês « Mai 1968 n’est pas le fait des gens d’école mais des gens
du tas. Lefebvre n’est ni normalien ni agrégé. Il a fait ses classes de sociologie en conduisant un
taxi dans les années 20 à Paris »
9 Loc.cit, Citação original em francês: « Nanterre était une faculté construite autour des bidonvilles »
10 Loc.cit, Citação original em francês « C’est du côté des apprentissages militants que Lefebvre a
eu une importance»
11 E os situacionistas, entre outros. Sobre este debate entre situacionista e Lefebvre , ver Simay ,
Philippe, 2009, Une autre ville pour une autre vie. Henri Lefebvre et les situationnistes, Droit de
Cité, Rue Descartes, N.63.
16 Cidades para tod@s
Segundo Jordi Borja, “o desenvolvimento e legitimação dos direitos civis
dependerão de um processo triplo: i)cultural, de hegemonia dos valores que
estão na base destes direitos e explicitação dos mesmos; ii)social, de mobilização
dos cidadãos para conseguir sua legalização e a criação de mecanismos e
procedimentos que os façam efetivos; iii) político-institucional para formalizálos, consolidá-los e desenvolver as políticas para efetivá-los” 12.
O mesmo autor afirma que os atores principais e emergentes desse processo
não são as estruturas políticas tradicionais de poder (estado e partidos políticos),
mas sim grupos sociais, por vezes bastante heterogêneos.
Há vinte anos HIC está envolvida neste processo triplo, acompanhando
movimentos e grupos sociais de diferente índole. Esta publicação propõe
ilustrar a diversidade destes atores na construção do direito à cidade, através
de conquistas, derrotas e rearticulações (em outras palavras: acertos, erros e
recomposição de forças). Assim, documenta estratégias políticas que emanam
desta diversidade de atores que buscam incluir este enfoque de direito coletivo
nas instâncias de tomada de decisão. É difícil observar e entender as mudanças,
as rebeliões e as propostas que surgem dos bairros e territórios. Cada uma
dessas expressões corresponde a problemas diferentes de marginalidade, de
delinquência, de segregação, de autoconstrução mal-assistida, estigmatização
da pobreza. Frente a estas realidades, temos que difundir novos olhares, que
entendam as singularidades locais, respeitem a diversidade e rejeitem os efeitos
perversos que implicam as imagens negativas criadas pelo assistencialismo e
discurso mediático.
Como afirma o autor uruguaio Raul Zibechi “nós que estamos comprometidos
com a causa da emancipação e dos movimentos sociais necessitamos promover
reflexões, análises e formulações teóricas que reconheçam e abordem estas
“sociedades outras”, que as ciências sociais do sistema têm dificuldade em
visualizar”.13 E agrega que é por isso que “estamos necessitados de pensamento e
ideias engajados nessas sociedades diferentes, não somente comprometidos com
elas, mas sim fazendo parte delas. 14”
Este livro não é um estudo científico sobre o direito à cidade como fizeram
Lefebvre e vários outros autores entre os quais se destaca Harvey. Este livro
se estende como um espaço de debate, confrontação de ideias, ilustração de
experiências, formulação de dúvidas, mas, sobretudo, de certezas sobre a força do
direito à cidade como ferramenta para uma cidade e, portanto, um mundo melhor.
12 http://www.lafactoriaweb.com/articulos/borja10.htm#, Borja, Jordi, Los desafíos del territorio
y los derechos de la ciudadanía, 2001.
13 Zibechi Raúl, 2007, Dispersar el poder, Los movimientos como poderes antiestatales, Editorial
Quimantú, Santiago de Chile, p 8.
14 Loc.cit.
Introdução 17
A estrutura do livro demonstra esta mesma vontade: está composto de duas
grandes partes. A primeira inclui artigos a partir de uma reflexão teórica de
autores destacados. Jordi Borja15 introduz os problemas da cidade da perspectiva
da democracia. Yves Jouffe16 faz uma análise crítica do direito à cidade centrada
no acesso ao espaço urbano. Esta crítica pode ser vislumbrada através da análise
de Tovi Fenster17 baseada no gênero, com o apoio do enfoque destas definições
que Shelley Buckingham18 introduz. De uma perspectiva diferente, Patricia
Ezquerra e Henry Renna19 propõem outra dimensão desta utopia indispensável:
o direito à felicidade. Peter Marcuse20 nos leva a uma reflexão sobre a dualidade
entre o enfoque da individualidade dos direitos humanos e do enfoque coletivo
do direito à cidade. Giuseppe Caruso21 questiona até onde o direito à cidade pode
mobilizar um movimento global sob esta bandeira. Esta primeira parte termina
com as contribuições de Enrique Ortiz22 e de Bola Fajemirokun23, que explicam
como este direito está sendo espacializado em suas respectivas regiões: América
Latina e África.
A partir destas introduções teóricas, a segunda parte é uma compilação de
experiências sobre a aplicação do direito à cidade ao redor do mundo. Estas se
desenvolvem em contextos geográficos, culturais, políticos, econômicos muito
diferentes. Correspondem também a uma grande diversidade de estratégias
adotadas pelos atores envolvidos.
Para entender as diferentes facetas destas experiências, esta segunda seção
do livro é construída em torno de quatro enfoques, correspondendo a estas
diferentes estratégias: as lutas populares contra a marginalização e os despejos,
as iniciativas populares de fortalecimento político; a implementação do direito a
cidade através do marco legal; o planejamento e políticas públicas.
Estas estratégias estão estreitamente articuladas entre elas e possuem uma
lógica de continuidade no tempo a partir da resistência contra as violações do
direito à cidade até sua implementação. Desta maneira, graças a estas iniciativas
populares de lutas sociais, sustentadas durante décadas, alcançou-se em
vários países a incorporação do direito à cidade nos marcos constitucionais e
15 Borja, Jordi, A democracia em busca da cidade futura, p 29.
16 Jouffe, Yves, Contra o direito à cidade acessível. Perversidade de uma reivindicação consensual,
p 43.
17 Fenster, Tovi, O Direito à Cidade e a Vida Cotidiana Baseada no Gênero, p 63.
18 Buckingham, Shelley, O direito à cidade sob a perspectiva do gênero, p 57.
19 Ezquerra, Patricia, Renna, Henry, en este libro, Um horizonte para as políticas públicas? Notas
sobre a felicidade., p 79.
20 Marcuse, Peter, Os direitos nas cidades e o direito à cidade?, p 89
21 Caruso, Giuseppe, Una nova aliança para a cidade? Oportunidades e desafios da globalização do
movimento pelo direito à cidade p 103.
22 Ortiz, Enrique, O processo de construção pelo direito à cidade: avanços e desafios, p 117.
23 Fajemirokun, Bola, O conceito e a implantação do direito à cidade na África Anglófona, p 125.
18 Cidades para tod@s
normativos. O fato é ilustrado a partir dos relatos e análises de Brasil, Equador,
Bolívia, México, países latino-americanos pioneiros neste grande desafio.
A seção sobre políticas públicas e planejamento demonstra como estas
ferramentas podem ser contrárias ao direito à cidade e ao bem-viver, acelerando
e aprofundando os efeitos negativos da globalização mercantil. Por sua vez,
podem ser instrumentos que geram processos de mudanças, revertendo situações
de desigualdade e injustiça.
Estes artigos são o fruto do trabalho de vários autores, acadêmicos, porém,
sobretudo, militantes ou ativistas do direito à cidade, sendo que muitos deles
pertencem a movimentos sociais de base. Esta diversidade de atores e, portanto,
de tipo de artigos é o reflexo dessa mesma vontade, que expressava Zibechi, de
divulgar as ideias e as práticas dos movimentos sociais, desde que mantenhamos
o respeito a esses movimentos sem cair no erro de falar em nome deles. O
outro desafio é o de acompanhá-los aportando capacidades e conhecimentos
respectivos. Conscientes destes desafios, expressa-se a diversidade de caminhos
emancipatórios para a efetivação do direito à cidade a construção de outra cidade.
É fundamental reconhecer e tirar partido desta diversidade de pensar o
direito à cidade e de como atuar para implementá-lo. Isso passa pela articulação
e retroalimentação entre os autores assim como entre a teoria e a ação. O respeito
dos processos sociais através de uma autocrítica permanente e uma vigilância
de possíveis usurpações do propósito inicial do direito à cidade pode evitar a
deturpação do discurso sobre este direito. Autores como Yves Jouffe e Tovi
Fenster expressam de diferentes formas suas preocupações sobre este direito que,
sendo instrumentalizado e não melhorado, pode ter efeitos negativos.
Muitas mudanças se deram no mundo entre o surgimento do direito à
cidade nas aulas do professor Lefebvre e as formas atuais de reivindicações dos
movimentos sociais urbanos. O sociólogo estava convencido que o agente de
mudança, a única classe social que podia atingir efetivamente uma transformação
da sociedade e então da cidade, de implementar o direito à cidade, seria o
proletariado encabeçado pela classe operária. Assim afirmava que “somente
a classe trabalhadora pode ser agente, portadora ou suporte social desta
realização24”. Em 2010, o cenário apresenta-se diferente, pois a classe operária,
num mundo globalizado neoliberal terceirizado, achou-se relegada a um
segundo plano, sem o papel político que teve antes. Por isso, movimentos sociais,
organizações, intelectuais, militantes e ativistas bastante diversos, porém todos
em busca da mudança social, reivindicam como grupo mobilizado do movimento
pelo direito à cidade e já não como parte da classe operária. Uma das mudanças
24 Lefebvre, H.Op.Cit. p108. Citação em francês « seule la clase ouvrière peut devenir l’agent, porteur, ou
support social de cette réalisation »
Introdução 19
mais relevantes que aconteceram nas últimas décadas é o reconhecimento do
papel da mulher dentro destes processos. Desse modo, é de suma importância
reconhecer a discriminação socialmente construída no espaço público contra a
mulher, no momento de construir cidades mais igualitárias.
Também é importante destacar o papel que o espaço do Fórum Social Mundial
(FSM) facilitou para os movimentos sociais e para sua articulação numa expressão
global do direito à cidade no mundo, conforme analisa Giuseppe Caruso.
Efetivamente, o FSM há dez anos vem facilitando estratégias globais para que
diferentes movimentos se conheçam, compartilhem, aprendam e reanalisem sua
própria experiência à luz do discernido em outros movimentos. O fato tem levado
movimentos e redes a formular Cartas, Declarações e Agendas para continuar
com a luta pelo direito à cidade. Em outras publicações25, HIC tem analisado os
processos das diferentes cartas pelo direito à cidade e, particularmente, da Carta
Mundial, como aqui explica Enrique Ortiz.
Cidades para tod@s relata experiências desenvolvidas por muitos atores em
várias regiões do mundo. Contamos com a participação de autores bastante
diversos, de horizontes diferentes: mulheres e homens profissionais, acadêmicos,
urbanistas, arquitetos, advogados, sociólogos, cientistas políticos, militantes de
base; todos animados por uma força de resistência e por uma vontade proposta
em direção ao direito à cidade.
Por isso nos interessa mostrar que esta diversidade é a essência do direito
à cidade e de uma possível aliança global, embora também dê conta de sua
fragilidade e de possíveis efeitos perversos. Este livro traz olhares críticos
ao direito à cidade, críticas construtivas para continuar levantando práticas
e políticas alternativas à hegemonia do neoliberalismo, em todo o mundo.
Necessitamos continuar construindo o direito à cidade, tanto nos debates como
nas ações, objetivando um processo emancipatório.
Os avanços até o direito à cidade enfrentam agora um momento decisivo. A
ONU, que não se caracteriza particularmente por seu apoio às lutas sociais,
internaliza o direito à cidade na convocatória do Fórum Urbano Mundial 5
(FUM), no Rio26. Diante deste grande desafio, HIC, com este livro, coloca nesta
feira urbana institucional e empresarial, o papel da sociedade civil que vem
surgindo há décadas. Se a ONU incorpora o direito à cidade no FUM 5, é porque
o Brasil é o país onde os movimentos e organizações sociais vem construindo
este direito há mais de vinte anos, conforme explicam Nelson Saule e Karina
25 Nehls Martínez, N, Ortiz, E, Zárate, L (comp.), 2008, El derecho a la ciudad en el mundo.
Compilación de documentos relevantes para el debate HIC-AL, Ciudad de México.
26 Fórum Urbano Mundial 5 “The Right to the City-Bridging the Urban Divide”, Rio de Janeiro, Brasil,
22 a 26 de março 2010.
20 Cidades para tod@s
Uzzo27. Contudo, isso também representa o perigo de instrumentalização
destas lutas e da questão do direito à cidade, que por ter como característica
a diversidade de opinião, estratégia também de atores, pode resultar fácil o
esvaziamento do seu conteúdo de transformação da cidade e do sistema que
a rege. Nesta perspectiva, a preparação de um Fórum Social Urbano, pode ser
uma ferramenta poderosa nos esforços de construir um movimento global pelo
direito à cidade a partir dos movimentos sociais.
Dedicamos este livro às organizações e aos atores sociais, profissionais
e acadêmicos da sociedade civil, que trabalham e lutam pelo direito à cidade
no mundo, mas também aqueles interessados nestas questões, que sem saber
que existe o direito à cidade, sem ter consciência das crescentes experiências,
mobilizações, reflexões sobre este direito, percebem o poder deste tipo de ideias
e a necessidade entrelaçar as lutas. É uma ferramenta para reconhecer o amplo
espectro das lutas possíveis pelo direito a vivermos bem na cidade, a sermos
dono de nosso próprio destino, mostrando as ações desenvolvidas no assunto
e deixando pistas para articular as diferentes formas de lutar para outra cidade
possível.
Para facilitar a leitura das propostas e experiências apresentadas nesta
publicação, apresentamos em seguida uma definição e uma explicação do direito
à cidade para que todos os leitores possam contar com as ferramentas básicas
para entender e apoderar-se desta proposta, caminho e projeto de direito à cidade.
Referências
Borja, Jordi. “Los desafíos del territorio y los derechos de la ciudadanía”. 2001. http://
www.lafactoriaweb.com/articulos/borja10.htm.
Harvey, David. “David Harvey at the World Social Forum, Belem”. 2009. www.hic-net.
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27 Saule, Nelson, Uzzo Karina: A trajetória da reforma urbana no Brasil, p 259
O direito à cidade: chaves para entender a proposta
de criar “Outra cidade possível”
Charlotte Mathivet
História do direito à cidade: uma proposta que vai mais além de um novo
conceito
O direito à cidade não é uma proposta nova. O termo apareceu em 1968 quando
o francês Henri Lefebvre escreveu seu livro O direito à cidade, levando em conta
o impacto negativo sofrido pelas cidades nos países de economia capitalista, com
a conversão da cidade numa mercadoria a serviço exclusivo dos interesses da
acumulação de capital. Como contraproposta a este fenômeno Lefebvre constrói
uma proposta política que parte da cidade para reivindicar a possibilidade de
que as pessoas retornassem a condição de donas da cidade. Frente aos efeitos
causados pelo neoliberalismo, como a privatização dos espaços urbanos, o uso
mercantil da cidade, a predominância de indústrias e espaços mercantis, propõe-se
uma nova perspectiva política denominada direito à cidade. A cidade foi tomada
pelos interesses do capital e assim deixou de pertencer às pessoas, de modo que
Lefebvre defende, através do direito à cidade, “resgatar o homem como elemento
principal, protagonista da cidade que ele mesmo construiu”. O direito à cidade
significa então restaurar o sentido de cidade, instaurar a possibilidade do “bem
viver” para todos e fazer da cidade “o cenário de encontro para a construção da
vida coletiva”.
Além disso, a vida coletiva pode ser construída com base na ideia de cidade
como produto cultural, coletivo e, por consequência, político. A cidade, como
analisa Jordi Borja (2003), é um espaço político, onde é possível a expressão de
vontades coletivas, é espaço para a solidariedade, mas também para o conflito. O
direito a cidade é a possibilidade de construir uma cidade na qual se possa viver
dignamente, reconhecer-se como parte dela e onde se possibilite a distribuição
equitativa de diferentes tipos de recursos: trabalho, saúde, educação, moradia,
além de recursos simbólicos tais como participação, acesso à informação, etc. O
22 Cidades para tod@s
direito a cidade é o direito que cada um possui de criar cidades que respondam
às necessidades humanas. Todos deveriam ter os mesmos direitos para construir
os diferentes tipos de cidades que queremos. O direito à cidade, como afirma
David Harvey (2009), “não é simplesmente o direito ao que já está na cidade, mas
também o direito a transformar a cidade em algo radicalmente distinto”.
A reivindicação da possibilidade necessária de criar outra cidade se baseia
nos direitos humanos e, mais precisamente, nos Direitos Econômicos Sociais e
Culturais (DESC). O fenômeno da cidade está analisado e pensado através dos
conceitos de cidadania e espaço público com uma visão integral e interdependente
dos direitos humanos para alcançar a meta de recuperar a cidade para todos os
seus habitantes. Contudo, é importante aclarar que o direito à cidade não é um
direito mais, é o direito de fazer cumprir os direitos que já existem formalmente.
Por isso o direito à cidade se baseia numa dinâmica de processo e de conquista, no
qual os movimentos sociais são o motor pra alcançar o cumprimento do mesmo.
A Carta Mundial pelo Direito à Cidade
Um passo fundamental na construção do direito à cidade foi a elaboração da
Carta Mundial pelo Direito à Cidade, articulada pela Coalizão Internacional para
o Hábitat (HIC),Fórum Nacional de Reforma Urbana (Brasil), e Cohre.
Um conjunto de movimentos populares, organizações não governamentais,
associações profissionais, fóruns e redes nacionais e internacionais da sociedade
civil, comprometidas com as lutas sociais por cidades justas, democráticas,
humanas e sustentáveis, construíram a Carta Mundial pelo Direito à Cidade
que busca reunir os compromissos e medidas que devem ser assumidos pela
sociedade civil, governos locais e nacionais, parlamentares e organismos
internacionais para que todas as pessoas vivam com dignidade nas cidades.
O processo que impulsionou esta iniciativa teve início dentro das atividades
preparatórias da II Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente que, sob o título de “Cúpula da Terra”, realizou-se no Rio de
Janeiro, Brasil, em 1992. O Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU) do
Brasil, a Coalizão Internacional para o Hábitat (HIC) e a Frente Continental
de Organizações Comunais (FCOC) juntaram esforços para redigir e assinar,
nessa ocasião, o Tratado sobre Urbanização “Por cidades e povoamentos justos,
democráticos e sustentáveis”. Como parte do processo preparatório da Cúpula da
Terra, HIC organizou nesse mesmo ano, na Tunísia, o Fórum Internacional sobre
Meio Ambiente, Pobreza e Direito à Cidade no qual, pela primeira vez, membros
de nossa Coalizão, provenientes de diversas regiões do mundo, debateram sobre
o assunto. Alguns anos mais tarde, em outubro de 1995, vários membros da HIC
participaram do encontro “Em direção a Cidade da Solidariedade e da Cidadania”
Introdução 23
convocado pela UNESCO. Este encontro abriu de fato a participação deste
organismo no tema dos direitos humanos. Nesse mesmo ano as organizações
brasileiras promoviam a Carta de Direitos Humanos na Cidade, antecedente
Civil o Estatuto da Cidade, que promulgaria anos mais tarde o governo do Brasil.
Outro marco importante no caminho que conduziu à iniciativa de formular uma
Carta Mundial pelo Direito à Cidade foi constituído pela Primeira Assembléia
Mundial de Moradores1, realizada no México no ano 2000, na qual participaram
ao redor de 300 delegados de organizações e movimentos sociais de 35 países.
Sob o tema “repensando a cidade a partir das pessoas”, debateu-se em torno da
concepção atual de um ideal coletivo que desse a base para propostas orientadas
à construção de cidades democráticas, antiexcludentes, educadoras, habitáveis,
sustentáveis, produtivas e seguras. Um ano depois, já no marco no do Primeiro
Fórum Social Mundial, seria aberto o processo condutor a formulação da Carta.
A partir de então, e por ocasião dos encontros anuais do Fórum Social Mundial e
dos Fóruns Sociais regionais, tem se trabalhado sobre os conteúdos e estratégias
de difusão e promoção da Carta.
De forma paralela a estas iniciativas da sociedade civil, alguns governos,
tanto a nível regional como nacional e local, vem gerando instrumentos jurídicos
que buscam normatizar os direitos humanos no contexto urbano. Destacam-se
entre os mais avançados a nível internacional a Carta Européia de Salvaguarda
dos Direitos Humanos na Cidade, firmada até agora por mais de 400 cidades,
o Estatuto da Cidade de Brasil, decretado em julho de 2001; e, em escala local,
a Carta de Montreal e a Carta da Cidade de México pelo direito à cidade. Cabe
destacar também a inclusão recente do direito à cidade nas constituições do
Equador e da Bolívia.
As dimensões e os componentes do direito à cidade
O direito à cidade é:
- o direito a um hábitat que facilite o tecido das relações sociais
- o direito a se sentir parte da cidade (sentido de coesão social e construção coletiva)
- o direito a viver dignamente na cidade
- o direito à convivência
- o direito ao governo da cidade
- o direito à igualdade de direitos
Segundo a Carta Mundial do Direito à Cidade, este novo direito é um direito
coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e
desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e de organização, baseados
1
No original em espanhol: Primera Asemblea Mundial de Pobladores
24 Cidades para tod@s
nos seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício da livre
autodeterminação e um nível de vida adequado. Realiza-se o direito à cidade
quando existe:
- exercício pleno da cidadania e gestão democrática da cidade
- função social da cidade e da propriedade urbana
- igualdade, não discriminação
- proteção especial de grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade
- compromisso social do setor privado
- impulso da economia solidária e políticas impositivas progressivas
- planejamento e gestão social da cidade
- produção social do hábitat
- desenvolvimento urbano equitativo e sustentável
- direito à informação pública
- liberdade e integridade
- participação política
- direito à justiça
- direito a segurança pública e à convivência pacífica, solidária e multicultural
- direito a água, ao acesso e abastecimento de serviços públicos domiciliares
e urbanos
- direito ao transporte público e a mobilidade urbana
- direito à moradia
- direito ao trabalho
- direito a um meio ambiente saudável e sustentável
Em síntese, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade baseia sua proposta em três
eixos fundamentais:
- o exercício pleno da cidadania, ou seja, o exercício de todos os direitos
humanos que asseguram o bem-estar coletivo dos habitantes e a produção
e gestão social do habitat;
- a gestão democrática da cidade, através da participação da sociedade
de forma direta e participativa, no planejamento e governo das cidades,
fortalecendo as administrações públicas na escala local, assim como as
organizações sociais.
- a função social da propriedade e da cidade, sendo predominante o bem
comum sobre o direito individual da propriedade, o que implica no uso
socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano.
Segundo Borja o desenvolvimento e legitimação dos direitos do cidadão
dependerão de um triple processo:
Introdução 25
- Um processo cultural, de hegemonia dos valores que estão na base destes
direitos e explicitação dos mesmos;
- Um processo social, de mobilização dos cidadãos para conseguir sua
legalização e a criação de mecanismos e procedimentos que o tornem
efetivo.
- Um processo político-institucional para formalizá-los, consolidá-los e
desenvolver as políticas para fazê-los efetivos.
O mesmo autor afirma que os atores principais deste processo não são as
estruturas políticas tradicionais do estado e os partidos políticos, mas sim
os movimentos sociais. Assim, o direito à cidade é uma resposta estratégica,
um paradigma frente à exclusão social e à segregação espacial gerado pelo
neoliberalismo. É uma reivindicação para que as pessoas voltem a ser donas da
cidade e esta seja o cenário de encontro para a construção da vida coletiva.
As estratégias de conquista do direito à cidade
Baseando-se na constatação de que atualmente criou-se “cidades sem cidadãos”,
o direito à cidade é a bandeira de luta para estes mesmos a quem se retirou o
direito de dispor de um espaço digno para se desenvolver. O direito à cidade
contém muitos direitos que o torna difícil de exigir e implementar. É então uma
bandeira de luta para os movimentos sociais. Para conquistar o direito à cidade
é necessário primeiro difundir o que é, ativar os processos de mobilização social
e influenciar na formulação de políticas públicas. Este processo foi desenvolvido
de maneira ampla em vários países da América Latina, sobretudo no Brasil,
México e Equador. Entretanto, o direito à cidade não é uma proposta que teve
ressonância somente nesta região: tem um caráter claramente global e este dossiê
sobre direito à cidade tem como objetivo difundir experiências desenvolvidas em
distintos países do mundo relacionadas ao tema, para assim demonstrar que sim,
outra cidade é possível.
Isso implica mudanças estruturais profundas nos padrões de produção,
consumo e nas formas de apropriação do território e dos recursos naturais. O
direito à cidade se refere a “busca de soluções contra os efeitos negativos da
globalização, da privatização, da escassez dos recursos naturais, do aumento
da pobreza mundial, da fragilidade ambiental e suas conseqüências para a
sobrevivência da humanidade e do planeta” (HIC-AL, 2006). Levando em conta
a crise global que vivemos atualmente e que apresenta um caráter, sobretudo,
urbano (partindo da crise do mercado imobiliário nos Estados Unidos), Harvey
afirma que “se esta crise é fundamentalmente uma crise de urbanização então
a solução deveria ser a urbanização e aí é onde a luta pelo direito à cidade é
fundamental, uma vez que temos a oportunidade de fazer algo diferente”.
26 Cidades para tod@s
Sim, existem alternativas ao desenvolvimento urbano baseado no mercado,
na privatização, no deterioro dos vínculos sociais e o direito à cidade é uma
ferramenta, uma proposta para alcançar a construção de cidades diferentes onde
todos possam ter um lugar para viver com dignidade.
Referências
Borja, Jordi. “La Ciudad Conquistada”. Alianza Ed. Barcelona, 2003. Habitat International
Coalition. “David Harvey at the World Social Forum, Belem”. February 2009.
http://www.hic-net.org/news.php?pid=2953.
Habitat International Coalition. HICademy, Habitat Themes, Right to the City. http://
www.hic-net.org/habitatthemesresults.php?t=3000&s=0&dt=Derecho%20a%20
la%20ciudad.
Habitat International Coalition, et. al. “World Charter for the Right to the City”. 1995.
http://www.hic-net.org/document.php?pid=2422.
Habitat International Coalition-América Latina (HIC-AL). “El Derecho a la Ciudad y
la Carta Mundial por el Derecho a la Ciudad”. 2006. http://www.hic-al.org/
proyectos/derechoalavivienda/desc/derechociudad2.html.
Lefebvre, Henri. “Le Droit à la ville”. Anthropos. Paris, 1968.
Velásquez, Fabio (ed.). “Conversaciones sobre el derecho a la ciudad”. Gente Nueva
Editorial. Bogotá, 2007.
Primeiro Capítulo
Propostas para o direito à cidade
A democracia em busca da cidade futura
Jordi Borja
Democracia e cidade
Somente encontramos se sabemos o que procuramos. Um princípio epistemológico
elementar. Ou não tanto. Bachelard nos diz que pesquisar é procurar o que está
escondido, mas enquanto procuramos dificilmente podemos precisar do que se
trata.
Para nós, que nos ocupamos da cidade, o que dela nos atrai especialmente é
porque se trata do lugar da liberdade e das aventuras possíveis, da multiplicação
dos encontros imprevistos, dos azares imprevisíveis. A cidade pode nos
surpreender em cada esquina (Breton) e nela queremos viver.
A cidade é, ao mesmo tempo, moradia pessoal e ação coletiva. Suas praças,
ruas e edifícios emblemáticos são o lugar onde a história se constroi: o muro de
Berlim, o Zócalo mexicano, a Praça Tienanmen de Pequim… Se viajamos a um
passado mais distante veremos a Bastilha e o salão do Jeu de Paume da Paris
revolucionária onde precisamente foram proclamados les Droits de l’Homme1 que
afirmam que “os homens nascem e se desenvolvem livres e iguais”.
O mito originário da cidade é a Torre de Babel: pessoas diferentes, porém
iguais, juntas construindo sua “cidade” como desafio ao poder dos deuses, como
afirmação de independência. Cidadãos são os que convivem livres e iguais, num
território dotado de identidade e que se autogoverna2.
A cidade é então uma metáfora da democracia, na sua dupla dimensão
individual e social, lírica e épica. A cidade, como a democracia, deve maximizar
a liberdade individual num panorama de vida coletiva que minimize as
desigualdades. A cidade humaniza o ideal democrático abstrato, introduz o
1
2
Os Direitos Humanos
Borja, Jordi, La ciudad conquistada, Alianza Editorial 2003.
30 Cidades para tod@s
prazer dos sentidos à racionalidade sistemática, os desejos íntimos de cada um
modulam os projetos coletivos.
Esta metáfora nos interessa especialmente, pois permite enfatizar o que é
próprio da primeira e o necessário da segunda: a dimensão sentimental e sensual,
cordial e amorosa, individualizadora e cooperativa, plural e homogeneizadora,
protetora e securizante, incerta e surpreendente, transgressora e misteriosa.
Também porque vivemos uma época em que não é casualidade que cidade e
democracia se percam, no sentido físico e político, como se estivessem se
dissolvendo no espaço público. O desapego da cidadania em direção a política
institucional e aos partidos políticos é crescente. Se por um lado é em parte um
efeito da globalização e da crise do estado-nação, por outro se expressa e se
acentua nas novas formas extensivas de desenvolvimento urbano, socialmente
segregado, ambientalmente insustentável e politicamente opaco. Se a cidade é
o âmbito produtor da cidadania e gerador da inovação é, consequentemente, o
húmus no qual a democracia vive, progride e responde aos novos desafios. Sem
a cidade, lugar que maximiza os intercâmbios, a democracia perde a força de sua
vocação de criar futuros possíveis e de promover ações presentes. A cidade é, ao
mesmo tempo, passado, presente e futuro da democracia. Não contar com um
projeto e uma ação constante de construção da cidade, que se faz e se desfaz a
cada dia, é aceitar a degradação lenta, porém contínua da democracia.
A dissolução paralela da cidade e da democracia
A revolução urbana que vivemos é uma das principais expressões de nossa época.
Não nos estenderemos sobre uma temática amplamente tratada, inclusive pelo
próprio autor deste artigo3. As novas regiões metropolitanas questionam nossa
ideia de cidade: são vastos territórios de urbanização descontínua, fragmentada
em alguns casos, difusa em outros, sem limites precisos, com escassas referências
físicas e simbólicas que marquem o território dos espaços públicos; pobres,
submetidos a fortes dinâmicas privatizadoras. Estas se caracterizam pela
segregação social, especialização funcional em grande escala e por centralidades
que passam pela gentrification4 ou que são “museificadas”, transformadas em
parques temáticos ou estratificadas pelas ofertas de consumo. Esta cidade, ou
“não cidade”5, é ao mesmo tempo expressão e reprodução de uma sociedade tão
heterogênea quanto compartimentada (ou “guetizada”), isto é, pouco coesa. As
promessas que implicam a revolução urbana, especialmente a maximização da
3
4
5
Borja, Jordi, La ciudad conquistada, Alianza Editorial 2003.
Gentrification: processo de renovação e reconstrução que provoca a afluência da classe média
ou de pessoas abastadas para zonas urbanas deterioradas, geralmente removendo os habitantes
mais pobres.
Augé, Marc, Non-Lieux, introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris, Le Seuil, 1992.
Propostas para o dereito à cidade 31
autonomia individual, estão somente ao alcance de uma minoria. A multiplicação
das ofertas de trabalho, residência, cultura, formação, ócio, etc., requerem um
relativo alto nível de renda e de informação, assim como dispor de um direito
efetivo à mobilidade e à inserção em redes telemáticas. As relações sociais, para
uma minoria, estendem-se, são menos dependentes do trabalho e da residência,
porém, para uma maioria, ficaram empobrecidas devido à precarização do
trabalho, ao tempo gasto na mobilidade cotidiana e à exclusão cultural.
Esta nova sociedade urbana não está estruturada em grandes grupos
sociais como os que caracterizavam a sociedade industrial. É uma sociedade
individualizada, segmentada, fragmentada entre os que temem perder sua
posição social, privilégios medíocres e seguranças vulneráveis e aqueles que
vivem precariamente, em seus trabalhos e em seus direitos, sem outro horizonte
vital que o da incerteza, sem outra garantia que a de não poder atingir o nível
de suas expectativas. É uma sociedade que necessita o estado de bem-estar, mas
justamente este não chega, ou não suficientemente, aos que mais necessitam. Na
Espanha, o bastante louvável propósito de defender o estado de bem-estar como
“nosso estado de direito”6 esquece que este programa não garante o “bem-estar”.
Hoje, é insuficiente e inadequado às necessidades dos que mais o necessitam:
“os que apenas ganham 1.000 euros mensais, é hoje o grupo mais numeroso de
assalariados) e os desocupados, os jovens que não podem acessar a moradia e os
imigrantes sem direitos reconhecidos, os fracassados da escola e os excluídos pela
fratura digital. E não somente eles, mas também os que vivem no círculo vicioso
da marginalização, em urbanizações periféricas ou em bairros degradados, longe
de tudo e perto demais dos que vivem na mesma situação ou pior do que a deles.
Nestes espaços urbanos e nestas sociedades atomizadas a democracia
se perde. Por meio de uma gestão municipal correta, atenta a seus eleitores,
mais reprodutora que inovadora (vale dizer “mais do mesmo”), a democracia
mantém sua respeitável existência institucional. Através da televisão fabrica os
indispensáveis momentos eleitorais nos quais o único que se pode expressar com
certo conhecimento é o voto negativo. Existe uma dissolução progressiva dos
partidos políticos no território, como força social, cultural e política, por falta
de arraigo militante no território, especialmente entre as camadas sociais mais
discriminadas, em alguns casos, e mais reativas, em outros. Há, sobretudo, uma
dissolução do seu discurso. Se existe crise da cidade, os partidos democráticos
deveriam propor-nos no presente um projeto de cidade futura. Na Espanha
democrática de hoje é indubitável que os governos locais souberam desenvolver
políticas positivas na cidade compactada herdada, especialmente, da reconstrução
dos espaços públicos e da relativa manutenção da mistura social e funcional.
Entretanto, as instituições políticas da democracia mostram-se muito mais
6
Ridao, José Mª La izquierda sin crisis, El País, 25-11-2007.
32 Cidades para tod@s
impotentes, quando não cúmplices, frente aos efeitos perversos da globalização
no território e os agentes que promovem estes vastos espaços urbanizados sem
qualidade de cidade. Ao contrário, mediante políticas setoriais e imediatistas
acabam se submetendo a lógica segregacionista e excludente do mercado,
contribuindo assim para a dissolução do cidadão. Os governantes (direitas
e esquerdas confundidas) e as grandes empresas agregam a essa situação, em
nome da competitividade e do marketing urbano, a ostentação arquitetônica
e o neomonumentalismo de exportação, banalizando a cidade e alienando
os cidadãos. Muitos líderes políticos e intelectuais se movimentam entre as
abstrações do estado, da economia global e das pesquisas de opinião. A cidade
de carne e osso, das pessoas com desejos, necessidades que se misturam em cada
um deles e que demandam respostas próximas e integradas, fica muito distante.
Perto, no melhor dos casos, estão os gestores locais do dia-a-dia, inevitavelmente
limitados à única vantagem comparativa que possuem: a proximidade, o que
não é suficiente para se enfrentar as dinâmicas atuais que reduzem as liberdades
urbanas e acrescentam as desigualdades no território.
Conflitos no território e assimetria política
É quase um lugar comum na Europa a ideia de que a contradição própria de
nossas sociedades está passando do âmbito empresarial ao territorial, isto é, da
contradição capital-trabalho para a das políticas públicas-condições de vida. No
entanto, esta contradição aparece confusa pela multiformidade das questões que
a expressam, tão díspares como a moradia e a segurança, o trabalho precário e a
imigração, a proteção do meio-ambiente ou do patrimônio e a mobilidade. Uma
confusão que dificulta a construção de projetos simétricos oponíveis.
A esta assimetria agrega-se aquela derivada da diversidade de sujeitos com
interesses, por sua vez, contraditórios e que dificilmente são capazes de definir
um cenário compartilhado no qual se negocia o conflito (somente se o conflito se
torna agudo e em casos pontuais). Denominamos este conflito como assimétrico
quando os atores em confronto não podem definir objetivos negociáveis ou não
estão em condições de assumir responsabilidades. Um caso extremo de conflito
é quando se dá uma rebelião “anômica” (como, por exemplo, os protestos dos
“banlieusards”7 de Paris). Isso se dá, por exemplo, quando há uma diversidade
confusa de atores com competências concorrentes, como frequentemente acontece
entre os governos estatais e os regionais.
A questão que interessa neste caso não é tanto a complexidade do conflito
como a debilidade das políticas públicas diante destes conflitos. Uma debilidade
7
Habitantes dos bairros das grandes cidades da França. O termo possui uma conotação social e
cultural, uma vez que se trata de bairros de classe social baixa, onde convivem muitos imigrantes.
Propostas para o dereito à cidade 33
que deriva mais da inconsistência teórica e da elasticidade dos valores morais
que do caráter das pessoas ou das opções conjunturais dos partidos. Uma
debilidade dos princípios e dos valores que conduz ao oportunismo eleitoral e à
gestão rotineira. Vejamos um conjunto de questões conflituosas que se expressam
em âmbitos territoriais de proximidade. Questões que podem servir como teste
para avaliar se a democracia próxima é portadora de um projeto de futuro mais
democrático ou é simplesmente uma gestora do presente, com seus progressos
adquiridos e suas contradições e retrocessos permanentes.
A precariedade do trabalho
A evolução da economia de mercado “naturalizou” a precariedade do trabalho
assalariado, desvalorizando o posto de trabalho e o processo aquisitivo da
qualificação profissional. As atuais democracias implementaram medidas
corretivas dos efeitos mais negativos da precariedade (seguro-desemprego,
programas de formação contínua, duração mínima de dois contratos de
trabalho, redução da jornada, etc.), porém não são portadoras de um projeto
global valorizador do trabalho e do profissionalismo de todas as atividades. Por
outro lado, considerando-se o ingresso tardio no mercado de trabalho, os quase
inevitáveis períodos de desocupação que espreitam a grande parte da população
ativa e a aposentadoria de pessoas, quando ainda dispõem de duas ou mais
décadas de expectativa de vida, colocam a questão da necessidade de garantir uma
renda mínima. Nos dias de hoje, as desigualdades e as incertezas caracterizam
os atuais sistemas de pensão. A proposta de uma renda básica universal é,
provavelmente, discutível em sua concepção e de difícil implementação, porém
indica a existência de um problema que requer uma solução global. Somos
conscientes que esta problemática não é específica do âmbito local, mas é neste
onde se manifesta, onde se faz visível. Um alto funcionário francês, Jean-Marie
Delarue, pouco suspeito de esquerdismo, disse já há vários anos que o conflito
social próprio da sociedade industrial havia passado da empresa ao território8.
A moradia e o solo
A moradia é um direito básico reunido nos textos constitucionais e nas cartas
de Direitos Humanos, mas é somente um princípio orientador das políticas
públicas. Trata-se de um “direito programático”, não garantido pelo estado de
“direito”. Hoje a moradia transformou-se num dos grandes problemas sociais
para enormes camadas da população e ao mesmo tempo uma das principais
fontes de benefícios especulativos, tanto do capitalismo financeiro como de um
8
Delarue, Jacques, Banlieues en difficulté, la relégation, Paris. 1991.
34 Cidades para tod@s
extenso e variado mundo de proprietários do solo, bem como de promotores
e construtores. A urbanização, a construção de moradias e as obras civis são
provavelmente o principal fato de corrupção política e social. Na Espanha, sob
governos de esquerda e de direita (certamente estes últimos concederam mais
facilidades), destruiu-se por igual a paisagem costeira. A urbanização extensiva
favoreceu a maior especulação de solo da nossa história, de modo que se
construíram centenas de milhares de moradias que não possuem comprador
ou localizam-se tão afastadas dos centros de trabalho e de serviços que geram
altos custos sociais e ambientais. A esquerda abandonou seus objetivos clássicos:
propriedade pública do solo urbanizável e urbano, prioridade para as habitações
de aluguel (que não deveria superar 10 ou 20% da renda familiar), a continuidade
e a mistura dos tecidos urbanos, etc. Por sua vez, os governos conservadores
impulsionaram uma legislação facilitadora do “todo urbanizável” que conseguiu
multiplicar a urbanização extensiva e disparar o preço das habitações e do solo,
cuja repercussão sobre a moradia passou de 30 a 50%. Não encontramos hoje nos
governos democráticos uma compreensão clara sobre “o direito à moradia” e
menos ainda sobre “o direito à cidade” quando se trata da cidade futura, a que
está sendo fabricada nas periferias.
As infraestruturas e mobilidade dos cidadãos
O atual debate sobre as infraestruturas parece estar centrado numa disputa sobre
o nível institucional ao que corresponde a principal responsabilidade de gestão.
É, sem dúvida, uma questão importante e parece provável que uma gestão mais
próxima das redes ferroviária e viária, dos portos e dos aeroportos seria certamente
mais eficaz, uma vez que estaria mais submetida ao controle social. Entretanto,
direita e esquerda coincidem nas mesmas propostas “incrementalistas”, apesar de
muitos casos representarem custos sociais e ambientais dificilmente sustentáveis.
Pareceria lógico que a base de partida fosse o reconhecimento do “direito à
mobilidade”, hoje fundamental, a ponto de ser considerado um direito universal
para todos, diariamente e em todas as escalas. Em consequência, deveria ser
priorizada a mobilidade mais massiva e cotidiana, como as redes de cercanias9,
o que não acontece no momento. As infraestruturas são o principal motor da
urbanização e seria lógico favorecer os desenvolvimentos urbanos apoiados na
compacidade e densidade dos tecidos urbanos. Contudo, não há uma cultura
política democrática que assuma na prática nem o direito à mobilidade nem o
bom uso das infraestruturas para fazer cidade.
9
Cercanías é a denominação comercial do serviço de comboios suburbanos na Espanha. As linhas
de cercanias operam nas principais cidades espanholas.
Propostas para o dereito à cidade 35
A segurança dos cidadãos
Novamente nos deparamos com discursos e práticas que se caracterizam
pelas ambivalências, contradições, submissão a valores e comportamentos
mais conservadores e excludentes, que estimulam os estados de opinião mais
primários. A criação de ambientes seguros é um direito fundamental para o
conjunto da população e as políticas públicas devem garanti-lo, especialmente
para os grupos mais vulneráveis. A insegurança procede de muitas causas:
desocupação ou precariedade do trabalho, entorno urbano inóspito, pobreza,
presença de grupos culturalmente diferentes e percebidos como potencialmente
“perigosos”, fragilidade do tecido social, etc. Por outro lado vivemos numa época
na qual a política do “medo” se converteu num instrumento manipulador da
opinião pública internacional por parte dos governantes mais reacionários dos
Estados Unidos. Lamentavelmente esta política contaminou a vários governantes
democráticos europeus que, em muitos casos, assumiram o discurso securitário
e a prática da repressão preventiva que vão contra as camadas mais vulneráveis.
É sintomático que duas das cidades que nas últimas décadas tinham servido
de exemplo de gestão democrática, Bolonha e Barcelona, tenham aprovado
normativas baseadas em princípios tão discutíveis. São o caso da criminalização
de grupos sociais e da prática da repressão preventiva, como as Ordenanças para a
convivência, aprovadas pela Administração Municipal de Barcelona, nas quais se
criminalizam vendedores ambulantes, prostitutas, mendigos, limpadores, semteto, etc. e se impõem sanções tão exageradas quanto inaplicáveis10. Tudo isso
em nome do “cidadão formal” que tem direito “a não ver aquilo que lhe causa
desgosto”. Entendamo-nos: não se trata de defender uma política permissiva,
mas sim o oposto. Acreditamos que a polícia de proximidade, a justiça local
rápida, a sanção imediata dos comportamentos incivis, etc., fazem parte de
políticas públicas que devem ser próprias da democracia, pois afetam a grande
maioria dos cidadãos. Entretanto, o ponto de partida deve ser a consideração de
todos os cidadãos por igual, a proteção dos mais frágeis e a construção de alguns
âmbitos de convivência que promovam o conhecimento mútuo, a cooperação
entre os cidadãos e a solidariedade com os mais fragilizados ou discriminados.
Curiosamente as “ordenanças” citadas, que no início proclamam sua intenção
de sancionar os comportamentos racistas ou xenófobos, logo se esquecem de
concretizar esta boa ação. Hoje o direito à segurança não parece estar elaborado
e assumido pelos governantes democráticos como aplicação às novas realidades
dos princípios próprios do liberalismo progressista, do pensamento social cristão
e dos valores e práticas das esquerdas. Na realidade parecem impor-se os medos
10 Borja, Jordi, Inseguretat ciutadana a la societat de risc, Revista Catalana de Seguretat Pública, nº
16, 2006. Versão em castelhano na revista La Factoría nº 32 wwwlafactoriaweb.com.
36 Cidades para tod@s
e as reações autoritárias das ideologias mais conservadoras que criminalizam os
pobres, os jovens sem perspectivas das camadas populares e os imigrantes.
A escola pública e a religião
A escola pública, obrigatória e laica foi historicamente uma das grandes
conquistas da democracia. Seus três objetivos principais: garantir uma formação
básica para todos os cidadãos como meio de promover um desenvolvimento
econômico e social mais justo e mais eficaz; criar um mecanismo de mobilidade
social ascendente ao alcance das camadas populares e dos grupos que sofrem
discriminação e exclusão; e, por último, formar cidadãos para a democracia, a
tolerância e a racionalidade, mediante uma educação que não imponha crenças
que pretendam monopolizar a verdade e que signifiquem menosprezo para outras
de tendência diferente. Atualmente, a combinação entre os afãs de diferenciação
das camadas sociais ricas por uma parte e o acesso ao sistema educativo dos
setores populares, incluindo os procedentes da imigração, provocou uma forte
fratura no sistema educativo. Contribui para o fato o comportamento de uma
parte importante da Igreja Católica, defensora dos privilégios herdados do
passado e convertida numa grande empresa que fez do ensino um negócio e uma
fonte de poder e influência. Os governos democráticos, inclusive os de esquerdas,
muitas vezes demonstraram grande debilidade frente às reações destas camadas
que têm utilizado a religião para defender seus privilégios. Assim se tem
admitido o fato de que as escolas concertadas, isto é, 100% subvencionadas,
pratiquem a discriminação (à população imigrante, por exemplo) e que incluam
nas disciplinas obrigatórias a religião que chegou a retornar, em alguns casos,
às escolas públicas. Esta debilidade trouxe consigo um retrocesso progressivo
do laicismo e tem especializado a escola pública como própria das camadas
mais excluídas, de modo que, ao invés de servir de alavanca à ascensão social,
contribui para reforçar a marginalização social. O resultado é que nenhum dos
três objetivos da escola pública, obrigatória e laica é cumprido.
Os serviços públicos urbanos e a saúde: as multinacionais contra a
democracia
O que todos sabem e é uma profecia: existem relações obscuras, importantes
nichos de corrupção pública e posições privilegiadas de grandes empresas de
serviços que geram enormes benefícios privados que, por sua vez, pesam sobre
os contribuintes e sobre a qualidade das prestações. É indiscutível que um dos
principais avanços promovidos pelos governos democráticos é o “estado de
bem-estar” e o estabelecimento de um sistema de serviços públicos “universais”
ou de interesse geral. Este sistema hoje está afetado por um processo de
Propostas para o dereito à cidade 37
crescente deterioração devido, principalmente, a dois fatores. Primeiro, a relativa
inadequação da oferta às novas realidades urbanas caracterizadas pela difusão
do hábitat e, consequentemente, pela maior escala territorial da segregação
social, bem como maior heterogeneidade dos grupos sociais e, portanto, de
suas demandas. As populações menos solventes estão pior servidas tanto em
transporte público como em equipamentos sócio-culturais, assim como no acesso
às tecnologias de informação e comunicação atuais (a “fratura digital”). Segundo,
as situações de monopólio de fato garantem uma impunidade que permite que
os déficits de investimento e manutenção fragilizem as prestações, como ocorre
agora com a água e a energia. Não deixa de ser um paradoxo escandaloso que
estas mesmas empresas de serviços utilizem as políticas públicas de cooperação
para se instalarem em países menos desenvolvidos nos quais forçam contratos
leoninos e transferem tecnologias pouco adequadas.
A cultura democrática deveria recuperar algo tão elementar e que é parte de
sua razão de ser como é a propriedade coletiva de bens básicos da humanidade,
pelo menos dos quatro bens naturais: a água, o ar, o solo e o fogo (a energia, em
termos atuais). Aos quais deveríamos agregar agora os serviços de comunicação,
sanitários e educativos. Não é possível que estes bens sejam objeto de apropriação
privada e, consequentemente, de lucro para alguns e exclusão para outros. A
gestão da água é privada: uma parte importante da população mundial não tem
água potável por não poder pagá-la. Compra-se o direito de contaminar e os
países dominantes contaminam assim as populações mais pobres. A propriedade
privada do solo é um dos principais fatores geradores da marginalização social,
de especulação privada e de corrupção pública. As maiores fortunas são geradas
nos setores energéticos e são distribuídos segundo os níveis de solvência das
demandas, com o paradoxo de que, em muitos casos, as populações e os territórios
produtores de fontes energéticas não podem acessar às mesmas.
A saúde pública merece uma reflexão especial. Uma das conquistas do
estado de bem-estar é que garante a atenção a toda a população (incluindo a
que não tem sua cidadania reconhecida). Este sistema que sofre hoje de um
esgotamento evidente, em função dos seus altos custos de manutenção e por sua
organização administrativa pouco adequada, caracteriza-se pela oferta dirigida
a demandas massivas e nem sempre adaptada ao tratamento de situações locais
e populações heterogêneas. Produziu-se um aumento considerável da demanda,
devido à tendência de medicalização de qualquer mal-estar e pelos progressos
da atenção médica, assim como pela debilitação da estrutura familiar e acesso
da mulher ao trabalho fora de casa. Diante desta crise existe a tendência a dar
respostas economicistas e gestoras, baseadas na privatização da atenção e na
autonomia dos centros. Sem entrar agora na discussão destas tendências, chamanos a atenção uma omissão: é frágil a denúncia da influência negativa das
multinacionais da indústria farmacêutica que estimulam a hiper medicalização,
38 Cidades para tod@s
excluem as demandas menos solventes de acesso a muitos medicamentos
e multiplicam seus benefícios à custa precisamente dos contribuintes que
alimentam os fundos públicos e privados assistenciais. Seria lógico esperar que
os governos democráticos, tanto na escala local como na global, tivessem uma
posição de denúncia e confrontação com estas multinacionais, promovendo urbi
et orbi os medicamentos genéricos, difundindo as fórmulas para que alcancem
todos os países mais pobres, impondo condições à produção e distribuição de
medicamentos fabricados pelo setor privado, criando redes locais de distribuição
alternativa e priorizando a pesquisa nos centros públicos. Os cidadãos merecem
que se evite a vergonha de ver as empresas multinacionais (financeiras, de
serviços, de energia, etc.) sendo tratadas como representantes do “interesse
nacional” pelo fato de ter sua origem no país.
A imigração
O discurso e a prática dos governos democráticos tanto na escala local como
nacional são, neste caso, de uma ambiguidade que vai mais além da inevitável
consideração dos limites que tanto os marcos econômicos e legais (nacionais e
europeus) como o estado da opinião pública impõem a uma política da imigração.
Pratica-se a contradição, o duplo discurso entre os princípios que se proclamam
e as normas que se impõem. Embora se proclamem as boas intenções, como
reconhecer e proteger os direitos dos imigrantes e favorecer sua integração em
todos os aspectos, os textos articulados são sempre um compêndio de limitações
ao exercício de direitos básicos. Mesmo que se façam declarações negando a
regularização dos imigrantes “ilegais”, todos nós sabemos que é inevitável que
a população estabelecida no país, e que nele trabalha, acabe sendo regularizada,
o que deveria ser feito periodicamente. Omitem-se os injustos custos sociais que
deve assumir este exército de reserva de mão-de-obra que trabalha em condições
precárias enquanto espera ser regularizada ao cabo de alguns anos. Criam-se
entraves a direitos tão básicos como o reagrupamento familiar e o exercício dos
direitos sindicais. Não é possível praticar uma política de portas abertas sempre
e para todos, porém a cultura democrática, humanista e universalista inclui o
direito a que os habitantes do mundo tenham um projeto de vida próprio. A
política, portanto, deve estabelecer canais regulares e dignos para receber uma
população que de todas as maneiras chegam aos nossos países desenvolvidos.
Faltam princípios claros sobre os direitos dos imigrantes, como é o caso do direito
a dignidade, ao reconhecimento de sua identidade, o trato baseado na “ação
positiva” para facilitar seu processo integrador, a sanção ao maltrato, seja ele
proveniente da sociedade civil ou dos funcionários públicos, a difusão de seus
valores e de suas contribuições ao país ao que chegam. A questão fundamental
a partir de uma cultura democrática é reconhecer aos imigrantes instalados no
Propostas para o dereito à cidade 39
país de acolhida como cidadãos de plenos direitos. A população de origem não
euro-comunitária com residência legal deve ser sujeito dos mesmos direitos que
os nacionais, incluídos todos os direitos políticos.
Sobre a reconstrução de uma cultura democrática. Três reflexões breves e gerais
Neste breve e apressado artigo não pretendemos analisar todos os novos
desafios que a democracia deve enfrentar. Somente indicamos algumas questões
vinculadas ao urbano, ao território de proximidade, ao marco de vida habitual
dos cidadãos.
A ideia central desta nota é que o pensamento e a política das democracias
atuais, se desejam ser fieis a seus objetivos históricos de liberdade e igualdade, a
sua vocação universalista e sua vontade de apoiar os que são por sua vez vítimas
necessárias e resistentes potenciais de um sistema baseado no esbanjamento
global e no lucro pessoal, devem reconstruir ou desenvolver suas bases teóricas e
seus valores morais. Isto é, repensar a cidadania.
Uma linha de trabalho que promete ser produtiva é repensar os direitos civis
correspondentes a nossa época11. Um deles pode ser o “direito à cidade”, que
integra os direitos que citamos anteriormente: moradia, espaço público, acesso
à centralidade, mobilidade, visibilidade no tecido urbano, identidade do lugar,
etc. Em outras dimensões da vida social, econômica e política é preciso reelaborar
e precisar “novos direitos” que se distinguirão por sua maior complexidade
no que diz respeito aos tradicionais que serviram de emblema às revoluções
democráticas e às reformas sociais da velha sociedade industrial. Como, por
exemplo, o reconhecimento de todos os direitos políticos aos residentes legais
numa cidade ou região (para superar o vínculo limitante entre nacionalidade e
cidadania), a formação continuada – entender a educação não como limitada a
uma faixa etária –, o salário cidadão ou renda básica universal como complemento
do direito ao trabalho, etc.
Optamos por conceituar esses direitos como civis e não “humanos”,
considerando que conformam o estatuto de cidadania e assim reconhecer a
pessoa como sujeito com direitos e deveres que a tornam livre no território no
qual escolheu viver, igual a todos os que com ela convivem neste território.
Uma segunda linha de reflexão é a de repensar o projeto de sociedade. Este
nasce de três fontes: a memória histórica democrática, a crítica teórica e prática
da sociedade existente e as aspirações e objetivos que emergem dos conflitos
sociais nos quais se expressam valores de liberdade e de igualdade. O fracasso
11 Borja, Jordi, Los derechos ciudadanos, Documentos, Fundación Alternativas, Estudios, N. 51,
2004 (inclui uma ampla bibliografia).
40 Cidades para tod@s
e a justa rejeição dos modelos do tipo “soviético” e o esgotamento do “estado
de bem-estar” tradicional provocaram certo medo de pensar que “outro mundo
é possível”. Contudo, tanto os ideais históricos do iluminismo, do liberalismo
democrático, do cristianismo social, do socialismo, as práticas dos movimentos
dos trabalhadores e as lutas em defesa da democracia, assim como as realizações
do “welfare state”, não apenas representam um patrimônio positivo e sim
constituem também as bases para repensar o futuro. Causa vertigem o vazio
cultural da política atual, que não quer olhar para trás nem se atreve a imaginar o
futuro. Evita-se a reflexão crítica sobre os modelos econômicos vigentes, onerosos
e insustentáveis, excludentes e violentos, que caracterizam nosso modo de vida.
Finalmente uma terceira linha de trabalho requer vincular, no pensamento
teórico e na prática política, o “local” com o “global”. Resulta ofensivo regredir e ler
as declarações dos políticos e dos meios de comunicação defendendo o Ocidente,
seus sistemas, suas empresas e denunciando, sob o nome supostamente infamante
de “populismo”, qualquer crítica ou ameaça aos interesses neocoloniais de
governos e empresas. Recuperar o “universalismo” no contexto da globalização
é uma matéria pendente da esquerda ocidental.
Como epílogo: retorno à cidade e elogio do azar
Não acredito que uma nova cultura política seja gerada, principalmente, nas
instituições de governo, ou seja, construída nos laboratórios de pesquisa e nos
seminários acadêmicos. Nos primeiros gerencia-se ou pensa-se nas eleições. E no
mundo acadêmico a criatividade não é uma virtude apreciada. Permanecem os
movimentos políticos alternativos (globais), como os que criticam a globalização,
e culturais de resistência (locais), que defendem identidades ou interesses
coletivos legítimos, porém limitados. Só nos resta esperar que entre a política
institucional, os âmbitos de pesquisa e debate intelectual e os movimentos globais
e locais criem-se intercâmbios e transferências que possam criar as bases de uma
cultura política pragmática em sua ação, porém radical em seus objetivos.
Como não se podem inventar as pontes entre atores tão diferentes e tão
distanciados somente me ocorre confiar no azar. E na cidade. Na “serendipity” da
cidade. Se não se conhece a origem desta palavra então explico: “inventou-a” o
escritor inglês Horace Walpole a partir de um relato, Aventuras dos três príncipes
de Serendip, país que passou a se chamar Ceilão e atualmente Sri Lanka. Os três
príncipes descobrem, em sua viagem, mesmo sem buscá-los e por intervenção
do azar, uma multidão de fatos curiosos e bastante inovadores para eles. A
“serendipity” pode ser entendida como encontrar o que não se busca (como o
Viagra, que é produto de algumas pesquisas sobre a hipertensão, e a internet, que
nasceu de pesquisas do Ministério de Defesa dos Estados Unidos). É resultado
Propostas para o dereito à cidade 41
do azar o estabelecimento de conexões imprevistas entre pessoas ou o fruto de
encontros casuais entre pessoas e fatos. A “serendipity” obviamente supõe uma
disposição a observar, aprender e relacionar. E para o azar atuei. É preciso que
o meio no qual a “serendipity” se produz seja denso e diverso, gere múltiplos
contatos imprevistos, os sujeitos percebam fatos que não fazem parte de seus
trabalhos nem de seu cotidiano, que em qualquer esquina possa aparecer uma
surpresa ou aventura (como diz a citação de Breton que aparece no início do
texto12).
A cidade, real e imaginária, a cidade compacta e heterogênea, caracterizase pela grandeza da população e a velocidade das conexões que possibilita e
multiplica as interações entre atores bastante diversos. O perigo pode residir
num excesso de planejamento racionalista, de ordenamento funcional, de
programação das conexões, de previsibilidade dos comportamentos. Sennet,
numa de suas primeiras obras, já alertava contra os efeitos perversos do
urbanismo funcionalista e reclamava uma cidade que fosse lugar de múltiplos
encontros entre pessoas diferentes13. E o diretor de urbanismo da City de Londres
expunha em um encontro internacional que os “pubs” eram o lugar mais idôneo
para a inovação econômica e cultural, pois os encontros informais eram muitas
vezes mais produtivos14.
Não propomos que os atores pensantes se distribuam pelas cafeterias, nem
entrem e saiam dos meios de transporte coletivos. Porém sim que façamos do
urbanismo uma questão “política”. As dinâmicas atuais tendem atomizar a
cidade, segregar grupos sociais e atividades, reduzir os intercâmbios entre
cidadãos, substituindo-os por relações entre serviços e usuários, equipamentos e
clientes. Como afirma Ascher, “o urbanismo deve produzir lugares, momentos e
situações favoráveis à serendipity”.
A cidade é o lugar da história, da inovação cultural e política, é o entorno
no qual se pode recriar e desenvolver a esquerda. Hoje existem tendências
dissolutivas da cidade e da cidadania. É o duplo desafio que a democracia
enfrenta: reinventar a cidade e reinventar-se a si mesma na cidade.
12 Breton, André, Nadja, Gallimard, 1964.
13 The uses of disorder: Personal Identity and City Life, New York 1970 (Versión castellana,
Ediciones Península, 1975).
14 A citação do diretor de urbanismo do Distrito da City de Londres se refere a uma intervenção oral
no Seminário de Grandes Cidades, Centro Cultural San Martín. Posteriormente se publicou um
volume com todas as intervenções a cargo do Governo da cidade de Buenos Aires (1997).
Contra o direito à cidade acessível.
Perversidade de uma reivindicação consensual
Yves Jouffe
O direito à cidade representa um projeto sumamente antineoliberal: colocar a
cidade a serviço do habitante e não este a serviço de uma cidade dominada por
interesses capitalistas (Purcell, 2009). Em 1969, Lefebvre introduz esta exigência
ética do direito à cidade como uma bandeira suscetível de unir expertos em
urbanismo e grupos políticos da classe operária, contudo essa constitui o ator e o
maior beneficiário desta conquista da cidade contra o capital.
Contudo, o direito à cidade, por seu caráter nebuloso, facilita confusões e
amálgamas. Particularmente, pode reduzir-se à questão da acessibilidade aos
diferentes lugares e serviços da cidade. Os defensores do direito à mobilidade
que promovem a acessibilidade como princípio fundamental da justiça social
e eficácia econômica na cidade tendem a fazer tal redução. A formulação do
direito à cidade como direito à cidade acessível permite colocá-lo a serviço de um
ordenamento neoliberal do espaço urbano. Isto é, exatamente contra o projeto
inicial de Lefebvre e a vontade de vários militantes de hoje em dia. Contudo,
não basta sublinhar esta ameaça. Resulta importante entender que a natureza
ambígua do direito à cidade funda, por sua vez, o risco de sua manipulação e
utilidade tática, permitindo alianças amplas e até contranaturais.
Do direito à cidade ao direito ao acesso
Através do direito à cidade, o habitante exige seu direito a produzir ou transformar
e usar a cidade. Uma primeira redução consiste em menosprezar a dimensão
participativa, colocando-a depois da questão da produção quando esta ainda está
por fazer, ou depois da questão do uso quando os espaços urbanos já existem.
Assim, as instituições públicas ou o mercado se encarregarão de construir a
cidade em nome do habitante e de torná-la acessível.
Num segundo momento, o direito à cidade pode ser reduzido à garantia do
44 Cidades para tod@s
acesso à cidade, menosprezando a importância por sua produção. A segregação
sócio-espacial característica das grandes metrópoles reforça esta simplificação.
Vários serviços urbanos como os hospitais, as administrações, as áreas culturais ou
os centros de emprego existem, porém se concentram fora do alcance das massas
desfavorecidas, por culpa da distância ou de outra forma de exclusão. Logo, a
questão do acesso domina o da produção dos serviços. De maneira exemplar, o
planejamento urbano renuncia a aproximar o emprego dos trabalhadores, porém
lhes permite e impõe deslocar-se até seus trabalhos. Nestes âmbitos, o direito à
cidade se concretiza então como um direito ao acesso à cidade.
Do direito à vida urbana ao direito ao acesso comum
É verdade que vários militantes que lutam pelo direito à moradia e aos
equipamentos de bairro, tais como os espaços públicos, sublinham que seus
objetos de luta escapam desta lógica porque exigem sua realização localizada
e difusa na metrópole, o mais perto possível dos habitantes. Graças ao caráter
localizado desta produção, o acesso não é um problema. Porém a mesma
definição do direito à cidade como direito à vida urbana (Lefebvre, 1969) conduz
à valorização do acesso por si só. Então a produção localizada que o faz supérfluo
torna-se criticável.
Se a urbanidade descansa sobre o encontro das diferenças (Lévy, 2005), a vida
urbana exige, sobretudo, a supressão das fronteiras, distâncias e discriminações
com o fim de garantir o acesso a todos os espaços da cidade. Por conseguinte,
as ações que promovem uma vida urbana numa escala inferior a da metrópole
podem ser acusadas de criar zonas que fragmentam o todo urbano. Certas políticas
de habitação social supõem e impõem que o beneficiário torne-se o proprietário,
como acontece no Chile. Desta maneira, o direito à moradia pode aparecer como
uma difusão da propriedade privada que encerra cada um em sua casa. Podese também ler o direito ao espaço público de bairro como a realização de um
isolamento comunitário, cada comunidade vivendo feliz em seu bairro exclusivo.
A importância do caráter poroso dos bairros para o funcionamento urbano
parece comumente negada nas políticas públicas e nas operações imobiliárias
que constroem estes bairros (Márquez, 2003). O bairro pode até impor códigos
que excluam a maioria dos cidadãos, como no caso do tipo de roupa exigido das
mulheres por uma comunidade ultra-ortodoxa de Jerusalém em “seus” espaços
“públicos” (Fenster, 2005). A etapa extrema é o fechamento do bairro aos que
não vivem lá, com guardas e muros de concreto (Hidalgo et al., 2005). O direito
à cidade, como vida urbana, entra então em tensão com suas aplicações locais e
seus modos de vida proprietários e comunitários.
Finalmente, quando a crítica desta produção localizada se soma ao frágil
Propostas para o dereito à cidade 45
apoio das instituições públicas centralizadas, a lógica do acesso coloniza até os
direitos à moradia e ao bairro. Não se trata mais de construir as habitações e
bairros esperados, mas sim permitir aos habitantes mudar de casa até estes. O
direito à mobilidade residencial substitui aqui o direito à moradia reduzido a
mais uma mercadoria e o direito à cidade se reduz inteiramente ao direito à
cidade acessível.
Direito à proximidade ou direito à acessibilidade
O direito ao acesso parece legitimamente consensual porque o acesso é necessário.
Contudo, este direito é ambíguo porque o acesso à cidade pode ser configurado
segundo diferentes maneiras mais ou menos vinculadas ao funcionamento
capitalista neoliberal.
Particularmente, duas configurações urbanas se opõem: o acesso mínimo
e o acesso máximo, que serão identificados como “a proximidade” e “a
acessibilidade”. O acesso mínimo põe em contato o indivíduo com o conjunto
dos lugares onde necessita ir: seu trabalho, seu hospital, seu centro de lazer, etc.
O acesso máximo põe em contato o indivíduo com o conjunto dos mercados
correspondentes aos serviços que necessita: o mercado do emprego que
corresponde a sua qualificação, o mercado dos serviços de saúde, o mercado do
entretenimento, etc. Enquanto o acesso máximo aspira à acessibilidade a toda a
metrópole, o acesso mínimo tende a promover uma escala mais local, tornando
supérfluos os deslocamentos longos pela proximidade dos serviços. Se a meta da
acessibilidade é a capacidade de deslocar-se na escala metropolitana, o objetivo
da proximidade consiste, sobretudo, na repartição dos serviços no espaço
urbano, o mais perto possível dos habitantes. Assim a proximidade se preocupa
pelas infraestruturas dos serviços necessários enquanto a acessibilidade garante
a infraestrutura do transporte até os serviços necessários.
Acessibilidade ao serviço da metrópole neoliberal
A notável diferença entre proximidade e acessibilidade é que esta última reforça
a organização neoliberal da sociedade colocando os cidadãos a serviço da cidade,
isto é, da economia urbana.
Com efeito, permitindo-lhes ir a todos os lugares de trabalho e serviços da
metrópole, a acessibilidade gera uma competição entre estes empregos e serviços
que se mercantilizam. Melhor dito, a acessibilidade cria o mercado.
Esta mercantilização envolve até os serviços públicos, o que distingue
o neoliberalismo do liberalismo. Enquanto o governo liberal compensa as
desigualdades devidas à ineficiência do mercado, o governo neoliberal luta
46 Cidades para tod@s
contra a exclusão em relação ao mercado (Desjardins, 2008). A luta liberal contra a
desigualdade leva à criação de serviços públicos distribuídos independentemente
da lógica mercantil, a proximidade da população. Por outro lado a luta neoliberal
contra a exclusão promove a mobilidade das populações mais desfavorecidas até
os centros de serviços e empregos. A acessibilidade é posta a serviço da metrópole
neoliberal.
Acessibilidade antissubversiva
A este apoio estrutural ao funcionamento urbano neoliberal se soma a
neutralização das possíveis posturas alternativas. Concretamente a acessibilidade
dispersa e esgota os cidadãos que a ela se submetem.
Por um lado, dispersa fisicamente aos indivíduos. As novas organizações
flexíveis de trabalho e a precariedade generalizada, que fundam a configuração
urbana da acessibilidade, limitam muito a constituição de grupos reivindicatórios
de outros lugares de produção. Ao distanciamento das residências se soma
a dispersão dos lugares de emprego para impedir a consolidação de coletivos
de trabalho nos bairros. A mobilização dos “cordões industriais” chilenos dos
anos 1970 demonstra a potência subversiva desta proximidade do bairro e da
fábrica. Pelo contrário, a difusão da urbanização em casas, bairros fechados e
da insegurança urbana completa o enclausuramento, fato conservador, no
espaço doméstico. Finalmente, a rede de transporte hierarquizada, redundante e
freqüente reforça este fenômeno de individualização, dispersando os habitantes
de um mesmo bairro e os trabalhadores de uma mesma empresa em meios de
transporte cheios de uma massa anônima que não se reencontra de um dia para
outro.
Por outro lado a acessibilidade capta e esgota os recursos dos habitantes
que, portanto, não são ocupados com ações autônomas ou subversivas. A
acessibilidade fomenta o aproveitamento dos mercados da metrópole com
uma mobilização intensiva. Esta esgota os habitantes, em seus corpos, em suas
famílias e em seus bolsos (Le Breton, 2008). De forma mais geral, como elemento
estrutural do funcionamento neoliberal, a acessibilidade permite e incita à
participação exclusiva com o mercado, isto é, ao mesmo tempo com consumo e
com a produção. Esta participação poderia padecer pelos desejos singulares dos
habitantes, porém a cidade neoliberal os consome e os reduz ao estado de pulsões
uniformes à custa, é verdade, de um mal-estar e uma violência generalizada
(Stiegler, 2006). A acessibilidade parece oferecer a cidade ao seu habitante, porém
na realidade entrega sua energia ao funcionamento neoliberal da cidade.
Propostas para o dereito à cidade 47
Tirania da acessibilidade
A acessibilidade metropolitana estrutura a cidade neoliberal. Reciprocamente,
a organização sócio-econômica do neoliberalismo dá toda sua força à
metropolização e, desse modo, à acessibilidade.
Enquanto a proximidade corresponde a pequenas áreas urbanas onde os
mercados de serviços são bastante limitados, a acessibilidade desenvolveu-se com
o tamanho das cidades e sua fragmentação em metrópoles. A cidade estendeuse, reestruturando-se em torno do automóvel e dos transportes motorizados em
geral (Wiel, 1999). Graças à capacidade generalizada do deslocamento urbano,
assim produzido, as residências e os empregos se dispersaram para terrenos mais
baratos, aumentando os deslocamentos em distância e, inclusive, em tempo.
(Ducci, 2002; Wenglenski, 2006).
Além disso, a precariedade do trabalho tornou-se norma numa organização
industrial que exige uma mobilidade tão cotidiana como profissional (Massot e
Orfeuil, 2005). Esta flexibilidade multiplicou as viagens diárias que podem ser
feitas a qualquer hora do dia e da noite. A fragmentação das carreiras profissionais
aumenta o número dos lugares de trabalho e desse modo impede a instalação
próxima destes. Este efeito desestabilizador se amplia com a precariedade do
trabalho, que toma a forma da insegurança do emprego ou da degradação das
condições laborais. Os trabalhadores se protegem relacionando a localização de
sua moradia com um amplo mercado laboral e não com sua empresa.
Os sistemas de transporte também seguiram esta evolução da proximidade
para a acessibilidade (Trumper, 2005). O antigo transporte de empresa, logo
a rede de micro-ônibus levando os operários do seu bairro diretamente a sua
fábrica deixaram lugar para uma rede hierarquizada de transporte urbano. Os
micro-ônibus de bairro não levam mais ao trabalho e sim à estação de metrô ou
de ônibus rápidos que atravessam a metrópole (Díaz et al., 2006). O habitante
está menos conectado ao seu lugar de trabalho que à rede de transporte que lhe
abre os mercados da metrópole.
As infraestruturas de transporte também exigem o desenvolvimento de uma
capacidade individual de mobilidade. O habitante da cidade aprende a ser móvel.
Toda a configuração urbana constrange esta adaptação. A forma mais tangível é
a adoção generalizada do automóvel como elemento articulador do modo mais
comum de vida. A dependência que o automóvel gera como sistema (Dupoy,
1999), mas também o “monopólio radical” através do qual os meios de transporte
motorizados expulsam a caminhada e a bicicleta (Illich, 1973), participam
amplamente da difusão forçosa da acessibilidade contra a proximidade.
48 Cidades para tod@s
Atrativo da acessibilidade emancipadora
Embora o funcionamento urbano a imponha, a acessibilidade se confunde com o
poder de escolha. Consegue, ao mesmo tempo, seduzir e constranger ao habitante
da cidade.
Parece desejável como liberdade de escolha, o usuário e o cidadão
desaparecendo atrás do cliente e do consumidor. Mais além da afirmação desta
liberdade, a acessibilidade anuncia ao habitante sua emancipação espacial e
social. Esta promessa de emancipação é o núcleo da perversidade do direito à
cidade acessível: sedutor, porém alienante. Com efeito, o deslocamento cotidiano
(Buffet, 2005) e a mudança de casa (Bonvalet e Frigourg, 1990) aparecem como o
meio, o reflexo e a metáfora da mobilidade social. Haveria que “mover-se para
ir adiante” (Le Breton, 2005). O habitante da cidade associa então mobilidade e
emancipação (Jouffe, 2007) e exige seu direito à cidade acessível.
Reivindicação do direito à mobilidade
Vários atores institucionais destacam e assim defendem esta vontade individual
à mobilidade. Na França, desde 1982, o direito ao transporte está inscrito como
“o direito que cada usuário possui de deslocar-se e a liberdade de escolher os
meios deste deslocamento” 1. No seu guia de boas práticas de 1996, o Banco
Mundial indica também “crescentes aspirações individuais a mais acessibilidade
e mobilidade” (p. ix2).
Desse modo, as instituições para-científicas como a rede “Cidades pela
mobilidade” da ONU ou o Instituto pela Cidade em Movimento (Institut de
la Ville em Mouvement, IVM) da automotriz PSA Peugeot Citröen defendem a
mobilidade sustentável, isto é, “acessibilidade para todos, respeitosa ao meioambiente e à serviço da economia” (cities-for-mobilities.net). O slogan do IVM
é: “Movimento e mobilidade na cidade, um direito e um prazer”, explicando
que “as possibilidades do deslocamento dos indivíduos, bens e informações
e a acessibilidade a todos os lugares da cidade constituem exigências sociais
essenciais porque condicionam o acesso ao hábitat, ao trabalho, à educação,
à cultura, às relações familiares, ao lazer” (ville-em-mouvement.com). Estas
declarações se apóiam em trabalhos acadêmicos que apontam as mobilidades
como a nova essência das sociedades ocidentais (Urry, 2001). Retorno virtuoso
porque sustentável, a mobilidade se transforma num objeto legítimo e inclusive
um direito por exigir.
1
2
Ver a « loi d’orientation des transports intérieurs » (LOTI) de 30 de dezembro de 1982.
Crescimento individual aspirações para maior acessibilidade e mobilidade« growing individual
aspirations for more access and mobility ».
Propostas para o dereito à cidade 49
Às vezes, formula-se uma crítica contra o direito à mobilidade na medida
em que esta se impõe aos viajantes, esgotam-nos (Bacqué e Fol, 2007) e agride
os habitantes da cidade e o meio-ambiente (Galetovic, 2006). Ao contrário, a
mobilidade potencial, ou seja, a acessibilidade sofre tais ataques. Permite o
progresso individual pela ascensão social e o progresso coletivo da metrópole
moderna na competição global (Maillet, 2008). E mais, constitui um critério de
avaliação acadêmica (Cebollada e Avellaneda, 2007) e tecnocrática de justiça
social das políticas de planejamento urbano. O direito à mobilidade gera o debate
enquanto o direito à acessibilidade permanece consensual. Vende-se a ideia de
acessibilidade como escolha emancipadora. E vende-se bem.
Redução do direito à cidade em direito à acessibilidade
Estas aproximações defendem a mobilidade como uma dimensão mais
estrutural que setorial do funcionamento urbano. Em tal medida, introduzem
implicitamente o direito à acessibilidade como um tipo de direito à cidade. Assim,
o Banco Mundial (1996) promove um transporte a serviço do desenvolvimento
capitalista, pois “investir no transporte promove o crescimento […]. As melhorias
do transporte urbano aumentaram a eficiência do mercado de emprego e a
acessibilidade dos serviços urbanos, procurando mudanças na escala e na forma
das aglomerações urbanas” (p. 13).
Desse modo, em 2007, a “declaração de Stuttgart” das cidades e regiões da
Europa dá ainda maior legitimidade à mobilidade louvando seu papel central
para a liberdade, autonomia e qualidade de vida. Esta assembleia se diz
“consciente que o direito à mobilidade é universal para todos os seres humanos
e é essencial ao respeito concreto e eficiente da maioria dos demais direitos
humanos fundamentais”, “reconhecendo que os desenvolvimentos em matéria de
mobilidade durante os últimos cem anos e, particularmente, o desenvolvimento
do automóvel e dos sistemas de transporte público avançados melhoraram
amplamente a liberdade e a autonomia da maioria dos cidadãos europeus e não
somente das zonas rurais, ajudando-os a levar a cabo uma vida mais satisfatória,
sem limitações vinculadas a sua situação geográfica”. Concretamente, estes
governos locais buscam o apoio legislativo e financeiro da União Europeia para
seus próprios serviços públicos de transporte. Contudo, este objetivo setorial
apóia-se na reivindicação de um direito à mobilidade, que não seria integrado a
uma reivindicação mais geral, mas sim ele mesmo seria um elemento estrutural
3
Investir em transporte promover crescimento« investing in transport promotes growth […]
melhorando o transporte urbano em aumentado a eficiência do mercado de trabalho e amenizado
a acessibilidade, gerando mudanças na escala e na forma das possívies aglomerações ubanas
Improvements in urban transport have increased labor market efficiency and access to amenities,
making changes in the scale and form of urban agglomerations possible ».
50 Cidades para tod@s
para a cidade. Esta formulação reduz implicitamente o direito à cidade em direito
à mobilidade, isto é, um direito à acessibilidade.
Ambiguidade necessária do direito à cidade
A redução do direito à cidade em direito à acessibilidade coloca-o a serviço de um
funcionamento urbano neoliberal. Esta reivindicação se inverte contra o objetivo
formulado por Lefebvre em termos de luta de classes e contra os movimentos
sociais de resistência à mercantilização do urbano que deseja criar uma cidade
habitável por todas e todos. Esta mudança de conceito do direito à cidade não
é fortuita. Está vinculada a sua natureza ambígua, necessária para que seja uma
reivindicação útil.
Por um lado, o direito à cidade é tão global que não pode ser reduzido a um
catálogo de direitos concretos e aplicáveis. Nomeia ao contrário uma exigência,
um grito ético, como o sublinha Purcell (2009) que não tenta caracterizálo inteiramente, mas sim propor um conceito “elaborado, porém aberto”. A
transcrição jurídica do direito à cidade não o torna efetivo e ao contrário incorre
no risco de normalizá-lo. Desse modo, diminuiria a diversidade de lutas locais
e globais que nele se apóiam e, ao mesmo tempo, defendem-no. Por isso este
direito deve permanecer ambíguo com o fim de ser interpretado em função da
especificidade de cada luta social.
Por outro lado, a imprecisão do direito à cidade permite a sua apropriação
por diversos movimentos sociais, bem como a junção dos mesmos sob a mesma
bandeira. Purcell defende a importância desta capacidade de agrupação tática.
Afirma a incapacidade de uma classe social derrubar sozinha a ordem social.
Nenhuma poderia reunir os oponentes em torno de sua própria interpretação do
direito à cidade. Somente o conseguiria uma aliança horizontal. Daí a necessidade
de reivindicações transversais, isto é, abertas e suficientemente genéricas, do qual
o direito à cidade é um modelo que poderia ser conveniente a certas alianças.
Qual seria a aliança para o direito ao acesso à cidade?
Uma aliança seria então necessária e a ambiguidade do direito à cidade a permitiria.
Porém a que tipo de aliança clama a confusão entre direito à proximidade e direito
à acessibilidade? Esta aliança vai contra a natureza do direito à cidade, sabendose do vínculo estrutural entre acessibilidade e ordem neoliberal? A especificação
dos direitos associados à proximidade e a acessibilidade permite caracterizar
os dois grupos sociais que os defendem: as forças socialistas e as liberais. Esta
distinção criada pela história social francesa não pretende esgotar a variedade
das forças políticas em outras sociedades como, por exemplo, a especificidade
Propostas para o dereito à cidade 51
do nacionalismo antiimperialista ou as resistências indígenas. Apenas propõe
uma pauta de leitura pertinente para entender a tensão entre proximidade e
acessibilidade.
Direitos-crédito e direitos-liberdade
A proximidade se apoia na distribuição geográfica dos serviços necessários
ao habitante. Nesta óptica, a sociedade tem o dever de facilitar-lhe todos estes
serviços, caso não existam. Esta dívida para com o habitante designa os direitos
correspondentes como direitos-crédito: a sociedade deve proporcionar alguns
serviços. Ao contrário, a acessibilidade garante a capacidade de mobilidade
dos habitantes na metrópole. O direito a mobilidade compreende um direitocrédito às infraestruturas de transporte necessárias para deslocar-se. Porém
remete, sobretudo, ao direito de circulação que é um direito-liberdade (Ascher,
2005): a sociedade não deve frear a circulação de pessoas. Este direito se
expressa particularmente como direito à segurança: a sociedade não deve
ameaçar às pessoas em movimento. O direito à circulação constitui inclusive
o paradigma do direito-liberdade à medida que a privação de liberdade é a
restrição dos deslocamentos por encarceramento. Em oposição, o direito-crédito
a infraestruturas de transporte parece menosprezável quando se compara
aos numerosos direitos-crédito a infraestruturas de serviços supostos pela
proximidade. Em sínese, a acessibilidade está caracterizada pelos direitosliberdade, enquanto a proximidade se caracteriza pelos direitos-crédito.
Retorno da aliança tática liberal-socialista
Esta oposição remete a duas posturas políticas tradicionalmente conflituosas
na luta pelos direitos, tanto na França como em outros lugares. Poderia então
representar uma ruptura maior do movimento pelo direito à cidade.
Os direitos-liberdade foram exigidos e conseguidos pelos liberais durante
a Revolução Francesa a serviço de sua classe: a burguesia. Estavam dispostos
a investir seus recursos econômicos, sociais e culturais numa competição
econômica, porém esta deveria ser regulada por alguns direitos civis, políticos
e econômicos. Por sua vez, os direitos-crédito constituem direitos econômicos,
sociais e culturais a favor da classe operária que não possui os meios suficientes
para tirar proveito da concorrência liberal. A partir do século XIX, mobilizações
socialistas4 reivindicaram e conseguiram parcialmente esses direitos.
Se estes dois tipos de direitos se complementam, os interesses das classes
4
Não se trata aqui de evocar aos atuais partidos socialistas, embora sua evolução social-liberal
reflita bem esta contradição entre liberalismo e igualitarismo.
52 Cidades para tod@s
sociais que os levam são antagônicos. Contudo, a Revolução Francesa viu a
aliança tática destas classes contra o regime feudal. A questão republicana francesa
parece assim afirmar a fraternidade tática entre a classe defendendo a liberdade
e reclamando a igualdade. Tática vitoriosa como o proclama o decreto de 4 de
agosto de 1789, abolindo os privilégios feudais, mas somente pelo benefício da
ordem liberal.
A configuração atual sugere que a mesma aliança tática se imponha. Uma
tendência neoliberal domina o campo político depois que a crise dos anos
1970 deslegitimou um liberalismo menos radical (Premat, 2009). Enquanto o
neoliberalismo se apóia sobre os movimentos conservadores e em seu direitoliberdade à segurança, as forças socialistas e liberais encontram-se de novo
minoritária e taticamente aliadas.
Legitimidade da aliança
A reformulação do direito à cidade como direito ao acesso à cidade permite então
uma aliança tática: entre as forças socialistas do direito-crédito à proximidade e
as forças liberais do direito-liberdade à acessibilidade. Embora a acessibilidade
caracterize a forma urbana do neoliberalismo, constitui um componente legítimo
do acesso à cidade e então do direito à cidade. Com efeito, alguns serviços
especializados como os hospitais não podem estar suficientemente próximos dos
habitantes para que as infraestruturas sejam supérfluas. Deste modo, os lugares
considerados como patrimônio comum dos habitantes da metrópole deveriam
ser acessíveis. De modo geral, a eficiência permitida pela especialização e
acessibilidade dos lugares, particularmente no caso do mercado de empregos,
valoriza esta configuração. O que se constitui no principal argumento do
neoliberalismo. Então a acessibilidade pretende ser uma reivindicação legítima
do direito à cidade, tanto como a proximidade.
Perversidade da aliança
Contudo, por trás da complementaridade das reivindicações, dois modelos se
opõem e podem entrar em conflito. Esta contradição funda a perversidade da
aliança pelo direito à cidade.
Em primeiro lugar, a combinação das reivindicações busca a submissão do
direito à cidade ao neoliberalismo. A satisfação do direito à acessibilidade dá
argumento às autoridades solicitadas para prescindir as outras exigências do
direito à cidade. A acessibilidade sem proximidade reforça então o funcionamento
neoliberal da cidade. Por exemplo, ao não promover um serviço público de
educação, o governo outorgará a gratuidade dos transportes públicos aos
Propostas para o dereito à cidade 53
estudantes. Embora esta gratuidade constitua uma reivindicação legítima, serve
à mercantilização da educação.
Esta transformação pode ser o resultado direto da aliança liberal-socialista.
Depois de haver conseguido o direito à acessibilidade, as forças liberais
abandonam as forças socialistas em sua busca do direito à proximidade. E a
configuração urbana do neoliberalismo sai ainda mais fortalecida.
Por outro lado, a associação de reivindicações antagônicas reduz a
credibilidade destas. A coalizão pelo direito à cidade aparece como duas alianças
diferentes, cada qual tendo duas vezes menos legitimidade que o que pretende
a coalizão. Revelam-se inclusive contraditórias e debilitam reciprocamente seus
poderes de convicção e mobilização. Por isso, os militantes dos serviços de saúde
de proximidade e os defensores de grandes hospitais públicos competitivos
podem evitar a privatização formal do setor da saúde, porém, possuindo
objetivos opostos, não poderão impulsionar uma política. O governo poderá
então implementar métodos de gestão neoliberal do setor público, isto é, uma
privatização lenta que venha de dentro.
Cinco propostas para resolver a contradição
Frente à ameaça de perversão e debilidade da aliança pelo direito à cidade, várias
posturas são possíveis com o fim de resolver sua contradição.
