Desigualdade de Oportunidades no Brasil - ceres
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Desigualdade de Oportunidades no Brasil - ceres
Desigualdade de Oportunidades no Brasil Carlos Antonio Costa Ribeiro Desigualdade de Oportunidades no Brasil Publicação com apoio do: ARGVMENTVM Belo Horizonte 2009 Todos os direitos reservados à ARGVMENTVM Editora Ltda. © Carlos Antonio Costa Ribeiro Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As idéias contidas neste livro são de responsabilidade do seu autor e não expressam necessariamente a posição da editora. CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE | SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ R367d Ribeiro, Carlos Antonio Costa, 1967Desigualdade de oportunidades no Brasil / Carlos Antonio Costa Ribeiro. – Belo Horizonte, MG : Argvmentvm, 2009. ATENÇÃO N. PÁG. p. ; il. – (Trabalho & desigualdade ; 9) Inclui bibliografia ISBN 978-85-98885-64-3 1. Igualdade na educação – Brasil. 2. Renda – Distribuição – Brasil. 3. Mobilidade social. 4. Sociologia educacional. I. Título. II. Série. 09-1961. CDD: 306.43 CDU: 37.015.2 28.04.09 04.05.09 012341 Concepção Artística da Coleção Trabalho & Desigualdade Paulo André Ferreira de Souza – BELAS ARTES | UFMG CONSELHO EDITORIAL Coleção Trabalho & Desigualdade Celi Scalon | UFRJ Jorge Alexandre Neves | UFMG Magda Neves | PUC-MG Nelson do Valle Silva | IUPERJ Sergei Soares | IPEA Tom Dwyer | UNICAMP ARGVMENTVM Editora Ltda. Rua dos Caetés, 530 sala 1113 - Centro Belo Horizonte. MG. Brasil Telefax: (31) 3212 9444 www.argvmentvmeditora.com.br Para Luciana, Joaquim e Clara Sumário Introdução ...............................................................................................15 CAPÍTULO 1 Desigualdade de Oportunidades Educacionais no Brasil: Raça, Classe e Gênero ...............................................................................21 1. Introdução .....................................................................................21 2. Abordagens Teóricas à Estratificação Educacional e às Relações Raciais no Brasil ...........................................................................................25 3. O Sistema Educacional Brasileiro ....................................................29 4. Dados e métodos ............................................................................33 4.1. Dados....................................................................................33 4.2. Método ..................................................................................38 5. Análise das Tendências na Estratificação Educacional no Brasil .........42 5.1 Mudança nas Taxas de Transição ..............................................42 5.2. Mudança na Estratificação Educacional no Tempo e entre Transições .............................................................................. 44 5.3. Mudança nas Primeiras Taxas de Transição: Entrada na Escola e Conclusão de Quatro Anos de Educação Fundamental ................57 6. Conclusão ......................................................................................61 Referências bibliográficas .................................................................. 65 Anexo ...............................................................................................70 CAPÍTULO 2 Cor, educação e casamento: tendências da seletividade marital no Brasil, de 1960 a 2000............................................................................................75 1 – Introdução ...................................................................................75 2 – Teorias sobre seletividade marital ..................................................77 3 – A escolha conjugal por cor no Brasil ............................................. 84 4 – Os dados e os modelos ..................................................................87 5 – Taxas absolutas de seletividade conjugal ........................................93 6 – Seletividade marital por cor dos cônjuges ...................................... 99 7 – Seletividade marital por educação................................................102 8 – Seletividade marital por cor e educação .......................................105 9 – Conclusão .................................................................................. 114 Referências bibliográficas .................................................................115 CAPÍTULO 3 Classe e Gênero no Brasil Contemporâneo: Mobilidade Social, Casamento e Divisão do Trabalho Doméstico ...............................................................119 1 – Introdução .................................................................................119 2 – Interconexões de família, gênero e classe ....................................122 3 – Metodologia ...............................................................................125 4 – Mobilidade Social.......................................................................127 5 – Casamentos: Homogamia e Heterogamia ......................................133 6 – Divisão do Trabalho Doméstico ...................................................137 6.1 – Distribuição percentual da divisão do trabalho doméstico ......138 6.2 – Tipos de família e divisão doméstica do trabalho ..................140 6.3 – Análises multivariadas .......................................................142 7 – Conclusão ..................................................................................145 Referências bibliográficas ................................................................. 147 Anexo .............................................................................................149 CAPÍTULO 4 Classe, Raça e Mobilidade Social no Brasil..............................................151 1 – Introdução .................................................................................151 2 – Trabalhos anteriores ...................................................................153 3 – Os dados, os modelos e os ajustes dos modelos .............................160 4 – Raça ou classe: os determinantes da mobilidade social ..................168 5 – Desigualdade de oportunidades educacionais ............................... 172 6 – Destinos de classe: efeitos de raça, origem de classe e qualificação educacional .................................................................................... 174 7 – Conclusões................................................................................. 177 Referências bibliográficas .................................................................181 Anexo .............................................................................................184 CAPÍTULO 5 Mobilidade Social Passada e Futura: Correlações com Opiniões Políticas, Percepções sobre Conflito e sobre Chances de Vida ....................................187 1 – Introdução .................................................................................187 2 – Hipóteses de trabalho .................................................................189 3 – Metodologia de análise ...............................................................195 4 – Classes, Mobilidade Passada, e Mobilidade Futura........................198 5 – Posições Políticas, a Hipótese de Aculturação e a Hipótese da Possibilidade de Mobilidade Ascendente Futura .................................202 5.1 – Chances de se identificar com o PT......................................205 5.2 – Opinião sobre políticas distributivas ....................................207 6 – Insegurança social e percepções sobre confl ito..............................209 6.1 – Percepções sobre Confl ito de Classes e Confl itos de Raça ......210 7 – Dimensões da mobilidade: percepções sobre características de mobilidade ......................................................................................213 7.1 – Opinião sobre a idéia de que os esforços individuais são recompensados ......................................................................215 7.2 – Opiniões sobre a idéia de que “é preciso ter sorte para subir na vida”.....................................................................................216 8 – Conclusão .................................................................................. 217 Referências bibliográficas .................................................................219 Anexo .............................................................................................222 Figuras, Gráficos e Tabelas CAPÍTULO 1 Figura 1 – Percentagem da população entre 5 e 14 anos de idade matriculada em escolas primárias públicas e privadas, e população entre 15 e 19 anos de idade matriculada em escolas secundárias públicas e privadas, Brasil : 1948 a 1995 ..................................................................................... 31 Figura 2 – Percentagem da população entre 15 e 19 anos de idade matriculada em escolas secundárias, e população entre 20 e 25 anos de idade matriculada em Universidades, Brasil: 1948 a 1995 ................................................................ 32 Tabela 1 – Estatísticas descritivas: Médias e desvios padrão das variáveis em cada coorte de idade, homens e mulheres brasileiros nascidos entre 1932 e 1976 ...... 37 Figura 3 – Educação alcançada por coorte de nascimento, Brasileiros nascidos entre 1932 e 1984 ................................................................................................. 42 Figura 4 – Taxas de transição educacional por coortes de idade, brasileiros nascidos entre 1932 e 1984......................................................................................... 43 Tabela 2 – Coeficientes da regressão logística por transição e coorte: Brasil, 1996-97 ............................................................................................ 46 Figura 5 – Probabilidades preditas de completar um ano de universidade (T5) para homens e mulheres com mães tendo 1 e 12 anos de escolaridade por coorte de idade: brasileiros nascidos entre 1932-71........................................................ 51 Figura 6 – Probabilidades preditas de completar cinco transições educacionais para brancos, pardos e pretos cujos pais eram Profi ssionais (classe I) ou Trabalhadores Manuais Qualificados na Industria Moderna (Classe VIa): brasileiros(as) nascidos em 1932-84 .................................................................................................. 56 Tabela 3 – Efeito do background social nas duas transições educacionais iniciais de acordo com os modelos escolhidos: brasileiros, 1932-84 .................................. 58 ANEXO Tabela A1 – Modelos selecionados para sucesso, Brasil: 1996-97 ........................... 70 Tabela A2 – Coeficientes do modelo de regressão lógistica escolhido (26 na tabela A1): Brasil, 1996-97 ...............................................................................................72 Tabela A3 – Parâmetros estimados pelo modelo logit escolhido para analisar o effeito das variáveis de background na transição 1 (T1) e na 2 (T2)............................. 73 CAPÍTULO 2 Figura 1 – Esquema Conceitual da Análise da Seletividade Conjugal ...................... 79 Tabela 1 – Parâmetros para os Efeitos de Barreira e Homogamia no Modelo de Seletividade por Cor no Casamento ................................................................. 91 Tabela 2 – Cor do Marido e Cor da Esposa – (1960, 1980 e 2000)......................... 94 Tabela 3 – Vantagem Educacional Média entre os grupos de Cor no Brasil – (1960, 1980 e 2000)................................................................................................ 95 Tabela 4 – Educação (Anos de Escolaridade) do Marido e da Esposa (1960 a 2000) ............................................................................... 96 Tabela 5 – Endogamia Racial e Educacional Total, Hipogamia e Hipergamia Racial e Educacional no Brasil (1960, 1980 e 2000) (%) .............................................. 98 Tabela 6 – Modelos para Tabela Cruzando Cor do Marido (H) com Cor da Esposa (W) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges tinham entre 20 e 34 anos em 1960, 1980 e 2000 ........................................................................ 100 Tabela 7 – Modelos Ajustados à Tabela Cruzando Educação do Marido (E) com Educação da Esposa (S) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges Tinham entre 20 e 34 anos em 1960, 1986 e 2000 ....................................... 103 Tabela 8 – Ajuste de Modelos Log-Lineares à Tabela Cruzando Cor do Marido (H) com Cor da Esposa (W), Educação do Marido (E), Educação da Esposa (S) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges Tinham entre 20 e 34 Anos de Idade em 1960, 1986 e 2000 ...................................................................... 106 Tabela 9 – Parâmetros Selecionados Estimados pelo Modelo 7, Casais com Ambos os Cônjuges com Idade entre 20 e 34 Anos Brasil, 1960, 1980 e 2000 ............... 108 Tabela 10 – Chances Relativas de Cruzar Barreiras Educacionais e Raciais aos Casamentos em 1960, 1980 e 2000. Cálculos Feitos a partir dos Parâmetros Estimados pelo Modelo 7, da Tabela 8, Apresentados na Tabela 9 .................. 111 Gráfico 1 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento inter-racial, Brasil 1960 .......................................................................................................... 112 Gráfico 2 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento inter-racial, Brasil 1980 .......................................................................................................... 113 Gráfico 3 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento inter-racial, Brasil 2000 .......................................................................................................... 113 CAPÍTULO 3 Tabela 1 – Categorias de classe e respectivas médias de renda individual mensal e de anos de educação completos: Brasil, 2003 .................................................... 126 Tabela 2 – Distribuição de classes de origem e destino e taxas absolutas de mobilidade intergeracional para homens e mulheres, tabelas de mobilidade do pai para o fi lho(a) e da mãe para o fi lho(a), Brasil 2003 (em números percentuais %) .................. 129 Tabela 3 – Distribuição de classe de maridos e esposas, e taxas absolutas de homogamia e heterogamia de classe para todos os casais, e casais em que ambos estão no mercado de trabalho: Brasil 2003 (em números percentuais %) ......... 135 Tabela 4 – Distribuição percentual da contribuição de cada cônjuge para o trabalho doméstico no Brasil, 2003 ........................................................................... 139 Tabela 5 – Percentual do Trabalho Doméstico Realizado pelo Conjuge Segundo Respondente, Brasil 2003. Tipo de família entre parênteses (explicação no texto) .....................................................................................141 Tabela 6 – Regressão linear da composiçãoo de classe do casal e outras variáveis selecionadas no trabalho doméstico do cônjuge .............................................. 143 Tabela 7 – Regressão linear simples de gênero em trabalho doméstico do cônjuge .................................................................................................. 145 ANEXO Tabela 1 – Estatísticas de ajuste de modelos log-lineares estimados para analisar tabelas de mobilidade intergeracional entre: (I) pai e fi lho ou fi lha no mercado de trabalho (3x3x2), (II) mãe e fi lha ou fi lha no mercado de trabalho (3x3x2), (III) pai e fi lho ou fi lha incluindo destino desempregado (3x4x2), e (IV) mãe fi lho ou fi lha incluindo orig e dest “do lar” (4x4x2). Brasil 2003 ...................................................... 149 Tabela 2 – Estatísticas de ajuste de modelos log-lineares estimados para analisar tabelas de mobilidade intergeracional entre: (I) pai e fi lho ou fi lha no mercado de trabalho (3x3x2), (II) mãe e fi lha ou fi lha no mercado de trabalho (3x3x2), (III) pai e fi lho ou fi lha incluindo destino desempregado (3x4x2), e (IV) mãe fi lho ou fi lha incluindo orig e dest “do lar” (4x4x2). Brasil 2003 ...................................................... 150 CAPÍTULO 4 Figura 1 ........................................................................................................... 155 Tabela 1 – Estatísticas de Ajuste dos Modelos de Associação Aplicados a Tabela 1 do anexo: Tabelas de Mobilidade Intergeracional para Homens Brancos, Pardos e Pretos entre 25 e 64 anos de idade, Brasil 1996 (N = 40.635) ...................... 163 Tabela 2 – Parametros de Interseção, Inclinação, e Escore de Cor para o Model 3 Estimado por Máxima Verossimilhança: Tabela de Mobilidade para Homens Brancos, Pardos, e Pretos ............................................................................ 164 Tabela 3 – Ajuste, Parâmetros Estimados e Desvios Padrões dos Modelos Logit Estimados para Cada uma das Transições Educacionais: Homens entre 25 e 64 anos, Brasil 1996 ........................................................................................ 166 Tabela 4 – Modelos Logit Multinomiais em Forma Condicional para Probabilidades de Entrar em 4 Estratos Ocupacionais em 1996. Homens entre 25 e 64 anos: Brasil .. 