A primeira possibilidade consiste em negar a contradição para reunir forças
militantes dispersas e aproveitar uma legitimidade comum. Entretanto, as
ameaças internas continuam.
Uma segunda solução explicita, ao contrário, os dois modelos, declara suas
respectivas legitimidades e assume sua aliança tática. Desenhar tal linha de
conflito entre e no seio das organizações militantes corre o risco de derrubar
toda a coalizão. Porém busca a continuidade da mobilização, apesar dos
imprescindíveis conflitos que surgem também quando as diferenças são negadas.
Além disso, algumas sinergias tornam-se possíveis entre duas frentes. Por um
lado, uma mobilização na escala metropolitana, nacional e global reivindica
direitos-liberdade e direitos-crédito mínimos, porém consensuais. Por outro lado,
dentro das metrópoles, ações locais, ocupações de fábricas, desobediência civil,
zonas de autonomia temporal se apóiam sobre a mobilização global para decretar
outros direitos-liberdade e criar instâncias locais de gestão de direitos-crédito.
Por sua vez, as experiências subversivas locais e as redes formadas participam
das ações globais (Zibechi, 2006).
Ao contrário, pode-se distinguir claramente o direito à idade de um desses
modelos antagônicos. Assim uma terceira solução é explicitar o direito à cidade
como a reivindicação socialista do direito à proximidade, deixando as forças
54 Cidades para tod@s
liberais reclamarem sozinhas seu direito à acessibilidade. Surge novamente
a pergunta sobre a capacidade de atores sociais fragmentados se mobilizarem
em torno de um direito radical. Todavia tal postura permitiria desenvolver um
corpo ideológico coerente, suscetível de ganhar em legitimidade até a reunião
de forças sociais. O direito à proximidade poderia, particularmente, apoiar-se
no movimento do decrescimento que promove a realocação da economia e da
democracia a serviço de uma “simplicidade voluntária” ecológica.
Reciprocamente, é possível afastar-se deste pólo radical. Esta quarta
alternativa assume então o direito à cidade como o denominador comum menor
de suas possíveis reivindicações e se enfoca nos direitos-liberdade. Com o risco de
mobilizar-se por uma reivindicação anedótica. Este enfoque permitiria especificar
suficientemente estes direitos para limitar alguns aspectos do modelo neoliberal
como, por exemplo, de vigilância, consumo ou superprodução. A instalação de
uma cidade lenta5 no seio da cidade veloz corresponderia a esta postura.
Uma quinta possibilidade consiste em buscar um projeto concreto que
satisfaça todas as forças militantes, deixando de lado as contradições dos
modelos ideológicos. Não é dito que tal projeto exista. Contudo, o planejamento
urbano poderia, por exemplo, orientar mediante taxas, a distribuição espacial
das atividades com tal de favorecer a difusão dos empregos e serviços em
proximidade dos habitantes (Wiel, 2007). Por outro lado, uma especialização
das redes de transporte poderia satisfazer ao mesmo tempo as necessidades da
economia metropolitana e da vida cotidiana dos habitantes. Concretamente,
tratar-se-ia de reservar as infraestruturas rápidas para os deslocamentos de
interesse metropolitano, limitar a velocidade nas redes intermediárias e impedir
o trânsito na escala local (ibid.).
A presente discussão sobre a ambiguidade do direito ao acesso se estende a
outras dimensões do direito à cidade, deixadas de lado no início desta análise:
os direitos à participação e à produção da cidade. Estes chamam também
à inclusão de atores antagonistas na aliança tática pelo direito à cidade. Os
militantes da participação lutam pela democracia sob formas potencialmente
em conflito: entre instituição e autogestão, do global ao local. A questão da
produção opõe, particularmente, as modalidades produtivista e “decrescente”
do desenvolvimento urbano, do mesmo modo que a proximidade se opõe
à acessibilidade à metrópole neoliberal. A ambigüidade própria do direito à
cidade questiona cada militante: algumas contradições ameaçam minha luta
pelo direito à cidade? Uma confrontação das questões teóricas com os objetivos e
circunstâncias locais procuraria construir as necessárias respostas coletivas.
5
Ver a contribuição de Charlotte Mathivet neste libro.
Propostas para o dereito à cidade 55
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Análise do direito à cidade sob a
perspectiva do gênero
Shelley Buckingham
O direito à cidade é um direito coletivo para todos os que nela habitam, acessam
e usam-na. Implica não somente em requerer o direito a usar o que já existe no
espaço urbano, mas também definir e criar o que deveria existir a fim de encontrar
as necessidades vitais humanas para uma vida digna no ambiente urbano
(Harvey, 2003)1. Essa definição inclui o direito a usar o que a cidade oferece e a
participar da criação ou recriação daquilo que lhe falta.
Naturalmente, não existe um protótipo humano homogêneo singular que
possa servir de base pra definir quais são as necessidades das pessoas e, por
sua vez, como se deve satisfazê-las através da articulação de seus respectivos
direitos. O processo de definir a particular necessidade humana de ter um nível
de vida adequado deve considerar uma multidão de identidades diferentes e
cruzadas2 que habitam num contexto particular, além de como sua identidade
social molda as formas nas quais vivem e criam o entorno.
O gênero representa apenas uma categoria de diferença de identidade, porém
afeta a todas as pessoas do planeta, embora de maneiras diferentes. Mais além
de algumas das violações do direito à cidade relacionadas à remoção espacial
1
2
Ver Charlotte Mathivet, O direito à cidade: chaves para entender a proposta de 57 outra cidade
possível , nesta publicação.
As identidades cruzada, conceito amplamente reconhecido na literatura feminista, incluem uma
combinação de identidades sociais tais como gênero, raça, classe social, etnia, religião, orientação
sexual e capacidade física, entre outros fatores. Todos estes fatores podem contribuir para que
uma pessoa experimente a discriminação, desigualdade e violência em formas inter-relacionadas,
dependendo dos sistemas de poder e opressão que a rodeiam e afetam. Esta discussão vai mais
além do alcance deste artigo, mas é importante destacar que o debate sobre o direito à cidade
deveria incluir a análise de todas estas identidades que sofrem discriminação e violação de seus
direitos humanos.
58 Cidades para tod@s
levadas a cabo, por exemplo, através de despejos forçados, gentrification3
e embelezamento da cidade as violações do direito coletivo das mulheres à
cidade acontecem todos os dias em suas vivências e encontros diários com a
cidade (Fenster, 2006). Estas realidades diárias são o produto de funções e papéis
construídos pela sociedade que pertencem a categorizações por gênero, sendo
que as discriminações e desigualdades experimentadas nestas construções sociais
são o resultado de relações de poder patriarcal. Igualmente, o espaço é criado ou
produzido pelas práticas sociais e, portanto, é produto das relações sociais e de
poder existentes na sociedade (Fenster, 1999; Koskela, 1999)
Se aceitarmos que as pessoas não são neutrais e construídas socialmente através
de categorias de gênero, entendemos que o espaço também é uma produção
social e que, portanto, simplesmente não existe (Koskela, 1999), então podemos
reconhecer que o espaço não é neutral (Fenster, 1999; Martínez, 2009) e que deve
ser analisado considerando os diferentes atores e funções que participam da
criação da vida diária. Esta é a chave para entender as particularidades do direito
das mulheres à cidade. As experiências diárias das mulheres nas cidades são o
resultado direto das interpretações sociais de gênero e espaço.
Assim, é absolutamente imprescindível que todo o debate acerca dos direitos
humanos e, neste caso, do direito à cidade incorpore uma análise de gênero
para examinar a fundo as desigualdades que existem e identificar e satisfazer as
necessidades humanas e os direitos humanos.
Criando uma agenda comum
Assim como os desafios para articular o movimento mundial pelo direito
à cidade4, a inclusão da perspectiva de gênero neste debate tem sido variada
nas contribuições realizadas pelos diferentes organismos locais, nacionais e
internacionais envolvidos. Embora os contextos particulares tenham influenciado
nos critérios para definir o direito das mulheres à cidade, é possível extrair
alguns critérios gerais destas articulações que, por sua vez, poderiam servir de
introdução geral ao debate, tal como se apresenta neste artigo. Em seguida se
distinguem cinco pontos a serem considerados. Contudo, é importante mencionar
aqui que nenhum desses pontos poderá se tornar completamente realidade se
não se incorporar aos demais simultaneamente. Do mesmo modo como o direito
à cidade está composto de um conjunto de direitos coletivos, os pontos abaixo
3
4
Gentrification: processo de renovação e reconstrução que provoca a afluência da classe média
ou de pessoas abastadas para zonas urbanas deterioradas, geralmente removendo os habitantes
mais pobres.
Ver Giuseppe Caruso, Uma nova aliança para a cidade? Oportunidades e desafios da globalização
do movimento pelo direito à cidade , nesta publicação.
Propostas para o dereito à cidade 59
mencionados também devem ser considerados interconectados e essenciais para
a realização total do uso e participação igualitária das mulheres no exercício do
seu direito à cidade.
Segurança em ambientes urbanos
O medo à violência e ao uso dos espaços públicos é um grande problema
transversal quando se analisa o direito à cidade das mulheres e a maioria das
discussões de todo tipo sobre a vida diária das mulheres naquelas cidades que
costumam mencionar a segurança como uma questão chave. A experiência das
mulheres com a violência está diretamente relacionada com as relações de poder
patriarcais de dominação que prevalecem nas sociedades em todo o mundo.
Embora uma grande parte desta violência aconteça, na realidade, dentro do lar
ou da esfera privada , os espaços urbanos apresentam perigos às vidas de muitas
mulheres. Mais ainda, o medo à violência continua presente e, talvez de forma
mais intensa, entre mulheres que sofrem violência doméstica, já que obviamente
não se pode esperar que a sensação de temor e ameaça se separe espacialmente
(Koskela, p.113).
Na esfera urbana, o uso irrestrito do espaço público pode ser ao mesmo tempo
um luxo e uma fonte de temor e medo à violência. Dentro do direito à cidade,
satisfazer um direito neutral ao uso dos espaços públicos não leva em conta as
relações patriarcais de poder e controle que se produzem nesses mesmos espaços.
Para as mulheres existe um risco muito maior de violência sexual que para os
homens e, como resultado disso, elas tendem a evitar certas zonas que consideram
perigosas. Ao fazê-lo, Koskela observa que ao limitar sua mobilidade em função
do temor, as mulheres reproduzem involuntariamente a dominação masculina
sobre o espaço (p. 113). Por conseguinte, com o fim de desafiar a dominação
masculina e o patriarcado em geral, garantir a segurança das mulheres no espaço
público acarreta conseqüências chaves.
Infraestrutura e transporte públicos
A garantia de segurança das mulheres nas cidades é uma medida intrinsecamente
ligada à infraestrutura e transportes públicos, já que o risco de violência
normalmente aumenta à noite, quando as ruas e parques possuem iluminação
inadequada e os meios de transporte são menos disponíveis e freqüentes. É através
de meios de transporte seguros, acessíveis e extensivos que as mulheres podem
exercer totalmente seus direitos a uma cidade segura. No planejamento urbano
é importante garantir que os edifícios e parques contem com boa iluminação;
que haja disponibilidade de telefones públicos para situações de emergência;
que exista a sinalização apropriada para indicar os percursos do transporte
60 Cidades para tod@s
público, serviços de emergência e mapas gerais da cidade; que exista transporte
público conectando as mulheres aos serviços públicos e às fontes de emprego
perto de seus lares; e que, finalmente, os serviços de transporte e a infraestrutura
pública sejam acessíveis para as crianças e para idosos, cujas principais pessoas
encarregadas por seus cuidados são mulheres.
Proximidade entre moradias, serviços e emprego
Localização, localização, localização. Esse lema publicitário intensamente usado
nos anúncios de compra e venda de propriedades indica que a localização da
moradia é o aspecto mais importante quando se considera o hábitat nas cidades.
A questão do transporte também deve ser analisada à luz da valorização que faz
Yves Jouffe (2010) da proximidade acima da acessibilidade5. As mulheres são as
principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo como o cuidado com crianças
e pessoas idosas do lar e também participam em grande parte de trabalhos
produtivos que geram renda. Os serviços que necessitam em seu uso diário da
cidade o lar, lugares de trabalho e centros comerciais estão todos dispersos, o
que dificulta a mobilidade das mulheres para acessá-los a todos. A proximidade
aos usos cotidianos da cidade é de grande importância para as mulheres se
consideramos a maior variedade de suas necessidades e papéis dentro da cidade.
Romper a dicotomia de esferas públicas e privadas
É necessário analisar a separação entre as esferas públicas e privadas para
compreender em sua totalidade as necessidades particulares das mulheres no
momento de exercer seu direito à cidade, segundo destaca Tovi Fenster (2006)6. A
divisão entre o público e o privado pode ser melhor entendida como os âmbitos
onde se desempenham, respectivamente, o trabalho produtivo e reprodutivo.
Enquanto o trabalho produtivo, incluindo atividades remuneradas, ainda é
considerado algo masculino em muitas sociedades ao redor do mundo, o trabalho
reprodutivo, que se relaciona ao cuidado da família e da casa, é considerado
tradicionalmente função feminina. Os espaços estão desenhados para valorizar
a produção e menosprezar a reprodução (Muxi Martinez, 2009), o que resulta
numa pressão especial sobre as mulheres se considerarmos sua participação em
ambos os âmbitos. Isso não significa que as mulheres não participam do trabalho
produtivo e vice-versa para os homens. Contudo, esta divisão sexual do trabalho
apresenta outro obstáculo para o uso igualitário das cidades quando as mesmas
5
6
Ver Yves Jouffe, Contra o direito à cidade acessível. Perversidade de uma reivindicação
consensual , nesta publicación.
Ver Tovi Fenster O direito à cidade e a vida cotidiana baseada no gênero , nesta publicação.
Propostas para o dereito à cidade 61
estão atualmente desenhadas para favorecer o trabalho produtivo, impulsionado
pela economia, podendo resultar bastante hostis para as atividades de trabalho
reprodutivo, usualmente empreendido por mulheres. Além disso, o trabalho
reprodutivo que desempenham as mulheres, tanto dentro como fora do lar,
deve ser analisado da perspectiva de seu impacto direito sobre a capacidade
de trabalho produtivo na esfera pública. O trabalho reprodutivo de cuidado
com do lar, das crianças, dos ídolos e dos esposos ou companheiros serve de
apoio para que estes indivíduos sejam produtivos em seus empreendimentos
econômicos, acadêmicos, sociais e políticos fora do lar. Não se designa nenhum
valor monetário a este trabalho reprodutivo, porém é inumerável e inestimável.
Participação na tomada de decisões, governança e planejamento
Seguindo o segundo aspecto central do direito à cidade o direito a participar na
criação e recriação da cidade é absolutamente imprescindível que as mulheres
participem do planejamento urbano, da governança local e dos processos de
tomada de decisões relativas a seus ambientes urbanos. Isso inclui a participação
igualitária de mulheres em todos os níveis de governo, em postos como arquitetas
e urbanistas e na criação de relações de trabalho formais entre feministas e
organizações de mulheres e governos locais
Não apenas é impossível falar de direito à cidade para as pessoas sem levar
em conta a pluralidade que compreende esta ideia de todos , mas sim também
é contraproducente para o que este direito representa e pretende. A satisfação
dos direitos humanos particulares dos homens pode acarretar a violação dos
direitos humanos particulares das mulheres. Isso introduz uma contradição no
debate sobre o direito à cidade para todos. Continuar a luta pelo direito à cidade
sem considerar as diferenças de gênero na vida diária, fazer realidade o direito à
cidade através de concepção de um espaço neutro e de gente neutra pode supor
uma infração do direito das mulheres à cidade.
Alguns dos pontos mencionados anteriormente foram incluídos na Carta
Mundial pelo Direito à Cidade. Contudo, estão mais relacionados com a
acessibilidade aos serviços e menos com a participação igualitária das mulheres
na criação dos espaços urbanos ou com o questionamento das persistentes
desigualdades de gênero. Desse modo, ainda faltam discussões amplas que
incluam a perspectiva do gênero nos debates posteriores à criação da Carta. É
absolutamente essencial entender que não existe uma identidade única numa
sociedade determinada e que, como tal, as diferenças devem ser incluídas no
desenvolvimento do direito à cidade para evitar as mesmas dinâmicas de poder
hegemônicas que tem contribuído para criar as grandes desigualdades que existem
nas cidades contemporâneas. Os papéis do gênero devem ser questionados
62 Cidades para tod@s
para desmantelar tais dinâmicas de poder que se relacionam diretamente com
a construção social do espaço e que tem um impacto negativo no momento de
tornar efetivo o direito das mulheres à cidade. Mais ainda, as mulheres devem ser
incluídas nos processos de planejamento participativos que dão forma ao debate
sobre o direito à cidade, já que representam um grupo geral de identidades
cruzadas que vivem de formas diferentes na cidade. Embora existam diferenças
nas particularidades das necessidades e usos de grupos diferentes de mulheres,
os elementos comuns mencionados acima devem ser incorporados em todos os
debates a nível global acerca do direito à cidade.
Referências
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towards a Gender-Conscious City . 1994.
Fenster, Tovi. Gender and Human Rights: Implications for Planning and Development .
Gender, Human Rights and Planning, Tovi Fenster (ed.). Routledge. London; New
York. 1999.
Fenster, Tovi. The Right to the City and Gendered Everyday Life . Makan, Adalah s
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Harvey, David. The Right to the City in New Left Review. vol. 53, pp. 23-40. SeptemberOctober 2008.
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2005. http://www.hic-net.org/articles.php?pid=1685.
Jouffe, Yves. Countering the Right to the Accessible City: The Perversity of a Consensual
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Koskela, Hille. 62 Gendered exclusions : Women s fear of violence and changing relations
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111-124. 1999.
Muxi Martinez, Zaida. Space is not neutral: Some reflections on habitation and the city
from a gender standpoint . Centre on Housing Rights and Evictions, Bulletin on
Housing Rights and the Right to the City in Latin America, vol. 1, no. 5, pp. 3-4.
December 2008-January 2009.
UN-Habitat, Warsaw Office. Women s Safety Audits for a Safer Urban Design . October
2007.http://www.unhabitat.org/downloads/docs/5544_32059_WSA%20
Centrum%20report.pdf.
O direito à cidade e a vida cotidiana
baseada no gênero1
Tovi Fenster
No presente documento expõem-se novas formas de pertença e cidadania
nas cidades estruturadas na era da globalização, a partir de uma perspectiva
feminista e baseada no gênero, relacionando estas novas formas com as vidas
cotidianas das mulheres e com o planejamento e a governança das cidades. Ao
fazê-lo, questiona-se a noção de Lefebvre do “direito à cidade” usando uma
crítica feminista e baseada no gênero, ao sustentar que a identificação do direito
à cidade segundo esta noção não dá atenção suficiente às relações de poder
patriarcal e, portanto, não produz uma perspectiva relevante para esta discussão.
Esta crítica se desenvolverá mediante a análise das experiências cotidianas das
mulheres e como estas experiências se refletem nos sentimentos de comodidade,
sentido de pertença e compromisso que elas experimentam em relação à cidade
em que vivem.
Algumas das discussões atuais com respeito ao conceito de cidadania, nesta
era de reestruturação política e econômica, vão de encontro à reconstrução das
formas de cidadania e pertença. Enquanto as definições tradicionais expõem
os aspectos legais e jurisdicionais do conceito referindo-se principalmente a
igualdade, comunidade e homogeneidade como componentes de seu significado,
as novas formas incorporam expressões normativas de pertença que destacam os
assuntos referentes à diferença e à diversidade cultural, étnica, racial e genérica2.
Como resultado, produz-se uma reviravolta na discussão, desde a conceituação
1
2
Este artigo foi publicado pela primeira vez pelo membro da HIC, Adalah, o Centro Legal pelos
Direitos das Minorias Árabes de Israel em Makan: Adalah s Journal for Land, Planning and
Justice, The Right to the City, volume 1 (primavera de 2006), páginas 40-50.
Contudo, uma das interpretações do conceito de cidadania mais comumente usadas é a de
Marshall (1950, 1975, 1981) que a define como a afiliação plena a uma comunidade , abarcando
direitos civis, políticos e sociais. Os críticos desta definição baseiam seus argumentos nas atuais
crises a nível político e social nas quais o exercício do poder do estado-nação se vê desafiado.
64 Cidades para tod@s
de cidadania, amplamente usada, até algumas interpretações mais complexas,
sofisticadas e menos otimistas da exclusão, orientando-se para novas formações
e definições normativas do conceito de pertença, particularmente sobre a base do
gênero (Kofman, 1995; Yuval-Davis, 1997, 2000).
A literatura que atualmente aborda a questão da cidadania mostra como as
mulheres têm sido objeto de discriminação em inúmeras culturas e contextos,
em todos os níveis e setores, desde o privado, o lar – até o público – a cidade e o
estado – em contextos econômicos, sociais, políticos e relacionados ao bem-estar
(Yuval-Davis, 1997; McDowell, 1990; Lister, 1997; Young, 1990).
Dentro deste panorama, este documento pretende destacar, sob o ponto de
vista do gênero, a discussão sobre cidadania e pertença à cidade em lugar do
estado. Particularmente, analisa-se a ideia de Lefebvre de “cidadanismo”, isto
é, o direito à cidade. Esta ideia relaciona a vida cotidiana do indivíduo com
atividades de administração local e, como se discute em tal documento, não leva
em consideração os efeitos das relações de poder baseadas no gênero sobre o
cumprimento do direito das mulheres à cidade. Este documento demonstra que,
de fato, a violação do direito à cidade transformou-se numa experiência cotidiana
para muitas mulheres, como se expressa em seus relatos.
O documento começa com uma breve contextualização sobre a noção do
direito à cidade dentro do discurso sobre novas formas de cidadania. Em seguida
analisa o direito de uso da cidade baseado no gênero, revelando os vínculos
estreitos entre a discussão sobre o direito a usar espaços públicos – a cidade – e
o direito a usar espaços privados – o lar. Depois desta análise, vem a discussão
sobre: pertença e práticas de gênero cotidianas, exclusões do direito à cidade
baseadas no gênero como conseqüência do medo, da segurança e das práticas de
“sacralização” dos espaços públicos.
A análise que se leva a cabo neste documento está baseada em pesquisas
realizadas entre 1999 e 2002, período no qual se entrevistou residentes de
Londres e Jerusalém3 sobre suas experiências cotidianas na sua relação com a
3
A razão que justifica a escolha destas duas cidades é o fato de que refletem imagens e simbolismos
contrastantes. Jerusalém é um lugar no qual habitam pessoas de diversas identidades,
especialmente considerando sua imagem de cidade sagrada; é um lugar de simbolismos para
os muçulmanos, cristãos e judeus. Jerusalém é uma cidade associada à rigidez, talvez fanatismo,
regras estritas e limites impostos, que às vezes são expressos em espaços de pertença sagrada.
Estes espaços, muitas vezes, excluem as mulheres (B Tselem, 1995; Bollens, 2000; Cheshin,
Hutman & Melamed, 1999; Romann & Weingrod 1991; Fenster (de próxima aparição). Londres
é uma cidade famosa pelos impactos causados pela globalização e por seu caráter cosmopolita,
abertura e tolerância, mas também por conotações negativas e depressivas, especialmente para
os estrangeiros (Fainstein, 1994; Forman, 1989; Jacobs, 1996; Pile, 1996; Raban, 1974; Thornley,
1992). Analisar os relatos das mulheres que vivem nestas duas cidades ajuda a expor a natureza
das muitas camadas existentes no conceito de pertença, a qual se constrói a partir das práticas
urbanas cotidianas.
Propostas para o dereito à cidade 65
comodidade, a pertença e a responsabilidade, como três elementos que, em seu
conjunto, formam a qualidade de vida. Os entrevistados apresentaram suas
interpretações destes três componentes segundo as diversas escalas que formam
parte do seu entorno cotidiano: lar, imóvel, rua, bairro, centro da cidade, cidade
e parques urbanos (Fenster, 2004).
Cidadania e pertença na era da globalização
Como destaca Purcell, as reconstruções radicais da cidadania formal vão
em direção a três mudanças principais em sua formação (Purcell, 2003). O
primeiro deles é uma reestruturação da cidadania, através da qual a hegemonia
anterior em escala nacional se vê debilitada pela criação de outras escalas de
referência4. A segunda mudança implica numa reterritorialização da cidadania,
questionando o estreito vínculo entre a soberania territorial do estado-nação e a
lealdade política para com ele. Esta situação se produz devido à redistribuição
da autoridade para o local – para a cidade. A terceira mudança acarreta uma
reorientação da cidadania, afastando-se do conceito de nação como comunidade
política predominante e dos cidadãos como entidades homogêneas. Neste caso
a noção de cidadania diferenciada introduzida por Iris Marion Young (1998), ou
a cidadania com múltiplas camadas introduzida por Nira Yuval-Davis (2000),
substitui o ideal de cidadania universal expressa pelo enfoque democrata liberal.
Como propõe Purcell (2003), esta reorientação do conceito de cidadania leva a
proliferação de identidades e lealdades para diversas comunidades políticas.
Um dos enfoques alternativos dentro do discurso emergente sobre as formas
tradicionais e legais do conceito de cidadania é a noção normativa do “direito
à cidade”, desenvolvido por Lefebvre (Lefebvre, 1991 a, b; Kofman e Labas,
1996). O direito à cidade de Lefebvre constitui um repensar radical do propósito,
definição e conteúdo da pertença a uma comunidade política. Lefebvre não
define a pertença a uma comunidade política usando a terminologia dos estados
de cidadania legais formais, mas sim sustenta o direito à cidade numa definição
normativa baseada no habitar a cidade. As pessoas que habitam uma cidade têm
o direito à cidade. Este direito se obtém vivendo na cidade e pertence ao habitante
urbano, seja cidadão ou forasteiro.
Dentro do conceito de direito à cidade de Lefebvre surgem outros dos direitos
principais (Purcell, 2003):
4
Esta mudança funciona em duas direções: sobrescala, incluindo a cidadania da União Européia,
que tem como resultado novas formas de cidadania cosmopolita e democracia global, ou
cidadania a escala, que se refere a uma reviravolta para escalas subnacionais, como os municípios,
bairros, regiões ou distritos, especialmente em cidades cosmopolitas.
66 Cidades para tod@s
• O direito a apropriar-se do espaço urbano, expressado como o direito de
uso: o direito dos habitantes a usar plenamente os espaços urbanos em suas
vidas cotidianas. É o direito a usar os espaços urbanos de uma determinada
cidade com o fim de ocupá-los, viver, recrear, trabalhar, representá-los e
caracterizá-los.
• O direito à participação: é o direito dos habitantes a exercer um papel
central nos processos de tomada de decisões relacionados à produção de
um espaço urbano em qualquer escala, seja o estado, o capital, ou qualquer
outro “ator” que participe da produção do espaço urbano5.
Os direitos específicos de apropriação e participação são obtidos mediante o
cumprimento de determinadas responsabilidades e obrigações através das quais
cada pessoa, ao levar a cabo sua vida cotidiana nos espaços urbanos, ajuda na
criação da cidade como figura gráfica6. Esta perspectiva expande a discussão
sobre a cidadania considerando-a como uma “estratégia espacial”, um processo
espacial no qual se reparam e em seguida se desarmam as identidades, os limites
e as formações de pertença. (Secor, 2004).
Dentro deste marco conceitual, a primeira interrogação que surge é até que
ponto esta noção de direito à cidade é sensível a assuntos relativos às diferenças
de identidade. Lefebvre inclui o direito à diferença como um complemento
ao direito à cidade (Dikec, 2001). Neste ponto, refere-se ao “direito a não ser
forçosamente classificado em categorias que foram estabelecidas pelo poder
necessariamente homogeneizante” (1976, in Dikec, 2001:35). Contudo, como
destaca Dikec no direito a ser diferente, a ênfase de Lefebvre se coloca no “ser”
mais que no “diferente”. Portanto, sua definição não se relaciona com as noções
de poder e controle, que são relativas à identidade e ao gênero. Por conseguinte,
não questiona as relações de poder baseadas no gênero como um dos fatores
dominantes que afetam o potencial para tornar realidade o direito a usar
a cidade e o direito a participar da vida urbana. A questão do gênero não é a
única ausência no modelo de Lefebvre. Também parecem estar ausentes outros
aspectos relacionados com a identidade e seu efeito sobre o cumprimento do
direito à cidade (Mitchell, 2003)7.
5
6
7
Como assinala Dikec (2001) o direito de participar inclui o compromisso do povo no controle
institucionalizado da vida urbana, incluindo a participação na vida política, gestão e
administração da cidade.
Segundo Lefebvre, deve-se considerar a cidade como uma obra de arte. Os artistas são as rotinas
coletivas da vida cotidiana dos habitantes urbanos. A cidade é um produto criativo e o contexto
para as vidas cotidianas de seus habitantes.
Mitchell (2003), por exemplo, examinou a forma como os indigentes são excluídos dos espaços
públicos mediante normas que produzem que o estético se eleve sobre as necessidades de
sobrevivência das pessoas. As leis contra os indigentes, destaca, debilitam os direitos à cidade.
Este exemplo novamente demonstra a discordância e contradição que existe no conceito de
Propostas para o dereito à cidade 67
O direito de uso da cidade baseado no gênero – O privado e o público na
teoria de Lefebvre
Dedicou-se muito trabalho com relação às diferentes definições e perspectivas
do “privado” e do “público”: sua orientação cultural (Charlesworth, 1994;
Fenster,1999b); seus vínculos (pelo menos nos espaços públicos) com a esfera
política (Cook, 1994; Yuval-Davis, 1997); suas raízes no pensamento liberal
ocidental e as diferentes formas de patriarcado (Pateman, 1988, 1989); e suas
perspectivas feministas. Neste contexto, o direito à cidade de Lefebvre se refere
claramente ao público – ao uso dos espaços públicos, aqueles que criam a oeuvre
– um produto criativo que é o resultado e o contexto em que se desenvolvem
as vidas cotidianas de seus habitantes. Contudo, alguns críticos feministas
entendem a oeuvre, o público como o domínio do homem branco, heterossexual,
de classe média-alta. Isto significa que as mulheres nas cidades (ocidentais ou
não) simplesmente não podem fazer uso dos espaços públicos, como as ruas ou
praças, especialmente se estão sozinhas (Massey, 1994) e, em algumas culturas,
não podem passear nestes espaços sob nenhuma circunstância (Fenster, 1999a).
As mulheres pertencem à esfera “privada”.
Contudo, o que se revela a partir dos relatos das mulheres é que seu direito
de uso é negado mesmo no âmbito “privado”. Isso significa que devemos olhar
o direito de uso tanto da perspectiva pública como da privada para realmente
compreender a origem da violação deste direito. Portanto, a discussão que se coloca
neste documento sobre o direito a usar espaços públicos e o direito a participar na
tomada de decisões deve começar no nível do lar. Como mostram os seguintes
relatos, apesar da noção idealizada do lar, “o privado” – o espaço para a mulher, o
espaço de estabilidade, confiabilidade e autenticidade, desenvolve um sentimento
de nostalgia de algo perdido que tradicionalmente pertencia à mulher (Massey,
1994) – a casa então pode ser um espaço refutado à mulher, um espaço em que se
abusam dos direitos de uso e participação. Em seguida, mostra-se um relato que
exemplifica como se abusam os direitos de uso e participação no nível do lar. As
mulheres falam sobre seus sentimentos de comodidade ou incomodidade:
Sinto-me bastante incômoda e sinto que não pertenço ao lar porque vivo com
meu companheiro e ele tem suas próprias necessidades e gostos, que são
diferentes dos meus. A forma como a casa está organizada não é exatamente
como eu gostaria. Está exageradamente organizada. Não gosto dos móveis.
Não me fazem sentir que pertenço a esta casa. A pertença para mim significa
estar no meu próprio espaço e decidir o que existirá nele. Ter o controle total.
(Amaliya, 30 anos, casada e com um filho, judia israelense [vive em Londres],
Londres, 22 de agosto de 1999).
cidadania e até que ponto podem-se identificar as formações do conceito de pertença ao expandir
as definições de cidadania.
68 Cidades para tod@s
Este relato8 ilustra até que ponto se produz um abuso do direito de uso e
participação no nível do lar devido à dominação patriarcal, que se transforma
em rotina para muitas mulheres no mundo. Segundo Amaliya, a ordem e a
organização do espaço do seu lar, determinado sem sua participação, provocam
nela uma falta de comodidade e pertença. Esta experiência talvez ratifique a crítica
feminista diante da divisão entre o “público” e o “privado” que é inerente às
ideias de Lefebvre. Como destacam os feministas, estas divisões são provocadas
principalmente para justificar a subordinação e exclusão das mulheres, além de
esconder o abuso dos direitos humanos no lar diante da esfera pública (Bunch,
1995). Isolando a discussão do direito à cidade do direito ao lar, Lefebvre cria um
domínio público um tanto neutral, que ignora as relações de poder baseadas no
gênero como um fator dominante na compreensão do direito de uso e que, por
conseguinte, não tem relevância na realidade das vidas cotidianas das mulheres
nas cidades. Obviamente, isso significa que as mulheres que experimentam um
controle patriarcal forte no seu lar necessariamente sofrem o uso restrito da
cidade, mas é importante destacar os vínculos estreitos entre o “privado” e o
“público” ao avaliar a noção de direito à cidade expressa por Lefebvre.
Estes vínculos estreitos muitas vezes encontram expressões contrastantes,
como se vê refletido no relato de Fatma, que descreve uma situação de relações
fortes de poder patriarcal no nível do lar, que a deixam incômoda nele e que
provocam um sentido de pertença menor do que o sentido pela cidade. Para ela,
que tem um nível de controle bastante restrito em seu lar, a cidade se converte
num espaço de libertação:
Lar – prisão! Apesar de que no meu quarto tenho tudo que necessito para
“fugir” – computador, internet, vídeo, televisão a cabo com 50 canais… Tenho
tudo, mas não é o suficiente.
Cidade – liberdade, liberdade pessoal, atmosfera, primavera.
Para Fatma, uma mulher muçulmana de 40 anos, solteira, que vive com sua
mãe, o lar é um lugar ao qual não tem nenhum direito. É um espaço construído
com base numa cultura a qual se sente condicionada pelo estrito controle patriarcal
exercido por seus familiares e comunidade local. A cidade, ao contrário, é o lugar
no qual se sente livre e onde lhe é mais fácil praticar sua cidadania como um
processo negociado. A cidade se converte no seu lar “privado” ou “íntimo”, um
espaço no qual pode sentir-se “ela mesma”. “Estas cidades”, escreveu Elizabeth
Wilson em seu livro A Esfinge na Cidade (1991), “geraram mudanças na vida das
8
Devido às limitações do espaço, somente se apresentaram alguns dos relatos deste documento.
Para uma análise mais detalhada, ver Fenster, 2004.
Propostas para o dereito à cidade 69
mulheres. Representaram o poder de escolha” (p. 125). O livro está ambientando
nas novas cidades coloniais da África Ocidental. Contudo, o rol de cidades que
oferecem à vida das mulheres oportunidades para escolher parece ser aplicável a
mulheres que vivem em outros lugares.
Os exemplos anteriores enfatizam a necessidade de discutir o direito de uso
no nível do lar como parte integrante da discussão sobre o direito à cidade. Os
relatos insinuam que muitas mulheres, mesmo aquelas que se identificam como
“ocidentais” ou como parte da maioria, sofrem relações de poder baseadas no
controle e no gênero de seus lares. Contudo, alguns relatos mostram que aquelas
que sofrem de um estrito controle de poder patriarcal em seus lares podem
encontrar naquela cidade um espaço no qual lhes resulta bastante fácil negociar
seu sentido de pertença e cidadania. Estes relatos destacam a importância de
vincular os domínios privados e públicos na discussão sobre o direito de uso.
O domínio das relações de poder patriarcal no âmbito privado tem um efeito
claro sobre as diferentes formas em que a mulher satisfaz seu direito à esfera
pública – à cidade. As mulheres nem sempre podem, por exemplo, deixar de lado
seus lares e participar de atividades na esfera pública, como estudar. Participar
de atividades políticas, que em geral são parte da esfera pública, nem sequer
chega a ser uma opção para elas. Continuando a discussão, exploremos o direito
a usar a cidade e as diferentes formas de pertença expressas nos relatos.
Pertença cotidiana e práticas baseadas no gênero
O direito a pertencer é inerente ao direito à cidade. De fato, o sentido de pertença
à cidade é criado pelas possibilidades de uso cotidiano dos espaços urbanos. O
livro de de Certeau, A Prática da Vida Cotidiana (1984) faz uma relação entre
os elementos de “uso” e “pertença”. Para o autor, a pertença é um sentimento
que se desenvolve e cresce através do tempo a partir da vida cotidiana e do uso
dos espaços. De Certeau propõe uma “teoria de territorialização” através de
táticas espaciais: “O espaço é um lugar prático. Por outro lado, a rua definida
geometricamente pelo planejamento urbano é transformada num espaço pelos
transeuntes” (p.117). Segundo de Certeau, as atividades físicas cotidianas na
cidade são parte de um processo de apropriação e territorialização. De fato, define
o processo mediante o qual se estabelece um sentido de pertença através de um
cumprimento repetido do direito de uso. Neste processo, a pertença e o cuidado
são construídos sobre a base do conhecimento, da lembrança e das experiências
físicas de caráter íntimo acumuladas a partir do uso cotidiano, principalmente
mediante a ação de caminhar.
Estas práticas cotidianas de apropriação e reapropriação do espaço – ‘táticas’
segundo a terminologia de de Certeau – transformam-se no meio através do qual
70 Cidades para tod@s
se produz o encontro e o questionamento da noção hegemônica de cidadania
(Secor, 2004). Assim, a cidadania é vista como uma organização espacial na qual as
identidades, os papéis baseados no gênero e os poderes patriarcais transformamse em indicadores dentro das negociações e debates sobre os direitos e formas
de pertença nos espaços dos cidadãos. Segundo de Certeau, a cidadania é uma
estratégia que serve para definir e fazer valer o direito sobre um espaço de
pertença limitado (de Certeau, 1984; Secor, 2004)9.
A reivindicação e apropriação de um espaço são construídas a partir da prática
cotidiana de caminhar, como o indica de Certeau, e são parte das estratégias que
se usam para definir e designar as reivindicações a um determinado espaço.
Estas práticas, que são repetitivas, geram o que Viki Bell (1999) define como
“performatividade” e pertença10.
O uso dos espaços urbanos para a prática da pertença e para as negociações
espaciais referentes ao conceito de cidadania gera um sentido de conhecimento
espacial que as mulheres experimentam no seu entorno e que provém das
reivindicações e da apropriação simbólica dos espaços:
Conheço a rua. Vivo nela. Conheço o edifício, cada um de seus tijolos. Cada vez
o conheço mais. É um conhecimento muito íntimo.
(Susana, aproximadamente 30 anos, é casada e tem um filho, é judia
israelense, Jerusalém, 13 de julho 2000).
Sinto uma conexão com a área de Salah al-Din e com algumas zonas da Cidade
Velha. Tenho lembranças da minha época escolar e o internato estava em frente
ao Orient House. Transitei muito por esta área durante minha vida e, portanto,
sinto-me conectada a ela.
(Saida, aproximadamente 30 anos, é solteira, palestina muçulmana, Jerusalém,
30 de dezembro de 2000).
O uso do espaço e o conhecimento deste é uma expressão do direito de
uso e do direito de apropriar-se dos espaços públicos. O conhecimento vem
9
Alguns exemplos destas práticas são os diferentes usos dos espaços públicos, principalmente
parques urbanos, por parte dos indivíduos e dos grupos, que acontecem como parte dos
encontros cotidianos informais entre as pessoas ou grupos: os indivíduos desejam apropriar-se
de algumas zonas do entorno público para alcançar intimidade ou anonimato ou ainda para
realizar reuniões sociais. Estas apropriações são principalmente temporais, porém mesmo as
apropriações temporais constituem negociações em relação aos direitos a pertencer, ser parte de
uma comunidade e ser visível (Fenster, 2004).
10 A performatividade é a replicação e repetição de certos atos que estão associados às práticas
ritualistas através das quais as comunidades colonizam diversos territórios. Estes atos são de
fato o exercício do direito ao uso de certos espaços e, através dele, desenvolve-se o cuidado e a
pertença a um lugar (Leach, 2002).
Propostas para o dereito à cidade 71
acompanhado da intimidade do uso e do sentido de pertença. As práticas
cotidianas são expressões das definições dos papéis baseados no gênero dentro
da família. As mulheres experimentam suas práticas cotidianas – suas estratégias
e táticas para formular seus panoramas de pertença – quando cumprem seus
papéis e responsabilidades baseadas no gênero para manter as normas culturais
impostas nas suas comunidades ao criar seus filhos ou cozinhar. Para levar a
cabo seus direitos sociais e familiares devem negociar suas práticas espaciais do
conceito de cidadania para poder assegurar o cumprimento do seu direito de
uso, para poder trabalhar, fazer compras, levar seus filhos à escola ou ao médico,
etc. Neste caso, o direito de usar espaços públicos inclui “direitos humanos
fundamentais”: alimentação, moradia, saúde e emprego, as necessidades básicas
para a sobrevivência humana (Kaplan, 1997). Além disso, o nexo entre o “privado”
e o “público” torna-se mais evidente. Para que as mulheres possam cumprir seus
deveres na esfera privada, necessitam negociar sua cidadania “pública”.
Exclusões do direito à cidade por razões de gênero
Os relatos apresentados até agora expuseram práticas cotidianas nas quais o direito
de uso cumpriu-se até certo ponto dentro do contexto dos papéis tradicionais
da mulher por questões de gênero. Contudo, existem outras experiências que
indicam a violação do direito ao uso e pertença à cidade uma vez que os poderes
patriarcais, culturais e religiosos proibiram o acesso aos espaços públicos.
As formas de exclusão legitimadas em geral associam-se às definições
tradicionais de cidadania11. Estas definições são consideradas como relacionadas
à identidade, no sentido de que ditam quais identidades são incluídas na
comunidade hegemônica e quais são excluídas desta. Além disso, estas definições
podem ter efeitos negativos sobre as mulheres, as crianças, os imigrantes, as
pessoas pertencentes a minorias raciais ou étnicas, homossexuais, lésbicas e, em
alguns casos, pessoas da terceira idade. Neste sentido, a definição normativa do
direito à cidade parece incluir os grupos marginais, tais como estrangeiros, pessoas
de diferentes identidades que habitam a cidade e mulheres. Contudo, estas práticas
inclusivas nem sempre se cumprem devido, precisamente, ao domínio patriarcal
nos diferentes níveis assinalados neste documento: lar, imóvel, rua, bairro, cidade,
etc. Na seção anterior vimos como o domínio do patriarcado abusa do direito de
uso no nível do lar. No nível de cidade, as práticas patriarcais se expressam nos
sentimentos de medo, segurança e nas exclusões dos espaços públicos em função
do gênero, de acordo com as normas culturais e religiosas. Ambas as práticas geram
espaços proibidos para a mulher e limitam seu direito à cidade.
11 Muitos críticos tanto de esquerda como de direita reconhecem que a cidadania, por definição,
tem mais a ver, para muitas pessoas, com a exclusão que com a inclusão (McDowell, 1999).
72 Cidades para tod@s
Medo e Falta de Segurança
O medo de usar os espaços públicos, especialmente a rua, o transporte público
e os parques urbanos, é o que permite que as mulheres possam exercer seu
direito à cidade (Valentine, 1998; Pain, 1991; Madge, 1997)12. O medo e a falta de
segurança podem ser vistos como um assunto social e espacial que se relacionam,
em muitos casos, com o desenho dos espaços urbanos.
A avenida onde vivo me dá medo porque possui somente uma saída não se pode
deixá-la de qualquer parte. Existem bancos onde estranhos podem sentar-se e te
incomodar, de modo que te sentes presa& Por isso não é tão agradável& Se por acaso
entras nessa avenida, estás perdido& é realmente planejada de maneira masculina
eles a fizeram assim pelo transporte, mas isso me impede de caminhar pela avenida
(Rebeca, 30 anos, casada, judia israelense, Jerusalém, 3 de fevereiro de 2000).
Rebecca conta aqui uma experiência comum para muitas mulheres, cujo uso
cotidiano da cidade está afetado porque os espaços urbanos estão desenhados de
tal forma que se transformam numa armadilha para elas; são desagradáveis e,
portanto, não os usam. Estes espaços transformam-se numa armadilha planejada
. Em outras palavras, os planejadores criaram ou desenharam esses espaços sem
prestar maior atenção às sensibilidades inerentes aos gêneros, criando, uma vez
mais, espaços da cidade que não são usados. Neste caso, as mulheres restringem
seus movimentos e sua mobilidade de forma voluntária, reduzindo seu direito
de uso. A resistência diante destas construções de espaço feitas pelos homens
pode ser parte das negociações das mulheres para expandir o uso dos espaços
públicos.
A mesma associação pode ser feita com os parques urbanos. Algumas
mulheres percebem os parques como áreas masculinas hostis : São zonas que
foram conquistadas. Sinto raiva por não poder usá-las. (Aziza, aproximadamente
30 anos, cidadã palestina que vive em Israel, entrevista feita em 7 de agosto de
2000).
O que expressa Aziza é basicamente um sentido de exclusão dos espaços
públicos devido ao medo e a falta de segurança, mas talvez também esteja
expressando sua raiva ao seu mau uso, o que não lhe permite acessar estes
espaços porque são controlados pelos homens. Tudo parece indicar que o medo
é um sentimento que transforma os parques urbanos em espaços proibidos
depois de certa hora do dia. A maior parte das mulheres, tanto em Londres como
12 O temor ao assédio nos espaços públicos intervém nas experiências de vida cotidiana das
mulheres, tanto em Londres como em Jerusalém. Também intervêm nas vidas de pessoas de
outras identidades, tais como a nacionalidade, estado civil, idade, preferência sexual, etc.
Propostas para o dereito à cidade 73
em Jerusalém, evita usar tais espaços durante a noite. De fato, outra pesquisa
(Madge, 1997) mostra que o medo dos parques urbanos, especialmente durante
a noite, é o principal denominador comum na sua falta de uso, não só por parte
das mulheres, mas também dos homens.
Então, quais são os espaços seguros? São os espaços que permitem as práticas
de cidadania e o cumprimento do direito de uso. O relato de Aziza descreve as
características destes espaços.
Este é o bairro no qual me sinto mais cômoda porque é o lugar mais bonito de Jerusalém.
Sou uma pessoa que possui limitações: sou mulher, palestina, vivo sozinha (este bairro
é como) num microcosmo recorda-me Londres; existe uma grande variedade de
pessoas& nestes lugares eu floresço, como um peixe na água, este é meu mar. Sintome muito protegida porque este bairro está na fronteira entre Jerusalém Oriental e
Ocidental e é o lugar ideal para mim. Antes vivia em Rehavia (um bairro judeu) e me
sentia sufocada. Daqui posso chegar facilmente a Cidade Velha.
(Aziza, 7 de Agosto de 2000).
O que Aziza expressa é precisamente o que está incorporado na noção do
direito à cidade. Para ela, o espaço seguro é o espaço urbano, que lhe permite
viver como uma pessoa anônima. Este é o lugar que lhe permite negociar
seus direitos como cidadã. Como uma mulher palestina solteira, reconhece as
limitações que existem para uma mulher de sua cultura e, ao mesmo tempo,
reconhece as limitações para as pessoas de sua nacionalidade sob as condições
políticas existentes na ocupação. Portanto, o direito à cidade se concretiza quando
se concretiza também o direito à diferença em termos de nacionalidade e quando
as pessoas de diferentes etnias, nacionalidades e gêneros podem compartilhar e
usar os mesmos espaços urbanos.
“Sacralização e exclusão por gênero como resultado de normas religiosas e
culturais
O segundo exemplo de exclusão por gênero na cidade se expressa através
das normas religiosas e culturais que regem as expressões corporais e suas
representações.
Os guardiões da cultura da sociedade, por exemplo, os homens e as mulheres
de idade, ditam as fronteiras dos espaços sagrados e os privatizam com o objetivo
que somente aqueles que cumpram as regras de vestuário possam usá-los (Fenster,
1999a). Estes espaços simbólicos em geral são o símbolo de uma coletividade nacional
peculiar de suas raízes e espíritos (Yuval-Davis, 1997). A mobilidade espacial
da mulher, portanto, é ditada, para não dizer controlada, por estes significados
74 Cidades para tod@s
simbólico-culturais de espaço. Desta forma, as normas religiosas e culturais criam
espaços de pertença e não-pertença que depois se transformam, por exemplo, em
espaços proibidos e permitidos para as mulheres em determinadas culturas, de
modo que certamente possuem efeitos sobre as práticas do direito de uso como
expressões de conceito da cidadania. (Fenster, 1998, 1999b).
Em 1999, escrevi sobre a construção cultural do espaço por parte das mulheres
Árabes Beduínas que vivem em Negey [Nagab], no sul de Israel (Fenster, 1999b,
c). Nessa ocasião mencionei a elaboração da dicotomia do público/privado como
construções culturais do espaço proibidos/permitidos, que se transformam em
restrições sobre o movimento das mulheres Árabes Beduínas em suas cidades.
Os relatos das mulheres que vivem em Jerusalém e Londres revelam que estas
terminologias são aplicáveis não somente às mulheres Árabes Beduínas, mas
também às mulheres de outras cidades do mundo. Em Jerusalém, por exemplo,
a maioria das mulheres com as quais conversei, tanto judias como palestinas,
mencionaram o ultra-ortodoxo bairro Mea Shearim como uma área que elas
associavam com incomodidade, já que lá devem estar vestidas de acordo com
certos códigos culturais. Devem evitar, portanto, caminhar nesta zona em função
da ameaça que sentem ao estar nela. (Fenster, 2004).
Conclusões
Este documento expõe a natureza das múltiplas camadas que se encontram nos
conceitos de pertença e cidadania cotidiana baseada no gênero inerente à ideia
de direito à cidade proposta por Lefebvre e apresenta uma crítica feminista para
esta noção. A premissa básica do documento é que os conceitos de cidadania
e pertença devem ser vistos como processos espaciais dinâmicos e não como
definições estáticas articuladas nas vidas e identidades cotidianas das mulheres.
Este documento enfatiza o ponto até o qual o direito à cidade, isto é, o direito a
usar e participar, é violado devido às relações de poder baseadas no gênero. Estas
violações se expressam através das vidas cotidianas das mulheres em Jerusalém
e Londres quando falam de comodidade, pertença e compromisso com suas
cidades.
Para finalizar, o direito à cidade com base no gênero significa que as
avaliações do direito de uso e participação devem ser incluídas em qualquer
discussão séria sobre as relações de poder patriarcal, tanto na esfera privada
como na pública. Também deve considerar até que ponto estas relações de poder
danificam o cumprimento do direito à cidade por parte das mulheres, das pessoas
que pertencem a minorias raciais ou étnicas, etc. Esta discussão está ausente na
atual conceituação de Lefebvre com respeito ao direito à cidade, uma omissão
que transforma este conceito em algo próximo a uma utopia.
Propostas para o dereito à cidade 75
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Um horizonte para as políticas públicas?
Notas sobre a felicidade
Patricia Ezquerra Aravena e Henry Renna Gallano
Este artigo tem intenção de se aventurar sobre um tema que vem tomando
relevância internacional nas ciências sociais nas últimas décadas: a questão da
felicidade. Nos próximos anos, os desafios para os governos eleitos da América
Latina estarão centrados em aprofundar a qualidade das políticas, programas
e planos sociais. O caminho tomado até hoje possibilitou a cobertura massiva
das necessidades básicas insatisfeitas, mas ao custo de impactos negativos nas
famílias, às vezes invisíveis ao olhar do estado e dos que fazem as políticas
públicas. Frente aos desafios, não basta redirecionar as políticas impulsionadas
até o momento, mas é imprescindível repensar sobre o horizonte das estratégias
de desenvolvimento. Neste sentido, a felicidade é uma ideia-força e um amplo
campo de estudo para definir o caminho das ações governamentais que deverão
buscar melhoras na redistribuição, o reconhecimento e a participação.
A Felicidade: boa ação, boas condições e gozo subjetivo
O presidente Evo Morales, por ocasião da 2ª reunião da União Sul-Americana
de Cochabamba, assinalava que os novos governos da região deveriam ter como
horizonte o “viver bem”. Além disso, a nova Constituição do Equador se propõe
a construir uma nova forma de convivência, em diversidade e harmonia com a
natureza, para alcançar o “bem viver”, o sumak kawsay. Em ambas as ideiasforça não se recorrem nem a viver melhor do que antes, nem a viver melhor do
que outros, mas, precisamente, é outra forma de satisfação com nossa vida, um
horizonte construído a partir dos sonhos e aspirações das pessoas por construir
um lugar para ser feliz. Partindo desse olhar, a ideia de felicidade permite um
campo fecundo de estudo para nos aproximarmos e abordar a complexidade de
direcionar as políticas públicas para novos horizontes.
80 Cidades para tod@s
A primeira concepção sobre a felicidade se desprende da filosofia moral, que
a entende a partir do significado da boa ação: a felicidade como participação de
uma comunidade. Este é o espaço por definição onde se possibilita o alcance do
bem-estar individual. Como refletia Aristóteles, é a comunidade completa a que
oferece que seus membros realizem todos os seus desejos e onde o ser humano
pode alcançar o bem- estar (eu zeen) ou a felicidade (audaimonía).
A segunda concepção se refere à felicidade entendida pela filosofia social, a
partir da ideia de boas condições de vida: a felicidade como redistribuição dos
recursos de uma sociedade. Novos pensadores se preocuparam com o fato de que
a própria constituição da comunidade possui uma origem desigual ao assegurar
a uns e não a outros o bem-estar ao que se somam todas as desigualdades criadas
pelas relações desiguais de origem. As próprias condições de vida determinam
a sorte do indivíduo, o ser humano depende de seu entorno, pelo qual para
melhorar a condição de vida e aspirar à felicidade, deve reconstruir o lugar em
que vive o ser humano. Reconstruir o território que habitamos.
A terceira concepção surge nas últimas décadas com autores que perceberam
que a reivindicação de justiça social para melhorar as condições de vida se
limitou, durante muito tempo, a questões sócio-econômicas, denotando apenas
uma necessidade de redistribuição para a felicidade. Graças a isso, advertiram
sobre a importância das injustiças culturais arraigadas nos modelos sociais
de representação, interpretação e comunicação, cujo remédio estaria então na
mudança cultural (Fraser, 1996). Essa terceira leitura aponta principalmente a
sua relação com o campo simbólico: o reconhecimento da felicidade como gozo
subjetivo da vida (Ovalle e Martínez, 2006). Tal concepção indica que, em última
instância, a situação vital do ser humano em sociedade se define por seu próprio
mundo de referências.
Estas três correntes geralmente se apresentam como contraditórias, sendo que
as pesquisas se preocupam mais em tomar partido por uma ou outra do que
buscar as contribuições que cada uma oferece. Desse modo, consideramos que as
três concepções, posições e correntes são complementares e permitem elaborar
uma “concepção trivalente” da felicidade. Tal concepção trivalente mostra três
campos de análise: (i) participação nas decisões públicas, (ii) redistribuição da
riqueza produzida e (iii) reconhecimento dos diferentes saberes e subjetividades.
As duas primeiras correntes descobrem as condições prévias para conseguir a
felicidade seja na virtude individual através da pertinência e participação numa
comunidade ou o no bem estar provido pelo estado, porém não sua significação como
tal. Será a experiência de vida, a mediação do indivíduo ou grupo com seu território, a
que entregará o resultado, virtuoso ou deficitário, de satisfação com a vida.
Agora bem, a pertinência a uma comunidade, a segurança de certo bemestar para seus membros sobre sua situação vital e o gozo subjetivo da vida,
Propostas para o dereito à cidade 81
são constituintes da felicidade, mas ainda insuficientes para alcançá-la, se
considerados separadamente. Estes fatores requerem vasos comunicantes para
provocar melhorias na situação vital e não somente proporcionar uma “felicidade
passageira” (Heylighen, 1992). Para ir construindo a felicidade e não somente
estar provido de uma felicidade passageira é necessário o desenvolvimento de
capacidades do ser humano que permitam que sua vida resulte suportável em
situações difíceis e plena em seu sentido mais amplo. Como nos mostra Amartya
Sen, a satisfação de necessidades e a posse de bens materiais são elementos
necessários, porém insuficientes quando tratamos de compreender a que nos
referimos quando falamos de qualidade de vida e satisfação das pessoas.
Então a questão sobre a ação das políticas públicas se torna complexa, não
somente é importante responder como garantir a todos e todas um padrão
mínimo, mas também como as famílias desenvolvem suas capacidades para
articular tais garantias. Neste sentido, a falha e o déficit de muitas políticas
públicas atuais é dedicar-se à entrega de um bem ou serviço, como se o simples
acesso assegurasse espaços de possibilidade para a satisfação do ser humano,
ao invés de pensar na instalação (construção) de capacidades que permitam o
desenvolvimento de ações de bem-estar de e para as famílias ao longo do tempo.
Por conseguinte, devemos pensar a felicidade como algo mais duradouro que
a alegria que nos invade quando conquistamos algo desejado ou necessitado e
que se interrompe quando o sistema nos inventa uma nova meta. A felicidade,
como observou Vennhoven (1984), é uma valorização global da vida que se
leva o que na prática se faz visível quando uma pessoa se sente feliz, apesar
de viver insatisfações em âmbitos específicos de sua realidade. Diríamos que é
no momento em que a plenitude do todo supera as insatisfações em algumas
partes quando atingimos o “viver bem”. Quando construímos uma satisfação
duradoura com a vida que se leva.
O estar sendo feliz depende então da ação individual, das condições do
território, do gozo subjetivo e do desenvolvimento das capacidades que permitam
a vinculação das mesmas. Neste caminho, todos e todas temos o direito de contar
com estas condições para definir o lugar que queremos viver.
O estudo da Felicidade na América latina
Na América Latina os limites das reformas econômicas neoliberais estão gerando
fortes questionamentos às premissas de grande parte dos caminhos que estão
tomando os governos da região. A atenção está especialmente voltada para os
efeitos de pensar as estratégias de desenvolvimento e as políticas públicas somente
em termos de crescimento econômico e indicadores como o PIB per capita. Neste
sentido, princípios que valorizam o desenvolvimento humano dos anos noventa
82 Cidades para tod@s
ganha cada vez mais importância o interesse pelo desenvolvimento humano
como paradigma alternativo ao pensamento econômico convencional, o qual
rechaça o vínculo automático entre a ampliação da renda e a ampliação das opções
humanas (UI Haq:1995) e propõe uma nova concepção de desenvolvimento onde
não somente se consideram melhoras no crescimento econômico e a cobertura de
necessidades básicas, mas também a qualidade dos direitos sociais garantidos, as
oportunidades geradas pela sociedade e as capacidades instaladas nas famílias.
Esta proposta cria como porta para sua entrada o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH)1 que se apresenta em informes anuais desde 1990.
Assim, desde os anos oitenta a nível mundial e desde os noventa em nossa
região, registramos os seguintes resultados de pesquisas que consideramos
relevantes para o estudo da felicidade.
Pesquisa mundial de valores, 1990 (WVS): Na América Latina nenhum país apresenta
variações negativas em relação aos anos anteriores, porém existe uma
diferença alta no interior da região nos resultados desagregados por país.
Latinobarómetro, 1996-2008: Desde o fim da década de noventa os latinoamericanos declaram ser mais felizes. Isso não é contraditório com o fato de
que os latino-americanos estão cada vez mais críticos sobre a sociedade em
que vivem.
Cimagroup, 2006: A felicidade não tem relação com a riqueza ou o nível de
desenvolvimento de um país. O país mais rico e o mais pobre (Chile e Bolívia)
tem graus similares de felicidade, sendo que o país mais feliz e o más infeliz
(Venezuela e Peru) tem renda semelhante.
Happy planet index, 2006 (HPI): Não podemos reduzir ou associar a felicidade
somente às medições de riqueza em termos do PIB, e sim devemos considerar
fatores chave para a mesma outro tipo de riqueza, tais como respeito e
valorização dos habitantes com a natureza de seu país. Por conseqüência, os
resultados do informe mostram que, das 178 nações nas quais se mediu a
felicidade, muitas pertencentes a OCDE aparecem em posições inferiores do
ranking.
Universidad de Leicester, 2007 (SWLS): Esta é uma representação geográfica que
mostra uma projeção global do bem-estar subjetivo marcando a transição
definitiva para outro tipo de estudos relativos à felicidade, concentrando-se
na análise das percepções da população segundo seu bem-estar econômico e
incluindo variáveis de saúde e educação.
Ecosocial, 2007: De acordo com a pesquisa, de modo geral e considerando todos os
aspectos de sua vida, 65% dos latino-americanos se sente bastante ou muito
1
O IDH contem três variáveis: a esperança de vida ao nascer, o alcance educacional (alfabetização
de adultos e a taxa bruta de matrícula primária, secundária e terciária combinadas) e o PIB real
per capita (PPA em dólares).
Propostas para o dereito à cidade 83
feliz. No entanto, se mostra uma correlação baixa entre os níveis de felicidade
e a riqueza dos países.
Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2008 (BID): O informe evidencia que
as pessoas que cresceram pouco ou nada economicamente nos últimos
anos estão más satisfeitas com seu nível de vida do que as que tiveram um
maior crescimento. Seguindo a exposição do BID (2008), estamos frente a um
“paradoxo do crescimento infeliz”: à medida que o crescimento econômico
aumenta as aspirações das pessoas por um estilo de vida melhor crescem
ainda mais e acontece o enfrentamento com a realidade de muitos de nossos
países na região.
Quadro síntese sobre os resultados da Felicidade na América Latina
Ranking IDH 2008
AL
1
2
3
4
5
6
GDP per
capita
WVS
Chile
(12,997)
Venezuela
(86,3%)
Argentina
(0,860)
Argentina
(11,985)
Colombia
(84,3%)
Venezuela
Venezuela
(0,826)
Venezuela
(11,115)
Brasil
(82,9%)
Argentina
Brasil
(0,807)
Brasil
(8,949)
Argentina
(82%)
Chile (0,874)
Ecuador
(0,807)
Perú (0,788)
Ecuador
(7,145)
Perú
(7,088)
7
8
Chile
(80,3%)
Perú
(66,2%)
Latino
Cimagroup
barómetro
Brasil
HPI
SWLS
Ecosocial
BID
Venezuela
(84%)
Colombia
(67,20)
Venezuela Brasil (74%) Venezuela
(247)
(6.5)
Colombia
(78%)
Venezuela
(57,5)
Colombia
(240)
Colombia
(68%)
Colombia
(6.2)
Ecuador
(73%)
Perú
(55,10)
Argentina
(227)
Argentina
(67%)
Brasil
(80%)
Colombia
Bolivia
Chile
(68%)
Argentina
(52,20)
Chile
(79%)
(217)
(62%)
Argentina
(6.0)
(86%)
(80%)
(6.2)
Chile
Chile
Chile
Brasil
Perú
Chile
(74%)
(66%)
(51,30)
(210)
(48%)
(5.8)
Ecuador
Perú
(55%)
(61%)
Ecuador (49,3) Ecuador
(187)
Bolivia
(5.4)
Colombia
(0,787)
Colombia
(6,381)
Perú
Brasil
Perú
Perú
(49%)
(48,6)
(187)
(5.3)
Bolivia
(0,723)
Bolivia
Bolivia
Bolivia
Bolivia
(3,989)
(44%)
(46,2)
(183)
Ecuador
(4.9)
Fonte: Elaboração própria sobre a base de informação previamente citada
Como detalha o quadro de síntese, apesar do aumento da riqueza nos países,
não existe um correlato entre estes indicadores nem com a satisfação com a vida
nem com os níveis de felicidade declarados; países com maior Produto Interno
Bruto (PIB), com maiores valores de Paridade de Poder Aquisitivo (PPA) ou que
estão experimentando um acelerado crescimento nos últimos anos como Chile
e Peru, se encontram menos satisfeitos com suas vidas e são menos felizes que
aqueles países, cujo PIB é mais baixo e tem tido pouco ou nenhum crescimento
econômico, como Colômbia.
84 Cidades para tod@s
O caminho tomado pelos governos: estratégias de cobertura e subsídios
focalizados
Acreditamos que a base explicativa destes resultados diferenciados por país
está no devaneio de parte dos governos latino-americanos com o crescimento
econômico. Após o processo de racionalização fiscal e liberalização econômica
ocorrida na etapa de ajuste estrutural durante os anos oitenta e a instalação
do regime de acumulação flexível denominado neoliberal, os governos estão
transitando principalmente por estratégias de coberturas quantitativas enfocadas
sobre as necessidades básicas insatisfeitas com políticas, programas e planos
sociais de subsídios focalizados. O resultado dessa estratégia: observamos avanços
importantes em indicadores vitais como esperança de vida e taxas de mortalidade
infantil, redução do analfabetismo, aumento dos anos de instrução, maior acesso a
serviços básicos e deste conjunto de fatores controlados, importantes diminuições
percentuais do número de famílias vivendo em situação de pobreza e aumentos
de renda per capita. Não obstante, apesar dos resultados, consideramos que para
o tipo de estratégias predominantes na região, a felicidade não é uma preocupação
e, depois de um longo processo de implementação ortodoxa, chega a gerar
impactos negativos sobre os níveis de felicidade das famílias latino-americanas.
A razão que consideramos é que a formação de suas políticas públicas tem como
parâmetro o grau de focalização nos recursos que, num marco estrutural de um
estado subsidiário, se define pelo volume de subsídios cedidos, sem considerar o
impacto da redistribuição, o necessário reconhecimento cultural e a participação
vinculante das famílias.
Finalmente, junto aos resultados expostos como exitosos se juntam impactos
negativos menos visíveis sucedidos pela própria ação governamental, que
refletem, ou são a causa, da insatisfação vital de muitas famílias da América
Latina. De forma paralela à redução de famílias em situação de pobreza se
reproduzem os padrões de exclusão e se aprofunda a desigualdade social, ao
lado do aumento de matrículas primárias e secundárias se experimentam níveis
elevados de desistência escolar e junto ao aumento da cobertura de serviços
básicos, se mantém e em alguns casos aumentam os bairros marginais da região.
O resultado: déficit de participação, redistribuição, reconhecimento
Neste longo caminho, percorrido por muitos governos a mercê das famílias latinoamericanas, encontramos ao menos três pontos críticos nas políticas, programas
e planos sociais desenvolvidos sob estas estratégias de desenvolvimento. Tais
pontos são os déficits, leiam-se dívidas, que os governos tem sobre a felicidade
de sua população. Estes, por sua vez, permitem inferir sobre os resultados
diferenciados nos níveis de felicidade em cada um dos países a partir de cada
Propostas para o dereito à cidade 85
uma das concepções da mesma. Ou seja, o déficit de participação se refere ao
âmbito da pertinência a uma comunidade, o déficit de redistribuição sobre as
boas condições de vida e o déficit de reconhecimento em relação à felicidade
como gozo subjetivo da vida. Os déficits identificados são:
Déficit de participação: Corresponde a perda de legitimidade e eficiência que
apresentam as políticas públicas ao estar afastadas demais da participação
direta da população. O processo de formação de políticas públicas se fechou.
Portanto, as mesmas tentativas das políticas de revitalizar a participação não
somente tem efeitos marginais e sim reforçam a despolitização social e uma
maior corporativização do aparelho do estado (Cunill, 1997.)
Déficit de redistribuição: Apesar da obtenção de importantes reduções nos níveis
de pobreza, esta não foi acompanhada de políticas públicas de redistribuição
de proteção social.Nas palavras de Hopenhayn (2006), na região persistem
fatores estruturais de nossas sociedades e economias, como a segmentação
pela inserção produtiva e fatores territoriais e as agudas iniquidades no acesso
a ativos e patrimônios, tudo o que perpetua e reforça as desigualdades.
Déficit de reconhecimento: Se o déficit anterior se relaciona ao bem-estar material,
este se refere ao mundo de referências das famílias. A exclusão com processo
que regula a diferença como condição de não inclusão (Fleury, 1998) se
materializa em programas sociais que, em sua maioria, não consideram as
subjetividades dos sujeitos, desentendendo-se do conteúdo simbólico que
devem conter as políticas públicas.
O déficit atual de muitas políticas públicas é dedicar-se à entrega de um bem
ou serviço, como se o simples acesso garantisse espaços de possibilidades para
a satisfação do ser humano, ao invés de pensar sobre a instalação (construção)
de capacidades que permitam o desenvolvimento de ações de bem estar
de, e pelas famílias ao longo do tempo. Assim uma política pública, com um
horizonte de felicidade, deveria ser avaliada em termos de sua eficiência em
proporcionar capacidades instaladas no seu espaço de intervenção; a capacidade
que proporciona às famílias para efetuar um ato valioso para si e seu coletivo,
integrando sua ação individual, as condições territoriais e a avaliação que realiza
de seu próprio ato.
Os desafios nos próximos anos para os governos eleitos na América Latina
estarão centrados em aprofundar a qualidade, o conteúdo das políticas,
programas e planos sociais. O caminho tomado até hoje por certos governos
vem possibilitando a cobertura massiva de necessidades básicas insatisfeitas,
porém à custa de impactos negativos nas famílias, às vezes invisíveis ao olhar
do estado e dos criadores das políticas públicas. Frente a estes desafios, não
basta redirecionar as políticas desenvolvidas até agora e sim é imprescindível
86 Cidades para tod@s
repensar sobre o horizonte das estratégias de desenvolvimento e, portanto, sobre
o horizonte de vida que queremos. A felicidade neste sentido é uma ideia-força
e um amplo campo de estudo para definir o caminho das ações governamentais,
que deverão ir buscando a redistribuição, o reconhecimento e a participação.
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Os direitos nas cidades e o direito à cidade?
Peter Marcuse
“Os direitos” e o direito à cidade
Existe uma diferença entre “os direitos nas cidades” (no plural) e o direito à
cidade (no singular). Uma diferença entre as formas em que se usa esse último em
diferentes “Cartas do direito à cidade” e o sentido radical que lhe foi conferido
por Henri Lefebvre quando, em 1968, o conceito nasceu nas ruas de Paris, no viés
da teoria urbana crítica que seguiu adiante. A diferença entre o plural e o singular
é significativa no que se refere aos “direitos” e também às “cidades”. Reflete
uma diferença política e estratégica que dá conta do alcance das aspirações e da
natureza das visões – e da situação estratégica na qual se emprega – por parte dos
diferentes usuários.
Segundo o uso que lhe deu Lefebvre “o direito à cidade” é um grito, uma
demanda, uma reivindicação. Trata-se de um slogan político, com o objetivo de
ampliar o âmbito das demandas de mudança social para englobar a visão de uma
sociedade diferente, segundo a qual, em seus escritos, “o urbano” costumava ser
sinônimo.
“o direito à cidade é como um grito e uma demanda… não pode ser concebido
como um simples direito de visita ou um retrocesso às cidades tradicionais.
Somente pode ser formulado como um direito transformado e renovado à
vida urbana como o lugar ‘urbano’ de encontro, prioridade do valor de uso,
inscrição num espaço temporal elevado ao posto de recurso supremo entre
todos os recursos.” 1
1
Lefebvre, Henri. 1996 [1967]. “El derecho a la ciudad”. En Writings on Cities, ed. Eleonore Kofman
y Elizabeth Lebas, Londres: Blackwell, P. 158
90 Cidades para tod@s
Lefebvre chega a dizer num dado momento:
“…daqui por diante não me referirei à cidade, mas sim ao urbano”. 2
Para Lefebvre, consequentemente, o direito à cidade significa o direito a
viver numa sociedade onde todas as pessoas têm a mesma liberdade para
satisfazer seus próprios desejos e onde todos recebem apoio para fazê-lo. A frase
adotada por David Harvey “a cidade do desejo mais íntimo do coração” tem
um sentido semelhante: “a cidade” é uma maneira de fazer referência àquela
sociedade particularmente adequada para Lefebvre porque incorpora sua
visão de urbanidade, das relações sociais, físicas e econômicas entre as pessoas
dentro de uma sociedade plenamente desenvolvida orientada ao humano, cuja
possibilidade é abordada até agora, na sua maior expressão, nas cidades da vida
contemporânea.
Entretanto, Lefebvre não considera estas cidades contemporâneas como “a
cidade” sobre a qual reclamou o direito. Usa o singular, “a cidade”; não busca
a inclusão nas cidades plurais de hoje, mas sim uma nova urbe que ainda deve
ser criada, tomando-se como base as sementes das cidades de hoje. De modo
que se trata de um direito à “cidade”, não às “cidades”. A teoria urbana crítica
– notavelmente desenvolvida por David Harvey, mas também com uma ampla
tradição na geografia, economia política, planejamento urbano e sociologia –
seguiu esta perspectiva de forma bastante produtiva.
Aquele uso pode ser contrastado com outras formulações que costumam
referir-se ao plural. Muitas cartas, manifestos e plataformas enumeram os
direitos que são exigidos: moradia, água potável, meio ambiente ecologicamente
sustentável, participação na tomada de decisões, emprego, educação, recreação e
liberdade de expressão e reunião. São direitos “plurais” e certamente concordam
com a demanda do direito à “cidade” no sentido unitário a que se referia
Lefebvre. Não obstante, são parciais; a demanda de Lefebvre de algum modo vai
em direção ao unitário. Um aspecto pode ser um passo importante para o outro,
mas são diferentes e possuem formulações diversas. 3
A distinção tem três consequências políticas diretas. A primeira é organizacional:
relaciona-se com a natureza das forças, grupos e organizações com um interesse
comum na reivindicação do direito e a idéia de que não se demanda um direito
separadamente, mas sim, na realidade, um que inclua todos e possa servir de
2
3
Lefebvre, Henri. 2003 (1970). La revolución urbana. Prólogo de Neil Smith. Traducido por Robert
Bononno. Editorial de la Universidad de Minnesota, p. 45.
Para acessar uma exposição contundente dos possíveis riscos da formulação plural pode
consultar Mayer, Margit. 2009. “The ‘Right to the City’ in the Context of Shifting Mottos of Urban
Social Movements,” City: Analysis of urban trends, culture, theory, policy, action, Volume 13, no.
2-3, junho-setembro de 2009.
Propostas para o dereito à cidade 91
base para unir os seus defensores separados. Os sem-terra pedem terra; os semteto demandam moradia; os desempregados demandam um emprego decente
e satisfatório; as forças criativas demandam liberdade artística; as pessoas com
capacidades diferentes demandam a adaptação às suas necessidades; todos
demandam que seu meio-ambiente possua beleza, acesso à natureza e aos
serviços de saúde. Contudo, não se tratam de demandas separadas com uma
visão unitária, uma vez que estão essencialmente vinculadas, não somente no
que se refere à visão da cidade, que pode satisfazer suas necessidades, mas
também sob a análise do motivo de que hoje não existem, que forças impedem
sua concretização e que forças, grupos e pessoas têm o interesse comum para
cumprir suas múltiplas metas. De modo que a primeira implicação da distinção
é a importância estratégica de vincular os direitos separados num movimento
por um direito único que englobe a todos; uma implicação que começa com o
desenvolvimento de coalizões, mas que na realidade é um movimento que une
aqueles que, fundamentalmente, têm interesses comuns. As coalizões consistem
em grupos que acordam apoiar os interesses separados dos demais para o
benefício estratégico mútuo. Um movimento pelo direito à cidade une aqueles
que contam com um interesse em comum, embora no início tenham prioridades
práticas diferentes.
A segunda importância da distinção é analítica: a visão unitária impulsiona a
análise de um entendimento do sistema em sua totalidade. É a segunda implicação
política da distinção entre a visão unitária e plural da demanda. Dá lugar a um
exame do que move o sistema, do que produz as dificuldades e benefícios que
atinge, quais são suas debilidades e forças mais além de uma simples análise
das causas dos problemas particulares e produtos dos subsistemas. Fala-se com
freqüência do perigo da cooptação das campanhas feitas separadamente em
prol de direitos separados: os artistas que se opõem à gentrificação a promovem
quando são beneficiados, os trabalhadores que desejam encontrar trabalho em
fábricas que contaminam, os adultos idosos que apóiam programas de saúde que
designam recursos a seu favor, as minorias particulares que estão dispostas a se
incorporarem a estruturas políticas que excluam outras e os desempregados que
resistem às reformas imigratórias que consideram negativas para seus interesses.
Entretanto, uma visão unitária do sistema é útil para esclarecer que tais interesses
são superficialmente opostos e que todos os setores têm o interesse profundo
em trabalhar unidos para atingir uma única cidade que satisfaça todas as suas
necessidades.
A terceira importância da distinção consiste em que a visão unitária aumenta
a aposta e representa a esperança de maiores benefícios e um futuro promissor,
que não se limita a evitar um problema em particular, mas que dê lugar a um
mundo completamente diferente e melhor. Neste sentido, reforça o sentido
do slogan “Outro mundo é possível” e apela à sua criação. Pode proporcionar
92 Cidades para tod@s
uma motivação, uma inspiração e uma justificativa para um compromisso que
se estenda mais além de reparar males individuais. Mudar sua visão para uma
totalmente nova pode parecer utópico na experiência cotidiana, mas deve estar
constantemente presente num segundo plano quando se deseja manter uma
perspectiva positiva permanente. A linguagem das “cartas” e “direito/s” talvez
não seja o mais correto. Se fosse possível recomeçar poder-se-ia utilizar os termos
“Declaração de direitos” e “Carta por uma nova cidade” para diferenciar um
documento que aborda os direitos exigidos na cidade atual de outro que fala, em
última instância, da natureza da cidade que se busca. Tal uso seria análogo ao uso
convencional dos termos: as “declarações” devem entrar com efeito imediato; as
“cartas” se usam como base para construir algo novo. A definição de “O direito
à cidade” por parte de Lefebvre, neste contexto, combina ambos os termos;
juntam o interesse tanto pelos direitos na cidade atual como a forma de uma nova
cidade alternativa (como se expressa em “Outro mundo é possível”). Devemos
deixar claro que se trata de dois significados diferentes, embora se reafirmem
mutuamente.
No uso cotidiano dentro dos Estados Unidos, a exigência do direito à cidade
se considera como imediata, embora seu enfoque seja uma meta mais geral. Não
se considera como uma exigência pela qual todas as pessoas devam lutar no
presente. Alguns já contam com todos os direitos estabelecidos nas formulações
plurais; são aqueles que se baseiam neles os que necessitam obtê-los. Com efeito,
em última instância, todos contarão com eles numa cidade nova e alternativa, mas
no caminho para alcançá-la podem ser especificados os grupos que necessitam
de mobilização para conseguir seus objetivos. Sempre deve haver a consciência
de que a obtenção dos direitos passa pela luta e conflito entre os que ainda não
os conseguiram e os reivindicam e os que já contam com eles e podem vê-los
ameaçados. O direito à cidade para todos, o direito unitário, será alcançado numa
cidade diferente, uma cidade nova e humana, cuja carta incluirá todos os direitos
no plural. Entretanto, a declaração de que todos eles são demandados é uma
maneira de abrir caminho para sua implementação para todos na cidade que
ainda não se criou; aquela da visão de Lefebvre.
É necessário demandar, proteger e lutar pelos diversos direitos na cidade.
Chegarão a concretizarem-se finalmente em plenitude quando se alcance o direito
à cidade.
O movimento pelo direito à cidade como teoria urbana crítica em ação
Para ir mais além do uso do direito à cidade na teoria, nas cartas e como slogans,
é vital observar como o empregaram na prática as organizações cujo propósito é
apelar diretamente para a sua implementação. A questão dos agentes de mudança
tem chamado a atenção dos radicais desde princípios do século XIX. Marx e
Propostas para o dereito à cidade 93
Engels sustentavam que se tratava do proletariado revolucionário. Outros, na
mesma época ou posteriormente, não se inclinavam tanto a atribuir um papel
tão singular ao proletariado e a mudança das formas econômicas reduziu
constantemente o possível impacto até o ponto em que Andre Gorz escreveu, em
1980, “Adieu au Prolétariat”. Atualmente, considera-se em diferentes medidas
que a classe trabalhadora é necessária como parte dos esforços em prol da
mudança social, mas a magnitude de seu papel é bastante discutida. A maioria
concorda que é necessária, mas também que não é suficiente.
O movimento pelo direito à cidade não se considera a si mesmo um substituto
da organização do proletariado, mas sim oferece uma fonte de respaldo diferente
para a mudança estrutural no primeiro plano. Segundo a palavra de alguns de
seus partidários, “[a Aliança nos Estados Unidos pelo] Direito à cidade considera
importantes as políticas a nível de bairro e de cidade, ao passo que reconhece
que em si mesmas não são suficientes para atacar os alicerces estruturais da
desigualdade e da [in]justiça.” 4
O movimento do direito à cidade é produto de uma tendência relativamente
recente na teoria crítica, que colocou a urbanização e “o urbano” no primeiro
plano do conflito e da mudança social. A classe de papel que assumirá “o urbano”
naquele cenário não está tão clara. Henri Lefebvre usava com freqüência o
“urbano” e “a cidade” como substituto para a sociedade completa, que enfatizava
a importância da vida cotidiana e o terreno onde se levava a cabo. A Aliança
pelo Direito à Cidade considera que seu papel está centrado nos conflitos nas
cidades, mas não deixa explícita a relação entre aqueles conflitos e movimentos
em prol da mudança social mais ampla. Três pessoas estreitamente relacionadas
à Aliança têm usado formulações algo inconsistentes: “[a Aliança foi] um
meio para… reelaborar a escala central da luta social do global ao urbano… A
cidade está se convertendo num terreno básico para o conflito social… Nossa
meta é construir um movimento urbano nacional… ”. A cidade é um espaço
de conflito, e uma das partes tem sua origem naquele espaço. Porém agregam:
“Para muitas organizações, o conceito do direito à cidade revela as limitações
das lutas em pequena escala, centra-se na colonização de comunidades inteiras
e destaca as dimensões nacionais e internacionais dos desafios locais” 5. Tanto o
especificamente urbano como o necessariamente nacional e global tem relação na
prática, porém nem sempre a interação é simples.
Argumentei, num artigo anterior6, que os protagonistas da luta por um mundo
4
5
6
Leavitt, Jacqueline. 2009. “El Derecho a la Ciudad crea una Alianza y se enfrenta a los alcaldes”.
Progressive Planning, no. 180, verano, p. 19.
Leavitt, Jacqueline, Tony Samara y Marnie Brady. 2009. “Right to the City: Social Movement and
Theory.” Poverty and Race, Vol 18, No. 5. septiembre/octubre, p. 3-4.
Marcuse, Peter. 2009. “From Critical Urban Theory to the Right to the City,” CITY: Analysis of
urban trends, culture, theory, policy, action.” Vo. 13, no. 2-3, junio-septiembre, pp. 185-197.
94 Cidades para tod@s
melhor, por outro mundo possível, serão tanto os materialmente prejudicados e
despossuídos de hoje como os distanciados pelas restrições que lhes impõe a
sociedade atual para o desenvolvimento e a liberdade individual. A eles, sem
dúvida, devem-se agregar as filas dos que carecem de segurança, cada vez mais,
num período de crise econômica. À margem das privações e fundamentalmente
alienados por motivos que sistematicamente são ocultados, acham-se
impulsionados a adotar posições conservadoras e fundamentalistas como
resposta, porém seus próprios interesses são afins a aqueles dos despossuídos e
distanciados da política. O “Urbano” é, em grande medida, uma característica de
todos os grupos, porém a eles se unem muitos que não são urbanos no sentido
clássico.
Hoje existem muitas lutas em nosso caminho para atingir um mundo melhor
que é possível; as cidades para as pessoas e não para o lucro. Somente se todos
os que sofrem as adversidades dos acordos sociais se unirem e atuarem contra
elas será possível que a sorte mude efetivamente e essas outras cidades possíveis
tornem-se realidade.
A Aliança Nacional pelo Direito à Cidade nos Estados Unidos
Entre as implicações da Teoria Crítica aplicada às questões urbanas existem cinco
destaques:
• Os problemas urbanos não são um conjunto de dificuldades isoladas e
independentes, mas sim surgem das estruturas econômicas, políticas e
sociais fundamentais das cidades e sociedades onde existem.
• Em cada questão separada é necessária a ação imediata, organizada e
radical.
• Tal ação deve estar publicamente vinculada com as causas estruturais e
somada a uma estratégia integral para a mudança estrutural.
• Para mudar efetivamente aquelas estruturas e combater as forças que as
apóiam, os esforços combinados de todas as pessoas e grupos por elas
prejudicados, dos despossuídos aos distanciados da política e inseguros,
devem estar reunidos num esforço comum em prol de uma meta única
e específica.
• Tal esforço deve basear-se na participação democrática plena e na liderança
daqueles cujos interesses materiais vinculam-se necessariamente com a
demanda de mudança estrutural.
Atualmente, movimento pelo direito à cidade no âmbito urbano se aproxima o
máximo possível de uma organização que adota essa perspectiva e a implementa
em ações concretas (o Fórum Urbano Mundial pode ser considerado uma espécie
de paralelo na escala internacional). Embora existam movimentos paralelos
em muitos outros países e outras organizações que continuam um caminho
Propostas para o dereito à cidade 95
semelhante, alguns muito anteriores aos movimentos pelo direito à cidade, em
seguida concentro-me na experiência dos Estados Unidos.
Na realidade, o conceito do direito à cidade provém diretamente do princípio
teórico, talvez do fundador da Teoria Urbana Crítica, Henri Lefebvre. Foi um
professor de sociologia que escreveu grande quantidade de material sobre as
cidades, o espaço, a vida cotidiana e as reivindicações de uma cidade e de uma
vida melhor. As três implicações mencionadas da Teoria baseiam-se em seu
trabalho teórico, notavelmente influenciado pelos acontecimentos de 1968, em
Paris, quando os estudantes e trabalhadores juntos estiveram perto de criar uma
revolução a nível nacional, inspirando inúmeros movimentos e ações posteriores.
O seguinte está baseado na experiência nos Estados Unidos, mais especificamente
na Aliança pelo Direito à Cidade em Nova Iorque, pois é o que conheço melhor.
Não se pretende sugerir que qualquer uma das experiências descritas seja mais
importante que muitas outras ações concretizadas em diversos lugares durante
o mesmo período.
A Aliança pelo Direito à Cidade nos Estados Unidos7 foi fundada numa reunião
de aproximadamente trinta organizações e quatorze “pessoas de recursos” em
janeiro de 2007 em Los Angeles8. Começou com um compromisso claro e direito
a partir do 5º princípio mencionado, formulado do seguinte modo:
Membros chave: Organizações dentro de cidades/regiões dedicadas ao direito
à cidade que conformam uma estrutura de líderes de base nas comunidades de
classe trabalhadora, multirraciais para questionar estrategicamente as políticas
econômicas neoliberais.9
Ao explicar a política, Gihan Perrera, co-fundador da Aliança, implicitamente
ampliou o âmbito das organizações do seguinte modo:
Todos os grupos congregados enfrentam enormes pressões de remoção e
gentrificação de suas comunidades. Exploramos as maneiras nas quais o
neoliberalismo e as privatizações do uso do solo entregaram nossas cidades
aos promotores. Discutimos sobre nossas lutas por moradia, uso do espaço
tradicional e contra a urbanização depredadora. Descobrimos que impulsionar
a afirmação ativa e simples de nossos direitos fazia uma grande diferença na
compreensão de nosso trabalho em curso. E logo reconhecemos que muitas
questões pelas quais lutamos em nossas cidades: moradia, transporte,
educação, direitos ao espaço das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais
7
8
9
Parte da informação apresentada em seguida e grande parte do incentivo para escrever este
debate e enfoque surgem das conversações e da leitura dos escritos de Jacqueline Leavitt,
“recurso/aliada” do grupo de Los Angeles.
www.tidesfoundation.org/fileadmin/tf_pdfs/TheRightToTheCity.pdf
www.righttothecity.org/WhoWeAre.html.
96 Cidades para tod@s
e transexuais) e os direitos à cultura estavam intimamente relacionados.
Simplesmente necessitamos uma forma coletiva de falar sobre a questão,
planejar e desenvolver nosso poder com termos comuns. Assim criou-se a
Aliança pelo Direito à Cidade para poder desenvolver o poder a nível local
como contribuição a uma agenda nacional para nossas cidades. De modo que,
um dia, possamos acumular o poder suficiente para apoiar aos nossos irmãos
e irmãs do sul e clamar por justiça a nível global para toda a humanidade.10
Outros grupos são bem-vindos, porém se defende firmemente a liderança dos
Membros-chaves. Os demais partidários podem ser:
Membros de recursos/aliados: Pessoas e organizações que apóiam ativamente
organizações que desenvolvam as bases por meio da assistência técnica, legal,
pesquisa e meios além da arrecadação de fundos.
Membros gerais: Pessoas ou organizações comprometidas com os princípios de
unidade do direito à cidade.
Nos seus Princípios de Unidade iniciais, a Aliança faz referência aos direitos
daqueles que já descrevi11, na falta de um termo melhor, como os despossuídos:
comunidades de classe trabalhadora multirraciais, mulheres, homossexuais
e transexuais, povos indígenas, pessoas que vivem no campo, imigrantes,
arrendatários e pessoas com HIV/AIDS.
As declarações da Aliança normalmente demandam os direitos relacionados
com a permanência, contra a remoção (em virtude da gentrificação), educação,
moradia, salários decentes, participação democrática plena, qualidade do meioambiente e saúde.
Ficam claros quais são os interesses envolvidos e em que camada de uma
divisão de poder fundamental estão. O direito à cidade é para aqueles que não
têm poder; os que o têm já contam com os direitos e costumam usá-lo para negálos aos demais.
A Aliança se considera, na prática, como mais do que uma Aliança:
Porém acredito que já não podemos continuar operando a este nível sob o
interesse pessoal, porque se não nos amparamos num nível superior, a coalizão
se limitará apenas ao interesse pessoal.12
Esse nível superior é o marco teórico para o qual contribui o direito à cidade,
uma análise que se fundamenta na aplicação da teoria urbana crítica.
10 www.urbanhabitat.org/node/1806
11 En Marcuse, Peter. 2009, supra.
12 El derecho a la ciudad: Una publicación de Tides Foundation, n.d, .pp. 24.
Propostas para o dereito à cidade 97
O exemplo de Nova Iorque
Para tomar a Aliança pelo Direito à Cidade de Nova Iorque13 como exemplo
a nível local e nos concentrarmos no modo em que as ações e as políticas do
grupo têm refletido ou não nas contribuições da teoria crítica, as organizações
integrantes locais de Nova Iorque refletem a gama de grupos e interesses a nível
nacional. Os grupos são14:
CAAAV,15 Comitê Contra a Violência Anti-Asiática foi fundado em 1986
como um dos primeiros grupos nos EUA a mobilizar as comunidades asiáticas
para lutar contra a violência policial e outras formas de agressão racial. Com o
passar do tempo, CAAAV ampliou seu enfoque para abordar a ampla variedade
de necessidades, desafios e injustiças enfrentados pelas comunidades asiáticas
de baixa renda e pelos desempregados de Nova Iorque, como a gentrificação,
exploração do trabalho, pobreza, detenção e deportação de imigrantes e
criminalização dos jovens. 16
CVH,17 Vozes da Comunidade é uma organização de pessoas de baixa renda,
muitas com experiência nos sistemas de assistência pública, que trabalham pra
criar poder na Cidade e no Estado de Nova Iorque com o fim de melhorar a
vida de nossas famílias e comunidades. Atualmente, CVH trabalha na reforma
da assistência social, desenvolvimento dos trabalhadores, criação de empregos,
preservação e melhoramento da moradia pública, moradia popular acessível
e outras questões de justiça econômica que afetam as pessoas de baixa renda,
particularmente as mulheres negras. 18 19
13 Jacqueline Leavitt, em Progressive Plannning, verão de 2009, colocou a disposição uma
descrição mais detalhada e pesquisada com maior profundidade da Aliança em Los Angeles,
baseando-se na pesquisa participativa e abundantes entrevistas. Pode-se consultar também a
Jacqueline Leavitt, Tony Roshan Samara e Marnie Brady, “The Right to the City Alliance: Time to
Democratize Urban Governance,” Progressive Planning, outono 2009, pp. 4-10, para acessar uma
descrição condensada das Alianças de Los Angeles e Nova Iorque.
14 Todas as descrições provêm da literatura impressa e dos sites das respectivas organizações, sendo
levemente editadas para torná-las mais concisas.
15 Committee Against Anti-Asian Violence em inglês
16 www.caaav.org
17 Community Voices Heard en inglés
18 www.cvhaction.org.
19 Historicamente, as organizações de beneficiários da assistência social, como a Organização
Nacional pelos Direitos de Beneficência, estiveram entre seus defensores mais militantes.
Encontram-se entre os mais pobres das cidades. O horizonte de CVH conta com enfoques mais
antigos como estes, porém progrediram eminentemente.
98 Cidades para tod@s
FIERCE,20 através de seu trabalho busca outorgar poder aos jovens negros de
Nova Iorque que são lésbicas, gays, bissexuais, transexuais(LGBTQ). FIERCE se
dedica a cultivar a próxima geração de líderes do movimento pela justiça social,
concentrando-se em terminar com todas as formas de opressão. Por meio de uma
de suas campanhas atuais para estabelecer um centro para os jovens LGBTQ no
Pier 40, conseguiram ajudar a criar uma ampla coalizão comunitária em West
Village que deteve a privatização de terrenos e de recursos públicos. 21
FUREE,22 Famílias Unidas pela Igualdade Racial e Econômica, é uma
organização multirracial com sede no Brooklyn conformada quase que
completamente por mulheres negras. FUREE organiza as famílias de baixa renda
para atingir o poder necessário para mudar o sistema, de modo que se valorize
o trabalho de todos. Além disso, luta para que todos contem com o direito e os
meios econômicos para tomar decisões e viver seus próprios destinos.23
GOLES24 é uma organização com mais de 30 anos em prol de moradia,
preservação dos bairros dedicada aos direitos dos arrendatários, a evitar a falta
de moradia, ao desenvolvimento econômico e à revitalização comunitária.
GOLES tem trabalhado para dar poder aos residentes de baixa renda de Lower
East Side, abordando a remoção e a gentrificação, buscando preservar e expandir
a disponibilidade de habitações acessíveis e reivindicar a autodeterminação da
comunidade no que se refere ao desenvolvimento do bairro. 25
CONSTRUINDO O CAMINHO NY26 promove a justiça econômica, a
equidade e as oportunidades para os nova-iorquinos por meio da organização
comunitária e eleitoral, a defesa de políticas estratégicas, o desenvolvimento de
liderança, a educação para jovens e adultos e serviços jurídicos e de apoio de alta
qualidade. 27
MOM, Mães em Movimento28 foi fundada em 1992 por mães em busca de
igualdade na educação para seus filhos. Atualmente, MOM é sede de comitês de
moradia, jovens e justiça meio-ambiental. É uma organização dirigida por seus
20
21
22
23
24
25
26
27
28
Fabulous Independent Educated Radicals for Community Empowerment
www.fiercenyc.org/
Fabulous Independent Educated Radicals for Community Empowerment
www.furee.org/
Good Old Lower East Side
www.furee.org/
Make the Road NY
www.maketheroadny.org/
MOM, Mothers on the Move
Propostas para o dereito à cidade 99
membros localizada em South Bronx. Realiza campanhas para atingir conquistas
imediatas e ao mesmo tempo aborda as políticas e raízes da desigualdade. MOM
é um catalisador de movimentos; cria e participa em alianças que alavancam
mais poder para as organizações em prol da justiça social. 29
NYCAHN, New York City AIDS Housing Network, é uma organização de
afiliados dirigida por pessoas de baixa renda com HIV/AIDS que trabalha com
as agências que lhes oferecem serviços. Dedica-se a tratar as causas fundamentais
da epidemia por meio da organização comunitária e a ação direta. 30
Imagem dos sem-teto31 foi fundada e é dirigida por pessoas sem-teto que
se negam a ser esquecidos e demandam que suas vozes sejam ouvidas e suas
habilidades consideradas. A organização trabalha para mudar as leis e políticas
vigentes, além de questionar as causas fundamentais da falta de moradia. 32
WE ACT - WE ACT for Environmental Justice (West Harlem Environmental
Action, Inc.) é uma organização comunitária sem fins lucrativos que luta pela
justiça meio-ambiental dedicada a outorgar poder à comunidade para enfrentar
o racismo meio-ambiental e melhorar a salubridade, proteção e políticas meioambientais nas comunidades negras. 33
Que generalizações podem ser feitas sobre tais grupos, seus programas e sua
relação com o marco teórico do direito à cidade?
Quase todos os grupos têm uma base sólida nas identidades as quais se
atribuem características negativas e envolvem a superação desses aspectos em
seu trabalho. Elevam o orgulho de suas identidades e insistem em que uma
confiança maior gerará resultados positivos: que se veja a “imagem dos semteto”, que se ouçam as “vozes da comunidade”.
Todos os grupos se preocupam que suas identidades não estejam separadas
e isoladas. Para evitar o separatismo no que se refere ao comunitarismo,
“participar de alianças”, “desenvolver coalizões… com ampla base de apoio”,
“criar um movimento… pela justiça social”.
Todos os grupos se enfocam naqueles que se encontram numa situação
econômica em particular; o termo mais usado é “de baixa renda”.
29
30
31
32
33
www.mothersonthemove.org
www.nycahn.org/
Picture The Homeless
www.picturethehomeless.org/
www.weact.org/
100 Cidades para tod@s
Todos os grupos afirmam que suas metas se relacionam com “justiça social”,
“equidade” e “desigualdade”.
Todos os grupos consideram que seu trabalho questiona o poder para “mudar
leis”, “expandir o poder” e “criar poder”.
Quase todos os grupos consideram que a ação militante e “direta” é o meio
para alcançar seu objetivo.
Quase todos os grupos formulam, em termos gerais, uma visão de suas metas
como o caminho para um programa mais geral que possa ser compartilhado
com outros grupos. A forma mais comum de expressar a meta em termos gerais
é “acabar com todas as formas de opressão” e abordar “as causas fundamentais”
dos problemas particulares nos quais estão enfocadas. Evidentemente, sua
integração numa aliança dedicada a cumprir com o “o direito à cidade” é uma
reafirmação dessas metas.
É necessário demandar, proteger e lutar pelos diversos direitos à cidade. Serão
plenamente concretizados quando se atinja o direito à cidade. Talvez fosse útil
agregar uma simples declaração a qualquer citação dos direitos separadamente,
buscados na urbe em diversos pronunciamento ou cartas:
Reconhecemos que cada um destes direitos está vinculado integralmente com
os demais. Já que consideramos que outro mundo é possível, também cremos que
outra forma de vida urbana é possível, dentro e fora das cidades. Alguns, uma
minoria, já contam com a coleção completa dos direitos à cidade, frequentemente
em detrimento dos demais, da vasta maioria das pessoas. Considerando esse
conflito, pensamos que este chamado pelos direitos na cidade representa aqueles
que não contam com os mesmos. Acreditamos que uma posição que apóie
diretamente os direitos da maioria e que, necessariamente, limite os “direitos”
dos demais a explorá-los e dominá-los, é justa e, em última instância, benéfica
para todos.
Propostas para o dereito à cidade 101
Bibliografía
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Marcuse, Peter. 2009. “From Critical Urban Theory to the Right to the City,” CITY: Analysis
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Volume 13, no. 2-3, June-September 2009.
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www.picturethehomeless.org/
www.righttothecity.org/WhoWeAre.html
www.tidesfoundation.org/fileadmin/tf_pdfs/TheRightToTheCity.pdf
www.urbanhabitat.org/node/1806
www.weact.org/
Uma nova aliança para a cidade? Oportunidades e
desafios da globalização do movimento pelo direito
à cidade
Giuseppe Caruso
Nas páginas seguintes formulo perguntas presentes no debate sobre o direito
à cidade como visão, movimento e potencial aliança global. Além disso, desejo
contribuir com algumas ideias surgidas do intercâmbio criativo entre ativistas
dos movimentos sociais e acadêmicos. Estas ideias e experiências farão referência
especificamente à contribuição à prática e à teoria (prática ‘como’ teoria e
vice-versa), proporcionada pelo Fórum Social Mundial (FSM), sem dúvida a
iniciativa mais importante dos movimentos sociais globais e das organizações da
sociedade civil na última década. Penso que a experiência criada coletivamente,
compartilhada e implementada no espaço facilitado pelos eventos e processos do
FSM pode ser de importância decisiva para o movimento pelo direito à cidade.
Isso porque se trata de uma plataforma em constante processo de globalização. A
experiência do FSM se refere, entre outras coisas, a estratégias e problematizações
de diferenças e conflitos; a capacidade de superar a convivência com profundas e,
às vezes, ameaçadoras divisões, como aquelas que se criam entre ativistas urbanos,
entre lutas e campanhas radicais e moderadas, entre ações mais transformadoras
e mais paliativas; à proposta de abrir caminho ao andar; e à prática diária de
facilitar dinâmicas participativas que contribuam para a criação do outro mundo
sonhado. Estas contribuições não pretendem ser receitas, mas sim representam
um espaço de compromisso comum, como o do FSM, no qual o movimento pelo
direito à cidade pode ser expandido. É um espaço de oportunidades e desafios
que estimula os ativistas motivados por sua liberdade de viver em paz e pela
dignidade nas cidades globais, cada vez mais exclusivas.
As perguntas cruciais
Uma primeira pergunta – que circula na ampla rede de ativistas urbanos e
acadêmicos – indaga sobre a existência de algo que possamos considerar como
104 Cidades para tod@s
um movimento global pelo direito à cidade. De maneira recorrente os ativistas
se perguntam sobre as condições necessárias para que vários movimentos – que
trabalham em temas de acesso, inclusão, cidadania e direitos – possam formar
um movimento pelo direito à cidade. De sua parte, alguns questionam o uso da
palavra ‘movimento’ e sugerem que a falta de liderança, ou coordenação central,
e de uma agenda compartilhada põe em cheque a ideia de um movimento
coerente; porém, ao mesmo tempo, abre espaços de análise e ativismo. Nesse
sentido, é possível que o conceito de ‘rede’ descreva melhor esta dispersão de
atores. Mais além dos debates, frequentemente impenetráveis, sobre o marco
teórico ou enfoques da análise a aplicar para compreender as origens, a natureza
e as possíveis implicações do ativismo cotidiano no planeta, entre outros, de
moradores de assentamentos precários ou de rua, cabe a pergunta se existe uma
intenção convergente para uma plataforma compartilhada, uma aliança política
ou para um espaço de encontro. Em outras palavras, existe entre os ativistas um
desejo de facilitar a potencial formação de um ator global pelo direito à cidade? Se
essa convergência de propósitos é real, quais são então as condições necessárias
para gerar um processo como esse? Quais seriam os valores compartilhados
daqueles movimentos e qual seria o processo mediante o qual se negociaria uma
convergência de valores e práticas? Em cada passo do presente exercício surgem
mais perguntas, demonstrando as complexidades das oportunidades para a
análise e inclusive as dinâmicas atuais de luta, campanha e organização.
Abordarei estas perguntas contanto experiências que se deram no contexto
do FSM, na condição de espaços de convergência e desenvolvimento de alianças
entre redes e movimentos. Considero que este exercício é legítimo e relevante
porque foi produzida uma mobilização deliberada pelo direito à cidade no seio
do FSM desde 2003. Mais importante ainda é a centralidade da reflexão e prática
facilitadas pelo FSM nos temas relacionados ao desenvolvimento de movimentos
e suas alternativas espaciais (redes e espaços abertos) e as condições para a
criação de convergências afirmativas. Neste sentido, ativistas do FSM sutilmente
abordaram (não sempre com êxito imediato ou evidente) aspectos da negociação
de diferenças num patrimônio compartilhado de práticas culturais e políticas,
como agora no caso do crescimento do movimento pelo direito à cidade. Sugiro
que este patrimônio compartilhado e as experiências recentes de negociação de
diferenças e de desenvolvimento de alianças no FSM podem ser úteis em prol da
criação um movimento forte pelo direito à cidade.
Um ‘movimento’ global pelo direito à cidade?
Começarei abordando a pergunta mais urgente: existe nesse momento algo que
possa ser considerado como um movimento global pelo direito à cidade? Seria
difícil responder afirmativamente de maneira convincente. Existem, no entanto,
Propostas para o dereito à cidade 105
vários círculos de organizações e redes já relacionadas que usam o slogan de
direito à cidade para mobilizar e descrever as metas de suas ações e campanhas.
Estes círculos também expressam um ‘ideal político’ segundo o qual os habitantes
excluídos da cidade podem ser partícipes de um projeto comum posterior a
emancipação (Harvey, 2008). Formam uma ampla rede que cobre grandes áreas
do mundo, mas que não conecta globalmente os diferentes atores.
A questão de definir o movimento não é de maneira alguma um assunto
‘acadêmico’ entediante, já que envolve não somente a categorização dos
acadêmicos, mas também a autopercepção dos que estão diretamente envolvidos
no movimento. Além disso, a discussão sobre a natureza e identidade das
convergências sempre gerou debates acalorados no seio dos movimentos, criando
tensões, conflitos e rupturas quando não se negocia com cuidado. Atualmente,
os debates sobre a natureza dos movimentos mundiais, entre eles o FSM,
mergulham profundamente entre os ativistas, embora frequentemente ocultos
atrás do racional e, em algumas ocasiões, perspicaz pensamento estratégico
e instrumental. Este debate talvez continue sendo dos mais interessantes já
propostos pelos ativistas, já que se refere a questões de autopercepção e identidade,
estreitamente relacionadas com seus valores fundamentais, o entendimento de
suas próprias necessidades, as oportunidades para abordá-las e as estratégias
para a mobilização. Ademais, relaciona-se com questões de conflitos e diferenças
e, num sentido mais amplo, com as práticas de negociação e transformação
destes conflitos. Quais são as principais posturas de ativismo transformador
atual? Quais poderiam ser suas principais implicações para a convergência,
seus membros e os processos de mudança que defendem? Em que medida isto
é relevante ao discutir as oportunidades e desafios de uma convergência global
pelo direito à cidade?
No FSM, o debate sobre o fórum como um espaço e/ou como um ator
protagonista tornou-se crucial tanto para os ativistas como para os acadêmicos.
Desde o início do processo, membros do FSM se questionaram sobre a índole de
sua iniciativa para saber se o FSM é um espaço de convergência, onde ativistas
e movimentos podem se relacionar, aprender juntos e apoiarem-se enquanto
consideram ações comuns; ou uma plataforma onde os movimentos devem
convergir para gerar somente uma agenda coordenada, implementada pelo
FSM como um todo. Os iniciadores do FSM vêm insistindo sobre a necessidade
de uma nova fórmula de ativismo global que considerasse as experiências de
décadas anteriores, por exemplo, para evitar repetir os erros que surgiram dos
movimentos infrutíferos de Maio de 681. Este debate é certamente relevante
também para o direito à cidade.
1
Foi precismaente no contexto do movimento de 1968 que Lefebvre formulou a convocatória do
movimento pelo direito à cidade.
106 Cidades para tod@s
Nas palavras de um de seus iniciadores, a ideia original do FSM – que gerou
a mais ampla convergência que pôde existir na história entre movimentos
sociais e organizações da sociedade civil – consistia em constituir-se como um
“espaço aberto” onde os ativistas poderiam se reunir num entorno seguro e
discutir as questões que considerassem mais importantes (Whitaker, 2005). Os
organizadores e facilitadores de tal espaço não dirigiriam nem manipulariam de
forma alguma essas discussões nem seus resultados, não proporcionariam uma
agenda nem slogans convocatórios; sobretudo, não constituiriam uma liderança
global, nem uma vanguarda do movimento. Além disso, os chamados à ação e os
manifestos seriam produtos do compromisso dos ativistas e dos movimentos no
espaço aberto. Esta proposta estava baseada afirmações: a debilidade estratégica
da esquerda global (em especial depois de 1989) devido a incapacidade de seus
quadros partidários para articular as demandas e propostas de suas bases; por
outro lado, a extraordinária riqueza criativa, social, cultural e política das lutas
que havia no mundo. Essa criatividade e a energia emancipadora deveriam
chamar a atenção do público e do maior número possível de ativistas, para que
pudessem sair da rotina local de suas lutas cotidianas além de gerar motivação,
reconhecimento e apoio (material e emocional).
Um ambiente de celebração e de encontro cordial foi o que conseguiu o
FSM numa experiência exitosa que continua atraindo centenas de milhares de
pessoas aos seus eventos. Enquanto se desenrolavam estes processos, ativistas
observavam com impaciência a urgência de gerar campanhas e ações efetivas
para derrotar o que se considerava um inimigo comum2, o capitalismo global
e o imperialismo ocidental (ou estadunidense). Segundo estes ativistas, reunirse e discutir em espaço aberto era uma atividade útil, no momento que o FSM
era capaz de enfocar toda esta energia para objetivos estrategicamente eleitos.
Tal esforço coordenado e concentrado certamente poderia constituir a única
maneira de derrubar ditaduras, derrotar impérios e, em última instância,
superar o capitalismo. Embora os defensores e proponentes do “espaço aberto”
consideraram anacrônico tal regresso a antigas práticas já comprovadas em
evidentes fracassos, os defensores do FSM, como um ator separado, consideram
os demais como ativistas moderados, cooptados pela linguagem do reformismo
e seguidores do jogo da política neoliberal hegemônica. Considerando que este
debate não desaparecerá, alguns sugeriram que este poderia provocar fissuras
no FSM, comprovando o fracasso de seu experimento original. Esta tentativa
de reunir os ativistas num espaço seguro, onde as diferenças são respeitadas
e valorizadas e onde as dinâmicas de opressão, abertas ou inconscientes, são
reproduzidas mesmo entre os ativistas, podem ser transformadas no processo de
criação de outro mundo possível, como afirma o slogan do FSM. Até o momento,
2
Esta não é uma posição consensual dentro do FSM.
Propostas para o dereito à cidade 107
trata-se da convocatória mais ambiciosa que um movimento social foi capaz de
gerar. O novo mundo não será imaginado nem planificado simplesmente em
debates eternos, tampouco nas mãos de um politburo reduzido; ao contrário, o
outro mundo possível que o FSM convoca será desenvolvido numa prática diária
do encontro. Deste modo, o caminho a este outro mundo possível se construirá
caminhando juntos, ao invés de ser imposto por um formato predefinido.
Certamente tal processo não é perfeito nem realmente emancipador para todos os
integrantes do FSM nem para os que o FSM deseja atrair no futuro. Este debate,
bem como a tensão que cria e representa, é de grande interesse no contexto atual
por duas razões afins: as tensões que cruzam e constituem o direito à cidade
e as estratégias de duas iniciativas, que se cruzaram e agora se encontram
entrelaçadas até certo ponto. A convocatória para um movimento global pelo
direito à cidade foi estabelecida pela primeira vez no espaço do FSM em 2003 e
desde então foi renovada em edições posteriores, além de cultivar e facilitar um
grau de convergência entre um número cada vez maior de ativistas. Por motivos
que certamente são exclusivos da articulação entre movimentos que lutam pelos
direitos e pela justiça no âmbito urbano, mas também em virtude da criação
de novas articulações dentro do espaço do FSM, as iniciativas desenvolvidas
incorporaram as energias criativas e também as contradições deste espaço. Os
debates coexistem em ambas as iniciativas, assim como as convocatórias urgentes
e as críticas sobre a produção de atores cooptados os quais são, talvez de maneira
involuntária, úteis para a reprodução do capitalismo, uma vez que traíram os
ideais iniciais do radicalismo e da mudança.
Uma aliança global pelo direito à cidade?
Considerando a natureza dos debates relativos à estrutura, organização e
identidade do FSM – particularmente dentro do seu Conselho Internacional –
cabe a pergunta se é possível criar uma aliança global pelo direito à cidade. Quais
são os desafios e oportunidades a considerar por aqueles que desejam facilitar a
convergência de uma aliança como esta?
Tratar de gerar uma força que possa resistir às mudanças radicais estabelecidas
pelo neoliberalismo e pela crise que este gerou é, sem dúvida, uma iniciativa
política interessante, como já se constatou de forma rigorosa em vários estudos3.
Durante o FSM em Belém, em 1º de fevereiro de 2009, realizou-se uma reunião
onde os participantes internacionais, reunidos sob a bandeira do direito à
cidade, reconheceram a oportunidade excepcional do Fórum para desenvolver
alianças em torno de questões urbanas urgentes. Os participantes desta reunião
3
Consultar a Brenner e Marcuse, 2009; Brenner e otros, 2009; Harvey, 2008 e Mayer, 2009 entre
outros.
108 Cidades para tod@s
assinaram uma agenda comum formulando a declaração “Movimentos sociais
urbanos construindo convergências no Fórum Social Mundial, FSM 2009”4 para
promover o direito à cidade, a reforma urbana e lutar contra as desocupações.
O objetivo conjunto mais importante foi a decisão de participar do Fórum
Urbano Mundial (FUM) no Rio de Janeiro, em março de 2010, para democratizar
a instituição e seu trabalho. Conforme a declaração: “os movimentos sociais e
os ativistas podem participar plena e efetivamente com a ONU-Habitat e os
anfitriões na organização, preparação e realização do evento”. Mas isso não é
tudo. Os signatários desta agenda compartilhada desejam assegurar que sua
participação no FUM não se limite a uma soma superficial a uma agenda antes
fixada. Também desejam que seu ativismo promova sua visão de direito à cidade
e contra as desocupações, na fase organizacional do FUM. Seu objetivo consiste
então em reivindicar a essência deste slogan contra seu uso normalizado aplicado
no marco institucional da ONU-Habitat e suas organizações associadas. O risco
percebido por muitos consiste em que a cooptação do discurso do direito à cidade
na agenda das organizações internacionais convencionais dilua seu significado e
remova sua energia transformadora original.
Com relação aos aspectos práticos da convergência organizacional e política,
os participantes propõem a realização de fóruns locais, nacionais e regionais.
Estrategicamente, a agenda indica uma aproximação crucial aos movimentos
rurais e indígenas para fortalecer as campanhas conjuntas de promoção dos
direitos humanos e criar novas iniciativas solidárias em todo o planeta. Entre
os signatários estavam o Centro pelo Direito à Moradia e contra os Despejos
(COHRE), Enda Tiers-Monde, Fórum de Autoridades Locais (FAL), Aliança
Internacional de Habitantes (IAI), Local Communities Organizations in Asia
(LOCOA) e Habitat Internacional Coalition (HIC) entre muitos outros.
O processo continuou construindo convergências regionais, como o Encontro
Internacional de Organizações Sociais Urbanas da América Latina sobre Direito
à cidade, realizado em Quito, Equador, em setembro de 2009. Neste sentido,
facilitar um espaço para que os movimentos se congreguem, fazendo valer suas
demandas e, ao mesmo tempo, troquem visões numa atmosfera cordial é o que
o FSM proporcionou. Isto também continuou fora do seu espaço de encontro
com campanhas autônomas, comprovando que a “fórmula” do FSM pode
efetivamente gerar com êxito atividades políticas autodefinidas que o FSM por si
mesmo não controla nem dirige. Não obstante, os mesmos debates críticos sobre
a insignificância política do FSM para desenvolver um processo transformador
efetivo também de dão em torno do direito à cidade, de formas muito semelhantes
as já descritas.
4
Consultar: http://www.hic-net.org/articles.php?pid=3034.
Propostas para o dereito à cidade 109
Pensando na natureza das demandas e das percepções (frequentemente
contrastantes) de convergência geradas no FSM, surgem questionamentos
críticos que expressam o incômodo de um setor dos movimentos mobilizados sob
a bandeira do direito à cidade. Estas críticas correspondem às seguintes linhas:
a agenda acordada em Belém é pouco radical e, na realidade, poderia contribuir
para a expansão da influência dos atores institucionais que administram os
direitos humanos, neste caso, o direito à cidade, sem questionar a marginalização
sistêmica que gera a exclusão desses direitos. As práticas insurgentes e as
mudanças radicais no marco institucional da “boa governança (urbana)” e do
neoliberalismo são instrumentos para gerar objetivos que conduzirão a mudança
do sistema atual por outro mais equitativo, justo e que não gere exclusão nem
marginalização (Mayer, 2009).
Entre os movimentos pelo direito à cidade, não somente são debatidas
questões sobre moderação, radicalismo, a força ou a pertinência da ação ou a
cooptação. Também existem desequilíbrios geográficos que devem ser abordados
para facilitar uma aliança verdadeiramente global. Concentrado numa tradição
política fundamentalmente européia, norte-americana e latino-americana, ainda
falta muito ao movimento na Ásia5, África e Oriente Médio (Salah Fahmi, 2009).
Não se trata, no entanto, apenas de uma questão de inclusão geográfica que
poderia ser resolvida com a aproximação entre aqueles que dirigem as diferentes
seções da aliança em formação. Existem razões mais complexas que, até o
momento, vem impedido a articulação de ativistas, especialmente na África,
Ásia e Oriente Médio. A bandeira do direito à cidade, tanto como instrumento
de análise e de mobilização, ou como espaço transformador é comumente usada
por organizações e ativistas a fim de gerar uma aliança global, mesmo em áreas
ainda não incluídas nos esforços do FSM. Os motivos que incidem nessa questão
guardam relação com uma série de razões que vão desde a criação prática de
redes até fatores mais complexos relacionados com dimensões culturais, sociais,
políticas, econômicas, organizacionais e pessoais, que envolvem não só aos
entes pensantes das redes e suas inumeráveis relações com os contextos que as
rodeiam. Em termos práticos, deve-ser prestar especial atenção às condições de
cada contexto, que podem facilitar ou também dificultar a extensão de uma rede
que leve a novas organizações, ou a manutenção da relação entre as organizações
já conectadas.
5
Pode-se ver, no entanto, a recente declaração de ativistas da Índia, China, Indonésia e Filipinas na
”Luta pela cidade: O novo caráter, enfoques e agenda dos pobres urbanos”.
110 Cidades para tod@s
Valores, visão, análise e estratégias em comum?
Outra pergunta importante no debate sobre o direito à cidade se refere à base
sobre a qual poderia ser formada uma aliança global: quais seriam os valores,
visão, analise e estratégias compartilhadas que constituiriam os fundamentos
da nova aliança? Existe uma diferença profunda entre os ativistas que usam a
etiqueta (a marca, diriam alguns) do direito à cidade como enfoque próprio de
direitos.
Na sua primeira formulação, o direito à cidade tem sua origem na obra do
filósofo francês Henri Lefebvre. Consequentemente parece pertinente perguntar:
qual é a relação entre os movimentos pelo direito à cidade e a teoria de Lefebvre?
Trata-se de uma questão de discussão e de tensão entre ativistas: de um lado
aqueles que consideram a definição de um movimento radical pela re-conceituação
do espaço urbano a fim de mudar as condições que geram a marginalização,
exclusão e exploração; de outro, aqueles que concebem o movimento como
um ator que pode ajudar a reestruturar o atual governo da cidade em termos
mais favoráveis para os excluídos, por meio de estratégias negociadas junto à
confrontação direta das práticas cotidianas. Neste caso, inclusive, poderia ser
produzida uma simplificação excessiva e algo insatisfatória dos atores no âmbito
do debate. Em que consiste, então, o direito à cidade?
Os ativistas e as organizações que, em linhas gerais, descrevem-se como atores
de uma plataforma – em formação – global por este direito concentram suas
ações em diferentes e contrastantes concepções dos direitos. Segundo a Carta
Mundial do Direito à cidade, o mesmo é definido como “o usufruto equitativo
das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e
justiça social” (2005). Em termos estritamente legais, o direito à cidade pode ser
considerado como um direito integral que soma todos ou a maioria dos seguintes
direitos: à vida e aos meios de subsistência; padrão adequado de vida; moradia
adequada; escolha de residência própria; liberdade de movimento; proteção
contra qualquer forma de discriminação em termos de raça, gênero ou classe
social; privacidade, trabalho; participação popular; meio ambiente saudável;
saúde; e direitos particulares das mulheres, das crianças e dos indígenas.
Os ativistas pelo direito à cidade, em suas práticas cotidianas, trazem à
luz a violação sistemática de um ou mais dos direitos citados. A lista anterior
corresponde aos direitos que já tem uma base legal nas leis dos direitos humanos.
De modo que poderia se fazer a pergunta de por que é necessário definir um
novo direito humano que não está estabelecido legalmente na jurisprudência em
matéria de direitos humanos. Defende-se o compêndio dos direitos num novo
direito à cidade para assegurar que se reconheçam os direitos de todos os cidadãos
–em especial dos ocupantes, sem-teto e moradores de assentamentos precários–
e se proteja seu total acesso aos benefícios da cidade. Existe outra pergunta que
Propostas para o dereito à cidade 111
gera ainda maior complexidade e agrega tensões adicionais na potencial aliança
global pelo direito à cidade: o direito à cidade é individual ou coletivo?
A relação do direito à cidade com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e o aparato institucional não assegura, necessariamente, sob a
perspectiva dos ativistas mais radicais, que uma campanha seja emancipadora.
Inclusive os vínculos estreitos entre alguns setores do movimento e sócios
institucionais estabelecidos, governos locais e organizações financiadas pela
ONU colocam em risco a essência do movimento. Isto não proporcionará aos
cidadãos mais marginalizados e despossuídos uma oportunidade de reclamar
seus direitos e um lugar na cidade global segregada. Ao contrário, estes ativistas
os ajudarão a obter migalhas das riquezas geradas pelos mecanismos neoliberais
da acumulação pela espoliação, sem propor uma oportunidade viável para sair
do círculo vicioso da exclusão e da exploração.
O direito à cidade, no seu enfoque de direito coletivo – como formulado por
Lefebvre e, mais recentemente, reafirmado por Harvey – expressa uma função
emancipadora. Como resume Harvey:
“O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de acessar
os recursos urbanos: trata-se do direito de mudar a nós mesmos, mudando
a cidade. É, além disso, um direito comum antes de individual, já que esta
transformação depende, inevitavelmente, do exercício do poder coletivo para
remodelar os processos de urbanização. A liberdade de criar e recriar nossas
cidades e a nós mesmos é, como desejo demonstrar, um de nossos direitos
humanos mais preciosos, mas também um dos mais descuidados”. (2008:23)
Estas frases refletem as tensões da potencial aliança global pelo direito à cidade.
Este se baseia na liberdade de “criar e recriar nossas cidades e a nós mesmos”;
por sua vez, subordinam-se ao entendimento de que é um “direito comum antes
de individual”. É desse modo porque a transformação da cidade “depende do
exercício de um poder coletivo” (grifo nosso). De acordo com as sugestões de
Lefebvre, Harvey formula que as dinâmicas da mudança e da transformação
“dependem”, consequentemente, do exercício de um poder coletivo (2008).
Uma questão muito mais complexa que, com excessiva frequência, mostrase como uma oposição dual, relaciona-se com a formulação de possibilidades
criativas para imaginar o direito à cidade como um conceito individual e, ao
mesmo tempo, coletivo. Este enfoque descreve um mundo radicalmente dividido
no qual um enfoque está, e deve estar subordinado ao outro, já que o individual
“depende” do coletivo. A criação de um marco analítico radicalmente dual não
somente impede um entendimento, mas também pode ajudar a consolidar um
entorno limitado para o ativismo emancipador.
112 Cidades para tod@s
Divisões ou espaços complexos de diferença?
Em vários contextos conceituais e práticos pelo direito à cidade, ao parecer, gera-se
um processo de excessiva simplificação que se reduz a uma divisão entre radicais
e moderados, revolucionários e reformistas, e entre processos transformadores e
ações que reforçam o statu quo. Por mais antigo que seja, este debate continua a
movimentar discussões tanto entre ativistas como entre pesquisadores (Mayer,
2009). Mas qual é o verdadeiro conteúdo deste contraste e qual é a natureza
das relações traçadas no mapa do processo de globalização dos ativistas pelo
direito à cidade? Santos pergunta se a nova elaboração de um “espaço aberto”
dentro do FSM, onde os grupos possam se reunir respeitando plenamente suas
diferenças, dará aos ativistas do mundo a oportunidade de superar plenamente
as posições de conflito e finalmente mediar suas visões, missões e estratégias.
O direito à cidade, assim como FSM, pode contribuir para a criação de espaços
de convergência transversal entre ativistas com diferentes agendas políticas,
visões e valores. Sua convergência é um desafio para mudar a visão de um
mundo fragmentado, baseado em diferenças radicais e incomensuráveis, entre
os revolucionários e reformistas ou entre os que pensam que os direitos humanos
constituem um instrumento para a criação de um sujeito submisso e os que creem
que estes direitos são uma ferramenta de possível emancipação.
Se o direito à cidade pode ser usado como instrumento de controle e cooptação,
certamente também pode facilitar processos transformadores e emancipadores.
A diferença pode depender da consciência que demonstrem os ativistas nas
negociações que serão levadas a cabo dentro de uma aliança em formação.
Também dependerá da capacidade desta aliança de incluir novos membros
provenientes de diversas realidades culturais, sociais e políticas para estender a
margem de diferenças que podem gerar um debate criativo e transformador mais
além de ideologias políticas opostas. A complexidade representada pelo direito
à cidade é tamanha que qualquer tipo de simplificação pode trair as intenções
estratégicas, instrumentais e políticas específicas. Diminuir as diferenças não
serve aos interesses dos ativistas, como comprovou, uma vez mais, a convergência
no espaço aberto do FSM. Esta bagagem, assim como as deficiências já expostas
nos dez anos de criação do FSM, pode constituir tanto um argumento para a
convergência de diferentes atores, mesmo os radicalmente diferentes, dentro da
aliança pelo direito à cidade, como uma indicação de alguns dos desafios que tal
convergência poderia gerar.
Valorizar e expandir ainda mais as diferenças, ter consciência dos desequilíbrios
de poder, fomentar proativamente a inclusão e a denúncia da marginalização, assim
como ensaiar estratégias deliberadas de negociação de conflitos e transformação
são algumas das experiências já desenvolvidas pelos movimentos globais contra
o neoliberalismo. Considerar os fatores recém nomeados pode ser propício
Propostas para o dereito à cidade 113
para a meta da nova aliança pelo direito à cidade de criação de um movimento
emancipador distanciado da cidade neoliberal exploradora e excludente. No
desenvolvimento do processo serão gerados cotidianamente novos valores e
experiências graças às centenas de diferentes lutas e compromissos em contextos
diversos. Tais práticas podem ser construídas em terreno fértil no qual poderão ser
construídos novos valores cosmopolitas. Estes valores não devem ser edificados
num conjunto fixado de ideias universais a priori, mas num conjunto de ideias
universais a posteriori. Enquanto os valores identificados a priori podem levar a
práticas etnocêntricas, coloniais e a reprodução de condições de exploração, a
abertura e o reconhecimento das diferenças podem levar ao empoderamento e à
emancipação. Um movimento pelo direito à cidade em processo de globalização
poderia, inclusive, constituir-se como um espaço para facilitar os compromissos
abertos e o empoderamento dos ativistas do mundo inteiro.
Conclusão
A convergência de movimentos que trabalham com questões urbanas no espaço
aberto do FSM e que defendem a criação de uma rede mais ampla pelo direito
à cidade certamente corresponde tanto ao que este Fórum pode oferecer como
ao uso que lhe dão os ativistas. Desde 2001, o FSM foi experimentando diversas
maneiras de enfrentar as diferenças sem diminuí-las e ao mesmo tempo facilitar a
criação de novas expressões culturais de política. Embora nem sempre com êxito,
sua experiência constitui um legado que outros movimentos, do mesmo âmbito
e escala, poderiam adotar, caso coincidam na visão de criar um mundo melhor.
O direito à cidade pode ser considerado com um ambiente em vias de
globalização no qual os diferentes atores atuam principalmente no espaço
definido por seu próprio contexto e abordado em função de seus próprios valores.
O ecossistema do direito à cidade está povoado de organizações e movimentos
muito diversos cujas ações, valores e compromissos projetam profundas diferenças
quanto a sua natureza, visão e estratégias. Poderia se considerar que alguns
proporcionam oportunidades profundamente transformadoras e emancipadoras
aos ativistas, enquanto outros podem ser inclusive conservadores e, em última
instância, conduzir à exploração.
Tal como outros movimentos transnacionais – a saber: o ambientalista,
o feminista e laboral – o espaço do direito à cidade define-se por meio de um
conjunto de características reconhecíveis. No entanto, nem todos os atores dentro
do referido espaço concordam com elas e, certamente, os matizes dos assuntos
em questão são bastante diversos e, em algumas ocasiões, também contrastantes.
Parafraseando o filósofo austríaco Wittgenstein, entre os movimentos que
povoam aquele espaço é fácil reconhecer certa “semelhança familiar” que
pode ser impossível de explicar convincentemente em termos lingüísticos.
114 Cidades para tod@s
O que deve ser feito a partir das diferenças entre os atores do “ambiente” do
direito à cidade? Esta diferença será adotada na convergência de uma aliança
estratégica, desenvolvimento de redes pouco estruturadas ou a construção de
uma plataforma? Discute-se muito sobre a linguagem política e estratégica da
organização dos movimentos. A metáfora da semelhança familiar pode ser
reforçada inclusive em caso de conflito, com práticas compartilhadas geradas
pela consciência de um potencial mútuo de reconhecimento e empoderamento
transformador.
Gostaria de destacar aqui que, no sentido analisado até agora, o desenvolvimento
de coalizões é mais importante que a coalizão em si, que muda continuamente e
assume formas variadas em diferentes contextos locais. O desenvolvimento das
coalizões acontece nos processos de negociação de diferenças e conflitos assim
como nas dinâmicas de deliberação na esfera pública. O enfoque exclusivo no
aspecto estratégico de desenvolvimento de frentes e alianças para a luta política
tende a ser míope, já que não considera o valor da diferença na transformação
dos movimentos (nem tampouco na transformação global).
Um enfoque maior no caminho do que no destino final poderia demonstrar
coerência com a visão inicial do FSM e com membros do movimento global que
desejam pôr ênfase no que consistem os movimentos transformadores, por meio
de uma visão teleológica (centrada excessivamente nas metas). Isto poderia
obrigar os líderes a aplicar estratégias sem deixar de lado a diferença em prol da
eficiência para conseguir, por exemplo, um objetivo organizacional específico ou
fortalecer o bloco político. Santos sugeriu que o principal papel e a tarefa mais
ambiciosa do FSM poderiam estar representados por seu rol de tradutor ou espaço
de tradução entre os diferentes movimentos do mundo inteiro que convergem
nele. Pode se tratar, no entanto, de um processo limitado no caso de ficar centrado
apenas da dimensão linguística. A experiência demonstra que a inteligibilidade
costuma ser mal entendida, como um caso da inclusão ou da horizontalidade
organizacional e social e, portanto, considerada plenamente emancipadora.
Embora seja necessário prestar uma atenção criteriosa às práticas de comunicação
a nível linguístico, podem ser necessárias outras atividades não linguísticas para
começar a aprofundar o processo transformador entre os movimentos do FSM e
a aliança em formação. A liderança destas iniciativas poderia explorar maneiras
de enfrentar o conflito e facilitar os processos de mediação entre os movimentos,
ao invés de empregar intermediários ou simples tradutores. Lamentavelmente,
a tradução muitas vezes provou ser uma ferramenta adicional de hegemonia.
Reproduziu as dinâmicas que o FSM e outras alianças globais tentaram superar,
porque foi empregada por vanguardas contemporâneas e líderes autoritários.
No entanto, os processos transformadores de reconhecimento de diferenças e
mediação de conflitos poderiam despertar dinâmicas emancipadoras para todos
os atores envolvidos (Caruso 2004 e 2010)
Propostas para o dereito à cidade 115
Um movimento global pelo direito à cidade não é ainda uma realidade. É
possível, no entanto, que um grupo de ativistas e organizações seja capaz de
facilitar uma aliança em constante crescimento, centrada em questões cruciais
relativas às exclusões e a violação de direitos gerados pelo atual marco institucional
hegemônico da governança urbana. A história de um processo que recém começa
em direção a facilitação deve nos dar esperança de que se produzirá o impulso
necessário para a criação de uma nova aliança global (levantando-se) pelo direito
à cidade.
Referências
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urban trends, culture, theory, policy, action 13(2): 176-184.
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approach to conflict.”
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VV.AA. (2005 [2004]). Carta Mundial por el Derecho a la Ciudad. Foro Social de las
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Organizaciones sociales urbanas de América Latina sobre Derecho a la Ciudad,
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Urban Poor. Quezon City, Philippines.
Whitaker, F. (2005). O Desafio do Forum Social Mundial. Un Modo de Ver. . San Paolo,
Fundação Perseu Abramo.
O processo de construção pelo direito à cidade:
avanços e desafios1
Enrique Ortiz Flores
O direito à cidade, que tem seus primeiros antecedentes nos escritos de Henry
Lefebvre, nos anos 60 do século passado, foi retomado por redes, movimentos e
organizações da sociedade civil e vem gerando diversas iniciativas. Dentre elas
destaca-se a integração de uma “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”, processo
que foi gerado e que recebe seu principal impulso a partir do panorama plural
do Fórum Social Mundial.
É importante ressaltar que esta iniciativa surge a partir da sociedade civil
organizada e que tem levado a um longo processo de discussão para enriquecer
e fortalecer a proposta.
Um antecedente importante da Carta se deu dentro das atividades preparatórias
da II Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente que sob o
título “Cúpula da Terra” realizou-se no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. O Fórum
Nacional pela Reforma Urbana (FNRU) do Brasil, Habitat International Coalition
(HIC) e a Frente Continental de Organizações Comunais (FCOC) juntaram
esforços para redigir e assinar, nessa ocasião, o Tratado sobre a Urbanização “Por
cidades, vilas e aldeias justas, democráticas e sustentáveis”.
Como parte do processo preparatório da Cúpula da Terra, HIC organizou
nesse mesmo ano, na Tunísia, o Fórum Internacional sobre Meio Ambiente,
Pobreza e Direito à cidade no qual, pela primeira vez, membros da nossa Coalizão
provenientes de diversas regiões do mundo debateram sobre a questão.
1
Texto revisado e atualizado pelo autor do artigo “Hacia una Carta Mundial por el Derecho a la
Ciudad” escrito para a UNESCO em 2006 e publicado por HIC-AL como introdução ao Dossiê
El Derecho a la Ciudad en el Mundo. Compilación de documentos relevantes para el debate. Enrique
Ortiz, Nadia Nehls y María Lorena Zárate (compilação e edição), México, 2008 (versão eletrônica
disponível em www.hic-al.org/publicaciones/).
118 Cidades para tod@s
Alguns anos mais tarde, em outubro de 1995, vários membros da HIC participaram
do encontro “Para a Cidade da Solidariedade e da Cidadania” convocado pela
UNESCO. Este encontro abriu de fato a participação deste organismo na questão dos
direitos urbanos. Nesse mesmo ano as organizações brasileiras promoviam a Carta
dos Direitos Humanos na Cidade, antecedente civil do Estatuto da Cidade, que anos
mais tarde seria promulgado pelo estado brasileiro.
Outro marco importante no caminho que conduziu para a iniciativa de formular
uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade foi constituído pela Primeira Assembléia
Mundial de Moradores, realizada no México em 2000, na qual participaram cerca
de 300 delegados de organizações e movimentos sociais de trinta e cinco países.
Sob o lema “repensando a cidade a partir das pessoas”, debateu-se em torno
da concepção de um ideal coletivo que servisse de base a propostas orientadas
à construção de cidades democráticas, inclusivas, sustentáveis, produtivas,
educadoras, habitáveis, saudáveis, seguras e agradáveis.
Um ano depois, já no marco do Primeiro Fórum Social Mundial, seria aberto o
processo introdutório à formulação da Carta. A partir de então e por ocasião dos
encontros anuais do Fórum Social Mundial e dos Fóruns Sociais regionais, tem se
trabalhado sobre os conteúdos e as estratégias de difusão e promoção da Carta.
Dentro do processo conduzido por redes e organizações da sociedade civil
destacam-se os encontros nos quais se realizou uma revisão profunda do texto
original e do processo de divulgação e negociação da Carta.
O primeiro se deu em 2004 em Quito, Equador, por ocasião do primeiro Fórum
Social das Américas, no qual representantes de diversos movimentos sociais
debateram com o grupo promotor da Carta sobre a necessidade de contar com
dois instrumentos, um básico de direitos humanos e outro político para ampliar
e ativar a mobilização social em torno deste novo direito.
No segundo, realizado em Barcelona, em setembro de 2005, trabalhou-se em
profundidade sobre a estrutura, conteúdos, alcances e contradições abordadas
por uma Carta que deixa fora questões do hábitat rural e que trabalha com termos
provenientes do contexto latino-americano e europeu que, por sua vez, não refletem
conceitos e temas prioritários para os países asiáticos, africanos e do Oriente Médio.
De forma paralela a estas iniciativas da sociedade civil, alguns governos,
tanto a nível regional, como nacional e local, vem gerando instrumentos jurídicos
que buscam normatizar os direitos humanos no contexto urbano. Entre os mais
relevantes, que foram firmados pelos governos locais e nacionais, e que estão
em vigor, podemos mencionar a Carta Européia de Salvaguarda dos Direitos
Humanos na Cidade (Saint Denis, França, 2000), o Estatuto da Cidade (Brasil,
2001), a Carta de Direitos e Responsabilidades de Montreal (Canadá, 2006). Existe
também uma série de declarações e propostas da sociedade civil que também
tem servido de base para esta iniciativa, como a Carta Mundial pelo Direito à
Propostas para o dereito à cidade 119
Cidade (primeira versão 2003 e revisões posteriores 2004 e 2005), a Carta pelo
Direito das Mulheres à Cidade (Barcelona, Espanha, 2004), a Declaração Nacional
para Reforma Urbana (Buenos Aires, Argentina, 2005 e seguintes) e a Declaração
frente a MINURVI (San Salvador, El Salvador, 2008)2.
No quadro do IX Fórum Social Mundial de janeiro de 2009 em Belém do
Pará, Brasil, realizou-se um seminário – convocado por 20 organizações e
redes – no qual foi debatida a questão da reforma urbana e o direito à cidade
como alternativa ao neoliberalismo. Além desse encontro, que reuniu mais de
800 pessoas, trabalhou-se na atualização dos conteúdos da Carta Mundial e na
construção de uma agenda de mobilização e articulação 2009-2010.
Em setembro de 2009 levou-se a cabo em Quito, Equador, o seminário-oficina
Para a implementação do Direito à Cidade na América Latina o qual permitiu ampliar
o circuito de atores envolvidos na questão de aproximar reflexões, experiências e
propostas a partir de pontos de vista e trajetórias muito diferentes.
A decisão da ONU-Hábitat de organizar o V Fórum Urbano Mundial em
2010 sobre o direito à cidade dará um alcance mundial a este assunto. Será a
oportunidade para que as redes internacionais, organizações e movimentos
sociais que vem impulsionando o fórum avancem na articulação de esforços
para conseguir seu reconhecimento pelas Nações Unidas como um novo direito
humano de caráter coletivo.
Motivações
O alto potencial de desenvolvimento humano que caracteriza a vida nas cidades,
comprovado nos espaços de encontro, intercâmbio e complementação, de enorme
diversidade econômica, ambiental e política, de concentração importante das
atividades de produção, serviço, distribuição e formação hoje se confronta com
múltiplos e complexos processos que abordam grandes desafios e problemas à
convivência social.
“…os modelos de desenvolvimento implementados na maioria dos países
empobrecidos são caracterizados por estabelecerem níveis de concentração
de renda e de poder que geram pobreza e exclusão, além de contribuir
à depredação do ambiente e acelerarem os processos migratórios e de
urbanização, a segregação social e espacial e a privatização dos bens comuns e
do espaço público. Estes processos favorecem a proliferação de grandes áreas
urbanas em condições de pobreza, precariedade e vulnerabilidade diante dos
riscos naturais.
2
Uma versão resumida ou versões completas de alguns destes materiais estão incluídas em El
Derecho a la Ciudad en el mundo: compilación de documentos relevantes para el debate, HIC-AL, México,
2008 (disponível en http://www.hic-al.org/publicaciones.cfm?pag=publicderviv).
120 Cidades para tod@s
As cidades estão longe de oferecer condições e oportunidades equitativas
aos seus habitantes. A população urbana, em sua maioria, está privada ou
limitada – em virtude de suas características econômicas, sociais, culturais,
étnicas, de gênero e de idade – para satisfazer suas necessidades e direitos mais
elementares. Contribuem com isso as políticas públicas, que ao desconhecer os
aportes dos processos de produção popular para à construção das cidades e
da cidadania, violentam a vida urbana.”3
Muitos são os problemas concretos enfrentados pelos moradores das cidades,
principalmente aqueles que – por sua situação econômica, migratória, vulnerável
ou minoritária – suportam o maior peso da insegurança e da discriminação:
dificuldades no acesso a terra e à moradia digna, despejos forçados (massivos
e muito agressivos), segregação urbana planificada, pressões especulativas,
privatização da habitação social, obstáculos de toda sorte e inclusive criminalização
dos processos de autoprodução da moradia e da urbanização popular, violência
imobiliária (mobbing) contra inquilinos pobres, entre outros.
A iniciativa de formular esta Carta se orienta, em primeira instância, a
lutar contra todas as causas e manifestações da exclusão: econômicas, sociais,
territoriais, culturais, políticas e psicológicas. Aborda-se como resposta social,
contraponto à cidade-mercadoria e como expressão do interesse coletivo.
Trata-se de uma abordagem complexa que exige articular a temática dos
direitos humanos na sua concepção integral (direitos civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais e ambientais) a de democracia nas suas diversas dimensões
(representativa, distributiva e participativa).
Assim, a Carta define este direito como “o usufruto equitativo das cidades
dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça
social”. É um direito coletivo das e dos habitantes das cidades, que lhes confere
legitimidade de ação e de organização, baseada no respeito às suas diferenças,
expressões e práticas culturais, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do
direito à livre autodeterminação e a um nível de vida adequado. Daí que nossa
proposta não se limite a uma declaração de direitos humanos na cidade, mas sim
seja concebida como um instrumento capaz de promover e garantir o direito de
todos à cidade, em suas múltiplas dimensões e componentes.
Conhecendo as posturas que negam a existência dos direitos humanos
coletivos afirmamos, no entanto, que se trata de um novo direito humano de
caráter coletivo.
3
Preâmbulo da versão atual do projeto da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, Setembro, 2005.
Propostas para o dereito à cidade 121
Natureza e alcances
A formulação e promoção de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade têm o
propósito último de construir um instrumento universal e compacto que possa
ser adotado pelo Sistema de Nações Unidas, os sistemas regionais de direitos
humanos e os governos, como instrumento jurídico ou ao menos como referente
básico na definição e adoção do Direito à Cidade como um novo direito humano.
A carta é concebida, consequentemente, como instrumento dos direitos humanos
e guia para a sua tradução em planos, programas e definições para a ação.
Contudo, a promoção e a difusão mundial desta iniciativa, proveniente
inicialmente da sociedade civil latino-americana, conceberam-na em sua origem
como um documento político que serviria para mobilizar amplos setores
sociais potencialmente interessados na questão. Orientou-se principalmente
a organizações civis, movimentos sociais e, paulatinamente, foi se abrindo à
incorporação de autoridades locais, organismos internacionais e outros atores
públicos, privados e sociais.
A ampliação do debate para outras regiões do planeta e a diversos setores
sociais mais amplos abordou a necessidade de contar com textos diferentes
e complementares que, por um lado, permitam consolidar um documento
consistente de direitos humanos e por outro um ou vários documentos destinados
a divulgar a iniciativa, promover a conscientização social sobre a relevância da
questão e ativar a participação social e política em torno da formulação e promoção
da Carta, além do posicionamento do direito à cidade diante dos organismos
internacionais, os governos e a opinião pública. Trabalha-se atualmente em
ambas as direções.
Todos os direitos humanos e a democracia em suas diversas modalidades e
expressões estão inextricavelmente unidos na cidade através da expressão mais
elevada, complexa e plural da interação humana no território.
Não haverá democracia no seu sentido mais profundo enquanto prevaleçam a
pobreza, a desigualdade, a exclusão e a injustiça. Não existe cidade sem cidadãos
capazes de interferir com liberdade nas decisões que afetam sua vida.
Conteúdos
O direito à cidade é interdependente de todos os direitos reconhecidos, concebidos
integralmente e está aberto a incorporar novos direitos. Entre os primeiros inclui
o direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias, a sindicalização e
a segurança social. Implica no direito a construir e fazer a cidade, o direito ao
lugar, a permanecer nele e à mobilidade; à água e à saúde, à educação e à cultura;
ao desenvolvimento e ao meio ambiente saudável; à proteção do consumidor, à
122 Cidades para tod@s
assistência a pessoas com necessidades especiais e a segurança física. Também
à informação pública e à participação política, incluindo o direito de reunião,
manifestação, organização e deliberação direta e através de representantes. Inclui
o respeito às minorias e a pluralidade étnica, racial, sexual e cultural.
Além desses direitos reconhecidos e normatizados nos principais pactos
e convenções de direitos humanos estabelecidos e monitorados pelo Sistema
de Nações Unidas e pelas instâncias regionais de direitos humanos, a Carta
reivindica o reconhecimento de outros direitos relevantes à vida urbana: o direito
ao solo, ao saneamento, ao transporte adequado e à energia.
Cabe pensar também na inclusão posterior de novos direitos que respondam
aos desafios urbanos atuais e à necessidade de conformar uma cultura política
capaz de responder com maior eficácia as novas e mais complexas condições em
que se dá a convivência social nas cidades hoje.
Nos grandes conglomerados urbanos, para citar alguns exemplos, não basta
apenas reconhecer o direito a dispor de transporte público, mas sim a locomoverse com facilidade e rapidez. Não é suficiente o direito a contar com espaços
públicos, mas sim que estes contem com elementos simbólicos que proporcionem
identidade coletiva e equipamentos acessíveis e próximos que ofereçam valor de
centralidade às diferentes áreas urbanas; espaços que abriguem usos destinados
ao emprego do tempo livre e à expressão criativa, além de garantirem o direito
a desfrutar de espaços urbanos “caminháveis” e belos, livres de contaminação
visual e ruído excessivo. Direito a manter e expressar publicamente a identidade
cultural das diferentes comunidades que conformam à cidade, garantindo
o respeito às diferenças e a igualdade de direitos do cidadão para todos os
habitantes, incluindo os migrantes.
Direito não somente a ser consultado, mas sim a intervir decisivamente no
planejamento, orçamento e desenho, operação, continuação e avaliação das
políticas públicas e os programas de desenvolvimento urbano.
O direito à cidade, dentro desta visão complexa, não se limita a reivindicar
parcialmente os direitos humanos destinados a melhorar as condições nas quais
habitamos, mas sim implica em direitos para influir também na sua produção,
desenvolvimento, gestão e uso, a participar na determinação das políticas
públicas que permitam respeitá-los, protegê-los e fazê-los efetivos.
Nesse sentido, é interessante o processo de formulação da Carta da Cidade
do México pelo Direito à Cidade, que recolhe e sistematiza o mais relevante
dos debates que aconteceram sobre a Carta Mundial em Barcelona, 2005, as
contribuições de múltiplos atores envolvidos nas consultas realizadas durante
18 meses e novos conceitos, fruto da reflexão coletiva (ver neste livro “Carta da
Cidade do México: o direito a construir a cidade que sonhamos”).
Propostas para o dereito à cidade 123
Questões a debater
A formulação e promoção da Carta é um processo participativo, complexo e de
fôlego que coloca em debate tanto sua concepção mesma como sua estrutura,
conteúdos e linguagem.
Tudo, desde o título e o alcance mundial deste instrumento, está aberto ao
debate. Carta ou manifesto? Optou-se pelo primeiro termo, considerando que
o fundamental é contar com um instrumento de direitos e obrigações e não
com um manifesto de intenções, nem com uma lista de políticas sujeitas à
vontade do governo em turno. Coloca-se como uma Carta de direitos exigíveis,
independentemente de situações políticas conjunturais. No campo político
e pedagógico requer-se, certamente, outro tipo de documentos destinados à
mobilização social em torno do processo de promoção e adoção da Carta.
Por que mundial? A diversidade de culturas e situações concretas entre e
dentro de cada região ou país aborda a necessidade de contar com instrumentos
específicos; porém, acima de tudo, e dado o caráter universal dos direitos
humanos, está a necessidade de regular o direito à cidade a nível global.
A iniciativa surgiu no contexto do Fórum Social Mundial e seu reconhecimento
e regulação como novo direito humano deverá ser realizada nas instâncias da
Organização das Nações Unidas.
Certamente com base nos conteúdos universais da Carta será não somente
possível, mas sim necessária a formulação de instrumentos regionais, nacionais e
locais que reúnam as especificidades dos diferentes âmbitos culturais e territoriais.
Por que se enfoca somente a cidade? Esta é a questão que tem despertado um
debate maior. Em primeira instância, porque o conceito de cidade em algumas
regiões do mundo se refere ao âmbito territorial formal – onde vivem as classes
médias e altas – e não à área operária.
Cidade, em vários países da Ásia, significa aversão aos assentamentos
populares e processos massivos de desocupação em nome da “cidade”, de modo
que as camadas sociais na qual a Carta enfoca suas prioridades rejeitam o termo.
Assim, em alguns países, as pessoas optariam por conceitos como o direito à terra
ou à comunidade.
Em países europeus totalmente urbanizados, o termo cidade não permite fazer
distinções. Surgem outros conceitos alternativos como comunidade e direito a
um lugar para viver. O primeiro faz sentido em inglês para se referir à cidade ou
a uma vila, mas não no castelhano, onde se refere a um coletivo que compartilha
propósitos comuns; nada mais afastado da complexidade e diversidade cultural
de interesses que caracterizam as cidades. O segundo não responde à riqueza de
conteúdos e alcances do direito à cidade, não expressa seu caráter coletivo nem
faz distinção alguma entre a cidade e o campo. Um terceiro conceito que circula
124 Cidades para tod@s
nos debates é o do hábitat de direitos humanos (human rights habitat), termo
sem força simbólica e mobilizadora.
Essa questão nos leva ao centro do debate: por que limitar a Carta ao âmbito
urbano quando existem países, principalmente na Ásia e na África, nos quais o
hábitat predominante ainda é o rural? Por que fazê-lo quando em muitos lugares
as maiores violações de direitos relativos ao hábitat se dão no campo?
Por outro lado, acaso não estaremos fazendo o jogo dos grandes interesses
que comandam o processo de globalização econômica no mundo? Hoje estes
interesses promovem a cidade como “motor de desenvolvimento” e abrem,
em seu próprio benefício, a competitividade entre cidades, esquecendo-se
das comunidades camponesas e até mesmo passando por cima dos governos
nacionais.
A cidade, mais que fator de impulso para o campo, tem sido o centro do
qual se orquestra sua devastação. Neste sentido, limitar a Carta à Cidade não
implica continuar fortalecendo estes processos? Não se estaria contribuindo para
fragmentar e confrontar os movimentos sociais dos pobres do campo e da cidade?
Este debate tem nos aproximado de movimentos rurais como a Via Campesina
com o objetivo de que, sem negar a necessidade de contar com instrumentos
específicos tanto para o campo como para a cidade, seja possível visualizar a
forma de nos articularmos dentro de uma estratégia compartilhada. Isso, além
do mais, permitirá enriquecer e fortalecer os processos sociais que lutam contra a
exclusão em ambos os contextos.
Existem princípios e linhas de ação direcionadas a respeitar a dignidade
humana tanto no campo como na cidade, que garantam essa articulação, mas
também existem especificidades que exigem instrumentos adequados para cada
necessidade e contexto.
Por outro lado, o direito à cidade não se refere à cidade que conhecemos
e padecemos hoje, mas sim a outra cidade possível, inclusiva em todos os
aspectos da vida (econômicos, sociais, culturais, políticos, espaciais); sustentável
e responsável; espaço da diversidade, da solidariedade e da convivência;
democrática, participativa, viva e criativa. Uma cidade que não cresça à custa de
seu entorno, do campo e de outras cidades.
O conceito e a implantação do direito à cidade na
África Anglófona
Mobola Fajemirokun*
“O que faz com que a governança e o desenvolvimento urbano da África seja
um campo em grande medida desordenado e disfuncional é a perpetuação
da suposição errônea de que a África é um continente principalmente rural.
Embora no aspecto demográfico a maioria dos africanos continuem vivendo
em zonas rurais, a vida cotidiana em toda a região está tão dominada em
grande parte por questões e sensibilidades urbanas que a urbanização, nos
fatos, é o essencial”. 1
Contexto
Tal como os países em desenvolvimento de outras regiões do mundo, os países
da África Anglófona2 estão se urbanizando com notáveis implicações para o
desenvolvimento humano sustentável do continente3. A UN-Hábitat capta
nosso mundo urbanizado emergente, descrevendo o século XXI como o Século
da Cidade4. As principais características da urbanização na África Subsaariana
têm relação com a primazia da cidade, resultando na concentração de pessoas e
1
2
3
4
De ONU-Hábitat, Principles and Realities of Urban Governance in Africa, 65 (Nairobi: UN-Habitat,
2002)
Os Países Membros da União Africana (UA) que adotaram o inglês como língua oficial de seu
território são: Botsuana, Camarões, Gâmbia, Gana, Quênia, Lesoto, Libéria, Madagascar, Malavi,
Maurício, Namíbia, Nigéria, Ruanda, Seychelles, Serra Leoa, África do Sul, Sudão, Suazilândia,
Tanzânia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue.
Ver no Anexo 1 a taxa anual de mudança da população das áreas urbanas e rurais, que mostra
que este dado é maior nas áreas urbanas. A taxa de mudança na população rural chegou a ser
negativa em quatro países (Botsuana, Lesoto, Seychelles e África do Sul)
Em ONU-Hábitat, “Estado de las ciudades del mundo 2008/2009: Ciudades armoniosas, x (London
& Sterling, VA: UN-Habitat, 2008).
126 Cidades para tod@s
investimentos nas grandes cidades e a formação de assentamentos informais5. O
prognóstico indica que a população destes assentamentos na África Subsaariana
chegará a 249.885.000 habitantes em 2010 e 393.104.000 em 20206. As implicações
para os países da África Anglófona, que se encontram principalmente na
África Subsaariana, não poderiam ser mais claras. O imperativo para dar uma
resposta efetiva ao crescimento dos assentamentos urbanos pode ser encontrado
no Objetivo 7 dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que
consiste em atingir melhorias significativas na vida de pelo menos 100 milhões
de habitantes marginais até 20207. Este artigo não é uma análise enfocada nas
questões relacionadas às causas ou as experiências de mudança urbana nos
países da África Anglófona. Na realidade, representa uma perspectiva geral do
direito à cidade e de sua relevância para um grupo heterogêneo de países da
África que comparte um idioma comum por sua herança colonial ou por uma
decisão deliberada.
Um novo paradigma para a cidade
Surgimento de novos direitos legais
O direito à cidade, essencialmente, aborda a adoção de valores e a implementação
de normas e práticas direcionadas à inclusão social por meio da participação
democrática na vida urbana, responsabilidade e rendição de contas da governança
da cidade8, além de tratamento igualitário para todos os seus habitantes e da
redução da pobreza. Estão sendo realizados esforços para concretizar um regime
normativo diferenciado, mas também complementar os sistemas mundiais e
regionais dos direitos humanos, com o objetivo de consagrar os direitos legais
de todos os habitantes da cidade9. Do mesmo modo, estabeleceu-se que o direito
à cidade não deve ser considerado num sentido formalista, como um regime de
direitos específicos, embora evidentemente se inspire em alguns dos sistemas
de direitos humanos que tem codificado os direitos civis e políticos10, além dos
5
6
Idem, State of the World’s Cities 2008/2009: Harmonious Cities”, pág. XI, 17 e 19 da versão em inglês.
De ONU-Hábitat, “Slum Population Projection 1990-2020” segundo a taxa de crescimento anual
em 1990-2001, disponível em www.unhabitat.org.
7 Os 22 países da África Anglófona adotaram a Declaração do Milênio de 8 de setembro de 2000.
8 Para os propósitos deste documento, o termo ‘habitante’ não se refere ao domicílio ou residência
permanente na cidade.
9 A Carta Mundial do Direito à Cidade, por exemplo, desenvolvida por grupos da sociedade
civil e organizações sociais e elaborada em vários fóruns internacionais como o Fórum Social
das Américas, realizado em Quito, Equador, em junho de 2004 e o Fórum Urbano Mundial de
Barcelona, na Espanha, em setembro de 2004.
10 O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDESC), por exemplo, adotado em 16 de
dezembro de 1966.
Propostas para o dereito à cidade 127
direitos econômicos, sociais e culturais (DESC)11. Apesar das diferentes opiniões
sobre a natureza intrínseca ou objetivos finais, o que merece atenção é que
o direito à cidade representa uma mudança de paradigma no planejamento e
gestão das cidades, já que, para todos os seus habitantes, cristalizou as funções
sociais da mesma, os títulos de propriedade, o acesso a informação pública, a
tomada de decisões participativa (em relação, por exemplo, ao orçamento e
finanças públicas) e as soluções legais.
Benefícios do direito à cidade
Contudo, surge uma pergunta fundamental: se muitos dos direitos incluídos
na Carta já existem dentro dos padrões internacionais dos direitos humanos,
será necessário preparar uma nova declaração sobre o Direito à Cidade? Várias
ONGs, entre elas COHRE, consideram que a Carta poderia introduzir uma série
de elementos novos e importantes aos mecanismos internacionais de proteção
dos direitos humanos.
Entre eles se encontra o direito e a gestão participativa e transparente por parte
do governo local, a boa governança, o planejamento orçamentário participativo,
o aumento das normativas que confiram clareza no que se refere ao direito à
moradia e ao meio-ambiente nas cidades, a promoção da função social da
propriedade, o acesso aos serviços públicos e a outras questões relacionadas com
o espaço urbano, como o monitoramento comunitário12.
Enfoque na igualdade de tratamento, acesso e oportunidades
Em grande medida, os componentes do direito à cidade que tem relação com a
igualdade de tratamento, acesso e oportunidades estão incorporados nos sistemas
de direitos humanos introduzidos a nível regional pela União Africana (UA) cuja
implementação se comprometeram todos ou ao menos alguns dos países africanos
anglófonos13. Pode-se dizer, por exemplo, que 100% dos países ratificaram ou
11 A. Brown & A. Kristiansen, Urban Policies and the Right to the City: Rights, Responsibilities
and Citizenships, 36-37 (Nairobi: UN-Habitat, março de 2009). Sobre os DESC, ver o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) adotado em 16 de dezembro
de 1966 e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW), adotada em 18 de dezembro de 1979.
12 Fonte: Centro pelo Direito à Moradia e contra os Despejos (COHRE).
13 Alguns dos instrumentos regionais recorrem às disposições dos tratados internacionais. Ver as
notas 10 e 11; ver também a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (CDN)
adotada em 20 de novembro de 1989 e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes (CAT, na sigla em inglês), adotada em 10 de dezembro
de 1984.
128 Cidades para tod@s
aderiram à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos14. Isso implica que
o direito internacional os obriga a dar todos os passos necessários para assegurar
a implementação das disposições legais sobre os direitos humanos pertinentes
dentro do seu território. Assim, no caso da Carta Africana sobre os Direitos e
Bem-estar da Criança, esta foi ratificada por 95% dos países da África Anglófona
(a exceção é Suazilândia, que somente assinou). No caso do Protocolo sobre os
Direitos da Mulher na África, 64% dos países não ratificaram nem aderiram
ao Protocolo. Ao contrário, sete daqueles países (Botsuana, Camarões, Quênia,
Madagascar, Maurício, Suazilândia e Uganda) contam com proteção contra a
discriminação de gênero em suas Constituições nacionais15. Além disso, alguns
deles, como Maurício, Madagascar, Botsuana e Quênia estão bem classificados
na análise da discriminação de gênero realizada em 102 países não pertencentes
a OCDE16.
Realidades atuais
Requisitos constitucionais e legais e outra índole
Concretizar o direito à cidade nos países da África Anglófona necessitará levar
em conta as circunstâncias locais, particularmente os requisitos constitucionais
e legais de outra índole relativos à designação de responsabilidades entre o
governo nacional e as unidades subnacionais descritas, segundo o caso, como
estados, regiões, províncias ou municípios.
Consequentemente, embora se tenha utilizado o “Estatuto da Cidade” de 2001
de Brasil como ferramenta nacional para implementar o direito à cidade naquele
país, esta proposta poderia ser impossível para outros países.
Nigéria: competência subnacional no planejamento da cidade
A constituição federal da Nigéria distingue as competências legislativas do
Governo Federal por um lado, e dos 36 Governos Estaduais, por outro. Algumas
destas funções são exclusivas do Governo Federal, em virtude da Lista Legislativa
14 A ratificação significa que o estado firmou oficialmente o tratado quando este foi adotado e,
consequentemente, aceitou por escrito as obrigações legais estabelecidas em seus termos. Por
outro lado, a adesão implica que o estado aceitou por escrito as obrigações legais estabelecidas
nos termos de um tratado sem firmar o instrumento quando foi formalmente adotado. Somente
a assinatura de um tratado não implica em qualquer obrigação legal.
15 Com exceção do Sudão. Para obter mais informação sobre a proteção contra a discriminação nas
Constituições nacionais, ver http://www.genderindex.org.
16 Lesoto e Seychelles não foram incluídas nas avaliações para o Índice de Gênero e Instituições
Sociais (SIGI), ver http://www.genderindex.org.
Propostas para o dereito à cidade 129
Exclusiva, enquanto que outros poderes são compartilhados por ambos os
níveis, de acordo com a Lista Legislativa Concorrente. Até 2003, em matéria de
planejamento urbano, o Governo Federal podia legislar pelos estados federados;
para tal efeito, criou-se a Lei de Planejamento Urbano e Regional da Nigéria,
o NURPA (Nigerian Urban and Regional Planning Act). Contudo, depois de uma
demanda interposta pelo governo estadual de Lagos ante a Suprema Corte da
Nigéria, resolveu-se que era evidente que o Governo Federal não podia legislar em
nenhum dos 36 estados federados em matéria de planejamento urbano; portanto,
o poder concedido por NURPA ao Governo Federal nessa questão ficava inválido.
Contudo, no caso da Capital Federal, Abuja, continuariam valendo, uma vez que
sua administração depende do Governo Federal. A decisão da Suprema Corte
removeu então todo planejamento centralizado das cidades e contribuiu para
o fortalecimento da autonomia do planejamento local, também em relação às
terras de propriedade federal. Com o passar do tempo, vários governos estaduais
foram transferindo suas competências de planejamento territorial às Câmaras de
Governo de Área Local (ou LGA, na sigla em inglês) por meio da implementação
de Escritórios de Planejamento Local.
Debilidade do Governo e das instituições públicas
Mais de dois anos depois da adoção da Carta Africana sobre Democracia, Eleições
e Governabilidade (ACDEG) somente dois países africanos não anglófonos
assinaram-na. É possível que ainda seja cedo para tirar conclusões definitivas
sobre as respostas nacionais a este novo tratado. O fato, porém, de que sua adoção
foi considerada assinala as brechas da governança econômica, social e política
presentes nos países africanos em sua totalidade e não comente no subgrupo
anglófono. ACDEG não se centra unicamente nas cidades, dada sua ênfase às
obrigações dos governos nacionais. Os princípios que a regem e as ações que
promove, no entanto, cobrem aspectos que o direito à cidade busca fomentar
dentro das cidades, como a proteção dos direitos humanos, a igualdade de
tratamento, a participação democrática e a responsabilidade, prestação de contas
e transparência nas questões financeiras e institucionais públicas (ver Quadro
3). Não obstante, reconhece-se que no que se refere ao acesso à informação,
as disposições de ACDEG não apresentam a solidez que poderiam ter. Esta
questão aborda unicamente os Artigos 2(10) e 19(2). O Artigo 2(10) simplesmente
estabelece que o objetivo de ACDEG será ‘promover… o acesso à informação…
e a responsabilidade na gestão dos assuntos públicos’. Contrariando este artigo,
o Artigo 2(10) simplesmente assinala que ‘cada Estado Membro deverá garantir o
livre acesso à informação, porém somente no caso das comissões de observadores
eleitores (grifo nosso).
130 Cidades para tod@s
Princípios da democracia, das eleições e da governança na África17
1. Dos direitos humanos e princípios democráticos.
2. Acesso ao poder estatal e seu exercício em concordância com a constituição
do Estado Membro e com o princípio do estado de direito.
3. Promoção de um sistema de governo representativo.
4. Realização de eleições periódicas, transparentes, livres e justas.
5. Separação dos poderes
6. Promoção da igualdade de gênero nas instituições públicas e privadas.
7. Participação efetiva da cidadania nos processos de democracia,
desenvolvimento e gestão dos assuntos públicos.
8. Transparência e equidade na gestão dos assuntos públicos.
9. Condenação e rejeição dos atos de corrupção, delitos e impunidade
relacionados
10. Condenação e rejeição absoluta às mudanças inconstitucionais do Governo.
11. Fortalecimento do pluralismo político e reconhecimento do rol, dos direitos
e das responsabilidades dos partidos políticos legalmente constituídos,
incluindo os de oposição, que devem beneficiar-se de um estatuto na lei
nacional.
Despejos forçados e outros atos de espoliação
Em sua Base de Dados de Violações, a Rede pelos Direitos à Moradia e a Terra
da HIC documenta casos de despejos forçados, espoliações e privatização de
habitações sociais. A informação provem de fontes confiáveis, como de membros
da HIC, e confirma a extensão e escala da prática dos despejos e outros atos
de espoliação de terras e habitações nos países da África Anglófona18. O direito
à cidade reafirma os direitos à terra e à moradia de todos os habitantes sem
considerar se conta ou não com o título de posse. Por conseguinte, desafia o
enfoque predominante na África Anglófona a resolver as práticas que violam
o direito dos pobres e sem-terras das zonas urbanas à moradia adequada19; os
okupas, por exemplo, são vítimas de expulsões forçadas e demolições reiteradas.
Estas intervenções, que costumam ser realizadas pelas autoridades do governo
(mas não somente por elas) não fazem mais que perpetuar um círculo vicioso, já
que os despojados devem se mudar para recomeçar em outro lugar e enfrentar
um futuro marcado por mais despejos e demolições.
17 Artigo 3, ACDEG.
18 Ver http://www.hlrn.org.
19 Por meio de consultas públicas, notificações adequadas e o pagamento de compensações, por
exemplo.
Propostas para o dereito à cidade 131
O direito à cidade tem, portanto, o potencial de abrir a perspectiva de um
conjunto unificador de princípios e práticas para os movimentos urbanos de base
da África Anglófona20. Neste sentido, vale a pena destacar a meta da campanha
“cidades de Primeira Categoria para Todos” (WCCA, na sigla em inglês) –
lançada na África do Sul em 2006 –, que consiste na criação de um conceito de
cidades mais inclusivo, com a participação dos vendedores ambulantes e outros
grupos de pobres urbanos que não apenas são os primeiros a perder seus meios
de subsistência, mas também os mais invisíveis durantes os preparativos de
eventos de alto perfil como o Mundial de 2010 e a Copa Africana das Nações21.
É necessário lançar e desenvolver mais campanhas deste tipo para estimular os
principais afetados a apoiarem o direito à cidade. Tal desenvolvimento refletirá
os precedentes ocorridos na América Central e América do Sul, onde o conceito
de cidade inclusiva recebeu um amplo apoio político e popular como resultado
direto da pressão e defesa efetivas realizadas pelos movimentos de base. Trabalho
em redes e intervenções de educação popular serão necessárias para atingir
resultados similares na África Anglófona. Representantes dos movimentos de
base e outros defensores, tal como as ONGs de defesa dos direitos à moradia e
à terra, junto a suas respectivas redes, poderiam levar a cabo estas intervenções.
Essencialmente, por meio destes esforços conjuntos haveria a ampliação e o
aprofundamento do incentivo ao direito à cidade, uma ponte entre os continentes
poderia ser construída para vincular o local (a cidade) com o global e vice-versa.
Observações finais
O que o direito à cidade representa para os países da África Anglófona? Certamente
trata-se de um conceito que deve ser tomado com mais seriedade, dadas as graves
consequências para o desenvolvimento humano da formação de assentamentos
informais e os altos níveis de pobreza dentro da região em sua totalidade. Não
se deve considerar num sentido formalista, como um abanico rígido de códigos,
normas ou procedimentos, mas sim como um enfoque flexível e dinâmico para
o desenvolvimento humano sustentável dentro das cidades. Sua implementação,
evidentemente, dependerá da ordem constitucional e legal predominante em
cada país. Esse artigo, porém demonstrou que, em termos gerais, existem quatro
20 O termo ‘movimentos de base’ descreve os grupos de pessoas relativamente organizadas que,
negativamente afetados pelas mudanças urbanas como, por exemplo, os despejos forçados
e outros atos de espoliação, estão em oposição aqueles que representam ou defendem estas
mudanças. Para obter mais informação sobre esta distinção S. Batliwala, ‘Grassroots Movements
as Transnational Actors: Implications for Global Civil Society,’ Voluntas: International Journal of
Voluntary and Nonprofit Organizations, Vol. 13, No. 4, December 2002, 395-396.
21 Ver www.streetnet.org.za/WCCA.htm. Entre os movimentos urbanos de base também constam
as diversas federações de moradores (shack dwellers) e assentamentos informais em países como
Nigéria, África do Sul, Zimbábue e Quênia.
132 Cidades para tod@s
questões substanciais e primordiais neste novo paradigma de cidade. Estes são
a proteção dos direitos humanos de todos os habitantes da cidade, incluindo os
sem-terra, os okupas, os imigrantes, os refugiados e outros grupos vulneráveis;
os direitos de acesso à informação pública, a tomada de decisões e soluções legais;
a governança urbana eficiente e as instituições públicas baseadas numa maior
transparência e responsabilidade; além de uma mudança radicalmente oposta às
atitudes e práticas atuais frente aos assentamentos marginais, informais e ilegais.
Os sistemas regionais de direitos humanos existentes podem carecer de um
enfoque específico na cidade e o tratamento integral das questões relacionadas
à produção social da cidade e a propriedade. Entretanto, apesar de todas estas
brechas, tais instrumentos proporcionam materiais de construção úteis em vários
sentidos para a concretização do direito à cidade na África Anglófona.
Propostas para o dereito à cidade 133
Anexo 1
Estimativa da população nacional total e indicadores urbanos de África Anglófona
Nº.
1
2
3
4
5
País
População Distribuição da Taxa anual de População
População
nacional total população (%) mudança (%) marginal das marginal em
estimada1
(2005-2010)3 áreas urbanas porcentagem
20092
4
da
Urbana Rural Urbana Rural (em milhares) população
urbana5
1.
Botsuana
1.776.283
60
40
2,5
-0,6
-
2.
Camarões
10.493.655
58
42
3,5
0-1
4.224.000
47,4
-
3.
Gâmbia
1.364.507
57
43
4,2
0,7
371.000
45,4
4.
Gana
18.912.079
51
49
3,5
0,5
4.805.000
45,4
5.
Quênia
37.183.923
22
78
4,0
2,3
3.897.000
54,8
6.
Lesoto
1.880.661
26
74
3,5
-0,3
118.000
35,1
7.
Libéria
3.489.072
61
39
5,6
2,8
-
8.
Madagascar
18.820.000
30
70
3,8
2,2
4.022.000
80,6
9.
Malavi
13.630.164
19
81
5,2
2.0
1.468.000
66,4
10.
Maurício
1.268.565
42
58
0,9
0,7
-
11.
Namíbia
2.065.226
37
63
2,9
0,4
242.000
-
33,9
12.
Nigéria
140.003.542
49
51
3,8
0,9
41.664.000
65,8
13.
Ruanda
8.128.553
19
81
4,2
2,4
1.251.000
71,6
14.
Seychelles
86.956
55
45
1,4
-0,6
-
-
15.
Serra Leoa
4.976.871
38
62
2,9
1,5
2.180.000
97,0
16.
África do Sul
48.687.000
61
39
1,4
-0,7
8.077.000
28,7
17.
Sudão
39.154.490
44
56
4,3
0,7
13.914.000
94,2
18.
Suazilândia
953.524
25
75
1,7
0,3
-
19.
Tanzânia
40.600.000
26
74
4,2
1,9
6.157.000
66,4
-
20.
Uganda
28.247.300
13
87
4,4
3,1
2.420.000
66,7
21.
Zâmbia
12.525.791
36
64
2,3
1,7
2.336.000
57,2
22.
Zimbábue
11.631.657
38
62
2,2
0,2
835.000
17,9
Segundo o último censo disponível e as estimativas do Informe sobre População e Estatísticas Vitais
da Divisão das Nações Unidas de 29 de setembro de 2009, baixado de http://www.unstats.un.org.
De ONU-Hábitat, “Slum Population Projection 1990-2020” segundo a taxa de crescimento anual
em 1990-2001, disponível em www.unhabitat.org.
Idem.
State of the World’s Cities 2008/2009: Harmonious Cities, pág. 248 da versão em inglês.
De ONU-Hábitat, “Slum Population Projection 1990-2020” segundo a taxa de crescimento anual
em 1990-2001, disponível em www.unhabitat.org.
Segundo Capítulo:
Experiências de direito à cidade
Lutas populares contra a marginalização
e os despejos
Abahlali baseMjondolo e a luta popular pelo
direito à cidade em Durban, África do Sul
Richard Pithouse
Se sua causa é boa, por que não haveriam de se comunicar conosco e permitir
que a razão e a equidade, a base das leis justas, nos julguem tanto a nós como
a eles?
Gerrard Winstanley1
O apartheid confundia a modernidade com um urbanismo especificamente
branco. Esta paranóia racial foi a causa da tremenda hostilidade branca dirigida
contra a presença dos negros nas cidades. Como é lógico, tanto a elite como as
camadas populares que lutavam contra o apartheid, normalmente concediam
ao direito igualitário para a vida urbana um lugar central na sua política2. Em
certas zonas de algumas cidades, e em especial em Durban, as invasões de
terrenos, mais precisamente durante o final das décadas de 70 e 80, significaram
uma ruptura decisiva na racialização do espaço3. Nos seus últimos anos, o
estado do apartheid fez um número considerável de concessões como resposta
à mobilização popular pelo direito à cidade. Estas concessões incluíam desde
reformas legais até compensações, nas quais uma presença precária, embora
autônoma, nas cidades foi sucedida por um lugar subordinado, embora formal,
1
2
3
Gerrard Winstanley: His Thoughts and Works editado por Subrata Mukherjee & Sushila Ramaswamy
(Publicaciones Deep & Deep: Nueva Deli), 1998, p. 44.