168 Figura 2 – Log das Razões de Chances Observadas e Experadas Segundo Modelo M3* por Escore de Cor.........................................................................................170 Gráfico 1 – Efeitos de Origem de Classe e Cor sobre Log Chances de Fazer Transições Educacionais para Homens ...........................................................................173 Gráfico 2 – Chances Estimadas de Homens Brancos e Negros se Tornarem Trabalhadores Manuais ao Invés de Trabalhadores Rurais por Anos de Escolaridade. (Modelos 2 tabela 4): Brasil 1996 .............................................175 Gráfico 3 – Chances Estimadas de Homens Brancos e Negros se Tornarem Profi ssionais ou Administradores ao Invés de Trabalhadores Rurais por Anos de Escolaridade. (Modelos 2 tabela 4): Brasil 1996 ..................................................................176 ANEXO Tabela A – Tabela cruzando origem de classe (O) por destino de classe (D) por cor (C) para homens entre 25 e 64 anos de idade, Brasil: 1996 ................................. 184 Tabela B – Hierarquia de Classes e Estratos por Médias de Anos de Escolaridade e Renda Mensal e Coeficientes de Associação: Brasil 1996................................ 185 Tabela C – Distribuições de Classes de Origem e de Destino, e Índices de Mobilidade Absoluta para Homens Brancos, Pardos e Pretos entre 20 e 64 anos de Idade, Brasil 1996 (dados da PNAD-1996) ....................................................................... 186 CAPÍTULO 5 Tabela 1 ........................................................................................................... 200 Gráfico 1 – Taxas Absolutad de Mobilidade Social Passada (Intergeracional) e Futura (esperada para os próximos 10 anos), Homens e Mulheres com mais de 18 anos de idade, Brasil, 2001...................................................................................... 201 Tabela 2 – Percentagem se identificando com partido de esquerda (PT) e média em escala concorda-não concorda (5pontos) com aumento de impostos para fi nanciar políticas sociais, por quatro trajetórias de mobilidade, por sexo, e por mobilidade passada e futura .......................................................................................... 205 Gráfico 2 – Efeito do tipo de mobilidade no log das chances de se identificar com o PT (Modelo Logit) ............................................................................................. 206 Tabela 3 – Tabela 3 - Média em escala muito forte-não há (4 pontos) confl ito entre classe trabalhadora e classe média, e confl ito entre brancos e pretos, por trajetória de mobilidade, por sexo, e por mobilidade futura e passada............................ 210 Tabela 4 – Tabela 4 - Média em escala concorda-discorda (5 pontos) que pessoas são recompensadas pelos seus esforços e que é necessário sorte para subir na vida por quatro trajetórias de mobilidade, por sexo, e por mobilidade futura e passada ..214 ANEXO Tabela 1 – Mobilidade Social Passada e Futura, Homens e Mulheres com mais de 18 anos de idade: Brasil, 2001.......................................................................... 222 Introdução As desigualdades de oportunidade só podem ser observadas a partir da análise da transmissão de vantagens e desvantagens socioeconômicas ao longo dos ciclos de vida. Em vez de descrever a distribuição de bens ou posições sociais valorizadas (renda, posição ocupacional, educação, etc.) em um único momento, para determinar o grau de desigualdade de condições, as pesquisas sobre desigualdades de oportunidade focalizam as chances diferenciais que indivíduos e famílias têm de alcançar estas posições e obter estes bens. Em sua versão mais completa, uma agenda de pesquisas sobre este tema prevê a análise da transmissão de vantagens e desvantagens ao longo das diversas fases do ciclo de vida dos indivíduos que vão desde as famílias de origem, junto às quais nasceram e cresceram, até a formação de uma nova unidade familiar autônoma. Os indivíduos não apenas nascem com características (cor, gênero, etc.) e em famílias (com recursos econômicos, sociais, culturais, etc.) diferentes, que marcam um início desigual de suas trajetórias de vida, como também em determinados momentos históricos proporcionando oportunidades e condições distintas que marcam as coortes e gerações a que pertencem. Enquanto alguns nascem em famílias pobres, outros são filhos de pais mais ricos, o que significa que ao nascer os indivíduos já contam com recursos socioeconômicos e hábitos culturais desigualmente distribuídos. Além disso, os períodos históricos em que as pessoas nascem e crescem também vão influenciar suas condições de vida; enquanto algumas coortes estão na idade de freqüentar escolas em um momento em que há escassez de vagas no sistema educacional, por exemplo, outras, nascidas em outro momento, chegam à idade escolar quando há uma expansão do número de vagas no sistema escolar. As biografias individuais estão diretamente ligadas às condições históricas desde o começo. A partir deste ponto inicial os indivíduos passam por uma série de transições que marcam seus ciclos de vida. Uma primeira etapa é a da “internalização dos recursos”, ou seja, condições de saúde e nutrição das crianças, acesso a pré-escola e conformação de valores. De fato, alguns têm inclusive chances maiores de sobreviver do que outros. Uma segunda fase, de grande importância, porque teoricamente pode levar à superação de algumas desvantagens iniciais, é a da escolarização. Os indivíduos têm chances desiguais de progredir no sistema educacional e, portanto, de 15 adquirir recursos fundamentais para alcançar posições sociais valorizadas na sociedade. Duas outras transições, além da finalização da escolarização, marcam o início da vida adulta: entrada no mercado de trabalho e escolha conjugal. A entrada no mercado de trabalho representa o início da trajetória individual na esfera produtiva do trabalho e da acumulação de riqueza, ao passo que a escolha conjugal leva, em geral, ao início da trajetória na esfera reprodutiva de formação da família e nascimento dos filhos. As características de origem social dos indivíduos (gênero, classe social, raça ou cor, região de nascimento e coorte de idade), bem como o nível de escolarização alcançado, estão diretamente correlacionados ao tipo de cônjuge que encontrarão e ao tipo de carreira que seguirão. Na fase adulta, observamos as trajetórias ocupacionais e de condição de trabalho, a aquisição de renda e a acumulação de riqueza, o comportamento reprodutivo e sexual (história conjugal e de relacionamentos, bem como de maternidade e paternidade), e uma série de hábitos (fumo, prática de exercício, alimentação, etc.) que influenciam as condições de saúde das pessoas. Finalmente, podemos definir resultados na vida adulta dos indivíduos tais como: a saúde (expectativa de vida, experiência de vida saudável, morbidade, incapacidade, etc.); as percepções e opiniões em geral; os hábitos culturais; e a participação cívica e política. No final, um novo ciclo se inicia com os indivíduos adultos e suas famílias definindo condições de origem social para seus filhos. Embora extremamente simplificada, esta concepção sobre transmissão de desigualdades ao longo dos ciclos de vida continua a ser bastante ambiciosa e não vai ser estudada em todas as suas fases nos capítulos deste livro. Concentrar-me-ei apenas em algumas das fases e em certas questões teoricamente relevantes. Antes de apresentar brevemente cada capítulo, gostaria de destacar dois aspectos mais gerais que estarão presentes em praticamente todos eles. Por um lado, desenvolvo análises que permitem descrever mudanças históricas no desenvolvimento da estrutura social brasileira durante a segunda metade do século XX. Nesse período, o Brasil se tornou uma sociedade industrial e moderna complexa. Esta mudança foi acompanhada por uma expansão do sistema educacional (com características específicas que serão discutidas no capítulo 1) que afetou de forma significativa não apenas a desigualdade de oportunidades educacionais em termos de classe social, raça e gênero (capítulo 1), mas também os padrões de casamento observados entre 1960 e 2000 (capítulo 2). Por outro lado, em todos os capítulos do livro apresento análises relevantes para o tema das desigualdades de classe, de raça e de gênero no Brasil. O debate sobre a relação entre desigualdades raciais e de classe 16 é discutido em detalhe em alguns capítulos (1, 2 e 4; e, marginalmente, no capítulo 5, que trata de opiniões sobre conflito), enquanto o debate sobre a interação entre desigualdades de classe e de gênero encontra-se em alguns outros capítulos (1, 2 e 3). A importância das classes sociais na estrutura social brasileira é discutida ao longo de todo o livro, uma vez que permanece sendo fundamental para entendermos não apenas os padrões e tendências das desigualdades sociais, como também as opiniões e posições políticas (capítulo 5). No primeiro capítulo, publicado pela primeira vez neste livro, analiso em detalhe as tendências das desigualdades de oportunidades educacionais no Brasil na segunda metade do século XX. Nesse período, houve uma enorme expansão do sistema educacional, mas as desigualdades sociais em cada transição dentro do sistema educacional praticamente não diminuíram. Algumas mudanças, no entanto, são observadas: (1) a desigualdade de gênero foi invertida, uma vez que ao longo dos anos as mulheres passaram a ter mais chances de progredir no sistema do que os homens; e (2) a desigualdade de classe diminuiu para entrar-se na escola e completar-se a 4ª série primária depois de 1982, e aumentou para entrar-se na universidade. A desigualdade racial, outro tema central do capítulo, permaneceu inalterada. Embora seja sempre menos relevante do que a desigualdade de classe, e seja especialmente importante na entrada da universidade. Nesse capítulo também discuto, por um lado, os efeitos de diferentes políticas educacionais – implementadas entre as décadas de 1960 e 1980 – sobre as tendências da desigualdade de oportunidades, e, por outro lado, algumas teorias da sociologia da educação. Embora eu não faça sugestões quanto a possíveis políticas publicas, acredito que os resultados sejam relevantes para debates na área de políticas educacionais. No segundo capítulo, escrito em parceria com Nelson do Valle Silva, analiso as tendências do casamento inter-racial no Brasil usando os censos de 1960, 1980 e 2000. O percentual de casamentos inter-raciais aumentou de um em cada dez em 1960 para um em cada três em 2000. Paralelamente, a expansão do sistema educacional levou a uma diminuição na desigualdade educacional agregada entre brancos, pardos e pretos, que poderia estar em princípio relacionada ao aumento do número de casamentos heterogâmicos. As análises, no entanto, revelam que realmente houve uma diminuição das barreiras raciais, e também educacionais, aos casamentos no Brasil. Em outras palavras, o mercado matrimonial se tornou mais aberto em termos raciais e educacionais, o que indica que na esfera da sociabilidade e do casamento as relações raciais brasileiras estão se tornando mais abertas e menos preconceituosas ao longo dos anos. 17 Enquanto o capítulo 2 focaliza as interações entre raça e classe (representada por educação) relativamente às tendências do casamento interracial, o terceiro focaliza a interação entre classe e gênero em termos de mobilidade social, padrões de casamento e divisão do trabalho doméstico. Inicialmente, apresento análises sobre as desigualdades de gênero em termos de mobilidade social e mercado de trabalho, bem como os padrões de casamento entre diferentes grupos de classe. Estas análises indicam que os domicílios brasileiros permanecem sendo caracterizados por maridos com posição socioeconômica superior à de suas esposas. Em seguida, descrevo como estas desigualdades de gênero se relacionam à divisão de poder dentro dos domicílios; para tanto, analiso a divisão do trabalho doméstico entre maridos e esposas. Estas análises indicam que, mesmo quando as mulheres têm posição socioeconômica mais elevada do que seus maridos, são as primeiras que desempenham a maior parte dos trabalhos domésticos. Em outras palavras, não há diferença de classe, mas apenas de gênero, na divisão do trabalho doméstico. No quarto capítulo volto a analisar as desigualdades de oportunidade em termos de raça e classe. Em vez de descrever apenas as desigualdades educacionais como faço no capítulo 1, estudo o processo de mobilidade intergeracional entre origem de classe, passando por educação alcançada, até o destino de classe. O principal objetivo é analisar a interação entre classe e raça nas chances de mobilidade social ascendente. As evidências apresentadas indicam que entre os indivíduos com origens nas classes sociais mais baixas não há desigualdade racial nas chances de mobilidade social. Em contraposição, entre os indivíduos com origem de classe mais elevada há desigualdade racial, tendo em vista que brancos têm mais chances de ficar imóveis no topo da hierarquia do que pretos e pardos. Em outras palavras, a desigualdade racial nas oportunidades de mobilidade social parece ser relevante apenas nas posições mais altas da hierarquia de classes. As implicações destes resultados para o debate sobre raça e classe no Brasil também são discutidas. Finalmente, no quinto capítulo, deixo de analisar as características objetivas da estratificação social para discutir alguns aspectos subjetivos. Por aspectos subjetivos entendo simplesmente as percepções dos indivíduos sobre políticas, conflitos e chances de vida. Em vez de simplesmente analisar a correlação entre estas percepções – tais como expressas em pesquisas de opinião – e a posição de classe dos indivíduos, analiso a correlação entre, por um lado, as trajetórias de mobilidade social vividas e esperadas para o futuro e, por outro lado, as percepções indicadas. Os resultados indicam a relevância de se levarem em conta a mobilidade social e, portanto, as 18 mudanças que caracterizam a estrutura de classes, para estudar a variabilidade nas opiniões sobre conflito, chances de vida e política. Além da unidade temática, todos os capítulos deste livro partem de uma perspectiva inspirada pelas chamadas “teorias de médio alcance”, que vêm sendo recentemente definidas como “sociologia analítica”.1 Este tipo de perspectiva compartilha da idéia de que o diálogo entre evidências e teorias se dá a partir da análise de processos e mecanismos sociais recorrentes nas sociedades e passíveis de verificação empírica.2 Neste sentido, em cada um dos capítulos apresento discussão não apenas sobre pesquisas anteriores, mas também sobre teorias específicas relacionadas a cada um dos temas tratados. O objetivo, como é usual em trabalhos acadêmicos, é estabelecer um diálogo entre evidências empíricas e teorias sociológicas. No caso dos capítulos que se seguem, este diálogo é estabelecido a partir do uso de metodologia quantitativa, o que não significa que eu seja contra outros tipos de metodologia e pesquisa, mas simplesmente que escolhi esta abordagem para desenvolver esse diálogo fundamental para o desenvolvimento do conhecimento. Uma das vantagens da metodologia quantitativa é a de que outros pesquisadores podem usar os mesmos bancos de dados que utilizei para verificar e questionar a validade dos meus resultados. *** Neste livro reúno artigos representativos das pesquisas que venho desenvolvendo nos últimos anos. Gostaria de ter incluído pelo menos outros três capítulos, mas os respectivos artigos já estavam comprometidos com outras publicações. A maioria dos trabalhos foi produzida no âmbito do projeto “As dimensões sociais das desigualdades” (Instituto do Milênio, CNPq). Ao CNPq, portanto, devo agradecer: (1) o financiamento da pesquisa do Instituto do Milênio, que possibilitou a publicação deste livro e diversas outras atividades durante os últimos três anos, bem como (2) a bolsa de produtividade em pesquisa. O projeto do Milênio foi coordenado por Nelson do Valle Silva, que o fez de maneira impecável. Agradeço mais uma vez o Nelson pelas Vejam-se Peter Bearman e Peter Hedström (Handbook of Analytical Sociology. Oxford: Oxford University Press, 2009); e Peter Hedström (Dissecting the Social: On the principles of analytical sociology. Cambridge: Cambridge University Press, 2005). 2 Vejam-se Charles Tilly (Explaining social processes. Boulder: Paradigm Publishers, 2008); Arthur Stinchcombe (Constructing Social Theories. Chicago: Chicago University Press, 1987[1968]); e Peter Hedtröm e Richard Swedberg (Social Mechanisms: an analytical approach to social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1998). 1 19 diversas discussões e conversas. A oportunidade de trocar idéias com outros participantes do projeto também foi fundamental. Agradeço a todos e espero que consigamos continuar nossos diálogos e discussões. Grande parte deste livro foi escrita e concebida no Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences (CASBS) da Stanford University, no qual fui pesquisador visitante entre Setembro de 2007 e Maio de 2008. Minha estadia foi financiada pela Jacobs Foundation e pelo The William and Flora Hewlett International Fellows Endowment. Agradeço aos funcionários do Centro e a seus diretores, Claude Steele e Anne Petersen. Conversas e discussões com alguns de meus colegas da coorte de 2007-2008 do CASBS foram especialmente importantes tanto do ponto de vista de minhas pesquisas quanto da perspectiva pessoal; agradeço em particular a: Dianna Archancheli, Martin Benavides, Donald Brenneis, Rob Crosnoe, Patrick Heuveline, Julie Berger Hotchstrasser, Petri Toiviainen, Suman Verma e Amy Stuart Wells. Devo um agradecimento especial a Marlis Buchman (University of Zurich), que me indicou como fellow e discutiu comigo diversos aspectos de minha pesquisa, bem como a Silvia Elena Giorguli Saucedo (El Colegio de Mexico), que discutiu temas relacionados a demografia e transições para a vida adulta comigo. Marlis e Silvia fizeram parte de um projeto que desenvolvemos no CASBS sobre transições da adolescência para a vida adulta em perspectiva comparada. Também devo agradecer aos colegas do IUPERJ por terem me concedido uma licença especial, que possibilitou minha estadia no CASBS. Além disso, os professores, funcionários e alunos do IUPERJ propiciam um ambiente acadêmico de excelência, que dificilmente encontramos no Brasil ou no exterior. Gostaria de agradecer especialmente a Adalberto Cardoso, meu outro colega do IUPERJ que participou da pesquisa do Milênio, e a Flávio Carvalhaes e Pedro Souza, meus alunos e assistentes de pesquisa. Juntos, criamos o Centro para o Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (CERES) para continuar a desenvolver nossos temas de pesquisa. Na UERJ também contei com alguns grandes amigos. Helena Bomeny preparou e me deu um detalhado documento sobre as políticas educacionais brasileiras, que serviu de base para minhas descrições do capítulo 1. José Augusto Rodrigues me ajudou de forma inestimável em diversos assuntos institucionais. Como de costume, deixo o final para os agradecimentos mais íntimos. Meus pais e amigos, Carlos e Rosa, continuam a me apoiar como sempre o fizeram. Luciana Villas Bôas, minha mulher, teve o altruísmo de encorajar minha ida para Califórnia, num momento que certamente não era o melhor para ela. 20 CAPÍTULO 1 Desigualdade de Oportunidades Educacionais no Brasil: Raça, Classe e Gênero1 1. Introdução O efeito das características, condições e recursos dos pais sobre os resultados educacionais individuais – desigualdade de oportunidades educacionais (DOE) – desempenha um papel central na reprodução intergeneracional da desigualdade nas sociedades modernas. A maioria dos estudos de DOE em sociedades industriais avançadas (Shavit e Blossfeld, 1993), em sociedades socialistas de estado (Szelényi, 1998) e em nações de industrialização mais recente (Park, 2004; Torche, 2005) confirmaram um padrão de ausência de mudança entre coortes de nascimentos nos efeitos do background socioeconômico sobre os resultados educacionais. Esse padrão persiste, a despeito da maciça expansão educacional, da industrialização e de muitos tipos de intervenção política que foram projetados para diminuir a desigualdade. Visto que a “desigualdade persistente” permanece como um achado consistente no que diz respeito a países completamente diferentes, parece inútil acrescentar mais um estudo à agenda da pesquisa comparativa da estratificação educacional. Contudo, esse padrão foi recentemente posto em questão por um estudo que relata a diminuição da DOE em alguns países europeus (Breen, 2005), bem como por outros estudos, que indicam o aumento da DOE no nível da educação O autor agradece o apoio do Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences at Stanford University, onde este capítulo foi escrito. Este capítulo não foi publicado anteriormente, mas foi apresentado em seminaries na República Checa (reunião do Research Committee 28 da International Sociological Association), no Center for Latin American Studies (Stanford University), no Centro para o Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (CERES) do IUPERJ, e no Departamento de Sociologia da Princeton University. Agredeço comentários e criticas de participantes destes encontros. 1 21 superior pelo menos na Rússia (Gerber, 1995) e no Chile (Torche, 2005). Esses últimos indicam que condições institucionais relacionadas a estados de bem-estar, reformas socialistas e reformas de mercado tiveram algum impacto nas tendências da estratificação educacional. De certa maneira, o caso brasileiro se soma a essas últimas contribuições, pois as reformas no sistema educacional também levaram a um aumento da DOE nos níveis superiores e à sua diminuição nos inferiores. Em muitas das nações industrializadas, os efeitos socioeconômicos sobre os resultados educacionais correm paralelamente a outra regularidade: a diminuição significativa da DOE por gênero. A expansão das instituições educacionais durante o século XX diminuiu gradualmente a vantagem dos homens sobre as mulheres, a qual, em alguns casos, chegou a ser revertida (Shavit e Blossfeld, 1993). Assim, estudos anteriores sobre o Brasil enfocaram as coortes nascidas antes de 1963 e depois de 1972 (Fernandes, 2001; Silva, 2003; Silva, 1986), enquanto, no presente capítulo, analiso tendências, de maior longevidade, que abrangem todas essas coortes. O estudo de tendências de maior longevidade na DOE por gênero permite verificar não somente quando se reverteu a vantagem dos homens sobre as mulheres, mas também se a mudança se manteve. Além da DOE socioeconômica e por gênero, apresento uma análise de desigualdades raciais. Desde a década de 1990, o debate sobre desigualdades raciais no sistema educacional fez-se central no Brasil por causa de vigorosas propostas de se implementarem políticas de ação afirmativa no que diz respeito a grupos em desvantagem em termos raciais. Aqueles que são a favor desse tipo de política argumentam que a desigualdade racial é generalizada e que independente da desigualdade de classe (Henriques, 2001), enquanto os que se opõem a ele sugerem que apenas esta última tem destaque e mostra-se constante. Minha análise, neste capítulo, não conseguiria testar os impactos de políticas de ação afirmativa muito recentes, que começaram a ser empregadas em algumas universidades a partir do final dos anos 90. Em lugar disso, ela se faz útil para o debate por retraçar a história da DOE racial, indicar as transições educacionais mais críticas que contribuem para as disparidades raciais e comparar o efeito relativo de características socioeconômicas e raciais nas chances de se progredir no sistema educacional. As análises dos aspectos socioeconômico, de gênero e racial das DOE no Brasil são relevantes para se discutir tanto a literatura teórica sobre a estratificação educacional quanto a desigualdade racial no Brasil. Utilizaram-se quatro explicações teóricas para estudar as tendências na estratificação educacional: a teoria da industrialização, as teorias da reprodução, a hipótese da 22 “desigualdade sustentada ao ponto máximo” e a hipótese da “desigualdade efetivamente sustentada”. O caso brasileiro é relevante para se discutirem as três primeiras, mas também sugere que a quarta deve ser relevante, apesar de não se poder testá-la a partir dos dados disponíveis atualmente. Além de discutir essas abordagens teóricas, o presente capítulo também apresenta evidência relevante para o antigo debate acerca da desigualdade de raça versus a desigualdade de classe no Brasil. Propuseram-se quatro abordagens no estudo das relações de raça: a primeira afirma que toda desigualdade racial pode ser reduzida à desigualdade de classe, a segunda afirma que a desigualdade de raça diminuirá e a de classe aumentará com a industrialização, a terceira afirma que a industrialização pode trazer mais desigualdade de raça e conflito, pois posições valiosas seriam disputadas por grupos diferentes, e a quarta argumenta que a desigualdade de raça se soma à desigualdade de classe. Como o sistema educacional brasileiro passou por grandes reformas durante as últimas décadas, o estudo das tendências da DOE no país é altamente relevante para se discutirem essas quatro abordagens à desigualdade racial, e também as teorias usadas para se explicar a estratificação educacional. O sistema educacional brasileiro passou por três reformas educacionais principais, as quais poderiam ter impactos na DOE. A primeira foi implementada em 1961, ajudando a encerrar o debate que opunha educadores católicos aos defensores da educação pública universal (Bomeny, 2000). Os primeiros queriam apoio público para expandir a educação por meio de escolas de propriedade da igreja, e os demais argumentavam a favor da educação pública laica. A reforma de 1961, enfim, permitiu a expansão da educação pública laica, sem fechar a possibilidade de apoio governamental para instituições educacionais religiosas. A principal conseqüência dessa reforma foi uma grande expansão da educação pública nos níveis primário e secundário, de um lado, e a continuidade de escolas católicas de alta qualidade para a elite, de outro. Dez anos mais tarde, em 1971, o governo fez cumprir uma lei que expandia os anos de escolaridade compulsória de quatro (primário) para oito (secundário inferior). Embora as duas reformas tenham ajudado a expandir a provisão de escolas primárias e secundárias, o sistema continuou a apresentar altas taxas de repetência e de abandono, fazendo com que grande proporção de jovens não completasse os níveis educacionais compulsórios. Em 1982, quando governadores de oposição chegaram ao poder após primeiras eleições diretas desde que os militares alcançaram o governo em 1964, houve outra expansão do sistema educacional básico (Franco, 2007). Foi só depois desta última reforma que a maioria dos jovens nas idades relevantes foi matriculada no sistema. Em 23 paralelo a isso, o sistema universitário não cresceu de modo suficiente, aumentando assim a competição pelas vagas na educação terciária. Todas essas reformas relativamente recentes apontam para um fato inegável na história da educação brasileira: a expansão tardia do sistema durante o século XX, quando comparado ao de outras sociedades industriais e, mesmo, da América Latina. Esse fato implica que o estudo das transições educacionais no Brasil tem que prestar atenção a uma transição que ocorre muito cedo: o acesso à escola. Até hoje, os estudos examinaram as transições em níveis educacionais, tais como completar a educação primária e secundária, e entrar na universidade ou em escolas técnicas. O caso brasileiro é diferente, pois a desigualdade nas transições antes que se completasse a educação primária esteve presente até a década de 1990 (Silva, 2003; Ribeiro, 1991). Estudos anteriores do caso brasileiro dedicaram-se ou a examinar essas transições iniciais nos anos 80 e 90 (Silva, 2003), ou a examinar as tendências usando dados de 1988 e, portanto, as coortes nascidas até 1963 (Fernandes, 2005). Neste capítulo, integro as duas tendências analisando tanto todas as transições de coortes nascidas até 1971 quanto as transições iniciais, que completam um e quatro anos de escolaridade, para as coortes nascidas respectivamente até 1984 e 1978. Além disso, estimo modelos de regressão logística combinada (pooled) que não foram utilizados em estudos anteriores e que permitem determinar tendências nos efeitos das características do background social sobre as taxas de transição entre coortes e transições. Este capítulo tem três propósitos. Primeiro, pretende incluir o Brasil no projeto comparativo de estudar a persistência da DOE socioeconômica e a crescente vantagem das mulheres sobre os homens ao longo do século XX. Segundo, pretende contribuir para o debate sobre a transmissão inter-geracional de desigualdades socioeconômicas e raciais no Brasil. Terceiro, expande a análise da DOE, já realizada para o Brasil, pela utilização de modelos de regressão logística combinada (pooled) para determinar a existência de tendências ao longo do tempo e entre transições, combinando a análise de transições até a educação secundária inferior para as coortes recentes com o estudo das transições em níveis mais altos no sistema educacional para as coortes mais velhas. Este capítulo se divide em sete seções. Após esta introdução, a segunda seção resenha as principais teorias usadas para se explicar a estratificação educacional, bem como as teorias sobre raça e estratificação de classe no Brasil. A terceira descreve o sistema educacional brasileiro e as reformas de 1961, 1971 e 1982. A seção quatro apresenta os dados, métodos e variáveis. A seção cinco apresenta a análise e a seis, as conclusões. 24 2. Abordagens Teóricas à Estratificação Educacional e às Relações Raciais no Brasil O caso brasileiro é relevante para discutir três abordagens teóricas principais usadas para entender tendências na desigualdade educacional: a teoria da industrialização, a da reprodução e a hipótese da “desigualdade sustentada ao ponto máximo” (DSM). De acordo com a teoria da industrialização, a desigualdade educacional diminuiria sempre que os países experimentassem a industrialização (Parsons, 1970; Treiman, 1970). A modernização das instituições, valores culturais e atividade econômica levariam grandes proporções da população a completar níveis mais altos de educação de maneira crescente. Essas taxas mais elevadas de realização dependeriam mais do mérito do que de características do background social. As predições da teoria da industrialização são questionadas por estudos das oportunidades educacionais que mostram que em muitos países industrializados as taxas de desigualdade inter-gerações continuaram altas a despeito da forte modernização. Em lugar de ser cada vez mais meritocráticas, a teoria da reprodução afirma que as instituições educacionais funcionam como uma poderosa organização que reproduz as desigualdades entre as classes sociais. Dentro das instituições educacionais, os estudantes provenientes das classes privilegiadas vêem ser valorizadas as suas vantagens culturais, tais como a capacidade lingüística, que expressam diferenças de classe e do capital cultural que é herdado de famílias culturalmente refinadas (Bourdieu e Passeron, 1977). As teorias da industrialização e da reprodução concebem as organizações educacionais como tendo papéis opostos na sociedade moderna. Uma terceira alternativa a partir da pesquisa empírica, e com base na teoria da escolha racional, surgiu como um modo de se explicar o achado empírico da desigualdade persistente. A hipótese da “desigualdade sustentada ao ponto máximo” (DSM), formulada por Raftery e Hout (1993), foi proposta como modo de explicar por que a desigualdade de oportunidades educacionais não diminui em muitos países a despeito da expansão educacional e de diversas reformas projetadas para dar igualdade de acesso às instituições educacionais. Como a DSM é apoiada por evidência empírica em muitos países e períodos, mas invalidada em outros, Hout (1993b) sugeriu que ela deveria ser tratada antes como um guia conceitual útil para a pesquisa e não como uma generalização empírica. Segundo a DSM, qualquer expansão do sistema educacional não dirigida às classes mais baixas, em realidade, dá oportunidades aos filhos de todos os grupos. 