Ver por exemplo, Holding Their Ground editado por Philip Bonner, Isabel Hofmeyer, Deborah
James & Tom Lodge (Raven Press: Johannesburg), 1989 & The People’s City: African Life in
Twentieth-Century Durban editado por Paul Maylam & Iain Edwards (University of Natal Press:
Pietermaritzburg), 1996 y
Richard Pithouse ‘Shacks in Durban Till the End of Apartheid’, The Commoner, Diciembre 2009
http://www.thecommoner.org.uk
140 Ciudades para tod@s
nas mesmas; com o reconhecimento, até certo ponto, por parte do estado e das
ocupações de terras urbanas4.
Ao término do apartheid, garantiu-se na Constituição o direito à moradia
e foram promulgadas leis para proteger os ocupantes ilegais de desocupações
arbitrárias, além de impedir qualquer despejo que deixasse as pessoas sem um
lar5. Implementou-se uma política habitacional a partir do compromisso com o
modelo do Banco Mundial, política que contemplava a atribuição – por domicílio
– de um subsídio habitacional fixo concedido pelo governo à iniciativa privada, a
qual devia gerar rendimentos construindo dentro dos limites do subsídio6.
Embora não houvesse transcorrido muito tempo desde as mobilizações
massivas contra o apartheid acontecidas durante a década de 80 – dirigidas por
organizações populares que contavam com um grau considerável de autonomia
em relação a qualquer controle partidário centralizado7, e que geralmente se
confrontavam diretamente com a problemática urbana8, tanto o estado como suas
ONGs aliadas se mobilizaram rapidamente para reduzir a problemática política
do direito à cidade a perguntas técnicas acerca da construção de habitações. A
redução do debate político à linguagem técnica, que considerava o planejamento
urbano como uma tarefa do estado e das ONGs, além de medir o êxito em termos
de “unidades entregues”, tornou-se dominante na sociedade civil. Construiu-se
um número considerável de casas, em geral pequenas, de baixíssima qualidade
e localizadas em guetos periféricos9. Além disso, os projetos habitacionais foram
regularmente capturados pelas elites políticas locais e, em todos os níveis, desde
a adjudicação de contratos de construção até o subsídio para as casas individuais,
foram utilizados para apoiar os interesses políticos e pessoais dessas elites. As
estruturas partidárias locais atuaram muitas vezes de forma cruel, recorrendo,
em algumas ocasiões, à violência10.
4
Para um caso de estudo interessante do Assentamento Precário Crossroads na Cidade do Cabo
ver Crossroads: The Politics of Reform and Repression 1976-1986 por Josette Cole (Ravan Press:
Johannesburg), 1987
5 Centre on Housing Rights & Evictions, Business as Usual? Housing Rights & ‘Slum Eradication’ in
Durban, South Africa (Centre on Housing Rights & Evictions: Geneva), 2008 http://www.cohre/
org/southafrica
6 Centre on Housing Rights & Evictions, Business as Usual?
7 Michael Neocosmos ‘Civil Society, Citizenship & the Politics of the (Im)Possible: Rethinking
Militancy in Africa Today’ Interface: A Journal for and about Social Movements, No.2, 2009 http://
interface-articles.googlegroups.com/web/neocosmos.pdf?pli=1
8 Marie Huchzermeyer, Unlawful Occupation: Informal Settlements and Urban Policy in South
Africa and Brazil (Africa World Press: Trenton, New Jersey), 2004.
9 Centre on Housing Rights & Evictions, Business as Usual?
10 Afirmo-o tomando como base cinco anos de pesquisa na questão da problemática habitacional de
Durban, sendo que o desenvolverei com maior profundidade num trabalho que será publicado
em breve.
Experiências - Lutas populares 141
Uma década depois do apartheid, os planejadores progressistas, que formavam
parte ou estavam aliados ao estado democrático, reconheceram as falhas presentes
no sistema de subsídios. Consequentemente, no ano de 2004 adotou-se uma nova
política, Abrindo Novos Caminhos (Breaking New Ground). Esta política significou
uma ‘mudança’ a partir ‘do conflito e do abandono’ à integração dos assentamentos
“numa estrutura urbana mais ampla para superar a exclusão espacial, social e
econômica” por meio de “uma aproximação progressista em terreno e de forma
gradativa”11. Contudo, a política não obteve apoio político real, de modo que não
foi implementada12. O estado, ao contrário, optou por um revanchismo sem trégua,
regredindo à linguagem do apartheid de ‘limpeza dos assentamentos precários’13.
Os assentamentos de shack agora são considerados assentamentos precários
que devem desaparecer das cidades, ao invés de comunidades que devem ser
completamente integradas às mesmas. Uma vez mais, os assentamentos shack
apresentam-se como uma ameaça às aspirações dessa elite à modernidade.
Estão se desenvolvendo três estratégias principais para erradicar os shack. A
primeira consiste em cortar ou limitar serviços tais como água, eletricidade e
coleta de lixo, entre outros, até que as condições do lugar se tornem insalubres
para a vida. A segunda é o uso de várias formas de vigilância e de violência
do estado com o objetivo de evitar a expansão dos assentamentos ou novas
ocupações. A terceira é a destruição dos assentamentos estabelecidos. Cada vez
que estes são destruídos, alguns residentes são realocados a casas normalmente
designadas em assentamentos periféricos, enquanto outros são obrigados a viver
em shacks construídas pelo estado, conhecidas como acampamentos provisórios.
Outros são deixados na rua14.
As ações por parte do estado para os habitantes dos shacks têm sido
sistematicamente ilegais e até criminais. Mahendra Chetty, diretor do escritório
de Durban do Centro de Recursos Legais, assevera que:
As autoridades municipais, de maneira regular e consistente, vêm infringindo
a lei de forma flagrante. Uma questão recorrente com respeito aos despejos
é a insensibilidade com que são levados a cabo. Realizam-se de maneira
extremamente autoritária e arrogante contra os mais vulneráveis de nossa
sociedade – mulheres negras pobres, idosos e desempregados.15
11 Department of Housing, Breaking New Ground, 2004, p. 12.
12 Richard Pithouse ‘A Progressive Policy Without Progressive Politics: Lessons from the
failure to implement ‘Breaking New Ground’’, Town Planning Journal, No. 54, 2009, pp.1-14.
13 Richard Pithouse ‘A Progressive Policy Without Progressive Politics: Lessons from the failure to
implement ‘Breaking New Ground’
14 Richard Pithouse, Business as Usual?, p. 52.
15 Richard Pithouse, Business as Usual?, p. 52.
142 Ciudades para tod@s
Um desafio popular à re-segregação das cidades, desta vez baseado na classe,
começou a emergir com a aparição de alguns movimentos sociais importantes a
partir do ano de 200116. Desde 2004, as cidades sul-africanas foram convulsionadas
por milhares de revoltas municipais, em geral, embora não sempre, organizadas
pelos assentamentos de shack17. Suas principais táticas têm sido os bloqueios
de estradas e greves de votos. Apesar do aumento rápido da repressão como
resultado das prisões e violência policial regulares – violência que em alguns
momentos teve consequências fatais –, estes protestos se intensificaram18.
Uma das reivindicações fundamentais tem sido que as pessoas sejam capazes
de decidir onde gostariam de viver. Em alguns momentos, esta se generalizou
numa demanda coletiva pelo direito à cidade. Em muitas ocasiões os que
protestam têm exigido a permissão para permanecer em seus shacks localizados
no centro e para que não haja realocação em novos projetos habitacionais na
periferia das cidades. Desse modo, manifestam que a questão habitacional não
pode ser reduzida à concessão de uma habitação formal por parte do estado. A
segunda reivindicação se refere ao direito a co-determinar o “desenvolvimento”,
o qual considera tanto que se reconheça o planejamento urbano popular19 que
ocorreu, por exemplo, através do reconhecimento formal das ocupações de
terrenos realizadas no passado, e um planejamento futuro, tais como a construção
de habitações e a provisão de serviços, que seja realizada em conjunto pelas
comunidades e o estado.
Em Durban, um movimento de moradores de shacks criou-se como conseqüência
da comoção geral. Em março de 2005, uma via foi bloqueada pelos residentes do
assentamento Kennedy Road da mesma maneira que outras vias haviam sido
bloqueadas em todo país desde 2004. Kennedy Road é uma zona classificada
como periurbana que, no entanto, localiza-se no coração da cidade e foi um dos
assentamentos escolhidos para ser erradicado. Nos meses posteriores ao bloqueio
aconteceram intensas discussões com pessoas de doze assentamentos limítrofes,
todos eles localizados no centro suburbano. Em outubro desse mesmo ano, decidiuse conformar o movimento de habitantes de shacks Abahlali baseMjondolo (AbM) e
buscar uma política dos pobres, para os pobres e pelos pobres20.
16 Richard Pithouse ‘Abahlali baseMjondolo & the Struggle for the City in Durban, South Africa’,
Cidades, Vol. 6, No. 9, pp.241-272.
17 Richard Pithouse Abahlali baseMjondolo & the Struggle for the City in Durban, Sudáfrica
18 Richard Pithouse ‘Burning Message to the State in the Fire of the Poor’s Rebellion’, Business Day,
http://www.businessday.co.za/articles/Content.aspx?id=76611.
19 Faço uso da frase “planejamento urbano de base” segundo a definição de Marcelo Lopez de
Souza. Este autor escreve em seu estudo ‘Together with the state, despite the state, against the state:
Movimientos sociales como ‘agentes de planificación urbana crítica’, City, Vol. 10, nro. 3, 2006,
pp. 327-342.
20 Richard Pithouse ‘Struggle is a School: The rise of a shack dwellers’ movement in Durban, South
Africa’ Monthly Review, Vol. 57, No. 9, 2006. http://www.monthlyreview.org/0206pithouse.htm
Experiências - Lutas populares 143
O movimento não foi fundado por uma ONG, uma organização política e não
conta com financiamento externo. Era, no sentido denominado por Marcelo Lopes
de Souza, um projeto político autônomo21, que tomou a linguagem tradicional
da dignidade dos indivíduos, recriando-a numa forma cosmopolita apropriada
para a vida urbana. Desde o princípio o movimento revelava um sentimento
de afetividade e de preocupação pelo outro, próprio de uma congregação22;
uma cultura política lenta, profundamente democrática e deliberada23; uma
diversidade impressionante de etnias, raças e nacionalidades24.
Desde então, a relação entre movimento e estado passou da repressão direta
para o compromisso produtivo, porém cauteloso; e, em seguida, de retorno a um
modo repressivo ainda mais violento por parte do governo. Desde o primeiro
bloqueio de vias em março de 2005 até setembro de 2007, quando uma marcha
legal e pacífica até a prefeitura foi violentamente atacada pela polícia25, o estado
negou-se a aceitar a AbM como um organização legítima.
Em certo sentido, os assentamentos que haviam se afiliado de maneira
coletiva ao movimento foram tratados pela polícia como territórios dissidentes
e, em alguns casos, quando a tensão aumentava, foram ocupados pelas forças
militares. Os protestos de AbM foram proibidos de forma ilegal e atacados
quando seus membros tentavam desafiar as proibições. Alguns integrantes
conhecidos do movimento foram expulsos de seus trabalhos e passaram por mais
de 200 prisões e outros tipos de repressões policiais, incluindo o uso da violência
policial para prevenir, de forma física, que o movimento aceitasse convites de
rádio e televisão para participar de debates políticos26. Durante este período de
repressão, o movimento foi vítima de uma virulenta campanha de difamação
por parte do governo, que o acusava, principalmente, de conspiração política
organizada por um agente branco pertencente a um governo estrangeiro para
desestabilizar o país27.
21 Ver Marcelo Lopes de Souza ‘Urban Development on the Basis of Autonomy: a Politicophilosophical and Ethical Framework for Urban Planning and Management’ Ethics, Place and
Environment, Vol. 3, No. 2, 2000, pp. 187-201, 2000.
22 Richard Pithouse ‘Coffin for the Councillor’, Journal of Asian & African Studies, Vol. 41, Nos 1-2,
2006.
23 Raj Patel ‘A Short Course in Politics at the University of Abahlali baseMjondolo’, Journal of Asian
and African Studies, Vol. 43, No. 1, p. 95-118, 2008.
24 Richard Pithouse Abahlali baseMjondolo & the Struggle for the City in Durban, Sudáfrica
25 Ver Centre on Housing Rights & Evictions Open Letter to Obed Mlaba & Michael Sutcliffe, 2007,
http://abahlali.org/node/2664 and Human Rights Watch World Report 2009, http://www.hrw.
org/en/node/79205
26 Stephanie Lynch & Zodwa Nsibande, The Police and Abahlali baseMjondolo: A List of Key
Incidents of Police Harassment Suffered by Abahlali baseMjondolo, 2008 http://abahlali.org/
node/3245
27 Como exemplo deste tipo de discurso estatal paranóico ver Lennox Mabaso and Harry Mchunu,
144 Ciudades para tod@s
Apesar das dificuldades enfrentadas pelo movimento em outubro de 2005 até
setembro de 2007, os êxitos foram consideráveis. Este movimento estabeleceu a
Universidade de Abahlali baseMjondolo, em cujas conversações acordou-se proteger
sua autonomia rejeitando os partidos políticos. Decidiu-se que somente trataria
com ONGs quando estas estivessem preparadas e dispostas a trabalhar com o
movimento na base da reciprocidade28. Além disso, estabeleceram-se vínculos
úteis com diferentes igrejas. O lema chave do que se chegaria a conhecer como a
“motivação política profunda”29 do movimento foi “fala conosco, não por nós”.
Nas palavras do presidente do movimento S’bu Zikode,
Chegou a hora de que as pessoas pobres em todo o mundo definam-se a si
mesmas, antes de que alguém mais o faça, antes de que alguém mais pense
e atue por elas. Não permitam que outros lhes definam. Estou fazendo um
chamado aos intelectuais e às ONGs para que nos deem a oportunidade de ter
uma base para apoiar nossa própria criatividade, para apoiar nossas próprias
políticas. Nossa política não se origina nas instituições de ensino superior.
Tem sua origem em nossas próprias vidas e em nossas próprias experiências.
Estamos pedindo aos intelectuais e às ONGs que trabalhem conosco para criar
um espaço onde se possa pensar e debater em conjunto. Não queremos que
pensem por nós e falem em nosso nome. Não estamos preparados para escutar
a ninguém falar sobre a questão da ordem. Nem o governo, nem as ONGs, nem
ninguém. Estamos preparados para falar com quem quer que seja. 30
Durante este período o movimento continuou se expandindo, alcançando um
grau considerável de acesso direto para ser ouvido pelas audiências da elite. Em
termos práticos, o AbM conseguiu muitas vitórias e foi capaz de se preparar para
resistir aos despejos de maneira exitosa em todos os assentamentos onde possuem
influência; construir e defender novos shacks; concretizar abertamente e defender
com sucesso a expansão de assentamentos de shacks já constituídos; acessar a
vários serviços estatais sem aderir a nenhum partido; implementar a instalação de
Shackdwellers ‘under the sway of an agent provocateur’, Sunday Tribune, 24 Septiembre 2007,
http://www.sundaytribune.co.za/index.php?fArticleId=3451568. Para una respuesta a este
tipo de discurso por parte del presidente de la AbM S’bu Zikodes véase We Are the Third Force,
Noviembre 2005 http://www.abahlali.org/node/17
28 Para ler as reflexões de ativistas do movimento sobre a questão ver Living Learning edited por
Mark Butler (Church Land Programme: Pietermaritzburg), 2009 http://www.abahlali.org/
node/5843
29 Para reflexões de uma pessoa envolvida nas políticas de Abahlali baseMjondolo, véase ‘To resist
all degradations and divisions: an interview with S’bu Zikode’, Interface: A Journal for and about
Social Movements, No.2, 2009 http://interface-articles.googlegroups.com/web/neocosmos.
pdf?pli=1
30 Esta declaração foi entregue a Richard Pithouse por S’bu Zikode e foi pronunciada durante uma
conversa sobre o movimento Abahlali baseMjondolo realizada no Teatro de Soho, Londres, 5 de
junio, 2007 http://blip.tv/file/636398
Experiências - Lutas populares 145
creches infantis e outros projetos de apoio mútuo; conectar (ilegalmente) milhares
de pessoas ao fornecimento de energia elétrica e muitos ao abastecimento de
água; combater vigorosamente à opressão policial; democratizar a governança
nos assentamentos para conseguir o acesso direto e sustentado a sua audição nos
meios populares; defender seu direito à dissidência contra as elites dos partidos
locais; afirmar sua oposição à retenção de prestações sociais como forma de
castigo por sua dissidência; e lutar pelo desenvolvimento de uma luta exemplar
por terras e moradias tanto no campo como na cidade.
O AbM foi capaz de organizar reuniões e iniciar campanhas nas quais as ONGs,
os acadêmicos e advogados que estivessem dispostos a trabalhar pelo movimento
baseando-se no respeito mútuo e na área onde o movimento é forte, pudessem
fazê-lo; diferente do típico que é tomar como base o suposto direito a liderar e
dominar de fora as organizações populares. A primeira campanha implementada
deste modo foi contra a Lei de Assentamentos Precários. Esta lei foi primeiramente
proposta e em seguida promulgada na província de KwaZulu-Natal no ano de
2007. A intenção era repeti-la em outras províncias. Basicamente esta lei criminaliza
todas as ocupações ilegais de terra, as resistências contra as desocupações e qualquer
organização de moradores de shacks que ocupasse a terra de forma ilegal e que
reunisse dinheiro por meio de uma taxa de adesão31. Este processo de resistência a
Lei de Assentamentos Precários incluiu mobilizações massivas, debates públicos e
uma contínua disputa legal para declará-la como inconstitucional
Pouco a pouco, tornou-se aparente que o movimento havia entrado numa
segunda fase após o ataque contrário em setembro de 2007. Este ataque foi
presenciado por bispos locais, os quais o condenaram vigorosamente32. Também
foi condenado por organizações internacionais de direitos humanos33. Em seguida
as repressões policiais ilegais terminaram, o estado reconheceu a AbM como um
representante legítimo dos quatorze assentamentos de Durban e as negociações
com oficiais municipais foram iniciadas34. No princípio houve tentativas de
persuadir ao AbM a “transformar seu discurso político num discurso a favor
do desenvolvimento”, o que foi rejeitado.35 Por algum tempo chegou-se a um
beco sem saída, mas uma vez assegurado ao AbM seu direito de continuar seu
discurso político, dentro e fora das negociações, estas puderam continuar.
31 Centre on Housing Rights & Evictions, Business as Usual?
32 Police Violence in Sydenham, Septiembre 28 , 2007: A Testimony by Church Leaders http://
abahlali.org/node/2661
33 Ver Centre on Housing Rights & Evictions Open Letter to Obed Mlaba & Michael Sutcliffe, 2007,
http://abahlali.org/node/2664 and Human Rights Watch World Report 2009, http://www.hrw.
org/en/node/79205
34 Richard Pithouse Abahlali baseMjondolo & the Struggle for the City in Durban, África do Sul
35 Por exemplo, houve uma séria tentativa por parte do movimento, de politizar os incêndios dos
shacks. Ver A Big Devil in the Jondolos by Matt Birkinshaw, 2008 http://abahlali.org/node/4013
146 Ciudades para tod@s
Em maio de 2008 imigrantes africanos foram atacados e expulsos dos
assentamentos de shack em todo o país numa onda de perseguições xenófobas36.
O AbM decidiu prover refúgio e defender todos os estrangeiros37. O movimento
foi capaz de assegurar que nenhum assentamento afiliado ao movimento fosse
atacado e que os ataques executados em assentamentos não afiliados fossem
detidos38.
Em fevereiro de 2009, o AbM e o Município de Durban anunciaram um acordo
no qual ambas partes se comprometiam a participar das remodelações de três
assentamento in-situ, incluindo Kennedy Road, e na provisão de alguns serviços
básicos para quatorze assentamentos39. O fato se traduziu num número importante
de vitórias, incluindo uma ruptura decisiva com a lógica espacial do apartheid
(os assentamentos onde acontecerão melhorias estão na parte suburbana,
porém dentro da cidade), o que constitui uma forma de reconhecimento da
necessidade de acesso digno aos serviços para os assentamentos e a ideia de que
o desenvolvimento pode ser um processo colaborativo entre as comunidades e
o estado.
Em setembro de 2009, no entanto, alguns líderes foram atacados no
assentamento Kennedy Road por um grupo armado que entoava lemas étnicos40.
A polícia se negou a ajudar o AbM e somente estava presente para desarmar a
resistência espontânea à multidão. Pessoas morreram durante a tentativa de defesa
contra o grupo e as casas de mais de trinta líderes da AbM foram destruídas e
saqueadas depois que os dirigentes locais do partido que está no poder tomaram
o controle do assentamento. Os dirigentes partidários, tanto na cidade como na
província, atacaram o movimento com uma linguagem extremamente forte nos
dias posteriores ao ataque, condenado-o por sua exigência perante o governo
para que o mesmo declarasse inconstitucional a Lei de Assentamentos Precários
e acusando-o de se opor ao desenvolvimento. Afirmou-se aos oficiais da polícia
e do estado, bem como aos repórteres, que as ONGs estrangeiras financiavam o
36 Richard Pithouse ‘The May 2008 Pogroms: xenophobia, evictions, liberalism, and democratic
grassroots militancy in South Africa’, Sanhati, 16 Junio 2008, http://sanhati.com/articles/843/
37 Abahlali baseMjondolo, Abahlali baseMjondolo Statement on the Xenophobic Attacks in
Johannesburg, 21 Mayo 2008 http://www.abahlali.org/node/3582
38 Nigel Gibson ‘Upright and free: Fanon in South Africa, from Biko to the shackdwellers movement
(Abahlali baseMjondolo)’ Social Identities, Vol. 14, No. 6. (2008), pp. 683-715.
39 Malavika Vartak Experiences of Abahlali baseMjondolo and the Kennedy Road Settlement, Durban, South
Africa: A report for the Development Planning Unit of University College London, December
2009, http://www.abahlali.org/taxonomy/term/1495
40 Ver Ammistía Internacional, South Africa: Failure to conduct impartial investigation into Kennedy Road
violence is leading to further human rights abuses, 16 December 2009, http://www.amnesty.org/en/
library/asset/AFR53/011/2009/en/53fce922-d49e-4537-b3bb-84060cf84c85/afr530112009en.
html and Michael Neocosmos, Attacks on shack dwellers a failure of citizenship, Pambazuka
News, 10 Diciembre 2009, http://www.pambazuka.org/en/category/features/60925
Experiências - Lutas populares 147
movimento com o objetivo de deter o desenvolvimento para que, deste modo, os
africanos continuassem pobres e mantivessem seu acesso ao financiamento.
Três semanas depois dos ataques, o AbM conseguiu que a Corte
Constitucional declarasse inconstitucional a Lei de Assentamentos Precários.
Foi uma vitória eminente41. Contudo, partidários dos que estão no poder têm
ameaçado abertamente de morte os líderes do movimento, num contexto de
intensa hostilidade ao mesmo, a exemplo de condutas ilegítimas por parte da
magistratura local42. Estes ataques apoiados pelo governo contra o movimento
estão acontecendo em meio a uma mudança geral para uma política étnica
mais autoritária, de modo que o futuro do movimento, bem como de qualquer
afirmação popular do direito à cidade na África do Sul, é incerto.
41 Marie Huchzermeyer, ‘Ruling in Abahlali case lays solid foundation to build on’, Business Day, 4
Noviembre 2009, http://www.businessday.co.za/articles/Content.aspx?id=85924
42 Ver Obispo Rubin Phillip, Grave Concerns about the Detention without Trial of the Kennedy Thirteen:
This Travesty Must End, 18 Noviembre 2009 http://www.abahlali.org/node/6073
Foto arquivo AbM
A luta de movimentos de “pavement dwellers”1
em Mumbai, Índia
Maria Cristina Harris
Desde 1986, os “pavement dwellers” de Mumbai vem lutando para obter algum
tipo de reconhecimento das políticas públicas e não ser considerados somente
cidadãos temporários e de pouco valor. Apesar de ser um processo contínuo,
somente três organizações conseguiram melhorias significativas na definição de
seu status como cidadãos ativos que desejam assegurar não somente o direito à
moradia adequada, mas também seu direito à cidade.
Mumbai, a maior cidade da Índia e capital comercial do país, possui cerca
de 12 milhões de habitantes, dos quais 50% correspondem a moradores de
assentamentos precários que ocupam espaços livres e 10% são “pavement
dwellers”2. Diferente dos habitantes dos assentamentos precários que ocupam
espaços livres, os “pavement dwellers” constroem suas casas nas ruas de acordo
com a largura da calçada que encontram. Essas pessoas vivem nas ruas não
porque queiram viver aí e sim porque não tem a possibilidade de acessar um
lugar adequado para morar mais próximo do seu local de trabalho. Apesar de
ambas as classes de moradores representam mais da metade da população de
Mumbai, não são reconhecidos como habitantes que contribuem para a cidade e
sim considerados como grupos em situação transitória, com pouco valor para a
economia.
As organizações comunitárias de base como Mahila Milan e a Federação
Nacional de Moradores de Assentamentos Precários (National Slum Dwellers
Federation – NSDF na sigla em inglês), junto à organização Sociedade para a
Promoção de Centros de Recursos por Zona (Society for the Promotion of Area
1
2
Pavement dweller expressa uma realidade particular para a Índia: corresponde aos moradores
em extrema pobreza que vivem de forma permanente nas calçadas, onde constroem suas casas
bastante precárias.
Knudsen, 2007. Estes dados demográficos são provenientes de um censo realizado em 2001.
150 Ciudades para tod@s
Resource Centers – SPARC na sigla em inglês), vem trabalhando desde meados
dos anos 80 para melhorar a situação habitacional dos “pavement dwellers” na
zona de Byculla, no centro de Mumbai. Quando estas três organizações se
uniram, constituindo o que se conhece como Aliança, os “pavement dwellers” se
encontravam entre os grupos mais prejudicados na cidade. Apesar de serem
plenamente visíveis nas ruas, os “pavement dwellers” não estavam contemplados
nas políticas públicas. Não podiam obter o cartão de racionamento – que é uma
espécie de cédula de identidade que garante aos cidadãos o direito à educação e o
acesso a um subsídio alimentício –, nem tinham acesso aos serviços básicos como
água, serviços sanitários e eletricidade. Os “pavement dwellers”, ao contrário dos
habitantes dos assentamentos precários, também eram excluídos das votações
eleitorais e dos censos oficiais tanto municipais como nacionais.
A exclusão social que enfrentavam “os pavement-dwellers” de Byculla e a
constante ameaça de demolição de suas casas por parte do município os incitou
a exigir seu direito à cidade e o status de cidadãos. Em 1985, a SPARC e “os
pavement-dwellers” de Byculla realizaram seu próprio censo para demonstrar
sua presença na cidade. O resultado mostrou que 60% das famílias viviam em
Mumbai por mais de uma década, ou seja, tempo demais para que continuassem
excluídos das políticas públicos e considerados usurpadores.
Em 1986, a Aliança realizou uma exposição para exibir modelos na escala real
das casas desenhadas por e para “os pavement-dwellers”. Ela continua até hoje e foi
reproduzida em outras cidades da Índia, assim como em outros países da Ásia
e da África. Esta exposição de moradias é uma forma de envolver “os pavementdwellers” no desenho de suas casas de acordo com suas necessidades de espaço e
suas possibilidades de investimento. Também é uma forma de mostrar à cidade
e às autoridades que os pobres podem e deveriam ser partícipes da produção de
suas casas, assim como na construção e desenho da cidade.
Para o ano de 1995, foi concedida aos pavement-dwellers a oportunidade de
registro para participar das campanhas eleitorais. A partir desse momento foram
reconhecidos pela Autoridade de Reabilitação dos Assentamentos Precários,
entidade que ajuda os cidadãos que necessitam reassentar-se ou reconstruir suas
casas. Uma vez que os “pavement dwellers” começaram a ser reconhecidos, as
mulheres de Mahila Milan decidiram postular para a empresa de Abastecimento
de Eletricidade e Transporte de Bombay (Bombay Electric Supply and Transport
Undertaking, BEST na sigla em inglês), já que não queriam continuar dependendo
do abastecimento ilegal de eletricidade por meio de intermediários que cobravam
tarifas abusivas. Depois de dois anos de negociação com diretores de BEST e
apesar de sua reticência para outorgar o serviço aos “pavement dwellers”, Mahila
Milan, junto à NSDF e SPARC, conseguiram obter o serviço de eletricidade na
zona de Byculla. Em 1999, 125 famílias tiveram acesso legal à eletricidade e esse
número continua crescendo ao longo dos anos.
Experiências - Lutas populares 151
As conquistas obtidas pelos “pavement dwellers” de Byculla junto à Aliança
durante os últimos 23 anos tem sido muito importantes; conseguiram
representatividade nas políticas públicas urbanas, puderam participar do
desenho dos espaços urbanos e conseguiram um progresso considerável ao
exigir seu direito à cidade. Fica claro que através da cooperação e determinação,
as iniciativas locais como as que realizaram a Aliança e os habitantes de Byculla
podem ser exitosas e influenciar na definição da cidadania, além de permitir que
as cidades sejam espaços inclusivos para todos os seus habitantes.
As cidades contemporâneas estão se transformando em lugares cada vez mais
excludentes para os pobres, pois não dispõem de recursos suficientes para integrar
o mercado econômico dominante. O Plano de Desenvolvimento da Cidade de
Mumbai (MCDP na sigla em inglês), que vigorou entre 2002 e 2005 e cujo objetivo
era transformar Mumbai numa cidade de classe mundial para o ano de 2013,
tem o potencial de excluir ainda mais os “pavement dwellers” do espaço urbano.
O MCDP promete aumentar significativamente a disponibilidade de moradias
de baixo custo a preços acessíveis e a quantidade de habitações em geral. A
vontade de criar uma cidade de classe mundial e melhorar as casas significa,
no entanto, apresentar uma cidade sem acampamentos e habitações ilegais,
ou seja, uma cidade onde os “pavement dwellers” já não serão vistos. Para que
uma cidade seja “atrativa” a nível internacional, deve chamar a atenção, contar
com uma economia forte e deve investir em grandes projetos de infraestrutura
como transporte, centros de eventos e atrações turísticas. Onde se posicionam os
“pavement dwellers” dentro da lista de prioridades dos governos que pretendem
construir uma cidade de status de primeira classe a nível mundial?
Os governos devem agradecer o potencial que os cidadãos possuem para
desenhar e mudar positivamente o espaço urbano. Os “pavement dwellers” de
Byculla e a Aliança demonstraram que quando recebem o apoio do município
e de outras instituições como a Autoridade de Reabilitação de Assentamentos
Precários e a BEST, podem participar ativamente nas melhorias da comunidade
e redesenhar o espaço urbano para suprir as necessidades dos grupos mais
pobres da cidade. Se Mumbai quer converter-se numa cidade de classe mundial
deve garantir a igualdade no trato de seus habitantes e reconhecer os “pavement
dwellers” como cidadãos plenos e não como usurpadores. A cidade é das pessoas:
dos “pavement dwellers” de Byculla tanto quanto dos habitantes ricos. Assim,
se Mumbai deseja ser uma cidade de classe mundial deve oferecer habitações
adequadas aos cidadãos e permitir sua participação na tomada de decisões.
Uma cidade de classe mundial deve ser inclusiva e deve valorizar o local dando
prioridade às necessidades de seus cidadãos antes dos interesses externos. Desse
modo, deve permitir que os pobres, tais como os “pavement dwellers” de Byculla
continuem reclamando seu direito à cidade.
152 Ciudades para tod@s
Referências
Burra, Sundar. 1999. SPARC Housing Exhibitions. Website: http://www.sparcindia.org/.
Páginas: 1-15
Burra, Sundar and Liz Riley. 1999. Electricity to Pavement Dwellers in Mumbai. Sitio web:
http://www.sparcindia.org/. Páginas: 1-17.
Knudsen, Anne-Marie Sanvig. 2007. The Right to the City: Spaces of Insurgent Citizenship
among Pavement Dwellers in Mumbai, India. University College London Development
Planning Unit Working Paper No. 132. Páginas: 1-23.
McKinsey & Company. 2003. Vision Mumbai. Sitio web de la oficina de India: http://
www.mckinsey.com/locations/india/communityservice/visionmumbai/
SPARC. 1995. We the Invisible Revisited. Sitio web: http://www.sparcindia.org/
Villa Los Cóndores, Temuco, Chile
Contra o despejo e pelo direito à cidade.
Ana Sugranyes
A política de financiamento habitacional no Chile tem conseguido oferecer
um teto aos pobres e reduzir o déficit habitacional, estabilizando o setor da
construção na economia nacional. De meados dos anos 80 até 2000, o Ministerio
de Vivienda y Urbanismo1 (MINVU) financiou empresas para a construção de
aproximadamente 600 mil moradias de baixo padrão.
A Villa Los Cóndores é parte dessa história. Trata-se de um conjunto de 900
moradias básicas, construído a meados dos anos 90, em pleno apogeu do subsídio
habitacional, quando o MINVU pressionava seus executores regionais, os SERVIU
(Servicio de Vivienda y Urbanismo2), para alcançar as metas orçamentárias
da maneira que fosse possível. Naquele momento se construía no Chile com a
mesma taxa anual da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial., certamente
bastante elevada de 10 unidades para cada mil habitantes.
Los Cóndores faz parte do bairro Pedro Valdívia Norte, nos limites da cidade de
Temuco, capital de Araucanía, com seus 240 mil habitantes. Toda essa região do
bairro é produto do subsídio habitacional com habitações de cerca de 40 m² em
edifícios de três andares, com escadas metálicas que se cruzam no pátio central.
Diferente dos demais conjuntos do lugar, Los Cóndores é o produto de um ensaio
tecnológico num terreno complicado, com muitos desníveis e vertentes brotando
por todo lugar. Buscando diminuir ao máximo os custos, o SERVIU permitiu que a
empresa CONEC construísse os blocos com estrutura metálica frágil, sem reforços
antissísmicos; os pilares, mal protegidos da umidade do terreno, apresentaram
falhas desde o início da vida no conjunto habitacional; as paredes, feitas de painéis
frágeis podem romper com uma pedrada, quase como vidro.
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2
Ministério de Habitação e Urbanismo
Serviço de Habitação e Urbanismo
154 Ciudades para tod@s
A vida das 900 famílias em Los Cóndores tem sido complicada desde o início
(1996). Os moradores, através de todo tipo de organização, vem tentando
canalizar suas queixas. Apesar de não cobrar, o SERVIU perdoou a dívida de
crédito, 40% do valor da habitação; assim as famílias se tornaram proprietárias de
900 moradias em muito mal estado. Em 2004, as reivindicações de Los Cóndores
chegaram ao parlamento. Para resguardar a segurança dos habitantes, a Câmara
de Deputados do Congresso Nacional decretou a destruição de Los Cóndores,
orientação do poder legislativo ao executivo que o MINVU acatou.
Para levar adiante o desmantelamento do conjunto, o SERVIU informou aos
moradores que oferecia 280 UF, o valor nominal da moradia no momento de sua
construção, que corresponde a cerca de 7 mil euros. As famílias que levavam 10
anos sobrevivendo em Los Cóndores, por medo ou por “falta de ignorância” como
se diz no Chile, começaram a assinar as escrituras de revenda da habitação ao
SERVIU. Com o abono outorgado pelo SERVIU, os moradores tiveram que procurar
habitações usadas ou novas, mais longínquas do centro de Temuco. Pelo aumento
do valor do solo e pelos negócios imobiliários em Temuco, os ex-moradores de Los
Cóndores foram parar em San Ramón, a mais de 20 Km do centro desta cidade de
porte médio. Para, supostamente, compensar as condições precárias da revenda
das habitações, o SERVIU autorizou as famílias a levarem tudo o que havia em sua
antiga casa; e de fato foi o que fizeram, levando instalações, janelas, portas, além de
destruírem as paredes. Pouco a pouco, a região de Los Cóndores se transformou em
terra de ninguém, ocupada por gangues e viciados em drogas.
Nem todos os moradores aceitaram a revenda. Um grupo de 15 famílias
demandou contra o SERVIU; na primeira instância ganharam uma boa
compensação; não se sabe, contudo, se o SERVIU apelará a outra instância.
Outro grupo de 122 famílias de proprietários, arrendatários e simpatizantes se
organizaram em dois Comités de Vivienda Los Cóndores3, optando por reivindicar
o direito a ficar no seu bairro, de exigir a reconstrução de suas moradias no
mesmo lugar que os pertence, onde já tinham escolas, centro de saúde, sua vida e
suas redes sociais, além dos ganhos em infraestrutura de transporte até o centro,
obtidos ao longo dos anos, pelo bairro de Pedro de Valdívia. As famílias também
não podiam perder a proximidade de suas fontes de renda.
A primeira grande luta dos Comitês foi o resguardo de suas vidas num entorno
ocupado e violento. A partir de 2005, a vida em Los Cóndores tornou-se impossível:
os moradores que se mantiveram nos edifícios parcialmente abandonados eram
assaltados de dia e à noite; sofreram todo tipo de violência física, perda de bens
e enfermidades devido ao estresse. No início os Comitês não conseguiram que o
SERVIU os atendesse. Pouco a pouco, com o apoio do Município, conseguiram
3
Comitê de Habitação Los Cóndores
Experiências - Lutas populares 155
proteção policial e que o SERVIU construísse cercas e portões. Os moradores
estabeleceram sistemas de vigilância e alarme para responder aos novos assaltos.
A questão da segurança das 122 famílias tem requerido muito trabalho e uma
importante capacidade organizativa. A pesar deste esforço de sobrevivência, os Comitês
não perderam de vista o objetivo principal de sua luta: a construção de moradias dignas
no seu bairro, Los Cóndores. Dessa forma é que os dirigentes começaram a construir
uma base de apoio técnico: primeiro o Departamento de Acción Social Del Obispado4;
descobriram a Coalizão Internacional do Habitat (HIC) pela internet; somaram-se
então a Corporação SUR, o Colegio de Arquitectos e a Universidad Mayor.
Citando o Presidente do Comitê Villa Los Cóndores, Sector 4, Luis Álvarez, no
momento estão sendo negociados perante o MINVU os seguintes princípios e
detalhes de implementação:
1. A aplicação de nosso direito de continuar vivendo em Los Cóndores, onde
somos proprietários legais e formais das habitações e do solo com vocação
urbana, embora formalmente continuemos fora da área urbana.
2. A reivindicação de um plano geral de desenvolvimento da região de Villa
Los Cóndores para especificar onde vamos construir nossas moradias e
onde vão estar os parques que o MINVU quer implementar no lugar. Ou
seja, uma proposta de bairro.
3. O projeto da habitação e do bairro num esforço participativo que facilite
desde já as condições de vida digna em “La Nueva Cóndores”.
4. A reivindicação de mecanismos transparentes para a distribuição dos
terrenos onde estarão nossas casas.
5. As bases para o assentamento temporário de arrendatários e proprietários
durante o tempo de execução das novas habitações no bairro.
6. A distribuição por parte do Estado de todos os subsídios necessário
para o desenvolvimento das habitações e do bairro, seja do MINVU, da
Administração de Araucanía ou do Município de Temuco.
7. O desenvolvimento de uma pequena empresa para desenvolver nossas
capacidades de autogestão para a construção de moradias.
8. A construção de um posto policial no bairro, nisso já avançamos muito a partir
do nosso plano de segurança frente às experiências vividas e os conhecimentos
desenvolvidos por nossas organizações durante os últimos anos.
Este rol de reivindicações é um exemplo da aplicação do direito à cidade,
onde se cruzam os alcances dos direitos dos cidadãos, dos direitos econômicos,
sociais e culturais e de uma estratégia política de desenvolvimento local justo e
equitativo.
4
Departamento de Ação da Diocese
156 Ciudades para tod@s
Referências
Alvarez, Luis. “La experiencia de Villa ‘Los Condores’, Temuco”. V Jornada Internacional
de Vivienda Social. Valparaiso, October 10, 2007.
Carrillo, Miguel Angel. “Falta Seguridad en Villa Los Cóndores”. La opiñón, October 20,
2007.
Os sem-teto. Uma experiência de luta
pela moradia, em Mar del Plata
Ana Nuñez
A cidade de Mar Del Plata está localizada no sudeste da Província de Buenos
Aires, Argentina, e tem aproximadamente 700.000 habitantes. Sua singularidade
consiste em ter sido criada sobre terras privadas, transgredindo a Lei, em 1974.
Uma ilegalidade fundamental que determinou um desenvolvimento urbano
particular, dependendo de uns poucos proprietários de terras para que, como,
onde e para quem lotear o solo urbano, expulsando historicamente as facções
sociais mais desfavorecidas das áreas centrais para espaços inadequados a
localização habitacional (terrenos pedregosos, inundáveis, sem transporte
público, sem equipamentos, etc.). Esta violência, material e simbólica, exercida
pelas facções sociais dominantes foi complementada pela ausência histórica de
políticas de solo urbano e habitacionais por parte dos sucessivos governos locais.
Hoje, entre 15 e 20% da população de Mar Del Plata habita em 219
assentamentos precários e povoados dispersos pela cidade, em situação de
extrema pobreza e fontes oficiais estimam a quantidade de 11.000 famílias em
situação de emergência habitacional.
No contexto da aguda crise em que se encontrava Argentina no ano de 2002,
uma mesa de diálogo composta por diferentes atores sociais convergiram na
necessidade de fortalecer programas sociais destinados à emergência habitacional
como uma forma de recomposição política e econômica e de contenção social,
cuja expressão foi o Plano Federal de Construcción de Viviendas1, mediante o qual se
financiaria, pelo governo nacional, a construção de moradias para facções sociais
desfavorecidas através de distintos programas a serem implementados pelos
Institutos Provinciales de Vivienda2.
Assim surgiu na Província de Buenos Aires, no ano de 2005, o Subprograma
1
2
Plano Nacional de Construção de Habitação
Institutos Estaduais de Habitação
158 Ciudades para tod@s
bonaerense IX-Dignidade, destinado a “eliminar as moradias insalubres e o
amontoamento”, que em Mar del Plata se destinou somente à construção de 500
moradias para a erradicação dos habitantes da Vila Paso, proposta que datava
do ano de 1999, mas paradoxalmente localizada numa zona urbana com
boas condições de habitabilidade e de alta valorização social e econômica.
Paralelamente, o governo municipal abriu um registro de emergência habitacional
para adjudicar 2018 unidades habitacionais que se construiriam no marco do
Plano Federal de Moradias financiadas pelo governo nacional.
O subprograma: Dignidade?
“Os pobres são necessários pelas suas mãos, como trabalhadores, porém a
cidade dominada pelo mercado não foi construída para dar-lhes abrigo.” (Oscar
Pagni, ex-Secretário de Legal e Técnica do Município de Gral. Pueyrredon,
autor do Projeto de realocação da Villa Paso, março de 1999)
“Significa mudar o cartão postal da cidade de Mar del Plata e mudar o
desenvolvimento urbano de bairros importantes” (Conselheiro Eduardo Salas;
Debate sobre o projeto de Reassentamento de Villa Paso, Ata de Sessões do
Honorável Conselho Deliberativo, 16/07/99)
Estes depoimentos ilustram a negação do Direito à cidade, nos termos pensados
por Henri Lefebrve, através de uma política de erradicação-reassentamento,
autoritária e alienante, reprodutora da desigualdade e vulnerabilidade social.
Com efeito, um dos objetivos deste Subprograma foi “desarmar certos laços
sociais”, o que motivou que as 500 moradias se distribuíssem em três localizações
diferentes: Bairro Las Heras, Bairro El Martillo e Bairro Don Emilio, todos
carentes de infraestrutura básica de serviços, ausência de meios de consumo
social, escassos meios de transporte público, inundáveis, etc., afetando assim sua
identidade sócio-cultural, desatando tensões, incerteza, desarticulação social e
deterioro das condições de vida, o que significa um desarraigamento forçado.
(Foto Nº 1). Além disso, os conflitos desatados em cada bairro de destino dos
habitantes fizeram com que o então intendente3 difundisse a ordem de que os
assentados de cada bairro terão “certificado de boa conduta e averiguação de antecedentes
policiais”, segundo relatam entrevistados.
Uma porcentagem alta das moradias foi adjudicada ainda inacabadas e com
sérios problemas construtivos:
“Falta água quente, os vasos sanitário estão soltos, tem goteiras e umidade.
Os aquecedores de água tem sérios problemas e o tratamento sanitário não
está funcionando. Alguns tiveram que quebrar as casas para colocar os
canos.”
3
prefeito, administrador municipal
Experiências - Lutas populares 159
“Tiraram as pessoas da Vila sem dar-lhes nada. Agora querem fazer o mesmo
com todos os que ficaram…” (Entrevistas próprias)
Entretanto, em dois dos bairros (Las Heras e El Martillo), a maior parte do
Programa havia sido paralisado no ano de 2007, quando as duas empresas
construtoras suspenderam as obras, com as habitações apenas iniciadas,
reclamando maiores custos.
Assim, no dia 23 de março de 2008, mais de 200 família em situação de
extrema pobreza e em emergência habitacional, residentes do Bairro Pueyrredon,
contíguo com sete quadras do Complejo Dignidad del Bº El Martillo4, decidiram
coletivamente recuperar o terreno com mais de 40 unidades habitacionais semiconstruídas e abandonadas pela empresa construtora, após vários anos de espera
infrutífera e depois de se cadastrarem no Registro de Emergência Habitacional,
antes citado:
“Tentei ter uma moradia através do Município: tenho o papel, como a maioria
dos que aqui estão... Supostamente me dariam uma casa porque é algo urgente,
mas já passou um ano e aqui estou sem resposta...
“Entre todos fizeram um expediente (…) para ver se poderiam me facilitar uma
habitação a ser paga por mês. Já faz quase 3 anos que foi mandada a nota e até
hoje não tive resposta..”
“...sem água, sem esgoto... chove e tudo se inunda, porque justo ao lado da
ponte, justo aí... estávamos vivendo debaixo da ponte. ”
(Entrevistas próprias)
Porém a repressão policial brutal fez com que regressassem ao seu bairro de
origem nesse mesmo dia. Não obstante, a autodenominada Junta Vecinal Los Sin
Techo5 começou um processo de reorganização com diferentes atividades como
mobilizações, abaixo-assinados, entregas de petições e outras iniciativas na busca
de alguma solução concreta ao seu problema habitacional.
Depois de um ano, em 15 de janeiro de 2009, com um grande apoio de uma
rede solidária e munidos previamente de um recurso cautelar da Justiça, 54
daquelas famílias regressaram ao terreno. Contudo, no mesmo dia, a empresa
construtora a cargo do conjunto denunciou “delito de usurpação”, justificando
assim a impossibilidade de continuar a obra, sendo que havia sido abandonada
em 2006, como já foi dito, por problemas de custos.
Porém a ocupação do terreno não se limitou somente a reivindicação
por uma moradia, mas sim compreendia um projeto autogestor de maior
envergadura, como demonstrado pelo desenvolvimento de hortas comunitárias e
4
5
Complexo Dignidade do Bairro El Martillo
Junta dos Moradores Sem-Teto
160 Ciudades para tod@s
a relação com grupos culturais de artistas, universitários, docentes, trabalhadores
e trabalhadoras, organizações sociais e os próprios moradores da zona, que
apoiaram as iniciativas dos Sem Teto, com oficinas de alfabetização, apoio
escolar, sexualidade e periódicas mobilizações pela cidade (Foto Nº 4). Em outras
palavras, a recuperação deste espaço transcendia o imediato Direito à moradia
e lutava pelo Direito à cidade no sentido de que resgatava o valor do uso do
espaço, primava a apropriação sobre a dominação, como propõe Lefebvre. Era
a reconstituição de um conjunto de direitos inalienáveis: a moradia, a saúde, a
educação.
O despejo
No dia 10 de abril de 2009 se conheceu a sentença do iminente despejo do terreno
recuperado, que se realizaria no dia 17. Assim, a partir da jornada do dia 16 se
organizou o “acampamento pela dignidade”, e a resistência ao despejo, ao que
convergiram diferentes organizações sociais, estudantes, profissionais, artistas, etc.
Finalmente, em 17 de abril de 2009, efetivou-se, com brutal repressão de
distintas forças, a desocupação do terreno. Despejo este que foi inconstitucional,
pois foi cumprido apenas um ponto de todos os o Juiz havia estipulado que
deveriam ser respeitados para levá-lo adiante: não chovia. A parte disso, a Fiscal
de turno, que deu a ordem, retirou-se antes, não havia ambulâncias suficientes, o
número de policiais superava em muito a proporção em relação à população a ser
despejada, além de não estarem identificados, entre outros pontos.
Passaram-se longas cinco horas nas quais representantes dos Sem-Teto, os
advogados defensores e quem assinava por isso, como responsável dos informes
sócio-habitacionais apresentados à Justiça, tentamos expor perante os diferentes
fiscais, a inconstitucionalidade do despejo. Porém, à somatória de ordens que
constroem a ordem urbana, dispararam as armas da repressão, num ato instrutor
e disciplinador da sociedade.
“...foi tal o enfurecimento da polícia, trataram-nos como animais,
lamentavelmente tivemos que abandonar nosso bairro, nos perseguiram por
até 15 quadras. Já não queriam apenas nossas casas... Não lhes interessava
as vidas humanas. Querem nos matar como cães, destruíram nossas casas,
arrombaram as portas que fizemos com nosso esforço. A empresa é apenas uma
mais de toda esta corrupção de merda que existe. Querem vir e nos matar como
ratos e isso é o que fizeram.” (depoimento de Adriana).
As famílias se instalaram onde puderam, em casa de algum vizinho ou
familiar, porém a grande maioria o fez no Centro Cultural América Livre, espaço
recuperado em 2006, mas que não está preparado para albergar a tantas pessoas.
Experiências - Lutas populares 161
No entanto, o terreno ficou desocupado:
“Primeiro e, principalmente, pedem identificação e, se não tens onde deixar as coisas,
não te deixam retirá-las. E se não tens um frete, também não. Assim disseram…” (Entrevista própria)
A partir do dia seguinte foram organizadas ações diretas durante toda a
semana: marchas, mobilizações, diversas atividades artísticas, etc. reclamando
uma solução imediata. Assim se alcançou, depois de aproximadamente 15 dias,
a abertura de uma Mesa de Negociação com representantes dos Sem Teto, do
campo político burocrático, Conselheiros dos distintos blocos e os responsáveis
pelo despejo, para analisar as propostas mediatas e imediatas para as famílias.
Após quatro meses da desocupação, conquistou-se a cessão de 41 terrenos
limítrofes ao imóvel recuperado; 5 moradias do Plano Federal para as famílias
correspondentes por pontuação segundo o Registro de sua situação sócio-habitacional,
um subsídio para 19 famílias para afrontar um possível aluguel temporário e o
financiamento do governo nacional para a construção de 41 moradias, de dois
e três dormitórios, a serem construídas por diferentes cooperativas da cidade,
processo que, até o dia 15 de setembro de 2009, não havia começado.
Reflexões finais
O direito à cidade não se trata de um direito natural, nem sequer contratual,
afirma Lefebvre. Significa o direito de todos os cidadãos a figurar em todas as
redes e circuitos de comunicação, de informação, de intercâmbios, tudo o qual
depende de uma propriedade essencial do espaço urbano: a centralidade. Esse
direito proclama a crise inevitável dos centros baseados na segregação; significa
a reconstituição de uma unidade espaço-temporal, de uma união.
Para isso, torna-se imprescindível recuperar a voz do habitante, suas práticas
e representações e as relações sociais que se são entretecidas com e no bairro;
é necessária uma perspectiva relacional e histórica, situando as experiências
do habitar e não a ilusão urbanística do hábitat. O espaço do habitar são gestos,
percursos, corpo e memória, símbolos e sentidos, contradições e conflitos entre
desejos e necessidades.
Nos processos descritos aqui, primou-se, a partir das práticas sociais, a
apropriação de um bem de uso, deslocando a tensão entre legalidade e legitimidade.
Porém foi criminalizado pela ordem hegemônica, sustentado no disciplinamento
da propriedade privada. Um direito real que expressa a dominação e entra
em contradição com o direito social à uma moradia digna, cujos resquícios, no
entanto, permitem-nos resistir e lutar até alcançar uma cidade igualitária e justa.
162 Ciudades para tod@s
Referências
Lefebvre, Henri: El derecho a la ciudad, Barcelona, Ed. Península, 1969
Lefebvre, Henri: Espacio y política. El derecho a la ciudad II, Barcelona, Ed. Península, 1976
Núñez, Ana: “Informe socio-habitacional de las familias del Bº Pueyrredón”, en Revista
De acá, año III, Nº 29, mayo 2009, pp. 12-18qq
Comunicados de Prensa Junta Vecinal Sin Techo, http://www.mdpsintecho.blogspot.com
Foto arquivo Ana Nuñez, Mar del Plata, fevereiro 2009
A luta dos habitantes dos parques de Osaka, Japão
Os sem-teto exigem seu direito à cidade
Marie Bailloux
Os antecedentes e contexto
Os estrangeiros pensam que no Japão não existem assentamentos precários, mas
o capitalismo moderno depende basicamente da exploração dos pobres que
vivem e trabalham em péssimas condições.
Há quatro anos, uma pesquisa do governo japonês descobriu que o Japão
possui 25.296 pessoas sem casa, vivendo em parques urbanos, nas margens de
rios, perto de estações de trem, em cyber cafés ou em outras áreas públicas. Deste
número, mais de 40% vivem em parques. A prefeitura de Osaka tem a maior
população sem-teto do Japão – 7.700 pelas cifras oficiais e mais de 15.000 não
oficialmente. Desde os anos 90, quando a crise econômica produziu um aumento
rápido do desemprego, muitos foram viver nos parques. Recessão e desemprego
são as principais causas da situação dos sem-teto.
Quando pessoas socialmente vulneráveis e desprotegidas atuam coletivamente
e criam comunidades seguras nos parques públicos, isso representa um fator
de proteção para sua saúde física e mental, além de uma grande capacidade
de organizar sua sobrevivência e resistência civil. Mas as autoridades retiram
violentamente as barracas e os que dormem nelas sem nenhuma comodidade,
removem e destroem seus pertences de modo a “limpar” os parques dos sem-teto
e “ter espaços públicos agradáveis”, o que os obriga a sobreviver na incerteza
das ruas, de modo que, ao se dispersarem, também aumenta o risco de que
desapareçam. Conforme palavras do governador “…(Por culpa dos sem-teto) as
jovens já não podem fazer ginástica nem exercícios nos parques durante a tarde”:
os pobres são vítimas de violência física, mas também de preconceito e sofrem
uma exclusão social profunda.
Além disso, um cidadão sem endereço registrado é excluído de muitos outros
direitos, incluindo o de votar, acessar o sistema nacional de seguro de saúde e obter
164 Ciudades para tod@s
a licença de motorista ou passaporte. Diaristas não podem receber os benefícios
relativos ao desemprego; nem podem acessar a previdência social, a qual exige
que o beneficiário possua um endereço permanente. As administrações de bemestar social não estão provendo aos cidadãos japoneses nem mesmo o mínimo
nível de subsistência como garantido pela Constituição. Uma vez que alguém
se torna sem-teto, o fato de não ter endereço faz com que seja quase impossível
encontrar trabalho, logo, garantir sua subsistência para ter um lugar para morar.
Perspectiva específica das redes e alianças
Desde a década de 90, quando a economia asiática estava “despencando”
e produzindo o incremento do número de pessoas que dormiam na rua,
aproximadamente 30 organizações se reuniram para inaugurar uma rede
nacional de ajuda aos moradores de rua no sentido de formular suas reclamações
e se tornarem mais independentes.
Para os sindicalistas e outros, os sem-teto não podem ser tratados como crianças
que necessitam proteção, mas deve-se encorajá-los a construir relações sociais
saudáveis dentro de sua própria comunidade e lutar contra a supremacia da
exclusão social. Ao mesmo tempo, eles aprendem a lutar de maneira organizada
pelo seu direito a uma existência descente e contra o abuso dos direitos humanos.
Lutam por uma moradia digna, mas também pelo direito a não ser desalojado.
A resistência do Sr. Yoji Yamauchi
Yoji Yamauchi, um japonês de 58 anos, é sem-teto desde 1998. Seu abrigo é uma
barraca removível de lona azul localizada em um parque na cidade industrial de
Osaka.
Contra as autoridades e em aliança com associações de pessoas sem-teto, ele
iniciou uma luta singular contra a violação do Artigo 11 do Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assinado pelo Japão (...”o direito
de todos à... moradia”). O objetivo é lutar contra a desocupação forçada e ser
reconhecido como alguém sem-teto com direito à cidade por meio da obtenção
de um endereço oficial na rua.
Em junho de 2001, patrocinado pela “Asian Coalition for Housing Rights
(ACHR)” (Coalizão Asiática pelos Direito à Moradia), ele integrou uma delegação
de sem-tetos e um grupo de apoio popular que visitou Hong Kong para avaliar
localmente as condições de vida das pessoas sem-teto e trocar experiências.
Em março de 2004, o Kita Ward (entidades locais do norte de Tóquio
controladas diretamente pelo governo municipal) negou-se a registrar o parque
como seu endereço.
Experiências - Lutas populares 165
Em abril de 2005 uma campanha internacional de solidariedade realizada
por “Koen-no-Kai” (O Coletivo do Parque) – para enviar correspondências ao
endereço postal “ilegal” do Sr. Yamauchi no Parque Ogimachi – recebeu o apoio
de Habitat International Coalition (HIC) que pressionou pela validação do seu
endereço perante as autoridades.
Decidido a satisfazer seu direito humano à moradia, apresentou uma demanda
legal perante o Tribunal do Distrito de Osaka e, em janeiro de 2007, ganhou o
caso, uma vez que o tribunal apoiou sua reclamação ao decidir que a residência
de uma pessoa é o lugar onde vive, sem levar em consideração seu direito a viver
em tal localização.
O Escritório Municipal apelou contra a decisão original com o argumento de
que uma barraca não é uma estrutura permanente e enviou o caso ao Supremo
Tribunal de Osaka, que em 2007 anulou a decisão. Este declarou que era ilegal usar
o parque como endereço com o argumento de que a barraca, ao ser desmontável,
não reúne condições de “sabedoria convencional” de residência e agregou que
a aprovação do veredicto anterior incitaria outras pessoas a mudar-se para o
parque. Então o Sr. Yamauchi e seu advogado apelaram a Corte Suprema.
Em outubro de 2008, depois de um ano e meio de silêncio, o caso foi indeferido
pela Corte Suprema, terminando sem uma resolução verdadeira.
O Japão, como outras sociedades capitalistas “desenvolvidas”, possui
assentamentos precários onde se reúnem os grupos marginais em busca de
trabalho e de um lugar digno para viver. Num país capitalista moderno, modelo
de produção e organização, as pessoas sem-teto não estão sequer autorizadas
a dormir numa barraca removível na rua e são, sistematicamente, vítimas de
despejo.
O direito à cidade inclui o pleno gozo de todos os cidadãos do usufruto dos
espaços públicos e do acesso à renda, a oportunidades, à terra e à moradia, à
água e aos serviços sanitários, à educação e à assistência de saúde. Segundo os
Princípios e as Bases Estratégicas da “Carta Mundial pelo Direito à Cidade” – o
pleno exercício da cidadania e a gestão democrática da cidade, as funções sociais
da cidade e da propriedade urbana, a igualdade e a não discriminação, a proteção
especial dos grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade, o compromisso
social do setor privado, a promoção de uma economia solidária e de políticas
tributárias progressistas – , nenhum destes aspectos do direito à cidade foi
reconhecido nem respeitado no caso apresentado.
Desde 2005 a Habitat International Coalition (Coalizão Internacional pelo
Habitát) vem apoiando diversos chamados a ações solidárias para apoiar
os japoneses sem-teto e ajudar na prevenção de desocupações forçadas. Das
diferentes iniciativas respaldadas que defendem o direito à cidade, o participante
mais persistente é o Sr. Yoji Yamauchi, que tem demonstrado um compromisso
166 Ciudades para tod@s
constante a longo prazo na sua luta, além de habilidades para estabelecer laços e
fomentar gestos solidários provenientes de todo o mundo.
A “Campanha dos Postais”, lançada em 2005, foi pragmática, simples e teve
um impacto positivo. Seu êxito teve como base a participação das pessoas, o que
permitiu aumentar a consciência internacional sobre as péssimas condições dos
sem-teto no Japão em 2005 e 2006. Finalmente pode ter contribuído ao triunfo
do caso do Sr. Yamauchi perante o Tribunal do Distrito de Osaka a princípios de
2007, mas proporcionou a esperança e a energia para perseverar na sua luta para
romper este círculo vicioso.
Referências
Asian Economic News. “Japanese, Korean homeless show solidarity with H.K”. Kyodo
News International, Inc. June 11, 2001. http://findarticles.com/p/articles/mi_
m0WDP/is_2001_June_11/ai_75504623.
Frei, Matt. “Japan homeless living in internet cafes”. [Video]. BBC News. March 21, 2009.
http://news.bbc.co.uk/1/hi/business/7953609.stm.
Habitat International Coalition. “World Charter for the Right to the City”. 1995. http://
www.hic-net.org/document.php?pid=2422.
Housing by People in Asia. “Homeless in Japan - Homeless update”. Newsletter of the Asian
Coalition for Housing Rights, no. 13. June 2001. http://www.achr.net/ACHR%20
Newsletter%20No%2013%20without%20photos.pdf.
Koen-no-Kai Petition Board. “Possible Tokyo Ordinance Threatens Homeless”.
Independent Media Center. April 29, 2005. http://japan.indymedia.org/newswire/
display/2171/index.php.
Nanba, Kazunari. “Petition to stop the forced eviction of the homeless”. Asian Coalition for
Housing Rights. February 8, 2001. http://www.achr.net/new_page_6.htm#OSAKA.
San’ya Day Laborers’ Welfare Center. “Program: CO Theory and Practice - Organizing
Japan’s Urban-Industrial Underclass”. Leaders and Organizers of Community
Organization in Asia. December 8, 2005. http://www.locoa.net/home/?doc=bbs/
gnuboard.php&bo_table=p_co_theory&page=1&wr_id=17.
The Japan Times. “Reversal: Park not address of homeless”. January 24, 2007. http://
search.japantimes.co.jp/cgi-bin/nn20070124a2.html.
Reivindicando os direitos do cidadão em Accra, Gana
Afia Afenah
Centenas de milhares de moradores da África subsaariana enfrentam a cada ano a
ameaça dos despejos forçados. Segundo o Centro pelo Direito à Moradia e contra
os Despejos (Centre on Housing Rights and Evictions COHRE) produziramse, somente entre 2003 e 2006, mais de dois milhões de despejos forçados em
dezenove países africanos (COHRE, 2006). O mais alarmante é que na Angola,
Guiné Equatorial, Gana, Quênia, Nigéria e Zimbábue expulsaram os residentes
para dar lugar a projetos de regeneração urbana, apesar de haverem ratificado o
Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que consagra o direito à
moradia e à proteção contra despejos forçados.
Este estudo de caso sobre a tentativa de desocupação forçada ilegal dos
residentes de Old Fadama, o maior assentamento informal de Accra, vem contribuir
para a incrementação dos poucos conhecimentos sobre o desenvolvimento dos
movimentos sociais urbanos na África ocidental. Expõe as circunstâncias sob as
quais o governo municipal tentou desalojar a comunidade, além de apresentar
e analisar o movimento urbano local que se formou posteriormente como parte
de um movimento internacional mais extenso pelos direitos à moradia, com o
objetivo de protestar contra o despejo e encontrar soluções alternativas.
Os residentes de Old Fadama apelaram, sem êxito, contra a ordem de despejo
ante o Supremo Tribunal de Gana. Como resposta, a comunidade procurou apoio
internacional de parte de Shack Dwellers International (SDI)1, com quem tiverem
sucesso em deter o despejo ilegal, além de estabelecer um diálogo construtivo
com as autoridades locais. No desenrolar desse processo os habitantes urbanos
pobres de Accra criaram uma rede paralela de organizações comunitárias e nãogovernamentais que tem ido mais além da prevenção de desocupação em Old
1
Shack Dwellers International é uma rede de organizações locais de moradores de assentamentos
precários, unidos a nível local e nacional para formar federações de habitantes urbanos pobres.
168 Ciudades para tod@s
Fadama, através da abordagem de questões mais amplas relacionadas com a
exclusão social enfrentada pelos pobres das cidades de Gana.
O caso de Old Fadama ilustra o conceito de que os impactos negativos
e os custos sociais prejudiciais causados pela globalização do capital e a neoliberalização das cidades estão criando “novas formas de solidariedade translocal
política e de sensibilização entre os marginalizados e excluídos da cidade que
habitam, que transcendem o nível local. A globalização do projeto neoliberal,
consequentemente, relaciona-se (…) com a tendência à globalização parcial das
redes de resistência” (Peck y Tickell, 2002, “Neoliberalizing spaces” ).
Ao opor-se ao despejo forçado de Old Fadama, cujas causas originaramse claramente no enfoque neoliberal de planejamento urbano da autoridade
municipal, a comunidade abriu o espaço político para a renegociação das relações
de poder existentes. Embora este processo haja enfrentado numerosos obstáculos
no seu desenrolar, tem fortalecido a capacidade dos pobres das zonas urbanas
de Gana para reclamar seus plenos direitos humanos e de cidadania ao exigir a
participação no usufruto e na criação do espaço urbano que habitam, por meio do
planejamento urbano participativo e da existência de um governo democrático,
bem como uma distribuição de renda mais igualitária dos recursos, incluindo
infraestrutura e serviços urbanos essenciais.
Antecedentes do estudo de caso:
O Capítulo 5 da Constituição de Gana estipula a proteção dos direitos humanos
e as liberdades de todos os cidadãos, incluindo o direito a não ingerência na
privacidade do lar e a proteção contra a privação de propriedade. Além disso,
o governo de Gana ratificou o Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. Contudo, a legislação internacional sobre direitos à moradia não
foi adotada pela Constituição do país, motivo pelo qual existe uma carência
de mecanismos legais a nível nacional que os ganeses possam aproveitar para
reclamar seu direito à moradia e à proteção contra o despejo forçado.
Ademais, nos últimos anos as autoridades ganesas têm aumentado em grande
escala esse tipo de despejos ilegais em nome do bem público. Somente entre
2003 e 2006, sete mil pessoas foram despejadas de Lago Volta, dentro do Parque
Nacional Digya, com o objetivo de liberar a área para a implementação de planos
alternativos de uso do solo, outros 800 foram despejados de Legion Village pelas
forças armadas do país e dois mil comerciantes foram expulsos do mercado de
Kantanamo de Accra, razão pelo qual perderam seus meios de subsistência.
Experiências - Lutas populares 169
Old Fadama
O assentamento de Old Fadama cobre 146 hectares e abriga entre 25 e 40 mil
residentes, o que o transforma no maior assentamento de Accra e, provavelmente,
de todo o país. O assentamento precário localiza-se no coração da cidade, a noroeste
do Central Business District2, apresentando uma combinação de estruturas
residenciais e comerciais informais, com muitos vendedores ambulantes, feiras
livres e pequenos negócios. Estima-se em 10 mil o número de habitantes que
ganham a vida graças às atividades comerciais dentro do assentamento informal.
Este cresceu notavelmente durante a década de 1990, quando se converteu para
muitos ganeses numa área para a moradia e as atividades laborais, por seus
aluguéis acessíveis, sua proximidade com o centro da cidade e com os mercados
centrais abundantes de oportunidades de rendimentos econômicos.
Atualmente, Old Fadama é uma área de alta densidade formada principalmente
por quiosques e casas de madeira autoconstruídas, que carecem de instalações de
água potável e serviços sanitários adequados. As inundações são um problema
freqüente em virtude da localização da área – entre o Lago Korle e o Rio Odaw.
Embora a Accra Metropolitan Authrities – AMA (Assembleia Metropolitana de
Accra), reconheceu implicitamente o assentamento ao proporcionar infraestrutura
e serviços básicos na década de 90, as condições de vida dos residentes são
precárias. Além disso, tiveram que enfrentar a ameaça de expulsão ilegal desde
2002, quando receberam notificações de despejo por parte de Ama, sem que
houvesse contrapartida de terras ou de moradia.
Um estudo sobre o assentamento realizado por COHRE sugere que o governo
de Gana teve três motivos para emitir a ordem de despejo: a ocupação ilegal de
terrenos públicos; a localização do assentamento dentro de uma zona de projeto
de recuperação ecológica, Korle Lagoon Environmental Restoration Project,
KLERP (Projeto de Restauração Ecológica do Lago Korle); e possíveis riscos para
a saúde que representam as inundações freqüentes e a qualidade do solo onde o
assentamento está construído. Não obstante, as recomendações apresentadas no
informe de COHRE e em outro estudo independente sobre a contaminação do
Lago Korle com resíduos urbanos3, sugerem que os residentes de Old Fadama
não constituem uma fonte significativa de contaminação do Lago. Além disso,
um assentamento melhorado, com instalações sanitárias adequadas, poderia
simultaneamente atenuar as inquietudes do governo relativas à saudade e
permitir ao assentamento coexistir com KLERP (COHRE, 2004; Boadi y Kuitunen,
2002)
2
3
Centro de atividades financeiras e comerciais
O segundo estudo foi realizado pelo Departamento de Ciências Biológicas e Ambientais da
Universidade de Jyvaskyla, Finlândia.
170 Ciudades para tod@s
Pesquisas adicionais sobre os supostos motivos da notificação de expulsão
revelam que as autoridades ganesas atuam sob pressão das estritas condições
dos créditos vinculados ao projeto KLERP – financiado pelo Fundo OPEP para
o Desenvolvimento Internacional, o Banco Árabe para o Desenvolvimento
Econômico na África e o Fundo Kwait para o Desenvolvimento Econômico Árabe
– que exige a retirada dos moradores de Old Fadama.
Além disso, o governo ganês considera que a existência do assentamento
dificulta os esforços de planejamento urbano ao redor do Central Business
District. Em concordância com o enfoque de planejamento urbano neoliberal que
se aplica em cidades de todo o mundo, o ministro de Turismo e Modernização
da Capital adverte que o bairro de atividades financeiras e comerciais deve ser
o centro de uma capital moderna, a qual deve ser segura e estruturada por leis
locais adequadas. Deve ostentar ter monumentos históricos e lugares turísticos,
entregar serviços sociais e espaços públicos abertos apropriados para seus
habitantes e deve contar com instalações sanitárias e serviço eficiente de gestão
de resíduos (Obetsebi-Lamptey).
Se aplicarmos esta lógica, Old Fadama se transforma na antítese da capital
moderna, mas sua localização no coração de Accra, contíguo ao Distrito
Comercial Central, oferece ao governo possibilidades de gerar a gentrificação por
meio da regeneração. Toda a área está declarada como espaço verde para futuro
uso recreativo no atual esquema de planejamento estratégico. As autoridades de
Accra, junto à grande parte da imprensa do país, optaram oficialmente por uma
linguagem e atitude depreciativas para com Old Fadama, de modo a rebaixar o
status social do assentamento e de seus habitantes a deliquentes e bandidos.
AMA designa oficialmente a Old Fadam como “Somoma e Gomorra”, as duas
antigas cidades perto do Mar Morto que, segundo o Antigo Testamento, foram
destruídas por Deus em virtude das práticas indecentes e perversas de seus
habitantes. Ao nomear o lugar dessa maneira, o governo indica explicitamente
sua esperança de vida, já que a destruição se aproxima e é legítima. Legitimar o
despejo dos bandidos de um lugar que o mesmo Deus terminaria por destruir
por causa de seus vícios é fácil de justificar perante os eleitores, especialmente se
a propaganda a respeito do assentamento classifica-o aos demais residentes, que
temem por sua própria segurança, como terra de ninguém.
Paralisação do processo de despejo de Old Fadama por meio da mobilização
comunitária
Desde seu início, o assentamento de Old Fadama foi bem organizado social e
politicamente. Certamente assemelha-se a qualquer outro grupo político com
história de lutas de poder, porém os residentes têm tido êxito em sua mobilização
Experiências - Lutas populares 171
política para responder a ameaça de despejo. A comunidade procurou o apoio
de COHRE e do Centre for Public Interest Law – CEPIL (Centro pelo Direito e
pela Lei de Interesse Público), ONG ganesa que proporciona representação legal
gratuita aos moradores de assentamentos informais ameaçados de expulsão, para
impugná-lo por meio de procedimentos legais oficiais. O primeiro passo consistiu
numa carta conjunta de denúncia do COHRE e outras entidades, destacando os
quatro pontos principais da ordem de despejo que violam as obrigações legais de
Gana ante o direito internacional:
-
-
-
-
Os residentes não foram previamente consultados antes da ordem de despejo
O governo não considerou alternativas razoáveis para a expulsão
O período de duas semanas para o aviso prévio não foi suficiente
As autoridades não proporcionaram aos residentes nenhuma alternativa
de moradia ou outras compensações.
Depois da carta de denúncia, CEPIL apelou à Suprema Corte com base nestas
violações. Contudo, a Corte rejeitou a apelação por meio de uma resposta que
comete uma série de erros graves relativos ao direito internacional. A negativa
das autoridades ganesas em adotar a legislação internacional sobre os direitos
à moradia na sua constituição nacional teve como conseqüência uma carência
de mecanismos legais nacionais que permitiriam aos residentes de Old Fadama
apresentar devidamente o caso aos tribunais, de modo que pesquisaram formas
alternativas de resposta através, por exemplo, da colaboração de Shack Dwellers
International – SDI.
SDI teve início em Bombay como uma organização de base chamada National
Slum Dwellers Federation (Federação Nacional de Residentes de Assentamentos),
a meados da década de 70 e gradualmente expandiu-se por meio da criação
de vínculos com federações da África do Sul e Tailândia. A organização foi
oficialmente fundada como Shack Dwellers International – SDI em 1996,
agrupando federações de 14 países em quatro continentes. Atualmente constitui
uma rede horizontal internacional de movimentos locais de ativistas urbanos. A
principal tarefa de SDI consiste em “organizar e unir aos pobres para influenciar
na maneira como os governos, organizações não-governamentais internacionais
e corporações transnacionais cumprem suas obrigações com os pobres das zonas
urbanas” (Shack Dwellers International, 2005). Entre as estratégias e instrumentos
cruciais empregados por SDI, incluem-se intercâmbios entre grupos, planos
de poupança e empréstimo, projetos locais de melhoria, coleta de informações
sobre os assentamentos e esforços colaborativos com ONGs para estabelecer
diálogos com funcionários do governo e de outras instituições formais, como
forma de incrementar os direitos de cidadania substanciais dos marginalizados
da sociedade.
172 Ciudades para tod@s
A publicidade que rodeava o caso de Old Fadama e os contatos dos residentes
com COHRE deram lugar à participação da divisão sul-africana de SDI, com
a visita dos coordenadores a Old Fadama em 2003, enquanto assistiam a uma
conferência internacional sobre a habitação em Gana. No momento da visita de
intercâmbio, os residentes já haviam formado vários grupos de poupança para
melhorar as condições do assentamento. Como resultado, a equipe que realizou
a visita concluiu que os habitantes de Old Fadama estavam adequadamente
organizados e dispostos a formar uma ONG local que fosse responsável a dar o
apoio profissional, técnico e administrativo necessários para criar organizações
comunitárias locais (OCB). Por seu turno, estas apoiariam os residentes dos
assentamentos informais para criar planos de poupança e créditos e, em última
instância, criar e apoiar uma federação dos pobres das zonas urbanas em Gana.
Para SDI, a notificação de despejo não foi mais do que um sintoma dos efeitos
da pobreza, marginalização e falta de governo democrático que enfrentam os
residentes de Old Fadama, tal como muitos outros assentamentos informais
das cidades ganesas. Mais do que centrar-se especificamente em interromper o
despejo, o SDI mostrou o desenvolvimento da fortaleza sócio-política e sócioeconômica da comunidade para permitir-lhes exigir seu direito à cidade.
A ONG People’s Dialogue on Human Settlements – PD (Diálogo Popular sobre
os assentamentos informais) foi criada em 2003 para ajudar as comunidades a criar
uma federação nacional conhecida formalmente como Gana Federation of the Urban
Poor – GHAFUP (Federação dos Pobres Urbanos da Gana). Por sua vez, a federação
representou oficialmente a comunidade de Old Fadama perante o governo de Gana.
Em seus primeiros três anos, PD e a federação puderam observar uma série
de êxitos políticos para a comunidade de Old Fadama e para os moradores dos
assentamentos informais de Gana. Haviam conseguido um diálogo construtivo
com as autoridades do país para paralisar o despejo e desenvolver alternativas.
Além disso, começaram a abordar questões mais amplas relativas à marginalização
dos pobres urbanos de Gana.
O modelo de SDI em Old Fadama, iniciado em novembro de 2003, estendeuse ao assentamento vizinho de Agbogbloshie um ano mais tarde; desde então
tem se repetido em muitos assentamentos informais por todo o país. Em
2005, as federações já contavam com 52 planos de poupança e moradia em 82
comunidades, num total de mais de 6000 famílias associadas. As organizações
também difundiram suas operações para quatro das maiores localidades urbanas
de Gana: Accra, Kumasi, Sekondi-Takoradi e Ashaiman.
As atividades de PD estão se expandindo para agregar melhorias nos
assentamentos informais, o desenvolvimento de programas adequados de
reassentamento e a criação de um fundo especial para financiar as propostas
comunitárias para o desenvolvimento.
Experiências - Lutas populares 173
Em 2005 cerca de doze membros da federação assistiram, sem convite, a
Conferência da Fundação Cooperativa de Moradia em Accra e foram cordialmente
convidados a participar da mesa de discussão com os representantes de diferentes
ministérios, junto a consultores de planejamento nacionais e internacionais.
Durante o evento um grande número de delegados reconheceu a necessidade de
uma maior implicação comunitária para resolver a crise de moradia nos países e
acolheram a formação de PD e GHAFUP, além da colaboração internacional com
SDI.
Além disso, a fundação de PD, GHAFUP e a cooperação SDI asseguraram a
realização de esforços colaborativos e o apoio de organizações internacionais.
Homeless Internacional, organização de beneficência com sede no Reino Unido,
que apóia projetos de moradia e infraestrutura comunitários, está dando
suporte financeiro por meio de subsídios do UK Department for International
Development (Departamento de Desenvolvimento Internacional) desse estado e
do Waterloo Housing Association, com o objetivo de “permitir aos pobres urbanos
de Gana a realizar seus direitos à moradia adequada, obter assentamentos seguros,
infraestrutura acessível e posse segura” (Homeless International). Por outro lado,
os debates no Fórum Urbano Mundial de 2004, em Barcelona, resultaram numa
missão de UM-AGFE (United Nations Advisory Group on Forced Evictions –
Grupo Internacional Consultor sobre Despejos Forçados, da ONU) a Old Fadama
em colaboração com o Ghana’s Department of Local Government and Rural
Development (Departamento de Governo Local e Desenvolvimento Rural de
Gana). Em 2005, uma reunião de ministérios ganeses relacionados à questão
resultou no desenvolvimento inicial de um programa de reassentamento para
os residentes de Old Fadama e a solicitação de apoio a ONU-Hábitat e AGFE do
Governo de Gana para continuar os avanços de tal plano.
A pesar destes êxitos inicias, os pobres da zona urbana do país encontraram
numerosos obstáculos no caminho para exigir o pleno cumprimento de seus
direitos à cidadania e ainda estão à espera da comprovação de que as mudanças
resultantes nas relações de poder são de fato reais e duradouras. Um dos últimos
retrocessos para os moradores de Old Fadama produziu-se como resultado dos
graves e violentos confrontos partidários de diferentes partidos políticos dentro
do assentamento no verão de 2009. As autoridades de Accra, sob a direção do
novo prefeito, aproveitaram imediatamente a oportunidade de classificar o
assentamento como “risco para a segurança nacional” e voltaram a ordenar o
despejo que se encontrava pendente desde 2002. O despejo forçado ilegal voltou
a ameaçar a comunidade.
Não obstante, desta vez as mobilizações entre os moradores, das divisões
do COHRE em Gana e da Anistia Internacional deram lugar a uma campanha,
imediatamente exitosa, contra os novos planos de despejo de AMA. Além disso, o
174 Ciudades para tod@s
governo central de Gana, os meios e o público em geral mudaram drasticamente
sua opinião sobre a comunidade, de modo que hoje em dia apóiam a petição dos
moradores sobre alternativas aos despejos ilegais.
Um informe sobre os últimos acontecimentos do caso Old FAdama, Farouk
Braimah, de PD, destaca que nas três semanas que durou a campanha contra o
despejo, conseguiu-se renovar o diálogo com as autoridades municipais, já que o
novo prefeito agora está disposto a debater e criar alianças com os representantes
da comunidade Old Fadama. Embora a nova tentativa de despejo coloque
dúvidas sobre as mudanças nas relações de poder alcançadas pelo movimento
urbano ganês, a rapidez da resposta coletiva e o apoio do governo central, dos
meios e da comunidade de Accra em geral, são um sinal claro de que os pobres
das zonas urbanas de Gana progrediram eminentemente no processo de exigir
seu direito à cidade.
Considerações finais: Superando as peculiaridades locais
O emergente movimento urbano ganês, formalizado através de PD e GHAFUP e
apoiado por SDI, respalda o argumento de que os impactos negativos das políticas
urbanas neoliberais têm fomentado o desenvolvimento de redes globalizadas
de resistência, como sugerem os críticos teóricos como Appadurai (2001), Smith
(2002), Peck e Tickell (2002), entre outros. Contudo, ainda falta compreender
a maneira como estes movimentos políticos individuais podem transcender
suas particularidades locais e consolidar sua busca de direitos específicos
num movimento amplo, global e coerente pelo “direito à cidade”. Isso com o
objetivo de alcançar o impulso necessário e mudar o sistema econômico global
injusto, elemento central de grande parte da marginalização percebida naquelas
diferentes localidades.
David Harvey sugere que, ao constituírem-se de muitos movimentos
horizontais, a maioria destes grupos de ativistas concentra-se primordialmente
no aspecto local e, por conseguinte, expressam um “particularismo militante”.
Ele pede para que as ideias militantes desenvolvidas a partir da experiência
local particular “generalizem-se e universalizem-se como modelo de trabalho
para um novo tipo de sociedade que beneficie a humanidade completa; o que
(Harvey) define como a ‘ambição global’” (Routledge, 2003). Para desenvolver
com êxito as redes globais de resistência, os movimentos necessitam alcançar
um equilíbrio entre seu particularismo militante e a aprendizagem da
compreensão das ambigüidades intrínsecas às colaborações transnacionais
(diferentes relações de gênero ou de raça dentro dos movimentos participantes,
por exemplo) com o objetivo de criar “uma política mais transcendente e
universal, que combine a justiça social com a meio-ambiental, que transcenda
Experiências - Lutas populares 175
a solidariedade e as afinidades particulares desenvolvidas em lugares
particulares” (Routledge, 2003, p. 339).
O caso de Old Fadam demonstra com clareza que existe um campo para
que os movimentos urbanos internacionais lutem pelos direitos dos cidadãos
e fomentem a mudança, porém também coloca a pergunta de como podem
consolidar-se e desenvolver-se. Aparentemente, existe um amplo campo para que
os movimentos urbanos que lutam contra a prática dos despejos forçados, atuem
como protagonistas na incrementação de esforços de impulso do movimento
pelo “direito à cidade”. A gravidade dos despejos forçados, em grande
escala, a publicidade que fazem os meios de comunicação e as organizações
internacionais como a ONU, Anistia Internacional, Witness e outras, além do fato
de que tal prática viola vários direitos humanos, oferece uma plataforma de ação
consolidada e respaldada. As violações dos direitos humanos produzidas no
decurso dos despejos são muito mais pertinentes neste caso que os impactos mais
ocultos dos despejos causados pelo mercado. A principal tarefa atualmente pode
consistir em ressaltar ainda mais os motivos subjacentes dos despejos e promover
a consciência de que o fato de que se produzam em localidades tão diversas é o
resultado de processos globais, mais do que uma questão específica de um país.
Embora sempre existam fatores sócio-culturais e políticos específicos do lugar
envolvido no processo de remoção, está presente a necessidade de continuar
entrelaçando vínculos entre as famílias de baixa renda forçadas a se mudar
do Brooklyn, em Nova Iorque, do East End de Londres, ou de Kreuzberg, em
Berlim, em função do encarecimento dos aluguéis e dos serviços que constituem
um arquétipo da gentrificação, como também é o caso das famílias expulsas dos
assentamentos informais em cidades como Accra, Lagos, Johannesburgo e Kigali.
Somente a partir do entendimento das forças globais que contribuem
aos problemas locais que enfrentam as comunidades do mundo inteiro é que
poderemos recorrer ao particularismo militante a que se refere Harvey, como
ambição global pelo direito à cidade. O Fórum Social Mundial pode ser uma
excelente plataforma para ampliar este processo.
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Olimpíadas de Beijing 2008, China
Maria Cristina Harris
Os Jogos Olímpicos de 2008 significaram grandes mudanças para a cidade
de Beijing e para seus habitantes. A cidade precisou “vestir-se” para um
megaevento internacional, sugerindo assim modernização, embelezamento
e construções massivas, todos os aspectos para fazê-la atrativa para o mundo.
Este artigo focalizará no distrito histórico de Qianmen em Beijing, uma área
comercial e residencial, localizada no centro da cidade, desde 1600, e nos efeitos
das Olimpíadas que se refletem não apenas nos aspectos físicos do lugar, mas
também em seus habitantes. A perspectiva do direito à cidade será integrada à
análise deste caso em função de como foi representada pelos cidadãos e também
devido às muitas violações cometidas pelos promotores imobiliários e oficiais do
governo durante a renovação de Qianmen.
Em 2002, a Comissão Municipal de Planejamento de Beijing decretou um
plano de conservação para proteger suas 25 áreas históricas na Cidade Velha
de Beijing, sendo que uma delas é Qianmen. O plano de conservação delineou
alguns princípios importantes:
• Preservar a paisagem urbana tradicional e hutongs (pequenas ruelas
delineadas de acordo com pátios das casas tradicionais);
• Assegurar a autenticidade do patrimônio preservado;
• Implementar a preservação usando um método gradativo e calculado;
• Melhorar a infraestrutura e as condições de vida dos habitantes locais;
• Encorajar a participação pública.
O plano de conservação também considerou que renovações não devem
resultar de demolições em grande escala e deve-se dar especial atenção para a
continuidade histórica e arquitetura histórica de valor, os hutongs, sendo que
árvores antigas também devem ser preservadas. Essas diretrizes integram
178 Ciudades para tod@s
algumas das premissas básicas sobre direito à cidade a partir da valorização
da participação local e a consideração de melhorias nas condições de vida dos
habitantes locais como prioridade. Como aponta David Harvey, o direito à
cidade envolve o direito ativo dos cidadãos de fazer uma cidade diferente e a
capacidade de estruturá-la de acordo com suas necessidades. No entanto, com
as Olimpíadas no caminho, o governo de Beijing enfrentou-se com uma situação
difícil na qual seguindo tais diretrizes teria posto limitações aos planos de
renovação para transformar Qianmen numa versão moderna do velho, atrativa
aos turistas, ampla para a passagem dos maratonistas olímpicos e interessante
para pessoas que pudessem pagar pelas novas e elegantes casas de Qianmen.