25 Isso acontece porque os filhos das classes privilegiadas estão preparados para aproveitar as novas oportunidades, e seus pais também têm mais recursos econômicos e culturais para lançá-los à frente no sistema. Esses jovens obtêm melhores notas e aspiram à universidade. Os filhos de famílias de grupos menos privilegiados somente se beneficiarão da expansão educacional quando praticamente todos os filhos dos setores privilegiados já não tiverem demandas relativamente àquele nível educacional (taxa de transição próxima de 100%). Para as duas primeiras transições no Brasil, relativas a completar um ano do primário e, para os que tiveram sucesso nessa transição, a completar todo o primário (quatro anos), esse processo de saturação levou a uma diminuição da desigualdade durante a década de 80 e o início da de 90, como demonstro mais à frente. O aumento da desigualdade também pode ser explicado pela hipótese da DSM. Por exemplo, se a reforma educacional leva a uma expansão das escolas secundárias, mas se isso não for seguido da expansão das instituições de nível terciário, o maior número de estudantes que completam o secundário enfrentará um gargalo e a competição por vagas nas universidades crescerá. Os estudantes provenientes de um background privilegiado têm vantagens nessa competição e a desigualdade provavelmente aumentará. Há evidências que mostram que esse processo aconteceu na Rússia durante a abertura de mercado no período pós-soviético (Gerber, 2003; Gerber, 1995). No Brasil, como mostrarei, houve também uma expansão das escolas secundárias que não foi acompanhada pela expansão das universidades. Depois da reforma educacional de 1961, houve uma expansão da educação secundária, mas, durante o final dos anos 70 e dos 80, o investimento nas universidades voltou-se a programas de pós-graduação e de pesquisa, mais do que à expansão das vagas na graduação (Castro, 1986). Esse contexto histórico levou à tendência, esperada, do aumento da desigualdade de oportunidades no nível educacional superior, no Brasil. A análise que é conduzida no presente capítulo permite a discussão dessas três abordagens teóricas, mas não possibilita nenhum dos tipos de teste da hipótese da “desigualdade efetivamente sustentada” (Lucas, 2001), porque os dados disponíveis não trazem informações sobre os diferentes tipos de escola. Depois das reformas de 1961 e 1971, o sistema educacional brasileiro permitiu a expansão da escola privada no nível secundário, com apoio governamental em termos de redução de impostos e outros incentivos, ao mesmo tempo em que o setor público investia na educação terciária de alta qualidade. Como um número considerável de escolas secundárias privadas é de alta qualidade e a entrada na universidade baseia-se num exame de conhecimentos, esse desenho institucional 26 contribui para agravar a desigualdade no acesso à universidade. Seria extremamente importante testar os efeitos de se estudar em escolas secundárias, públicas e privadas, sobre as chances de se entrar na universidade. De acordo com a hipótese da DES, tais tipos de diferenças qualitativas dentro de sistemas educacionais favorecem a desigualdade nas taxas de transição. Embora pareça importante para explicar a DOE no Brasil, não se pode testar essa hipótese. Mesmo com essas limitações nos dados, o Brasil é um caso relevante para se testarem, pelo menos, as três abordagens teóricas acima esboçadas, mas há uma outra razão por que esta pesquisa é relevante. Durante a última década, o debate sobre a ação afirmativa para grupos raciais prejudicados (pretos e pardos) aumentou, e algumas universidades públicas começaram a adotar esse tipo de política. Minha análise neste capítulo não pode testar os impactos sobre a DOE dessas políticas, uma vez que elas se limitam ainda a um pequeno número de instituições, conquanto importantes para retraçar a história da desigualdade racial no sistema educacional. Muitas abordagens teóricas das relações raciais no Brasil que foram propostas ao longo dos anos podem ser discutidas e testadas com base na análise que apresento neste capítulo. Esse debate está marcado pela idéia de que a desigualdade racial é uma conseqüência mais das desvantagens socioeconômicas do que da discriminação racial. Embora neste capítulo não se possa medir diretamente a discriminação, as presentes análises são uma fonte importante de informações sobre as diferentes oportunidades que indivíduos com origens socioeconômicas diversas e de cor de pele diferentes enfrentam ao fazer transições sucessivas através do sistema educacional. Há quatro abordagens teóricas principais quanto ao debate de raça versus classe, no Brasil. Cada uma delas traz uma afirmação diferente acerca da evolução da desigualdade racial e de classe, associada à expansão da sociedade industrial. Assim, as análises conduzidas no presente capítulo são altamente relevantes para a discussão dessas diferentes expectativas, uma vez que os modelos são projetados para analisar as mudanças e continuidades na DOE, ao longo do tempo. Alguns estudos feitos nos anos 40, 50 e 60 argumentavam que não haveria preconceito racial, mas apenas discriminação de classe. Donald Pierson, por exemplo, afirma: “não há castas baseadas em raças; apenas classes. Isto significa que o ‘preconceito’ não está presente, mas apenas que há um preconceito de classe e não de raça” (Pierson, 1945:402). Essa interpretação segue a idéia de Freyre (1973[1933]) sobre as relações relativamente harmônicas entre os grupos raciais no Brasil. Outros estudos, 27 relativos à cidade de Salvador (Azevedo, 1996) e a comunidades rurais, também seguiram e confirmaram a idéia de relações raciais harmônicas (Wagley, 1952). Ainda Outros estudos, feitos nesse período, contudo, chegaram a conclusões diferentes. Num livro sobre relações raciais no Rio de Janeiro, Costa Pinto (Pinto, 1998 [1958]) sugere que a modernização levou a uma crescente relevância da estratificação de classe em relação à estratificação de raça. No entanto, o autor também argumenta que o aumento das oportunidades de mobilidade social, devido a mudanças na estrutura de classes, implicaria num retorno da discriminação racial na disputa pelas oportunidades crescentes. Ele utilizou dados dos Censos de 1872 e de 1940 para sustentar seus argumentos. Outros estudos também encontraram situações de desigualdade em chances de mobilidade entre pretos, pardos e brancos no interior de São Paulo (Nogueira, 1998) e no sul do país (Cardoso, 1960). O estudo de Cardoso e Ianni (1960), contudo, traz uma interpretação diferente, pois segue a idéia de Florestan Fernandes (1965) de que a modernização estaria criando uma sociedade de classes no Brasil, e que qualquer tipo de estratificação racial somente poderia ser uma reminiscência da escravidão, que acabara em 1888. A raça seria, assim, gradualmente substituída pela classe como principal fator no sistema de estratificação. Formulou-se uma quarta interpretação em clara oposição à de Fernandes (1965). A saber, Hasenbalg (1979) argumenta que a discriminação racial continuará a funcionar no Brasil moderno a despeito do avanço do capitalismo. Essas quatro abordagens ajudam a formular algumas hipóteses sobre os efeitos da raça e das características socioeconômicas sobre a DOE. A primeira vem do trabalho de Pierson (1942), quando esse autor sugere que não há fortes barreiras raciais à mobilidade, apenas barreiras de classe. A segunda é representada por Costa Pinto (1998) e poderia ser assim resumida: com a criação de novas oportunidades, os não-brancos começariam a ocupar posições sociais privilegiadas e a discriminação racial poderia surgir novamente. Uma terceira hipótese é a de Fernandes (1965), que sugere que a discriminação racial nos processos educacional e de mobilidade será gradualmente substituída por disparidades de classe, isto é, o preconceito racial foi herdado do passado colonial. Finalmente, a quarta hipótese, de Carlos Hasenbalg (1979), é de que há desigualdade e discriminação racial no Brasil independente do background socioeconômico. O estudo da DOE racial e de classe entre coortes de nascimento e entre transições educacionais é obviamente relevante para se discutirem essas hipóteses. 28 3. O Sistema Educacional Brasileiro O sistema educacional brasileiro compreende quatro anos de educação elementar; quatro anos de educação secundária inferior; três anos de educação secundária superior; e educação universitária. Há uma divisão entre linhas técnicas e acadêmicas na educação secundária, mas, como ambas têm que seguir um currículo comum, as escolas técnicas compreendem quatro anos, em lugar de apenas três, de educação secundária superior e não fecham a possibilidade de se tentar a educação terciária. A entrada na universidade baseia-se exclusivamente no exame do vestibular. Como muitos outros países, o Brasil seguiu a tendência geral de expansão educacional significativa durante o século XX. De acordo com dados censais, a população brasileira com 25 anos ou mais e com menos de quatro anos de escolaridade caiu de 75%, em 1960, para 42%, em 1991, enquanto a porcentagem dessa população adulta que completara a educação secundária aumentou de 1,07%, em 1960, para 7,5%, em 1991. Apesar dessa expansão, os níveis educacionais no Brasil são notavelmente baixos não apenas quando comparados aos dos países industrializados, mas também em relação a outros países latino-americanos (Hasenbalg, 2000). A expansão, por sua vez, foi motivada por uma série de importantes reformas educacionais que tiveram impacto sobre as chances de transições educacionais das pessoas representadas nas coortes de nascimento que são estudadas neste capítulo. Apresento a análise para sete coortes de nascimento. Os nascidos entre 1932 e 1984 (C1 a C7) entraram na escola primária, quando o fizeram, entre 1939 e 1994, enquanto os nascidos entre 1932 e 1971 (C1 a C5) poderiam ter entrado na escola secundária entre 1947 e 1986 e, na universidade, entre 1950 e 1989. Esse período é marcado por quatro reformas educacionais nos níveis primário e secundário, e também pela expansão do sistema universitário. Entre 1942 e 1946, o Ministro da Educação Gustavo Capanema implementou uma série de reformas com o objetivo de expandir e mudar completamente a educação primária e secundária. Antes de 1942, a escola secundária dividia-se entre uma via acadêmica e outra técnica, e a possibilidade de movimento entre as vias encontrava-se barrada, o que significava que, aos 10 anos de idade, as crianças e suas famílias tinham que optar por uma ou outra via. Com a reforma de 1942, unificou-se o secundário, e o sistema passou a ser dividido em três níveis subseqüentes: primário (4 anos), secundário inferior (4 anos) e secundário completo (mais 29 3 anos, na via humanística ou científica). Todos aqueles que concluíam o secundário completo podiam candidatar-se à universidade, e as escolas técnicas tornavam-se uma continuação da escola secundária, incluindo-se, em geral, mais um ano, ou eram conduzidas pelas associações profissionais da indústria e do comércio. Essa reforma também confirmou que o primário deveria ser compulsório para todas as crianças – o que afeta igualmente todas as coortes estudadas nesta pesquisa. Outra mudança relevante, especialmente para as mulheres que alcançavam a educação secundária, foi a expansão e a regulação do programa de treinamento de professores de escola secundária, que ficou conhecido como “Escola Normal”. Passou-se a requerer que se completasse esse programa para se seguir a carreira de professor dos níveis primário e secundário inferior. Essa mudança afetou primeiramente as mulheres, que eram a maioria dos que seguiam essa carreira. De fato, demonstro mais à frente que as chances de completar o secundário eram mais altas para as mulheres do que para os homens, o que poderia em parte ser conseqüência desse tipo de política. Apesar disso, minha análise neste capítulo não pode testar qualquer efeito possível da “Reforma Capanema” sobre as transições educacionais, pois quase todas as pessoas representadas na análise entraram na escola em 1942 ou posteriormente. De modo contrário, a reforma da educação primária e secundária de 1961 afetou as chances de transição das coortes 4 a 7, pois esses indivíduos nasceram após 1956 e entraram na escola após 1961. Após muitos anos de protestos, a Igreja Católica e os donos de escolas privadas conseguiram incluir na reforma que os recursos governamentais também seriam utilizados para financiar instituições privadas nos níveis primário, secundário inferior e secundário. Como conseqüência, o setor privado começou a investir principalmente em escolas de nível secundário, enquanto as instituições públicas se expandiam significativamente no nível primário. A Figura 1 mostra as taxas brutas de matrículas nas escolas elementares, mais primárias, e nas secundárias por completo nos setores público e privado. É claro que, após 1961, a expansão do nível primário e do secundário inferior deveu-se principalmente à criação de vagas em instituições públicas, enquanto, no nível secundário, as instituições privadas continuavam a dar conta de pelo menos metade das vagas oferecidas. Essa reforma teve importantes conseqüências para as taxas de transição analisadas nas seções seguintes deste capítulo. De um lado, ela ajudou a expandir a realização educacional nos níveis primário e secundário inferior e, de outro, aumentou a participação das escolas privadas no nível secundário. 30 Figura 1 – Percentagem da população entre 5 e 14 anos de idade matriculada em escolas primárias públicas e privadas, e população entre 15 e 19 anos de idade matriculada em escolas secundárias públicas e privadas, Brasil : 1948 a 1995. Durante os anos 50 e 60, o sistema universitário também passou por mudanças importantes, expandindo-se de maneira rápida. Enquanto em 1945 o país tinha apenas 5 universidades, em 1964 esse número aumentou para 37. Até 1965, contudo, a expansão do sistema universitário correu paralelamente à expansão da educação secundária, como se pode observar nas tendências apresentadas na Figura 2, em que se comparam as taxas brutas de matrículas nas instituições terciárias e secundárias superiores. Após 1965, as matrículas na educação secundária continuaram crescendo, tendência que se fez ainda mais acentuada pela reforma educacional de 1971. Essa reforma expandiu os anos de escolaridade compulsória do primário (quatro anos) para o secundário inferior (oito anos). Como conseqüência, a proporção de estudantes que completavam o secundário inferior e que entravam no secundário superior aumentou significativamente. Ademais, afirma-se que, com a expansão educacional, caiu a qualidade das escolas secundárias no setor público (Castro, 1986), com poucas exceções. Esse aumento do secundário não foi acompanhado por uma expansão contínua das vagas no nível universitário. No terciário, levou-se a cabo uma série de reformas, entre 1966 e 1969, para regular as atividades das universidades que incluíam pesquisa e ensino. Em 1969, por exemplo, impementou-se, enfim, a regulação do sistema de programas de pós-graduação. Durante a década de 70, a expansão das matrículas na 31 educação terciária continuou, mas, nos anos 80, a tendência se deteve, e as matrículas nas universidades não cresceram no mesmo ritmo da educação secundária, que continuava se expandindo principalmente por causa do crescente número de alunos em instituições públicas, como se pode verificar na Figura 1. Figura 2 – Percentagem da população entre 15 e 19 anos de idade matriculada em escolas secundárias, e população entre 20 e 25 anos de idade matriculada em Universidades, Brasil: 1948 a 1995. Em 1982, muitos governadores de oposição chegaram ao poder nas primeiras eleições diretas desde que os militares haviam tomado o poder, em 1964. Esses novos governadores de estado deram início a programas maciços de investimento na educação primária e secundária, criando um grande número de vagas nas escolas públicas nos dois níveis (Franco, 2007) – a Figura 1 revela claramente essa expansão na década de 80. Foi somente depois desses esforços que as matrículas na escola primária quase chegaram a ser universalizadas, incluindo-se mais de 90% das crianças com a idade relevante. Em suma, pretendo aqui testar os impactos das reformas educacionais de 1961, 1971 e 1982 sobre a DOE relativa às transições da educação primária e secundária. O principal efeito dessas três reformas foi a expansão da educação primária, secundária inferior e secundária superior durante a segunda metade do século XX. Além disso, os investimentos na educação terciária aumentaram até meados de 1975, mas não depois disso, o que, combinado com a expansão do secundário, criou um congestionamento no acesso à universidade e, conseqüentemente, a possibilidade de aumento da 32 DOE. Testam-se, pois, os impactos dessas políticas do sistema educacional brasileiro sobre a DOE na medida do possível, mas também se discutem limitações dos dados relativos a certas expectativas teóricas. 4. Dados e métodos 4.1. Dados Utilizo aqui dados da Pesquisa de Padrões de Vida (PPV), que é um levantamento representativo das regiões sudeste e nordeste do Brasil e, portanto, de 85% da população brasileira. Esses dados foram coletados em 1996 e 1997 a partir de uma amostra probabilística, estratificada, em múltiplos estágios, de 4.900 domicílios. A informação de todos os indivíduos nos domicílios selecionados atinge um total de amostra de 19.400 indivíduos, entre crianças e adultos. A amostra se baseia na distribuição dos municípios e setores censitários (micro-regiões dentro de municípios) do Censo de 1991, e segue um procedimento probabilístico de seleção em três estágios. Selecionam-se primeiramente os municípios, depois as micro-regiões e, finalmente, os domicílios no interior das micro-regiões. Coletam-se informações relativamente a todos os indivíduos, de dez ou mais anos de idade, que vivem em cada um dos domicíllios. Esses dados me permitem modelar cinco transições: (T1) conclusão de um ano de escola; (T2) conclusão da escola elementar (quatro anos), dada a conclusão de um ano; (T3) conclusão da educação primária (oito anos, dada a conclusão do elementar); (T4) conclusão da escola secundária, dada a conclusão da primária e (T5) conclusão de um ano de graduação universitária. As quatro últimas transições são os principais marcadores no sistema educacional brasileiro, enquanto que a primeira é usado como medição de contato com o sistema educacional. Na Tabela 1 também defino sete níveis de realização educacional: sem escolaridade e primário incompleto (correspondendo a T1), primário completo (correspondendo a T2), secundário inferior incompleto e secundário inferior completo (correspondendo a T3), secundário incompleto e secundário completo (correspondendo a T4), universidade incompleto (correspondendo a T5), e universidade completo. Inicialmente defini cinco coortes de nascimento: (C1) 1932 a 1939; (C2) 1940 a 1947; (C3) 1948 a 1955; (C4) 1956 a 1963; (C5) 1964 a 1971. Essas cinco coortes incluem as pessoas entre 15 e 64 anos de idade 33 e geram uma amostra de 8.405 casos. A reforma de 1961, ao expandir a oferta de escolas públicas e privadas nos níveis secundário inferior (5ª a 8ª séries) e secundário (8ª a 11ª), poderia ter tido um impacto na taxa de transições para as coortes que adentraram e/ou completaram esses dois níveis depois de 1961. Em outras palavras, as taxas de transições em T3 e T4 (secundário inferior e secundário completo) para C3 (1948 a 1955) e as coortes mais jovens (C4 e C5) poderiam ter sido afetadas pela reforma de 1961. A reforma educacional seguinte, em 1971, só poderia ter afetado a conclusão do secundário inferior (T3) para C5 (1964 a 1971) porque eles entraram nesse nível escolar em 1971 ou posteriormente. Como afirmei na seção anterior, houve uma grande expansão da educação primária depois de 1982, quando governadores eleitos de forma democrática começaram a investir maciçamente em escolas primárias. As cinco coortes que compreendem indivíduos entre 25 e 64 anos de idade em 1996 (C1 a C5) não poderiam ter sido afetadas por essa última reforma educacional, pois aqueles de mais de 25 anos de idade completaram ou abandonaram a escola primária antes de 1982. A fim de analisar os impactos dessa reforma, incluí duas coortes mais jovens na análise – C6 (os nascidos de 1972 a 1978) e C7 (os nascidos de 1979 a 1984). Enquanto as cinco coortes mais velhas (C1 a C5) são analisadas por um modelo combinado (pooled) para se estudarem as cinco transições em conjunto (T1 a T5), as duas coortes mais jovens (C6 e C7) são usadas em combinação com as mais velhas para se analisarem separadamente as tendências em cada uma das duas primeiras transições (T1 e T2). Num primeiro modelo separado, analiso apenas a transição inicial (T1, que completa um ano de educação primária) usando as sete coortes de indivíduos que tinham entre 12 e 64 anos de idade em 1996 (C1 a C7), as quais compreendem uma amostra de 13.607 casos. Em outro modelo, estimo as chances de se fazer T2 (completar o primário – quatro anos –, tendo-se completado um ano de escola primária) usando as coortes de pessoas entre 18 e 64 anos de idade em 1996 (C1 a C6), com uma amostra de 10.928 casos. Essas duas primeiras transições foram diretamente afetadas pela expansão da educação elementar e primária que ocorria desde 1982, e, portanto, apenas as duas coortes mais jovens, dos nascidos após 1972, poderiam ter sido afetadas por essa última reforma educacional. O uso das duas coortes mais jovens (C6 e C7) na análise da primeira transição educacional (T1) e de C6 para a segunda transição (T2) é seguro porque todos os indivíduos de mais de 12 anos de idade que não completaram um ano de educação (T1) não completarão o nível posteriormente em sua vida, e todos os de mais de 18 anos que não completaram 34 os quatro anos de primário (T2) não os completarão quando mais velhos. Embora exista a possibilidade da educação adulta, o número de adultos que seguem por ela é extremamente limitado (Fernandes, 2000). Essas análises são possíveis porque meu survey é uma amostra de domicílios que inclui informações completas sobre crianças, jovens e adultos. Meu principal objetivo neste capítulo, pois, é descrever o efeito dos recursos, condições e características paternas sobre a realização educacional individual, isto é, descrever a desigualdade de oportunidades educacionais (DOE). Para tanto, utilizo uma série de variáveis independentes, que medem o background social, a fim de modelar as transições educacionais condicionais. Na Tabela 1, apresento estatísticas descritivas para estas variáveis independentes e a realização educacional dos entrevistados para as sete coortes de nascimentos. A primeira é sexo (S), codificado como 1 para as mulheres e 0 para os homens. A segunda é a educação da mãe em anos de escolaridade (EM),2 que é considera, em geral, como uma variável que mede o “capital cultural”, mas que também pode ser vista como medida de background socioeconômico, dado que a educação tem forte relação com a renda. A raça é classificada em duas dummies: branco (B), codificada como 1 para brancos e 0 para os outros, e pardo (P), codificada como 1 para os pardoss e 0 para os demais; omite-se a categoria preto – que e obviamente obtida quando alguém tem valor zero para brancos e pardos. No Brasil, a classificação racial inclui três categorias, pois há muita miscigenação e a maioria dos surveys nacionais inclui uma categoria especial para os pardos. A diferença entre pretos e pardos em realização educacional é em geral pequena, mas, se possível, considera-se preferível manter pardos e pretos separados, pois eles compreendem dois grupos diferentes, sendo que ospardos, em maior número, têm origens sociais no nordeste, e os pretos concentram-se mais no sudeste (Barbosa, 2003). Ainda que alguns estudos recentes tenham somado pardos e pretos numa única categoria de afro-brasileiros ou negros – seguindo o Movimento Negro – (Henriques, 2001; Osório, 2005), há boas razões para mantê-los separados, pois, em alguns aspectos, como a escolha de parceiros (ver capítulo 3), os pardos estão mais próximos dos brancos (Hasenbalg, 1999). Se não há uma razão estatística para unir essas duas categorias, não se deve desperdiçar a informação mais detalhada, que se mostra adequada à história das relações raciais no país (Hasenbalg, 1979, 1988, 1999; Telles, 2004). Como o efeito da educação do pai é quase idêntico ao da educação da mãe, excluí a variável relativa ao pai, pois há mais casos com falta da informação do que o contrário. 2 35 Além disso, uso duas outras variáveis ao descrever a situação em que os indivíduos cresceram: região de nascimento (R), codificada como 1 para sudeste e sul e 0 para nordeste e norte, e residência urbana até os 15 anos de idade (U), codificada como 1 para urbana e 0 para rural. Os estados do sul são os mais ricos do país e os do norte, os mais pobres. Ao passo que, em geral, nos países da América Latina as áreas rurais eram extremamente pobres durante a maior parte do período coberto pelas coortes que estou estudando, as áreas urbanas eram mais afluentes. Essas duas variáveis situacionais não foram utilizadas em estudos anteriores sobre as transições educacionais no Brasil (Fernandes, 2001; Silva, 2003, 1986). Finalmente, defino a ocupação do pai (OP) com base na ocupação desse3 quando o entrevistado tinha 14 anos de idade (trata-se de uma pergunta retrospectiva). Classifico as ocupações usando o esquema de classes proposto por Ribeiro (2007) para adaptar as categorias de classes CASMIN propostas, por sua vez, por Erickson e Goldthorpe (Erickson, 1993) para bases de dados brasileiras. A versão brasileira desse modelo expande o esquema de 12 classes para 19 categorias, pois parece relevante separar os trabalhadores manuais especializados dos não-especializados (VIe VIIa) em seis categorias (em lugar de duas), as quais dizem respeito à indústria tradicional e moderna, e dividir as classes não-manuais de rotina (IIIa e IIIb) em quatro categorias. Construí, então, um índice de status socioeconômico (SSE) para ordenar essas categorias ao longo de uma dimensão hierárquica.4 A Tabela 1 mostra o valor de SSE para cada classe (entre parênteses, após o título da categoria), bem como a porcentagem por coorte com origens em cada uma das 19 categorias. Testei modelos com variáveis dummy e com especificações de outra escala padrão (ISSE)5 para a ocupação dos pais; essas, porém, são piores para explicar as transições educacionais do que a que decidi usar (ver Tabela A1 e a discussão adiante). Também testei outras variáveis, as quais, contudo, não se revelaram estatisticamente significativas. A estrutura da família, por exemplo, quando os entrevistados estavam crescendo – família completa ou incompleta – e a região geográfica de residência não se revelaram significativas. Pode-se argumentar que há fatores que não foram observados, mas que poderiam Quando a informação relativa ao pai não estava disponível porque o pai nunca estava presente, substituí essa variável pela ocupação da mãe. 4 Esse índice é muito simples, pois apenas soma o valor médio dos anos de escolaridade ao valor médio da renda em cada grupo ocupacional, dividindo a soma por dois. Os valores médios de renda e anos de escolaridade são “normalizados”. 5 International Socioeconomic Index, proposto por Gazeboom (1993). 3 36 explicar a realização educacional – por exemplo, capacidade cognitiva e número de irmãos, entre outros. Não resta dúvida de que essas variáveis seriam importantes, mas o fato de que não estivessem disponíveis não invalidaria os resultados que aqui apresento, dado que o principal objetivo desta pesquisa é avaliar a dinâmica geral da desigualdade inter-generacional na realização educacional e, em particular, os efeitos relativos da ocupação do pai, do gênero e da raça nesse processo. Em outras palavras, posso testar os níveis de desigualdade e argumentar sobre os efeitos relativos da origem de classe, gênero e raça, mas não posso adjudicar efeitos causais que determinam desigualdades de oportunidades educacionais. Tabela 1 – Estatísticas descritivas: Médias e desvios padrão das variáveis em cada coorte de idade, homens e mulheres brasileiros nascidos entre 1932 e 1976 C1 Variáveis Total C2 C3 C4 C5 C6 C7 1932-39 1940-47 1948-55 1956-63 1964-71 1972-78 1979-84 S: Sexo (mulher = 1; homem = 0) 0.52 0.54 0.56 0.51 0.52 0.53 0.51 Anos de escolaridade (Des. Padrão) 5.83 3.80 4.65 5.93 6.72 6.76 6.57 4.71 (4.17) (4.13) (4.68) (4.83) (4.64) (4.25) (3.66) (2.54) EM: Educação da mãe (Des. Padrão) 3.70 1.51 1.83 2.23 2.64 2.90 3.71 4.66 (3.7) (2.5) (2.9) (3.0) (3.4) (3.5) (4.0) (4.3) OP: Father Occupation (mean SEI) (Des. Padrão) 0.59 0.40 0.45 0.50 0.56 0.62 0.67 0.71 (0.49) (0.48) (0.49) (0.50) (0.49) (0.48) (0.47) (0.45) 0.49 OP: Ocupação do pai (distribuição percentual) I - Prof e Adm, nível alto (2.54) 0.02 0.02 0.02 0.02 0.03 0.02 0.03 0.04 IVa – Pequeno Proprietários, empregadores (1.65) 0.03 0.02 0.02 0.03 0.03 0.02 0.03 0.02 II - Prof e Adm, nível baixo (1.52) 0.02 0.02 0.02 0.02 0.02 0.03 0.03 0.04 IIIa2 – Trab. Não-manais de rotina, supervisor (1.08) 0.01 0.00 0.02 0.01 0.01 0.02 0.01 0.01 V - Técnicos (1.07) 0.02 0.01 0.01 0.01 0.01 0.03 0.02 0.02 IIIa1 – Trab. não-manuais de rotina, burocracia (1.05) 0.02 0.01 0.02 0.01 0.02 0.02 0.04 0.03 IIIb1 - Trab. não-manuais de rotina, escritório (0.62) 0.02 0.00 0.02 0.01 0.02 0.02 0.02 0.03 VIa - Trab. Manuais Qualificados, Ind. Moderna (0.59) 0.04 0.01 0.03 0.04 0.05 0.04 0.08 0.08 IVb – Pequeno Proprietários, autonômos (0.41) 0.05 0.04 0.05 0.04 0.05 0.05 0.04 0.05 IIIb2 - Trab. não-manuais de rotina, serviços (0.36) 0.01 0.00 0.00 0.01 0.00 0.01 0.01 0.02 37 VIIa2 - Trab. manuais não-qualificados, Serviços (0.23) 0.04 0.01 0.02 0.04 0.04 0.05 0.06 0.09 VIIa4 - Trab. ambulantes (0.17) 0.01 0.01 0.01 0.01 0.01 0.02 0.01 0.02 VIc - Trab. Manuais qualificados, serviços (0.14) 0.02 0.02 0.01 0.02 0.01 0.02 0.02 0.02 IVc1 - Pequenos Empregadores Rurais (0.13) 0.02 0.01 0.02 0.03 0.03 0.02 0.01 0.01 VIIa1 - Trab. Manuais não-qualif., Industrria (0.12) 0.05 0.04 0.02 0.05 0.05 0.07 0.08 0.08 VIb – Trab. Manuais, Ind. Tradicional (0.07) 0.09 0.06 0.08 0.08 0.09 0.11 0.10 0.12 VIIa3 - Trab. Domésticos não-qualif. (-0.09) 0.05 0.04 0.04 0.05 0.06 0.07 0.07 0.07 IVc2 – Pequ. Produtores Rurais, autonomos (-0.37) 0.23 0.33 0.30 0.23 0.24 0.17 0.17 0.15 VIIb - Trabalhadores rurais (-0.37) 0.26 0.36 0.29 0.29 0.22 0.21 0.16 0.12 Total 1.00 1.00 1.00 1.00 1.00 1.00 1.00 1.00 B: Brancos (Branco = 1; Preto = 0) 0.46 0.51 0.48 0.51 0.50 0.45 0.43 0.40 P: Pardo (Pardo = 1; Preto = 0) 0.47 0.39 0.45 0.42 0.43 0.49 0.50 0.54 R: Região de nascimento (SE, S e CO = 1; N e NE = 0) 0.44 0.47 0.43 0.46 0.47 0.41 0.43 0.42 U: Residência Urbana até os 15 anos 0.59 0.40 0.45 0.50 0.56 0.62 0.67 0.71 (Urbana = 1; Rural = 0) 4.2. Método A fim de medir os efeitos do background social sobre a realização educacional, emprego um procedimento desenvolvido por Hout e Gerber (1995) e Gerber (2000, 2003) para implementar o modelo, formulado por Mare (1980, 1981), que trata o progresso no sistema educacional como uma série de transições educacionais.6 Cada transição tem seu próprio padrão de efeitos. A versão que utilizo estima a amostra de transições num modelo combinado (pooled), em lugar da amostra de indivíduos (Hout e Raftery, 1993). Também estima tendências lineares de coortes e transições através de um procedimento que é descrito em detalhe por Hout e Gerber (1995). Primeiro, estimei um modelo combinado (pooled) incluindo as cinco transições (T1 a T5) e as cinco coortes mais velhas (C1 a C5). Em seguida, estimei um modelo para a primeira transição (T1) usando as sete coortes (C1 a C7). Finalmente, estimei um terceiro modelo, incluindo as seis coortes 6 Para uma crítica a esse modelo, veja-se Cameron e Hackman (1998). 38 mais velhas (C1 a C6), para analisar a segunda transição (T2). Enquanto o primeiro modelo combinado (pooled) me permitiu estimar tendências entre coortes e transições e avaliar os impactos das reformas educacionais de 1961 e 1971, os dois outros modelos apenas me permitiram observar tendências entre coortes e foram estimados para avaliar os impactos da expansão da educação primária promovida pelos governadores de estados eleitos de forma democrática em 1982. Para estimar o primeiro modelo, combinei os dados das cinco transições (T1 a T5) e das cinco coortes mais velhas (C1 a C5). A variável dependente é uma dummy, sucesso, igual a 1, se a transição foi feita, e a 0, se não o foi. Para chegar a um modelo preferido, segui uma série de procedimentos, que são explicados em maiores detalhes por Gerber e Hout (1995), a qual se resume em minha análise na Tabela A1, no apêndice. Meu primeiro passo (A na Tabela A1) foi escolher a melhor especificação para a variável ocupação do pai e os principais efeitos a serem testados. A especificação da ocupação do pai, hierarquizando-se a ocupação de acordo com o SSE, ajusta-se (modelo 3) melhor que as outras duas: a primeira, usando-se ISSE (modelo 1), e a segunda, utilizando-se 18 variáveis dummy (modelo 2). A terceira especificação em que se usa SSE apresenta o melhor ajuste ao modelo. Também incluí as outras variáveis independentes que foram estatisticamente significativas (descritas acima) nesse primeiro passo e testei outras variáveis que não foram significativas – esses testes não são mostrados na Tabela A1. Num segundo passo (B), introduzi todas as interações de duas vias que envolvem as transições, isto é, interações de cada transição com cada coorte no modelo 4 (20 transições); então, no modelo 5, acrescentei as interações de cada transição com cada variável independente. No passo C, introduzi as interações de duas vias entre cada par de variáveis de background no modelo 6, eliminei as não-significativas no modelo 7 e demonstrei que nenhuma interação entre esses efeitos significativos de background e as transições foi significativa (não mostrado). Identifiquei, então, interações de três vias entre cada variável de background, transição e coorte e, seguindo Gerber e Hout (1995), recodifiquei as interações (envolvendo cada uma das variáveis de background) estisticamente significativas tornando-as ordinais ou categóricas ao longo da variável coorte - na coluna “comentários”, na Tabela A1, descrevo os diferentes tipos de recodificação usada para “tornar linear” ou “categorizar” entre coortes cada termo significativo para a interação entre transição, background e coorte. Fiz uma transição de cada vez (passos D a H), identificando e recodificando essas interações. Em cada passo, de D a H, introduzi primeiro todas as interações de três vias (modelos 8, 11, 14, 17 e 20) e, então, eliminei as 39 estatisticamente não-significativos (modelos 9, 12, 15, 18 e 21) e, finalmente, fiz uma especificação, usando apenas um grau de liberdade, das mudanças entre coortes para as interações significativas (modelos 10, 13, 16, 19 e 22). Ainda que esses procedimentos tenham sido explicados em detalhes por Gerber e Hout (1995), convém dar um exemplo aqui. Depois de incluir as interações entre cada coorte e cada variável independente e T1 – um conjunto de cinco termos “background*coorte*T1”, para cada variável de background – no modelo 8, no passo D ta Tabela A1, selecionei o coeficiente mais baixo, ou o mais alto, em cada conjunto de interações como sendo a categoria de referência para avaliar a significação estatística dos coeficientes restantes. Como nenhum dos termos de interação dummy que capturam a mudança no efeito de R, B, P e OP entre coortes para a transição 1 é significativamente diferente de suas respectivas categorias de referência, concluo que para essas variáveis de background não há mudança significativa no efeito que foi testado entre coortes, de modo que posso expressar seus efeitos sobre T1 usando o coeficiente de base para cada uma dessas variáveis de background. No modelo 9, removi as interações não significativas e reformulei o conjunto de interações significativas (S*T1*C(d) + U*T1*C(d) + EM*T1*C(d)) como um único multiplicador ordinal ou categórico para cada uma destas interações para obter um modelo mais parcimonioso (10). Para a interação do sexo por coortes pela Transição 1 (S*T1*C(d)), verifiquei, por exemplo, que S*T1*C4 e S*T1*C5 não são significativamente diferentes de zero e que S*T1*C1, S*T1*C2 e S*T1*C3 são maiores que zero, além de não serem significativamente diferentes entre si. A especificação que mais se ajusta a essas diferenças é uma especificação categórica (S*T1*tendênciaC no modelo 10) que faz interagir sexo (S) com uma variável dummy codificada como 0, se a coorte é C1, C2 e C3, e como 1, se a coorte é C4 e C5. Em alguns casos, uma especificação ordinal para coorte se ajusta melhor que uma categórica. Os modelos em que se usam esses tipos de re-especificações ordinais ou categóricas foram comparados com os originais, menos parcimoniosos, e, se seus ajustes não fossem significativamente piores, eu escolhia a especificação ordinal mais parcimoniosa – o modelo 10, por exemplo, não apresenta pior ajuste que o modelo 9. No passo I, segui a mesma estratégia para identificar interações de duas vias significativas entre background e transições, realizando, então, uma recodificação, usando apenas um grau de liberdade, de background por transições ordinais. Apresentei apenas o modelo com as interações de duas vias com as transições recodificadas ordinalmente (modelo 23). Então, no passo J, fiz as recodificações ordinais das coortes nas inte40 rações de transições por coortes (modelo 24). No passo L, modelo 25, transformei o efeito principal das transições para uma variável ordinal usando apenas um grau de liberdade. Finalmente, num último ajuste, no passo M, removi três termos de interação de três vias (entre três variáveis) que não eram estatisticamente significativos: região por coorte por transição 2 (R*tendênciaC*T2), classe de origem por coorte por transição4 (OP*tendênciaC*T4) e residência urbana até os 15 anos por coorte por transição 5 (U*tendênciaC*T5). O resultado disso é o meu modelo final (26, na Tabela A1), cujos coeficientes são apresentados na Tabela A2 e utilizados para calcular a magnitude dos efeitos de background e das constantes para cada combinação de transição e coorte apresentada na Tabela 2 – explicarei, na próxima seção, como obter os valores da Tabela 2 usando os parâmetros estimados apresentados na Tabela A2. A fim de expandir a análise das tendências em T1 e T2 para as coortes mais jovens, estimei dois modelos adicionais: um que utiliza dados para sete coortes (pessoas entre 12 e 64 anos em 1996) para analisar T1, e outro, que usa dados para 6 coortes (pessoas entre 18 e 64 em 1996), para analisar T2. Esses dois modelos seguem os procedimentos propostos por Gerber (2003), que são similares – porém, mais simples – do que aqueles usados no modelo combinado (pooled) descrito acima. Para modelar T1 e T2, usei as mesmas variáveis independentes do modelo combinado (pooled) (S, U, R, B, P e OP) e variáveis dummy para coortes (6 dummies para T1 e 5 para T2, tendo a coorte mais velha (C1) como categoria de referência). Incluí, então, interações entre cada coorte e cada variável de background, e apliquei um procedimento, para identificar e recodificar essas interações, que é semelhante aos passos D a H, explicados acima, para o modelo combinado (pooled), porém mais simples, porque apenas para uma transição e somente para interações de duas vias (coorte*background). Os modelos preferidos para T1 e T2 são apresentados na tabela A3, no apêndice, e os coeficientes relevantes a serem interpretados – obtidos pela multiplicação dos efeitos básicos de background por coortes por interações multiplicadoras de background – encontram-se na Tabela 3. Essa alternativa, que usei para analisar as duas primeiras transições, é muito mais simples, e poderia ter sido utilizada para modelar cada transição em separado, o que me pouparia de estimar o complicado modelo usando os dados combinados (pooled) para as cinco transições. O principal problema dessa estratégia é que ela não me permitiria testar tendências entre as transições, que se demonstraram muito importantes para discutir um dos temas centrais desta pesquisa: desigualdades em termos de raça e background de classe. 41 5. Análise das Tendências na Estratificação Educacional no Brasil 5.1 Mudança nas Taxas de Transição Pode-se avaliar a expansão do sistema educacional brasileiro observando-se a realização educacional entre coortes na pesquisa sobre padrão de vida. A Figura 3 mostra a situação educacional de cada coorte, e indica um crescimento significativo ao longo do tempo. Essa figura exibe a porcentagem dos que completaram um ano do primário nas coortes C1 a C7, dos que concluíram a escola elementar (4 anos) nas coortes C1 a C6, e dos que completaram o primário (8 anos), o secundário e um ano de universidade nas coortes C1 a C5. Figura 3 – Educação alcançada por coorte de nascimento, Brasileiros nascidos entre 1932 e 1984 A proporção dos que completaram um e quatro anos de escola elementar aumenta constantemente entre as coortes, ao passo que a porcentagem dos que entram na escola alcança mais de 90% em C6 e C7, ou seja, para aqueles cujas trajetórias educacionais começaram em meados da década de 80 e no início da de 90. A taxa de conclusão da educação primário e da secundária cresce mais rapidamente de C2 a C4 e, então, se estabiliza de C4 a C5, enquanto que a proporção dos que concluem um ano de universidade aumenta apenas de C1 a C2, permanecendo praticamente constante depois disso. Uma maneira diferente de examinar a expansão 42 educacional é analisando-se as taxas condicionais de transição educacional, isto é, a taxa de transição para cada nível educacional a partir da transição para o nível anterior. A Figura 4 apresenta essas taxas de transição para as coortes que estudo neste capítulo. Figura 4 – Taxas de transição educacional por coortes de idade, brasileiros nascidos entre 1932 e 1984 Há taxas de transição crescentes entre as coortes que completam um ano de primário (T1), o elementar ou quatro anos de escola (T2) e o primário ou oito anos (T3). O quadro se mostra diferente quando se trata do secundário (T4) e da educação terciária (T5). As taxas de conclusão da educação secundária, dada a conclusão do primário (T4), flutuam entre 67% e 69%, o que indica a inexistência de mudança significativa entre as coortes. Para a entrada na universidade, dada a conclusão do secundário (T5), as taxas se expandem de C1 para C2 e, depois, declinam constantemente, até C5. Essas taxas de constância para T4 e o declínio para T5 no tempo certamente não significam que as taxas absolutas sejam constantes ou declinantes. Ao contrário, como mostra a Figura 3, a educação secundária e terciária se expandiu significativamente ao longo do tempo, impelida que foi pela expansão dos níveis mais baixos no sistema. O padrão de taxas de transição constantes para T4 indica que, tendo completado a educação primária em números maiores do que anteriormente, os estudantes enfrentam dificuldades crescentes para conseguir completar a educação secundária. O padrão de taxas para T5 também não significa que menos estudantes estejam entrando na universidade; antes, indica 43 que um número crescente daqueles que completam o secundário (como mostra a Figura 3) enfrenta dificuldades também crescentes para entrar na universidade. 5.2. Mudança na Estratificação Educacional no Tempo e entre Transições Nesta seção, apresento as análises principais deste capítulo. Primeiro, interpretarei o resultado do modelo combinado (pooled), que estima as probabilidades condicionais de se fazer cada uma das cinco transições (T1 a T5) para as cinco coortes mais velhas (C1 a C5), centrando a análise tanto nas tendências entre coortes quanto entre transições. Na próxima seção, apresentarei os resultados dos modelos para T1 entre sete coortes (C1 a C7) e, para T2, entre seis coortes (C1 a C6). O modelo combinado (pooled) se baseia na análise das transições condicionais de homens e mulheres que tinham entre 25 e 64 anos de idade em 1996 e, portanto, que tinham sido expostos a todas as cinco transições, desde entrar na escola (T1) até entrar na universidade (T5). Esses dados combinados (pooled) permitem avaliar não somente os possíveis impactos das reformas educacionais de 1961 e 1971 sobre as tendências nas taxas de transição, mas também as tendências dos efeitos do background social entre transições, que se demonstra extremamente relevante para discutir os efeitos relativos da raça e da ocupação do pai sobre a DOE.7 Os resultados do modelo combinado (pooled) na Tabela 2 mostram as mudanças nos efeitos de cada variável de background ao longo das coortes, e através das transições. Como primeiro passo, avalio as mudanças entre coortes no efeito do background social sobre as probabilidades de se fazer cada uma das cinco transições. As estimativas de parâmetros na Tabela 2 foram calculadas com base no modelo combinado (pooled) preferido (26, na Tabela A1), que é apresentado na Tabela A2, no apêndice. Antes de começar a interpretação, é necessário explicar como foram obtidos os coeficientes da Tabela 2. Por exemplo, a mudança no efeito da educação da mãe (EM) sobre a conclusão de um ano de escola(T1) foi obtido somandose os parâmetros estimados pelo modelo preferido, que se encontra na Apenas por essa razão o uso do complexo modelo combinado (pooled) faz-se essencial para encontrar e apresentar as evidências necessárias para se discutirem os papéis da raça e da ocupação dos pais sobre a DOE, que é um dos principais temas desta pesquisa. 7 44 Tabela A2. Conforme esse modelo, há três parâmetros estimados que se referem à educação da mãe em T1: o parâmetro de base para a educação da mãe (EM = 0,521); um parâmetro para a interação entre transições e educação da mãe (EM*T = -0,138); e um terceiro parâmetro para a interação entre transições, coortes e T1 (EM*tendênciaC*T1 = 0,226). A interação entre transições e educação da mãe (EM*tendênciaT) foi estimado usando-se uma recodificação ordinal da transição, com valores de 1 para T1, 2 para T2 e T3, 3 para T4 e 4 para T5 – isso quer dizer que, para a educação da mãe, a interação com as transições pode ser expressa por uma variável ordinal em que apenas os valores para T2 e T3 não são significativamente diferentes entre si. As recodificações para cada termo que foi tornado linear são apresentadas na coluna “comentários”, na Tabela A1. De modo semelhante, a interação da educação da mãe por coorte por T1 (EM*tendênciaC*T1) usa uma recodificação categórica das coortes, com valor 1 para C1 e 0 para C2, C3, C4 e C5 – isso quer dizer que a única interação que é significativamente diferente de zero é aquela que corresponde a C1. Somando-se essas três estimativas de parâmetros, conforme apresentadas na Tabela A2, obtenho os seguintes valores para a educação da mãe (EM) em cada coorte para T1, na Tabela 2: 0,609 para C1 [0,521 + (1*-0,137) + (1*0,226)], e 0,383 para C2, C3, C4 e C5 [0,521 + (1*-0,137) + (0*0,226)]. Os demais valores da Tabela 2 foram obtidos pela combinação do efeito de base das variáveis de background social com os termos de interação que capturam mudanças entre coortes e através das transições, as quais são apresentadas na Tabela A2, no apêndice. A Tabela 2 apresenta os efeitos, sobre cada transição (T1 a T5) e coorte (C1 a C5), das variáveis independentes: sexo (S), residência urbana até os 15 anos (U), região de nascimento (R), educação da mãe (EM), raça (B para brancos, P para pardos, tendo-se pretos como a categoria de referência), ocupação do pai (OP), interação entre sexo e região de nascimento (S*R), e a constante para cada combinação de cada transição educacional e cada coorte de nascimento. O fato de que o efeito da interação entre sexo e região de nascimento (S*R) é estatisticamente significativo significa que o efeito de se ter nascido no sul (R) é -0,150 mais baixo para as mulheres, em todas as transições e coortes. Essa constante captura o efeito combinado de mudança institucional e tamanho da coorte. 45 Tabela 2 – Coeficientes da regressão logística por transição e coorte: Brasil, 1996-97 Coortes Variáveis independentes C1 C2 C3 C4 C5 1932-1939 1940-1947 1948-1955 1956-1963 1964-1971 T1 – Completar 1 ano de escola Sexo (S) -0.080 ** -0.080 ** 0.156 ** 0.156 ** 0.392 ** Residência Urbana até 15 (U) 1.429 *** 1.429 *** 1.429 *** 0.996 *** 0.996 *** Região de nascimento (R) 0.806 *** 0.806 *** 0.806 *** 0.806 *** 0.806 *** Sexo X Região de Nascimento (S*R) -0.150 ** -0.150 ** -0.150 ** -0.150 ** -0.150 ** Educação da mãe (EM) 0.609 *** 0.383 *** 0.383 *** 0.383 *** 0.383 *** Branco (B) 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** Pardo (P) 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** Ocupação do pai (OP) 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** Const. -0.659 *** -0.329 *** 0.001 *** 0.330 *** 0.660 *** *** -0.074 *** -0.074 *** 0.258 *** 0.258 *** T2 – Completar o elementar, dado T1 Sexo (S) -0.074 Residência Urbana até 15 (U) 1.000 *** 1.000 *** 1.000 *** 1.000 *** 1.000 *** Região de nascimento (R) 0.150 *** 0.150 *** 0.150 *** 0.150 *** 0.150 *** Sexo X Região de Nascimento (S*R) -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** Educação da mãe (EM) 0.335 *** 0.335 *** 0.335 *** 0.335 *** 0.246 *** Branco (B) 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** Pardo (P) 0.021 *** 0.021 *** 0.021 *** 0.021 *** 0.021 *** Ocupação do pai (OP) 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** 1.062 *** Const. -0.093 *** -0.093 *** 0.127 *** 0.347 *** 0.567 *** T3 – Completar o primário, dado T2 Sexo (S) -0.124 *** -0.124 *** -0.124 *** 0.258 *** 0.258 *** Residência Urbana até 15 (U) 0.570 *** 0.570 *** 0.570 *** 0.570 *** 0.570 *** Região de nascimento (R) -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** Sexo X Região de Nascimento (S*R) -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** Educação da mãe (EM) 0.246 *** 0.246 *** 0.246 *** 0.246 *** 0.246 *** Branco (B) 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** 0.406 *** Pardo (P) 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** Ocupação do pai (OP) 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** Const. -1.447 *** -1.447 *** -1.013 *** -1.013 *** -1.230 *** 46 T4 – Completar o secundário, dado T3 Sexo (S) 0.258 *** 0.258 *** 0.258 *** 0.258 *** 0.258 *** Residência Urbana até 15 (U) 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** Região de nascimento (R) -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** -0.178 *** Sexo X Região de Nascimento (S*R) -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** Educação da mãe (EM) 0.108 *** 0.108 *** 0.108 *** 0.108 *** 0.108 *** Branco (B) 0.248 *** 0.248 *** 0.248 *** 0.248 *** 0.248 *** Pardo (P) -0.191 *** -0.191 *** -0.191 *** -0.191 *** -0.191 *** Ocupação do pai (OP) 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** Const. -0.314 *** -0.314 *** 0.014 *** -0.205 *** -0.314 *** -0.316 *** 0.262 *** 0.262 *** 0.262 *** T5 – Um ano de universidade (terciário), dado T4 Sexo (S) -0.316 *** Residência Urbana até 15 (U) 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** 0.140 *** Região de nascimento (R) 0.478 *** 0.478 *** 0.478 *** 0.478 *** 0.478 *** Sexo X Região de Nascimento (S*R) -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** -0.150 *** Educação da mãe (EM) 0.034 *** 0.034 *** 0.099 *** 0.099 *** 0.163 *** Branco (B) 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** 0.721 *** Pardo (P) 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** 0.233 *** Ocupação do pai (OP) 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** 0.648 *** Const. -1.522 *** -1.522 *** -2.055 *** -2.588 *** -3.120 *** Nota: Coeficientes obtidos a partir de calculos baseados nos coeficientes da Tabela A2 in the appendix. (veja texto para explicação) * p < .05, ** p<.01, *** p<.001 (teste de duas caldas) A primeira coisa a se observar na Tabela 2 é que a maioria dos efeitos não muda entre as coortes. Detectam-se as mudanças de background social entre as coortes apenas para sexo em T1, T2, T3 e T5; para residência urbana até os 15 anos, em T1; e para educação da mãe, nas transições T1, T2 e T5. Afora esses, todos os outros efeitos são constantes entre as coortes. Esses resultados confirmam amplamente o padrão de “desigualdade persistente observado em muitos países industrializados (Shavit e Blossfeld, 1993), em países em desenvolvimento (Park, 2004; Torche, 2005) e em estudos anteriores no Brasil (Fernandes, 2001; Silva, 1986, 2003). Deixarei a interpretação das mudanças entre coortes para T1 e T2 para a próxima seção, na qual apresentarei os resultados obtidos por meio desses dois modelos, incluindo-se duas outras coortes mais jovens (C6 e C7), para T1 e T2, e uma outra coorte mais jovem (C6), para T2. 47 Os resultados do modelo combinado (pooled) e os dois modelos separados para T1 e T2 (Tabelas 4 e 5) indicam tendências e efeitos semelhantes. Há pequena mudança em T3. Até C3 os homens tinham vantagens sobre as mulheres no que diz respeito a completar o secundário inferior; para C4 e C5, as mulheres tinham maiores probabilidades do que os homens de fazer essa transição. Conforme expliquei na introdução, esse padrão foi encontrado em muitos países em todo o mundo. Além dessa reversão na desigualdade de gênero, na conclusão da educação secundária inferior, todos os demais efeitos são constantes entre as coortes para essa transição (T3). Como era de se esperar, aqueles indivíduos cujas mães são mais escolarizadas (EM = 0,246) e os paisapresentam um status ocupacional mais elevado (OP = 0,648) têm probabilidades mais altas de fazer a transição T3 do que aqueles com padrões mais baixos nessas duas variáveis de background. Esses efeitos socioeconômicos (EM e OP) são especialmente fortes, uma vez que essas duas variáveis são respectivamente linear e ordinal. Um jovem cuja mãe tenha completado 12 anos de escola (um ano de universidade), por exemplo, tinha 19 (e0,246*12) vezes mais chances de fazer a transição T3 do que aqueles cujas mães não tinham escolaridade, enquanto que aqueles cujo pai era um profissional (classe I) tinha 7 (e0,648*2,91) vezes mais chances de fazer essa transição do que aqueles cujo pai era um trabalhador rural (classe VIIb). Além disso, os brancos (B) tinham chances maiores que os pardos (P), que, por sua vez, tinham chances maiores que os pretos (categoria de referência) de completar o secundário inferior (T3). Aqueles que viviam em áreas urbanas até os 15 anos (U) também tinham vantagens em relação aos demais. O efeito da região de nascimento apresenta um resultado inesperado tanto para T3 quanto para T4, isto é, os indivíduos nascidos nos estados do sul – a região mais desenvolvida – têm menores chances de completar o secundário inferior (T3) e o secundário pleno (T4) do que aqueles nascidos nos estados do norte – a região menos desenvolvida. Ocorre que a barreira real para os nascidos nos estados do norte é fazer T1 e T2. De C1 a C5, os nascidos nos estados do norte tinham 2,2 (e0,806) vezes menos chances de completar um ano de escola (T1) e 1,2 (e0,150) vezes menos chances de completar quatro anos (T2) que os nascidos nos estados do sul. Para superar sua desvantagem e completar a educação primária e a secundária (T3 e T4), os jovens dos estados do norte tinham que mostrar grande ímpeto e capacidade – não apenas para terem sucesso, mas também, simplesmente, para encontrar uma escola e freqüentá-la, dado que a provisão nessa área tem sido historicamente muito menor que nos estados do sul – o que favorece aqueles que vão para a primária e para a secundária (T3 e T4). 