Em 2005, o governo de Beijing começa a oferecer compensações aos habitantes
de Qianmen em função das casas que planejava demolir. No entanto, as
compensações financeiras não davam conta de aspectos adicionais e específicos
de cada casa em particular, de seus valores naturalmente adquiridos, sendo que,
por conseqüência, os valores oferecidos eram muito menores do que o valor real
das casas (COHRE, 2008). No caso de recusar a compensação seriam submetidos
a um processo de negociação com o governo no qual as casas eram avaliadas
individualmente. Frequentemente as taxas de compensação aumentavam
após a negociação, mas ainda assim eram insuficientes para proporcionar aos
habitantes a mesma qualidade de vida de Qianmen em outro lugar da cidade.
Constantemente atormentados pelos promotores imobiliários e pelas tentativas
de construtoras de retirá-los, muitos foram conduzidos, eventualmente, a aceitar
valores baixos de compensação, deixando pra trás seu lugar. A resistência tornouse muito mais que um inconveniente no cotidiano de muitas famílias, induzindoos a aceitar de mau-grado compensações inadequadas.
Outros, no entanto, permaneceram com a esperança de reivindicar seu
direito à cidade e ao espaço urbano de Qianmen, onde viveram por décadas.
Na primavera de 2006, Sun Ruoyu, cujo negócio da família estava em Qianmen
desde 1840, começou a receber ordens de despejo enviadas pelo governo segundo
as quais a família deveria deixar sua casa em nome da “limpeza” das favelas e
que o município tinha o direito de começar a demolir a partir de certa data. O
município ofereceu 1.6 milhões de Yuans pela casa (aproximadamente 200.000
dólares), muito pouco em vista do que se tornaria um dos distritos mais caros
da cidade e não o bastante para dar à família a oportunidade de permanecer em
Qianmen através da compra das casas recém renovadas ou construídas. A família
recusou a compensação porque queriam pertencer à renovação de Qianmen e
não serem empurrados ao subúrbio da cidade. Apesar da resistência da família,
a cidade não estava disposta a aceitar sua presença. Era mais importante abrir
espaço para as multinacionais, novos “habitantes” de Qianmen, que incluíam
Rolex, Prada, Starbucks, Nike, Adidas e Apple, do que respeitar os próprios
cidadãos de Beijing e o seu direito a permanecer no lugar onde viveram por
Experiências - Lutas populares 179
anos. Contudo, em julho de 2008, um mês antes do início das Olimpíadas, Sun
Ruoyu ainda estava lá. Seu restaurante estava em pé, embora algo dilapidado,
mas estava coberto por um plástico verde a fim de mantê-lo fora de vista e da
percepção de milhares de espectadores das Olimpíadas, que estariam passando
por aí durante todo o mês de agosto.
Muitos dos habitantes de Qianmen que foram despejados afrontaram-se com
possibilidades limitadas quando decidiam aonde iriam se estabelecer. Assim,
muitos habitantes se mudaram para a periferia da cidade, além do Quinto Anel
Viário, uma via expressa que circunda a cidade e está localizada a 10 km do
centro. No caso de uma família, os dois adultos da casa levam um total de quatro
horas para ir e voltar do seu trabalho todos os dias, usando o transporte público.
Antes, quando viviam em Qianmen, levavam somente 5 minutos de bicicleta. A
qualidade educacional oferecida na periferia é muito menor se comparada com
aquela que a criança da família recebia no centro da cidade. Por esse motivo, a
filha do casal permaneceu na mesma escola no centro de Beijing, implicando que
um dos pais tivesse que acompanhá-la para a escola todos os dias, deixando a
casa as 5 da manhã para chegar a tempo ao início das aulas às 7 horas. Esta é a
realidade cotidiana de muitas famílias despejadas de Qianmen. Para os idosos
o fato também implicou em esforço redobrado para manter o acesso fácil aos
médicos e as instalações do serviço de saúde que os assistiu por anos no centro
da cidade. Isso significa, mais uma vez, longas distâncias a serem percorridas no
momento em que tenham preocupações médicas.
Os resultados das ordens de despejo variaram para os habitantes de Qianmen.
Alguns experimentaram tormentos, outros aceitaram a compensação financeira
depois de algum tempo e uma minoria conseguiu resistir e permanecer. No seu
empenho em ficar no seu lugar de residência, os habitantes que enfrentaram,
aceitaram e/ou resistiram à desapropriação tentaram assegurar seu direito
à cidade. O direito à cidade consiste no envolvimento dos cidadãos nas
decisões que afetam o lugar no qual habitam e a oportunidade de participar da
transformação dos espaços urbanos onde vivem. Quando a renovação urbana
chegou a Qianmen, as diretrizes que haviam sido delineadas para proteger
a área como patrimônio (acima mencionadas) foram praticamente ignoradas
pela administração municipal e promotores imobiliários. Essas diretrizes, que
valorizam aspectos do direito à cidade como melhorias nas condições de vida dos
habitantes locais e estimulam a participação das decisões que afetam seu bairro,
eram ignoradas e descumpridas enquanto a modernização e o embelezamento
tomavam precedente prioritário para as Olimpíadas.
Além disso, quando o direito à cidade é respeitado, deve-se permitir aos
cidadãos permanecer na cidade e não ser empurrados para a periferia da mesma.
Os despejos de Qianmen violaram o direito dos cidadãos de permanecer na
180 Ciudades para tod@s
cidade quando não era sua própria escolha deixá-la. São muitos os inconvenientes
enfrentados pelos habitantes que agora vivem além do Quinto Anel Rodoviário
de Beijing. O acesso a serviços de saúde, educação de qualidade e áreas comerciais
foi reduzido, assim como sua qualidade de vida em geral, uma vez que agora
perdem muito tempo indo e voltando do trabalho; tempo valioso que poderiam
gastar com suas famílias e suas atividades pessoais.
Como observamos o direito à cidade foi violado pela administração municipal
de Beijing e pelos promotores imobiliários. Também notamos isso representado
nos esforços dos cidadãos em permanecer em Qianmen e reivindicar seu direito
a habitar o espaço urbano. Muitos habitantes não aceitaram as compensações
financeiras que lhes foram oferecidas inicialmente e somente deixaram seu
espaço após serem atormentados em suas casas e no seu trabalho. A senhora Sun
e sua família conseguiram resistir às tentativas de remover seu restaurante de
Qianmen e embora sua casa tenha sido fisicamente ocultada à vista de outros por
um plástico verde, a casa continua em pé e presente no meio da agora moderna
Qianmen. Isso demonstra que os cidadãos têm a capacidade de se levantar
por aquilo que desejam, reivindicar para que seus direitos sejam reconhecidos
e que não podem ser desconsiderados para dar prioridade a megaeventos
internacionais como as Olimpíadas. Se uma cidade, tal como Beijing, deseja
impressionar o mundo deve valorizar o local, ser inclusiva e tratar todos os seus
habitantes, especialmente os pobres, como cidadãos com direitos, ao invés de
unicamente como objetos que podem ser maltratados, excluídos e esquecidos.
Referências
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Sobre derrotas e conquistas no exercício do direito
à cidade: reflexões a partir de experiências recentes
nas cidades da Argentina1
María Carla Rodríguez
María Laura Canestraro
Marianne von Lücken
O trabalho analisa três experiências em cidades importantes da Argentina
(Buenos Aires, Córdoba e Mar Del Plata), onde se coloca em jogo a disputa pelo
direito à cidade. É enfatizado o que Borja (2004) considera uma das dimensões
chaves deste processo: a política institucional que atende às condições para a
formalização, consolidação e desenvolvimento de políticas para sua criação.
Retrocessos, derrotas e conquistas provisórias mostram o direito à cidade como
um campo de disputa essencialmente política.
Políticas urbanas e centralidades excludentes
Na Argentina, desde o começo dos anos 90, os governos vêm exercendo um
papel relevante como gestores das necessárias condições para a implantação
de transformações da escala urbana e como pontapé inicial de processos de
valorização (Herzer 2008). Em pleno auge neoliberal as principais cidades se
envolveram num modelo de políticas urbanas que Arantes (2003) denomina
como a terceira geração urbanística, que incluem o gerenciamento e um léxico
explicitamente empresarial, articulado com uma particular ressurreição do
planejamento urbano: estratégico e flexível, por fragmento e por projeto. Assim,
a política, o Estado e as capacidades públicas se orientaram à dinamização dos
mercados dos quais a cidade sempre foi suporte e base material – começando
pelo solo urbano – e agora, também, ela mesma convertida em objeto de marca.
Tudo isso sob a adequação, modificação e, inclusive, transgressão de diversos
marcos normativos.
1
Está análise se estrutura nos objetivos do projeto UBACYT S431 “Produção social do hábitat
e políticas públicas nas principais cidades da Argentina” (2008-2010) dirigido por María carla
Rodríguez. Articula resultados de dissertações de mestrado, bolsas e pesquisas das autoras.
182 Ciudades para tod@s
Em Buenos Aires, a título de exemplo, destacam-se modificações nos códigos de
planejamento urbano e de obras, criação de corporações de âmbito nacional e da cidade
(Puerto Madero e do Sul), orientação das decisões de investimento em infraestrutura
e revalorização do espaço público, além de um Plano Urbano Ambiental que coroa
juridicamente as mudanças que o precederam (Rodríguez, Bañuelos e Mera, 2008).
Em Córdoba, houve a criação de uma Corporação Imobiliária Provincial, a
transferência de terras públicas para projetos de “marca”, mudanças nos códigos
de construção, um plano de recuperação da orla e zonas circundantes do Rio
Suquia, intervenções na área central e apelo a acordos público-privados.
Em Mar Del Plata, foi elaborado um Plano Estratégico cuja junta promotora
foi impulsionada pelos interesses empresariais e profissionais, sendo que o
município foi convocado a posteriori. Seu diagnóstico resultou em um Plano de
Ordenamento Territorial centrado na valorização da zona costeira – viabilizada
por crescentes processos de privatização do espaço público – como Playas Bristol
y del Sur – e de centros comerciais, com vistas a reposicionar a cidade como
principal destino turístico do país (marca amardelplata).
Inseridas nestas dinâmicas de reestruturação das centralidades urbanas, as
áreas históricas de Villa2 La Maternidad (Córdoba), Villa de Paso (Mar Del Plata) e a
Ex AU3 (Buenos Aires) são objeto de políticas que questionam a permanência de
seus habitantes de baixa renda.
A Ex AU3, Villa La Maternidad e Villa de Paso: entre desocupações forçadas e
resistência
A Ex AU3 é uma extensa faixa de imóveis desapropriados pela intendência3 durante
o último governo militar (1976-1983) para executar uma autopista que não se
concretizou. A ocupação se iniciou no começo dos anos 80. São 15 quarteirões
(aproximadamente 1113 imóveis) numa localização em zonas de classe média e
média-alta (Colegiales, Cohglan, Villa Ortuzar, Saavedra), onde o preço do m²
ronda os U$S 15004.
2
3
4
“As villas podem ser definidas como ocupações de solo urbano vazio que produzem traçados
urbanos bastante irregulares, organizados a partir de corredores pelos quais geralmente os
veículos não podem transitar. Constituíram-se prioritariamente mediante práticas individuais
familiares e diferenciadas ao longo dos anos. Nas suas origens, os ocupantes construíam suas
moradias com materiais precários e, com o passar do tempo, realizavam melhorias de diferente
envergadura e qualidade. Inicialmente, conformavam moradias térreas que, a partir de um núcleo
básico, desenvolviam-se progressivamente. Em seguida, com variações segundo a localização e
inserção urbana, inicia-se um processo de densificação que inclui a ocupação de vazios urbanos,
bordas de vias férreas, etc. e a construção em altura”.
Prefeitura
Entre 2001 e 2006 houve um incremento de 54% nos preços do solo da zona norte. Fonte: Unidad de
Sistemas de Información Geográfica, DGEyC. GCBA.
Experiências - Lutas populares 183
Um censo de 2000 cadastrou 942 famílias residentes antes de 1996, porém até
2003 a mesa de delegados estimava um total de 15005. Nos anos 80, o governo
local tolerou a ocupação e iniciou a assinatura de comodatos que outorgavam
uma aparência de legalidade aos habitantes, mas freavam o desenvolvimento de
pretensões posteriores (Rodríguez 2005).
Em 1990 o projeto da autopista6 foi reativado e o Conselho Deliberativo
sancionou em 1991 a ordenança 45520, para alcançar um projeto integral e
combinado, que não prosperou7. Em 1997 se construíram 20 blocos de via rápida,
enquanto ocupantes organizados com o apoio de associações de moradores
frentistas promoviam, através de mobilizações, a resistência a centenas de
notificações de despejo emitidas por Procuração. Em 1998, no marco da
autonomia política, sancionou-se a Lei 8, que institucionalizou a participação da
mesa de delegados e deu lugar ao censo que estabeleceu um padrão de beneficiários
reconhecidos. Em 1999, a Lei 324 criou o Programa de recuperação do traçado ) da
EX-AU3e sua Unidade Executiva para definir um plano de recuperação urbana
para a área, um plano de recuperação patrimonial (que concebe a propriedade
pública como ativo imobiliário com o objetivo de autofinanciamento do projeto)
e um plano de soluções habitacionais para os ocupantes.
Em relação à questão habitacional, entre 2002 e 2007 se desenhou um
menu flexível com quatro alternativas: construção de habitação econômica em
terrenos baldios existentes no traçado (autoconstrução) venda aos ocupantes
daqueles imóveis que se adaptaram às possibilidades das famílias, concessão
de créditos individuais ou coletivos (derivando-os à operação de autogestão do
hábitat – Ley 3418) e incorporação de projetos subsidiados para as famílias de
menos recursos (incluindo comodatos vitalícios para chefes de família pobres
5
6
7
8
Em termos sócio-econômicos, a população é heterogênea. Envolve autopista com equipamento
(oficinas de restauração de móveis, mecânicos, conserto de bicicletas); serviços domiciliares
(entregadores de gás, encanadores, jardineiros), funcionários públicos municipais, assalariados
do setor privado (construção, fábricas alimentícias próximas), trabalhadores de baixa qualificação
ou ocasionais (empregadas domésticas, carregadores) e desempregados.
Os atores empresariais vinculados com a execução da infraestrutura urbana estabelecem acordos
em âmbito nacional, particularmente, com o Ministério de Economia e Obras Públicas (onde são
predefinidas os traçados)
Para incluir empresa rodoviária, possíveis construtoras de habitações públicas em terrenos
remanescentes do traçado organização de ocupante, outros mutuários, associações de moradores
frentistas
Esta Lei, no mesmo período, foi produto da luta de movimentos urbanos de base cooperativa
autogestionada (inicialmente o MOI-CTA e a Mutual de Desalojados de la Boca e, em seguida, dezenas
de atores sociais e políticos no contexto da crise de 2001). Em contraponto à política urbana
neoliberal, foi concebida uma operação que permite a autogestão dos recursos, constituindo um
banco de 100 imóveis de localização central de propriedade das cooperativas, alguns conjuntos
emblemáticos em termos de qualidade e custo, além de uma rede de 500 cooperativas que
atualmente sustentam esta via autogestionada de luta pelo direito à cidade.
184 Ciudades para tod@s
e com mais de 65 anos). Em seis anos, até dezembro de 2007, somente 27%
da população recenseada (259 famílias) concretizou algum tipo de solução.
Já nessa época, na Legislatura, iniciou-se a disputa para incorporar esse solo
público ao mercado imobiliário.
O governo Marcri (gestão atual) enfatizou o re-zoneamento e renovação
urbana (são 15 quarteirões avaliadas em mais de 100 milhões de dólares)9. Para
as famílias residentes – estimadas entre 450 a 700, cadastradas ou não – Macri
infringe o marco legal vigente e começa a instrumentar desocupações arbitrárias
e pressão com subsídios ad hoc10, caso a caso, e para os residentes, desocupação
administrativa.
Ao final de 2008 a onda de desocupações tornou-se mais forte. Houve
a intervenção do Poder Judiciário e, em abril de 2009, uma sentença ordenou
a suspensão das mesmas. Os delegados iniciaram ações de amparo perante a
justiça11. O conflito continua “corpo a corpo”, no território.
Com aproximadamente 70 anos12, Villa La Maternidad, é uma das mais antigas
de Córdoba. Cresceu vinculada à linha de trem e atividades econômicas do Bairro
São Vicente13, onde se situa. Está localizada a dez quadras do centro da cidade
e cinco do Terminal de Ônibus. Em meados de 2004, quando foi violentamente
desocupada pelo Governo Provincial, habitavam aí cerca de 350 famílias que
desempenhavam atividades acessíveis à área: construção, serviço doméstico,
coleta e armazenamento de resíduos, comércio ambulante e pequenos serviços
nos hospitais próximos.
A propriedade das terras é uma questão conflituosa. Por um lado, o Poder
Executivo Provincial reclama sua propriedade, em virtude de um projeto histórico
de desenvolvimento urbano14. Por outro, existem planos cadastrais de 1943, que
incluem os atuais lotes da Villa. A partir destes, alguns moradores reclamaram
9
10
11
12
13
14
Empresários do setor imobiliário e da construção trabalham sobre a futura venda dos terrenos
(LPO online).
96 mil pesos para beneficiários da Lei 324 e até 25.000 para os demais ocupantes.
54 pessoas iniciaram a ação de amparo legal. Previamente outras 30 famílias haviam apresentado
outra que está tramitando na Sala II da Cámara del Fuero Contencioso Administrativo y Tributario.
Em Relevamiento de la Agencia Córdoba Ambiente se sustenta que sejam 70 anos; em “Evolución de
Villas de Emergencias en Córdoba 2001-2007, localización y estimación de población”, SEHAS
(2007), estimam-se 65; em www.argentina.indymedia.org/news/2005/03/2700600.php, declaramse 100 anos.
O bairro São Vicente, fundado em 1870, é um dos bairros tradicionais da cidade de Córdoba.
Inicialmente foi zona de veraneio e logo foram se instalando diferentes atividades produtivas,
como Moinhos, Matadouros, fábricas de gelo, de tijolos, de cerveja, atraindo mão-de-obra e
conformando um bairro de operários que pouco a pouco foi se conectando com o centro da
cidade através da criação de infraestrutura urbana.
Projeto Crisol, Lei 1040/11886, pela qual seriam expropriadas para um proprietário particular
(Garzón) para este fim.
Experiências - Lutas populares 185
direito de posse por estarem habitando o lugar, de forma pacífica, por mais de
10 anos.
Em 2001, em função das inundações ocorridas em março de 2000, o governo
provincial declarou a emergência habitacional sentando as bases para o programa
Minha Casa, Minha Vida15, cuja execução implicou a transferência massiva da
população das áreas centrais e arredores, para novos conjuntos habitacionais
denominados bairros ou cidades-bairros16, localizados na periferia. Para tanto, o
município modificou os usos do solo.
A população de Villa la Maternidad, junto com outras17, foi reassentada em
Ciudad de Mis Sueños, a 14 km do centro (adjacente ao bairro Ituzaingó Anexo,
conhecido nacionalmente pelo conflito relacionado aos agrotóxicos e seus efeitos
cancerígenos). O conjunto, inaugurado em 2004, conta com 565 habitações.
A remoção forçada, decidida pelo governo provincial, utilizou técnicas de persuasãochantagem, mediante um levantamento com trabalhadores sociais e a ação de agentes
locais, somados a um subsídio de 300 pesos por família, para facilitar as mudanças.
Somente 32 famílias opuseram resistência, por terem nascido no lugar,
por problemas de saúde associados à nova localização, por deterioração das
condições de trabalho, pelo aumento dos custos em transporte e pela ruptura de
estratégias de subsistência.
A remoção aconteceu de forma violenta em junho de 2004. Usou-se tratores,
o que remete de forma direta a erradicação de vilas durante a última ditadura
militar e que também derrubou, por equívoco, parte das habitações de famílias que
não estavam de acordo com a mudança, semeando pânico. Alguns moradores
buscaram ajuda externa e a resistência foi acompanhada por profissionais,
organismos de direitos humanos e outras organizações18. Formou-se uma
Comissão Contra o Despejo da Villa La Maternidad, que montou uma estratégia
defensiva de difusão e um recurso de amparo. O Estado Provincial, por sua vez,
realizou ações legais de usurpação19.
15 O nome original é Projcto de Emergência para a Reabilitação dos Grupos Vulneráveis afetados pelas
inundaçiões (1287- OC- AR) estruturado no Programa para el apoyo a la Modernización del Estado en
la Provincia de Córdoba a partir de um empréstimo do BID.
16 Cidades-bairross são denominados aqueles conjuntos habitacionais que contam com mais de 250
unidades e possuem equipamento comunitário, tais como posto de saúde, escola, posto policial.
17 Como Mandrake, Los 40 Guasos, Vagones de la Estación Mitre, Guiñazú, além de parte de Villa la
Maternidad.
18 Como CUBa Mbs (Coordinadora de Unidad Barrial), Agrupación Otro Cantar, MTR (Movimiento
Teresa Rodríguez), La Comuna, Indymedia (Centro de Medios Independientes), CEPRODH (Centro de
Profesionales por los Derechos Humanos), SERPAJ (Servicio de Paz y Justicia de Córdoba), profissionais
e estudantes independentes, contatos na cidade de Buenos Aires, com o MOI-CTA, o Movimiento
por la Reforma Urbana, etc.
19 Em virtude da rescisão do Projeto Crisol (Lei 1254), o Estado reclama as terras.
186 Ciudades para tod@s
As negociações tensas e complexas com os que resistiram se transformaram
na assinatura de sucessivos convênios orientandos à urbanização da zona sem
obter, no entanto, resultados concretos20. A organização interna da Villa avançou
com a construção de um centro comunitário, dedicado a tarefas de apoio escolar,
alimentício, recreativo e horta comunitária.
Em 2008, o governo municipal, junto ao provincial e empresas privadas, lançou
um plano diretor, que inclui a construção de um centro cívico e de convenções
adjacente a Villa La Maternidad, evidenciando a persistência do conflito pela
apropriação dessa área. Atualmente, as 32 famílias conseguiram amparo legal
e levam adiante processos por usurpação. Outras famílias regressam de Ciudad
de Mis Sueños e novas se somam. O governo provincial busca negociar de forma
individual, caso por caso.
A Villa de Paso se origina por volta de 1940, sendo uma das primeiras de
Mar del Plata em terras de domínio privado e numa das zonas mais altas – o
bairro San Carlos – mas sem infraestrutura. Por sua localização foi uma das de
maior crescimento21 e atualmente se assenta numa das terras mais valorizadas,
estimando-se em U$S 200 o m² em 2006.
Em 2005, o Município fez o levantamento de 430 famílias (1782 pessoas)22, das quais
aproximadamente 70% se localizavam abaixo da linha de pobreza. Sobre a situação de
posse, o primeiro censo realizado em 1998, identificava situações diversas; proprietárias
(7,7%), cessionários de proprietários ou terceiros (13,7%); inquilinas (1,8%); ocupantes
de fato (68,2%) e outros (8,6%). Porém essa variável foi omitida em 2005.
Já em 1970, levou-se adiante uma primeira tentativa de reassentamento
que não prosperou. Durante o governo de Aprile, o assunto foi reinstalado.
Em 1997, um Conselheiro, ex presidente da Asociación Vecinal de Fomento (AVF)
– Associação de Moradores para Fomento – do bairro propôs o revisão do
zoneamento e o reconhecimento dos direitos de posse a alguns habitantes. A
proposta, no entanto, não obteve apoio. Em 1999 foi aprovado o Programa de
Relocalización Asentamiento Precario Poblacional Paso (Programa de Realocação
Assentamento Precário Populacional Paso), que omite o reconhecimento de
tais direitos e repassa o compromisso do Estado com a garantia do direito a
moradia para zonas periféricas, carentes de infraestrutura de serviços.
20 O último convenio entre os moradores da villa e o Ministério de Desenvolvimento Social foi
assinado no dia 2 de janeiro de 2009.
21 Como o caso de La Maternidad também se vincula com a acessibilidade às fontes de trabalho
(pesca, gastronomia ou construção), por parte de seus habitantes – a maioria migrante de outras
províncias.
22 Existe oscilação sazonal. No verão acontece um incremento e em seguida, muitos regressam
para suas cidades de origem. Por isso também variam os níveis de trabalho. Naquele momento
somente 9% tinha emprego formal.
Experiências - Lutas populares 187
Por este motivo, o município impulsionou a desapropriação a seu favor, com
sentido inverso aos processos de regularização fundiária, levados em municípios
do AMBA nos anos 90, sendo que esta medida favorecia a posterior transferência
e regularização dos ocupantes, para projetos que foram sustentados pelo
desenvolvimento de organizações territoriais.
Originariamente se considera a desculpa de financiar a operação de realocação
e cobrir os gastos indenizatórios de títulos de propriedade. Porém os tempos se
dilataram e o financiamento habitacional partiu do governo provincial, com o
Programa Bonaerense IX – Dignidad. A desapropriação, no entanto, não foi freada,
sendo poucos os proprietários originários das terras que se apresentaram perante
o município para conciliar os termos da indenização referente ao pagamento dos
lotes23.
Em 2003, os moradores dos arredores da Villa formaram a Comisión
Administratora Mixta Municipalidad-Vecinos para la Erradicación Del Asentamiento
Paso (Comissão Administrativa Mista Município-Moradores para a Erradicação
do Assentamento Paso), para pressionar pelo reassentamento. Contudo, tal
remoção recebeu resistência nos bairros de destino, com ações de mobilização,
exposições perante o Conselho Deliberativo e ações judiciais, em geral
encabeçadas pelas AVF. Quando os habitantes da Villa protestaram, pedindo
indenização para desocupar seus terrenos e escolher onde viver, estas AVF os
apoiaram taticamente. Porém a resistência na Villa contra o reassentamento foi
escassa, limitando-se sempre a ordem de indenização-escolha.
Os prazos de execução (240 dias) se estenderam e a demora trouxe novos
conflitos. A primeira remoção de 18 famílias se concretizou recentemente em
novembro de 2006 e logo houve paralisação das obras.
No início de 2008, produziu-se a ocupação de 145 unidades habitacionais
em construção no bairro El Martillo destinadas ao reassentamento, por
aproximadamente 300 moradores do bairro Pueyrredón, também com críticas
necessidades habitacionais. Em virtude das reclamações das empresas
construtoras e também da intermediação municipal, a desocupação foi
concretizada em menos de 24 horas.
As 20 famílias seguintes foram reassentadas recentemente, em novembro de
2008 e fevereiro de 2009, no Bairro Las Heras, paralelamente a licitação de obras
de água e esgoto. Neste contexto, em janeiro de 2009, 54 famílias de Puyrredón
reincidiram na ocupação de El Martillo gerando diversas práticas autogestoras e
acompanhadas por uma rede de organizações. No dia 17 de abril, a justiça local
23 Aproximadamente 15 lotes, sendo que o resto seria denunciado como herança vacante). Sem
dúvida, estavam dadas as condições para uma solução alternativa como, por exemplo, a
urbanização da Villa.
188 Ciudades para tod@s
ordenou a desocupação, que se traduziu num forte exercício de repressão policial.
Atualmente, foram reassentadas somente quase 60% da população da
Villa, enquanto que os sem-teto, expulsos de Martillo, mantêm um processo
organizativo de corte autogestivo que luta pela garantia do direito à habitação.
O direito à cidade como campo de disputa
A análise comparativa mostra como o espaço urbano se reestrutura de maneira
dinâmica e atua como meio para o desdobramento de processos sociais,
econômicos, culturais e políticos24. Esta dinâmica conflituosa em torno do uso e
destino centralidades urbanas denota antagonismos constituintes da sociedade
capitalista, tal como estão sendo desenvolvidos em contextos sócio-políticos
democráticos.
A centralidade está se tornando um bem de caráter crescentemente exclusivo
e excludente, minando a possibilidade de constituição do direito à cidade como
um universo integrador, ao replicar modelos exteriores que incluem como peça
recorrente a reestruturação de áreas centrais a serviço das dinâmicas de valorização.
Os governos locais – com níveis díspares de autonomia se consideramos que
a cidade de Buenos Aires é quase uma província – apresentam a tendência a
atuar como facilitadores desses processos, que privilegiam a atores públicos e
privados de níveis superiores. No entanto também, em contextos democráticos,
esses mesmos governos locais, em particular nos âmbitos legislativos, vêm
gerando campos de negociação/confrontação que possibilitaram incluir vozes e
estratégias dos setores de baixa renda. O poder judiciário também aparece, com o
mesmo sentido, abrindo espaços para incluir mais vozes nessa disputa.
No plano institucional, o conflito se desdobra entre distintos direitos como
parte de uma dinâmica social antagônica: por um lado aqueles que sustentam
critérios de radicação ligados ao reconhecimento do processo histórico – e
organizativo – de povoamento e uso dos habitantes – com independência
da relação entre renda e o preço do solo que habitam –; e, por outro, marcos
institucionais que privilegiam negócios de mercado amparados no direito
ilimitado de uma propriedade privada, que tende a apagar suas histórias
arbitrárias e expropriadoras de constituição.
Neste contexto, naturalizam-se definições da política privatizadora do solo
público, argumentando fins de redistribuição social, que bem poderiam acontecer
com outros instrumentos (venda setor 5 e de Villa de Paso, para fazer habitações
ou infraestrutura).
24 Seguindo o tipo de orientação proposta por Henry Lefevbre em “A Revolução Urbana” (1970)
Experiências - Lutas populares 189
Estes conflitos pela apropriação do solo central envolvem tramas interativas
que evidenciam fronteiras porosas entre Estado e sociedade civil: existem atores
e interesses de classe em ambos os lados do mostrador, suas lógicas se viabilizam
através da articulação de redes, cujo nível de análise privilegiado é médio e
diacrônico. Essas tramas canalizam a agitação e moldam a institucionalidade em
função de correlações de forças que modulam as pressões estruturais.
Finalmente, os direitos das camadas populares, somente são defendidos
na presença de organização e desenvolvimento de estratégias políticas para
transformar as relações sociais e então concretizá-las.
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Habitantes da Ilha de Gazirat al-Dhahab, Cairo, Egito
enfrentam da expulsão
Maria Cristina Harris
Desde 2001, os habitantes da Ilha de Gazirat al-Dhahab no Cairo, Egito, vem
sendo pressionados pelo governo para deixarem suas casas a fim de dar espaço
a projetos de renovação que os governos estaduais irão prover para o “bem
público”. Os habitantes da ilha, no entanto, querem permanecer na terra onde
suas famílias têm vivido por mais de cem anos.
Localizada ao lado do Rio Nilo, a Ilha de Gazirat al-Dhahab, ou Ilha de Ouro
em português, tem uma população de mais de 20.000 habitantes e possui uma
terra bastante fértil usada para agricultura. Apesar da numerosa população
da ilha, a única maneira de chegar e sair dela é a faluca, um pequeno barco
tipicamente usado no Rio Nilo e no mar Mediterrâneo. Não existem serviços de
água e saneamento na ilha, tampouco escolas ou centros de saúde.
Planos de Urbanização para a Ilha
Sob o plano diretor do Cairo projetado para 2050, o governo pretende embelezar
a cidade, criar novos espaços verdes em todas as áreas e fazê-la mais atrativa
no cenário mundial. A ilha de Gazirat al-Dhahab é um espaço urbano que o
governo deseja colocar em “melhor uso”. Embora o “melhor uso” careça de uma
definição clara pelo Ministério de Habitação e Serviços Públicos, uma das opções
foi vender o solo a um investidor árabe estrangeiro que usaria o espaço para
construir instalações turísticas.
O governo justifica o despejo das famílias pela afirmação de que a ilha é de
sua propriedade e que não está sendo usada para o “benefício público”. Também
promete fornecer pacotes de compensação adequados aos moradores. Para estes,
no entanto, lhes parece difícil confiar nas promessas do governo, pois muitas
famílias, que desistiram de sua terra em negociações anteriores com o governo,
nunca receberam a compensação completa.
192 Ciudades para tod@s
A falta de clareza nos planos do Ministério da Habitação e Serviços Públicos
para renovar a ilha de Gazirat al-Dhahab levou ao surgimento de uma série de
declarações sobre o que deve ser feito. A construção de instalações turísticas,
criação de um parque público e até a criação de um parque com resort são todas
ideias surgidas para a modernização da ilha. A construção de um parque público
poderia corresponder ao fomento do uso positivo do solo da ilha. A ilha de
Gazirat al-Dhahab consiste numa grande extensão de terra de baixa densidade
populacional. Considerando o crescimento do número de habitantes do Cairo e
a expansão da cidade, um plano como este que possibilitasse a permanência dos
atuais habitantes na ilha, assim como a continuidade do cultivo da terra, poderia
representar uma solução satisfatória tanto para o governo como para os moradores.
O governo, no entanto, leva um longo período propondo a expansão de espaços
verdes em todo o Cairo, mas os projetos de construção de parques aparentemente
sempre fracassam, ao passo que investimentos estrangeiros de grande escala são,
ao contrário, favorecidos. A falta de confiança nas promessas do governo é uma
das razões centrais porque os moradores de Gazirat al-Dhahab não tem aceitado
as solicitações do Ministério de Habitação e Serviços Públicos para deixar a ilha.
Abrindo o debate sobre o direito à cidade
A situação dos habitantes da ilha de Gazirat al-Dhahab atualmente os coloca
numa posição vulnerável em função da falta e segurança de posse e seu medo
constante pela remoção.
A declaração do governo de que a ilha é uma área protegida e a negação de
prover serviços públicos à mesma vem sendo um caminho para reafirmar seu
controle sobre Gazirat al-Dhahab e pressionar as famílias a deixá-la. Oficialmente,
na condição de “área protegida”, habitantes não são permitidos na ilha, edifícios
e casas não podem ser construídos ou reformados e o governo não tem obrigação
de fornecer água ou serviço de saneamento.
As famílias naturalmente aumentaram e a expansão doméstica tornou-se uma
necessidade. Desde que o governo tornou ilegal o transporte de materiais de
construção para a ilha, as famílias também experimentam uma “superpopulação”
dentro de suas casas ou optam por contrabandear materiais para a ilha. Isso
implica um aumento de custos por uma quantidade menor de materiais de
construção que podem ser levados à ilha ou o confisco dos mesmos pelos oficiais
e processos legais do governo contra os cidadãos que constroem ou reformam.
As crianças também não recebem formação adequada porque não existe
educação formal na ilha. O tempo gasto para que os pais levem e busquem seus
filhos à escola na ilha principal resulta na evasão escolar de muitas crianças e sua
permanência em casa. Além disso, a falta de acesso ao abastecimento de água
Experiências - Lutas populares 193
potável e saneamento apropriado, agregado a indisponibilidade de cuidados
médicos, vem produzindo muitas mortes que poderiam ter sido evitadas,
particularmente as crianças, que são as mais vulneráveis.
A maioria das famílias da ilha de Gazirat al-Dhahab está vivendo lá por mais
de um século e agora o governo lhes nega o direito de permanecer na terra que
habitam por tanto tempo. Onde irão morar as 20.000 pessoas uma vez removidas
da ilha se não são providas de compensações e reassentamentos adequados?
Esse caso oferece a oportunidade de refletir sobre o conceito de direito à cidade.
O direito à cidade constitui um processo que envolve diálogo e debate entre governo
e cidadãos. Os governos municipais devem valorizar as necessidades e direitos de
seus cidadãos ao invés de aplicar diferentes táticas para remover moradores do
seu lugar. Como cidadãos do Cairo, não se deve negar aos habitantes de Gazirat
al-Dhahab o acesso a água potável, saneamento, educação apropriada para as
crianças, qualidade sanitária e moradia adequada. O governo do Cairo precisa
ouvir as reivindicações de seus cidadãos e dar-lhes a oportunidade de participar
do planejamento de sua cidade, especialmente quando ambos, a terra onde vivem
por mais de um século e o seu futuro, estão em jogo.
Oito anos após sua declaração inicial1, o Ministério de Habitação e
Serviços Públicos ainda não tomou posse das terras da ilha. Ainda existe,
consequentemente, a oportunidade de criar um projeto urbano que leve em conta
os direitos dos cidadãos, incluindo os pobres, para que permaneçam dentro da
cidade e sejam envolvidos nos processos que afetam sua subsistência.
Considerações
Se o governo é tão ávido por aumentar os espaços verdes no Cairo por que não
permite que os habitantes de Gazirat al-Dhahab permaneçam? Atualmente eles
praticam agricultura urbana e produzem verduras de alta qualidade, além de
outros produtos alimentícios com os quais se sustentam. Os cultivos da ilha
formam parte da identidade de seus habitantes e de sua subsistência. O governo
do Cairo está priorizando seu esquema de “embelezamento” orientado ao turismo
e os interesses privados ao invés do beneficio aos seus cidadãos mais pobres.
O Centro Egípcio para os Direitos Humanos (Egyptian Centre for Housing
Rights – ECHR ), membro da Coalizão Internacional pelo Hábitat (HIC na sigla
em inglês), encontrou-se com oficiais do governo para discutir o plano diretor
do Cairo e para enfatizar a importância da participação dos cidadãos e da
sociedade civil no processo de planejamento urbano. Depois de comparecer a
uma conferência ministrada pelo Ministério de Habitação e Serviços Públicos,
1
Ver The Egyptian Centre for Housing Rights
194 Ciudades para tod@s
ECHR sentiu que era tratada de forma antagônica em função de sua interferência
no plano e crêem que foram marcados numa lista negra pelo governo, uma vez
que é a única ONG que está dando atenção para esta causa.
ECHR também contatou o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas
(United Nations Development Programme – UNDP) e o Banco Mundial (BM), uma
vez que ambas as instituições estão envolvidas no desenho e execução do plano
diretor do Cairo. Durante um workshop organizado entre o ECHR e o governo,
UNDP recusou prover qualquer informação de seu envolvimento. O Banco
Mundial, no entanto, tem sido mais aberto à discussão. A expectativa é de que
um workshop sobre a responsabilidade do governo em projetos de planejamento
urbano realizado em Marrakesh, Marrocos em julho de 2009, pudesse fornecer
aos representantes de BM e ECHR a oportunidade de discutir os planos de
desenvolvimento urbano do Cairo.
As atitudes e relutância em colaborar expressas por alguns dos principais
atores envolvidos no plano diretor do Cairo demonstram que o trabalho de
ECHR deve ser apoiado por organizações locais e internacionais, assim como
pelo Relator Especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia
Adequada, de modo que possam ser criadas estratégias efetivas para que os
projetos de desenvolvimento planejados para a ilha de Gazirat al-Dhahab sejam
concebidos da melhor forma. Por este motivo em maio de 2009, os membros da
HIC e representantes do ECHR visitaram a comunidade de Gazirat al-Dhahab
para testemunhar as condições enfrentadas pelos habitantes da ilha e ouvir
depoimentos sobre sua luta. Os 50 defensores dos direitos à moradia, líderes
comunitários e representantes de 23 diferentes países estavam apreensivos sobre
as condições de pobreza em que estão vivendo os habitantes de Gazirat al-Dhahab
e chocados com os relatos sobre o que enfrentam como resultado do plano do
governo de apropriar-se da ilha. HIC esboçou uma Carta Aberta2 a ser enviada ao
Presidente Mubarak para expressar sua preocupação sobre os projetos urbanos
que estão sendo planejados no Cairo e incitar o governo a mudar suas políticas
destrutivas que violam e violarão os direitos à terra e à moradia, negando aos
cidadãos seu direito à cidade.
Referências:
Habitat International Coalition, Housing and Land Rights Network. 2009. Open Letter, RE:
Egypt’s intended 2050 master plan for Cairo threatens habitat of millions of poor.
The Egyptian Centre for Housing Rights. 2001. Egypt’s Cabinet to Dispossess 155 Thousand
People State Property & Public Benefit: State’s Pretexts to Displace Citizens. Website:
http://www.echr.org/en/hc/02/010620.htm
2
Ver Habitat International Coalition http://www.hic-net.org/articles.php?pid=3214
Do protesto à proposta e da proposta ao projeto,
Villa Esfuerzo, Santo Domingo, República
Dominicana
Steffen Lajoie
As causas da pobreza não podem ser reduzidas a uma carteira sem dinheiro,
um mau trabalho, uma saúde delicada e uma vizinhança perigosa. Atualmente,
as definições tendem a se mover dentro de uma variedade de questões que
compreendem aspectos sociais, econômicos, físicos e humanos, além de incluir
fatores tais como exclusão, o não empoderamento e a falta de direito à voz1.
As estratégias eficazes de redução, mitigação e erradicação da pobreza devem
considerar estes aspectos. Uma aproximação correta para abordar questões de
moradia e hábitat com o objetivo de erradicação da pobreza pode ter um efeito
favorável em assuntos tais como a redução dos custos de saúde; o aumento da base
de ativos; a criação de estabilidade e segurança; a identificação das dificuldades
na “criação de empregos”; além do incremento das possibilidades para melhorar
os serviços básicos assim como os serviços de moradia (Anzorena et al: 1998).
O direito à cidade possui cinco princípios fundamentais: a liberdade e o
benefício da cidade para todos; a transparência, a equidade e a eficiência na
administração da cidade; a participação e o respeito na tomada de decisões
democrática em cada área; o reconhecimento da diversidade cultural, social e
econômica, a redução da pobreza, a exclusão social e a violência urbana (Brown
e Kristansen: 2009).
O chamado pelo direito à cidade está centrado em mudar as políticas,
estruturas e práticas que não permitem que as pessoas mais pobres da cidade
tenham acesso a aquilo que seus vizinhos mais ricos consideram imutável: voz
e voto no planejamento, na construção, na manutenção, no abastecimento de
serviços e na criação de suas cidades.
1
Para uma discussão mais detalhada sobre moradia e hábitat, pobreza e redução da mesma ver
Moser, 1995 e Navarro, 2001
196 Ciudades para tod@s
Para aprofundar o estudo será examinado como os movimentos sociais podem
atuar com o objetivo de estabelecer as associações e o poder necessários para
eliminar todos os obstáculos que entorpecem suas estratégias de subsistência.
A comunidade Villa Esfuerzo foi desalojada a força em duas ocasiões,
durante os últimos dois anos, por companhias privadas. Em julho de 2009, a
Aliança Internacional dos Habitantes AIH apresentou fundos multilaterais para
reconstruir a comunidade em conjunto com o Instituto Nacional de Vivienda (INVI)
– Instituto Nacional de Moradia –, proprietários privados, grupos comunitários
locais e organizações da sociedade civil e, finalmente, os residentes de Villa
Esfuerzo (IAI: 2009). Neste trabalho se analisa como o movimento social foi capaz
de gerar a energia necessária para eliminar os obstáculos na redução da pobreza
e da exclusão social e física, além do incremento da participação assim como para
ganhar o direito à cidade.
O contexto de pobreza de Villa Esfuerzo, Santo Domingo, República
Dominicana
A República Dominicana compreende dois terços da ilha de Santo Domingo e
compartilha 388 quilômetros de fronteira com o Haití. Possui uma população de
mais de 8,5 milhões de habitantes, dos quais 60% residem nas cidades e o resto
se localiza no Distrito Nacional e na Província de Santo Domingo; 32% vivem
abaixo da linha de pobreza; 35% não possuem acesso adequado à água potável;
22% não têm acesso a serviços básicos; e a taxa de mortalidade infantil supera a
média da região (AGFE: 2005).
Pelo menos 75% das habitações foram autoconstruídas e 50% dos dominicanos
não possuem título de propriedade da terra que ocupam. Este fato, somado à
insegurança da posse das terras, deu lugar a um alto número de desocupações
forçadas não somente na capital, mas em todo o país.
Villa Esfuerzo está localizada em um município do leste de Santo Domingo e
ocupa terras pertencentes à família Porcella, que foram arrendadas pela Câmara
Estatal do Açúcar em 1958. Dado que as companhias públicas foram privatizadas,
a terra foi devolvida aos seus proprietários sem nenhuma garantia de posse para
seus residentes, apesar das escrituras emitidas pelo estado (AGFE 2005; IAI: 2009).
Minha primeira visita a Villa Esfuerzo foi em janeiro de 2007. Nesse período, a
comunidade havia sido despejada de maneira forçada e violenta em duas ocasiões.
Em 9 de março de 2005 levou-se a cabo um segundo despejo, no momento em
que o Grupo Assessor das Nações Unidas contra Despejos Forçados (UN-AGFE,
na sigla em inglês) estava realizando uma missão especial no país. De fato, o
despejo aconteceu pouco tempo depois da reunião de AGFE com o procurador
do estado (AGFE: 2005). Das 600 famílias despejadas no início, 60 permaneceram
Experiências - Lutas populares 197
no lugar. Estas famílias viviam em assentamentos precários autoconstruídos. A
água era abastecida por tubulações que provinham da cidade e a eletricidade por
torres próximas ao lugar.
Após o segundo despejo, a missão de UM-AGFE, em colaboração com
People’s Network, recebeu a promessa, por parte do governador da Província de
Santo Domingo, de reparação dos danos produzidos às casas daquelas pessoas
que tivessem em seu poder as escrituras de propriedade. O fato deu início à
campanha de Reconstrução de Villa Esfuerzo que em 2007 atingiu, por sua vez,
um compromisso para a arrecadação de fundos destinados à reconstrução a ser
realizada em 2009 (IAI:2009)
A construção de associação e poder para obter o direito à cidade
Durante as noites em que se realizaram os despejos a companhia privada
chegava com pedaços de madeira e gasolina, incendiando as casas com o objetivo
de afugentar os residentes e em seguida destruir a vizinhança. Villa Esfuerzo
sentiu-se impotente e desprovida de todo direito. Não obstante, a comunidade não
carecia de recursos políticos e sociais. Muitos bairros da República Dominicana
elegerão um Conselho de Moradores que possuirá diferentes instâncias de
comunicação com o governo local (informante-chave)
O Conselho de Moradores já estava afiliado à Rede Popular pela Coordenação
e Defesa da Terra Urbana, uma associação que abarca mais de sessenta
organizações comunitárias e da sociedade civil que trabalham em conjunto para
desenvolver uma voz mais ativa em relação a questões tais como defesa das
terras, moradia e segurança do hábitat. Em 2005, a rede já havia estabelecido
contato com UN-AGFE, sendo que o município de Boca Chica lhe havia enviado
um convite para ajudar a frear a ameaça de despejos forçados (AGFE: 2005).
Em 2007, Villa Esfuerzo já tinha ouvido promessas suficientes, além de ter
visto uma maquete arquitetônica de sua comunidade reconstruída. Nada,
contudo, foi materializado. Para pressionar as entidades estatais, Villa Esfuerzo
uniu-se ao People’s Network por meio de sua afiliação a Campanha Despejos
Zero da Aliança Internacional de Habitantes, iniciada com uma marcha para o
Palácio Nacional em 2007 (IAI: 2009)
Em março de 2007, os moradores de Villa Esfuerzo se reuniram em frente à
sede o INVI para protestar. Com o apoio do ex-governador de Santo Domingo
conseguiram uma reunião com o Diretor do INVI para retomar as negociações de
reconstrução. Dada a crescente pressão por parte da comunidade, a coalizão da
UM-AGFE, People’ Network, Coop Hábitat e a AIH foram capazes de negociar
uma tentativa de acordo entre o proprietário da terra, o INVI, a Coop Hábitat e
Villa Esfuerzo.
198 Ciudades para tod@s
A família Porcella doaria o terreno a Coop Hábitat, desde que o INVI
concordasse em construir algo agradável do ponto de vista estético. O INVI
comprometeu-se a construir habitações para 77 famílias com a condição de
que fosse sob um regime de aluguel com promessa de compra, o qual seria
organizado por meio da Coop Hábitat. Tudo o que se necessitava era dinheiro.
Depois de muito lobbying e trabalho em redes, os aliados de Villa Esfuerzo foram
capazes de reunir fundos multilaterais não apenas para eles, como para mais
duas comunidades em agosto de 2009 (IAI:2009)
Vitórias
Os residentes de Villa Esfuerzo ainda estão à espera que a reconstrução seja
iniciada. Porém, o que aconteceu neste caso tem um significado mais importante:
um pequeno grupo de famílias de baixa renda foi capaz de mobilizar autoridades
e organizações locais, nacionais e internacionais com o objetivo de brigar por
seus direitos.
Villa Esfuerzo também serviu como projeto piloto, abrindo precedente para
a formação de novas associações onde jamais houve diálogo algum. Graças
à oportuna ajuda internacional, a comunidade foi capaz de pressionar as
autoridades e encontrar uma solução inovadora para seus problemas de moradia.
Como resultado da campanha de reconstrução, Villa Esfuerzo ganhou uma voz
com alcances internacionais por meio da Campanha Despejos Zero, conseguindo
reuniões e negociações com o INVI e o governador. Posteriormente, o programa
foi promovido a nível presidencial pelos membros de diferentes partidos. Por
meio do estabelecimento de associações, a comunidade obteve melhorias na
segurança de posse da terra e os direitos à moradia; estabeleceu comunicações
com o governo e com instituições internacionais; desenvolveu uma voz forte;
criou uma rede social através de aliados e de redes que os colocou em contato
com organizações similares; e conseguiu acesso a tomada de decisões dentro do
processo de planejamento de seu entorno e do futuro de suas famílias.
Conclusão
O protesto contra o tratamento recebido significou importantes conquistas em
matéria de direitos para Villa Esfuerzo. Foram capazes de lutar e conseguir o
acesso às instituições do governo que tinham o poder de decidir seu futuro. Ao
mesmo tempo criaram um precedente para os futuros projetos em situações
similares, pois corrigiram estruturas e processos institucionais que impediam as
estratégias de subsistência e de um hábitat com moradias adequadas e seguras.
Experiências - Lutas populares 199
Sem a organização a nível comunitário e, em seguida, por meio de People’s
Network, a nível regional e internacional, a comunidade internacional talvez
nunca houvesse tomado conhecimento da situação. E mais, por meio dos
protestos, as propostas, o trabalho em rede, as reuniões e as negociações, estes
atores foram capazes de sentar-se a mesa com políticos, ministério de habitação
e entidades federais. Desta maneira conseguiram reduzir a pobreza e a exclusão
social, aumentando a participação e o respeito à tomada democrática de decisões
a nível local. O que se atingiu foi importante e exigiu muito esforço. No entanto,
é dessa forma que os movimentos sociais podem obter o direito à cidade.
Bibliografia
Advisory Group on Forced Evictions (AGFE), UN-HABITAT 2005, Forced Evictions –
Towards Solutions?: First Report of the Advisory Group on Forced Evictions to
the Executive Director of UN-HABITAT. http://www.unhabitat.org/campaigns/
tenurfe/taskforce.asp
Anzorena, Bolnick, Boonyabancha, Cabannes, Hardoy, Hasan, Levy, Mitlin, Murphy, Patel,
Saborido, Satterhwaite, and Stein 1998, Reducing Urban Poverty; some lessons
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Brown & Kristansen 2009, Urban Policies and the Right to the City: Rights, responsibilities
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Moser C O N. 1995, Urban Social Policy and Poverty Reduction. Environment and
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the cases of the cities of Mar del Plata and Necochea-Quequen. Environment and
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Naciones Unidas 2009, Millennium Development Goal 8: Strengthening the Global
Partnership for Development in a Time of Crisis, MDG Gap Task Force Report2009,
New York, Sales No. E.09.I.8, ISBN 978-92-1-101194-4
Iniciativas populares de empoderamento
Construir a cidade para e pelos cidadãos:
O direito à cidade na África
Joseph Fumtim
O direito à cidade é atualmente um conceito emergente nos discursos militantes
que questionam as políticas urbanas ultraliberais deficientes. Propõe-se mediante
um pleonasmo: o simples fato de existir outorgaria ao cidadão a liberdade de
exercer sua cidadania sem outras exigências. Não obstante, o decurso da história,
acelerado por numerosas conjunturas, separou o cidadão de sua dignidade
até o ponto em que deve buscar novos métodos que lhe permitam exercer sua
cidadania urbana. Isto é, devem ser gerados mecanismos de adaptação que
permitam ao cidadão apropriar-se da cidade, transformá-la a sua maneira, a fim
de beneficiar-se equitativamente dos seus recursos, pois a cidade não é apenas
caos, monstruosidade ou uma máquina compressora inexorável. É e deveria
ser um filão cuja riqueza se expresse em termos de infraestrutura, redes sociais,
de economia… Possui tantas oportunidades de integração e de realização de si
mesma que deveriam estar à disposição de cada habitante da cidade mediante o
trabalho das instituições.
Deste ponto de vista, quando nos questionamos sobre o problema do direito
à cidade falamos do direito à vida. Com efeito, mais além do aspecto meramente
especulativo e normativo, o direito à cidade busca garantir ao habitante da
mesma a possibilidade de satisfazer dignamente suas necessidades biológicas,
tais como beber, comer, respirar e excretar; liberdade mesma de habitar sua
cidade, de incorporar-se a ela.
Em seguida nos empenharemos em explorar as condições de enunciação e do
surgimento do direito à cidade, além de apresentar os desafios deste direito no
quadro global da governança urbana nas cidades africanas. Embora a intenção
seja falar da África em geral, a maior parte dos exemplos será proveniente do
caso de Camarões.
204 Ciudades para tod@s
Uma urbanização que explode em frações, forclusão e exclusões
Ao observar a urbanização de muitos estados africanos e particularmente
da África Subsaariana, salta à vista o crescimento exponencial dos espaços de
exclusão, isto é, de lugares, práticas e medidas que condicionam o cidadão,
psicológica e juridicamente, à incomodidade. A boa convivência já não é a
norma. A segurança psicológica que antes amenizava as relações entre o cidadão
e sua cidade se despedaçou. Concretamente se observa não somente o risco de
demolições e despejos forçados, mas também as faixas vermelhas indicando
estacionamentos exclusivos, reservados ou pagos, etc. Dito de outra forma,
assistimos a uma proliferação de zonas proibidas que ameaçam as necessidades
biológicas citadas acima.
Esta sinalização indicando zonas comunais proibidas demonstra a restrição
espacial e o confisco urbano que afeta aos cidadãos africanos, particularmente os
mais pobres. Quando se observa uma cidade como Yaundé resulta preocupante
o desequilíbrio que se produz entre a construção de estacionamentos pagos e a
extensão de pistas e estradas, entre a prosperidade dos centros de acumulação e
intercâmbios capitalistas frente aos espaços menos mercantis (os bairros pobres).
Nos espaços marginais, as condições de vida não representam nenhum interesse
para o capitalista do tipo neoliberal, pois valorizam a riqueza em matéria social
(como as redes sociais) sobre a riqueza comercial.
Cabe destacar, no entanto, que este ordenamento do território urbano é
acompanhado por um dispositivo de repressão similar ao observado na África
do Sul nos tempos do apartheid.
Esta dinâmica, que reúne um amplo apoio das mais altas esferas do estado, vai
gerando e reforçando a segmentação urbana entre facções cada vez mais radicais
e enfrentadas a problemas com potencial altamente violento e conflituoso.
Durante as “rebeliões da fome” acontecidas em fevereiro de 2008, foi constatado
e lamentado que as zonas urbanas mais violentadas foram os bairros ricos.
Uma famosa obra teatral, “O dom do proprietário” (“Le Don du Propriétaire”,
2003) do camaronês Wakeu Fogaing, recentemente levada ao cinema por seu
compatriota, o diretor Serge Alain Noah, já tinha visualizado esta perspectiva.
Na obra, o Ser. Vartan, habitante rico de uma capital africana contemporânea,
surpreende, em plena noite, o filho do vizinho na janela de sua esposa. Imagina
que foi enganado pela esposa, mas então o ladrão lhe garante que o que procura,
simplesmente, é levar “uma parte” da insolente riqueza que desfruta com tanta
abundância, enquanto todos ao seu redor morrem de fome. A luta dos pobres
pela sobrevivência está intimamente ligada à raiva ante os ricos, à possibilidade
de pensar em despojá-los de suas riquezas mediante roubos simbólicos ou reais.
É sobre esta base que se devem observar certos atos de vandalismo, não como
ações de espoliação, mas como forma de protesto diante da ordem social.
Experiencias - Iniciativas populares 205
A fragmentação progressiva se soma o crescimento à margem de um segmento
da população que poderia ser considerado como “escória urbana”, precisamente
as pessoas que não representam nenhum tipo de interesse ao sistema capitalista.
Desde alguns anos o delegado do governo implementa, ante a comunidade
urbana, obras públicas em Yaundé com o objetivo explícito de “modernizar” a
cidade, arrumando as vias de circulação e “saneando” os bairros catalogados
como insalubres. Agora, se estas ações são observadas escrupulosamente, podese entrever que a cidade é negada aos mais pobres. Vítimas do ostracismo, os
pobres estão sendo empurrados para as periferias, onde “sobrevivem” ou, na
realidade, “subvivem” em condições às vezes inumanas. Então a reivindicação
pelo direito à cidade é também uma reivindicação pelo direito à vida.
Esta deriva é tal que muitos cidadãos africanos vivem em sua própria cidade
como passageiros em trânsito, ou mesmo como ocupantes de campos para
refugiados. Estão sem estar de fato. As múltiplas frustrações, a insegurança relativa
ao acesso a terra, a aceleração da história1, fortalecidos pelo desenvolvimento de
tecnologias, os passos agigantados do capitalismo e a massificação do consumo
desgastaram pouco a pouco seu território próprio, no sentido do conceito de
“insegurança dos territórios”, do arquiteto e filósofo francês Paul Virillo. Estes
habitantes da cidade perderam as noções de proporção, dimensão, enormidade,
tamanho e vivem atualmente numa incômoda rede de relações humanas e
ambientais, numa espécie de armadilha estruturada pela claustrofobia, de um
lado, e pela fobia, de outro.
Depredação urbana : Nossas cidades estão à venda?
A pergunta foi feita por um grupo de pesquisadores2 ao constatar, em cidades
africanas, a colusão entre autoridades locais e o mundo dos negócios. Com efeito,
os terminais urbanos, os mercados populares, a distribuição da água, esses espaços
e recursos que permitem aos mais pobres sentir, com menos rigor, o ardor e a
austeridade urbanas, privatizam-se progressivamente. Esta retirada gradual do
estado corresponde ao enfraquecimento da imposição do poder público, que tem
sido hábil e maliciosamente transformada na diminuição da responsabilidade
pública para com as vidas dos cidadãos. É o que parece estar sendo preparado para
as sociedades urbanas nas cidades da África negra, onde a colusão entre setores
1
2
A massificação do consumo e o desenvolvimento de tecnologias ocasionam nos cidadãos uma
confusão de referências, ao ponto de perder o domínio sobre sua realidade: “O imediatismo, o
instantâneo, o onipresente, o tempo real que constrói a história, fizeram desaparecer o espaço
real, a geografia ”, Paul Virilio en Radio France Internationale(Programa radial « Idées », 17 de
mayo de 2009).
Bredeloup, Sylvie & Bertoncello, Brigitte y Lombard, Jerôme (Dir.) Dakar, Abidjan : des villes à
vendre ? Éditions l’Harmattan, Paris, 2008.
206 Ciudades para tod@s
públicos e privados visa privilegiar os interesses particulares em detrimento do
interesse público. Esta corrupção ou esta submissão das autoridades locais ao
capitalismo provocou uma inversão de valores e perda de referências, o que teve
conseqüências sobre a percepção e o contexto dos itinerários sociais.
Nos anos 60, tanto em Camarões como em muitos países da África Central,
as dissensões entre o urbano e o rural se refletiam nos itinerários migratórios
de acumulação de bens, tanto simbólicos como econômicos. Assim, em muitas
tribos, como por exemplo, os Bamileke de Camarões, o meio rural era o espaço
primeiro de valorização da riqueza e da notoriedade, enquanto que a cidade era
considerada como uma espécie de segunda zona, um espaço não burguês3 de
exploração e conquista de bens acumuláveis. Desta maneira, o meio rural podia
ser o centro e a cidade a periferia. Nossas cidades funcionaram sob este modelo
até a chegada do capitalismo total.
Mas a implantação do capitalismo em todas as relações produtivas contribuiu
para que hoje em dia suceda o contrário, radicalizando divisões que os
dispositivos sociais moderavam incessantemente. As cidades para os ricos e o
meio rural para os pobres4. Parece um lema, mas explica perfeitamente a situação.
Na realidade, depois da implementação dos programas de ajuste estrutural sob
a bênção das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), a onda de
privatizações dos serviços públicos transformou os estados em depredadores dos
seus cidadãos, particularmente dos mais pobres. De fato, o acesso a justiça e à
segurança é constantemente entorpecido e obstruído, propiciando a corrupção e
o clientelismo. Se tomarmos como exemplo o acesso aos direitos econômicos em
Camarões, constataremos que, para os mais pobres, este se encontra submetido a
uma cadeia fiscal restritiva. Em semelhante mecânica, os pobres transformam-se
num elemento do dispositivo capitalista, no qual podem ser ao mesmo tempo
consumidores e consumidos. Consumidores porque deve ser mantido o método
“justo a tempo – estoque zero”5, favorecendo o consumo massivo, recorrendo
a medidas incentivadoras como as promoções, as liquidações... Consumidos,
pois todas as iniciativas são engolidas pelo polvo capitalista, cujos tentáculos
incrustam-se até nas esferas menos imaginadas. O que chamamos de depredação
urbana é o conjuntos de todos estes processos e manobras, complôs e ultrajes,
3
4
5
Entende-se aqui por “burguesia” a notabilidade, isto é, práticas e espaços de valorização (com
ou sem ostentação das riquezas. Por exemplo, os Bamileke não realizam os funerais na cidade de
residência do defunto, mas sim no meio rural. Nos funerais, todos os participantes exibem seus
bens materiais e simbólicos, sendo que frequentemente acontecem desperdícios e enganos.
A divisão entre cidade e campo se conjuga na dualidade riqueza/pobreza. No entanto, com o
auge do capitalismo, pode ser notada certa radicalização desta tendência.
Segundo Paul Virilio, é o lema da distribuição massiva. Dito de outro modo, vender tudo, comprar
tudo. O sujeito social existe somente quando consegue inserir-se nos circuitos de produção e
consumo de massa.
Experiencias - Iniciativas populares 207
uma espécie de feitiço e vampirismo político. Como compreender, por exemplo,
o desmantelamento do comércio na via pública sob o pretexto de saneamento, se
tal comércio informal proporciona 10% das receitas fiscais urbanas.
Metropolização , uma armadilha urbanística na África
As megalópoles africanas, como Lagos, o Cairo e muitas outras em vias de
se tornarem uma, constituem para os habitantes das cidades um autêntico
desafio: como viver, ou o que fazer, diante de semelhante gigantismo? A leitura
de romancistas nigerianos dos anos 70 e 80 (Buchi Emecheta com “The Bride
Price”, Nkem Nwanko com “My Mercedes is Bigger than Yours”), bem como
escutar as canções de um Fela Anikulapo Kuti, ilustram perfeitamente com que
confusões e embaraços, já nesses anos, os cidadãos enfrentaram o fenômeno
urbano que é a megalópole. Nestes textos, Lagos é apresentada como uma
“cidade cruel”, uma selva, não uma urbe, onde a cultura e tudo o que pode
ser parecido a um estilo de vida tem mais o aspecto do estado de natureza no
sentido hobbesiano. Uma situação onde a cultura do urgente é predominante,
onde o fato de enfrentar e encontrar soluções aproximadas caracteriza todos os
atos cotidianos do cidadão.
Em muitos países africanos, as megalópoles são um sintoma patológico e não
um sinal de êxito do urbanismo. É verdade que acarretam enormes recursos no
plano econômico, mas isso é proveitoso somente para o sistema capitalista de
essência ultraliberal. As multinacionais se interessam por elas unicamente para
o lucro de seu capital e para obter maiores rendimentos. O que acontece com as
desigualdades e os danos ecológicos que geram? O inquietante neste assunto
é a progressiva contradição do ser humano sobre seu entorno e a tensão cada
vez mais forte nas relações humanas, em função da interferência capitalista. Os
habitantes estão perdendo o tempo de sua própria cidade. São cada vez mais
insensíveis à respiração de sua cidade, sacudidos num ataque urbano que cresce
permanentemente. A ingerência capitalista, a cultura dos fluxos os faz perder
o controle de sua realidade. Assim rompem com o passado e com o futuro,
sumindo-se num presente delirante. No entanto, o tempo deveria ser o dos
homens e não o da tecnologia, o dos valores humanos como solidariedade e não
o da vontade capitalista.
Construir a cidade para e pelos cidadãos
A reflexão sobre o direito à cidade na África não poderia tornar óbvia a
necessidade de concebê-la para e pelos cidadãos. Sem este pressuposto, a cidade
africana se transformaria eventualmente em cidade de estruturas (capitalistas,
208 Ciudades para tod@s
tecnológicas...) e não na cidade das pessoas6. Esta é, ao menos, a perspectiva que
oferece a atual evolução da urbanização no continente.
Esta reflexão é articulada em torno da redistribuição dos papéis dos atores
que intervêm no desenvolvimento urbano. É a este respeito que “muitas vozes
defendem um modelo de desenvolvimento baseado no dinamismo da população
e não em extensos e custosos procedimentos de planejamento urbano que são
decididos em agências mundiais ou nos governos. Vários países comprovaram
a efetividade do desenvolvimento da responsabilidade em comunidades pobres,
de sua capacidade de economia coletiva e microcrédito”7.
Considerando a evolução urbana numa perspectiva de co-produção, a cidade
torna-se um valor compartilhado, assim como seus sistemas de produção e
apropriação. O direito à cidade na África apela para uma nova socialização dos
cidadãos africanos sobre si mesmos e seu entorno. Como fazer da cidade habitável
para seus cidadãos? Como facilitar aos cidadãos sua realização em sua própria
cidade, sem que estejam obrigados a emigrar para distâncias esmagadoras ou
simplesmente mais prejudiciais?
Este direito de habitar reivindicado pelas populações urbanas mais pobres
deve deixar de ser uma aspiração para transformar-se num imperativo categórico.
Uma verdadeira arquitetura jurídica internacional proporciona pautas para
esta oportunidade8 e agora se trata de animá-la, recorrendo à nossa capacidade
criativa. Temos o dever de imaginá-lo e este é o momento de exercê-lo.
6
7
8
A arquiteta e professora Teolinda Bolívar Barreto e sua equipe da Universidad Central de Caracas
publicaram nos 90 e 2000 um boletim chamado “Ciudades de la gente”. Embora redundantes tais
expressões são necessárias!
Grégoire Allix, L’urbanisation comme moteur du développement ?, Le Monde, 22.07.09
Entre elas, a « Declaração Universal dos Direitos Humanos », a « Carta Africana sobre os Direitos
Humanos e dos Povos», assim como a maior parte das Constituições Nacionais da África
francófona.
El Movimiento de Pobladores en Lucha1
Charlotte Mathivet e Claudio Pulgar
O surgimento do movimento de moradores em Santiago do Chile
Os movimentos de moradores do princípio do século XXI, no Chile, têm suas
raízes na sua longa história de lutas durante o século XX. É por isso que carregam
traços similares nas suas demandas e ações. Contudo, diferenciam-se dos
movimentos dos anos 60, 70 e 80 por três razões2: a fragmentação da identidade
de morador, a aspiração à igualdade e a ação fragmentada.
A fragmentação da identidade do “ser morador” é resultado das mudanças
políticas que o Chile vem sofrendo desde a ditadura militar (1973-1990) com
a instalação de um modelo econômico, social e cultural neoliberal que teve
consequências no tecido social do país. Embora durante os anos da ditadura, a
violência e a pobreza dos moradores, o inimigo era visível e a luta clara, com a volta
da democracia, não é tão simples definir para que e contra o que vai a sua luta.
A identidade do morador se torna mais complexa a partir da mesma
individualização gerada pelas reformas neoliberais da ditadura e da democracia,
que criaram um habitante de conjunto habitacional popular3 que pode não
se reconhecer como “morador”, com pouca identidade no seu território
marginalizado e de pouca notoriedade. Os moradores de hoje em dia são
“duplamente despossuídos: da herança de seus antepassados e das promessas da
modernidade contemporânea”4. Uma das causas desta perda de identidade pode
ser explicada pela mesma política habitacional que começou durante a ditadura
1
2
3
4
O Movimento dos Moradores em luta (MPL)
Márquez, Francisca, Resistencia y sumisión en sociedades urbanas y desiguales: poblaciones,
villas y barrios populares en Chile, Santiago, 2008
Os conjuntos habitacionais populares são bairros caracterizados pela predominância de habitações
sociais de baixa qualidade
Márquez, Op. Cit, p 349
210 Ciudades para tod@s
e continuou na democracia com os diferentes governos da Concertación5,
traduzindo-se, entre outras coisas, na erradicação dos assentamentos precários
(acampamentos, terrenos invadidos).
Com efeito, a realocação das famílias dos acampamentos para os conjuntos
habitacionais populares, bairros de habitações sociais de baixa qualidade e de
poucos metros quadrados gerou, em muitos casos, uma perda de vínculos sociais
fortes que foram tecidos por meio da luta pela sobrevivência no acampamento.
Esta perda de redes fortes, que eram um suporte no dia a dia, é vivida pelos
recém-chegados aos conjuntos habitacionais populares com uma sensação de
pobreza ainda maior. Embora satisfeitos pelas novas comodidades que encontram
nas habitações sociais, as famílias recém chegadas sentem-se num ambiente de
“desconfiança, medo e insegurança”6.
É a partir desta mesma situação, de aproximação das famílias, de carência
de moradia digna, que os moradores se organizam. Isto se traduz em lutas para
retomar o espaço público a partir da organização comunitária, fazendo uma
ponte entre os movimentos de moradores antigos e a situação atual, buscando
recuperar e fortalecer os vínculos sociais entre os moradores.
História da construção do MPL: reuniões de irmãos para obter moradia digna
Em mapudungun, idioma dos mapuches, Peñilolén significa “reunião de irmãos”,
o que deu lugar ao nome da atual comuna7 de Santiago do Chile, Peñalolén. No
século XIX, estas terras eram divididas em diversos fundos entre as poderosas
famílias de proprietários de terras. Desde os anos 60 começaram as invasões dos
terrenos – ocupações irregulares de terras – como resposta a falta de moradia em
Santiago, sendo que grande parte da comuna foi construída dessa forma.
A última ocupação em Peñalolen aconteceu em 1999 quando 1700 famílias
ocuparam um terreno de vinte e seis hectares, fato notável não apenas por
sua escala (em termos de número de famílias e tamanho do terreno ocupado),
mas também porque o fato ocorreu após dez anos de suposto êxito da política
habitacional do governo chileno de transição democrática, assim como num
período de redução da pobreza no país. A ocupação de 1999 é marcada por
um contexto diferente da realidade das ocupações dos anos sessenta e setenta.
Naquela época os moradores lutavam por uma moradia digna num contexto
político e econômico muito diferente, alcançando construir, num começo, grande
5
6
7
Trata-se de uma coalizão política de partidos de centro e esquerda moderada que governa o Chile
desde a década de 90.
Márquez, Op. Cit, p 351
Divisão administrativa e territorial que é gerenciada por um administrador (prefeito) eleito pelo
voto popular
Experiencias - Iniciativas populares 211
parte da cidade desta forma e em seguida, de forma adversa, com a repressão da
ditadura militar para os setores mais pobres do país.
A ocupação de 1999, no entanto, tem as características tradicionais das
invasões de terreno mais emblemáticas de Santiago do Chile, e deu lugar a uma
organização eficaz de moradores que demonstraram sua vontade de integrar
a cidade que os exclui. Conseguiram mostrar que eram atores indispensáveis,
protagonistas da construção da cidade, ao contrário do que mostra a política
habitacional dos diferentes governos da Concertación (aliança de partidos
de centro e centro-esquerda que governam desde o retorno da democracia),
continuadora da política habitacional da ditadura, que reconhece somente dois
atores: o estado e o mercado.
Os moradores, através de sua luta, determinação e trabalho conseguiram,
com a ocupação de Peñalolen, encontrar diversas saídas para as justas demandas
de vida digna com a liberdade e a solidariedade que se desenvolvem no interior
desta comuna. Cabe destacar aqui que dez anos depois, a ocupação de Peñalolén
continua existindo, com mais de 400 famílias vivendo em condições de vida
pouco digna, constantemente vigiados pela polícia e vivendo sob pressão para
abandonar a área.
Lucha y Vivienda (Luta e Moradia)
A tradição de luta por um lugar na cidade e uma moradia digna continuou viva
nos moradores de Peñalolen mesmo depois da ocupação de 1999. Em 2003 nasceu
a organização Lucha y Vivienda (Luta e Moradia), contando com assembléias de
bairro e conselho de delegados, para poder descentralizar o poder de decisão
dentro da organização geral. Apesar do discurso oficial de êxito da nova política
habitacional chilena dos anos 90 e da implementação, em 2006, da Nova Política
Habitacional pelo atual governo de Michelle Bachelet, as novas organizações de
moradores como Lucha y Vivienda se organizam para reivindicar suas aspirações
a uma moradia digna, num lugar onde seus vínculos sociais tenham sido tecidos
historicamente. Em resumo, aspiram gozar do direito à moradia e à cidade,
permanecendo na mesma comuna que os viu nascer.
O Movimento de Moradores na Luta (MPL), novo nome, a mesma luta
A partir do ano de 2006 surge o MPL, a partir da organização original Lucha y
Vivienda, como nova referência dos moradores da comuna de Peñalolén para
continuar a luta pelo direito à moradia e à cidade. Esta organização se destaca
pelo dinamismo de seus integrantes e a vitalidade de um de seus representantes,
Lautaro Guanca, 26 anos, estudante de direito e morador da comuna de Lo
212 Ciudades para tod@s
Hermida, conjunto habitacional popular histórico de Peñalolen. Nos últimos anos
os moradores de MPL alcançaram vários êxitos, em diversos níveis, para tornar
realidade o direito à cidade e a moradia nesta comuna. Estes esforços nascem
da vontade de recuperar um papel ativo na tomada de decisões e transformar
em realidade a participação dos moradores, recuperando o tecido social perdido
durante os anos de ditadura militar e de política neoliberal, assim como durante
a democracia e a política habitacional subsidiária dos diferentes governos da
Concertación, que trouxe efeitos de individualização e pouca participação dos
moradores.
Abordagem ideológica: do beneficiário ao “novo morador”
Muitos enfoques de políticas públicas, pesquisas acadêmicas e outros consideram
os conjuntos habitacionais populares das periferias pobres urbanas como
anomalias, problemas a resolver através das políticas urbanas, habitacionais,
etc., porém poucas vezes são abordadas como espaços com potencialidades
emancipatórias, como territórios onde os moradores são capazes de exercer
poder a partir “de baixo”.
Um caminho para avançar neste sentido seria adotar o enfoque do direito nas
políticas públicas, as quais se baseiam na participação das camadas excluídas
no desenho e implementação das mesmas. Trata-se de entender os moradores,
não como meros objetos da política pública, mas sim como sujeitos com direitos,
atores e protagonistas dos processos de construção social do território, assim
como da produção do hábitat. Concretamente, a proposta do direito à cidade nos
entrega um quadro para o desenho de políticas públicas urbano-habitacionais
abordadas a partir do direito.
O que as políticas públicas subsidiárias dos últimos trinta anos no Chile
conseguiram foi transformar os pobres – considerados como marginais,
vulneráveis, excluídos – em simples beneficiários, assistidos por programas
sociais, tornando-se objetos focalizados da política pública.
A transformação está em retomar o papel histórico dos moradores como
construtores da cidade e sua participação nos processos políticos, especificamente
nas políticas públicas. Trata-se de entendê-los como força política e produtiva,
como sujeitos de direito, que se posicionam a partir da conquista de novos
territórios físicos, culturais, sociais, econômicos e políticos. Desse modo poderão
mudar a lógica de assistidos ou beneficiários, para instaurar uma nova posição
frente ao estado, mudando suas práticas, apropriando-se dele, redistribuindo a
mais-valia, exercendo a cidadania, sem esperar conquistar todo o poder – como
era o paradigma do século XX – mas sim exercendo tal poder a partir do seu
território.
Experiencias - Iniciativas populares 213
A visão negativa do estado para os territórios de pobreza urbana tem sido um
terreno fértil para fomentar a segregação física e simbólica que pesa sobre eles.
Propomos um olhar diferente para as periferias urbanas, o qual também coincide
com o enfoque do direito nas políticas públicas centradas no habitante. Também
entendemos que “os subúrbios das cidades do terceiro mundo consistem num
novo cenário geopolítico decisivo”8.
Alienações urbanas do estado subsidiário e desalienações coletivas dos
territórios
A mesma ação do estado subsidiário tem sido talvez a maior causadora de
problemas sociais nas cidades. Deve-se olhar a crise gerada pela ação da
política habitacional, criando “guetos” de pobreza urbana de moradores “com
teto”9, os quais deixaram de ser sujeitos de direitos, transformando-se somente
em beneficiários ou objeto de programas sociais focalizados. “O mundo da
marginalidade é, de fato, construído pelo estado, num processo de integração
social e mobilização política, em troca de bens e serviços que somente ele pode
proporcionar”10.
Podemos fazer referência ao conceito de alienação, instaurado pela política
habitacional subsidiária, de uma perspectiva de alienação no trabalho, entendido
agora como uma alienação resultante da política pública subsidiária. Entendemos
o conceito de alienação como essa situação “imposta em todas as facetas da vida
cotidiana do indivíduo através de instituições e organizações que não permitem
sua participação na provisão de serviços”11.
Turner culpa esta alienação pelos sistemas heterônomos, administrados
centralmente e dependentes das grandes estruturas piramidais de crescimento
contínuo, baseadas nas tecnologias centralizadoras12. Refere-se à redução da liberdade
cotidiana, fundamentada numa atitude feudal por parte do estado para com as classes
sociais. Assinala que esta atitude não é responsabilidade exclusiva dos políticos ou
8
Davis, 2007 en Zibechi: 175 “Los suburbios de las ciudades del tercer mundo son el nuevo
escenario geopolítico” Zibechi, Raúl. Autonomías y emancipaciones. América Latina en
movimiento. Editorial Quimantú. Santiago de Chile.2008.
9 Rodríguez, A. y Sugranyes, A. “Los con techo: Un desafío para la política de vivienda social”.
Ediciones SUR. Santiago, 2005.
10 Castells, 1986: 266 en Zibechi: 181 Castells, Manuel. La ciudad y las masas, Alianza, Madrid.
1986/Zibechi, Raúl.Op.Cit.
11 (Ruiperez, 29). Ruiperez, Rafael. ¿quién teme a los pobladores? Vigencia y actualización del
Housing by people de John Turner frente a la problemática actual de hábitat popular en América
Latina. Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Artes, Bogotá. 2006.
12 (Turner: 31). Turner, John. Vivienda, todo el poder para los usuarios. Hacia la economía en la
construcción del entorno. H. Blume editores, Madrid, 1977. Título original Housing by people,
Marion Boyars publishers, London, 1976.
214 Ciudades para tod@s
dirigentes, mas também dos profissionais e funcionários que implementam a política
e consideram como cidadãos “ordinários” os moradores, dependentes deles e de
suas decisões e como cidadãos “extraordinários” os especialistas. Todos, políticos e
profissionais, realizam uma “administração de serviços a beneficiários dependentes,
cuja ignorância e incapacidade são aceitas como dado imutável”, colocando em prática
uma forma de relação paternal e de dependência entre o estado e os moradores13.
Não se trata de negar a existência do estado, nem de culpá-lo por todos os males,
mas sim de abordá-lo como necessário para a existência de certas instituições,
estruturas, regulações e financiamentos. Insistimos que a responsabilidade se
relaciona com o paradigma que tratam os “especialistas”, profissionais, executores
da política, que não abrem espaços de participação aos moradores. Para implementar
uma política com enfoque do direito é necessária, então, uma mudança ampla
de paradigma, que inclua os políticos, os que desenham as políticas e os que a
executam, supondo que estes papéis estagnados comecem a se “mobilizar”. Graus
maiores de participação e o empoderamento no caminho para o direito à cidade
são a base fundamental da ação dos movimentos de moradores.
As práticas territoriais dos movimentos sociais, neste caso do MPL, podem
chegar a se transformar em processos emancipatórios e, conforme a ideia de
Zibechi (2008), em “desalienações coletivas”. Neste sentido, elas são entendidas
no processo de empoderamento do enfoque de direito, além de ponto de partida
sob os prismas do direito à moradia e, em segundo lugar, de modo mais incipiente,
do direito à cidade, a partir de um movimento social urbano em formação.
Enquanto os moradores, em última instância, a classe trabalhadora “não aprender
a enfrentar essa capacidade burguesa de dominar o espaço e produzi-lo, de dar
forma a uma nova geografia da produção e das relações sociais, sempre jogará
numa posição de maior debilidade que de força”14.
As ações do movimento de moradores MPL para o direito à cidade
O MPL se coloca como uma organização territorial, o que supõe fazer uma
análise do movimento social a partir de outra perspectiva: não das formas de
organização nem dos repertórios de mobilização, mas sim das relações sociais
nos territórios. “Existe uma batalha de descolonização do pensamento na qual a
recuperação do conceito de território talvez possa contribuir”15.
13 (Ruiperez: 30). Ruiperez, Rafael. ¿quién teme a los pobladores? Vigencia y actualización del
Housing by people de John Turner frente a la problemática actual de hábitat popular en América
Latina. Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Artes, Bogotá. 2006.
14 (Harvey, 2003, Zibechi: 178). Harvey, David. Espacios de esperanza, Akal, Madrid. 2003
15 (Porto, 2006: 161 – Zibechi: 186). Porto, Carlos. “A reinvencao dos territorios: a experiencia latinoamericana e caribenha”, en Ana Esther Ceceña, Los desafíos de las emancipaciones en un contexto
militarizado, Clacso, Buenos Aires. 2006.
Experiencias - Iniciativas populares 215
O MPL não se limita levar demandas ao estado numa lógica de reivindicação
assistencialista e sim critica as atuais políticas, propondo por sua vez alternativas
a partir de um território específico – os conjuntos habitacionais populares –
ao modelo hegemônico, reivindicando a conquista territorial de espaços de
autonomia e autogestão. Estas demandas-ações têm requerido um processo
criativo que, paralelamente, segue “por dentro e por fora”16 da institucionalidade
vigente, operando nos interstícios deixados pela mesma. Tais espaços são
utilizados pelo MPL instrumentalmente para incidir na política e alcançar seus
objetivos de mais longo alcance, que se referem ao exercício dos direitos, antes
da pura satisfação das necessidades, assumindo como próprio o enfoque do
direito nas políticas públicas. Estes objetivos de mais longo alcance se baseiam
em exercer autonomamente o poder a partir dos territórios.
A passagem do poder estatal para as organizações locais vai de encontro com
os fundamentos estratégicos do direito à cidade – como marco para o desenho
das políticas públicas com enfoque de direito – que aborda, entre outras coisas, a
função social da cidade, assim como a predominância do interesse coletivo sobre
o individual. Além disso, aborda a gestão democrática da cidade através, por
exemplo, de espaços para a formulação e condução participativa das políticas
públicas, bem como da produção democrática da cidade, incluindo a produção
social do hábitat. No caso da trajetória do MPL, todos estes fundamentos são
convergentes e coerentes com sua atuação a partir do território.
Exercer o poder a partir dos territórios, de baixo, implica também colocar em
evidência as contradições que acontecem na cidade, especialmente numa cidade
segregada como Santiago, onde a desigualdade é evidente na sua distribuição
territorial. O direito à cidade aborda o usufruto equitativo desta, assunto que, no
âmbito habitacional, denota – como destacam os dirigentes do MPL – o “conflito
em termos de classe, como uma luta de classes, finalmente esta briga pela moradia
é pelo controle da mais-valia, pelo controle da riqueza e se soluciona quando a
classe obtém finalmente a maior quantidade de conquistas”17.
A proposta do MPL sobre a passagem do poder do estado aos territórios
se baseia no âmbito produtivo habitacional, com uma iniciativa de produção
social do hábitat que se “acomoda” ao quadro vigente da política habitacional
para então subvertê-la “gestando um embrião de poder popular que responde
à necessidade de ter controle sobre uma gama completa de produção, que
16 Guzmán, Romina, Renna, Henry, Sandoval, Alejandra, Silva, Camila Movimiento de Pobladores
en Lucha, tomas en Peñalolén para conquistar la ciudad, Cuadernos SUR, Ediciones SUR,
Santiago de Chile, 2009.
17 Guanca, Lautaro, en Aravena, Susana, Sandoval, Alejandra, edit. Política habitacional y actores
urbanos, Seminario del Observatorio de Vivienda y Ciudad, Ediciones SUR, Santiago de Chile,
2008, p100
216 Ciudades para tod@s
é a construção de habitações sociais”18. Neste exercício de direitos, através da
produção social do hábitat, existe também um pragmatismo evidente, que se
relaciona com a urgência por responder às demandas dos moradores por direitos
e não apenas esperar que o estado subsidiário se converta num estado de bemestar. Além disso, esta atuação toma como base o antecedente histórico de que a
cidade foi construída pelos moradores.
A ação do MPL para o enfoque de direito
Embora seja certo que este movimento pode ser reconhecido na longa tradição dos
movimentos de moradores chilenos que usam ferramentas tais como a ocupação
de terrenos e o enfrentamento com as autoridades, o MPL desde o princípio
afirma sua originalidade no cenário dos movimentos moradores, partindo do
seu lema “Nosso sonho é maior que a casa”. Este slogan da organização estrutura
claramente o projeto do MPL: não demandam somente por uma casa, um bem
privado a ser conseguido com a ajuda do estado, uma vez que sua luta é mais
ampla e global, direcionada a vontade de ser parte da cidade, de permanecer no
bairro, na comuna de sua escolha, a vontade de ser parte do processo de tomada
de decisão, de ter um peso nas decisões que tem importância em suas vidas.
A ação do MPL se coloca então a partir “da conquista territorial de espaços
de autonomia e de autogestão popular”19. Assim se direciona para a reconquista
de uma comuna construída por seus próprios moradores, porém na qual se
encontram despossuídos da possibilidade de decidir seu destino. A vontade
de permanecer no lugar onde possuem uma história, onde construíram sua
própria identidade, o desejo de poder participar das decisões que afetam este
lugar e, consequentemente, a vida de cada habitante e sua comunidade, são os
elementos centrais do direito à cidade, proposta que está sendo apropriada pelos
movimentos sociais.
As estratégias para alcançar seus objetivos
A partir das demandas dos moradores do MPL, cabe explicar suas estratégias
para efetivar tais reivindicações e impulsionar a geração de uma política urbanohabitacional com enfoque de direito. É desse modo que é possível vislumbrar
cinco grandes objetivos do MPL que se construíram ao longo dos anos20: 1.
Conquistar o direito a permanecer na comuna; 2. Transformar-se numa força
produtiva autônoma; 3. Levantar estratégias auto-gestionadas de ação popular;
18 Guanca, Lautaro, Op. Cit. p 103
19 Op. Cit
20 Guzman, Renna, et. al., op.cit.
Experiencias - Iniciativas populares 217
4. Ganhar espaços de representação dentro da institucionalidade política; 5.
Incidir no planejamento urbano da comuna.
No caso da política habitacional, com a criação inovadora da primeira EGIS e
da primeira construtora dos moradores, haverá o acesso à política vigente, dentro
de suas estruturas e normativas, porém articulando e integrando os moradores
no processo de gestão e produção habitacional, elemento que não estava
contemplado no desenho da política pública. Através da ação do movimento
social, no entanto, aproxima-se – quase que a força – de políticas públicas com
enfoque do direito e da produção social do hábitat, abordando os princípios do
direito à cidade.