48 Nessas duas transições do nível primário e secundário, os nortistas têm vantagem sobre os sulistas – para T3 e T4, R = -0, 178. À primeira vista este resultado pode parecer estranho. No entanto, no processo de transições educacionais consecutivas é normal que isto ocorra, uma vez que apenas aqueles indivíduos realmente capazes dos grupos com desvantagens conseguem progredir no sistema, ou seja, os nortistas que passaram pelas transições iniciais têm provavelmente outras características – tais como ambição e desempenho – que não foram mensuradas e lhes conferem alguma vantagem nas transições mais acima no sistema educacional – esse fenômeno geral é conhecido como “heterogeneidade não observada” (Mare, 1980, 1993). Não há mudança entre as coortes no efeito das variáveis de background social sobre a quarta transição (T4), conclusão da escola secundária. A maioria das variáveis de background tem o valor esperado, o que indica que, quanto mais alto o status ocupacional do pai (OP) e mais alta a escolaridade da mãe (EM), sendo o indíviduo branco (B) e tendo vivido na cidade até os 15 anos (U), tanto maior a probabilidade de fazer essa transição (T4). Algumas diferenças em relação a outras transições são perceptíveis, contudo. Por exemplo, os pardos têm menores chances de completar a educação secundária que os pretos (P = -0,191), mas a diferença não é grande, dado que os pretos têm 1,2 (e-0,191) vezes mais chances que os pardos de fazerem T4. Muitos estudos sobre as relações raciais no Brasil desprezam esse tipo de diferença, mas penso que isso não se justifica quando as diferenças são estatisticamente significativas. Em minha análise não há razão para que não se aproveite a informação fornecida pela distinção entre pardos e brancos. A desigualdade racial será discutida ao final desta seção. Em todas as coortes, as mulheres tinham chances maiores de fazer T4 que os homens (S = 0,258). Embora estranha à primeira vista, essa vantagem é, mais uma vez, uma conseqüência da “heterogeneidade não observada”. Como para C1 e C2, as coortes mais velhas, os homens tinham chances maiores de fazer T1, T2 e T3, é razoável argumentar que as mulheres que passaram através dessas três transições anteriores provavelmente tinham grande vontade e capacidade para prosseguir no sistema. Contudo, para as coortes mais jovens (C4 e C5), as mulheres têm chances maiores que os homens de fazer todas as cinco transições (T1 a T5), o que significa que, para C4 e C5, a vantagem das mulheres não é uma conseqüência da “heterogeneidade não observada”, como teria sido para as coortes anteriores em T4. As mulheres em C4 e C5 (nascidas entre 1956 e 1971) entraram na escola primária depois da reforma de 1961, durante os anos 60 e 70, e ingressaram no secundário, ou o completaram, durante os 49 anos 70 e 80. Certamente, a expansão do sistema educacional nos níveis primário e secundário, que foi levada a cabo pelas reformas de 1961 e 1971, ajudou as mulheres em seu acesso a escolas e a progredirem dentro do sistema. No entanto, não se pode considerar essas hipóteses como sendo a única razão por que as mulheres nascidas depois de 1956 superaram os homens em todas as transições. Sugeriram-se muitas razões para essa crescente vantagem das mulheres no sistema educacional, as quais são diferentes para cada transição (Buchmann, 2007). Para T1, a vantagem das mulheres está provavelmente relacionada a algum mecanismo intraescola que facilitou seu progresso para a segunda série. Bem se sabe que as taxas de repetência na primeira série do primário foram extremamente altas durante os anos 70 e 80 e que essa repetência foi ainda mais elevada para os homens do que para as mulheres (Ribeiro, 1991). Essas taxas de repetência continuam altas em todo o primário e provavelmente operaram a favor das mulheres, de acordo com pesquisa qualitativa (Schneider, 1980). No nível secundário (T4), a atração do mercado de trabalho, que ajuda a aumentar a taxa de abandono da escola secundária, é maior para os homens que para as mulheres (Corseuil, 2001), o que está provavelmente relacionado à vantagem das mulheres. O mesmo tipo de explicação pode ser válido para T5. Outras hipóteses são, de um lado, que as meninas são simplesmente mais competentes que os meninos na escola ou, de outro, que os meninos atraem-se mais que as meninas por atividades extraescolares, como esportes. Qualquer que seja a explicação, as evidências indicam claramente que as mulheres têm vantagens sobre os homens no sistema educacional brasileiro.8 Em suma, colocando-se à parte a crescente vantagem das mulheres sobre os homens depois de C3, os resultados para o modelo das transições educacionais T3 e T4 indicam pouca variação ao longo do tempo no efeito das características background social, a despeito da grande expansão do sistema educacional. Em suma, para estas transições intermediárias (conclusão do primário – T3 – e do secundário, T4) a desigualdade de oportunidades educacionais permanece inalterada durante a maior parte do século XX. Contrastando-se com esse cenário sem mudanças, na última transição (T5) – conclusão do primeiro ano de universidade, dada Estudos mais detalhados sobre áreas de especialização seriam interessantes para se observar como as mulheres progridem no sistema educacional. Sabe-se, por exemplo, que os homens tendem a seguir carreira nas ciências naturais e nas escolas técnicas (Xie e Schauman, 2003) e as mulheres, em carreiras de menor prestígio, como pedagogia e letras (Ribeiro, 1983). 8 50 a conclusão do secundário – há uma clara tendência ao aumento da desigualdade de oportunidades educacionais, pois o efeito da educação da mãe (EM) aumenta de C2 para C3 e, ainda, de C4 para C5. Em outras palavras, a educação da mãe foi cada vez mais relevante para aumentar as chances de se entrar na universidade ao longo do tempo. Esse padrão de mudança é mais bem observado nas probabilidades preditas, exibidas na Figura 5, que foram calculadas com base nas estimativas de parâmetros da tabela 2 para T5. Essa figura apresenta quatro casos hipotéticos: homens e mulheres cujas mães têm um ano de escolaridade, e homens e mulheres cujas mães têm 12 anos de esolaridade, mantendo-se todas as demais variáveis em seus valores médios. Figura 5 – Probabilidades preditas de completar um ano de universidade (T5) para homens e mulheres com mães tendo 1 e 12 anos de escolaridade por coorte de idade: brasileiros nascidos entre 1932-71 Como se vê na Figura 5, a desvantagem das mulheres é revertida entre C2 e C3, e a expansão da desigualdade em termos da educação das mães dá-se também entre C2 e C3 e, outra vez, entre C4 e C5. Enquanto a vantagem crescente das mulheres sobre os homens é uma tendência geral, observada em muitos outros países, o aumento da desigualdade em termos da educação das mães está relacionado a algumas particularidades da expansão educacional, no Brasil, que confirmam algumas predições teóricas. Duas interpretações relevantes são oferecidas pela literatura. A primeira é a consideração da “educação da mãe” como uma variável de “capital cultural”, e, então, sugere-se que houve uma expansão da desi51 gualdade que confirma as predições da “teoria da reprodução” (Bourdieu e Passeron, 1977), isto é, confirma-se a hipótese de que as pessoas com certo capital cultural e certas habilidades dentro do sistema educacional têm vantagens crescentes no sistema. Essa explicação é, todavia, muito geral e vaga, pois não especifica o mecanismo que leva à expansão da desigualdade. Uma explicação melhor, acredito, provém da hipótese da “desigualdade mantida ao máximo” (Raftery e Hout, 1993). Segundo a DMM, um aumento na desigualdade pode acontecer se a expansão de um nível de educação não for acompanhada por uma expansão do nível imediatamente acima dele. Se a reforma educacional levar a uma expansão das escolas secundárias, por exemplo, sem que a isso se siga, contudo, uma expansão das instituições do nível terciário, o grande número de alunos que completa o secundário se deparará com um gargalo e, assim, a competição por vagas nas universidades crescerá. Os alunos com um background privilegiado têm vantagem nessa competição e, desse modo, a desigualdade provavelmente crescerá. As Figuras 1, 2 e 3 confirmam que, ao longo dos anos, a porcentagem de indivíduos que completavam o primário e o secundário se expandiu significativamente. A Figura 4 indica que a conclusão do secundário, dada a conclusão do primário (T4), continuou constante entre as coortes. Em outras palavras, aqueles que completavam o primário não encontravam dificuldades adicionais para completar o secundário, pois esse nível também se expandia. O mesmo não aconteceu com as universidades, isto é, aqueles que, em proporções crescentes, concluíam a escola secundária encontravam cada vez menos oportunidades de entrar na universidade, onde as vagas não aumentavam. Esse tipo de situação, segundo a DMM, pode levar a um aumento da desigualdade de oportunidades educacionais, porque aqueles com background vantajoso utilizariam seus recursos na competição por vagas escassas. O aumento da desigualdade de oportunidades de se entrar na universidade brasileira claramente confirma a hipótese DMM. No caso brasileiro, o aumento na desigualdade de oportunidades em termos da educação da mãe está provavelmente relacionado às reformas educacionais de 1961 e 1971 e à política de investimento na educação superior, durante os anos 70 e 80. As reformas de 1961 levaram a uma expansão significativa do investimento público na educação secundária. Em 1961, aproximadamente 33% das vagas eram oferecidas por instituições públicas; de 1971 a 1978, o setor ofereceu 45% das vagas. Com o investimento público, o número de estudantes que completavam a escola secundária aumentou de maneira significativa exatamente para os jovens que estão representados em C3 e C4, que nasceram após 1948 e que en52 traram na escola secundária, quando o fizeram, após 1961. Ao aumentar a educação compulsória de 4 para 8 anos (do elementar para o primário), a reforma de 1971 fez ainda mais pressão sobre o sistema, aumentando o número de alunos que concluíam o secundário inferior e que, conseqüentemente, adentravam e concluíam o secundário pleno. Os investimentos em educação superior ajudaram a expandir as vagas até meados da década de 70 (ver Figura 1); depois disso, os investimentos diminuíram e incidiram mais sobre pesquisa e programas de pós-graduação e não mais sobre o aumento das vagas nas universidades públicas, enquanto o setor privado não se expandia por causa da crise econômica na década de 80 (Castro, 1994). Apenas essas reformas e políticas explicariam a expansão do número de estudantes nas escolas secundárias e as dificuldades crescentes que eles encontravam para entrar na universidade; no entanto, outras características institucionais do sistema escolar brasileiro são também relevantes. É um fato conhecido o de que as melhores escolas secundárias são tradicionalmente as privadas, ao passo que as melhores universidades são as públicas. Este desenho institucional favorece a desigualdade socioeconômica no acesso à universidade: famílias mais ricas investem em escolas secundárias para garantir aos seus filhos chances maiores de acesso à boa educação terciária, pública e gratuita. Com efeito, pesquisas em que se utilizam dados dos anos 1990 e 2000 para avaliar o desempenho dos alunos em provas nas escolas secundárias, públicas e privadas, revelam um significativo efeito positivo da escola privada nesse desempenho (Soares, 2004). Como o acesso à universidade se baseia inteiramente num exame de conhecimentos (o vestibular), essa evidência é extremamente relevante. Devido a essas características institucionais e a essas evidências, seria recomendável observar o impacto das escolas públicas e privadas de nível secundário sobre as taxas de transição educacional relativamente à universidade. No entanto, não posso medir esses efeitos, pois a variável para tipo de instituição não está disponível em nenhum dos surveys brasileiros adequados para a análise das tendências nas taxas de transição.9 De qualquer modo, o aumento na desigualdade das oportunidades de se entrar na universidade é uma evidência clara apresentada neste capítulo. Afora isso, o modelo de transições educacionais para o Brasil (Tabelas 3 e A2) confirma um padrão de pequena variação entre coortes e de crescentes vantagens para as mulheres em relação aos homens, o qual já foi observado em muitos países (Shavit e Blossfeld, 1993). Além disso, esse modelo também permite comparar os efeitos do background social entre 9 Novos dados, atualmente coletados, permitirão testar esses importantes efeitos. 53 transições. Tendo já apresentado esse padrão para a região de nascimento, apresentarei, a seguir, os dados relativos à residência urbana até os 15 anos. Porém, focarei a comparação entre os efeitos da raça (B e P) e da ocupação dos pais (OP) entre transições, pois os resultados mostram-se relevantes para avaliar o alcance das desigualdades de raça e classe no sistema educacional. Esse tópico não somente é o principal dentre aqueles discutidos na maioria dos estudos sobre transições educacionais no Brasil, como também mostra-se muito relevante para informar o debate corrente sobre quotas raciais e ação afirmativa no país. Os impactos das variáveis de background social sobre as probabilidades de se fazerem as transições educacionais deveriam diminuir a cada transição mais alta porque a dependência dos filhos em relação aos recursos de suas famílias de origem diminui à medida que eles crescem e avançam no sistema educacional. Ademais, por causa da seletividade educacional, os jovens que fazem as transições educacionais mais altas se tornam cada vez mais semelhantes, dado que têm pelo menos uma coisa em comum: completaram o nível educacional anterior. Aqueles que têm posições inferiores, em termos de background social, e que fazem as transições educacionais mais elevadas também mostraram competência para superar sua desvantagem. Logo, espera-se que os efeitos da ocupação do pai (OP), da área de residência (U) e da raça (B e P) diminuam à medida que as transições se elevam no sistema. Observa-se essa expectativa com relação à ocupação do pai (OP) e à área de residência até os 15 anos (U), mas não para a raça (B e P). O efeito da residência urbana (U) diminuiu de C3 para C4, provavelmente por causa da expansão das escolas rurais depois da reforma de 1961, a qual foi acompanhada pela diminuição da população rural. Entre as transições, há também um declínio constante do efeito de ter-se crescido em áreas urbanas, o que sugere que aqueles que possuem origem rural e que progrediram no sistema educacional superaram suas desvantagens iniciais – para T1: R = 1,429 para C1 e C3 e R = 0,996 para C4 e C6; e para T5: R = 0140 para todas as coortes. Esse achado acompanha as predições dos efeitos declinantes a cada transição educacional. Seguindo um padrão semelhante, os efeitos da classe de origem medida pela ocupação do pai (OP) declinam de T2 (1,061) para T3 (0,647) e permanecem constantes até T5. São também maiores que o efeito de raça (B e P) sobre as probabilidades de se fazerem as transições A associação entre raça – ser branco ou pardo (B e P), em vez de preto – e transições educacionais segue uma tendência declinante de T1 a T4, mas aumenta em T5, ou seja, não segue a tendência geral de declínio a cada transição 54 sucessiva Para comparar os efeitos de raça (B e P) e ocupação dos pais (OP) sobre as chances de se fazerem as transições educacionais, a Figura 6 mostra as probabilidades preditas para jovens brancos, pardos e pretos cujos pais eram profissionais de alto nível (SSE = 2,54) ou trabalhadores manuais especializados em indústria moderna (SSE = 0,59), ficando todas as outras variáveis de background social mantidas em seus valores médios. A figura indica que, para T1 e T2, quase todos os jovens cujos pais eram profissionais ou trabalhadores manuais especializados teriam feito as transições independentemente de sua raça, isto é, conhecer a ocupação dos pais dos jovens é suficiente para predizer se eles completarão o primeiro ano de educação elementar (T1), ao passo que a diferença entre brancos, pardos e pretos com ocupação semelhante dos pais é mínima. Em outras palavras, para T1 e T2, a desigualdade racial é pequena entre aqueles cujos pais eram trabalhadores manuais especializados em indústria moderna ou profissionais. De T3 para T5 a desigualdade racial aumenta – as linhas para brancos, pardos e pretos estão mais afastadas –, mas as probabilidades de se fazerem as transições são mais altas para jovens brancos, pardos e pretos cujos pais eram profissionais do que para aqueles cujos pais eram trabalhadores manuais especializados. Embora a desigualdade racial nas transições educacionais seja evidente nos dados, a desigualdade de classe, medida pela ocupação dos pais, tem claramente maior impacto. A figura também indica que a desigualdade racial é mais alta em T5 que nas transições anteriores, pois as probabilidades preditas para aqueles com background de classe semelhante varia mais segundo a raça em T5. A Figura 6 também indica que a possibilidade de predizer que é dada pelas variáveis no modelo para T1 e T2 é muito alta, isto é, conhecer as variáveis do modelo ajuda a fazer estimativas de probabilidade muito precisas sobre chances de transição. Contrastando-se a isso, nas transições mais elevadas (T3, T4 e T5), as variáveis no modelo produzem predições menos precisas das chances de transição, pois outras características dos indivíduos não incluídas no modelo são provavelmente importantes para determinar as chances de transição em níveis educacionais mais altos. Em outras palavras, as transições em níveis mais altos do sistema educacional dependem mais de “características não observadas” em minhas análises – como, por exemplo, a habilidade cognitiva – do que em níveis mais baixos. 