O MPL celebra o resultado de suas lutas, a aprovação e o avanço autogestionado de seus projetos habitacionais e urbanos, inaugurando sua Entidade
de Gestão Imobiliária Social (EGIS), e a Construtora dos moradores. Trata-se
assim de avançar para uma gestão dos aparatos de produção pelos próprios
moradores, propondo sair das respostas ditadas pelo estado e pelo mercado.
Esta organização se destaca pelo dinamismo de seus integrantes e a
vitalidade de seus representantes, um deles, Lautaro Guanca, morador de Lo
Hermida, conjunto habitacional popular histórico de Peñalolen, foi eleito em 6
de dezembro de 2008 como conselheiro de Peñalolen para as eleições municipais,
afiliado ao Partido Comunista, mas como representante do MPL. Desta maneira,
o movimento pretendia se posicionar no cenário político estabelecido, para fazer
chegar as demandas dos moradores ao município, à administração local.
No caso do planejamento urbano, o MPL, junto a outras organizações de
Peñalolén, tem se coordenado e organizado no contexto do desenho do novo
Plan Regulador Comunal – PRC (Plano Diretor Comunal), com o objetivo de
construir uma proposta alternativa ao PRC. Esta nova proposta desejar recolher
as aspirações e demandas dos moradores e habitantes da comuna, não apenas
com propostas dos tecnocratas, que através de linguagem técnica e crítica afastam
os habitantes da participação do desenho original do Plano, deixando espaços de
pseudo-participação, que são meros espaços informativos.
A ação pela moradia digna em Peñalolén: do subsídio habitacional à
produção social do hábitat
É verdade que as reivindicações do MPL não se baseiam – de momento – na
demanda de abolição do subsídio. Os moradores são conscientes de que
necessitam, no atual panorama econômico e político, dos subsídios do estado.
Contudo, o MPL gerou uma crítica à política habitacional chilena, afirmando
particularmente que não basta entregar subsídios para fazer respeitar o direito
à moradia.
218 Ciudades para tod@s
Isto nos leva a entender que as demandas do MPL são construídas na
estrutura institucional determinada pelo estado subsidiário, no contexto
econômico neoliberal, com o uso de canais políticos tradicionais (como a eleição
de um dirigente do MPL como representante político no município), de canais
de produção auto-gestionários ou cooperativos de habitação (a construtora
EMEPEELE Ltda) e de gestão do processo habitacional (EGIS).
O conceito de “conquista” demonstra que os moradores de classe média baixa
sentem-se despojados de seu território, do lugar onde nasceram e cresceram
muitos deles por várias gerações. Com efeito, a região sudeste da comuna é onde
mais estão sendo construídas habitações caras, onde vivem famílias ricas, com
casas e terrenos amplos, especialmente em bairros fechados. O fato repercute
no aumento do valor do solo urbano na comuna de Peñalolén, isto é, houve
um aumento notável do valor do solo devido, especialmente, aos processos
de gentrification21 com o surgimento dos bairros fechados. Além disso, o plano
diretor 2010-2020 valida tais desigualdades urbanas, atuando como indicador da
vontade do município em orientar a comun para certo tipo social de habitantes.
Protagonistas do modelo habitacional vigente no Chile
O importante é constatar que o MPL, até antes de criar suas próprias EGIS e
Construtora, já vinha trabalhando junto a entidades privadas existentes, operando
como muitos comitês de moradia ou afins, ou seja, constituindo somente um dos
cinco principais atores do processo habitacional vigente, os quais são:
- As famílias organizadas em comitê de moradia ou afins;
- As EGIS, entidades privadas, encarregadas de gerenciar a demanda dos
comitês, desenhar os projetos, encaminhar, junto aos comitês, o acesso aos
subsídios, fazer o acompanhamento das obras e encarregar-se de todos
os trâmites legais do processo, bem como da capacitação social. O estado
paga a assistência técnica das EGIS com um fundo diferente daquele dos
subsídios.
- O estado, através do SERVIU (Servicio de Vivienda y Urbanismo)22,
supervisiona os projetos e, finalmente, entrega os financiamentos.
- As construtoras, que são as que utilizam o dinheiro dos subsídios para a
construção e, certamente, para obter lucro.
21 Definição análoga ao termo derivado do inglês “gentry” que é a aristocracia britânica sem títulos
de nobreza. Por extensão, gentrification significa aburguesamento, Ruffin, François, Pensar la
ciudad para que los ricos vivan felices en ella, en Urbanismo, Arquitectura y Globalización, Le
Monde Diplomatique, Ed. Aún Creemos en los sueños, Santiago de Chile, 2008, p15.
Na prática, gentrification consiste num processo de renovação e reconstrução que provoca a
afluência da classe média ou de pessoas abastadas para zonas urbanas deterioradas, geralmente
removendo os habitantes mais pobres.
22 Serviço de Habitação e Urbanismo
Experiencias - Iniciativas populares 219
- Os municípios, que atuam duplamente, por um lado apóiam e conduzem
a gestão dos moradores através de seus departamentos de habitação (de
fato alguns municípios tem suas próprias EGIS) e, além disso, concedem
liberações de obras e conclusões, através de suas Direções de Obras
Municipais (DOM).
Tomando como base a necessidade de superar as barreiras que contrapõem
os moradores às empresas privadas, a proposta do MPL é tomar não somente o
papel do comitê e sim abordar no seu seio e com seus próprios moradores, assim
como o trabalho dos profissionais, outros dois dos cinco papéis – justamente os
financiados pelo estado –, o da construtora e da EGIS.
Nos primeiros projetos de habitação do MPL, os atores no caso de EGIS e
construtoras resultaram ser atores privados, com os quais a relação e o processo
não tem sido fáceis.
A solução aos entraves das próprias políticas habitacionais de caráter neoliberal
é que os moradores assumam seu próprio destino, gerenciem e construam suas
habitações, já que se “nem o estado pode, nem os privados desejam, seremos nós,
então, os que construiremos o novo conjunto habitacional popular”23. A EGIS e a
construtora são mecanismos para captar o poder que tradicionalmente ocupa o
estado e, majoritariamente hoje em dia, o mercado.
Com a participação dos moradores na gestão e construção de seus próprios
territórios, o MPL deseja consolidar o fato de que, historicamente, Chile tem
sido um país de construtores e que “hoje nos compete ficar progressivamente
com a direção da produção e do produto”24. Progressivamente, já que o projeto é
lento e deve resistir a vários entraves, o que faz com que atualmente a empresa
construtora EMEPEELE Ltda ainda não tenha construído habitações sociais de
casas e apartamentos que já possuem projeto. No corrente ano de 2010 existe um
projeto de habitações em construção que foi gerenciado pelo MPL, mas que está
sendo executado por uma empresa privada de construção.
Além de sua luta por uma habitação digna, o MPL tem como objetivo
restabelecer e promover o sentimento de identidade e pertencimento ao bairro
e ao conjunto habitacional popular, o sentir-se parte da cidade, elemento
fundamental do direito à cidade. Muitas ações do MPL apontam nesta direção,
com a criação de hortas urbanas, de centros culturais comunitários e meios de
comunicação local. Neste sentido, pode-se dizer que existe um exemplo do
processo de conquista do direito à cidade, com várias ações para defendê-lo e
23 Guanca, Lautaro, en Varios autores. “El Derecho a la vivienda en Chile, aportes de la Primera
Escuela Nacional para Dirigentes Sociales” , Observatorio de Vivienda y ciudad, Santiago de
Chile, 2009, p34
24 Guanca, Lautaro, op cit, p35
220 Ciudades para tod@s
promovê-lo. Partindo de uma reação básica de resistência frente a um estado
assistencialista e subsidiário, os moradores se organizaram e foram capazes de ir
mais além da simples reivindicação de seus direitos, criando respostas adaptadas
a sua situação com ações originais.
A importância destas experiências de participação e de auto-gestão reside na
transformação do panorama do habitante da cidade, que de indivíduo assistido
que espera um subsídio para comprar uma casa, passa a ser um ator protagonista,
envolvido nas decisões de sua vida e na de seus vizinhos.
Isto é que o se entende por produção social do hábitat, no caminho para
alcançar o direito à cidade.
Mural do MPL, Peñalolén, Santiago.
As crianças no planejamento do espaço urbano,
Santiago, Chile
Alejandra Elgueta
Felipe Morales
Um problema transversal a todos os conflitos vivenciados na cidade de
Santiago é a falta de participação popular, tanto na tomada de decisões
como na utilização da cidade. Considerando que a apropriação do entorno
e a comunicação entre habitantes de um mesmo local é uma ferramenta
fundamental na construção de espaços públicos, apresentou-se a ideia de
levar a cabo uma oficina sobre educação ambiental urbana para as crianças da
zona de San Judas Tadeo, na comuna1 de Peñalolén, de modo a explorar o bairro
e sua história, utilizar o espaço público e impulsionar o reconhecimento entre
as crianças do referida zona.
Na sequência, expõe-se uma síntese das ideias sobre as quais a oficina foi
planificada e uma avaliação dessa experiência, o resultado no que se refere à
participação popular efetiva.
O caráter social da cidade
O conceito de construção social do espaço considera que a cidade também
é uma construção social. Segundo Henry Lefebvre, esta construção está
baseada na produção do espaço. A cidade iria se adaptando ao processo de
produção de capital, destruindo as estruturas antigas para construir novas
formas urbanas, conceito que David Harvey define como destruição criativa
(HARVEY, 1980).
Em outras palavras, a configuração que a cidade adquire surge da tensão
entre as relações de poder de grupos sociais pelo controle e articulação do
espaço em função de seus próprios interesses. Estas formas podem não
1
Divisão administrativa e territorial que é gerenciada por um administrador (prefeito) eleito pelo
voto popular
222 Ciudades para tod@s
ser originalmente geográficas, mas terminam por adquirir uma expressão
territorial (Santos, 1986).
O planejamento urbano no Chile
Na carta mundial sobre direito à cidade, este se define como o usufruto equitativo
das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e
justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos
grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e de
organização, com base em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o
pleno exercício do direito a livre autodeterminação e a um nível de vida adequado.
Esta visão guia os discursos políticos sobre os eixos de desenvolvimento
urbano nas cidades chilenas, como é o caso do Ministerio de Habitação e
Urbanismo2, que se traduzem em cidades com integração, sustentabilidade e
competitividade. No entanto, se no discurso político estes três eixos se colocam
num mesmo nível, as ações priorizam a competitividade, ao ponto de sobrepor a
sustentabilidade e a integração para consegui-la.
Na prática, o planejamento da cidade responde aos interesses de poucos cuja
posição privilegiada nas redes de poder político e econômico faz com que sua voz
seja mais ouvida. Definitivamente, a opinião dos cidadãos na organização da cidade
não é considerada. Reflexo disso são as constantes situações de descontentamento
e conflito dos habitantes e o pouco peso que tem nas decisões que tomam os
governantes e profissionais de planejamento. Assim, torna-se válida a seguinte
afirmação: “hoje os mesmos que governaram por décadas continuam confundindo
desenvolvimento urbano com crescimento imobiliário. Sua fórmula é que nós, os
moradores, adaptemo-nos às cidades e não as cidades se adaptem a nós.”3
Peñalolén. “A melhor comuna do Chile”
Na cidade de Santiago, especificamente na comuna de Peñalolén, os moradores
conheceram em junho de 2009 a proposta do Plano Diretor da Comuna elaborado
pela URBE consultores a pedido do município. Ao que parece se busca atrair
investimento imobiliário orientado a setores com mais recursos em relação aos
habitantes que estão vivendo tradicionalmente no lugar. Isso pode trazer como
conseqüência a expulsão silenciosa dos mais pobres para outras comunas.
O processo de participação dos cidadãos levado a cabo em Peñalolén se
caracterizou pelo temor dos que planejam em escutar a voz dos “planificados”.
2
3
Ministério de Habitação e Urbanismo
Editorial periódico “El Nuevo Poblador”. Peñalolén. Año 1, Nº 4, Agosto de 2009
Experiencias - Iniciativas populares 223
Também pela incompetência da maioria das autoridades municipais que,
definitivamente, tem o poder de decisão. A proposta de planejamento já veio
elaborada, planejada, desenhada da prancheta da consultora, pronta para ser
aplicada. Pode-se dizer então, que as instâncias governamentais de participação
popular são simbólicas, porém irreais.
Como construir uma cidade mais justa?
A figura da criança como referência para o planejamento urbano
Quando se pensa em como fazer da cidade um lugar acolhedor para todos os seus
habitantes, onde todos possam acessar livremente o espaço e satisfazer seus desejos
de se locomover de maneira cômoda ou recreação sem impedimentos nem limitações,
então se encontra um primeiro problema: a partir de que perspectiva pensar a cidade.
Tomando como base as ideias e experiências do pedagogo italiano Francesco
Tonucci, propõe-se pensar a cidade a partir da perspectiva infantil como uma
estratégia de integração dos cidadãos na sua cidade, por meio da recuperação dos
espaços públicos. Tonucci, preocupado com o problema da solidão das crianças
em cidades ricas começa pesquisar e experimentar formas de planejar a cidade
considerando a perspectiva das crianças. Porém, por que optar por esse grupo da
população e não outro?
Sem importar sua condição socioeconômica, étnica ou outra, a criança se vê
excluída da cidade devido a sua idade. Não é parte da massa votante, vive sob
a supervisão de adultos que decidem o que é bom ou não para ela, sendo que
ninguém lhe pergunta como gostaria que fosse sua cidade. Isso fortalece a figura
da criança como referência, já que sua exclusão é um problema que atravessa a
totalidade de camadas da sociedade. Existem crianças em todas as classes sociais,
religiões, etnias e crianças imigrantes de todas as nacionalidades.
Por outro lado, a criança é uma figura forte, capaz de sensibilizar toda a
sociedade, devido ao fato de que representa o passado, o presente e o futuro.
“A criança é nosso passado, um passado amiúde rapidamente esquecido, mas
que nos ajudará a viver melhor com nossos filhos e a cometer menos erros se
conseguirmos mantê-lo vivo e presente. A criança é nosso presente porque a ela
está dedicada a maior parte de nossos esforços e sacrifícios. A criança é nosso
futuro, a sociedade do amanhã, quem poderá continuar ou frustrar nossas
decisões e nossas expectativas”. (Tonucci, 1996).
A educação ambiental como ferramenta para a participação dos cidadãos:
A experiência da oficina
A experiência da oficina permitiu avaliar a educação ambiental como ferramenta
para a participação popular. A ideia é levar a cabo uma oficina (e não aplicar
224 Ciudades para tod@s
questionários ou entrevistas) radicalizada em sua qualidade do ponto de reunião
e organização. A oficina permite conhecer e interpretar a opinião de um grupo
e não como a soma de opiniões de seus indivíduos. As pessoas, neste caso as
crianças, emitem suas opiniões conhecendo a dos demais, o que estimula a
discussão e compreensão.
A educação ambiental permite desenvolver o pensamento espacial. Neste caso,
pensou-se no ser humano como parte de seu entorno e, portanto, protagonista do
espaço em que vive. Enfatizou-se que os atos (elementos e ações) no meio ambiente
não são isolados, e sim atuam sob certa lógica e se afetam uns aos outros.
Por se tratarem de crianças, deve-se assumir que sua principal motivação é
a brincadeira. Para as crianças brincar não é uma simples recreação, mas sim
também exploração e aprendizagem. As crianças apreendem o mundo brincando.
Contudo, devido aos seus objetivos, a oficina deve estimular o pensamento
urbano crítico, tanto como o conhecimento e a apropriação do bairro. Um dos
principais desafios foi como fazer uma oficina que através de atividades similares
a brincadeiras estimulasse as crianças a conhecer, entender e avaliar seu entorno.
É necessário planejar atividades que contemplem a diversidade de crianças
que assistirão a oficina. Em Peñalolén, foi de grande importância a faixa etária.
Nas primeiras sessões trabalhamos com roteiros escritos e muitas crianças, que
não sabiam escrever bem, ficaram excluídas, distraíram-se e começaram a fazer
outras atividades, desviando a atenção daqueles que estavam trabalhando. À
medida que a oficina foi avançando, decidimos trabalhar com “secretárias”. Entre
as crianças existem interesses e personalidades diferentes. Existem crianças que
não ficam quietas e outras que não se atrevem a falar, sendo que uma atividade
exitosa deve permitir que todas participem à vontade.
A ideia anterior se conseguiu com a realização de um vídeo que reconstruiu
a história do bairro, no qual as crianças deviam se organizar e cumprir todas as
tarefas (incluindo a de cameraman). As crianças deveriam se sentir à vontade
para opinar. O monitor não pode representar uma autoridade ou muito menos o
dono da verdade, já que a oficina deve ser uma busca do grupo, na que se inclui
o monitor. Os desejos expressados devem ser materializados de maneira que as
crianças vejam os resultados da oficina e se motivem a continuar participando.
Existem atividades que requerem algum tipo de preparação para serem
executadas4 sendo que é importante dedicar o tempo adequado, além de possuir
a capacidade e os recursos para que se realizem em toda sua extensão.
4
Na oficina uma atividade contemplava a criação de um mural; mas devido a não considerarmos
ensinar mais profundamente técnicas como stencil ou dedicar mais tempo e preocupação sobre
como seria o desenho do mural, a atividade não alcançou concretizar-se da maneira esperada.
O resultado foi um mural no qual as crianças apenas puderam participar e que hoje está
desaparecido.
Experiencias - Iniciativas populares 225
Recomendações
A oficina debe ser orientada a:
• Ser o menos parecida possível com a escola.
• Apropriar-se do bairro por meio da observação direta e atividades no
local.
• Realizar atividades que contemplem a diversidade do grupo (idade,
personalidade)
• Materializar os desejos e necessidades acordados na oficina.
Conclusão
As oficinas de educação ambiental se perfilam como uma ferramenta útil para
serem incorporadas nos processos de participação popular. Tal processo é muito
mais que instâncias de governo nas quais se permite à população dar sua opinião
a respeito do desenvolvimento urbano. A participação guarda relação também
com fomentar o uso do espaço público e com o sentir-se cidadão. Neste sentido,
a oficina de educação ambiental urbana estimula a ocupação e compreensão
da cidade (neste caso o bairro), utilizando a cidade como recurso educativo,
entendendo que os problemas da cidade podem ser resolvidos a partir da rua.
A oficina permite às crianças pensar e entender seu entorno como algo
próprio, avaliando em grupo de maneira crítica e consciente. Esta forma de
entender o bairro pode ser utilizada na compreensão dos desejos e necessidades
dos habitantes para o planejamento da cidade. No entanto, a realidade indica que
não existe vontade política por parte das autoridades governamentais em criar
verdadeiras instâncias de participação popular no planejamento.
Enquanto isso, o que se deveria fazer é inserir a oficina dentro de algum tipo
de organização popular, por exemplo, através da criação de uma assembléia
de crianças, cuja opinião construída em conjunto através das brincadeiras,
explorações e discussões, seja considerada e apoiada pela organização dentro da
qual está inserida.
Este tipo de iniciativas e outras que a precedem fazem refletir sobre o rol que
cumprem os habitantes da cidade na construção da mesma. Por que não se permite
às crianças participarem da construção de seu bairro? Os habitantes continuarão
esperando que as autoridades resolvam as problemáticas relacionadas com seus
espaços públicos?
Se acaso se espera uma resposta, o mais provável é que a qualidade de
vida da cidade já seja uma vaga lembrança. Talvez seja o momento em que as
pessoas organizadas começam a se apropriar dos lugares, exercendo seu direito
226 Ciudades para tod@s
à cidade para construir uma realidade urbana que represente verdadeiramente a
identidade dos territórios, para fazer frente a planos e intervenções que escapam
à lógica local do bairro.
Referências
Elgueta, Alejandra. Morales, Felipe. Ugarte, Akza. “Los Niños en la creación de la Ciudad”.
Revista CECU Centro de Estudios Críticos Urbanos. Año 1. Nº 1. Santiago.
Harvey, David. 1998. “La condición de la Posmodernidad”. Editorial Amorrortu.
Lefebvre, Henry. 1972. “La Revolución Urbana. Alianza Editorial. Madrid.
Santos, Milton. 1986. “Espacio y Método”. Revista Geocrítica Año XII. Número: 65.
Universidad de Barcelona.
Santos, Milton. 1995. “Metamorfosis del Espacio Habitado”. OIKOS – TAU. Barcelona.
Tonucci, Francesco. 1996. “La Ciudad de los Niños”. Barcelona.
Valdeverde, Jesús. 1995. “La Ciudad como Recurso Educativo. Los Recursos Educativos
en la Ciudad”. Revista La Ciudad Didáctica del Medio Urbano. Barcelona.
A Campanha OUR1 Orla: Defendendo o Direito à
Cidade em Nova Iorque
Shelley Buckingham
Gentrification2 na Chinatown de Manhatan
Chinatown, em Manhattan, é a residência de mais de 84.000 pessoas e tem
sido o centro cultural da comunidade de imigrantes chineses em Nova Iorque
por gerações. Imigrantes chineses de baixa renda tem residido e trabalhado
nessa área que está entre Lower East Side e o Distrito financeiro, estendendose ao longo da margem do East River. Considerando sua localização, essa área
também representa um excelente bem imobiliário, atraindo jovens profissionais e
investidores ávidos pela gentrification do solo, o que coincidentemente removeria
as comunidades chinesas de baixa renda e seus negócios. Existe uma crescente
realidade de gentrification acontecendo em toda Nova Iorque, resultando no
que David Harvey apontou como uma acumulação pela desapropriação. O que
significa a acumulação de terrenos de alto valor de mercado pela remoção de
habitantes de baixa renda de suas casas e comunidades nas quais gastaram anos
para construir. Atualmente, os habitantes de Chinatown estão preocupados com
os planos da cidade para renovar duas milhas de extensão ao longo da margem
do East River, com início de obras previsto para dezembro de 2009. Estes planos,
enquanto não concretizam fisicamente a remoção dos habitantes de Chinatown,
tem a intenção de preencher os espaços renovados com lojas caras, restaurantes e
cafés orientados a vinda de pessoas de alta renda e turistas, inacessíveis aos atuais
habitantes de baixa renda. O medo dessas pessoas é que isso possa aumentar a
pressão sobre seu acesso à moradia pela futura gentrification e remoção de suas
1
2
A sigla OUR corresponde em inglês a “Uniting and Organizing Residents” (Reunindo e
Organizando Moradores). Ao mesmo tempo, a palavra “Our” em inglês significa “Nosso”.
Portanto, o título do movimento significa “Nossa Orla”.
Gentrification: processo de renovação e reconstrução que provoca a afluência da classe média
ou de pessoas abastadas para zonas urbanas deterioradas, geralmente removendo os habitantes
mais pobres.
228 Ciudades para tod@s
comunidades. Os planos também representam um distanciamento do direito
coletivo à cidade para aqueles moradores de baixa renda para então abrir caminho
para atividades econômicas, lucro e interesses de alguns poucos privilegiados.
O direito à cidade
O direito à cidade é um direito coletivo para todos os que nela vivem, acessam
e usam e isso envolve não somente o direito a usar o que já existe no espaço
urbano, mas também o direito de criar e definir o que deveria existir a fim de
conhecer as necessidades humanas para viver uma vida decente no ambiente
urbano (Harvey, 2003). Em síntese, isso inclui o direito a usar a cidade e participar
da sua criação ou recriação. A realização do direito à cidade tem sido executada
através da colaboração entre grupos da sociedade civil e organizações, governos
e agências internacionais. O papel dos grupos da sociedade civil e organizações é
particularmente crucial para compreender o direito coletivo à cidade, como suas
experiências informam sobre as estruturas adequadas ou inadequadas nas quais
vivem. Ainda mais importante é que os diversos atores da sociedade civil estejam
presentes no debate sobre o direito à cidade, já que nem todos tem a mesma
experiência em um mesmo entorno.
Organização Comunitária
A comunidade chinesa que está ao longo da orla de Manhattan está se
organizando. Estão lutando contra os planos urbanos de renovação do seu
entorno a fim de permanecer onde estão e não serem retirados pelos interesses
lucrativos econômicos dos capitalistas ricos. O Comitê Contra Violência Antiasiática (CAAAV – também conhecido como Organização das Comunidades
Asiáticas CAAAV) tem sido um jogador ativo nessa luta, organizando
comunidades asiáticas pobres e de baixos salários em Nova Iorque desde 1986.
O CAAAV trabalha através de coalizões para construir uma estratégia única
para um movimento multirracial e multidisciplinar pela mudança social e
guiado pelos membros das comunidades de imigrantes asiáticos de baixa renda
na cidade de Nova Iorque. Uma das coalizões a que estão afiliados é a Aliança
pelo Direito à cidade, a qual mobiliza as bases de organizações comunitárias
contra a gentrification que atravessa todos os Estados Unidos em casos similares à
experiência que está acontecendo na Chinatown de Manhattan.
A Coalizão OUR Orla Defende o Direito à Cidade
Uma das maiores campanhas do CAAAV atualmente é a luta contra a gentrification
causada pelos planos da Corporação de Desenvolvimento Econômico da
Experiencias - Iniciativas populares 229
Cidade (EDC) para renovar a orla do East River, ao longo da qual está situada
a Chinatown. Os planos de renovação incluem a construção de passarelas, cafés
de alto nível e outros espaços comerciais aptos a fornecer bens e serviços mais
orientados para pessoas de classes altas e turistas do que para os habitantes locais
de baixa renda.
CAAAV respondeu através da reunião de forças com grupos comunitários
para coletivamente criar OUR, a qual inclui outros nove grupos de base
comunitária, multirracial e multidisciplinar que serão todos afetados pelos
planos de renovação da orla do East River. O objetivo da campanha é, sobretudo,
garantir que a renovação irá de encontro às necessidades das habitantes locais de
baixa renda e para limitar o favorecimento que esses planos possam causar para
o processo de gentrification em andamento no entorno.
Como os planos de renovação podem começar potencialmente no final de
2009, a Coalizão OUR Orla tomou ações urgentes para participar do processo de
planejamento e então poder reivindicar sobre a criação do seu entorno. Esperase que o plano dos cidadãos seja liberado no verão de 2009, depois de reunir as
preocupações e expectativas dos habitantes para os planos de renovação da orla
através de enquetes e de uma série de oficinas. Para os planos de renovação,
os participantes das enquetes e oficinas estão pedindo o uso livre da orla,
incluindo espaços verdes abertos, instalações de recreação tais como quadras de
basquetebol e handebol, atividades educativas para jovens e serviços sociais tais
como traduções e serviços legais. Eles também priorizam pequenos vendedores e
negócios de baixo custo tais como carrinhos de comida, feiras de frutas e verduras
os quais são mais acessíveis à sua baixa renda.
A Coalizão OUR Orla está fazendo exatamente o que Harvey aponta como
exercício de seu direito à cidade. Harvey vê a resposta às demandas feitas pelas
comunidades, como as de Chinatown de Manhattan, como uma demanda
unificada para aumentar o controle democrático sobre a especulação do solo que
usualmente confiscam os investidores capitalistas como forma de obter lucro. Em
outras palavras, este exemplo representa um chamado para aumentar o controle
sobre o fazer e usar a cidade e suas estruturas.
Um grande problema para compreender o direito coletivo à cidade é o
desafio imposto pelos direitos individuais – como se sustenta no capitalismo – de
certos grupos de privilegiados da sociedade que lucram onde possa o lucro ser
encontrado. Isso é um conflito de direitos – individuais versus coletivo – onde
as tensões crescem entre privilegiados ávidos por antecipar novos fins de lucro
e os menos privilegiados que esperam assegurar o que é seu e permanecer no
lugar onde vivem, simplesmente porque chegaram primeiro. Essencialmente,
os direitos individuais podem comprometer e anular direitos coletivos. Devese considerar absolutamente inaceitável remover uma comunidade inteira pelo
230 Ciudades para tod@s
benefício de alguns que são capazes de fazê-lo somente porque são mais ricos.
Quais são os direitos culturais de uma comunidade de ficar onde investiram por
décadas no lugar que chamam de casa, onde encontram conforto, intimidade,
comunidade, serviços e subsistência? Deve-se gritar que, mesmo que suas
condições de moradia não sejam adequadas, estão lutando por seu direito de
permanecer onde vivem porque estão conectados com aquela comunidade.
Encontrar uma casa não é questão de ter quatro paredes e um telhado sobre a
cabeça. Trata-se de plantar sementes e vê-las crescer, o que requer mais do que
trabalho, tempo e cuidado do que a construção de um edifício. A Campanha
OUR Orla não é uma campanha contra a implementação da renovação da orla do
East River. Eles vangloriam a perspectiva de melhorar seu bairro, mas seu foco é
assegurar que essas melhorias acrescentem e não impeçam sua rica cultura e vida
comunitária que eles levaram anos para construir. Este é o desafio que enfrentam:
fazer com que investidores e empresários entendam que, ao assegurar seus
direitos, sob o capitalismo, para lucrar no mercado especulativo, estão enterrando
sob a superfície uma comunidade de longa data, estão destruindo o direito dessa
comunidade de permanecer como são e onde estão.
Referências
Harvey, David. “Debates and Developments: The Right to the City” in International
Journal of Urban and Regional Research, vol. 27, no. 4, pp. 939-941. December 2003.
Harvey, David. “The Right to the City” in New Left Review. Issue 53, pp. 23-40. Sept-Oct
2008.
CAAAV Organizing Asian Communities. Chinatown Tenants Union, Outreach Brochure.
2008
CAAAV Organizing Asian Communities. Momentum Builds for a Community Waterfront
in Chinatown and the Lower East Side! 6 May 2009.
CAAAV Organizing Asian Communities. OUR Waterfront Campaign. 2009.
CAAAV Organizing Asian Communities. Website: http://www.caaav.org/about
Os comitês de terra urbana
Hector Madera
Nós, os Comitês de Terra Urbana (CTU), somos um movimento de Moradores
que, em nossa política, contemplamos três eixos temáticos: os Inquilinos, os
Zeladores e os Pioneiros, além da construção do socialismo como elemento
transversal a esses três eixos. Nós dos CTUs fomos reconhecidos pelo Governo
Revolucionários Venezuelano no dia 4 de fevereiro de 2002, mesmo quando nossa
luta pelo direito à cidade já levava décadas.
Nossa função “...tal como se desprende do decreto do projeto Especial para a
Regularização da Propriedade da Terra em Assentamentos Urbanos Populares e seus
desenvolvimentos posteriores, aponta para a definição de um Programa de Transformação
e Democratização da cidade, desmantelando as dinâmicas de segregação espacial que
implicam que mais de 60% da população do país viva em assentamentos humanos
precários. Isso através da regularização integral dos bairros, que supõe, como tarefas:
1. A regularização jurídica, democratizando a propriedade e brindando a
segurança jurídica aos moradores das comunidades populares, convertendo
em ativo os únicos bens com os quais contam milhões de famílias.
2. A regularização urbanística, estabelecendo regularizações e normas
de convivência a partir do reconhecimento da idiossincrasia de cada
comunidade, sem que isso signifique deixar de considerar sua relação com o
resto da cidade, apontando para um processo constituinte e ao autogoverno
comunitário. O instrumento fundamental deste processo é a Carta do Bairro.
3. A regularização física, que vai mais além da simples infraestrutura, pois supõe
melhorar as condições de vida nos bairros, garantindo serviços, suprimentos
e equipamento, mas também implica alcançar seu desenvolvimento
sustentável e integral, promovendo sua revalorização produtiva, a saúde, a
educação e o abastecimento, etc.”1
1
Retirado do Cuaderno democratización de la ciudad y transformación urbano, novembro 2004,
pág. 3 do CTU
232 Ciudades para tod@s
Para colocar estas funções em prática, contamos com uma organização
aproximada de mais de 7000 CTU a nível nacional e na área Metropolitana
de Caracas, com 1200 CTU, estruturados em três níveis: Paroquial, Municipal
e Estatal, sendo que cada uma destas organizações, em nossas poligonais,
constituem-se de 150 a 300 famílias. Como assinalamos em linhas anteriores, os
CTU somos um baluarte para a Revolução Bolivariana, já que de nossos bairros
organizados partimos para a implementação de outras organizações de base.
Concebemos o Cadastro Comunitário e Popular, aplicando todo o rigor
cadastral, já que os bairros não existem na lógica cadastral governamental
tradicional quarta republicana. Do mesmo modo, o cadastro em nosso país
é responsabilidade da Cartografia Nacional, a qual delega a responsabilidade
às administrações municipais e a quem a lei faculta para realizar cadastro.
Antes da Quarta República, nenhum bairro autoconstruído podia estar
regulamentado. Todo o aparato jurídico burguês foi pensado para que não
existamos cadastralmente, e é por isso que nossas comunidades organizadas,
com a anuência do governo central de Hugo Chávez, puderam instrumentar
uma proposta a partir do segundo Governo do atual governo. É quando as
entidades governamentais começam a dar os primeiros passos incorporando os
saberes comunitários com o rigor da Cartografia Nacional. As administrações
municipais, no entanto, não reconhecem o cadastro comunitário realizado pelas
comunidades, salvo algumas exceções.
Os três eixos
Movimento dos Zeladores: Este movimente duplamente vulnerável, uma vez
que quando se perde o emprego, perde-se também a moradia, caindo a um nível
de quase escravidão. Isso porque a exploração a que nós, os zeladores, somos
submetidos (as) é desumana, pois trabalhamos mais de 12 horas ou, em alguns
casos, até 15 horas. Tal abuso é contrário a legislação vigente no país, porém, dentro
da lógica capitalista, aquele que diga algo ou denuncie, está fora do mercado
de trabalho. Não obstante, a organização do nosso movimento tem evoluído a
respeito para mudar esta situação. Sabemos que não é uma problemática jurídica,
mas sim política e, portanto, lutamos em todos os espaços, buscando a articulação
como o movimento de moradores.
Movimento dos Inquilinos. Montamos no país uma rede anti-despejos e
em Caracas, onde funciona melhor, muitos já foram evitados através da rede.
Aconteceram alguns casos, no entanto, uma vez não houve tempo para ativar a
rede onde os despejos estavam ocorrendo.
Experiencias - Iniciativas populares 233
Fizemos então uma proposta ao Prefeito de Caracas, com base em nossa
experiência e nas contribuições de lutas em outras latitudes, com a finalidade
de que se elabore um decreto ou ordenança anti-despejos forçados. No entanto,
com tal decreto, a oligarquia mediante a ação dos tribunais, concretizou medidas
de despejos. Com efeito, na Venezuela os poderes estão separados e gozam de
autonomia, mas o poder judiciário até o momento tem estado na sua maioria nas
mãos de oligarcas e responde a essa lógica de poder. Para que a população se
revolte contra o governo, estão fortalecendo os despejos em Caracas e o Prefeito
da cidade – que é do processo revolucionário – aceitou uma proposta que fizemos
em conjunto com o movimento dos moradores: um decreto anti-despejo em
Caracas. O decreto é claro: proíbe o despejo na cidade. As contradições, contudo,
estão presentes nesse processo de mudança e os oligarcas são omissos ao decreto
quando nós os pobres não nos articulamos. Somente a organização nos dá paz e
tranqüilidade diante do atropelo dos opressores culturais e nos ampara diante da
segregação política e da exploração econômica.
Movimento dos Pioneiros. Propõem-se três pontos:
• Recuperar terrenos ociosos, baldios ou de edifícios abandonados para
conseguir moradia e construir uma nova cidade.
• Formação e capacitação de todo o movimento de pioneiros (as).
• Elaboração de propostas e parcerias com a SELVIP e outras organizações.
O fato nos fez bem acima de tudo por todo o legado que a sociedade
dividida em classes nos nega e pelos preconceitos que sofremos dessa mesma
sociedade. As mudanças são difíceis, mas as alcançaremos, já que estamos em
tempos de mudança de era. Na Venezuela e em muitos outros países os povos
começam a entender o fracasso do sistema capitalista. Tal sistema vem negando
a humanidade, uma vez que o centro de sua proposta é a acumulação, sem dar
importância aos que nada tem, nem aos que morrem para assegurar os grandes
lucros e a óbvia reprodução do sistema. O único antídoto é viver em comunhão e
harmonia com a mãe natureza.
Membros da CTU em un projeto de rehabilitaçao urbana, Caracas, Venezuela.
Organização, poder e apoio político em Caracas,
Venezuela
Steffen Lajoie
Limitações e obstáculos da vida em mega- assentamentos precários e a
necessidade de recuperar a cidade
A Carta pelo Direito à Cidade, articulada por Habitat International Coalition e
apoiada por uma ampla rede internacional, busca o reconhecimento do papel
e da participação dos residentes, grupos comunitários e movimentos sociais
(Brown e Kristean 2009). Em 1999, a Venezuela adotou o direito à cidade na
sua Constituição, o que inclui o direito à moradia segura e digna, o direito à
participação nos processos democráticos e, o que é ainda mais interessante, o
direito a formar unidades de planejamento locais, bem como o controle da
tomada de decisões no desenvolvimento e no planejamento. Neste artigo se fará
um exame do contexto dos assentamentos precários urbanos e dos movimentos
sociais antes da obtenção dos direitos legislativos e constitucionais. Em seguida
se analisará o efeito catalisador que significaram as mudanças constitucionais
e, especificamente, como deram suporte para a criação dos Comitês de Terra
Urbana (CTU). Finalmente, serão examinados os múltiplos efeitos gerados pelo
apoio do governo às organizações comunitárias locais e à redução da pobreza.
Contexto, realidades em terreno: a cidade informal e a luta pela inclusão
À exemplo de muitas cidades de países de baixa renda, um passeio pelas ruas
de Caracas nos levará ao encontro de um grande número de construções e uma
enorme variedade de contextos. Estima-se que entre 60 e 70% das habitações
localizam-se em áreas de alto risco (inundações, deslizamentos de terra e
delinqüência), em condições muito mais precárias do seria considerado adequado
ou seguro por aqueles que lá vivem (Antillano 2005:. 207-208; Núñez n.d).
236 Ciudades para tod@s
A zona “formal” da cidade se estende sobre um vale estreito. Os moradores
destas áreas compreendem desde pessoas muito ricas até muito pobres. Além
disso, podem-se observar assentamentos ilegais e amontoados onde quer que
haja espaço: ao lado de canais de irrigação, em edifícios abandonados e em
espaços urbanos sem uso e em ruínas.
Contudo, o que circunda a cidade é ainda mais impactante. Embora
planejadores e arquitetos tenham lutado para criar um distrito nacional
atrativo, os assentamentos informais expandiram-se pelas encostas íngremes ao
redor da cidade, dando lugar a um dos assentamentos precários mais antigos
e grandes da América Latina (Núñez n.d.; Ellner 2004: 120-130). O contraste é
forte, impressionante e pouco comum. Ele também nos faz questionar quem está
construindo as cidades do presente.
Como e porque os urbanistas, designers e visionários políticos conseguiram
excluir os mais pobres da cidade, a maioria da população, é uma longa e
interessante história (ver Ellner 2004). Basta dizer que os assentamentos precários
localizados em Caracas e seus arredores são definidos pela exclusão econômica e
física da própria cidade (Antillano 2005: 206; Cariola et al 2005b: 22-25; Lajoie 2006:
5-6). Os bairros de Caracas são pequenas cidades hiperorgânicas: construíram-se
casas umas sobre as outras antes que houvesse vias de pedestres, acesso para
veículos, água potável, serviços de saneamento, eletricidade e sistema de esgoto.
Estes assentamentos continuam aparecendo e expandindo-se ao redor das zonas
periurbanas de Caracas.
Antillano (2005) defende o desenvolvimento dos movimentos sociais
dos últimos vinte anos, antes da constituição de 1999, como caótico e
desorganizado. Devido aos muitos obstáculos culturais e institucionais, os
grupos comunitários enfrentavam dificuldades que pareciam invencíveis.
Contudo, seriam estes mesmos grupos e ativistas os que no futuro levantariam
a bandeira dos CTU para construir algo novo tomando como base sua própria
experiência.
Reforma: transformando leis e processos, obtendo acesso
A constituição de 1999 colocou em andamento grandes projetos a longo prazo
na Venezuela. Especificamente, definiu a moradia como um direito humano.
Considerando a realidade do país, esta declaração poderia soar descarada e
pouco realista. Contudo, na constituição também se promove a participação
popular, através do artigo 26, e são instaurados conselhos de planejamento
local, por meio do artigo 182 (Cariola e LaCabana 2005b: 27-29).
Estes dois artigos foram logo apoiados pelo que hoje de conhece como
o famoso Decreto 1666, o qual identifica os Comitês de Terra Urbana como
Experiencias - Iniciativas populares 237
A transformação da Lei e os Processos
•
A constituição: Acorda-se um referendo nacional em 1999, o qual reconhece a
moradia digna como um direito humano.
•
Artigo 26: Promove-se a participação popular para o desenvolvimento dos
municípios.
•
Artigo 182: Outorga-se o poder às Câmaras de Planejamento Locais para que
atuem como intermediários entre os cidadãos e os organismos públicos.
•
Decreto 1666: regularização constante da terra, participação comunitária e
designação da posse da terra através dos CTU (Cariola et al, 2005a: p.113)
•
Os CTU: Grupos de 1-200 lares registraram-se junto a dirigentes eleitos a nível
local, paroquial, metropolitano e nacional. Trabalham para facilitar os processos
de posse e de regularização, pressionando para atingir mudanças legais, e no
trabalho comunitário.
•
A OTN: Fornece assistência técnica e profissional aos CTU; foi fundada pelo
Governo Central.
•
O MVH: Ministerio de Vivienda y Hábitat (Ministério de Habitação e Hábitat).
Fornece financiamento aos projetos CTU e mantém seus próprios projetos, às
vezes interrompendo o programa habitacional (Holland, 2006, obtido em Lajoie
2006: 29)
entidades responsáveis pela regularização eficiente, pela posse da terra assim
como pela participação e organização comunitárias1.
Para o funcionamento do decreto foi fundamental a criação da Oficina Técnica
Nacional – OTN (Escritório Técnico Nacional) –, a qual oferece apoio técnico
ao processo de regularização das terras, através da geomensura, regularização
e desenvolvimento de mapas cadastrais. A OTN é também um nexo entre o
Ministério de Vivienda y Hábitat (Ministério de Habitação e Hábitat) (MVH),
uma entidade do governo central, e os CTU. Isso se refere não apenas às políticas
e ao planejamento, mas também ao financiamento. Todos estes elementos são
ingredientes que compõem o prato. O desenvolvimento, a mobilização e a
organização criaram a receita da transformação urbana integrada (Holland 2006).
Vitórias: Segurança de posse, melhorias na moradia, organização e influencia política
O movimento Bairro, criado antes eleição de Chavez, e a constituição de
1999 sentaram, de muitas formas, as bases para o que hoje é uma revolução
habitacional (Antillano 2005: 207-208). A legislação que partiu de dentro e que
1
Estes artigos também apoiam a formação de várias comissões a nível de bairro, incluindo
eletricidade, saúde, água e serviços de saneamento, assim como de nutrição. (Holland 2006,
Cariola et al 2005),
238 Ciudades para tod@s
apoiou a constituição outorgou a legitimidade e os mecanismos necessários para
abrir o acesso aos processos e estruturas dentro do quadro formal da cidade.
Como conseqüência, os grupos comunitários foram capazes de constituir-se em
grupos de CTU, ao passo que regularizaram a terra onde viviam, obtendo a
posse legal de suas propriedades. Construir este nível de organização não é
uma conquista menor. Contudo, o acesso à posse da terra como comunidade
cria um nível de participação e abre as possibilidades para um planejamento
comunitário futuro. A OTN afirma ter entregado, nos seis primeiros anos de
trabalho, 350.000 títulos de propriedade que beneficiaram cerca de 520.000
famílias, segundo o Centro de Direito à Moradia e contra os Despejos (COHRE
na sigla em inglês, 2008: 3-5).
O apoio que partiu das camadas mais baixas na Venezuela atuou como
catalisador dos CTU, que organizaram gente a nível paroquial, regional,
metropolitano e nacional. Destas assembleias surgiram novas propostas, tais
como oficinas de educação e capacitação para os membros e representantes dos
CTU, a criação dos Centros de Participação para a Transformação do Hábitat
(CPTH) e os Pioneiros, a exemplo do surgimento de novas propostas para o
MVH com o objetivo de criar uma política habitacional mais integrada2. Os CPTH
estão envolvidos na criação de novos assentamentos, no que trabalham junto ao
governo com o fim de construir moradias e facilitar um novo desenvolvimento
das terras desocupadas ou mal aproveitadas, atuando como agentes principais de
investimento. Os Pioneiros foram implementados pelo CTU para tratar questões
relacionadas à aquisição da terra e dos projetos de desenhos de construções novos
2 Proposta de documento para o Ministério:
Assinalar o fiasco da política habitacional: não é um problema humano, mas sim político causado por::
- Enfoque quantitativo que ignora o hábitat;
- Concentração exclusiva na construção de novas unidades de habitação;
- Enfoque na produção massiva de moradia;
- Alianças com o setor da indústria da construção ao invés da sociedade civil.
Elementos gerais para uma política habitacional revolucionária e popular:
- Acesso à terra;
- Sistema nacional de assistência técnica
- Serviços de consultoria local
- CPTH
- Ações direcionadas a apoiar o automanejo da comunidade.
Acordos imediatos:
- Definir uma continuidade do projeto, avaliação e assistência técnica;
- Continuar as relações entre os CTU e o MHV para promover e financiar os projetos CPTH;
- Definir, através do MHV, um mecanismo contra os despejos;
- Designar terras e créditos para os grupos de Pioneiros
- Criar um grupo de transição e definir novas estruturas institucionais;
- Participar no desenvolvimento das leis;
- Instalar mesas técnicas paroquiais;
- Criar um mecanismo de vinculação direta e permanente com o Ministério.
Experiencias - Iniciativas populares 239
e antigos. Ultimamente, os CTU propuseram a Lei Especial de Regularização
Integral da Posse da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares. Esse será um
grande passo que servirá para tratar questões tais como os conflitos institucionais,
o incremento da burocracia, a aceleração do processo de regularização e a criação
de novos instrumentos tais como o Banco da Terra Urbana (COHRE 2008:4).
O resultado final mostra que não somente se deve ir de encontro aos processos
e a transformação do direito à moradia e políticas habitacionais, mas também se
devem buscar novas formas de produção da cidade, que considerem desde os
espaços pessoais (o lar) até a esfera pública e privada (ruas, parques, espaços
abertos e públicos). A interrogação hoje em dia é até onde chegará a influência
dos CTU com respeito à cidade e qual será o resultado do debate acerca do
socialismo e da cidade.
Observações: a luta comunitária alcança novas dimensões – reconhecimento
constitucional do direito à cidade
O movimento habitacional é um exemplo da boa prática, pois demonstra a eficácia da mobilização civil para chegar aos níveis institucionais. O movimento cívico de direitos habitacionais em Caracas tem surtido efeitos em diferentes níveis
da cidade:
• novas definições das necessidades dos pobres;
• enfoques inovadores para a regeneração urbana e o desenho, além de
novidades relativas a integração dos bairros no processo habitacional;
• reformas estatais e descentralização da moradia, posse e regularização
da terra;
• tomada de decisão e supervisão de projetos de maneira participativa e
multissetorial, que provenham do povo.
• novas associações entre o setor público e o privado;
• e, como resultado final, uma dimensão que foi vista por todo o país.
Além disso, este caso ilustra a importância que as políticas sejam provenientes
do povo, com o objetivo de que satisfaçam as necessidades e demandas da
comunidade que se mobiliza. Neste sentido, a criação de um mecanismo para
outorgar a posse da terra aos CTUs transformou-se no catalisador construído
sobre a base do capital social dos grupos comunitários, o que permitiu que estas
estratégias de sobrevivência e seus resultados dessem um impulso significativo
ao movimento. Os imensos assentamentos informais estão se transformando em
proprietários da cidade mediante sua participação direta na criação da cidade a
nível de bairro e a nível nacional. Os CTU e sua experiência estão na vanguarda
da política e dos movimentos sociais que os afetam. Estão constantemente
240 Ciudades para tod@s
consolidando precedentes, além de mobilizar-se e organizar-se de maneira
bastante desenvolvida. Se estivessem servindo como padrão, certamente seriam
um bom parâmetro. Para os CTU a luta ainda continua, porém já têm tomado as
medidas necessárias para que se reconheça seu direito à cidade.
Bibliografia
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Vice-Presidencia de la Republica Bolivariana de Venezuela, Caracas
Estamos fazendo a cidade, Bolivia
Rose Mary Irusta Pérez
Quantos acordos importantes ocorreram ao longo dos anos para melhorar a
qualidade de vida das pessoas? Quanto tem sido necessário lutar para que
cada um dos Direitos Humanos seja reconhecido? Temos lutado cada um com
seu critério, quando na realidade todos juntos somos como o corpo humano:
separando um direito do outro estaríamos mutilando-o.
Agora estamos preocupados pelo direito à cidade que, como conjunção de
todos os direitos, é quase inconcebível em sua magnitude.
Com a grande massa de veículos circulando perdemos o direito de transitar
livremente, do meio ambiente saudável e dos espaços recreativos. Perdemos o
direito e este fugiu de nós quando muitas crianças e jovens perderam seu próprio
direito de serem amados, cuidados e protegidos por seus pais, autoridades e pela
sociedade em geral. Os espaços públicos não são ocupados com tranqüilidade
porque andamos sobressaltados. Não existe direito à segurança.
As ruas se transformaram em espaços de venda e de trânsito restringido.
Os sindicatos de transporte e comércio esquecem o respeito que devem aos
espaços públicos. A pré-venda e a corrupção impedem colocar em ordem nas
cidades, sendo que a pressão social faz com que a mesma seja intransitável, com
aglomerações de veículos, pessoas, letreiros e lixo. Cada minuto nas ruas são
minutos de angústia: motoristas irresponsáveis que não cumprem as regras de
trânsito, donos de lojas que se apropriam das calçadas, pedestres irresponsáveis
jogando lixo em qualquer parte, menos nas lixeiras quase inexistentes.
Em muitas cidades os espaços recreativos são poucos porque foram planejados.
As prefeituras não se preocupam com o crescimento sustentável do bairro, uma
vez que não se preocuparam com a explosão demográfica. Tantas consultorias
feitas para que mesmo neste tempo de tecnologia avançada não se solucionem os
problemas urbanos e, sobretudo, não melhore a qualidade de vidas das pessoas;
cada dia o individualismo confronta-nos uns aos outros e a economia nos afasta
mais do humano.
244 Ciudades para tod@s
Como entender o humano a partir dos direitos humanos, ou como os
direitos humanos são entendidos pelas autoridades, que por serem autoridades
pensam que merecem obediência cega ao ponto que ignoram as leis e a própria
constituição. Sua luta pelo poder os diminui como pessoas. Tanto que não existem
em nossas cidades propostas de planejamento urbano num sentido comum para
melhorar a qualidade de vida das pessoas. Fazemos que a cada dia surjam novos
assentamentos sem a preocupação pelo meio ambiente, serviços básicos, com a
ausência de áreas de equipamentos e ruas seguras.
São muitas as famílias que sofrem na esfera econômica e legal, que caem
nas mãos de loteadores que vendem terrenos a preços escandalosos, com cifras
especuladas e não controladas; famílias que devem pagar pela falta de áreas
verdes e equipamento, isso sem contar aquelas que foram enganadas com a
venda de áreas protegidas nas margens dos rios ou áreas verdes já planejadas
anteriormente. Para aqueles que não têm interesse no direito à moradia e no
direito à cidade, é indiferente a cobrança de honorários para então lucrar com a
dura realidade daquelas famílias que caiam armadilha.
Seria muito bom que houvesse o mínimo de sinergia entre autoridades e
moradores. Unindo forças e caminhando juntos, avançaríamos e faríamos cidades
maravilhosas, teríamos menos pobres, além de menos crianças e jovens nas ruas,
menos violência e delinquência.
Devemos contar com servidores e não autoridades. Os serviços são entregues
por aqueles que sabem amar de verdade. E somente a honestidade gera o
compromisso.
É importante ter boa vontade para alcançar o que se quer fazer; se alguém
necessita viver em paz então deve procurar outros que vivam do mesmo modo;
se desejo que ninguém me faça sentir mal, farei o possível para que os outros
se sintam melhor. As soluções para viver melhor estão em nossas mãos, mas
parece que deixamos passar porque simplesmente nos acostumamos a esperar.
Os meios de comunicação nos enviam suas mensagens de tal maneira que já não
temos mais nada a fazer, senão esperar.
O que vai acontecer? Para que pensar? Ao final é igual... ser pobre é meu destino
e não posso fazer nada, dizem, e tratam de me convencer do fato.
Em alguns momentos se fala de esperança, de sonhos, ilusões. Mas, o que
significam? Também dizem que tenho direitos. A que? A morrer de fome, a não
saber ler nem escrever? Sofrer uma longa agonia por doença, a não ter trabalho
bem remunerado? A privacidade, segurança, meio ambiente saudável, serviços
básicos, a um nome e sobrenome, a participar, a ser considerada, a ter a sensação
de que existo? Parece uma brincadeira porque agora há guerra, morte, sofrimento
e já aprendemos a existir por existir.
Experiencias - Iniciativas populares 245
Diante deste cenário, sonhamos com um mundo melhor, almejamos estar
amparados por esse grande acordo das nações pelos direitos humanos, aspiramos
ter uma vida plena, desenvolvendo e aperfeiçoando a concepção desses direitos.
Buscamos integrá-los em concepções complementárias e convergentes como o
direito à moradia e ao hábitat digno, além do direito à cidade; direitos de gozar
de espaços de vida. Todos os direitos humanos poderiam ser realizados se
colocássemos as pessoas numa bolha de cristal, superprotegidas e isoladas? O
espaço e a interação dos espaços são a chave no desenvolvimento das pessoas.
Devem-se gerar as condições ambientais e de infraestrutura necessárias para que
as pessoas desenvolvam qualidades humanas e qualidades que as ajudem a se
relacionar com outros seres humanos livremente, sem coerção nem intimidação,
como acontece com os que vivem no campo frente às práticas urbanas, por vezes
alheias demais ao seu entorno. Para que receba educação e eduque seus filhos
sem preconceitos nem medos, para que acesse, em condições de igualdades, os
serviços básicos, saúde, educação e para que possa transitar livremente onde sua
liberdade de viver o chame.
Este panorama, aparentemente hipotético, não é apenas responsabilidade dos
líderes nacionais, mas também das autoridades locais que, com sua iniciativa,
enfrentam essa complexa rede de dificuldades econômicas, os conflitos sociais e
o desdém político.
Existe uma comunidade na cidade de Cochabamba que surgiu há 10 anos.
Alguém que vive lá nos contaria deste modo:
Dizem que existe um pequeno lugar que se chama “Hábitat para a Mulher
Comunidade Maria Auxiliadora”, onde vivem 265 famílias que juntas
constroem sua comunidade. Abrem suas ruas com trabalho comunitário,
constroem suas casas em ayni (ajuda mútua), fazem quermesses e o que ganham
pode ser investido na saúde ou, se necessário, na construção de sua moradia.
Não existem chicherias1 nem outros lugares que vendem bebida alcoólica. Para
mim é bom porque meu marido bebe muito e depois me bate. Além disso, lá
não pode me bater porque dizem que existe um Comitê de Apoio às Famílias.
Se me bate uma vez, falam com ele, refletimos e do mesmo modo na segunda
vez, porém se existir uma terceira o mandam embora. Acho que lá me sentiria
segura, especialmente pelos meus filhos, porque lá não existe repartição e
divisão das casas caso nos separemos. Já não precisaria mais pedir uma casa.
Pensava que devia aguentar a violência do meu marido, porque não poderia
manter meus sete filhos, mas lá nos incentivam a seguir adiante, a procurar
trabalho. Aprendemos trabalhos manuais, a ler e a escrever e, para nossos
filhos, existem creches e apoio escolar. Como é uma comunidade, dizem que
posso pedir para minha vizinha que cuide dos meus filhos enquanto estou no
1
Lugar onde se vende a chicha, uma bebida típica do lugar.
246 Ciudades para tod@s
trabalho. Também não entram em nossas casas para roubar porque todos se
conhecem, não há estranhos e todos cuidam uns aos outros. Quando alguém
grita, muitos saem em defesa.
Estão bem organizados e trabalham como formiguinhas todos os domingos.
Possuem um diretório que muda a cada dois anos, no qual as duas primeiras
cabeças são mulheres. Deve ser por isso que contam com água, esgoto, telefone,
luz, parque infantil e duas quadras de esportes onde todos jogam e fazem
campeonatos.
Como é importante conhecer os próprios direitos! Agora me dou conta, diziam
que tenho direito a uma casa, mas custa tanto. Os direitos são para aqueles que
têm dinheiro e eu não tenho.
Direito a saúde: se tens uma casa também terás direito à saúde, mas, digo
para mim mesma, é difícil. Se ficar doente, devo ir ao hospital, não ficar
em casa. Mas além de resfriados, as doenças são por outros motivos: pelas
preocupações. Como a casa é minha, já não preciso me preocupar com despejos
por não conseguir pagar o aluguel ou porque minhas crianças fazem barulho.
O pior, em muitos casos, é quando existem violações por parte dos filhos
dos proprietários, ou mesmo dos pais e dos irmãos, por viverem tão perto e
deixarem suas filhas trancadas.
Direito à educação, porque quando era pequena tive que ensinar as crianças a
ter valores, organização, disciplina, a dividir as tarefas da casa, etc.
Direito ao trabalho. Ultimamente, como era inquilina, não tinham confiança
para me dar um trabalho, porém se tens tua casa como garantia, sabem onde
vives e os vizinhos dão referências sobre ti, como é uma comunidade, todos se
conhecem e sabem como nos comportamos.
Direito a viver sem violência, já que na comunidade existe um comitê de apoio
às famílias que as deixa melhores. O trabalho de reflexão que fazem faz com
que os maridos deixem de maltratar tanto as mulheres como os filhos.
Direito à segurança. Todos nos conhecemos e se algum estranho caminha por
lá, perguntamos e, se alguém grita, em seguida toca-se o alarme e todos saímos.
Com o diretório, temos uma ata de bom comportamento que nos obriga a
resolver cada problema, pedir desculpas e nos reconciliar. Quão importante é
nos relacionarmos uns com os outros e não sermos inimigos.
Direitos a segurança alimentícia: temos nossa pequena horta que nos ajuda a
ter algumas verduras e aprendemos a equilibrar nossos alimentos.
As senhoras dizem que assistiram a seminários, oficinas e cursos, que
aprenderam a defender seus direitos. As senhoras que organizaram o Hábitat
para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora estiveram aprendendo sobre o
direito humano à moradia com a Rede Hábitat a nível nacional e pertencem ao
Centro de Iniciativa Cochabamba. Em dez anos avançaram à custa de muito
trabalho e ainda tem muito que fazer.
A solidariedade está dentro de cada um, embora adormecida, mas quando
necessário sai para atender às pessoas que sofrem.
Experiencias - Iniciativas populares 247
Poderíamos contar outras experiências de mulheres que chegaram a esta
comunidade para construir sua casa com muito esforço. A maioria delas
economizou centavo por centavo para comprar desde um tijolo até um pacote
de pregos.
Como comunidade exercemos o direito à moradia, mas com todos os seus
componentes, porque o município não compreende claramente o que é o direito
de propriedade coletiva e a forma de organização, embora esteja claramente
estabelecido na Constituição (Art. 56 parágrafo I, Art. 21), considerando inclusive
que se trata do direito humano à moradia e é obrigação do estado tornar possível
o cumprimento deste direito. O mínimo que deveria fazer é facilitar e propor
soluções ao problema sem prejudicar e sem afirmar que somos ilegais, já que
o terreno foi obtido por compra e a constituição respeita também o direito de
propriedade, seja individual ou coletivo.
O lote e a casa são para que a família viva e não para que obtenha lucro, de
modo que não se pode vender, alugar, ou qualquer outro procedimento que vise
o lucro.
Lamentavelmente, nestes dez anos houve oito divórcios ou separações, sendo
três forçados, porque se convidou os maridos violentos a deixarem a comunidade
e os outros foram embora por espontânea vontade. Em todos os casos pediram
a divisão da casa, mas foram rechaçados devido às condições impostas pela
comunidade. Somos uma comunidade onde é possível o direito humano à
moradia para pessoas de baixa renda, especialmente para mulheres chefes do
lar. O princípio do direito humano à moradia transversaliza e se inter-relaciona
à educação, porque é lá onde os filhos e filhas aprendem a cultivar os valores, a
organização, a comunicação e as relações humanas; a saúde, quando vemos que
uma habitação ventilada e espaçosa satisfaz as necessidades básicas e propicia o
descanso, evitando, por sua vez, doenças; ao trabalho, por ser a moradia o ponto
de referência para que o contratante confie e os bancos fiem. A comunidade
garante segurança porque as famílias não estão sozinhas e cada uma se preocupa
pelo que acontece com a outra.
É uma comunidade forjada como esforço e compromisso de cada um de seus
habitantes, que tem claras as suas regras. Uma comunidade que tem sabido gerar,
facilitar e maximizar os recursos econômicos e humanos, criando pequenos
créditos para a autoconstrução de habitações, para atender emergências de saúde
e para empreendimentos econômicos. Estas alianças também estão solidárias ao
Hábitat para a Humanidade e a Fundação Pró-Hábitat, que apóiam as famílias
com créditos para casa nova ou para melhorias.
Hábitat para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora é um projeto onde
o princípio é a família. Está conformada por mais de 320 grupos familiares e
com mais de 600 em processo de compra do lote para construir sua casa. Um
248 Ciudades para tod@s
espaço comunitário que vela pela acessibilidade de seus membros a espaços
de equipamento e recreação, a segurança dos cidadãos e o cuidado com o meio
ambiente, alheio a pressão dos ruídos estridentes e a contaminação, com ruas
seguras e espaços recreativos que permitem a integração social com pessoas de
outros bairros.
Trabalho comunitário, outro pilar da cidade. Cochabamba, Bolivia.
Organizando a comunidade, construindo poder e
ganhando o direito à cidade nos bairros pobres de
Toronto1
Steffen Lajoie
Em muitas cidades o acesso às estruturas e instituições a cargo das políticas,
programas e projetos que poderiam melhorar a vida dos cidadãos, está vedado.
Brown (2009) assevera que para erradicar a pobreza é necessário reconsiderar nossa
forma de entender a cidade, as políticas urbanas, os direitos e responsabilidades
de cada um. Em países democráticos como o Canadá, os cidadãos podem votar
e eleger seus representantes a cada quatro anos. Contudo, as áreas de rendas
menores registram a menor quantidade de votantes.
Satterthwaitte (2002: 10) assinala sete aspectos relacionados à pobreza urbana:
rendas insuficientes; base de ativos insuficiente, instável ou de alto risco; moradia
inadequada; disposição inadequada de infraestrutura pública; deficiência
dos serviços básicos; ausência de redes de segurança; e proteção inadequada
dos direitos através das leis. A construção do direito à cidade significa tomar
o controle dos processos democráticos e construir processos participativos
inclusivos que aumentem o poder e os recursos sociais e políticos. Isso, por sua
vez, permitirá que as pessoas lutem por suas necessidades básicas e por seus
direitos2. São muitos os obstáculos no caminho e poucas vezes são acidentais.
ACORN Canadá é uma organização sem fins lucrativos que busca modelos de
organização comunitária para atingir tais objetivos (ACORN Canadá: 2009a).
As organizações reúnem pessoas para alcançar mudanças em suas comunidades
a nível local, regional, estadual e nacional. Ao fazê-lo, as organizações também
constroem poder político e social, transformando assim a forma como as cidades
1
2
A Campanha “Concessão de Licenças aos Locatários” de ACORN Toronto 2005-2010
Em Brown e Kristansen (2009:4), podemos encontrar cinco implicações para uma cidade inclusiva:
liberdade, benefício de uma vida urbana para todos, transparência, equidade e eficiência nas
administrações da cidade, participação e respeito na tomada de decisões democrática a nível
local; reconhecimento da diversidade na vida econômica, social e cultural e redução da pobreza,
da exclusão social e da violência urbana.
250 Ciudades para tod@s
são administradas. Este é o efeito expansivo que tantas vezes se busca atingir nos
processos de participação eficazes.
Este artigo analisa a forma como os membros de ACORN, por meio da
ação social, desenvolvem uma campanha a nível de cidade, ameaçando com o
aumento de 25% na quantidade de votantes locatários para o ano de 2010 em
alguns distritos eleitorais específicos, convertendo assim os problemas dos
locatários numa questão controvertida nas próximas eleições. Graças a estas
atividades, os membros de ACORN em Toronto puderam se fortalecer e fortalecer
suas organizações associadas; desenvolver recursos sociais e políticos; conseguir
acesso aos políticos, meios e autoridades públicas; melhorar suas vidas lutando e
a partir daí obtendo o direito à cidade.
Contexto do Planejamento e desenvolvimento em Toronto: um programa para
a exclusão social e econômica
Pobreza e organização comunitária em Toronto, Canadá
Apesar de sua economia crescente e sua baixa taxa de desemprego o Canadá tem
sido cada vez mais criticado pelos cidadãos por não contar com uma estratégia
habitacional, a nível nacional, e de planejamento, a nível de cidade e de estado,
que garantam moradia segura e decente para todos. A Comunidade de Moradia
de Toronto (Toronto Community Housing) conta com mais de 200.000 unidades,
a maioria das quais se encontra em más condições, sendo que muitas estruturas
requerem investimentos de milhões de dólares em reformas. Muitos desses
edifícios não cumprem os regulamentos da cidade referentes aos padrões de
segurança. Estima-se que existam cerca de 70.000 famílias na lista de espera e
são estas mesmas que não podem participar do programa de habitações sociais,
comprar propriedades ou custear uma hipoteca (ACORN Canadá 2008). Existem
6.385 edifícios multifamiliares (MRABs na sigla em inglês) em Toronto. Cerca
de 80% destes edifícios possuem mais de 40 anos e necessitam urgentemente
de sérias reformas e 95% destes têm mais de 25 anos. Os edifícios em piores
condições se encontram nas áreas de menor renda, na periferia da cidade, que
dia após dia agregam mais trabalhadores pobres. Além disso, os rendimentos
dos lares caíram em comparação com os custos de aluguel segundo o mercado.
(Município de Toronto 2008 a & b).
Toronto tem uma população de mais de 2,6 milhões de habitantes, os
quais se distribuem em 44 distritos eleitorais (Município de Toronto 2008ª).
ACORN Canadá inaugurou seu primeiro escritório em Toronto há cinco anos
com o objetivo de organizar as comunidades de baixos recursos. Por meio
desta organização, as comunidades podem enfrentar melhor os problemas
que se apresentam (ACORN Canadá 2009ª). ACORN Canadá faz uso de uma
Experiencias - Iniciativas populares 251
estratégia de organização comunitária desenvolvida originalmente por Saúl
Alinski em Chicago e, posteriormente, por ACORN nos Estados Unidos. O
enfoque é simples: o poder está nos números. Os membros de ACORN Canadá,
que são a base da organização, são também seus proprietários e representantes,
encontrando-se no centro de sua estrutura, ou seja, a divisão de vizinhança (Miller
et al 1995). Atualmente, ACORN Canadá conta com quatro escritórios (Ottawa,
Hamilton, Toronto e Vancouver), com mais de 12.000 membros e onze divisões
locais, as quais estão presentes em cerca de 10 dos distritos eleitorais de mais
baixa renda de Toronto. Os membros atuam de maneira direta para protestar
contra os objetivos específicos, afrontando assim seus problemas. Cada vitória
significa para eles maior credibilidade e poder para sua organização. Quando se
organizam e conseguem vencer um locador injusto dão força aos membros que
vivem no outro extremo da cidade.
Da luta pelos direitos dos inquilinos à mobilização em busca de eleições
municipais
ACORN Canadá constrói suas divisões locais enviando organizadores
comunitários para zonas de baixa renda. Eles vão de porta em porta falando com
os residentes sobre questões locais, conseguindo assim novos membros a cada
dia (Miller et al 1995). As questões referentes aos locatários se transformaram
num item bastante importante nos bairros mais necessitados, o que motivou
os membros de ACORN a organizar atividades independentes na cidade,
denunciando as companhias ineficientes de administração de edifícios e os
donos de propriedades em bairros pobres. Desta maneira, os membros obtiveram
reformas nos elevadores, dedetizações, coleta de lixo, melhorias na segurança,
parques e complementos de renda. Contudo, isso não foi mais do que a ponta do
iceberg (ACORN Canadá 2009a).
Em 2006, um candidato pouco conhecido do distrito eleitoral 8 obteve um
cargo no município graças a sua defesa dos locatários e a concessão de licenças aos
mesmos. A Campanha Concessão de Licença de Locatários de ACORN Toronto
está amplamente baseada na experiência de Los Angeles e de outras cidades. A
concessão de licenças contempla uma tarifa nominal, normas e também busca
estabelecer uma conta sob a custódia de um terceiro para evitar que os locatários
que violam os regulamentos e que não cumprem com os padrões fiquem com
o dinheiro (Município de Toronto 2008b). O êxito do candidato surpreendeu
igualmente aos opositores e partidários, trazendo a campanha à luz de forma
eficaz. Na campanha discutiam-se questões locais a nível de cidade, o que
culminou, dois anos mais tarde, num informe com recomendações elaborado
pelo departamento de Segurança e Normas Municipais (Municipal Safety and
Standards) e apresentado à câmara municipal para fazer frente a estas questões.
252 Ciudades para tod@s
Apesar do forte lobbying, das atividades que se realizaram e da participação
dos membros e oradores presentes na reunião da câmara municipal, a solução
apresentada no informe resultou insuficiente3.
A cidade lançou o Programa de Auditoria de Edifícios (MRAB na sigla em
inglês), que começou inspecionando quatro edifícios em cada distrito eleitoral
(sem priorizar os distritos que apresentavam problemas de alta densidade nos
edifícios). Embora o resultado tenha sido decepcionante, este evento significou
um novo enfoque para a campanha. Os membros, por sua vez, conseguiram
estabelecer uma relação de cooperação com a entidade encarregada das Permissões
e Padrões Municipais (ML&S, na sigla em inglês) depois de uma atuação forte
e decidida durante a primeira inspeção. ACORN Toronto estava centrada em
escolher edifícios com problemas e, para a primavera de 2009, os membros já se
reuniam regularmente com a ML&S para ajudar no processo de regularização
e de melhoria do programa MRAB. Logo se começou a observar melhorias nos
edifícios selecionados, dado que os locatários problemáticos começaram a se
preparar para as inspeções. Embora a concessão de licença de locatários ainda
era considerada uma campanha importante, ACORN Toronto começou a enfocar
mais o programa de auditoria, que apresentava maior potencial.
As primeiras inspeções realizadas nos edifícios são consideradas como
projeto piloto. ACORN Toronto está trabalhando em conjunto com a entidade
encarregada de Segurança e Normas para transformar o programa em algo
que possa mudar o enfoque e a magnitude da forma como a cidade lida com
os locatários problemáticos. Assim, ao mesmo tempo, poderá exercer a pressão
suficiente com o objetivo de que se realizem custosos trabalhos de reforma
e manutenção dos edifícios. Ainda mais importante, com a finalidade de
impulsionar a campanha e levá-la a um passo adiante, a organização buscou tirar
proveito de suas vitórias mais recentes e de seu papel como sócio e colaborador.
Primeiro, com o lançamento, em julho de 2009, de sua campanha Voto de
Inquilino 2010 e, segundo, ameaçando com um incremento de 25% do número
de votantes em distritos específicos (ACORN Canadá 2009b) como uma forma
segura de captar a atenção dos municípios e de passagem, colocar novos aliados
no poder político.
3
Grande parte da informação contida neste parágrafo foi reunida a partir de minha experiência
como organizador de comunidades para ACORN Toronto, através de informantes-chave
e conversas informais. O site da ACORN Canadá é a melhor fonte para cobrir e divulgar as
campanhas e ações de ACORN-Toronto.
Experiencias - Iniciativas populares 253
Vitória
A obtenção de mudanças tangíveis em bairros de baixa renda
Não se deve ignorar o fato de que a campanha começou a atingir melhorias nas
condições de vida e conseguiu reformas urgentes em construções e edifícios.
Mesmo que os residentes já tenham notado mudanças significativas nos
edifícios nos quais ACORN esteve lutando durante anos, ainda estão por ver se
o MRAB e a campanha Voto do Inquilino 2010 terão o impacto e a magnitude
desejados. De qualquer maneira, a campanha e as atividades a ela relacionadas
produziram mudanças importantes em relação ao poder e ao planejamento,
a tomada de decisões e as condições de vida físicas dos habitantes de
Toronto.
Os membros de ACORN, que haviam sido ignorados pelos administradores
de seus próprios edifícios, estão sendo testemunhas das mudanças patentes, tais
como a erradicação de pragas (ratos, percevejos e baratas), reformas de janelas,
telhados, sistemas de calefação (uma questão importantes para os canadenses
no seu inverno), elevadores e muitas outras infrações indicadas nas ordenanças
de construção e urbanização. Antes do MRAB, ACORN Toronto empreenderia
ações diretas com os administradores para pressioná-los a assumir sua
responsabilidade. Depois de 188 inspeções realizadas na cidade, sua influência
aumentou consideravelmente, de modo que a campanha permitiu que os
membros trabalhassem diretamente com conselheiros e funcionários municipais
para obter a medição e a avaliação necessárias4.
A construção de poder e de recursos políticos e sociais
ACORN Canadá trabalha dia após dia para conseguir mais sócios, fortalecer suas
divisões locais e impulsionar as ações para atingir melhorias nos bairros de média
e baixa renda. Desta maneira, a rede social que se estabelece entre os membros
reduz o isolamento e a impotência. Graças ao trabalho em conjunto com os
conselheiros e locatários para promover seu programa em edifícios específicos,
os membros de ACORN adquiriram acesso a processos democráticos. A ML&S
se mostrava reticente a trabalhar com os membros de ACORN, porém através da
ação direta da campanha, estes foram capazes de atraí-los e desta forma, conectálos com o planejamento de estruturas da cidade.
Adquirir a capacidade de atuar contra a administração e os locatários
empodera os membros e lhes proporciona uma voz que em algum momento foi
facilmente ignorada.
4
Os membros de ACORN Toronto elaboraram um livro de reivindicações em vários idiomas –
utilizado agora pelo MRAB- para informar sobre os problemas em seus edifícios e apartamentos.
254 Ciudades para tod@s
Os membros se reúnem para desenvolver planos de ação e campanhas para
pressionar as pessoas cujas decisões têm efeito em suas vidas. Por outro lado,
as conquistas e a atenção mediática recebida lhes dão confiança e os ajuda a
captar novos sócios. Os novos aliados no poder político, a criação e melhoria
das políticas, novas e antigas, também fortalecem e conferem credibilidade aos
membros e à organização. Como resultado, menos pessoas ficam excluídas das
estruturas e dos processos da cidade.
A transformação das estruturas e dos processos da cidade
A campanha iniciou-se com pequenos grupos de membros de ACORN Toronto,
que se organizavam para tomar medidas diretas em seu entorno. Os objetivos
consideravam desde administradores e locatários individuais até Companhias
de Administração e grupos de Lobby de Desenvolvimento de Arredores. Graças
aos novos aliados políticos obtidos, o grupo pôde se organizar a nível municipal
para exercer pressão sobre o informe dos MRABs. Embora o informe não tenha
sido satisfatório, a discussão em torno da concessão de licenças de locatários
na imprensa e o próprio informe podem ser considerados como uma espécie
de vitória, revelando também o importante papel que os membros de ACORN
tiveram na realização do informe.
Durante algum tempo, a ML&S foi considerada pelos membros como um
objetivo, dado que era um organismo público que raras vezes respondia as
ligações ou se fazia presente nos eventos e atividades da comunidade, quase
sempre ignorando as queixas. De repente os membros começaram a receber
ligações da ML&S perguntando-lhes acerca de seus edifícios e do Programa de
Auditoria de Edifícios MRAB. Os inquilinos de baixa renda que antes haviam
sido excluídos, agora eram recebidos na prefeitura para participar de reuniões e
planejar o novo programa de auditoria. A situação estava mudando.
Conclusão: Reduzindo a exclusão, obtendo segurança habitacional e
construindo o direito à cidade
O traçado e o planejamento físico da cidade de Toronto revelam a forte influência
que as companhias imobiliárias exercem sobre a cidade. O resultado desta influência
significa a exclusão física, econômica e social para as famílias de média e baixa renda,
as quais são obrigadas a optar por condições de vida violentas e em deterioração.
Por meio da organização, protestos, mobilização, propostas, criação de associações
e a identificação de objetivos de pressão, os membros da ACORN Toronto foram
capazes de pressionar pela obtenção de melhorias imediatas, influência política
pública, transformando o processo de planejamento a fim de que fossem incluídos,
como locatários de baixa renda, no planejamento estratégico da cidade.
Experiencias - Iniciativas populares 255
A influência que ACORN Toronto terá nas próximas eleições municipais em
2010 é uma ameaça para qualquer candidato que não esteja disposto a apoiar
os direitos dos inquilinos, uma vez que até os locatários já estão enviando
advertências sobre sua intenção de mudar a estrutura e a ordem das prioridades
do município. Utilizando as estratégias de organização comunitária, os membros
de ACORN têm sido capazes de construir o poder social e político necessário
para ir à comunidade e começar a reivindicar, efetivamente, a cidade que lhes
pertence por direito.
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Poverty Reduction in Urban Areas Series (Working Paper 11)
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taken from Community empowerment: a reader in participation and development
/ edited by Gary Craig and Marjorie Mayo. Londres: Zed Books, 1995
Marco legal do direito à cidade
A trajetória da reforma urbana no Brasil
Nelson Saule Júnior, Karina Uzzo
A trajetória Movimento Nacional pela Reforma Urbana
A trajetória da luta pela reforma urbana inicia-se nos anos 1960, época que
os segmentos progressistas da sociedade brasileira demandavam reformas
estruturais na questão fundiária. A principal bandeira era a realização da Reforma
Agrária no campo, que já integrava o plano das “Reformas de Base” no governo
do presidente João Goulart.
A proposta de uma reforma urbana nas cidades brasileiras foi inicialmente
formulada no Congresso de 1963, promovido pelo Instituto dos Arquitetos
do Brasil. Mas com o golpe militar de 1964, constituiu-se um regime político
autoritário (que durou até 1984) que inviabilizaria a realização dessas reformas.
Os temas da reforma urbana reapareceriam nos anos 1970 e 1980, numa época
de abertura lenta e gradual, em que os movimentos sociais aos poucos ganhavam
mais visibilidade e relevância política, e eram capazes de construir um discurso
e uma prática social marcados pela autonomia. As suas reivindicações eram
apresentadas como direitos, com o objetivo de reverter as desigualdades sociais
com base em uma nova ética social, que trazia como dimensão importante a
politização da questão urbana, compreendida como elemento fundamental para
o processo de democratização da sociedade brasileira.
Nesse período, a Igreja Católica deu uma grande contribuição nesse sentido
ao lançar o documento “Ação Pastoral e o Solo Urbano”, no qual defendia a
função social da propriedade urbana. Esse texto foi um marco muito importante
na luta pela reforma urbana.
A essa altura, o panorama urbano brasileiro já era outro. Marcadas por um
êxodo rural altíssimo entre 1940 e 1991, quando a população urbana passou de
31,2% a 75% do total da população nacional, as cidades brasileiras cresceram
desprovidas de infra-estrutura mínima. As conseqüências não foram poucas,
260 Ciudades para tod@s
sobretudo a segregação espacial de bairros que, abandonados ao descaso, à
margem de qualquer condição de dignidade, foram gerados sob a conivência do
poder público.
Mas foi em 1988 que a luta pela reforma urbana voltou à tona. A Assembléia
Nacional Constituinte foi um grandioso espaço de luta política, em que as forças
populares tiveram um árduo trabalho, articularam suas demandas e ao mesmo
tempo fizeram o embate com poderosos lobbies das forças conservadoras. Em meio
a esse percurso pós-1964, que culminou na Constituinte de 1988, foi criado, em
janeiro de 1985, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Contar a sua história
é contar a trajetória de uma bandeira de luta que unificou e articulou diversos
atores sociais. No principio, a luta do Movimento tinha um caráter local, como a
reivindicação por moradia. Mas com o fim do regime militar, passou a incorporar
a idéia de cidade, a cidade de todos, a casa além da casa, a casa com asfalto, com
serviços públicos, com escola, com transporte, com direito a uma vida social.
O Movimento Nacional pela Reforma Urbana articulou o cenário de participação
popular em todo o Brasil no processo da Constituinte de 1988, formado por um
grupo heterogêneo, cujos participantes atuavam em diferentes e complementares
temáticas do campo urbano. Reuniu-se uma série de organizações da sociedade
civil, movimentos, entidades de profissionais, organizações não-governamentais,
sindicatos. Entre eles a Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional
dos Engenheiros, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(FASE), Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento dos
Favelados, Associação dos Mutuários, Instituto dos Arquitetos, Federação das
Associações dos Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ), Pastorais, movimentos
sociais de luta pela moradia, entre outros.
Essas entidades assumiram a tarefa de elaborar uma proposta de lei a
ser incorporada na Constituição Federal, com o objetivo de modificar o perfil
excludente das cidades brasileiras, marcadas pela precariedade das políticas
públicas de saneamento, habitação, transporte e ocupação do solo urbano, assim
configuradas pela omissão e descaso dos poderes públicos.
Com base nessa troca entre entidades tão diversas e nas contribuições advindas
das experiências práticas, formula-se uma proposta mais avançada, fruto não só
das lutas locais, mas também da participação na elaboração de políticas públicas,
ainda que em um nível jurídico-legal.
Em 1986, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana define o conceito da
reforma urbana como uma nova ética social, que condena a cidade como fonte de
lucros para poucos em troca da pobreza de muitos. Assume-se, portanto, a crítica
e a denúncia do quadro de desigualdade social, considerando a dualidade vivida
em uma mesma cidade: a cidade dos ricos e a cidade dos pobres; a cidade legal
e a cidade ilegal. Condena a exclusão da maior parte dos habitantes da cidade
Experiencias - Marco legal 261
determinada pela lógica da segregação espacial; pela cidade mercadoria; pela
mercantilização do solo urbano e da valorização imobiliária; pela apropriação
privada dos investimentos públicos em moradia, em transportes públicos, em
equipamentos urbanos e em serviços públicos em geral.
Dessa forma, essa nova ética social politiza a discussão sobre a cidade e
formula um discurso e uma plataforma política dos movimentos sociais urbanos,
em que o acesso à cidade deve ser um direito a todos os seus moradores e não
uma restrição a apenas alguns, ou aos mais ricos.
A bandeira da reforma urbana se consolida não somente na perspectiva da
articulação e unificação dos movimentos sociais por meio de uma plataforma
urbana que ultrapassa as questões locais e abrange as questões nacionais, mas
também na crítica da desigualdade espacial, da cidade dual. Com isso, inaugura
no país um projeto que reivindicava uma nova cidade e propunha a quebra dos
privilégios de acesso aos espaços das cidades. Configura-se uma politização que
vai além da questão urbana porque se estende para o âmbito da justiça social
e da igualdade. Tem como centro nodal a questão da participação democrática
na gestão das cidades, tão discriminada pela lógica excludente dos planos
tecnocráticos dos anos 1960 e 1970, apoiados apenas em saberes técnicos, dos
quais a população era considerada incapaz de saber, agir e decidir.
A principal bandeira da reforma urbana se consolida: o direito à cidade, que se
caracteriza pela gestão democrática e participativa das cidades; pelo cumprimento
da função social da cidade; pela garantia da justiça social e de condições dignas
a todos os habitantes das cidades; pela subordinação da propriedade à função
social; e pelas sanções aos proprietários nos casos de não cumprimento da função
social.
A Emenda Popular da Reforma Urbana na Constituinte Brasileira
O processo de participação foi incentivado quando se estabeleceu no regimento
interno da Constituinte a utilização do mecanismo da iniciativa popular para a
elaboração de emendas populares para o então projeto da Constituição Federal
de 1988. A prova da eficácia da participação popular durante a Constituinte é o
número de assinaturas encaminhas para emendas populares, mais de 12 milhões.
As forças conservadoras argumentavam que os princípios da justiça social
eram pretextos para impedir o desenvolvimento do país (desenvolvimento
foi um termo durante muito tempo empregado para dissimular a questão de
desigualdade do espaço urbano); que um caráter intervencionista na política
urbana seria excessivamente estatizante; o usucapião era classificado como
instrumento de desordem social e de incentivo às ocupações ilegais de terrenos,
dentre outras concepções retrógradas.
262 Ciudades para tod@s
A proposta de emenda popular escrita pelo Movimento Nacional pela Reforma
Urbana contou com a participação de seis entidades nacionais: Articulação
Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Federação Nacional dos Arquitetos (FNA),
Federação Nacional dos Engenheiros, Coordenação Nacional das Associações de
Mutuários do BNH, Movimento em Defesa do Favelado, Instituto dos Arquitetos
do Brasil, e ainda o apoio de 48 entidades estaduais e locais.
A função social da propriedade figurava como a maior ameaça aos grupos
conservadores, como uma ameaça ao direito de propriedade.
Em um mundo em que as cidades são espaços coletivos urbanizados – ou em
vias de se urbanizar –, as forças progressistas passavam a reivindicar mecanismos
de controle público do exercício do direito à propriedade. Com a emenda
popular, o direito público brasileiro passou não somente a garantir a propriedade
privada e o interesse individual, mas a assegurar o interesse coletivo quanto aos
usos individuais da propriedade. Assim, a propriedade deixou de ser somente
vinculada ao direito civil, matéria de caráter privado, e passou a ser disciplinada
pelo direito publico. Separou-se o direito de propriedade do direito de construir,
que tem outra natureza, que é a de concessão do poder público; estabeleceram-se
penalizações com atribuição normativa, calcadas em uma série de instrumentos
jurídicos e urbanísticos, impondo ao proprietário do solo urbano ocioso – que se
vê sustentado pela especulação imobiliária, ou mantém seu imóvel não utilizado,
subutilizado ou não edificado – graves sanções, inclusive a desapropriação.
Outros avanços conquistados nessa época foram a afirmação e o efetivo
estabelecimento da autonomia municipal e a ampliação da participação da
população na gestão das cidades, tanto com os mecanismos institucionais diretos
como plebiscito, referendo, iniciativa popular e consulta pública, quanto com outras
formas de participação direta como os conselhos, as conferências, os Fóruns, as
audiências públicas. Garantia-se, assim, a participação da população na elaboração
do Plano Diretor – principal instrumento de planejamento urbano dos municípios.
Outros atores se mobilizaram para garantir seus interesses na Subcomissão de
Questão Urbana e de Transporte, dentre eles os setores organizados do mercado
imobiliário. Apesar da proposta do Movimento Nacional pela Reforma Urbana
não ter sido aceita em sua integralidade, ela teve êxito por meio da Emenda
Popular de Reforma Urbana, subscrita por cerca de 200 mil assinaturas.
Apesar da conquista se resumir em dois artigos, era a primeira vez na história
constitucional do país que se obtinha um capítulo intitulado “Da Política Urbana”,
sob o Título “Da Ordem Econômica e Financeira”. Em linhas gerais, para o
Movimento Nacional pela Reforma Urbana a Constituição de 1988 representou,
apesar de não atender a todos os anseios, um avanço significativo ao estabelecer,
pela primeira vez, uma política pública que tratasse a questão urbana voltada a
atender os objetivos da reforma urbana.
Experiencias - Marco legal 263
O Fórum Nacional de Reforma Urbana
Após a Constituinte, forma-se o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU),
com o objetivo imediato de pressionar o Congresso Nacional para regulamentar
o Capítulo da política urbana, da Constituição Federal de 1988. Durante árduos
doze anos, foi esta uma de suas tarefas principais, até a promulgação da então lei
federal denominada Estatuto da Cidade.
Foi a partir da Constituição de 1988, então, que os municípios se constituíram
em unidades da Federação Brasileira com maior capacidade política e financeira
para atuar no campo das políticas públicas. No início dos anos 1990, com o processo
de elaboração das Constituições Municipais – que tratam da organização política
e administrativa dos municípios e das políticas públicas locais (Leis Orgânicas
dos Municípios) –, as articulações locais de entidades e movimentos ligados ao
FNRU tiveram uma atuação importante nas principais cidades brasileiras. Foram
decisivos para a incorporação da plataforma da reforma urbana e da cultura do
Direito à Cidade no campo das políticas urbanas e habitacionais locais.
O FNRU produziu ativamente a interlocução da sociedade civil em muitos
eventos internacionais, entre eles a Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), em 1992, onde se elaborou
consensualmente o “Tratado por Cidades Justas, Democráticas e Sustentáveis”.
Em 1995, o FNRU participou do Comitê Preparatório para a Conferência
Internacional Habitat II e organizou, em conjunto com outras entidades,
a Conferência Brasileira da Sociedade Civil para o Habitat II – pelo Direito à
Moradia e à Cidade. Acompanhou, em julho de 1996, a Conferência Habitat II,
realizada em Istambul, e participou da delegação oficial que representou o Brasil
neste evento, em que se estabeleceu o direito à moradia adequada como direito
humano – inscrito na Agenda Habitat.
Essas Conferências estabeleceram diversos compromissos com as
autoridades em relação aos direitos humanos e o desenvolvimento sustentável
dos assentamentos humanos. Foi a partir da Conferência dos Assentamentos
Humanos (Habitat II), realizada em Istambul, que os compromissos assumidos
pelo governo brasileiro com o direito à moradia possibilitaram, por pressão
dos movimentos populares urbanos, o reconhecimento do direito à moradia na
Constituição Brasileira como um direito fundamental, no ano 2000; e a aprovação
do Estatuto da Cidade, no ano de 2001.
Na década de 1990, começam a surgir novos Fóruns: o Fórum Nacional
de Participação Popular, a Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental,
entre outros. Com modos concatenados de composição e de interação com o
FNRU, as novas redes ampliaram a maneira de tratar a questão da reforma
urbana, fortalecendo a sociedade civil no seu discurso e nas suas ações. Os
264 Ciudades para tod@s
temas passaram a ser discutidos com maior profundidade e contribuíram para
aprimorar os conceitos do FNRU.
Compreendido também que a moradia isoladamente não satisfaz o direito
à cidade, foi necessário tratá-lo numa ótica de integração de direitos e deveres
que incluíssem o direito ao trabalho, ao saneamento, ao transporte, ao acesso a
equipamentos públicos, entre outros. É desta integralidade que nasce e se cumpre
o direito à cidade.
Os Objetivos e Organização do FNRU
Até hoje o FNRU trabalha ativamente com a sociedade civil para a que a reforma
urbana se concretize no Brasil. Atualmente, as preocupações dos FNRU têm
se concentrado em formas de reivindicação para que o conjunto de direitos
conquistados seja aplicado.
Os princípios fundamentais que orientam sua ação são:
• o direito à cidade e à cidadania, entendida como a participação dos
habitantes das cidades na condução de seus destinos. Inclui o direito à terra,
aos meios de subsistência, à moradia, ao saneamento ambiental, à saúde,
à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e
à informação. Inclui o respeito às minorias, à pluralidade étnica, sexual
e cultural e ao usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado,
sem distinções de gênero, etnia, raça, linguagem e crenças.
• a gestão democrática da cidade, entendida como a forma de planejar,
produzir, operar e governar as cidades, submetida ao controle social e à
participação da sociedade civil.
• função social da cidade e da propriedade, como prevalência do interesse
comum sobre o direito individual de propriedade. É o uso socialmente
justo do espaço urbano para que os cidadãos se apropriem do território,
democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura dentro
de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientalmente
sustentáveis.
O FNRU organiza periodicamente um Encontro Nacional, bem como,
grupos de trabalhos temáticos, num contínuo processo de avaliação e análise da
conjuntura e das políticas concretas. O FNRU tem uma comissão de coordenação
que se reúne periodicamente para discutir as demandas mais emergentes, para
eleger prioridades e organizar as próximas ações.
A cada dois anos o FNRU organiza encontros nacionais, momento em que
debate a conjuntura das políticas públicas do país e elege os temas e as ações
prioritárias para os anos subseqüentes.
Alguns desafios iniciais do movimento pela reforma urbana foram superados,
Experiencias - Marco legal 265
como a compreensão da linguagem institucional da Administração Pública; o
aprendizado de ler as leis e entendê-las, decodificá-las, elaborá-las; a capacidade
de argumentar nas discussões técnicas e jurídicas. Levar para os espaços públicos
e institucionais a luta política pela reforma urbana foi uma das conquistas
importantes do FNRU.
Dessa forma, nasce no seio das lutas sociais dos movimentos populares urbanos
uma demanda por reconhecimento de direitos, de origem popular, como o direito
à cidade e o direito à moradia. Estes direitos passam a ser institucionalizados no
campo das leis urbanas, a partir da demanda das organizações e movimentos
populares, que passam a conquistar políticas, projetos e instâncias democráticas
de participação no âmbito da organização política e jurídico-institucional do
estado brasileiro.
A Conquista do Estatuto da Cidade
O Estatuto da Cidade (Lei Federal n° 10.257/01) é a lei brasileira de
desenvolvimento que regulamenta o capítulo da política urbana da Constituição
Brasileira de 1988. Ele define as diretrizes gerais que devem ser observadas
pela União (governo federal), pelos estados (governos estaduais) e municípios
(governos municipais) para a promoção da política urbana, voltada a garantir o
pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e da cidade, o
direito a cidades sustentáveis e o desenvolvimento de gestões democráticas nas
cidades.
Com base no princípio da função social da propriedade e gestão democrática
da cidade, a lei contém normas de ordem pública e interesse social regulando o
uso da propriedade urbana de modo a garantir o bem coletivo, a segurança e o
bem-estar dos cidadãos. O Estatuto da Cidade trata, em especial:
• dos instrumentos voltados a garantir o cumprimento da função social da
propriedade o imposto progressivo no tempo sobre a propriedade urbana
e a desapropriação para fins de reforma urbana;
• dos critérios para a elaboração e execução do Plano Diretor pelos
municípios;
• dos instrumentos de regularização fundiária das áreas urbanas ocupadas
por população de baixa renda;
• Dos instrumentos de gestão democrática da cidade: audiências públicas,
conselhos e conferências das cidades nas esferas nacional, estadual
e municipal. Mais uma das tantas ações praticadas pelo FNRU, sem
desmerecer a importância das demais, a aprovação do Estatuto da Cidade
foi um passo fundamental para a reforma urbana no Brasil.
Como dissemos, foram doze anos de lutas sociais para a aprovação do Estatuto
266 Ciudades para tod@s
da Cidade no Congresso Brasileiro, em particular na Câmara dos Deputados.
Devido as resistências de grupos econômicos que atuam no mercado imobiliário
e na construção civil e dos tradicionais tecnocratas do planejamento e da gestão
urbana. Foram muitas as resistências e os obstáculos para a existência de uma lei
nacional voltada para fortalecer politicamente os municípios e a sociedade civil
no ordenamento da disciplina do território urbano, para exigir o uso social da
propriedade, e para planejar a cidade com controle social e participação popular.
Com a aprovação do Estatuto da Cidade, o estágio da luta pela reforma
urbana passou a ter dois grandes desafios. O primeiro foi capacitar os atores
sociais sobre o significado e as perspectivas abertas pelo Estatuto da Cidade para
a promoção de políticas urbanas com base na plataforma da reforma urbana nas
cidades brasileiras. Neste caso, atores sociais devem ser compreendidos de forma
ampla: lideranças populares, profissionais, acadêmicos, parlamentares, gestores
públicos.
Em 2001 e 2002 foram produzidos diversos materiais didáticos com uma
linguagem popular sobre o Estatuto da Cidade, além de duas oficinas nacionais
de multiplicadores, organizadas pelo FNRU, que contaram com a participação de
duzentas lideranças dos movimentos populares urbanos.
O segundo desafio foi disseminar e popularizar o Estatuto da Cidade, para que
de fato fosse implementado nas cidades brasileiras. Um dos meios para enfrentar
este desafio tem sido a participação das entidades e organizações populares do
FNRU na campanha nacional do Plano Diretor Participativo, desenvolvida pelo
Conselho Nacional das Cidades.
A criação do Ministério das Cidades, e conseqüentemente do Conselho das
Cidades, possibilitou o início de uma política urbana em que, pela primeira vez
na longa trajetória pela reforma urbana no Brasil, os diversos atores, legítimos
representantes da sociedade civil, passaram a integrar um espaço institucional
com o objetivo de elaborar e executar políticas urbanas.
O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social nasceu do primeiro projeto
de lei de iniciativa popular do país, elaborado pelo FNRU e apresentado ao
Congresso Nacional em 1991. Surgido nos anos atribulados da era Collor, foi uma
oportunidade de as entidades da sociedade civil, desacreditadas naquele governo,
somarem-se à ação do FNRU na elaboração de um projeto de lei que criasse um
fundo público para o atendimento das demandas por moradia popular.
O esforço de mobilização foi brutal: eram milhares de assinaturas que deveriam
acompanhar o projeto a ser levado a Brasília. Mesmo sabendo das dificuldades,
o FNRU priorizou o processo do referido projeto de lei de iniciativa popular,
Experiencias - Marco legal 267
pela sua grandiosa importância de demandar recursos públicos necessários
para a implementação de uma política habitacional que subsidiasse a parcela da
população excluída da produção formal da habitação.
O projeto de lei de iniciativa popular do Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social foi apresentado no parlamento no dia 19 de novembro de 1991
por organizações e movimentos populares urbanos filiados ao FNRU, dentre elas:
a Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM); a Central de
Movimentos Populares (CMP); a União Nacional por Moradia Popular (UNMP);
e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM).
O projeto de lei de iniciativa popular foi subscrito com mais de um milhão de
assinaturas, sendo aprovado por unanimidade em todas as comissões da Câmara
dos Deputados entre 1997 e 2001. E como podemos ler nos depoimentos colhidos
neste trabalho, a entrega dessas milhares de assinaturas ao parlamento em
Brasília foi realizada com muita dificuldade, por meio dos meios disponíveis; os
papéis com as assinaturas foram levados ao Congresso em “carrinhos de mão”,
carregados pelos integrantes dos movimentos e entidades que fazem parte do
FNRU.
Na abertura da primeira Conferência Nacional das Cidades, em outubro de
2003, o presidente Luís Inácio Lula da Silva ressaltou a necessidade da aprovação
do PLC, indo ao encontro dos anseios dos movimentos populares. Neste sentido,
reforçou a necessidade de aprovar um instrumento decisivo para aplicação de
uma Política Habitacional para a população de baixa renda, inexistente até esse
momento.
Finalmente, após treze anos, o projeto de lei aprovado, O país passa a partir
dessa lei a ter um Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, peça
chave para a implementação de uma política nacional eficaz, com o objetivo
de proporcionar um sistema de habitação para a população de baixa renda e
combater, com a exclusão territorial, questões capitais para a Reforma Urbana.
As entidades e organizações do FNRU têm representantes no Conselho
Gestor do Fundo que são conselheiros dos segmentos das ONGs, movimentos
populares e das associações profissionais, com o objetivo de promover o controle
social da gestão deste fundo público.
Um questão relevante é da previsão de recursos do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social serem destinados para a realização de projetos
de habitação de interesse social desenvolvidos por associações e cooperativas
formada por movimentos populares de moradia.
Também é relevante a aprovação no ano de 2009 da Lei do Programa Minha
Casa Minha Vida que estabelece um tratamento especial sobre a regularização
fundiária de interesse social contendo procedimento e novos instrumentos com
268 Ciudades para tod@s
a demarcação urbanística e legitimação de posse para simplificar e viabilizar a
regularização fundiárias das favelas e demais assentamentos de baixa renda.
A Participação do FNRU no Campo Institucional
Desde o início do governo de Luis Inácio Lula da Silva algumas reivindicações
históricas do Movimento e do FNRU foram atendidas. A primeira foi a criação
do Ministério das Cidades, com o objetivo de integrar e articular as políticas
de desenvolvimento urbano, habitação, saneamento ambiental e mobilidade e
transporte urbano.
A segunda foi o início de um processo de democratização da gestão das
políticas nacionais urbanas com a criação do Conselho das Cidades. Neste
sentido, no ano de 2003 foi realizada a I Conferência Nacional das Cidades, que
mobilizou mais de 350 mil pessoas nas Conferências das Cidades nos municípios
e estados. Nesta Conferência foram eleitos os conselheiros do Conselho das
Cidades, que tem uma porcentagem para cada segmento da sociedade civil e
conta com conselheiros representantes dos movimentos populares urbanos, das
organizações não-governamentais e das associações profissionais que atuam no
Fórum Nacional de Reforma Urbana.
No ano de 2005 foi realizada a II Conferência Nacional das Cidades, com o
objetivo de definir ações estratégicas para as políticas nacionais e regionais de
desenvolvimento urbano. Foi renovado o Conselho Nacional das Cidades, no
qual 57% dos conselheiros titulares eleitos pelos segmentos da sociedade civil são
representantes de entidades ligadas ao FNRU.
Na III Conferência Nacional das Cidades discutiram-se as formulações
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, elegeu-se a composição do
Conselho Nacional das Cidades e contou com a participação de 1.820 delegados
e 410 observadores de todos os estados da Federação.
O Conselho Nacional das Cidades é composto por 83 membros titulares e 83
suplentes. Deste total, 49 membros são eleitos por segmentos da sociedade civil e
os outros 34 por gestores e administradores públicos. Dentre os desafios para os
próximos anos está a consolidação das instâncias democráticas – as Conferências
das Cidades e os Conselhos das Cidades – para que suas deliberações sejam
respeitadas e se traduzam em políticas e ações concretas nas cidades por parte do
governo brasileiro.
A manutenção e o fortalecimento da política nacional de regularização
fundiária como forma de reconhecimento do direito à moradia e à cidade dos
grupos sociais nas cidades é um componente estratégico para a realização da
reforma urbana. O FNRU terá como uma das bandeiras fundamentais para os
próximos anos a defesa de que o uso das terras públicas seja priorizado para
Experiencias - Marco legal 269
atender as necessidades das populações pobres e tradicionais, como as populações
das favelas, populações indígenas, pescadoras e negras quilombolas, a criação do
Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano e a constituição de uma política
nacional de prevenção aos conflitos fundiários.
Nas cidades, a missão das pessoas que atuam nas entidades e movimentos
populares ligados ao FNRU é a de continuar com suas práticas de cidadania, a
fim de que as cidades sejam lugares nos quais as pessoas vivam com dignidade,
justiça e solidariedade e em convivência pacífica, tendo como marco referencial
o direito à cidade.
Bibliografia
Da Silva, Ricardo Siloto e Da Silva, Éder Roberto. Origens e matrizes discursivas da
Reforma Urbana no Brasil. Espaço e Debates, São Paulo, nº 46, 2006.
Da Silva, Éder Roberto. O Movimento Nacional pela Reforma Urbana e o processo de
democratização do planejamento urbano no Brasil. Dissertação de Mestrado,
Universidade de São Carlos, Fevereiro de 2003.
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1998.
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Rolnik, Raquel & Saule Júnior, Nelson (Coord.) Estatuto da Cidade – guia para
implementação pelos municípios e cidadãos, Pólis Instituto de Estudos Formação
e Assessoria em Políticas Sociais e Caixa Econômica Federal, apoio Comissão de
Desenvolvimento Urbanos da Câmara dos Deputados, Secretaria Especial de
Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, Câmara dos Deputados
Brasília, 2001.
Saule Júnior, Nelson. Nova Perspectiva do Direito Urbanístico. Ordenamento
Constitucional da política urbana. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.
Saule Júnior, Nelson. Vias Jurídicas da Política Urbana no Brasil: Sergio Antonio Fabris
Editor, Porto Alegre, 2007.
Saule Júnior, Nelson. The Right to the City. Strategic Response to Social Exclusion and
Spatial Segregation – The Chalenges of the Democratic Management in Brazil –
Instituto Pólis, Ford Foundation, São Paulo, 2009, pág 39 a 62.
Silva Almeida, Carla. “Os fóruns temáticos da sociedade civil: um estudo sobre o Fórum
Nacional de Reforma Urbana”, in DAGNINO, Evangelina (Org.). Sociedade civil e
espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 167.
Silva, Ana Amélia da. “Reforma urbana e o direito à cidade”. Revista Pólis, nº. 01, 1991.
Uzzo Karina,Saule Júnior, Nelson, Santana Lilia, Nowersztern Marcelo, Retratos sobre a
atuação da sociedade civil pelo direito à cidade : Diálogo entre Brasil e França,
AITEC, Instituto Pólis, Coordination SUD, São Paulo, 2006.
270 Ciudades para tod@s
Sites sobre a Reforma Urbana Fórum Nacional de Reforma Urbana: http://www.
forumreformaurbana.org.br
Observatório Internacional do Direito à Cidade DC: http://www.oidc.org.br
Instituto Pólis: http://www.polis.org.br
Anexo
Fórum Nacional de Reforma Urbana (Coordenação);
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE);
Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM);
Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM);
União Nacional por Moradia Popular (UNMP);
Central de Movimentos Populares (CMP);
Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica (FENAE);
Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenharia (FISENGE);
PÓLIS – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais;
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA);
Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM);
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE);
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP);
COHRE Américas;
Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos;
Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB);
Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (FENEA);
Centro de Assessoria à Autogestão Popular (CAAP);
Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (ABEA);
Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião;
Observatório das Metrópoles (coordenado pelo IPPUR/UFRJ e pela FASE);
Action Aid do Brasil; Conselho Federal do Serviço Social.
Carta da Cidade do México: o direito a
construir a cidade que sonhamos
Lorena Zárate
Com mais de 20 milhões de habitantes, a Zona Metropolitana do Vale de México
(integrada por 16 Delegações do Distrito Federal, 40 municípios do estado
de México e um município do estado de Hidalgo) é uma das regiões mais
povoadas do planeta e núcleo econômico, político, religioso, histórico e cultural
fundamental para o país. As ruas e praças do que foi há mais de cinco séculos a
grande Tenochtitlán, tem sido testemunha das mais importantes manifestações
do povo mexicano. Celebrações, eventos, protestos e mobilizações populares
dão conta de um enorme caráter coletivo que vem apresentando as demandas e
propostas para uma maior participação democrática e o reconhecimento, respeito
e plena realização dos direitos humanos de seus habitantes.
É inquestionável que cada vez mais as políticas públicas urbanas retomam
explicitamente as contribuições dos cidadãos e das lutas sociais, aos que se deve
grande parte, segundo coincidem analistas e líderes de bairro, do fortalecimento
dos processos de participação e o próprio governo democrático. Atualmente,
estão presentes na Cidade do México impulsos de reforma política e mudança
de status legal que permitem continuar avançando neste caminho, tanto para
defender os direitos dos habitantes como para fortalecer o governo local, as
delegações – como entidades autônomas co-responsáveis – e aumentar as
capacidades de coordenação metropolitana.
Certamente inspirada no debate internacional e nos documentos locais já
desenvolvidos e em implementação, Carta da Cidade do México pelo Direito à
Cidade tem, contudo, características que a tornam única a nível mundial, tanto
no processo de sua elaboração e promoção como nos seus conteúdos e propostas1.
1
Para maiores detalhes consultar a informação, documentos e outros materiais disponíveis em
http://derechoalaciudaddf.blogspot.com/ e www.hic-al.org
272 Ciudades para tod@s
Surgida a partir de diversas organizações sociais e civis, a iniciativa foi
formalmente considerada pelo Governo do Distrito Federal (GDF) desde
princípios de 2007. Apenas um ano mais tarde conformou-se o Grupo Promotor
da Carta, integrado no início por representantes de organizações do Movimento
Urbano Popular da Convenção Nacional Democrática (MUP-CND), a direção
Geral da Concertação Política e Atenção Social e Cidadã do GDF, a Habitat
International Coalition-América Latina (HIC-AL) e a Comissão dos Direitos
Humanos do Distrito Federal (CDHDF), os quais acordaram a incorporação
do Estado de Coordenação de Organizações Civis sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (Espaço DESC) e da Procuradoria Social do Distrito Federal
(PROSOC).
Desde então foram organizadas uma série de eventos públicos de promoção,
articulação e intercâmbio (também em outras cidades do país), incluindo um
espaço de exposição sobre Direito à Cidade e ao Hábitat no marco do Fórum
Social Mundial- México, realizado em janeiro de 2008 no Zócalo da capital. Por
sua vez, no evento de abertura oficial do processo em julho desse mesmo ano,
frente a um público de aproximadamente 200 pessoas e na presença de vários
meios de comunicação locais e nacionais, o Chefe de Governo enfatizou que
este esforço “terá muitas consequências positivas para o futuro da Cidade” e
comprometeu-se a escutar as propostas e convidar a Assembleia Legislativa
a construir “um instrumento jurídico que estabelecerá obrigações, políticas
públicas e novas formas de gestão”.
Mais adiante, em dezembro do mesmo ano, realizou-se um Fórum que
convocou membros de organizações civis e sociais, acadêmicas, profissionais,
funcionários e outros atores para reunir suas contribuições dentro dos seis
fundamentos estratégicos que articulam os conteúdos da Carta. Uns poucos
dias depois realizaram-se entrevistas e recolheram-se opiniões e imagens do
público ouvinte da Feira de Direitos Humanos que organiza CDHDF a cada ano,
incluindo uma grande quantidade de crianças e jovens.
Nos últimos 18 meses a Comissão Promotora realizou mais de 35 reuniões de
coordenação, discussão, sistematização e redação dos conteúdos da Carta, assim
como a continuação e avaliação do processo. Neste quadro foram produzidos
materiais substanciais de debate e difusão (até o momento já se conta com
folheto, blog, tríptico e vídeo pensados especificamente para alimentar e animar
esse processo). Seus membros têm participado também de conferências, cursos,
oficinas, programas de rádio e entrevistas em diversos âmbitos para socializar o
tema, provar a reflexão e reunir críticas e contribuições para a Carta.
Acordada sua estrutura geral, sistematizadas e incorporadas estas
contribuições, claramente surgiram questões até então ausentes ou as quais
faltava desenvolvimento. Consultou-se então o Diagnóstico e os que então eram
Experiencias - Marco legal 273
avanços do Programa de Direitos Humanos2 e ao mesmo tempo foram incorporadas
à Carta algumas propostas formuladas dentro do Conselho de Desenvolvimento
Urbano Sustentável da Cidade do México, entidade popular que assessora a
formulação do programa sexenal sobre a questão.
Ao redor de 3.000 pessoas tem participado até o momento de pelo menos
uma destas atividades que formam parte do esforço de divulgar amplamente
a iniciativa e, sobretudo, convocar os cidadãos a debatê-la e fortalecê-la com a
adesão ativa de organizações de bairro, grupos juvenis, sindicais, profissionais e
público em geral.
Fruto deste amplo processo existe agora um Projeto de Carta da Cidade do México
pelo Direito à Cidade que, desde princípios do mês de setembro, está à disposição
do Chefe de Governo e de todos os interessados. Durante estes meses e até janeiro
próximo estão sendo recebidas contribuições para enriquecer o desenvolvimento da
estratégia para sua implementação a curto, médio e longo prazo.
Segundo se expõe em seu Preâmbulo, a formulação desta Carta tem como
objetivos específicos contribuir para a construção de uma cidade inclusiva,
habitável, justa, democrática, sustentável e agradável; impulsionar processos
de organização social, fortalecimento do tecido social e construção da cidadania
ativa e responsável; a construção de uma economia urbana equitativa, inclusiva
e solidária que garanta a inserção produtiva e o fortalecimento econômico das
camadas populares. Em outras palavras, acredita-se que o direito à cidade pode ser
contribuir como fator de fortalecimento social, econômico, democrático e político
da população, assim como de ordenamento e manejo territorial sustentáveis.
De forma mais ampla, seus promotores estão de acordo que este instrumento
busca enfrentar as causas e manifestações profundas da exclusão: econômicas,
sociais, territoriais e culturais, políticas e psicológicas. Explicitamente se coloca
como resposta social, contraponto à cidade-mercadoria e expressão do interesse
coletivo. Trata-se, sem dúvida, de uma abordagem complexa que exige articular a
temática dos direitos humanos na sua concepção integral (direitos civis, políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais) a da democracia em suas diversas
dimensões (representativa, distribuitiva e participativa).
Inspirada na Carta Mundial pelo Direito à Cidade define este direito como
o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade,
democracia, equidade e justiça social. É, certamente, interdependente de todos
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente
(civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais) e, portanto, tem
como diretrizes: livre determinação ou autodeterminação; não discriminação,
2
Tanto o Diagnóstico como o Programa de Direitos Humanos do Distrito Federal estão disponíveis
em www.cdhdf.org.mx
274 Ciudades para tod@s
igualdade, equidade de gênero, equidade social, atenção prioritária a pessoas
e grupos em situação de vulnerabilidade, solidariedade e cooperação entre os
povos, participação, transparência e prestação de contas, co-responsabilidade e
justiça na distribuição de renda.
Contudo, diferente de outros instrumentos vigentes, tomou como referência
fundamental, ademais, os resultados e propostas da Primeira Assembleia
Mundial de Moradores3 realizada na Cidade do México em outubro de 2000,
na qual mais de 300 delegados de organizações sociais de 35 países debateram
sobre os ideais de uma cidade democrática, inclusiva, sustentável, produtiva,
educadora e habitável (segura – no que se refere à proteção contra desastres e
violência -, saudável, convivencial e culturalmente diversa).
Assim, seu conteúdo se estrutura com base na união desta cidade que
queremos com os seguintes fundamentos estratégicos:
• Exercício pleno dos direitos humanos na cidade. Uma cidade na qual todas as
pessoas (crianças, jovens, adultos, idosos, mulheres e homens) desfrutem
e realizem todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
mediante a construção de condições de bem-estar coletivo com dignidade,
equidade e justiça social.
• Função social da cidade, do solo e da propriedade. Uma cidade onde seus
habitantes participem para que a distribuição do território e as regras
para seu uso garantam o usufruto equitativo dos bens, serviços e
oportunidades que a cidade oferece. Uma cidade na qual se priorize o
interesse público definido coletivamente, garantindo um uso socialmente
justo e ambientalmente equilibrado do território.
• Gestão democrática da cidade. Uma cidade onde seus habitantes participem
de todos os espaços de decisão até o mais alto nível de formulação e
implementação das políticas púbicas, assim como no planejamento,
orçamento público e controle dos processos urbanos.
• Produção democrática da cidade e na cidade. Uma cidade onde se resgate
e fortaleça a capacidade produtiva de seus habitantes, em especial das
camadas populares, fomentando e apoiando a produção social do hábitat
e o desenvolvimento de atividades econômicas solidárias.
• Manejo sustentável e responsável dos recursos naturais, patrimoniais e
energéticos da cidade e de seu entorno. Uma cidade onde seus habitantes e
autoridades garantam uma relação responsável com o meio ambiente de
modo que possibilite uma vida digna para indivíduos, comunidades ou
povos, em igualdade de condições e sem afetar áreas naturais, reservas
ecológicas, outras cidades nem as futuras gerações.
3
Em espanhol: Primera Asemblea Mundial de Pobladores
Experiencias - Marco legal 275
•
Gozo democrático e equitativo da cidade. Uma cidade que fortaleça a
convivência social, o resgate, a ampliação e melhoramento do espaço
público e sua utilização para o encontro, o ócio, a criatividade e a
manifestação crítica das ideias e posições políticas.
Como é possível notar, e também de forma diferente da que até o momento
havia prevalecido, a Carta concebe o direito à cidade num sentido amplo; não se
limita a reivindicar os direitos humanos individuais com o fim de melhorar as
condições de vida de seus habitantes, mas sim integra direitos e responsabilidades
que os implicam na gestão, produção e desenvolvimento responsável da Cidade.
Dentro desta perspectiva, não se trata somente da construção de condições para
que todos acessem aos bens, serviços e oportunidades existentes na cidade, sem
discriminação, mas sim de uma abordagem mais radical de perfilar a cidade que
desejamos e queremos construir para as futuras gerações.
Para poder avançar na concreção de cada um destes sonhos/fundamentos, a
Carta propõe uma série de medidas de política pública e compromissos a assumir
por parte dos diversos atores da sociedade. Entre as primeiras podemos destacar
algumas bastante relevantes que incluem:
• Inibir a especulação imobiliária e adotar normas urbanas para uma
distribuição justa dos encargos e benefícios gerados pelo processo de
urbanização, mediante a captação de rendas extraordinárias (maisvalias) geradas pelo investimento público a favor dos programas sociais
que garantam o direito ao solo e à moradia, além de estimular a produção
social do hábitat.
• Desenvolver mecanismos administrativos, financeiros e subsidiários
que permitam gerar um solo acessível e suficiente para que os conjuntos
autogestionados gerem espaços produtivos (comércio, incubadoras, etc.)
e de convivência social (culturais, esportivos, sócio-organizativos).
• Reconhecer o papel que a economia “informal” cumpre no combate a
exclusão social, outorgando-lhe status legal e fiscal que considere os
interesses legítimos daqueles que a praticam, evitando sua exploração
por terceiros.
• Capacitar e apoiar com recursos públicos e estímulos fiscais as sociedades
cooperativas e outros empreendimentos sociais que promovam a
economia popular e solidária.
• Localizar atividades produtivas e serviços que gerem trabalho para
a comunidade e zonas habitacionais para diminuir locomoções, riscos
e custos à população, além de impactos negativos a economia e a
convivência urbana.
• Preservar as áreas rurais produtivas, as zonas de conservação e as florestas,
fortalecendo a capacidade produtiva e econômica das comunidades e
276 Ciudades para tod@s
•
•
•
•
•
•
freando a especulação orientada a mudar os usos do solo.
Estabelecer normas que obriguem a medir o impacto ambiental,
econômico e social dos macro-projetos (prévios a sua realização) onde
se considerem as contribuições da sociedade civil e do meio acadêmico.
Evitar os processos de desocupação e que, em caso de necessidade,
respeitem-se os direitos humanos dos afetados de acordo com os padrões
e instrumentos internacionais: programas participativos de realocação
de habitantes de zonas e edifícios de alto risco para áreas próximas,
em condições que substituam ou compensem as perdas patrimoniais,
respeitando suas redes sociais.
Instrumentar ações de apoio a projetos alternativos de educação e das
escolas que se formem nos assentamentos e bairros na perspectiva de
uma educação popular.
Aproveitar a experiência dos adultos de mais idade (trabalhadores,
artesãos, mestres) na capacitação de novas gerações e na formação de
aprendizes.
Resgatar e fomentar o conhecimento e experiência dos povos tradicionais
que habitam a cidade no manejo e preservação dos recursos naturais e
culturais, assim como das experiências comunitárias e alternativas em
questões de saúde.
Gerar instrumentos e programas que apóiem o resgate do espaço público
nos seus aspectos funcionais (encontro e conectividades), sociais (de
coesão comunitária), culturais (simbólicos, patrimoniais, lúdicos e de
convivência) e políticos (de expressão política, reuniões, associação e
manifestação).
Sobre as medidas posteriores, estão detalhadas na Carta os compromissos
que devem ser assumidos pelo Governo local, as Delegações, a Assembléia
Legislativa, o Tribunal Superior de Justiça do Distrito Federal, os organismos
públicos autônomos, as entidades educativas, os organismos da sociedade civil,
as organizações sociais, o setor privado e as pessoas em geral. Entre outras ações,
detalham-se algumas tais como:
• Reconhecer legalmente o direito à cidade;
• Potencializar ao máximo os recursos disponíveis para superar
progressivamente as condições que impedem o acesso equitativo aos
bens e serviços que a população requer e que a cidade oferece;
• Proporcionar capacitação aos funcionários públicos em matéria de direito
à cidade e os direitos humanos que inclui;
• Estabelecer indicadores para monitorar e avaliar a implementação do
direito à cidade;
Experiencias - Marco legal 277
•
•
•
•
•
•
Promover esquemas de apoio e co-investimento para fomentar as
atividades das organizações da sociedade civil em matéria de direito à
cidade;
Dar continuidade à implementação do Programa de Direitos Humanos
do D.F. na perspectiva do direito à cidade;
Propiciar a inclusão das questões vinculadas ao direito à cidade nos
programas e atividades formativas, de pesquisa, vinculação e difusão
das universidades e de outros centros de estudo;
Difundir amplamente os conteúdos desta Carta e as boas práticas
derivadas de sua aplicação;
Documentar casos de violação ou descumprimento da progressividade;
Promover consciência e consensos sobre as responsabilidades que os
cidadãos devem assumir para construir uma cidade para todos.
Como direito complexo, num território altamente povoado, com fortes
pressões sobre as condições meio-ambientais e num nó de múltipla relevância
para o país, o direito à cidade deve propor necessariamente uma visão que
supere os enfoques especializados das disciplinas, das práticas profissionais e da
estrutura da administração pública, assim como a atitude individual e consumista
predominante em grande parte dos habitantes.
Por sua vez, esta proposta coloca no centro da cena a urgência de retomar
o planejamento territorial como função pública, coletiva e participativa. Os
direitos humanos e a democracia não são fenômenos abstratos; são atribuições e
processos de certas pessoas em certos lugares. Tal como o concebemos, o direito
à cidade pode e deve ser também uma ferramenta para territorializar os direitos
humanos e aprofundar a democracia.
Também é importante, e devemos afirmá-lo com veemência e com todas as
letras, não haverá direito a viver dignamente nas cidades sem o direito a viver
dignamente no campo. Há décadas recebemos sinais de alerta sobre a urgência
de olhar nosso entorno, nosso hábitat de maneira mais integral, de revisar e
modificar de forma radical nossos padrões de produção, distribuição e consumo,
não somente das coisas, mas também e talvez, sobretudo, das ideias, valores,
palavras e símbolos.
O direito à cidade, em síntese, propõe-se como uma ferramenta que contribui
para a reflexão, o debate, a formação, a mobilização, a articulação e a prática a
partir de outro ponto de vista e de uma luta renovada pela redistribuição do
espaço, da riqueza e da tomada de decisões sobre o presente e futuro de nossas
comunidades.
Fotos arquivo HIC-AL
Políticas e perspectivas legais sobre a realização do
direito à cidade na Nigéria
Mobola Fajemirokun
Seguindo as tendências globais, o número e o tamanho das cidades na Nigéria
vêm crescendo. Como conseqüência, estima-se que a população urbana representa
43% do total de 140 milhões de habitantes do país. Esse dado pode aumentar
para 50% em 2010 e claramente representa um aumento significativo em relação
a 1952, quando a população urbana era menos de 20%. A escala e rapidez dessas
mudanças metropolitanas, tanto em termos espaciais como demográficos, vem
alimentando uma forte pressão por solo urbano, habitação e serviços tais como
água e saneamento. Não obstante, na Nigéria o governo local continua sem
enfrentar e assumir os desafios metropolitanos. O fato se deve pela Constituição
de 1999 somente reconhecer três níveis de governo: federal, estadual e as Câmaras
de Governo de Área Local ou LGA (Local Government Area Councils), sendo esse
último o mais baixo dos níveis de governo. Esse enfoque de governança política
em três níveis resulta em várias conseqüências para as cidades nigerianas. Em
primeiro lugar, os limites são usualmente incongruentes com aqueles das LGAs;
e, em segundo lugar, essas cidades às vezes englobam mais do que uma LGA.
O direito à cidade abraça a adoção de valores e a implementação de práticas
que objetivam trazer a inclusão social através da participação democrática da
vida da cidade; responsabilidade do governo municipal; igual tratamento
para pessoas sem-teto; e redução da pobreza. Isso representa uma mudança de
paradigma no planejamento e administração das cidades. Contudo, o direito à
cidade não consiste num regime de direitos específicos, embora esteja inspirado
no sistema de direitos humanos que preserva os direitos civis e políticos assim
como os direitos econômicos, sociais e culturais. À luz de inúmeras promessas de
desenvolvimento desde o início do governo democrático, em maio de 1999, esse
documento avalia a política e as questões legais conectadas com a realidade do
direito à cidade na Nigéria.
280 Ciudades para tod@s
Introdução da nova política urbana
Em 2002, depois de extensivas audiências por todo o país, o governo federal
apresentou a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano ou NUDP (National
Urban Development) com o objetivo de desenvolver “um sistema dinâmico de
assentamentos urbanos, o qual estimulará um crescimento econômico sustentável,
promoverá o desenvolvimento urbano e regional eficiente, assegurando melhorias
no padrão de vida e bem-estar de todos os nigerianos”. O NUDP essencialmente
prescreve estratégias e ações para serem implementadas em todos os níveis de
governo a curto, médio e longo prazo. Fundamentalmente, a política recomenda a
transmissão dos poderes adequados para os LGAs assim como melhores receitas
e acordos financeiros. Além disso, a NUDP reconhece que a atual estrutura dos
LGAs não conduz a “prática da democracia e boa governança urbana”, existindo
a necessidade de “reconectar a administração urbana local aos cidadãos os
quais deve servir”. Consequentemente, a NUDP chama para uma categorização
dos núcleos urbanos na Nigéria em distrito, cidade, centro metropolitano e
megalópole, além de estipular os poderes, estruturas e recursos apropriados de
acordo com a classificação anterior. Desse modo cada núcleo poderá enfrentar os
desafios que lhe competem.
Apoio aos mecanismos de responsabilidade social
A reivindicação pela transparência nas instituições e finanças públicas foi
intensificada desde o retorno do governo democrático. Isso ficou manifestado
nas reformas legais, em conexão com processos de aquisição e orçamento
do governo, especialmente a nível federal, que passaram em 2007 pela Lei de
Responsabilidade Fiscal e Lei de Aquisições Públicas. Por conta da divisão das
competências legislativas sob a Constituição de 1999, essas leis federais não se
aplicam automaticamente em cada estado federado, de modo que é tarefa de
cada governo estadual legislar sobre a matéria. Alguns deles seguiram os passos
necessários. Essencialmente, a lei de responsabilidade fiscal garante a participação
pública em processos orçamentários, acesso aos documentos desse processo e a
lei de aquisições públicas padronizou as compras públicas através da publicação
obrigatória de contratos e propostas com o objetivo de tornar transparente a
participação de todas as partes interessadas. Igualmente importante foi a defesa,
por parte da sociedade civil, da liberação de informação legislativa em todos os
níveis de governo. Isso ainda não foi realizado a nível federal e somente poucos
estados a introduziram ou se comprometeram em introduzir esse tipo de acesso
legislativo.
Experiencias - Marco legal 281
Perspectivas futuras
A introdução do NUDP é um passo importante, embora não se refira
especificamente ao direito à cidade nem ao enfoque dos direitos humanos. O
NUDP também não é abrange outras questões importantes. Isso é evidente na
sua falha de abordagem das questões ambientais, tais como uso de energia,
redução de desperdício e acesso aos serviços urbanos. Além disso, o NUDP
carece de objetivos mensuráveis para avaliar o progresso de sua implementação.
Como resultado, seu valor é mais descritivo que normativo. Não obstante, suas
recomendações para a governança urbana refletem alguns dos componentes
do direito à cidade. Por exemplo, a categorização dos assentamentos urbanos
nigerianos há tempos continua pendente e, com relação aos propósitos do
desenvolvimento urbano, a reorganização dos LGAs precisa ser coerente com
a configuração dos tecidos urbanos. Isso é responsabilidade dos Governos
Estaduais, mas em face dos altos interesses políticos envolvidos e dos obstáculos
constitucionais a superar, pouquíssimos estados estão dispostos a aceitar o
desafio. A exceção foi o Estado de Lagos, o qual apresentou 37 LGAs para
suplementar as 20 LGAs existentes, reconhecidas pela Constituição de 1999.
Depois de um enfrentamento com o Governo Federal sobre a constitucionalidade
das 37 LGAs, estas foram subseqüentemente reclassificadas como Centros de
Desenvolvimento da Câmara Local. Concluindo, a realização do direito à cidade
na Nigéria passa pela distinção de competências entre Governos Estaduais e
Governo Federal. Até certo ponto, alguns dos componentes do direito à cidade
já estão emergindo graças à devolução das atribuições de planejamento urbano à
cidade e o crescimento do apoio à responsabilidade social. Contudo, muito ainda
precisa ser feito. A responsabilidade para conduzir a mudança corresponde
principalmente aos Governos Estaduais, mais que ao Governo Federal, em
função dos poderes legislativos conferidos aos estados por ocasião Constituição
de 1999. Para a sociedade civil, o foco deve ser o fortalecimento de sua capacidade
de pressão em favor do direito à cidade. A consciência pública e a compreensão
deste novo paradigma estão, todavia, bastante limitadas, tanto dentro como fora
dos círculos de tomada de decisão e implementação de políticas.
Referências
Brown, A, and Kristiansen, A. Urban Policies and the Right to the City: Rights,
Responsibilities and Citizenships, a policy paper for UN-Habitat’s Management of
Social Transformation, March 2009.
Federal Republic of Nigeria. Government White Paper on the Report of the Presidential
Committee on Urban Development and Housing, 2002.
O caminho do direito à cidade na Bolívia
Uvaldo Mamani
Os governos na Bolívia, a partir de 1985, implementaram reformas econômicas
neoliberais1 que aprofundaram os graus de pobreza e migração do campo para
a cidade. O INE, Instituto Nacional de Estatística da Bolívia registra, já em
2005, 65,98% de população na área urbana e 34,02% na área rural. As cidades
denominadas do Eixo Central da Bolívia – La Paz, Santa Cruz e Cochabamba
– concentram mais de 50% da população do país. O crescimento demográfico
destas cidades piorou os graus de vulnerabilidade social, econômica, política e
espacial dos habitantes.
Nesse panorama destacam-se experiências e processos desenvolvidos por
instituições não governamentais, organizações e ativistas dos direitos humanos,
articuladas na Rede Nacional de Assentamentos Humanos RENASEH2, as quais
conseguiram incluir na nova Constituição Política do estado o direito à moradia,
estabelecendo bases viáveis para uma reforma urbana no país.
A desatenção à terra urbanizável
Na Bolívia aconteceram duas Reformas Agrárias3, que não implementaram
medidas para a atenção à terra urbanizável. Os poucos avanços na legislação
urbana aconteceram de maneira complementar à administração da terra agrícola.
No ano de 1995, a Lei de Participação Popular estabeleceu uma nova visão
de distribuição e administração territorial descentralizada, de modo que são
criadas Organizações Territoriais de Base no quadro dos distritos municipais,
1
2
3
Mediante o Decreto Supremo 21.060, o governo de Víctor Paz Estensoro em 1985, demite a
milhares de trabalhadores de minas da COMIBOL.
Em espanhol Red Nacional de Asentamientos Humanos, fundada no ano de 1995.
A primeira em 1953, após a revolução campesino-sindical de 1952 e a segunda no ano de 1996,
com a Promulgação da Lei INRA, do Instituto Nacional de Reforma Agrária.
284 Ciudades para tod@s
outorgando novas atribuições ao município, como o planejamento de seu
território. Com esta lei, aprofunda-se com grande acerto a descentralização e
autonomia dos municípios, os quais mais adiante vão preencher o vazio legal
urbano implementando normas municipais de administração do solo, embora
de maneira dispersa e não integrada, a um sistema nacional urbano inexistente.
Do direito à moradia ao direito à cidade: nasce o Comitê Impulsionador do
Direito à Cidade
As lutas pelo direito à moradia, acesso seguro ao solo e a uma melhor qualidade
de vida em Cochabamba foram assumidas em diferentes facetas e perspectivas.
Até o ano de 2005, a Comunidade Maria Auxiliadora mantinha uma luta frontal
pelo reconhecimento da propriedade coletiva da terra e da moradia, ao par com
as cooperativas de habitação por ajuda mútua, articulados com a Fundação
Pró-hábital e Procasha. Por outro lado, profissionais independentes, grupos de
voluntários pela moradia impulsionados pelo Hábitat para a Humanidade, junto
a milhares de famílias necessitadas de habitação, faziam parte de uma nova
consciência crítica sobre a realidade sócio-habitacional no contexto urbano.
Cochabamba, a capital da Guerra da Água, continuava em sua encruzilhada,
herdada após a expulsão da Transnacional Águas do Tunari, de manter a gestão
pública da água por meio da empresa privada ou com a gestão comunitária,
recuperando os modelos dos sistemas comunitários de água da zona sul da cidade.
A problemática do tratamento sustentável do lixo, a crescente insegurança
da cidadania e os permanentes conflitos sociais entre linhas de transporte
público sindical e livre4, expõem grandes fragilidades na gestão da cidade de
Cochabamba.
No ano de 2005, declarado pelas Nações Unidas Ano Internacional das
Cidades, a Fundação Pró-hábitat reúne a grande parte destes atores junto aos
afiliados a RENASEH em torno da feira do Dia Mundial do Hábitat. A riqueza
do intercâmbio e articulação do evento entre organizações e instituições, motivou
a convocação da primeira reunião de instituições e pessoas interessadas na
abordagem do direito à cidade. Assim nasce o Comitê Impulsionador do Estatuto
da Cidade, denominado agora Comitê Impulsionador do Direito à Cidade. 5
4
5
As linhas de transporte sindical são reconhecidas pelo município; o transporte livre é validado
pelos bairros que não são atendidos pelo transporte sindicalizado.
Composto pela Comunidade Maria Auxiliadora, a Assembleia Permanente de Direitos
Humanos, Sistema de Água de Alto Pagador e Bairros Unidos, SEMAPA, a Fundação PróHabitat, Coordenação da Rede RENASEH, Instituto de Pesquisas Jurídico Políticas IIJP, Hábitat
para a Humanidade, Sociedade de Estudos de Moradia SEVIVE-CAC, PROCASHA, Centro de
Planejamento e Gestão Ceplag e o Centro de Pesquisas de Sociologia CISO.
Experiencias - Marco legal 285
Processo desenvolvido pelo Comitê Impulsionador do Direito à Cidade em
Cochabamba
Primeiros passos do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade
O “Comitê Impulsionador do Direito à Cidade” iniciou seu processo com o
nome de Comitê Impulsionador do Estatuto da Cidade, pois assumiu “A Lei
do Estatuto da Cidade” do Brasil como documento modelo. Conclui-se sobre a
necessidade de desenvolver uma análise da problemática urbana para construir
e propor ferramentas técnicas e políticas que viabilizassem a verdadeira função
social da propriedade a favor da gestão democrática da cidade de Cochabamba.
As cidades da Bolívia, sobretudo as do Eixo Central, possuem problemáticas
urbanas similares, de modo que o Comitê determinou o início da elaboração de
uma proposta de direito à cidade para Cochabamba, como experiência piloto que
permitisse viabilizar uma reforma urbana na Bolívia.
A complexidade do problema e a proposta do Decálogo
Os problemas como a falta de acesso ao solo servido, à moradia adequada e à
gestão institucional clientelista, excludente da cidade e a normativa urbana
dispersa deram lugar ao desenvolvimento de longos debates, transformando a
questão em algo bastante complexo. As causas e conseqüências destes problemas
são resumidos a seguir.
• A imigração do campo e outras zonas oprimidas para a cidade, a qual
não está planejada, geraram um crescimento ilimitado da mesma.
• Quando, no planejamento da cidade, não se leva em consideração
a situação econômica, política, social e cultural de seus habitantes a
conseqüência são os investimentos públicos bastante custosos ao estado
e às famílias.
• Quando a forma de organizar uma cidade exclui as pessoas com
menor capacidade econômica e influência política então se dá lugar ao
clientelismo político.
• Quando se planeja a cidade a partir de uma visão tecnicista e economicista
e não integralmente, permite-se a ocupação das áreas de preservação
ambiental e agrícola, bem como a implantação de assentamentos
humanos em áreas geograficamente perigosas.
Para facilitar a abordagem da complexidade do problema urbano, organizamse diferentes comissões, entre as quais se elaborou uma proposta de políticas e
princípios para a cidade que deram lugar a um decálogo de princípios.
286 Ciudades para tod@s
Decálogo de princípios para a cidade de Cochabamba
1. Cochabamba é uma cidade democrática, aberta, hospitaleira, social e
espacialmente integrada.
2. Os direitos da coletividade são mais importantes que os direitos
individuais.
3. O centro urbano híbrido e sem identidade deve ser renovado para
fortalecer a identidade e o sentido de pertencimento.
4. Todos os distritos têm o direito de ser social e espacialmente integrados.
5. A Cancha6 e seus arredores como coração econômico da cidade merecem
o reconhecimento social e político da cidadania.
6. Os cidadãos são mais importantes que os automóveis.
7. Os espaços verdes são mais importantes que as vias.
8. Racionalizar o ciclo da água.
9. Moradias dignas para 49,37% dos habitantes que carecem de casa própria.
10. Uso do solo protegido, urbano e urbanizável.
Os eixos temáticos do direito à cidade para Cochabamba
Todas as cidades requerem uma visão e concepção própria sobre o direito
à cidade; desta maneira, trabalhou-se com base em conteúdos e princípios da
Carta Mundial pelo Direito à Cidade, o que deu lugar a um esquema básico de
eixos temáticos para o desenvolvimento de grupos de análise e a elaboração de
propostas.
Após longos debates, os eixos temáticos definidos a partir da grande
quantidade de problemas da cidade foram os seguintes:
•
Serviços básicos: água, esgoto, energia elétrica e coleta do lixo
Em Cochabamba, o acesso a serviços básicos ilustra as condições deploráveis
de segregação social nas quais vivem mais de 100 mil pessoas da Zona Sul da
cidade.
Somente 53% da população estão servidos com água encanada. Tão grave
é a carência no serviço de esgoto que apenas 49,4% da população possuem tal
serviço.
6
Mercado popular localizado no centro da cidade Cochabamba; representa 47% da economia da
cidade.
Experiencias - Marco legal 287
•
Serviços sociais: educação, saúde, segurança da cidadania, estradas,
equipamentos e infraestrutura, recreação e lazer.
A maioria destes serviços está concentrada nas zonas mais privilegiadas,
reforçando as diferenças sócio-econômicas e de acesso a oportunidades entre as
zonas norte e sul da cidade.
O padrão atual de espaços livres ou áreas verdes é inferior a 5 metros quadrados
por habitante. Contudo, existe pouca consciência popular na manutenção e
cuidado da infraestrutura pública, como parques, praças e jardins.
•
Economia, produção e abastecimento: mercados e indústrias
Em Cochabamba, culturalmente, os mercados são os cenários mais importantes
da cidade; tal o caso de “La Cancha” e os diferentes mercados denominados
campesinos, os quais são os pontos estratégicos de relação entre o campo e a
cidade. O funcionamento destes espaços incide diretamente nos sistemas viários,
sistemas de comunicação, produção e abastecimento de Cochabamba que, por
sua vez, carece de uma rede de mercados organizados que regulem e melhorem
seu funcionamento.
•
Solo e moradia
O crescimento urbano e seu ordenamento são de competência municipal
desde o ano de 1995 com a Lei de Participação Popular. Contudo, não existem
mecanismos municipais para a incorporação de novas terras ao uso urbano. As
normas urbanísticas limitam-se a proibir a urbanização das terras potenciais
denominadas áreas agrícolas e de proteção ambiental, sem reconhecer que muitas
destas zonas já estão urbanizadas desde os anos sessenta. O morador migrante
que deseja acessar um lote não pode fazê-lo por meio de um programa social
público, nem através de um mercado formal de terras que acate as normas de
urbanização, mas sim unicamente por meio do mercado informal.
•
Políticas institucionais: gestão social, marco político, informação
As instituições administradoras das cidades são agora interpeladas pela
necessidade de promover estratégias, políticas e instrumentos normativos que
façam frente ao problema da exclusão social e segregação espacial. Implementouse um modelo de gestão descentralizado que não pôde incluir a grande maioria da
população urbana nos processos de planejamento e gestão municipal. À margem,
o acesso à informação pública é deficiente, limitando o desenvolvimento das
capacidades civis fundamentais.
288 Ciudades para tod@s
Proposta de lei urbanística de acesso ao solo
Até o momento, desenvolveu-se uma campanha de promoção, difusão, análise e
debate do sentido e da necessidade de trabalhar o direito à cidade como um novo
paradigma de construção de cidades mais justas e sustentáveis.
Em função da necessidade de compreender o sentido e os alcances conceituais
e jurídicos do direito à cidade publicou-se material educativo a partir dos
conteúdos da Carta Mundial do Direito à Cidade, com o qual se desenvolveu
uma série de oficinas com organizações de base e instituições interessadas.
A expressão “direito à cidade” tem gerado discussões, uma vez que se relaciona
indiretamente ao ressurgimento das identidades indígenas autoidentificadas
com o rural e seu conflito com a discriminação histórica sofrida nos contextos
urbanos, razão pela qual se foram utilizando denominações alternativas como
“direito a um município digno”, “direito a um hábitat digno” ou “direito à cidade
urbano rural”.
Uma equipe de profissionais de dentro do Comitê Impulsionador do Direito
à Cidade realizou uma proposta de lei de acesso ao solo a partir das seguintes
diretrizes jurídicas:
a) Reconfiguração da concepção do direito à propriedade urbana
• Delimitação do direito à propriedade urbana
• Função social da propriedade urbana
• Deveres e direitos de proprietários em situação de solo urbanizado.
b) Acesso ao solo
Identificação de terrenos baldios mediante participação e controle dos
moradores locais.
• Reconceituação do termo “indenização justa” em casos de desapropriação
• Aquisição de solo para o Banco de Terras
• Regime de propriedade dos imóveis do Banco de Terras
c) Regularização dos assentamentos
•
•
•
•
•
Regularização de assentamentos humanos com participação e controle
social
Usucapião coletivo especial
Direito real de superfície
Realocação dos assentamentos em áreas de risco
Experiencias - Marco legal 289
d) Disciplina urbanística
•
Responsabilidade penal por loteamento e/ou desmembramento ilegal
Um novo marco jurídico apto para uma reforma urbana sustentável
Com a chegada de Evo Morales Ayma à Presidência da Bolívia, iniciou-se uma
mudança profunda, que ainda continua, de refundação do país a partir da
participação de todas as camadas, por meio da Assembleia Constituinte. Este
momento é o resultado de uma luta constante do povo boliviano mobilizado
desde a histórica “Marcha pelo Território e pela Dignidade” protagonizada pelos
povos indígenas do oriente no ano de 1990, demanda reforçada com a Guerra da
Água no ano 2000 e as mobilizações de fevereiro e outubro de 20037. A Assembleia
Constituinte foi uma prova bastante forte para medir as capacidades instaladas e
os impactos alcançados de todos os atores sociais do país.
Ante a abertura do processo constituinte, a Fundação Pró-hábitat, junto a
algumas afiliadas de RENASEH e grupos sociais aliados, iniciaram uma campanha
massiva de lobbying, mobilização e incidência política para constitucionalizar
o direito à moradia, apresentando uma proposta consensual. Esta foi a causa,
a promoção e a defesa do processo da Assembleia Constituinte, rejeitado
pelas camadas empresariais e abastadas do país. Realizaram-se mobilizações e
concentrações em seis cidades capitais da Bolívia8, participando dos encontros
territoriais organizados pela Assembleia Constituinte com o fim de reunir todas
as propostas em cada departamento (estado) da Bolívia. Entregaram-se abaixoassinados de apoio ao direito à moradia à Assembleia Constituinte, chegandose a apresentar e explicar para a mesma, através de várias comissões técnicas,
pormenores da proposta. Como resultado de todo o desenvolvido, a Assembleia
Constituinte convocou a Rede RENASEH a redigir o artigo final do direito à
moradia adequada para nova institucionalidade da Bolívia.
A nova Constituição Política do estado boliviano reconhece o direito humano
à moradia adequada junto a seus componentes no artigo 19, além de incluir a
moradia como competência nacional, departamental, municipal e do povo
originário (arts. 304, 299, 302, 298).
7
8
Na Guerra da Água, o povo mobilizado de Cochabamba expulsou as maiores transnacionais do
planeta, revertendo o contrato que privatizava o serviço de água por mais de 20 anos.
Em “Febrero Negro” de 2003, o povo mobilizado de La Paz reverteu o decreto denominado
“impuestazo” que descontava impostos dos salários de toda a classe operária do país: os
enfrentamentos geraram um saldo de mais de 30 mortos.
Em “Octubre Negro” de 2003, o povo boliviano mobilizado expulsou Gonzalo Sánchez de
Lozada, “Goni”, com um saldo de mais de 70 mortos.
La Paz, Oruro, Cochabamba, Chuquisaca, Tarija y Santa Cruz.
290 Ciudades para tod@s
Até pouco tempo atrás o estado não reconhecia a propriedade coletiva da
terra e, portanto, não a protegia. Era impossível desenvolver projetos de moradia
comunitária ou cooperativa, de modo que somente eram possíveis projetos de
propriedade individual. Agora, no entanto, reconhece-se e protege-se a segurança
jurídica da posse da terra (art. 393) em sua modalidade individual, coletiva e
comunitária.
Os serviços básicos não eram considerados entre os direitos humanos e, na
realidade, ficavam mais suscetíveis a concessões a empresas privadas nacionais
ou transnacionais. Agora se reconhece o direito à água potável, ao esgoto, a
energia elétrica, ao gás residencial, as telecomunicações e ao transporte (art.
20), além de considerar-se o direito a um meio ambiente saudável, protegido e
equilibrado (art. 33).
A terra e a moradia são bens submetidos às leis do mercado especulativo.
Atualmente, no entanto, o estado obriga-se a regular o mercado da terra (art. 396)
e a destinar maiores recursos econômicos específicos para moradia (art. 321).
Neste novo cenário, estabelece-se como tarefa constitucional a participação da
sociedade civil no desenho de políticas públicas de forma organizada (art. 241),
isto é, a gestão democrática das cidades.
Com estas importantes inclusões, as bases para uma verdadeira reforma
urbana na Bolívia estão estabelecidas. Agora estamos enfrentando a construção
das autonomias em cada região do país, onde se incorporaram os princípios e a
visão do direito à cidade. Neste sentido a Carta Mundial do Direito à cidade, as
visões e princípios do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade e a proposta de
lei de acesso ao solo serão propostas importantes para todas as autonomias. Entre
elas deve-se reconhecer que existem setores minoritários em desacordo com o
processo de mudança e que buscarão obstaculizar este grande processo que é
agora irrefreável.
O gigante adormecido despertou.
O contrato social pela moradia1 - CSV, Equador
Silvana Ruiz Pozo e Vanessa Pinto
Equador, país de conflitos, é também o país da “minga”2, como Coletivo
Contrato Social pela Habitação estamos convencidos da possibilidade de
diálogo, de acordo e o trabalho conjunto para enfrentar o problema da moradia
em nossos países.
O problema da moradia no Equador
No Equador um de cada três domicílios vive em condições precárias sendo que, a
cada ano, formam-se no país em torno de 64.000 domicílios novos, dos quais mais
de 25.000 se encontram abaixo da linha de pobreza, ou seja, com renda familiar
abaixo do custo da cesta básica (Ruiz, 2008).
Em 1998, depois de várias décadas de “retirada” do estado da produção e
financiamento da habitação social, no marco do convênio do estado equatoriano
com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), implementou-se o
Sistema de Incentivos para la Vivienda3 (SIV), que foi executado pelo Ministerio
de Desarrollo Urbano y Vivienda4 (MIDUVI) e que contempla um subsídio não
reembolsável para a habitação urbana nova, melhoramento da habitação urbana
e melhoramento da habitação rural, com valores de 1 mil e oitocentos, setecentos
e cinquenta e quinhentos dólares , respectivamente.
1
2
3
4
No original em espanhol: Contrato Social por la Vivienda (CSV)
Trabalho comunitário, característico dos povos andinos, que se realiza com a finalidade do
interesse coletivo.
Sistema de Incentivos à Habitação
Ministério de Desenvolvimento Urbano e Habitação
292 Ciudades para tod@s
O CSV nasce precisamente em julho de 2005 como um mecanismo de
reação perante a eliminação da partida para financiar os Bônus para Habitação
na proposta orçamentária de 2006, o significaria a aniquilação do sistema de
subsídios para habitação.
Atualmente e em cumprimento a uma promessa de campanha, o governo do
economista Rafael Correa vem fortalecendo o SIV através da implementação de
um subsídio escalonado que vai 2 mil e quatrocentos dólares a 5 mil dólares
para uma nova habitação urbana, um de 5 mil dólares para habitação urbana
marginal e habitação rural, um de 1 mil e quinhentos dólares para melhoramento,
além de um subsídio de titulação de duzentos dólares destinado a regularização
de escrituras de imóveis de famílias de baixa renda.
Segundo dados oficiais de MIDUVI, entre 2007 e 2008, foram entregues
pouco mais de 147.000 subsídios: 25.748 subsídios para habitação nova em áreas
urbanas, 15.854 subsídios para melhoramento de habitações, 9.772 subsídios para
habitação urbana marginal, 2.634 subsídios de melhoramento de habitação urbana
marginal, 85.448 para habitação rural e 7.736 de melhoramento de habitação
rural, sendo que não existem dados oficiais sobre a emissão de subsídios de
regularização fundiária.
Apesar dos recursos destinados a facilitar o acesso à habitação às famílias
equatorianas, o acesso a habitação através da fórmula básica Poupança, Subsídio
e Crédito, ainda existem deficiências ao acesso desses benefícios; e, o que é mais
importante, o SIV não pode ser entendido, por si mesmo, como uma política
habitacional, e sim como um elemento dela, já que não é possível enfocar a
problemática habitacional e do habitat, exclusivamente a partir da construção da
moradia e prescindir de temas e regras complementares que devem ser assumidas
por outros atores tais como:
• governos locais e outras instâncias públicas na provisão de solo
urbano habilitado, na definição e atualização de marcos regulatórios e
mecanismos de gestão de riscos, além de incentivos que promovam o
uso racional do solo desocupado, na proteção de zonas de importância
ambiental, na captação social da mais-valia, na oferta de habitação social
e na organização comunitária;
• governos selecionados e órgãos públicos competentes envolvidos no
desenvolvimento rural, que permitam a elaboração e implementação de
respostas integrais de desenvolvimento camponês e habitat rural e um
desenvolvimento urbano sustentável.
• setor financeiro na ampliação e adequação da oferta de crédito para
habitação, especialmente para setores médios e pobres da sociedade;
• setor da construção através da incursão em produtos habitacionais de
Experiencias - Marco legal 293
•
•
•
boa qualidade construtiva e estética, dirigidos a famílias de escassos
recursos econômicos sob o princípio de responsabilidade social;
setores acadêmicos e centros de pesquisa, que contribuam ao
desenvolvimento de tecnologias alternativas baseadas no uso sustentável
dos recursos locais e que orientem à formação profissional para o serviço
social
organizações sociais e outros atores sociais como ONGs, centros
acadêmicos, organizações gremiais na definição, implementação,
avaliação e veeduría5 social relacionada com a política habitacional.
institucionalidade interativa nos diferentes níveis (nacional, local e
comunitário) que deverá se construir (conselhos populares, comunitários,
etc.) para garantir o direito à moradia, à cidade e ao habitat.
O Contrato Social pela Moradia - CSV
O CSV está conformado por organizações e instituições sociais, não
governamentais, empresariais, acadêmicas e também por pessoas e grupos de
profissionais, cuja atividade está vinculada com a moradia popular e o direito à
cidade e ao habitat.
O CSV opera como um fórum de discussão independente, com capítulos nas
cidades de Quito, Guayaquil e Pujilí, que se propôs contribuir ao exercício pleno
do direito à moradia, à cidade e ao habitat, assegurando as condições necessárias
para que todos os equatorianos e as equatorianas tenham acesso a tais direitos.
Trata-se de um espaço de confluência de vontades e ações combinadas, não
possuem pessoa jurídica nem financiamento específico; apesar disso, desde
agosto de 2005 até o momento, o CSV vem desenvolvendo uma campanha de
lobbying e interpelação permanente com as autoridades em turno, de difusão
e conscientização nos meios de comunicação e informação e capacitação com
dirigentes e membros do próprio coletivo.
As mais de 160 atividades desenvolvidas pelo Coletivo desde sua origem (14
fóruns públicos, 40 cursos de formação e oficinas de discussão acadêmica e política,
57 reuniões de coordenação interna e 46 reuniões de lobbying com autoridades e
órgãos de cooperação, mobilizações e presença na mídia) permitiram alcançar um
paulatino reconhecimento social e o aprofundamento de uma agenda comum.
Às seis instituições e organizações que empreenderam esta iniciativa, somaramse outras; atualmente este espaço conta com a participação de 27 instituições e
organizações. A partir da reivindicação pontual da defesa do sistema de subsídios,
5
Mecanismo democrático de representação que permite aos cidadãos ou às diferentes organizações
comunitárias, exercer vigilância sobre o processo de gestão pública, frente às autoridades.
294 Ciudades para tod@s
construiu-se uma plataforma que aponta para a consolidação da participação
social, do diálogo e acordo entre os múltiplos atores para a construção de uma
política de habitação sustentável e equitativa, de marcos legais concomitantes.
O CSV parte da premissa de que a sustentabilidade das propostas, soluções
e políticas depende dos esforços coletivos e acordos que se constroem sobre a
base de consensos progressivos, por meio dos quais se promove a participação
dos atores na reflexão, ação e vigilância sobre aspectos referentes ao direito à
habitação, à cidade e ao habitat.
A agenda do CSV se estrutura ao redor de três momentos estratégicos de ação
inter-relacionados:
A constitucionalização do direito universal à moradia, à cidade e ao habitat
A Assembléia Nacional Constituinte representou uma oportunidade histórica
para atualizar e fortalecer os direitos individuais e sociais e as políticas de estado
relacionadas com a habitação, a cidade e o habitat. Dentro das atividades de
influência desenvolvidas pelo CSV no processo constituinte, em 8 de novembro
de 2007, realizou-se a primeira entrega pública da “Demanda cidadã pelo direito
à moradia, à cidade e ao habitat” aos deputados eleitos, num ato público realizado
em Quito, a poucos dias da instalação da Assembléia Constituinte.
A Demanda Cidadã – construída num processo de discussão de seis meses,
com a participação de mais de 300 delegados de organizações sociais, instituições
privadas, ONGs e academia – destaca a co-responsabilidade de diferentes atores
para a construção de um habitat sustentável e que inclua a todos.
Nos dias 8 e 9 de fevereiro de 2008 representantes das organizações e
instituições membros do CSV apoiaram a mobilização a Montecristi – sede da
Assembléia – promovida pelo Fórum Urbano. Os delegados das organizações
populares mobilizadas e membros do CVS foram recebidos pelos deputados nas
Mesas 1, 2, 4, 6 e 7, onde se argumentou a pertinência das demandas específicas
propostas pelo CSV e reiterou-se o compromisso da sociedade civil para a
construção participativa da nova Constituição. A maioria das propostas contidas
na Demanda cidadã foram reunidas no projeto de Constituição que foi aprovado
pelo povo equatoriano nas urnas em 29 de setembro de 2009.
A elaboração participativa e implementação de políticas públicas de habitação e
assentamentos humanos que garantam condições para o exercício universal do direito à
moradia, à cidade e ao habitat.
Num segundo momento, o CSV busca influenciar na formulação e implementação
de uma política de estado acordada com os grupos sociais organizados, o
Experiencias - Marco legal 295
setor privado e os governos locais, com a finalidade de construir respostas
institucionais, socialmente eficazes, responsáveis e equitativas. As propostas
apontam à construção de uma política de estado que enfrente os problemas
imediatos e as demandas urgentes das famílias, sem perder de vista as propostas
para melhorar as condições habitacionais e a qualidade de vida a médio e longo
prazo. Nessa linha se desenvolvem espaços de diálogo com instâncias públicas,
oficinas de discussão e análise dos problemas da habitação, da cidade e do habitat
e se elaboram propostas de orientação da política.
Neste marco, em julho e agosto de 2009, o CSV apresentou suas propostas
no processo de atualização do Plano Nacional de Desenvolvimento – PND
para o período 2009-2013, procurando influenciar na definição de uma política
habitacional coerente com os direitos reconhecidos na nova Constituição.
A promulgação de uma Lei de habitação e assentamentos humanos, que contemple um
suporte institucional e financeiro
Finalmente o terceiro momento radica em incidir na formulação de uma Lei
Geral de Habitação e Assentamentos Humanos que instrumentalize o direito
à habitação, à cidade e ao habitat, e assegure os meios legais, institucionais e
financeiros para sua implementação.
No momento atual, frente à elaboração de uma proposta de Lei por parte do
Ministério de Desenvolvimento Urbano e Habitação (MIDUVI), o CSV demandou
pelos seguintes pontos:
• A necessidade de codificar a normativa existente no que se refere à
moradia e ao habitat.
• Propor que a Lei, em concordância com a Constituição, trate não apenas
da moradia, mas também da cidade e do habitat.
• Definir dentro da Lei a gestão do setor e as competências necessariamente
complementares entre o governo central e os governos autônomos
descentralizados.
• Propor um sistema de monitoramente e avaliação das políticas e
programas relacionados com a habitação, a cidade e o habitat, baseado
na participação e veeduría cidadã. Ter concordância com a Lei de
Participação.
• Estabelecer na lei uma definição do que se entende como habitação de
interesse social para a aplicação de desonerações e incentivos – que já
existem na legislação atual, buscando incrementá-los – a partir de uma
concepção de habitação adequada, o que compreende acessibilidade,
serviços, segurança da posse, qualidade da moradia, entorno, entre outros.
296 Ciudades para tod@s
•
•
•
•
•
Normatizar e promover o uso de tecnologias alternativas através de sua
inclusão no Código de Construção. Implementar incentivos à pesquisa
e à reestruturação da malha curricular nas faculdades de arquitetura e
engenharia, abrindo as possibilidades do uso e aplicação de tecnologias
alternativas.
Incentivar através da Lei a produção e consumo de materiais locais na
construção, assim como o uso intensivo de mão-de-obra.
Definir diretrizes para o reassentamento de populações localizadas
em zonas de risco e um adequado planejamento urbano que evite tais
assentamentos.
Criar um sistema unificado de informação no que diz respeito a:
normativas, déficits nacional e locais, programas de habitação (dados SIV
e outros), base de dados de atores (organizações de habitação, entidades
técnicas, IFIS, ONGs).
Articular os postulados da Lei com outras leis e normativas relacionadas
com o ordenamento territorial, o ambiente, a eficiência energética, a
equidade campo-cidade, entre outros.
Organizações e instituições membros do Contrato Social pela Moradia,
outubro de 2009
Organizações sociais:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
ONGs
10.
11.
12.
13.
Asociación de Mujeres Luchando por la Vida
Asociación de Vivienda Alianza de Mujeres
Asociación Vida Vivienda –CONFEUNASSC
Asociación de Vivienda Paseos del Pichincha - AVIPP
CONBADE-Confederación Nacional de Barrios
Confederación Nacional Campesina-CNC “Eloy Alfaro”
FORO URBANO
Acción por la Vida - Red de Vivienda
Mujeres Cobijando nuestros sueños
AESCO-Ecuador
ACJ-Asociación Cristiana de Jóvenes
Asociación Solidaridad Acción - ASA
Centro de Investigaciones CIUDAD - Proyecto PASO A PASO
Experiencias - Marco legal 297
14. Ecosur
15. Fundación Hogar de Cristo
16. Fundación Mariana de Jesús
17. FUNHABIT
18. Grupo Social FEPP
19. Habitat Para la Humanidad – Ecuador
20. Somos Ecuador
Instituições privadas
21. Cooperativa de ahorro y crédito FOND Vida
22. Cooperativa de ahorro y crédito CoopCCQ
23. Eco Arquitectos & Asociados
24. CCQ-Cámara de la Construcción de Quito
Institutos de pesquisa acadêmica
25. Instituto de Planificación Urbana y Regional, Universidad Santiago de
Guayaquil-IPUR
Organismos de cooperação
26. ONU-HABITAT
Outros
27. Profissionais independentes
Algumas conclusões
A atuação do CSV tem tido grande influência e forte legitimidade como
interlocutor da sociedade civil apesar de não ser um espaço com “pessoa jurídica”
– embora a quase totalidade de seus membros, individualmente, a tenha -, e de
não contar com recursos permanentes – e sim contribuições de seus membros e
da cooperação internacional. Tal cooperação acontece através de ações pontuais
no marco de projetos das instituições e organizações participantes, relacionadas
com a influência política e o fortalecimento de atores contemplados em projetos
financiados.
Os elementos coadjuvantes podem ser resumidos abaixo:
a) A diversidade dos atores articulados, que com enfoques particulares,
estratégias e recursos perseguem um objetivo comum: o interesse na
construção de respostas adequadas à demanda habitacional dos setores
de menor renda.
298 Ciudades para tod@s
b) O reconhecimento social e a trajetória que representam os atores que
participam do CSV.
c) Ser um espaço que busca o diálogo com o Governo Nacional e com os
Governos Locais, pois o interesse coletivo é a incidência na política.
d) A diversidade de estratégias que desenvolve o Contrato: mobilização,
difusão, elaboração de propostas e intenso lobbying.
e) A oportunidade das ações em relação ao contexto.
f) A cobertura geográfica crescente que busca e vai alcançando o Coletivo,
além do desenvolvimento de ações em diferentes cidades do país.
A razão e pertinência do funcionamento deste espaço “informal” de influência
política e diálogo de atores que definimos como “contrato social” são baseadas no
convencimento de que:
a) A única garantia para a sustentabilidade social de propostas e políticas
sociais inclusivas é a participação social.
b) A participação social permite um processo de afinação política e
marcos regulatórios para que respondam à demanda dos setores mais
desfavorecidos e a realidade de contextos mutantes.
c) A participação interativa organizada permite fortalecer a interação
com o estado, mas ao mesmo tempo desenvolver laços de cooperação
entre diferentes atores da sociedade (do setor comunitário e privado)
contribuindo para fixar a responsabilidade do conjunto da sociedade
perante os problemas sociais.
d) O bom governo somente é possível quando existe capacidade de diálogo
entre a sociedade civil e o estado, e no interior da sociedade civil. A
governança é mais do que o diálogo público-privado, é o conjunto da
sociedade diversa em diálogo e na construção de consensos.
Fotos archivo CVS
Planejamento e políticas públicas
O conceito de cidade de classe mundial e suas
repercussões no planejamento urbano para as
cidades da região da Ásia-Pacífico1
Arif Hasan
(Os conteúdos deste documento surgem das minhas experiências pessoais
de trabalho ou vínculos com programas e projetos em uma série de cidades
asiáticas durante os últimos 25 anos, assim como com seus urbanistas,
acadêmicos, estudantes, políticos e representantes de organizações da sociedade
civil. Muitos destes programas e projetos receberam o apoio de Instituições
Financeiras Internacionais (IFI) e agências bilaterais de desenvolvimento,
sendo que a maioria das referências do documento provém de autores que
conheço pessoalmente.)
Introdução
O modelo de estado de bem-estar da Europa nasceu de uma incômoda
reconciliação entre o capitalismo e seus adversários. Seus princípios foram
adotados pela maioria dos países que recentemente se tornaram independentes
(que não pertenciam ao bloco soviético) no período posterior à Segunda Guerra
Mundial. O ethos do modelo sobreviveu graças à divisão do mundo entre
entidades socialistas e capitalistas, além da presença de uma China revolucionária
e de uma União Soviética com grande poderio militar no Conselho de Segurança
da ONU. Nestas circunstâncias, uma economia de mercado global simplesmente
não era possível. O colapso da União Soviética e as repercussões do fracasso
da Revolução Cultural na China modificaram todo este contexto e, em termos
políticos, o capitalismo chegou a dominar o mundo.
1
Artigo redigido para o Simpósio sobre Cultura, Espaço e Revitalização da Rede IAPS-CSBE
(International Association People Environment Studies- Culture and Space in the Built
Environment Network), Istambul, Turquia, 12 – 16 Outubro 2009
302 Cidades para tod@s
Como resultado, hoje em dia somos governados por três instituições globais.
Elas determinam a política, a cultura, as finanças e o desenvolvimento mundial
e, do mesmo modo, também a maior parte das políticas e dos conceitos de
desenvolvimento a nível nacional. Nenhuma destas instituições é democrática
por natureza e, portanto, suas decisões e políticas não podem ser modificadas
por meio de normas, regulamentos e procedimentos existentes que determinem
seu funcionamento. Tais instituições são: em primeiro lugar, a ONU, controlada
por cinco membros do Conselho de Segurança que ganharam a Segunda Guerra
Mundial e podem vetar individualmente qualquer decisão da Assembléia Geral;
em segundo lugar, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que
funcionam sob o conceito do dólar, um voto; e, em terceiro lugar, a Organização
Internacional de Comércio (OMC), fruto das negociações da Sala Verde do G-7,
as quais deram lugar à criação do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT,
na sigla em inglês), e é controlada pelo G-8.
Conjuntamente, estas organizações promoveram o que se conhece como economia
de “livre mercado”, cujo aspecto mais importante é a liberdade de circulação do
capital através das fronteiras nacionais e a busca de investimentos que, sempre que
possível, possam ser multiplicados. O processo de ajuste estrutural, ao qual muitos
países mais pobres foram obrigados a se submeter na década de 90, facilitou o
crescimento da economia de livre mercado e o apoio a tal processo. O ajuste estrutural
exigiu que os governos nacionais regulassem suas balanças comerciais e devolução
de créditos outorgados pelas IFI. Para que isso fosse possível, os países que se
submetiam ao ajuste estrutural acordaram eliminar subsídios para a saúde, educação
e moradia; aumentar impostos aos serviços públicos; vender seus ativos industriais e
imóveis do setor corporativo privado, nacional ou internacional e eliminar restrições
sobre importações e exportações. A conseguinte crise econômica a nível nacional
significou que os países mais pobres não podiam investir e, em muitos casos, nem
sequer subsidiar, projetos de infraestrutura que deveriam ter sido construídos pelo
setor corporativo nacional ou internacional por meio de licitações internacionais.
Como resultado, produziu-se um grande boom das empresas internacionais para a
execução destes projetos. Os processos de Construção-Operação-Transferência (COT)
e Construção-Operação-Propriedade (COP) foram inventados para possibilitar o
desenvolvimento da infraestrutura por meio desse sistema. Ambos os sistemas
geram infraestrutura com custo duplicado em relação a que seria produzida pelo
governo. Além disso, os governos são obrigados a outorgar garantias soberanas pelo
capital aportado pelos investidores.
Desenvolveu-se então uma terminologia e conceitos totalmente novos para
respaldar a economia de mercado. Conceitos como “o negócio não é negócio
do estado”, “as cidades são os motores do crescimento”, além da vinculação do
bem-estar econômico com o crescimento do PIB, gerando um impacto notável
nas políticas nacionais dos países asiáticos. Na busca pelo crescimento e pelo
Experiencias - Políticas públicas 303
Investimento Estrangeiro Direto (IED), esses países investiram consideravelmente
na criação de zonas industriais (ao invés de investir em sua própria população)
e aceitaram o conceito de agricultura “corporativa”. A Índia é um dos gigantes
econômicos emergentes que seguiu essas políticas desde meados dos anos 90.
Por esta razão seu crescimento econômico na última década tem variado entre
7% e 9%. Contudo, estima-se que devido à criação de 500 Zonas Econômicas
Especiais para atrair o IED e a agricultura corporativa – ambas promovidas pelo
Banco Mundial na busca pelo crescimento do PIB – cerca de 400 milhões de
pessoas se viram forçadas, voluntariamente ou não, a se transladarem das zonas
rurais para as urbanas, a partir desse momento até 20152. Isso representa o dobro
da população do Reino Unido, França e Alemanha juntas. Esse processo também
está sendo promovido – ao qual, em muitos casos, os agricultores têm resistido –
em outros países asiáticos3. Os cultivos alimentícios estão sendo substituídos por
cultivos industriais, sendo que este processo, que incrementa o custo e a escassez
de alimentos, gera consequentemente refugiados agrícolas – retorno do estado
vulnerável diante das pressões e interesses do setor corporativo4.
Para promover o IED, a ONU, o FMI e a OMC também se promoveu a
descentralização dos sistemas de governança, outorgando um poder considerável
às instituições locais. Este poder está cada vez mais sendo usado para acessar o
IED e para identificar projetos independentemente do governo local ou central.
Por outro lado, as reformas políticas e a desregulamentação influenciada pelas
IFI tiveram um impacto enorme nos mercados de propriedades e reestruturaram
as políticas de desenvolvimento urbanístico. O tráfico internacional de ouro e
de artigos de contrabando deixou de ser lucrativo. Por este motivo as gangues e
máfias implicadas nestas atividades de quadrilhas se envolveram no negócio de
bens imobiliários e se vincularam, com este objetivo, aos seus sócios e colegas do
submundo estrangeiro. O fato desequilibrou o mercado da terra e impulsionou
uma especulação massiva5. O processo foi ainda mais facilitado pelos conflitos
regionais, pela crescente permeabilidade das fronteiras (tanto para o capital como
para as pessoas) e pelo tráfico de drogas. Todo o processo introduziu o elemento
da violência, dos assassinatos e seqüestros dos oponentes, rivais e ativistas sociais
específicos do setor da terra e dos bem imóveis6.
2
3
4
5
6
Devinder Sharma; Displacing Farmers: India Will have 400 Million Agricultural Refugees; www.
dsharma.org
Para mais detalhes, ver, Ahmed Rafay Alam; Leasing Out Land And Food Security; The Daily News,
Karachi, 04 Setembro 2009.
Devinder Sharma; op. Cit.
Liza Weinstein; Mumbai’s Development Mafias: Globalization, Organized Crime and Land Development;
International Journal of Urban and Regional Research, Volume 32.1, Marzo2008 Ibid. Outros urbanistas de diferentes países asiáticos também comentaram com o autor sua
preocupação a respeito.
304 Cidades para tod@s
Em quase todos os casos, o estado respondeu a estas pressões do mercado,
colocando a terra à disposição do desenvolvimento por meio de conversões do
uso do solo, de novos planos de urbanização e da demolição de assentamentos
informais7. Além de suas próprias debilidades e cultura organizacionais, as
organizações da sociedade civil que questionaram este processo enfrentaram
duas limitações; a falta de empatia dos meios de comunicação internacionais
e a ausência de leis que previssem as conversões meio-ambientais e sociais
inadequadas do solo. Mesmo onde as leis existem, as mesmas frequentemente
carecem de normas, regulamentos e procedimentos e de instituições que
as implementem. Como resultado, os tribunais costumam gerar falhas que
promovem a desigualdade, a pobreza e a fragmentação social8.
A pobreza aumentou nos países que não contavam com meios para responder
de maneira positiva ao livre mercado e a desigualdade entre ricos e pobres
incrementou-se em todos os casos. Para retificar essa crescente desigualdade, as
IFI promoveram o conceito de redes de segurança para os pobres, através das
quais lhes concediam créditos, estimulando o papel das ONGs nestes programas.
As redes de proteção atendem a uma porcentagem bastante baixa da população
afetada e a participação das ONGs com fundos importantes à disposição está
provocando um efeito adverso na cultura, na relação das organizações com
as políticas de urbanização e nas comunidades pobres9. Os empréstimos para
projetos de infraestrutura também aumentaram, especialmente para a construção
de estradas. O questionamento cresce acerca destes empréstimos, dos programas
de ajuda e dos projetos promovidos pelas organizações da sociedade civil no
Sul10. Existem provas que demonstram que, em sua maioria, os projetos são
custosos e não sustentáveis, sendo que uma grande parte (às vezes a maior parte)
dos créditos é revertida para o norte sob a forma de assistência técnica, gastos
gerais e benefícios para os contratados promovidos pelo conceito de licitações
internacionais11.
Os aspectos detalhados tiveram um impacto profundo na conformação e nas
políticas de nossas cidades. As configurações que modificam nossas urbes e os
7
8
Arif Hasan: Understanding Karachi: Planning and Reform for the Future; City Press, Karachi 2000
Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily Dawn, Karachi, 14
Mayo 2008 9 Arif Hasan: Documento de debate para el seminario de la UN University “Sustainable Urban
Future in an Era of Globalisation and Environmental Change”; New York, 09-10 Julio, 2007 10 Entre elas se encontram o Tribunal Independente dos Povos sobre o Banco Mundial na Índia, a
Voz do Povo em Karachi e o Instituto de Recursos para o Desenvolvimento no Camboja.
11 Ver Stephanie Gorson Fried e Shannom Lawrence com Regina Gregory: The Asian Development
Bank: In its own Worlds; “An Analysis of Project Audit Reports for Indonesia, Pakistan and Sri
Lanka; ADB Watch, Julho 2003. Também, de Arif Hasan; The Neo Urban Development Paradigm and
the Changing Landscape of Asian Cities; International Society of City and Regional Planners Review
No. 3, La Haye, 4 Junho 2007.
Experiencias - Políticas públicas 305
motivos por trás delas são o resultado de um poderoso nexo de urbanistas e
investidores (muitos deles de origem duvidosa); instituições governamentais,
burocratas e políticos corruptos que buscam o capital internacional para forjar
para suas cidades a imagem do “Ocidente”; uma imagem promovida (implícita
ou explicitamente) pela ONU, FMI e OMC. Para promover este paradigma,
que chamo de “paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano”, também se
promoveu o conceito de cidade de classe mundial ou cidade global. Trata-se de
um conceito poderoso e quase universalmente aceito pelas autoridades políticas
dos governos nacionais, as novas classes médias emergentes e a academia, em
especial no Ocidente.
O conceito de cidade global e suas repercussões
Karachi, Bombay, Cidade Ho Chi Mnh, Seul e Delhi são todas urbes que aspiram
transformar-se em cidades globais. Algumas aspiram ser com Xangai e outras
como Dubai. A cidade global tem sido maravilhosamente (e favoravelmente)
definida num brilhante artigo de Mehbubur Rahman e em outros materiais12.
Segundo a agenda da cidade global, a cidade deve contar com arquitetura
icônica por meio da qual deveria ser reconhecida, tal como o edifício mais alto
ou a maior fonte do mundo. Deve estar equipada para ser a sede de um megaevento internacional como os Jogos Olímpicos e o Mundial da FIFA. Deve contar
com apartamentos em arranha-céus, em oposição a assentamentos melhorados
e bairros de baixa altura. Para resolver seu crescente problema de tráfego
(resultado dos créditos bancários para a compra de veículos) deve construir
passagens em desnível, subterrâneas e autopistas em vez de restringir a produção
e a compra de automóveis, além de gerenciar o tráfego com maior eficiência.
Para atingir todos os requisitos, uma cidade deveria contar com um avultado
orçamento, para o qual deveria buscar o IED e o apoio das IFI. Para acessar o
IED, deve ser desenvolvida uma infraestrutura propícia para os investimentos
e uma imagem de cidade global. Para estabelecer tal imagem, as populações
pobres são removidas da cidade para a periferia e os regulamentos, que já são
contrários aos pobres (antivida de rua, antipedestres, antiuso misto do solo e
antiespaço dissolvido), tornam-se ainda mais hostis ao permitir conversões do
uso do solo que são nefastas meio-ambientalmente e socialmente. A repercussão
mais importante desta agenda consiste em que a capital global determine cada
vez mais a conformação física e social da cidade. Como parte deste processo, os
projetos substituíram o planejamento e o uso do solo é agora exclusivamente
12 Mahbubur Rahman; “Global City – Asian Aspirations; artigo lido durante o seminário sobre
“Urbanismo num mundo globalizante” Universidade NED de Karachi - Departamento de
Arquitetura e Planejamento, 30 Maio 2009
306 Cidades para tod@s
determinado pelo valor da terra, sem tomar como base considerações sociais e
meio-ambientais. O solo converteu-se descaradamente numa mercadoria.
A agenda que opta pela reestruturação urbana com edifícios de altura ao
invés da melhoria dos assentamentos, pela realocação dos antigos assentamentos
informais para a periferia da cidade e para ceder lugar a mega-projetos e megaeventos, tem resultado num aumento enorme das expulsões em toda a Ásia
durante os últimos cinco anos. Mais de 500 mil pessoas foram desalojadas
em Delhi em função da preparação dos Jogos Asiáticos de 2010.13 14 Todos os
estudos demonstram que as pessoas afetadas não foram consultadas antes da
desocupação, que foram submetidas a uma sutil coação e, frequentemente, à
força bruta, sendo que ficaram ainda mais empobrecidas ou contraíram novas
dívidas no processo de despejo e/ou de realocação15. Entre os outros efeitos
gerados por tais despejos estão a interrupção da escolaridade das crianças, a
perda de empregos e, para alguns, o incremento de 5 a 6 horas destinadas para
o trajeto casa-trabalho, trabalho-casa, o que acaba afetando a vida familiar e
social, a saúde, a recreação e as atividades de lazer16. Os resultados das políticas
mencionadas, junto à ausência de subsídios para a urbanização e à habitação
social, produziram um incremento impressionante dos assentamentos informais.
Os políticos e urbanistas do governo justificam o enfoque na reestruturação
urbana de edifícios de altura insistindo que a cidade moderna deve ser configurada
com este tipo de construções, com espaços abertos intermediários. Também
insistem que a alta densidade da população, necessária para o bom funcionamento
da cidade, não pode ser atingida com a melhoria das estruturas existentes nem
o aumento de pessoas nos bairros que já existem. A imagem de uma cidade é
governada pela percepção do que deveria ser. Contudo, um estudo recente sobre
os assentamentos e complexos de apartamentos de Karachi demonstrou de
maneira conclusiva que a mesma densidade recomendada pela Karachi Building
Control Authority – KBCA (Autoridade de Controle da Construção de Karachi)
pode ser conseguida com a construção de casas geminadas com térreo mais dois
13 Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily Dawn, Karachi, 14
Maio, 2008 14 Nota das editoras: referências aos impactos negativos do recondicionamento da cidade para os
mega-eventos esportivos, ver na mesma publicação outro artigo “Jogos Olímpicos de Pequim
2008: As atividades de modernização e embelezamento removem alguns habitantes para a
periferia de Pequim, enquanto outros resistem e reclamam seu direito à cidade”, María Cristna
Harris.
15 Para mais detalhes ver Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily
Dawn, Karachi, 14 Maio 2008 e Han Verschure, Arif Hasan e Somsook Boonyabancha; Evaluation
& Recommendations for Infrastructure & Resettlement Pilot Project Tan Hoa-Lo Gom Canal; Cidade de
Ho Chi Minh, 28 de Abril de 2006 16 Arif Hasan; Livelihood Substitution: The Case of the Lyari Expressway; Ushba International Publishing,
Karachi, 2006.
Experiencias - Políticas públicas 307
andares (com infraestrutura conjunta necessária). Estas podem ser executadas
sem causar dano ao meio-ambiente nem afetar negativamente a vida social17 18.
O estudo de um projeto de reassentamento e melhorias na Cidade Ho Chi
Minh (considerado como um dos melhores) ilustra os problemas originários
da opção pela construção em altura ao invés da melhoria do existente. No caso
deste projeto, a compensação intermediária entregue pelo estado aos habitantes
dos apartamentos ficava em torno de US$5.400, quantia que não inclui o crédito
necessário para cobrir a diferença entre a compensação e o preço real da habitação.
Tampouco cobre o custo da infraestrutura externa. A opção dos apartamentos,
considerando a economia do Vietnã, não é sustentável sem empréstimos
importantes provenientes das IFI. A opção de melhoria dos assentamentos, por
outro lado, tem um custo de US$ 325 por domicílio, sendo possível gerenciála. As comunidades também preferem a opção de melhoria porque não podem
desempenhar atividades econômicas em edifícios de apartamentos. Das setenta
e duas famílias que tiveram que se mudar para os apartamentos como parte
do projeto, cinquenta ficaram endividadas em função da mudança, sendo que
nenhuma possuía dívidas anteriores.
A cidade global não abre espaço para atividades comerciais informais nem
ambulantes, exceto se estão organizadas como atrações turísticas. A relação entre
estes vendedores/comerciantes ambulantes, as pessoas de baixa renda (aos quais
facilitam a vida por se apresentarem acessíveis) e os que gastam horas diariamente
com transporte para poder trabalhar não podem ser reconhecidas. Porém, uma
vez que já foram concretizados despejos em grande escala, em todas as grandes
cidades da região da Ásia-Pacífico, dos trabalhadores informais e vendedores
ambulantes sem, no entanto, oferecer-lhes compensação, milhões de famílias se
empobreceram19.
Graças aos milhares de milhões de dólares em créditos bancários, houve
um incremento na compra de veículos de 80 a 100% em muitas mega-cidades e
cidades intermediárias da Ásia durante a última década. Somente em Karachi,
os bancos e as empresas de leasing outorgaram o equivalente a US $1,8 bilhão de
17 Estudo realizado pelo Instituto Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED) e
respaldado pela Unidade de Pesquisa e Desenho Urbano do Departamento de Arquitetura e
Planejamento (DAP), Universidade NED, Karachi.
18 Arif Hasan. Asiya Sadiq, Suneela Ahmed; Density Study of Low and Lower Middle Income
Settlements in Karachi; estudo ainda não publicado preparado para IIED, Reino Unido, 22 de
Junho de 2009
19 Para mais detalhes, ver Arif Hasan, Asiya Sadiq Polak, Christophe Polak; The Hawkers of Saddar
Bazaar; Ushba International Publishing, Karachi, 2008 y Bhowmik, S.; Social Security for Street
Vendors: A Symposium on Extending Social Security to Unprotected Workers; Volume 568, Diciembre
2006 (citado en Liza Weinstein; Mumbai’s Development Mafias: Globalization, Organized Crime and
Land Development; International Journal of Urban and Regional Research, Volume 32.1, Março
2008) 308 Cidades para tod@s
dólares para a compra diária de, em média, 506 automóveis durante o ano fiscal de
2006-200720. É inútil dizer que o tráfego das maiores cidades da região converteuse num pesadelo. Para resolver este problema, os urbanistas iniciaram um
enorme programa de construção de estradas, passagens em nível, subterrâneos
e autopistas sim sinalização, o que agravou a situação, além de dificultar a vida
dos pedestres e dos que se locomovem diariamente para trabalhar. Junto a estes
projetos viários, os meios de transporte não motorizados, geralmente usados
pelos pobres (triciclos e “rickshaws” com tração humana, carruagens com tração
animal etc.), foram proibidos em muitas urbes, ou restringidos a periferia ou às
zonas de baixa renda21. Entretanto, os projetos de linhas férreas rápidas para o
transporte de massa não conseguiu proporcionar uma alternativa adequada ou
acessível para os pobres, pois se tratam, essencialmente, de iniciativas isoladas
que não formam parte de um plano de transporte integral maior.
Em função dos processos descritos e de outros relacionados, muitas
cidades asiáticas se tornaram hostis aos pobres, assim como para os migrantes
(principalmente refugiados agrícolas) e para as comunidades que as habitam
por décadas, ou mesmo séculos. Os custos do solo, da construção e do aluguel
aumentaram muito mais do que qualquer incremento dos salários diários para os
trabalhadores sem qualificações.
A luta contra os aspectos negativos da cidade global
Não conheço cidade ou país algum da região da Ásia-Pacífico onde se tenha
questionado o paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano ou onde se
tenha promovido uma visão alternativa para a cidade. Não obstante, existem
projetos formulados sob este paradigma que foram questionados com êxito
em países onde existe uma cultura política populista, além de organizações da
sociedade civil e redes sólidas.
Como já se mencionou, a capital global tem buscado desesperadamente um
lar. Os projetos imobiliários para os novos ricos e para o turismo oferecem as
melhores oportunidades de investimento, especialmente naqueles países onde os
marcos regulatórios são débeis. Os centros turísticos e condomínios ao longo das
praias nas cidades asiáticas representam a localização perfeita para esses projetos.
Os assentamentos informais urbanos proporcionam lucros atrativos para os
centros comerciais, desde que os habitantes sejam desalojados. Os governos
nacionais e urbanos recentemente legitimados têm vendido ou acordado, entre
2006 e 2008, vender clandestinamente estes ativos às empresas nacionais e/ou
20 Arif Hasan; The Neo Urban Development Paradigm and the Changing Landscape of Asian Cities;
International Society of City and Regional Planners Review No. 3, La Haye, 4 Junio 2007
21 Madhu Gurung; Delhi’s Graveyard of Rickshaws; InfoChange News & Features, Septiembre 2006
Experiencias - Políticas públicas 309
investidores estrangeiros – incluindo sete ilhas próximas da costa e um grande
número de praias –, além da demolição dos lares dos antigos habitantes22. Como
resultado, em 2007, houve o incremento do IED que chegou a superar 1500%
em comparação com os quatro anos anteriores. Este investimento empobreceu
ainda mais os que já eram pobres, além de deixá-los sem emprego e sem casa.
A situação beneficiou apenas os investidores, seus sócios locais e os políticos23.
O Camboja é um país pobre que ainda está em recuperação pelos anos de
devastação, genocídio e guerra. Por este motivo, o movimento da sociedade civil
é quase inexistente, o que possibilita esta venda clandestina com escassa ou nula
resistência organizada.
O Paquistão também é um país pobre, mas em comparação, conta com uma
sociedade civil sólida com leis meio-ambientais e trabalhistas incipientes, além
de uma cultura política populista surgida das repetidas lutas pela restauração
da democracia. Em 2007, o Primeiro Ministro paquistanês acordou vender duas
ilhas próximas à costa de Karachi para uma empresa com sede em Dubai, contra
um investimento de US$ 43 bilhões. Além disso, aceitou prover cerca de 33 mil
hectares litorâneos para Limitless, outra empresa com sede em Dubai, para um
projeto de US$500 bilhões, cujo investimento inicial soma US $150 bilhões. Ao
aceitar esta venda, o Primeiro Ministro esquivou-se das leis e procedimentos
jurídicos existentes. Agregado ao fato, avaliou-se que os projetos (exclusivamente
para condomínios de luxo, hotéis 5 estrelas e marinas) teriam um impacto negativo
na subsistência de 200 mil pescadores, desalojando os habitantes de cerca de 36
comunidades e impediriam o acesso a praia dos grupos de baixa e média renda.
Os projetos de urbanização das praias também tentaram impedir seu acesso
aos grupos de baixa renda, proibindo locais informais de venda e consumo de
alimentos nas mesmas, substituindo-os por pátios formais de comida cara24.
As organizações da sociedade civil de Karachi criaram uma rede para se
opor aos projetos de reconversão das praias e venda das ilhas. Tal rede contava
com organizações de pescadores, escolas, ONGs, organizações comunitárias em
assentamentos de baixa renda, meio acadêmico, autoridades destacadas (como
ex-juízes da Suprema Corte) e meios de comunicação impressos. O resultado foi a
suspensão da venda das ilhas e cancelamento do projeto Limitless. Anteriormente,
por meio do mesmo processo, redes respaldadas por organizações que trabalham
com grupos de baixa renda se opuseram ao Projeto de Transporte de Massa de
22 Ardian Levy y Cathy Scott-Clark; Country for Sale; The Guardian, 26 Abril 2008 23 Cambodia Development Resource Institute Technical Assistance and Capacity Development in an
Aid-Dependent Economy; Working Paper 15, Año 2000; Tom Coghlan; Consultants Reap Wealth from
Afghan Chaos; Daily Telegraph, 26 Marzo 2008
24 Ver “The Partitioning of Clifton Beach” in Arif Hasan; Planning and Development Options for Karachi;
Sheher Saaz, Islamabad, 2009. Ver también, sitio web de Fisherfolk Forum www.pff.org.pk
310 Cidades para tod@s
Karachi, de 1994, o que resultou na sua modificação25. Também se cancelou um
crédito de US$ 100 milhões outorgado pelo Asian Development Bank – ADB
(Banco Asiático de Desenvolvimento) para um projeto de tratamento de esgoto,
quando uma ONG que trabalhava com comunidades de assentamentos informais
apresentou uma alternativa de US$ 20 milhões e fez o lobby por meio de uma
rede26. Os organismos profissionais, representantes de arquitetos e urbanistas se
destacaram por sua ausência nestes processos, mesmo quando alguns arquitetos
participavam dos movimentos a título pessoal.
Em Bombay aconteceu um processo similar ao de Karachi. O governo do
estado de Maharastra – cuja capital é Bombay –, publicou um anúncio chamando
aos “interessados” para a reurbanização de Dharavi, assentamento informal
dentro da cidade. A proposta contemplava um estudo do assentamento, o
exercício do desenho urbano e o reassentamento da população removida e/ou
entrega de moradias. Dharavi conta com uma população de meio milhão de
pessoas, sendo que suas atividades comerciais e industriais informais abastecem
ao mercado formal e geram renda equivalente a muito mais do que US$ 500
milhões anuais. Apesar disso, o aviso denominava Dharavi como um negócio
e perguntava ao investidor se a perspectiva “o emocionava” 27 . Os habitantes
e negócios de Dharavi não foram sequer consultados ou notificados do aviso.
Além disso, para um empreendimento de tal envergadura, era necessário um
Estudo de Impacto Meio-Ambiental de acordo com a legislação indiana, que do
mesmo modo não foi feito. Mais grave ainda foi a solicitação ao urbanista de um
estudo do assentamento, quando já existiam diferenças notáveis entre os estudos
sobre Dharavi realizado pelo governo e os de ONGs28.
Para se opor ao plano do governo, formou-se especialmente uma rede
composta da National Dwellers Federation – NSDF (Federação Nacional
de Residentes de Assentamentos Informais), uma organização nacional de
500 mil lares – , ONGs que trabalham com grupos de baixa renda, tal como
Society for the Promotion of Area Resource Centres – SPARC (Sociedade
para a Promoção de Recursos por Área), cidadãos afetados e organizações
interessadas. Acadêmicos, artistas, pesquisadores e ONGs internacionais
também expressaram sua preocupação. Entretanto, o Presidente da NSDF
ofereceu sua associação com o governo estatal para o desenvolvimento de
Dharavi, ameaçando provocar perturbações caso o plano do governo fosse
aplicado. Graças a este movimento foram empreendidas negociações e
25
26
27
28
Site de Urban Resource Centre: www.urckarachi.org
Site de Orangi Pilot Project: www.oppinstitutions.org Site de Society Promotion for Area Resource Centres (SPARC): www.sparcindia.org Sheela Patel and Jockin Arputham; Plans for Dharavi: Negotiating a Reconciliation Between a StateDriven Market Redevelopment and Residents’ Aspiration; Environment & Urbanization, Volume
20(1), 2008 Experiencias - Políticas públicas 311
Mashal, uma ONG, ganhou o mandado de realizar um estudo de Dharavi
com o apoio de NSDF e SPARC29.
Todos os movimentos exitosos que estão contra tais projetos insensíveis têm
uma série de pontos em comum. Primeiro, a existência de uma grande rede ou
organização de comunidades pobres; segundo, a presença de organizações que
apóiam estas comunidades com informação e liderança administrativa e técnica
sem, no entanto, controlá-las e dirigi-las; terceiro, a pesquisa sobre questões
sociais, técnicas e de planejamento que questione o projeto de maneira informal
e apresente alternativas; quarto, o apoio dos cidadãos preocupados e destacados,
de organismos profissionais, de acadêmicos e dos meios de comunicação; e
quinto, o fato de que os êxitos ou a rede não pertencem somente a um grupo.
Outro aspecto que surgiu de uma série de estudos de caso consiste em que,
lamentavelmente, a violência ou ameaça constituem a única forma de dissidência
reconhecida e admitida pelos círculos oficiais30.
Ao lúgubre panorama descrito, deve-se agregar a esperança. Para tanto,
serve o exemplo de Bann Mankong Collective Housing Program (Programa
Coletivo de Moradia Bann Mankong), um projeto nacional de melhoria de
assentamentos precários criado pelo governo tailandês em 2003 e implementado
por Community Organizations Developments Institute – CODI (Instituto para
o Desenvolvimento de Organizações Comunitárias). No contexto do projeto, as
comunidades, organizadas por meio de um processo de programas de poupança
e crédito, identificam e adquirem terras para a construção ou melhoria das
moradias através de um sistema de subsídios e créditos governamentais com
fundos rotativos. Para impedir a especulação, adotou-se uma estratégia de
propriedade coletiva ao invés de individual. Os governos locais, profissionais,
universidades e ONGs estão comprometidas com as comunidades pobres do
programa do CODI. Entre janeiro de 2003 e março de 2008, mais de 53976 lares
de 226 cidades da Tailândia haviam sido beneficiados pelo programa31.
Uma alternativa para o conceito de cidade global?
Qual é a alternativa ao conceito de cidade global? Uma cidade inclusiva, aberta
aos pedestres e acolhedora aos que passam horas no trânsito todos os dias,
que se baseia nos princípios de justiça e igualdade? Que processos permitem
desenvolver uma visão para tal alternativa e como pode ser promovido? Esta
29 Ibid
30 Isso foi observado pelo autor em pelo menos três casos em Karachi, e na luta dos arrendatários
agrícolas do Punjab. Também foi assinalado ao autor por Sheela Patel de SPARC em Bombay e
pelo Prof. Yves Cabannes em casos da América Latina. 31 Ver site de CODI: www.codi.or.th
312 Cidades para tod@s
alternativa poderia nascer dos processos que questionam (com e sem êxito) os
projetos impulsionados pelo paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano?
Talvez devamos debatê-los, mas o que deveríamos fazer nesse ínterim? No caso de Karachi, parece-me que os projetos substituíram o planejamento
num futuro imediato. Fiz a tentativa de promover alguns princípios com base nos
quais os projetos deveriam ser avaliados e/ou modificados. Estes não deveriam
causar dano à ecologia da região onde se localiza a cidade e, como prioridade,
deveriam ir de encontro aos interesses da maioria dos habitantes que são, no
caso das nossas cidades, os grupos de baixa e média renda. Os projetos deveriam
determinar o uso do solo segundo considerações sociais e meio-ambientais e
não somente pelo valor dos terrenos. Finalmente, deveria proteger o patrimônio
cultural tangível e intangível das comunidades. Contudo, sem cuidado e respeito
pelo entorno natural e pelas pessoas que conformam a maior parte dos habitantes
das urbes, tais princípios não podem ser seguidos com eficácia.
A pergunta continua sendo se a megalomania e o oportunismo dos políticos e
dos urbanistas aceitarão um paradigma novo e mais humano, que restrinja seus
rendimentos e desmercantilize a terra. É duvidoso, a menos que sintam a pressão
das redes por toda a cidade, armadas com pesquisas e visões alternativas.
A chave para provocar a mudança jaz na natureza da educação profissional.
Frequentemente penso que poderia ser útil que arquitetos, urbanistas e
engenheiros que se formam prestem um juramento semelhante ao dos médicos
e, no caso de que não respeitem suas promessas, seus nomes sejam eliminados da
lista profissional. Em 1983, depois de avaliar o dano meio-ambiental que parte do
meu trabalho havia causado, prometi num artigo que:
Não realizarei projetos que danifiquem irreparavelmente a ecologia e o meioambiente da área onde se situam; não realizarei projetos que empobreçam,
removam pessoas e destruam o patrimônio cultural tangível e intangível das
comunidades que vivem na cidade; não realizarei projetos que destruam o espaço
público onde se reúnem pessoas de diferentes classes sociais e que violem as
ordenanças municipais acerca dos edifícios e normas de zoneamento; e sempre
me oporei aos projetos insensíveis que incorram no que foi anteriormente dito,
sempre que possa oferecer alternativas viáveis32.
Tenho tentado cumprir aquela promessa e acredito que estou conseguindo.
32 Arif Hasan; No to Socially and Environmentally Development Projects; The Review 1983
Considerações sobre a segurança urbana das
mulheres através do direito à cidade, Polônia
Shelley Buckingham
As Mulheres e Violência Urbana
As ameaças de crime e violência são mais altas nas cidades, particularmente entre
as mulheres. O número crescente de incidentes nos espaços públicos urbanos
está se tornando uma grande preocupação, especialmente quando consideramos
a forte urbanização mundial que vem acontecendo por décadas. Este fenômeno
tem progredido ao ponto de que atualmente mais da metade da população do
mundo vive em cidades, revelando a importância do debate sobre a segurança
das mulheres na cidade. Embora os padrões de direitos humanos internacionais
estabeleçam objetivos para garantir o direito das mulheres a viver sem violência,
os ambientes urbanos particulares onde sofrem violência necessitam ser
examinados e ações devem ser tomadas nas esferas públicas locais. Se a violência
ocorre em grande parte da cidade, então ações precisam ser realizadas não
somente na cidade, mas através da sua própria criação. Enquanto o planejamento
e o desenho urbano não criam diretamente a violência, de algum modo facilitam
ambientes que podem apresentar mais ou menos oportunidades para assaltos.
O desenho e o planejamento urbano devem, portanto, ser examinados a fim de
entender completamente porque as mulheres sofrem ameaças e reais incidentes
de violência. A partir da compreensão dessas ameaças, atitudes podem ser
tomadas para mudar a forma como as mulheres experimentam e vivem a cidade
sem a ameaça da violência. Todas possuem tal direito à cidade, o qual deve ser
entendido como seu direito coletivo à segurança nos espaços que habitam.
O direito coletivo à cidade
Durante as últimas décadas as políticas econômicas neoliberais causaram múltiplas
violações dos direitos humanos e desigualdades sociais. David Harvey enuncia
que isso se deve grande parte ao fato de que a ideia dos direitos humanos sob o
314 Cidades para tod@s
neoliberalismo tem se concentrado nos direitos individuais, tal como o direito de
propriedade privada, enquanto ignoram abundantemente os direitos coletivos.
Neste sentido, a propriedade privada deve ser entendida como infração sobre o
direito à cidade como um direito coletivo. O direito à cidade é um direito para
todos os que nela vivem, acessam e usam e isso envolve não somente o direito a
usar o que já existe no espaço urbano, mas também o direito de criar e definir o
que deveria existir a fim de conhecer as necessidades humanas para viver uma
vida decente no entorno urbano (Harvey, 2003). Em síntese, isso inclui o direito
a usar a cidade e participar da sua criação ou recriação. A realização do direito
à cidade tem sido executada através da colaboração entre grupos da sociedade
civil e organizações, governos e agências internacionais. O papel dos grupos
da sociedade civil e organizações é particularmente crucial para implementar o
direito coletivo à cidade, pois essas experiências informam sobre as estruturas
adequadas ou inadequadas nas quais vivem. Ainda mais importante é que os
diversos atores da sociedade civil estejam presentes no debate do direito à cidade,
já que nem todos tem a mesma experiência num mesmo entorno.
Isso é particularmente importante para grupos de mulheres como Tovi
Fenster que observa que “medo e segurança podem ser vistos tanto como uma
questão social como também espacial que, em muitos casos, estão relacionados
com o desenho dos espaços urbanos”. É esse medo que impede às mulheres o
exercício pleno do seu direito à cidade, uma vez que a maioria das políticas que
objetivam garantir a segurança das mulheres nos espaços públicos urbanos, ao
enfocar aspectos sociais, acaba negligenciando as construções físicas. Ruas sem
saída, vias inadequadamente iluminadas e parques públicos que são tipicamente
dominados por atividades masculinas, são algumas das circunstâncias sociais
e estruturais que instigam sensações de medo para as mulheres nos espaços
públicos. Através do direito de participar nas decisões referentes à criação
de espaços urbanos, as mulheres podem formar parte, de maneira ativa, na
prevenção da violência potencial contra si mesmas.
Auditoria Local de Segurança
O Processo de Auditoria Local de Segurança (“Community Safety Audit Process”)
foi desenvolvido pela primeira vez em 1989 pelo Comitê de Ação Metropolitana
sobre Violência Pública Contra Mulheres e Crianças (Metropolitan Action Commttee
on Violence Against Women and Children – METRAC) de Toronto como uma
ferramenta para avaliar os ambientes urbanos da perspectiva daqueles que se
sentem mais vulneráveis à violência. As recomendações feitas pelos participantes
da Auditoria foram posteriormente entregues aos profissionais de planejamento
urbano e aos que elaboram as políticas para então efetuar mudanças nos ambientes
avaliados. Essas mudanças reduziriam as possibilidades de assaltos. Como as
Experiencias - Políticas públicas 315
mulheres são mais suscetíveis a situações de violência no ambiente urbano, seu
envolvimento durante a Auditoria Local de Segurança pôde ser entendida como
exercício de sua capacidade de criar ambientes seguros para si mesmas. Pela
participação ativa em fazer de seu ambiente urbano mais seguro para seu uso, as
mulheres estão exercendo seu direito à cidade. É o direito de participar da criação
da cidade que vá de encontro as suas necessidades e proporciona a sensação de
segurança durante o uso desses espaços.
Auditoria de Segurança das Mulheres da ONU-Hábitat
Sob o Programa de “Cidades Mais Seguras” da ONU-Hábitat, um projeto piloto
de Auditoria de Segurança das Mulheres foi dirigido pelo escritório local de ONUHábitat de Varsóvia, Polônia em 25 de agosto de 2007. A auditoria foi executada no
distrito de Srodmiescie, no centro de Varsóvia. Dela participaram oito mulheres
do município de Varsóvia, polícia militar, escritório da ONU-Hábitat, Câmara de
Urbanistas (Chamber of Town Planners), uma ONG local e a mídia. O Escritório da
ONU-Hábitat de Varsóvia adaptou a ferramenta Auditoria Local de Segurança
do METRAC para avaliar a segurança das mulheres que vivem em Varsóvia.
O relatório da auditoria reconhece o processo do METRAC que considera as
identidades pessoais à medida que contempla suas experiências de violência na
cidade, levando em conta gênero, raça, idade, religião, capacidade e orientação
sexual. Contudo, através da adaptação da ferramenta, o escritório de Varsóvia
enfocou apenas a percepção das mulheres e presumiu que uma área considerada
segura pelas por elas seria segura para todos. Essa hipótese, no entanto, negligencia
todos os demais grupos de habitantes que estão vulneráveis à violência no espaço
público. Isso é especialmente importante, considerando o fato de que as mulheres
frequentemente enfrentam múltiplas formas de discriminação, ou nesse caso,
violência baseada na intersecção de identidades (gênero, raça, idade, religião1).
Apesar disso, a auditoria não deveria ser classificada como irrelevante ou inútil,
mas deve-se entender que os resultados de uma auditoria realizada com tais
pressupostos conduzem a uma hipótese insuficiente para avaliar as questões de
segurança para todos os grupos de habitantes que usam o entorno urbano.
O processo de auditoria requeria que as participantes caminhassem pela
zona à noite e preenchessem um questionário que tinha como objetivo reunir
seus sentimentos de insegurança em relação ao desenho urbano e as estruturas
do entorno. Posteriormente, o Central District Hall (Repartição municipal do
distrito central) abrigou uma sessão de avaliação para reunir as recomendações
1
Refere-se ao fato de que algumas características de identidade conduzem ao sofrimento de
discriminação e violência e que, portanto, ao combinar estas características – tais como gênero,
raça, religião, idade ou orientação sexual – aumenta o risco de vulnerabilidade.
316 Cidades para tod@s
dos grupos para os que elaboram políticas e planejadores urbanos baseadas no
resumo da pesquisa. As participantes identificaram como prioridade questões
relacionadas à iluminação, sinalização, acesso à assistência emergencial,
manutenção de infraestrutura e instalações urbanas. Também sugeriram
melhorias para aperfeiçoar a segurança urbana e o desenho do entorno. Notaram
que a maioria da iluminação adequada, sinalização e infraestrutura em bom
estado estavam ao redor dos grandes edifícios de escritórios. Ironicamente, muitas
dessas estruturas estavam sendo monitoradas pelos guardas para assegurar
que os edifícios estivessem salvos das pessoas. No geral, há um sentido de que a
cidade prioriza mais os edifícios que as pessoas. Por este motivo, as participantes
recomendaram a diversificação de usos urbanos na entorno como forma de
atrair maior presença humana. Outra recomendação feita à câmara municipal
e aos urbanistas foi a adaptação do desenho urbano para que enfatizasse mais a
segurança dos pedestres do que a dos edifícios e equipamentos.
Através das observações feitas pelas participantes da Auditoria de Segurança
das Mulheres, é claramente visível que o foco nos edifícios está alinhado com a
valorização dos direitos de propriedade privada em detrimento do direito da
comunidade de viver numa cidade mais segura. Não é a intenção criticar as
medidas que garantam a proteção dos edifícios de roubos e vandalismo. Tratase simplesmente de salientar que o mesmo esforço deve ser empreendido para
o bem estar da comunidade e segurança pessoal. Desse modo, os planejadores
da cidade deveriam considerar medidas de reestruturação do desenho sob
orientação daqueles que são por afetados. Considerando o caso estudado, o fato
de que as preocupações dos habitantes da cidade não sejam tomadas em conta
quando da implantação de projetos e planos urbanos, é uma evidência de que
os interesses econômicos têm prioridade dentro dos entornos e centros urbanos.
Isso demonstra a necessidade integrar os ideais do direito à cidade. O desenho
urbano está focado em fazer edifícios mais seguros para proteger a propriedade
privada enquanto negligencia o direito coletivo das pessoas de viver numa
cidade que lhes transmita segurança.
Infelizmente, nos dois consecutivos à realização da auditoria em Varsóvia,
não houve progressos no sentido de implementar as recomendações feitas pelos
participantes da auditoria de segurança. Embora as autoridades locais tenham
elogiado as recomendações e tenham prometido levá-las em consideração, o
escritório da ONU-Hábitat de Varsóvia ainda não foi contatado para participar
de qualquer tipo de ação seguinte.
Contudo, apesar da falta de resultados práticos ou progressos locais do projeto
piloto de Varsóvia, o processo de Auditoria de Segurança das Mulheres é útil
como exemplo da importância do processo de planejamento participativo para
assegurar o direito de cada um à cidade. Como afirma Harvey, nós moldamos
Experiencias - Políticas públicas 317
a cidade e a cidade nos molda. Isto nos faz questionar se a cidade se presta a
violência porque as estruturas nas quais vivemos conduzem a tal comportamento
ou se são as prioridades daqueles que estão no controle e a preponderância dos
interesses econômicos de poucos, sobrepostos ao bem-estar de todos, que resulta
na falta de medidas de segurança dentro dos ambientes urbanos. As respostas
das participantes femininas na auditoria de segurança sugerem que a última
alternativa é a verdadeira. Esquinas escuras nas entradas dos edifícios ajudam a
ocultar criminosos que desejam atacar suas vítimas, e os que planejam a cidade
e as autoridades devem estar cientes desses riscos e eliminar estas ameaças com
desenhos urbanos melhores. Certamente as estruturas urbanas não são as únicas
responsáveis pela violência que nelas ocorre, de modo que as políticas públicas
também devem considerar os fatores sociais que tornam determinados grupos de
pessoas mais vulneráveis a ameaças e incidentes de violência. Quando analisamos
o desenho urbano e o entorno através do processo de planejamento participativo
como exercício do direito à cidade, é absolutamente necessário considerar e incluir
as pessoas que usam esses espaços, as quais usualmente compõem uma grande
mistura de diversas identidades. Todos os habitantes de uma cidade deveriam
estar protegidos e deveria ser o direito de todas e todos, especialmente daqueles
grupos mais vulneráveis, identificando suas preocupações nos ambientes em
que vivem. Este é o chamado comum do direito à cidade; o direito a usufruir e
participar da criação de cidades seguras para todos os habitantes.
Referências
Bobak, Przemyslaw. Email communication. UN Habitat Warsaw Office. April 16, 2009.
Fenster, Tovi. “The Right to the Gendered City: Different Formations of Belonging in
Everyday Life” in Journal of Gender Studies, vol. 14, no. 3, pp. 217-231. November
2005.
Harvey, David. “The Right to the City” in International Journal of Urban and Regional
Research, vol. 27, iss. 4. 3 pages. December 2003.
Metropolitan Action Committee on Violence Against Women and Children, Community
Safety Program: http://www.metrac.org/programs/safe.htm
United Nations Human Settlements Programme. “Women’s Safety Audits for a Safer
Urban Design: Results of the pilot audit carried out in Centrum, Warsaw”. UN
Habitat Warsaw Office. 18 pages. October 2007. http://www.unhabitat.org/
downloads/docs/5544_32059_WSA%20Centrum%20report.pdf
Graz, en Austria, Cidade dos Direitos Humanos
Marie Bailloux
Caldeirão de Culturas
Graz, capital da Styria, está situada no Sul da Áustria e faz fronteira com Eslovênia
e Hungria, repousando no ponto de encontro de muitas culturas européias. A
influência românica, eslava, magiar e alpino-germânica formou uma identidade
cultural única. É também um lugar de encontro internacional, intercultural e de
diálogo religioso. Graz possui aproximadamente 300.000 habitantes.
Em setembro de 2000, o Ministro de Relações Exteriores da Áustria,
Sr. Benito Ferrero-Waldner, anunciou na 55ª Assembléia Geral das Nações
Unidas que Graz seria a “Primeira Cidade em Direitos Humanos na Europa”.
Em fevereiro de 2001, endossado pela Administração Municipal, a Câmara
Municipal de Graz tomou a decisão unânime de declará-la Cidade dos Direitos
Humanos e comprometeu-se em tomá-los firmemente como base para qualquer
decisão ou ato, de modo que os padrões estabelecidos pelos direitos humanos
serão respeitados em qualquer decisão ou ato dos líderes. Esse compromisso,
implementado depois de um processo de muitos anos, tem sido monitorado pelo
Centro de Treinamento e Pesquisa de Direitos Humanos e Democracia (ETC):
em fevereiro de 2001, ETC e as mais importantes instituições e organizações de
Graz (Organizações, universidades, instituições políticas, etc.) formaram um
Comitê Diretivo (representando todos os setores da sociedade), assumindo a
tarefa de guiar o processo. Por este motivo, uma análise do contexto, problemas
sobre Direitos Humanos e boas práticas foi elaborada, seguindo um programa
de ações estratégico antes desenvolvido, nominando todos os atores, Estado e
toda a comunidade envolvida no assunto para então definir os passos futuros no
desenvolvimento de Graz em direção à Cidade dos Direitos Humanos.
320 Cidades para tod@s
Para os direitos vulneráveis e contra a discriminação
Uma importante lista de atividades humanitárias e sociais foi elaborada para
qualificar Graz no processo de transformar-se numa Cidade de Direitos Humanos.
Alguns exemplos: com a ajuda da iniciativa privada e de ONGs buscou-se prover
alojamento e serviços para pessoas sem-teto, assim como o mínimo de apoio
social para os que necessitassem; a cidade também apoiou vários projetos de
ONGs relacionados à violência urbana, abuso de drogas, paz e desenvolvimento.
No que se refere à receptividade a refugiados, em dezembro de 2001 Graz
recebeu o prêmio de Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR) como a cidade mais amigável para os refugiados na Áustria, sendo
que também recebeu refugiados da ex-Iugoslávia e, mais particularmente,
da Chechênia. Algumas ONGs estão especialmente dedicadas a apoiá-los,
patrocinadas por fundos privados ou públicos. Numa ação conjunta com a
International Pen Club1, Graz também ofereceu bolsas de estudos para escritores
asilados numa iniciativa de “Cidades de Refugiados”.
Conseqüentemente, movimentos de direita estão reagindo com muita
violência e racismo extremista, evidenciando sua condição de estrangeiros e
refugiados.
Como forma de lutar contra o racismo e a discriminação, a cidade de Graz
implementou a “Comissão dos Sábios” para acusar casos identificados de abusos
dos direitos humanos. Esse órgão denuncia publicamente todas as publicações,
documentos ou discursos que possam ser considerados xenófobos através de uma
conferência mensal de imprensa. Outra medida é o estabelecimento da primeira
Câmara representante de estrangeiros e imigrantes que vivem em Graz, além de
seminários contra a discriminação racial com a participação de EU Monitoring
Centre against Racism and Xenophobia2.
Em termos de tolerância religiosa, a cidade representa uma plataforma para
o diálogo inter-religioso como comprovam os seguintes eventos: Visita do Dalai
Lama como parte de um encontro inter-religioso, Encontro da Juventude 2006,
Encontro Mundial de Imans em 2003, Conselho Consultor Inter-religioso que
acontece várias vezes ao ano, etc.
Lista de Patrimônio da Humanidade
Desde 1999, Graz foi reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da
Humanidade, graças ao centro antigo da cidade bem preservado e seu conjunto
1
2
P.E.N., abreviatura de Poets, Essayists and Novelists (Poetas, Ensaístas e Romancistas), é uma
associação internacional de escritores fundada em 5 de outubro de 1921 com o objetivo de
promover a literatura.
Centro de Monitoramento contra Racismo e Xenofobia
Experiencias - Políticas públicas 321
arquitetônico único estritamente protegido por dois serviços especializados
encarregados da salvaguarda e preservação permanentes do centro histórico. Tais
serviços regulam e controlam os trabalhos empreendidos, responsabilizandose pelos projetos de reabilitação e gestão do Programa de Renovação Urbana,
além do controle geral do tráfego e estacionamento de veículos, definindo as
áreas reservadas aos pedestres; monitorando o leito do Rio Mur para prevenir
inundações; controlando o turismo para preservar o modo de vida dos habitantes
locais.
Graz é um exemplo de cidade com planejamento bem-sucedido em promover
e dinamizar a vida social, ao passo que mantêm séculos de harmoniosa
integração de edifícios antigos e estilos arquitetônicos subseqüentes, com áreas
verdes públicas que tornam o ambiente amigável, conservando a escala humana
na cidade moderna contemporânea. Construções novas e modernas, símbolos
do dinamismo e crescimento, criadas por renomados arquitetos, são autorizadas
com elaborada prudência e submetidas a concursos, estando sempre controladas
por associações de proteção dedicadas à conservação da cidade histórica.
Graz é também uma das duas cidades européias, numa lista de 17, a ser
integrada no Programa de Cidades dos Direitos Humanos do Movimento pela
Educação dos Direitos Humanos (PDHRE), fundado em 1989 e que “busca
fornecer uma estrutura para um debate global sério entre grupos que trabalham
pela justiça social e econômica”.
Em 2003, Graz foi nomeada “Capital Cultural da Europa” pelo EU Ministério
da Cultura.
Prêmio dos Direitos Humanos
A cidade de Graz criou um prêmio, a nível local, para as realizações excepcionais
relacionadas aos direitos humanos a ser oferecido a cada dois anos. Seu estatuto
define o prêmio como: “Além de reconhecer os ganhadores, o “Prêmio dos
Direitos Humanos de Graz” deve servir permanentemente como âncora na busca
de maior justiça tanto na realização dos direitos humanos aos olhos do público
como no propósito ativo que as cidades e comunidades locais devem levar em
conta”. A Federação Ombubsmen3, por exemplo, ganhou o prêmio em 1997 por
uma decisão unânime pelo trabalho de proteção dos direitos humanos na Bósnia
e Herzegovina no período 1995-1997.
3
Ombudsman é um profissional contratado por um órgão, instituição ou empresa que tem a função
de receber críticas, sugestões e reclamações e deve agir em defesa imparcial da comunidade.
322 Cidades para tod@s
Um exemplo de Boas Práticas pelo respeito aos direitos humanos
Desde 1997, a arena de esportes local foi nomeada Estádio Arnold Schwarzenegger,
como lealdade ao filho de um lavrador pobre e celebridade internacional educada
em Graz, sempre identificado com seu lugar de origem. Schwarzenegger, porém,
depois de tornar-se governador da Califórnia, recusou-se a comutar a sentença
de morte para o líder de uma gangue de Los Angeles, Stanley Tookie Williams,
que foi executado nesse estado no ano de 2005. A reação da Câmara Municipal
de Graz, considerando a pena de morte como uma prática medieval e inumana,
foi remover o nome de Arnold Schwartzenegger de 15.000 assentos do estádio.
Graz concentrou-se na implementação de muitas políticas promovidas de
acordo com procedimentos da Carta pelo direito à cidade: proteção dos mais
vulneráveis, gestão democrática da propriedade, empenho contra a discriminação
e segregação social, direito coletivo à moradia e acessibilidade aos serviços,
estímulo às boas práticas com relação aos direitos humano através de premiações.
Ao nível local, a cidade de Graz tem gerado instrumentos legais com o objetivo
de consolidar os direitos humanos no contexto urbano, focando a inclusão e
proteção das populações mais vulneráveis, promovendo o diálogo e convivência
entre múltiplas comunidades, reconhecendo sua dignidade e respeitando suas
diferenças culturais e religiosas. Ao mesmo tempo, há um empenho da cidade
contra a degradação ambiental e também a promoção do direito a que se usufrua
de espaços urbanos sustentáveis. A condenação de práticas injustas e xenófobas
num monitoramento permanente mostra a clara tentativa de implementar o
respeito aos direitos humanos e a integração da justiça na vida cotidiana dos
habitantes e na gestão urbana.
Na área econômica, social, cultural, política e espacial, Graz parece almejar o
usufruto equitativo da cidade pelos seus habitantes, independente de sua origem
étnica, crença ou classe social, empenhando-se em estabelecer as bases para o
direito à cidade na Europa como um modo de vida, permitindo aos habitantes
apropriar-se de sua cidade, monitorando as decisões governamentais no que se
refere à construção ou preservação da cidade que eles desejam viver.
Referências
Bernstein, Richard. “A Schwarzenegger backlash in Austria”. The New York Times.
December 27, 2005. http://www.iht.com/articles/2005/12/26/news/austria.php.
Europeprize. “Assemblée générale 2006, Graz: Compte rendu des résultats”. May 20,
2006. http://www.europeprize.eu/fr/?p=89.
FriedensBuro Graz. http://www.friedensbuero-graz.at/cms/index.php?id=119.
Experiencias - Políticas públicas 323
FriedensBuro Salzburg. http://www.friedensbuero.at.
Habitat International Coalition. “World Charter for the Right to the City”. 1995. http://
www.hic-net.org/document.php?pid=2422.
Office of the High Representative and EU Special Representative. “Human Rights Report
23-29 June 97”. June 23, 1997. http://www.ohr.int/ohr-dept/hr-rol/thedept/
hr-reports/hrcc-hr-rep/97-weekly/default.asp?content_id=5051.
Schoibl, Heinz. “National Report on Homelessness 2003 Austria”. European Federation of
National Organisations Working with the Homeless, FEANTSA. 2003. http://www.
feantsa.org/files/national_reports/austria/austria2003_statistics_update.pdf.
Stadt Graz. “Graz Awards and Honors”. http://www.graz.at/cms/ziel/606033/EN.
The People’s Movement for Human Rights Learning. “Human Right Cities - a practical
way to learn and chart the future of humanity”. 2007. http://www.pdhre.org/
projects/hrcommun.html.
Logo movimento Cittaslow (Cidade Lenta)
Elogio à lentidão : desaceleremos a cidade!
O movimento “Cittaslow” (Cidade Lenta)
Charlotte Mathivet
Em 1986 Carlo Petrini funda na Itália o movimento Slow Food (alimentação
lenta) para lutar contra a uniformização dos sabores, a má qualidade da comida
rápida produto da globalização e da “cultura” McDonald’s. Em Paris, naquele
mesmo ano, foi oficialmente constituído o movimento Slow Food (alimentação
lenta)mediante a redação de um manifesto assinado por delegados de 15 países.
Mais tarde, em 1999, o movimento Slow estendeu-se à cidade e aos problemas urbanos. O lema era o elogio à lentidão, numa altura em que a mesma está
pouco na moda, afogada sob os termos de eficácia, rentabilidade, crescimento.
Este movimento trouxe à cidade uma nova abordagem para a mesma, que em
vez de facilitar a rapidez, os intercâmbios estritamente funcionais e muitas vezes
mercantis, dá a possibilidade aos habitantes de tomar o tempo de aproveitar
sua existência, criar novos espaços propícios às relações humanas, a todo tipo
de reflexão e de ação difíceis de realizar rapidamente, na urgência e no stress.
Foi desta maneira que o movimento slow, que começou por interessar-se pela
comida, estendeu-se à cidade, mas também à viagem, à educação, à cultura e até
ao sexo!
O objetivo deste movimento vasto é de criar uma maior qualidade de vida
para todos, de (re)encontrar a ideia de bem-viver.
Em que consiste uma cidade lenta?
O manifesto Cidade Lenta tem setenta recomendações e obrigações. Eis as
principais:
- Valorização do patrimônio urbano histórico, evitando a construção de
novos prédios.
- Redução dos consumos energéticos.
326 Cidades para tod@s
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Promoção das tecnologias ecológicas.
Multiplicação dos espaços verdes e espaços de lazer.
Limpeza da cidade.
Prioridade aos transportes coletivos e outros transportes não poluentes.
Diminuição do lixo e desenvolvimento de programas de reciclagem.
Multiplicação das zonas reservadas aos pedestres.
Desenvolvimento de comércio vicinal.
Desenvolvimento de infraestruturas coletivas e equipamentos adaptados
aos portadores de deficiência e para todas as faixas etárias.
- Desenvolvimento de uma verdadeira democracia participativa.
- Preservação e desenvolvimento dos costumes locais e dos produtos
regionais.
- Exclusão dos O. G. M. (Organismos Geneticamente Modificados)
Os principais aspectos deste manifesto mostram que ele critica de fato a
globalização dos intercâmbios que tem contribuído a uma uniformização
crescente dos modos de vida e de pensamento pelo mundo inteiro. No entanto,
mais além a desta constatação e da rejeição às cidades globalizadas, poluídas e
que procuram a rapidez a tudo custo, o movimento propõe soluções concretas
para instaurar um novo estilo de vida.
Para conseguir isto, o movimento Cidade Lenta baseia-se no nível local. Perante
a globalização, os militantes das cidades lentas apostam no desenvolvimento
local, seja a nível político através dos municípios, ou a nível econômico mediante
acordos que favoreçam os produtos regionais.
Esta ideia baseia-se na vontade de criar maneiras de viver juntos, compartilhar,
revitalizar o tecido social perdido em cidades onde os vizinhos não se conhecem
e onde as atividades sociais reduzem-se a uma relação quase inevitável com
os comerciantes. Este objetivo do movimento Cidade Lenta pretende voltar
a encontrar uma identidade própria para a cidade, que possa distinguir-se do
exterior e estar reconhecida e apreciada do interior pelos seus próprios moradores.
Concretamente, as cidades que fazem parte do movimento Cidade Lenta
promovem a utilização de tecnologias que melhoram a qualidade do meio
ambiente e do tecido urbano, assim como a salvaguarda da produção local de
alimentos e de vinhos para favorecer a identidade local da região. Além disto,
Cidade Lenta procuram promover o diálogo e a comunicação entre os produtores
e os consumidores. Cidade Lenta incentiva a produção de alimentos naturais e
a utilização de técnicas respeitosas ao meio ambiente. A adesão à rede Cidade
Lenta implica melhorias concretas da qualidade de vida dos habitantes. Eis
alguns exemplos:
Experiencias - Políticas públicas 327
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Meio ambiente: instauração de controladores de ar; planos de redução
do barulho; aplicação das novas tecnologias em matéria de reciclagem.
Infraestruturas : desenvolvimento de zonas verdes; acesso garantido aos
portadores de deficiência ; banheiros públicas de acesso livre; horários
municipais coerentes ; desenvolvimento de ciclovias.
Urbanismo: planos de reabilitação dos prédios históricos; utilização
de produtos reciclados; valorização dos centros urbanos com caráter
histórico.
Valorização dos produtos locais: criação de “mercados de produtos
locais”; rótulos de qualidade para agricultura biológica; melhoramento
da qualidade da alimentação nos restaurantes escolares; apoio às
manifestações culturais tradicionais.
Hospitalidade: instalação de sinais internacionais; percursos turísticos
guiados; presença de parques de estacionamento vigiados próximo dos
centros das cidades; controle dos preços dos hoteis e restaurantes.
Sensibilização: presença do logotipo “Cidade Lenta” sobre todos os
documentos oficiais; cursos para despertar os gostos culinários nas
escolas; promoção de programas como atividades de lazer para as
famílias, ou visitas a domicílio para pessoas idosas e doentes.
Em suma, para entender os objetivos deste movimento, é interessante citar
a Carta que afirma: “Estamos à procura de cidades animadas por pessoas que
tiram o tempo para desfrutar de certa qualidade de vida. Cidades nas quais se
aprecia a qualidade dos espaços públicos, dos teatros, das lojas, dos cafés, dos
albergues, dos prédios históricos e de paisagens não poluídas. Cidades onde
o conhecimento artesanal é utilizado cotidianamente e nas quais a lentidão, a
passagem das estações se reflita na disponibilidade dos produtos locais conforme
a época do ano, cidades onde a alimentação é sadia, onde a maneira de viver é
sadia, enfim onde se pode usufruir a vida, temas que devem ser fundamentais no
seio da comunidade.”
Como ser uma cidade lenta?
A associação Cidade Lenta é aberta às cidades de menos de 50.000 pessoas. Para
ser membro, uma cidade deve atingir a pontuação de 50% da autoavaliação sobre
os objetivos de Cidade Lenta. Se for aceita, a cidade deve pagar uma contribuição
anual e aplicar os princípios da Carta. Pode então mostrar com orgulho o logotipo
de Cidade Lenta: um caracol levando nas suas costas uma cidade cheia de cores.
A intenção de colocar em rede as cidades que aderem ao projeto corresponde à
328 Cidades para tod@s
vontade de verificar se os compromissos assumidos são de fato respeitados. A
rede dispõe para isso de um órgão de inspetores que fiscalizam periodicamente
o cumprimento das obrigações.
Existem agora redes Cidade Lenta nos seguintes países: Áustria, Reino Unido,
Austrália, Alemanha, Coréia do Sul, Noruega, Espanha, Polônia e evidentemente
Itália, com um total de setenta cidades italianas e mais de vinte outras no mundo,
até na Nova Zelândia.
Cidade Lenta : Uma aplicação concreta do direito à cidade
Uma das ações principais de uma cidade lenta é a participação dos seus habitantes.
Cada um é chamado a fazer parte deste projeto, num espírito de abertura, de
tolerância para com o outro e, evidentemente, respeitando o ritmo particular que
toma a partilha de ideias e a criação em grupo de projetos e propostas novas,
ou seja, lentamente. Assim, os militantes do movimento acreditam que tanto a
democracia e a educação como a tomada de decisão coletiva requerem lentidão.
Além disso, a ecologia, o respeito à natureza, a relação entre seres humanos e a
natureza correspondem a uma escala diferente daquela dos seres humanos na sua
dimensão individual. Por isso, o elogio da lentidão implica também em valorizar
o tempo indispensável à reflexão e à deliberação. O fato de que a participação seja
um aspecto inerente à criação de cidades lentas é um ponto muito interessante
para relacionar o movimento Cidade Lenta e o direito à cidade.
A meu ver, o movimento Cidade Lenta pode ser considerado como uma
experiência acabada do direito à cidade. Com efeito, o tema da participação,
que está presente na Carta de Cidade Lenta, é também um ponto fundamental
da Carta Mundial do Direito à Cidade. A constatação que os cidadãos devem
recuperar a cidade, reconquistá-la, não deixá-la nas mãos das grandes empresas,
dos carros, das fábricas poluentes, e das grandes empresas imobiliárias, mas pelo
contrário, lutar para impor uma outra visão da cidade, compartilhada, acolhedora
e cheia de lugares públicos onde é possível se encontrar. O tema da participação
não é o único aspecto do direito à cidade que a rede Cidade Lenta desenvolve e
implementa: a vontade de criar uma identidade, de ser feliz e orgulhoso de onde
se vive, este sentimento de pertencer a um lugar constitui também um ponto
forte do direito à cidade.
O decrescimento aplicado à cidade
Parece-me importante mostrar aqui a relação entre o movimento Cidade Lenta,
o direito à cidade e o decrescimento. O decrescimento, se é possível definir este
paradigma-movimento-arte de viver em algumas palavras, chama atenção para
Experiencias - Políticas públicas 329
agir sem perder mais tempo na luta contra os múltiplos efeitos negativos do
sistema capitalista, do neoliberalismo e do crescimento. Primeiro, trata-se de
questionar o mito que domina atualmente, o pensamento único que pretende fazer
dos conceitos de crescimento, progresso, desenvolvimento (e das consequências
concretas ligadas aos mesmos) certezas inevitáveis, sem alternativas possíveis
nas nossas vidas. Mas estas existem como o mostra também o direito à cidade:
o decrescimento é uma bandeira de luta para defender a possibilidade de que
outras relações Norte-Sul, outra economia, outras relações sociais, outras relações
entre ser humano e meio ambiente e outras cidades são possíveis. Portanto, é
interessante poder aprofundar as experiências já implementadas, estendê-las
e ampliar as reivindicações apropriando-se do conceito e do lema do direito à
cidade. Isto permitiria confrontar estas experiências com outras em diferentes
regiões, como a América Latina por exemplo.
Está claro que este movimento Cidade Lenta é antes de tudo a obra de
militantes e de certos políticos sensibilizados aos temas ecológicos e sociais,
mas é interessante notar o esforço aparente do atual presidente dos EstadosUnidos da América, Barack Obama, para não continuar com a expansão urbana.
Com efeito, o novo governo afirmou que o crescimento urbano não é a opção
para remediar os problemas sociais e econômicos das cidades num contexto
de crise. É neste sentido que uma nova metodologia de planejamento urbano
está sendo organizada, seguindo o lema “Reduzir para sobreviver” (“Shrink
to Survive”). Um dos encarregados desta missão chama-se Dan Kildee, que
é o tesoureiro do bairro de Genesee na cidade de Flint, uma das cidades mais
pobres do país. Ele tem implementado este sistema para esta cidade e procedeu à
destruição de habitações em áreas residenciais e zonas industriais abandonadas
por causa da crise. Esta nova visão do planejamento urbano pretende promover
cidades menores, a fim de poder dedicar mais meios para o desenvolvimento
social, poupando, por exemplo, as despesas de coleta de lixo (os empregados
andavam muitas vezes quilômetros sem encontrar nenhum coletor de lixo).
Neste sentido, a administração Obama prevê atualmente a aplicação deste
sistema em cinquenta cidades do país na região dos antigos centros industriais
que foram particularmente afetados pelas várias crises e onde certos bairros
estão completamente abandonados. Está previsto a substituição destes bairros
abandonados por parques públicos e florestas.
Estas várias experiências são muito interessantes e constituem uma pequena
esperança no panorama de cidades tentaculares infectadas pela pobreza e as
desigualdades. No entanto, deve-se ter cuidado para não criar cidades museu
que não deixam a possibilidade de que todos se expressem. De fato, o movimento
Cidade Lenta adverte que uma cidade lenta não deve fechar-se, mas sim trabalhar
para promover o nascimento de novas solidariedades entre territórios, entre
os bairros, entre as cidades e os subúrbios, entre as cidades e o meio rural e,
330 Cidades para tod@s
claro, entre as nações e os continentes. Além disso, como afirma Paolo Saturnini,
membro de Cittaslow internacional e ex-prefeito de Greve, deve-se evitar o
crescimento desmedido da cidade, levando a cabo uma política de urbanização
baseada na limitação de novas edificações e, sobretudo, na reutilização dos
prédios existentes para novas funções.
Isto é de fato um aspecto que poderia ser criticado nos projetos “cidades
reduzidas” (“shrink city”) da administração Obama. Esta perspectiva e as ações
que podem resultar, por exemplo, na destruição de habitações desocupadas, não
deve fazer esquecer o aspecto trágico destes bairros abandonados. Trata-se de
bairros periféricos onde famílias de classe média baixa tinham comprado suas
casas, endividando-se durante muitos anos, que não conseguiram continuar
pagando por causa da crise, e cujas casas foram vendidas e hipotecadas para
reembolsar as suas dívidas. Isto constitui uma verdadeira tragédia social criada
pelo sistema capitalista que provocou esta crise. Portanto seria bom não se
esquecer disto quando os políticos apresentam agora projetos de construção de
espaços verdes nestes mesmos lugares. Parece assim que, mais do que destruir
casas, é urgente refletir claramente sobre nossas concepções de cidade e, num
plano geral, o sistema que nos rege, a fim de construir uma sociedade mais justa.
Referências
Cittaslow Charter: www.cittaslow.org.uk/images/Download/cittaslow_charter.pdf
Cittaslow Movement: http://www.cittaslow.net
Habitat International Coalition. “El crecimiento no es la opción: hay que achicar las
ciudades!”. 2009. http://www.hic-net.org/articles.php?pid=3124.
Habitat International Coalition. “Des villes lentes, vite!”. Le Journal de la Décroissance,
no. 47. March 2008. Décroissance et villes lentes: http://www.hic-net.org/news.
php?pid=3146.
Habitat International Coalition. “La ville lente c’est possible ici et maintenant”. Le Journal de
la Décroissance, no. 47. March 2008. http://www.hic-net.org/news.php?pid=3147.
Habitat International Coalition. “CittaSlow contre Ecopolis”. Le Journal de la Décroissance,
no. 47. March 2008. http://www.hic-net.org/news.php?pid=3148.
Leonard, Tom. “US cities may have to be bulldozed in order to survive”. Telegraph.co.uk.
June 12, 2009. http://www.telegraph.co.uk/finance/financetopics/financialcrisis
/5516536/US-cities-may-have-to-be-bulldozed-in-order-to-survive.html.
Biografias
AfiA AfenAh é consultora de planejamento especializada em questões habitacionais e de desenvolvimento
sócio-econômico. Durante os últimos três anos vem trabalhando como consultora em planejamento em
Londres, em planejamento urbano e regional, assim como em desenvolvimento econômico e social com
ênfase especial à habitação de baixa renda. Afia é graduada pela Escola de Estudos Orientais e Africanos e
pela Unidade de Planejamento do Desenvolvimento (Universidade de Londres – UCL) em Antropologia Social
e Economia do Desenvolvimento na qual escreveu sua dissertação de mestrado sobre a tentativa de despejo
forçado em Old Fadama, Gana. Afia demonstra uma grande preocupação pela questão do direito à terra e à
moradia e pelo papel dos movimentos urbanos como redes de resistência. Está cada vez mais comprometida
com as organizações formais e informais, incluindo Habitat International Coalition (HIC, na sigla em inglês) e
Reclaiming Spaces, redes que buscam mudar as relações de poder existentes no contexto urbano.
[email protected]
MArie BAilloux é socióloga, especializada em antropologia comparada das religiões. Estudou no Institut
Catholique de Paris e na École Pratique des Hautes Etudes de Paris/Sorbonne. Vive no Chile desde 1993
fazendo voluntariado em diferentes organizações da sociedade civil dedicadas a dar apoio a famílias em
situação de alto risco psico-social em assentamentos urbanos precários da Grande Santiago, defendendo os
direitos dos moradores a educação, saúde, moradia digna e segurança de posso. Marie é parte da equipe do
Secretariado Geral de Habitat International Coalition desde 2004.
[email protected]
Jordi BorJA é geógrafo urbanista, ocupou cargos do governo na cidade de Barcelona (1983-95) e está
vinculado ao movimento popular urbano desta cidade desde finais dos anos 60. Membro do Partido Socialista
Unificado da Catalunya e do Partido Comunista da Espanha, fez parte de órgãos de direção como responsável
pelos movimentos populares e pela política municipal desde os anos 70 até os anos 80.
Participou dos primeiros encontros que debateram o direito à cidade a partir de meados dos anos 90 e de
inúmeras conferências internacionais como, por exemplo, o Fórum Urbano Mundial, em 2004, e o Fórum
Mundial das Culturas, em Barcelona. Colaborou de várias maneiras com HIC, organizando encontros de
organizações populares urbanas.
Dentro de sua longa biografia sobre questões urbanas e movimentos sociais podemos citar: Revolución
urbana y derechos ciudadanos– a ser publicado no final de 2010 – , La ciudad conquistada (2003), Urbanismo
en el siglo XXI (2001), Local y global: La gestión de las ciudades en la era de la información com Manuel
Castells (1998).
Shelley BuckinghAM, de Toronto, Canadá, é licenciada em Desenvolvimento Internacional e Estudos de
Gênero pela Universidade Trent. Estudou no Equador durante um ano de intercâmbio e trabalhou de maneira
voluntária no Departamento de Migração da Pastoral Social de Cuenca. Durante quatro anos trabalhou
para a Corporação de Moradia da Comunidade de Toronto, um provedor de moradias subsidiadas sim fins
lucrativos. Trabalha na Secretaria Geral de Habitat International Coalition, no Chile, desde setembro de 2008,
coordenando projetos de direitos das mulheres à moradia e à terra.
[email protected]
332 Cidades para tod@s
María Laura Canestraro, Licenciada em Sociologia (Universidad Nacional de La Plata, UNMP, 2002).
Mestre em Ciência e Filosofia Política (Universidad Nacional de Mar del Plata, 2008). Doutoranda em Ciências
Sociais (UBA). Bolsista de CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) no IIGG
(Instituto de Investigaciones Gino Germani) da Universidad de Buenos Aires (UBA) e ex-bolsista de Lincoln
Institute of Land Policy. Docente e extensionista da graduação de Sociologia da UNMP. Sócia-fundadora da
Associação Civil Habitat e Vida (2009) da cidade de Mar del Plata, orientada à promoção da produção integral
e sustentável do hábitat.
Sua pesquisa está centrada nos conflitos pela apropriação do espaço urbano, enfatizando a questão
normativa. Tem sido conferencista em congressos locais, nacionais e latino-americanos, publicando diversos
artigos em revistas e livros sobre a problemática habitacional.
[email protected]
Giuseppe Caruso é pesquisador de pós-doutorado no Centro de Excelência em Pesquisa sobre
Governança Global, Universidade de Helsinki. Estudou Antropologia Cultural na Universidade de Roma “La
Sapienza” e Estudos de Desenvolvimento na Universidade de Londres. Escreveu sobre os processos de
transformação na encruzilhada da modernidade e a tradição na Amazônia peruana entre os Shipibo-Conibo
e sobre o papel das organizações da sociedade civil e os movimentos no desenvolvimento internacional.
Pesquisou sobre o Fórum Social Mundial desde 2002 e escreveu sobre os conflitos, a cultura organizativa, as
políticas de diferença e o cosmopolitismo. Também pesquisou sobre o uso dos softwares livres na sociedade
civil e atualmente está investigando sobre o direito à cidade e os movimentos pelo direito à alimentação na
Índia e no mundo.
[email protected]
Alejandra Elgueta Astaburuaga é geógrafa da Universidade do Chile e pesquisadora colaboradora do
Centro de Estudos Críticos Urbanos.
[email protected]
Patricia Ezquerra Aravena é politóloga egressa da Universidad Central de Chile e diplomada em direitos
econômicos, sociais e culturais e políticas públicas do Collège Universitaire Henry Dunant e Fundación Henry
Dunant para América Latina. Durante os últimos anos tem trabalhado na área de governabilidade democrática
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Chile, prestando assessoria, entre outros, ao
projeto “Desminado Humanitario em Chile”, “Apoyo para el Cambio Legislativo de Amnistía en Chile”, assim
como ao projeto regional “Expansión de una red de actores en América Latina para fortalecer la democracia” e,
atualmente, ao projeto “Juventud, Equidad e inclusión Social en Chile: Hacia la consecución de los Objetivos
de Desarrollo del Milenio”.No ano de 2007 foi co-editora da revista estudantil “Está en Nosotros” e, no ano de
2009, da iniciativa de economia solidária “Comprando en Red” do grupo “MicroEspacios”.
[email protected]
Mobola Fajemirokun é advogada, fundadora e diretora executiva da Rede de Iniciativas de
Desenvolvimento (DIN, na sigla em inglês), uma ONG independente registrada e membro de HIC. Está
localizada na mega-cidade de Lagos, Nigéria. Graduada em direito pela Universidade de Lagos, começou
sua carreira profissional no Colégio de Advogados da Nigéria em 1984 e em 1990 lhe foi outorgado o título
de Doutora em Filosofia (Ph.D.) da Universidade de Londres. Também possui um Mestrado em Direito pela
mesma Universidade. O trabalho de DIN está centrado na pesquisa qualitativa para influenciar a política
como um aspecto integral de sua missão de interesse público. As questões chaves de seu programa incluem
Biografías 333
a equidade de gênero, a sustentabilidade urbana e ambiental e a promoção dos direitos econômicos e
sociais. Membro da Fundação Ashoka desde 2002, a Dra. Fajemirokun foi profissional em residência do
Centro Bellagio da Fundação Rockefeller desde setembro de 2009. Atualmente é representante da Rede
Mulher e Habitat de Habitat International Coalition (HIC-WAH na sigla em inglês)
[email protected]
Tovi Fenster, professora é a Diretora do Laboratório de Planejamento para o Espaço com as Comunidades
(PEC na sigla em inglês), pertencente ao Departamento de Geografia da Universidade de Telaviv. Entre
2007 e 2009, foi Diretora do Programa de Estudos sobre a Mulher e o Gênero pertencente ao Conselho
Nacional de Mulheres Judias (NCJW). Além disso, publicou artigos e capítulos de livros sobre etnicidade,
cidadania e gênero nos processos de planejamento e desenvolvimento. É também editora do livro Género,
Planificación y Derechos Humanos (1999, Routldege) e autora de La Ciudad Global e La Ciudad Sagrada:
Relatos sobre Conocimiento, Planificación y Diversidad (2004, Pearson). É também uma das fundadoras e
primeira Presidenta de Bimkom – organização que defende o direito ao planejamento em Israel.
[email protected]
Joseph Fumtim é conhecido em Camarões por sua atividade como editor e suas colunas sobre questões
sociais nos jornais. Como escritor é autor de ensaios: o último publicado é “Camarões, Meu País”(Edições
Ifriqiya, 2008). Fundou em 1998 em Yaundé o Coletivo Interafricano dos Habitantes (CIAH-Camarões), do
qual é atualmente Presidente do Conselho de Administradores depois de haver sido coordenador durante 10
anos. Desde 2002, Joseph é membro do Conselho de HIC como representante suplente de África Francófona.
Sua atividade na HIC se desenvolveu especialmente na luta pelo direito humano à moradia adequada, com a
denúncia e difusão para a opinião pública das ações de despejo e demolição dos bairros precários de Yaundé.
Com o CIAH-Camarões e o apoio da HIC e SELAVIP iniciou o projeto “Habitat sustentável e equitativo em
Yaundé”, que permite que, a cada ano, 50 famílias se beneficiem do melhoramento de seu entorno vital.
[email protected]
Maria Cristina Harris graduou-se em 2008 na Queen’s University no Canadá, onde completou uma
licenciatura em Estudos de Desenvolvimento Global e Geografia. Depois de sua graduação, fez seu estágio,
através de Rooftops Canadá, no Secretariado Geral de Habitat International Coalition em Santiago, no Chile,
onde conheceu muitos casos internacionais de violações dos direitos à moradia e à terra. Suas raízes
colombianas levaram-na a interessar-se pelas lutas dos colombianos para obter terra e moradia adequadas.
Estas experiências motivaram-na a continuar sua formação jurídica, centrando-se no direito internacional e
nos direitos humanos.
[email protected]
Arif Hasan é arquiteto- urbanista independente em Karachi, Paquistão. Estudou arquitetura no Oxford
Polytechnic e em seu regresso a Karachi estabeleceu-se por sua própria conta, de modo que o exercício de
sua profissão evoluiu lentamente para o planejamento urbano e as questões de desenvolvimento. Tem sido
consultor e assessor de numerosas organizações comunitárias locais, organizações não-governamentais
nacionais e internacionais, organismos doadores bilaterais e multilaterais. Desde 1981 está envolvido com
o Orangi Pilot Project, primeiro como Assessor Chefe e mais tarde como Presidente de seu Instituto de
Pesquisa e Formação. É o Presidente do Centro de Recursos Urbanos, em Karachi, desde sua criação em
1989. Foi professor em universidades paquistanesas e europeias, foi jurado de concursos internacionais de
arquitetura e desenvolvimento e é autor de vários livros sobre desenvolvimento e planejamento. Atualmente,
334 Cidades para tod@s
é professor visitante do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade NED, Karachi; e membro
do Comitê Executivo da Asian Coalition for Housing Rights – ACHR (Coalizão Asiática pelo Direito à Moradia),
Bangkok, organização membro de HIC.
[email protected]
Rose Mary Irusta Pérez nasceu na cidade de Oruro, Bolívia. Sua capacidade e liderança a levaram à
presidência da Junta Vecinal de Villa Venezuela (Associação de Moradores da Villa Venezuela) e membro
do Diretório do Distrito Municipal Nº7 da província Cercado. Liderou o Comitê da Água e o Clube de Mães
do mesmo bairro. Incursionou como Secretária Geral da Assembleia Permanente de Direitos Humanos de
Cochabamba (APDHC) e como diretora de Planejamento do Mecanismo de Controle Social de Cochabamba
(MCS-C).
Através de muitos cursos, oficinas, seminários e encontros, tanto dentro como fora do país, adquiriu as
capacidades necessárias para se desenvolver como panelista e conferencista sobre direitos humanos, saúde
e moradia. Foi assim como se tornou membro permanente do Comitê Interdistrital de Mulheres, a Rede
Mulher e Hábitat e defensora dos direitos das mulheres, da criança e dos necessitados.
Atualmente faz parte do diretório de Hábitat para a Mulher, onde exerce o cargo de Coordenadora Geral do
Projeto de Mulheres Líderes de Bairros “Hábitat para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora”.
[email protected]
Yves Jouffe concluiu uma pesquisa pós-doutoral de dois anos no Instituto de la Vivienda (INVI) – Instituto
de Moradia – da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Chile. Pesquisou um grupo
de lares com escassos recursos da periferia de Santiago com o fim de compreender o vínculo que tecem
entre território e moradia, entre deslocamento cotidiano e projeto residencial. Seu interesse profissional e
pessoal conduziu-o a participar de atividades conjuntas de INVI e de HIC no Observatorio de Vivienda y
Ciudade (Obsevatório de Moradia e Cidade). Este sociólogo conta com um mestrado em engenharia em
transporte urbano da École Nationale des Ponts et Chaussées (ENPC, Paris), outro em ciências sociais
aplicadas à cidade (ENPC e Paris 8), além de um Doutorado em sociologia (ENPC) onde analisou as táticas
de mobilidade cotidiana dos trabalhadores precários. Desde 1999 até 2006, isto é, pouco depois de sua
chegada em Paris de sua Bretanha natal, militou na associação ATTAC.
[email protected]
Steffen Lajoie é licenciado em Antropologia pela Universidade da Concórdia; Mestrado em Construção
e Desenho Urbano em Desenvolvimento da Unidade de Planejamento de desenvolvimento, Universidade
de Londres. Atualmente é voluntário de VSO (Voluntary Service Overseas) em Maroua, Camarões, como
assessor organizacional em questões de desenvolvimento no programa de participação e governança
com uma organização local de direitos humanos: Movimento pela Defesa dos Direitos Humanos e pela
Liberdade (MDDHL). Seu trabalho está centrado na transparência, rendição de contas, participação e possui
um interesse particular nos direitos humanos, na educação e nas organizações comunitárias. Em 2006,
colaborou com Coop Hábitat e Villa Esfuerzo para a Campaña Cero Desalojos (Campanha Zero Despejos)
da Aliança Internacional de Habitantes e da Universidade Popular Urbana. Levou a cabo sua pesquisa
de doutorado em Caracas, Venezuela, com os Comitês de Terra Urbana e trabalhou como organizador
comunitário para ACORN Toronto em 2008-2009. Sente-se orgulhoso de ser membro de ACORN Canadá e
é tradutor voluntário da Aliança Internacional de Habitantes.
[email protected]
Biografías 335
Marianne von Lücken é licenciada em Sociologia (Universidad de Buenos Aires, 2008) e pesquisadora
com bolsa de incentivo no IIGG (Instituto de Investigaciones Gino Germani) da UBA.
É membro da Área de Estudos Urbanos do IIGG e participa da equipe de pesquisa coordenada por Maria C.
Rodriguez e Mercedes de Virgilio.
Sua pesquisa enfoca as políticas públicas urbanas e suas conseqüências sociais tomando o caso de Villa
la Maternidad, localizada na cidade de Córdoba, de onde é oriunda. Participou de diferentes jornadas e
congressos de Sociologia.
[email protected]
Uvaldo Mamani, nascido em Potosí, Bolívia, de origem quechua, é teólogo especializado em comunicação
popular, gestão municipal e projetos sociais.
É coordenador do Programa de Governabilidade da Fundação Pró-Habitat, membro de Habitat International
Coalition (HIC) como parte da Rede Nacional de Assentamentos Humanos, RENASEH Bolívia. Dedicou-se a
articulação popular para a realização de direitos humanos tais como a água junto a Associação de Sistemas
Comunitários de Água da Zona Sul ASICA SUR; à moradia junto a Rede RENASEH; e o direito à cidade como
membro promotor do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade em Cochabamba.
Trabalhou em planejamento municipal e de bairro através da comunicação popular na Rádio Pío XII e da
Fundação Pro-Habitat. Com os Missionários Oblatos e Maria Imaculada desenvolveu atividades de formação
com comunidades indígenas Quichés, Quechuas e Aymaras da Guatemala e da Bolívia.
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Peter Marcuse, planejador e advogado, é professor emérito de Planejamento Urbano da Universidade de
Columbia em Nova Iorque. Nascido em Berlim, Alemanha, vive em Waterbury, Connecticut, onde trabalhou
na Comissão de Planejamento Municipal de Los Angeles, Califórnia. Aí foi Presidente dessa mesma
Comissão e em Nova Iorque, onde serviu ao Conselho 9 da Comunidade. Suas áreas de interesse incluem
o planejamento da cidade, a moradia, o uso do espaço público, o direito à cidade, a justiça social na cidade,
a globalização e a história urbana. Está aliado com Right to the City Alliance (Aliança pelo Direito à Cidade)
e Picture the Homeless em Nova Iorque. Recentemente, vem trabalhando em soluções para a crise de
execuções hipotecárias e no planejamento a longo prazo para o crescimento presumido da cidade de Nova
Iorque. Lecionou na Alemanha Ocidental e Oriental, Austrália, África do Sul , Canadá, Áustria e Brasil, além
de possuir extensa publicação.
Charlotte Mathivet é cientista política, mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais pelo
Institut d’Études Politiques de Toulouse, França, e diplomada em direitos econômicos, sociais e culturais
e políticas públicas da Fundação Henry Dunant para América Latina. Vive no Chile onde trabalhou com
mulheres moradoras de assentamentos precários na região de Valparaíso. Publicou, durante seu trabalho na
Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), das Nações Unidas, Los programas de alivio
a la pobreza Puente y Oportunidades. Uma mirada desde los actores, série Políticas Sociais, Nº 134, com
Irma Arriagada (2007). É parte da equipe do Secretariado Geral de Habitat International Coalition e participou
de seminários internacionais como o seminário oficina “Hacia la implementación del derecho a la ciudad”
organizado por HIC e COHRE em Quito, setembro de 2009. Também é parte da equipe do Observatório de
Vivienda y Ciudad, rede que trabalha como espaço de encontro, reflexão crítica e articulação da sociedade
civil, em torno da política habitacional e urbana no Chile.
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336 Cidades para tod@s
Felipe Morales Rivas, é geógrafo pela Universidad de Chile. Trabalha em Santiago, Chile, como
pesquisador da faculdade do Centro de Estudos Críticos Urbanos, um espaço construído pelos estudantes
da Arquitetura e Urbanismo da Universidad de Chile que busca desenvolver o pensamento crítico realizando
pesquisas com as organizações e movimentos sociais orientadas a poder transformar a realidade partindo
do âmbito territorial. É acadêmico da Universidade Metropolitana de Ciencias de la Educación. Faz parte do
Movimento de Pobladores en Lucha.
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Ana Núñez nasceu e reside na cidade de Mar del Plata, Argentina. Sua precoce preocupação moral e
intelectual pelas inumanas condições de precariedade habitacional que de forma crescente caracterizavam o
habitar de grande parte da população de sua cidade, incentivaram-na a graduar-se arquiteta, na Universidade
Nacional de Mar del Plata Já graduada, começou sua atividade profissional como docente e pesquisadora da
Área de Urbanismo da mesma Universidade, continuando de forma ininterrupta até a atualidade.
Posteriormente, graduou-se como mestre e doutora em Ciências Sociais em FLACSO. Atualmente dirige o
Centro de Estudos de Desenvolvimento Urbano, membro da HIC desde junho de 2009. Desse modo, assessora
e acompanha a diferentes organizações sociais, tais como Junta Vecinal Los Sin Techo, a Federación de Tierra
y Vivienda, delegação de Mar del Plata, na sua luta pelo direito à cidade e um habitar digno.
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Enrique Ortiz, arquiteto pela Universidade Nacional Autônoma do México. Dentro de sua trajetória nas
organizações da sociedade civil e do setor público destacam-se: Diretor do Centro Operacional de Moradia y
Povoamento (COPEVI) –– (1965-1976); Subdiretor de Moradia da Secretaria y Secretaria de Assentamentos
Humanos e Obras Públicas(SAHOP) – (1977-1982); Gerente de Operações e Diretor Geral do Fundo
Nacional de Habitações Populares (FONHAPO) – (1983-1987); Secretário Geral e Presidente da HIC (19881998 e 2003-2007, respectivamente). Atualmente colabora com a HIC na promoção de políticas públicas
em apoio à produção social do hábitat, no debate internacional e na gestão do reconhecimento do direito à
cidade como novo direito coletivo. Foi assessor do Instituto de Moradia do Distrito Federal – (1998-2000). É
membro do Conselho Nacional de Moradia , do Comitê Promotor da Carta da Cidade do México pelo Direito
à Cidade – e dos Conselhos Populares de Desenvolvimento Urbano Sustentável –, além da Procuradoria
Social do Distrito Federal.
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Vanessa Pinto Valencia é socióloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Equador e
atualmente está cursando um Mestrado em Desenvolvimento da Cidade na Faculdad Latinoamericana de
Ciencias Sociales FLACSO – Equador. Membro da Fundação “Somos Equador”, instituição membro do
Contrato Social pela Moradia (CSV – Contrato Social por la Vivienda) e responsável do componente da
capacitação e articulação de atores do Programa Paso a Paso – Ciudad.
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Richard Pithouse é escritor e acadêmico sul-africano, cujo trabalho possui uma ligação estreita com
movimentos populares, como o movimento Abahlali baseMjondolo. Ensinou filosofia por muitos anos em
Durban e há pouco tempo aceitou um cargo no Departamento de Estudos Políticos da Universidade de
Rhodes.
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Biografías 337
Claudio Pulgar Pinaud é arquiteto pela Universidade do Chile e acadêmico e pesquisador do Instituto
de la Vivienda – INVI (Instituto de Moradia) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do
Chile. Pesquisador responsável por um projeto de pesquisa sobre a regeneração do tecido social e urbano e
direito à cidade, além de participar de outras equipes de pesquisa do INVI. É professor na graduação do curso
de formação geral “Hábitat e exclusão: a equidade é possível na cidade?” e do curso “Princípios básicos
de hábitat e moradia”. Realizou um curso de especialização em políticas públicas e direitos econômicos,
sociais e culturais da Universidade Henry Dunant e da Fundação Henry Dunant América Latina. É membro
do núcleo operativo da Red-Observatorio de Vivienda y Ciudad (Rede-Observatório de Moradia e Cidade)
como representante do INVI. Participou como profissional voluntário e ativista do Movimento de Pobladores
en Lucha (MPL) e é parte do grupo de arte pública Laboratório Urbano Colaborativo (LUC).
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Henry Renna Gallano, politologo egresso da Universidad Central de Chile e diplomado em direitos
econômicos, sociais e culturais e políticas públicas do Collége Universitaire Henry Dunant e Fundación
Henry Dunant para América Latina. É profissional da área Ciudad, Barrio y Organización de SUR
Corporación de Estudios Sociales y Educación, participando de projetos como “Mapa de conflictos urbanos
en Santiago”, “Observatorio de Vivienda y Ciudad” e “Constructores de Ciudad: formación y redes de
acción”. No ano de 2008, foi bolsista CLACSO-CROP (Comparative Research Programme on Poverty del
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales) no programa “Estrategias contra la pobreza: diseños del
norte y alternativas del sur”. Desde 2009 é membro do “Movimiento de Pobladores en Lucha” (MPL) que
nasce no ano de 2006 na comuna de Peñalolén como nova força política das e dos moradores no Chile.
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Maria Carla Rodriguez é pesquisadora adjunta do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e
Técnicas (CONICET – Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) e membro do Instituto de
Pesquisas Gino Germani (IIGG – Instituto de Investigaciones Gino Germani) da Universidade de Buenos Aires
(UBA). É socióloga, Doutora em Ciências Sociais da Faculdade da UBA e Mestre em Sociologia Econômica.
É militante do Movimento de Ocupantes e Inquilinos (MOI) da Central de Trabalhadores da Argentina
(CTA) desde 1991. Atualmente integra a Mesa de Condução da Regional CTA Capital (2006-2010). Milita
na SELVIP, Secretaria Latinoamericana de la Vivienda Popular (Secretaria Latino-Americana de Moradia
Popular), desde inícios dos anos noventa e assim se integrou a HIC, onde tem participado do Grupo LatinoAmericano de Produção Social do Habitat de HIC-AL, impulsionado na Asemblea Mundial de Pobladores
de México 2000. Tem trabalhado com consultora de organismos nacionais e internacionais em questões de
habitat, desenvolvimento social e gestão do risco. Publicou mais de 22 artigos em revistas especializadas,
vinte capítulos de livros e seis livros sobre habitat, políticas urbanas, autogestão e desenvolvimento sócioorganizativo.
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Silvana Ruiz Pozo, é arquiteta pela Universidad Central del Equador, Urbanista e Planificadora Territorial
pela Université Libre de Bruxelles (Bélgica), obteve um diploma em Arquitetura e Desenvolvimento da
Universidad de San Simón (Bolívia) em convênio com Lund University (Suécia) e possui uma Especialização
em Administração de Instituições de Microfinanças da Universidad Tecnológica Equinoccial (Equador).
É pesquisadora do Centro CIUDAD desde 1980 e desde 2001, Coordenadora do Programa Passo a
Passo-Alianças estratégicas para uma moradia digna, programa que recebeu vários reconhecimentos: foi
selecionado com uma das doze melhores práticas do mundo no concurso internacional de Building and Social
338 Cidades para tod@s
Housing Foundation em 2006 e foi selecionado como Boa Prática no concurso de UN-Habitat e do Município
de Dubai, em 2006. Silvana é coordenadora do Contrato Social pela Moradia (CSV – Contrato Social por la
Vivienda) desde 2005 e autora de um livro e vários artigos sobre moradia popular.
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Nelson Saule Júnior, advogado, doutor em Direito do Estado, dos Coordenador da Área Direito à Cidade
do Instituto Pólis no qual tem desenvolvido estudos, publicações , e capacitações sobre o direito à cidade, em parcerias com o Fórum Nacional de Reforma Urbana brasileiro, HIC e Cohre, e Professor de Direito
Urbanístico do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica -São Paulo.
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Ana Sugranyes é arquiteta e Secretaria Geral de Habitat International Coalition (HIC). É catalã, chilena e
cidadã global. Seu doutorado em políticas habitacionais na América Latina pela Universidade Tecnológica de
Delft (TU-Delft) culmina em mais de trinta anos de competência, incluindo um trabalho de campo de longo
prazo na Guatemala e no Chile. Seu trabalho paralelo com os movimentos sociais urbanos e organizações
centrou-se na formulação, implementação, seguimento e avaliação de programas e políticas de habitação
e de desenvolvimento local, articulando a cooperação internacional com os governos locais, centrais e
regionais, organismos públicos e privados, entidades profissionais e acadêmicas e redes internacionais.
Incluem-se entre suas principais publicações: Los con techo: desafío para la política de vivienda, Edições
SUR, Santiago (2005), e El traje nuevo del emperador: Políticas de Financiamiento de la Vivienda Social en
Santiago de Chile em “Sociedad civil y movimientos sociales. Construyendo Democracias Sostenibles en
América Latina”, Arthur Domike (Editor), Banco Interamericano de Desenvolvimento, Publicações Especiais
sobre o Desenvolvimento Nr.5. (2008)
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Karina Uzzo, advogada, é também membro da Equipe Direito à Cidade do Polis. É doutoranda em Direitos
Humanos e Desenvolvimento pela Universade Pablo de Olavide- Sevilha, Mestrado em Biodiversidad Fundação Carolina - CEU.
Estudou História na Universidade Nacional de La Plata. Trabalhou sete anos como membro da área de
redação do Centro de Estudos e Projetos do Ambiente (CEPA), da Rede Fórum Latino-americano de
Ciências Ambientais (FLACAM). Em julho de 2000 incorporou-se a equipe da HIC no México, colaborando
ativamente na organização da Assembleia Mundial de Moradores realizada nesse mesmo ano. Desde 2003
é coordenadora da HIC- América Latina. Tem participado como oradora em inúmeras oficinas, seminários
e conferências. Escreveu alguns artigos para revistas da América Latina e América do Norte, coordenou –
junto com Enrique Ortiz – a elaboração de diversas publicações: Vivitos y coleando. 40 años trabajando por
el hábitat popular en América Latina (2002), De la marginación a la ciudadanía: 38 casos de producción y
gestión social del hábitat (2005) e El derecho a la ciudad en el mundo. Compilación de documentos relevantes
para el debate (2008), entre otras.
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Lorena Zárate estudou História na Universidade Nacional de La Plata. Trabalhou sete anos como membro
da área de redação do Centro de Estudos e Projetos do Ambiente (CEPA), da Rede Fórum Latino-americano
de Ciências Ambientais (FLACAM). Em julho de 2000 incorporou-se a equipe da HIC no México, colaborando
ativamente na organização da Assembleia Mundial de Moradores realizada nesse mesmo ano. Desde 2003
é coordenadora da HIC- América Latina. Tem participado como oradora em inúmeras oficinas, seminários
e conferências. Escreveu alguns artigos para revistas da América Latina e América do Norte, coordenou –
junto com Enrique Ortiz – a elaboração de diversas publicações: Vivitos y coleando. 40 años trabajando por
el hábitat popular en América Latina (2002), De la marginación a la ciudadanía: 38 casos de producción y
gestión social del hábitat (2005) e El derecho a la ciudad en el mundo. Compilación de documentos relevantes
para el debate (2008), entre otras.
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