55 Figura 6 – Probabilidades preditas de completar cinco transições educacionais para brancos, pardos e pretos cujos pais eram Profissionais (classe I) ou Trabalhadores Manuais Qualificados na Industria Moderna (Classe VIa): brasileiros(as) nascidos em 1932-84 Em suma, as desigualdades raciais não mudaram durante o período estudado. Se eu considerasse a educação das mães (EM) como medida de posição econômica ou de classe, poderia dizer que a desigualdade de classe é maior no acesso à universidade. Em níveis mais baixos, como mostrarei adiante, há um declínio entre coortes no efeito da ocupação dos pais (OP) e da educação das mães (EM) em T1 e T2. Os resultados também revelam que a desigualdade de classe (medida pela ocupação dos pais) tem mais impacto que a desigualdade de raça, e que esta última aumenta no acesso à universidade, mantendo-se, porém, mais baixa que a anterior. Esses achados dialogam com o corrente debate sobre desigualdade de raça versus desigualdade de classe e discriminação no Brasil (Ribeiro, 2006). A primeira coisa que devo observar é que os modelos utilizados nesta pesquisa não são concebidos para descrever nem a discriminação racial nem a socioeconômica. Não posso afi rmar, por exemplo, que a desvantagem dos pretos e pardos em relação aos brancos na conclusão de um ano de universidade, dada a conclusão do secundário (T5), se deve à discriminação racial; esse seria o caso se se selecionassem os estudantes por causa de suas raças, o que, contudo, não acontece, pois o acesso à universidade se baseia numa prova de conhecimentos e não 56 numa seleção aberta.10 Em lugar de focar a discriminação, esta pesquisa pretende estudar a desigualdade de oportunidade educacional (DOE) em termos de variáveis de background. O que posso afi rmar é que a expansão educacional no Brasil teve os impactos descritos acima – e que serão descritos também na próxima seção – sobre a desigualdade racial e de classe nas chances de transição educacional. Se a discriminação ou outros fatores, como a desvantagem cumulativa, seriam as causas dessas desigualdades já se trata de tema para pesquisas de outro tipo. Isto posto, posso concluir que a hipótese que afirma que a desigualdade racial seria apenas um reflexo da desigualdade socioeconômica (Pierson, 1945) é refutada pelas evidências de minha pesquisa, que, a esse respeito, se soma à literatura anterior sobre desigualdades raciais no sistema educacional (Fernandes, 2000; Silva, 1986, 2003; Soares, 2005). No entanto, meus resultados avançam em relação a essa literatura, pois indicam claramente que a desvantagem socioeconômica – medida pela ocupação do pai e pela educação da mãe – é um fenômeno mais disseminado que a desvantagem racial. 5.3. Mudança nas Primeiras Taxas de Transição: Entrada na Escola e Conclusão de Quatro Anos de Educação Fundamental No Brasil, as transições antes de se completar a educação secundária foram de importância fundamental durante a segunda metade do século XX, isto é, o simples acesso à escola já foi uma importante transição para muitas pessoas que cresceram durante a segunda metade do século passado. As taxas de analfabetismo da população foram altas durante todo o século: 32% em 1940, 23% em 1960, 16% em 1980 e 13% em 1990. A pesquisa sobre Padrão de Vida também indica que, em 1996, entre os indivíduos que tinham entre 12 e 64 anos de idade na ocasião, 13% não concluíram um ano de educação primária e, entre aqueles que tinham de 18 e 64 anos, 30% não completaram quatro anos de escola. Esses números são, por si só, testemunhos do baixo nível de realização educacional no país, nível que é baixo mesmo quando se os comparam com os de outras nações em desenvolvimento e, também, com os de outros Uma explicação possível seria a de que bons estudantes pretos e pardos sofreriam de uma “ameaça do estereótipo”, efeito psicológico como os descritos por Steele (2003). Mas isso não é mais que uma sugestão, de modo que um tipo de pesquisa totalmente diferente seria necessário para testá-la. 10 57 países latino-americanos (Birsall, 1996; Hasenbalg, 2000). Portanto, é essencial que se analisem as mudanças na DOE relativas a essas duas primeiras transições educacionais (T1 e T2), que normalmente não são estudadas nos países desenvolvidos. Como foi dito acima, a expansão da educação elementar alcançou mais de 90% da população na faixa relevante de idade apenas após 1982, quando as primeiras eleições de governadores de estado, depois de 18 anos de ditadura militar, levaram ao poder líderes de oposição em 16 dos 22 estados brasileiros. Os novos governadores estavam comprometidos a fazer uma expansão da educação elementar e lançaram planos de construção e reforma de escolas em muitos estados, mas de maneira mais expressiva nos maiores: São Paulo, Brasília (DF), Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ainda que alguns estudos critiquem, com razão, a construção de escolas, mostrando que o principal problema eram os altos níveis de repetência e não a falta de vagas (Ribeiro e Klein, 1991), sabe-se, e reconhece-se, que as crianças tinham chances maiores de entrar na escola na década de 80 (Silva, 1986; Ribeiro e Klein, 1991). Não há análises, contudo, das tendências entre coortes de nascimento nascidas antes e depois das reformas de 1982. A fim de investigar essas tendências, estimo modelos que incluem coortes nascidas entre 1932 e 1984, para analisar as duas primeiras transições educacionais (T1 e T2). Os resultados para T1 e T2 são apresentados na Tabela 3 e, como expliquei na seção 4, foram calculados com base nas estimativas de parâmetros para o modelo na Tabela A3, no apêndice. Tabela 3 – Efeito do background social nas duas transições educacionais iniciais de acordo com os modelos escolhidos: brasileiros, 1932-84 Transições C1 C2 C3 C4 C5 C6 C7 T1 Completar um ano de escola S -0.240 *** -0.240 *** 0.081 *** 0.081 *** 0.403 *** 0.725 *** 0.725 *** EM 0.589 *** 0.473 *** 0.473 *** 0.473 *** 0.473 *** 0.357 *** 0.357 *** Ba 0.623 *** 0.623 *** 0.623 *** 0.623 *** 0.623 *** 0.623 *** 0.623 *** Pa 0.220 ** 0.220 ** 0.220 ** 0.220 ** 0.220 ** 0.220 ** 0.220 ** U 1.434 *** 1.434 *** 1.434 *** 1.050 *** 1.050 *** 0.667 *** 0.667 *** R 0.779 *** 0.779 *** 0.779 *** 0.779 *** 0.779 *** 0.779 *** 0.779 *** OP 1.233 *** 1.233 *** 1.233 *** 1.233 *** 1.233 *** 0.697 *** 0.697 *** 58 T2 Completar o elementar (4 anos), dado T1 S -0.197 *** -0.197 *** -0.197 *** 0.367 *** 0.367 *** 0.367 *** EM 0.336 *** 0.336 *** 0.336 *** 0.336 *** 0.234 *** 0.234 *** Ba 0.374 *** 0.374 *** 0.374 *** 0.374 *** 0.374 *** 0.374 *** Pa 0.001 U 0.793 *** 0.793 *** 0.793 *** 0.793 *** 0.793 *** 0.793 *** R -0.238 ** -0.238 ** 0.309 ** 0.309 ** 0.309 ** 0.309 ** OP 1.034 *** 1.034 *** 1.034 *** 0.882 *** 0.882 *** 0.882 *** 0.001 0.001 0.001 0.001 0.001 Nota: S = sexo, U = residência urbana até 15 anos, R = região de nascimento, EM = educação da mãe, B = branco, P = pardo, e OP = ocupação do pai. * p < .05, ** p<.01, *** p<.001 (teste de duas caldas) a Categoria de referência Preto As estimativas de parâmetros para T1 que são mostradas na Tabela 5 sugerem uma clara tendência à diminuição da desigualdade. Em particular, C6 e C7 são afetadas por muitas mudanças importantes que ocorreram na sociedade brasileira. As crianças nessas coortes são, em sua maioria, filhas de moradores urbanos e entraram na escola quando o sistema de escolas elementares já tinha sido desenvolvido, nos anos 80 e 90. Os efeitos de background social de C1 a C5 na Tabela 5 seguem as mesmas tendências observadas na Tabela 2, mas continuam nas coortes C6 e C7. Essas tendências são: (1) crescente vantagem das mulheres sobre os homens de C3 a C5 e de C5 a C6; (2) diminuição do efeito da educação das mães de C1 a C2 e de C5 a C6; (3) diminuição da vantagem das pessoas que cresceram em áreas urbanas de C3 a C4 e de C5 a C6; e (4) diminuição do efeito da ocupação dos pais (OP) na transição de C5 a C6. Como os filhos nascidos após 1972 (C6 e C7) estavam entrando na escola durante os anos 80 e o início dos 90, pode-se interpretar a diminuição dos efeitos da educação das mães (EM) e da ocupação dos pais (EP) de C5 a C6 como sendo conseqüência da expansão educacional da educação elementar e primária que foi posta em prática após 1982. Também se observa essa tendência à diminuição da desigualdade com relação a T2, conclusão de quatro anos de escola ou educação elementar, dada a primeira transição. A Tabela 3 apresenta os efeitos do background social sobre T2 – obtida a partir das estimativas de parâmetros exibidos na Tabela A4, no apêndice –, o que indica as seguintes tendências entre coortes de nascimentos: (1) a vantagem dos homens sobre as mulheres foi revertida de C3 a C4; (2) o efeito da educação das mães diminuiu de C4 59 a C5; e (3) o efeito da origem de classe diminui de C4 a C5. Os nascidos entre 1932 e 1963 (C1 a C4) entraram na escola antes da reforma de 1971, quando apenas a educação elementar (quatro anos) era compulsória, enquanto que os nascidos entre 1961 e 1978 (C5 e C6) entraram na escola quando oito anos de escolaridade ou o primário eram o requisito mínimo imposto por lei. Como esses dois últimos efeitos (EM e OP) diminuem exatamente de C4 a C5, fica claro que eles são uma conseqüência da reforma educacional de 1971. A diminuição da desigualdade no acesso à educação depois das reformas de 1971 e 1982, que expandiram muito as vagas nas escolas elementares e primárias, é fato conhecido na literatura (Silva, 2003). Durante os anos 90, o debate e os estudos sobre a educação básica deixou de girar em torno da questão do acesso à educação e pasou a focalizar o tema da qualidade da educação (Franco, 2007). Embora a expansão da educação elementar tenha acabado por fornecer vagas à maioria das crianças e jovens nos grupos relevantes de idade, o nível de conhecimento dos estudantes, medido por testes e estudado em surveys nacionais,11 é ainda muito mais baixo que os padrões esperados para cada série (Mainardes, 2001). Utilizando dados dos anos 1990 e 2000 sobre as notas das provas para educação primária e secundária inferior, estudos recentes mostraram alguns efeitos positivos sobre o nível de conhecimento dos estudantes a partir de certos fatores: transferências financeiras diretas do governo federal para as escolas municipais (Alvez, 2007; Barros, 1998), freqüência à pré-escola (Klein, 2006) e nível educacional dos professores (Albanez, 2002; Daniel, 2005; Soares, 2004; Alves, 2007). Todavia, todos esses estudos revelam altos níveis de desigualdade no nível de conhecimento a partir do background social dos estudantes. Em suma, estudos recentes sobre a educação primária avançaram no entendimento das desigualdades, de uma perspectiva do acesso e progressão no sistema escolar para um foco em fatores intra-escolares e extra-escolares que produziriam as desigualdades nos níveis de conhecimento dos estudantes. Ainda que não inclua medidas de capacidade, a presente pesquisa contribui com a literatura ao apresentar as tendências de longo prazo nas desigualdades de acesso à educação elementar e primária para Desde 1990, para avaliar a qualidade da educação básica brasileira (primária e secundária), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, INEP, do Ministério da Educação, coleta dados a partir de uma amostra nacional, incluindo resultados de provas de Português e de Matemática (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, SAEB), com informações sobre alunos, professores e diretores de escolas públicas e privadas. 11 60 aqueles nascidos entre 1932 e 1984. Estudos anteriores focavam tendências anteriores à desigualdade de oportunidades para os nascidos até os anos 60 (Fernandes, 2001; Silva, 1986; Hasenbalg, 1999) ou, então, para os nascidos durante os anos 70 ou mais tarde (Ribeiro, 1991; Silva, 2003). Esses achados também são relevantes para se discutir a hipótese do “desigualdade sustentada ao máximo” (DSM), uma vez que a desigualdade diminuiu, em particular, para as três coortes mais jovens, que entraram na escola depois das reformas educacionais de 1971 e 1982, período marcado pela expansão da educação elementar e secundária inferior. Embora a DSM seja uma boa explicação para essa diminuição, que é observada na desigualdade, é também uma explicação limitada, porque a evidência de estudos sobre a desigualdade no nível de conhecimento (discutida acima) indica que fatores intra-escolares se somam a características do background social como explicação da desigualdade educacional. Esse fato é também reconhecido pela hipótese da “desigualdade efetivamente sustentada” (Lucas, 2001), pelo que se argumenta, simplesmente, que a diferença “qualitativa” dentro de sistemas educacionais – por exemplo, cursos preparatórios para o college nos EUA, ou sistemas privado, privado com certificado ou público no Chile (Torche, 2005) – podem levar à desigualdade de oportunidades educacional. Indubitavelmente relevante para o caso brasileiro, essa hipótese não pode ser testada na análise de tendências como as que apresento neste capítulo, pois não disponho dos dados necessários. Contudo, em estudos futuros sobre tendências nas transições educacionais no Brasil será possível utilizar novos dados – que não se encontram disponíveis no momento em que escrevo – não apenas para ampliar a análise das tendências relativamente ao período mais recente, mas também para utilizar variáveis qualitativas sobre as escolas (privadas ou públicas, e professores), bem como indicadores indiretos da capacidade dos estudantes, a fim de dar sentido às tendências da desigualdade de oportunidades educacionais no país. 6. Conclusão Retorno, enfim, aos temas levantados na introdução deste capítulo. A desigualdade de oportunidades educacionais (DOE) no Brasil teria mudado, durante as últimas décadas? Caso isso tenha acontecido, essas tendências se relacionariam a políticas educacionais que se desenvolveram no período? Quais são as implicações deste estudo de caso para os estudos comparativos de estratificação educacional? Quais são as tendên61 cias e os padrões de desigualdades de raça e classe na desigualdade de oportunidades educacionais, e qual é sua importância na discussão das teorias sobre as relações raciais no Brasil? Quais são as tendências da desigualdade de gênero? Para examinar essas questões, estudei as probabilidades de se fazerem cinco transições educacionais subseqüentes para diferentes grupos socioeconômicos, raciais e de gênero entre coortes. No que diz respeito aos estudos comparativos de estratificação educacional e a tendências na DOE, a análise revelou, neste capítulo, que o caso brasileiro confirma um padrão geral, que é encontrado na maioria dos países estudados hoje em dia: houve pouca mudança na estratificação educacional entre coortes de nascimento, e a vantagem das mulheres sobre os homens foi revertida. Além de confirmar o padrão de crescente vantagem das mulheres sobre os homens, minha análise indicou quando essa tendência teve início no Brasil. A vantagem das mulheres sobre os homens começou para as coortes nascidas após 1948 e após 1956 (C3, C4 e C5). As mulheres nessas coortes entraram e progrediram na escola durante os anos 60, 70 e 80, longo período que foi marcado pela expansão da educação em todos os níveis (com exceção da universidade após 1975). Em outras palavras, uma conseqüência positiva da expansão educacional no Brasil foi que ela facilitou a inclusão das mulheres. Contrastando-se a essa tendência geral, que é observada em muitos países, o padrão de desigualdade persistente em termos de vantagem socioeconômica não se aplica inteiramente ao Brasil. Duas questões são importantes. Primeiro, a análise detectou um declínio no efeito da educação da mãe (EM), da residência urbana até os 15 anos (U) e da ocupação do pai (OP) sobre a probabilidade de se completar um ano de escola(T1), especialmente para as duas coortes mais jovens, que entraram na escola depois da reforma de 1982. Detectou-se uma tendência similar para a probabilidade de se completar a educação elementar: os efeitos da educação da mãe (EM) e da ocupação do pai (OP) diminuem em particular para as coortes mais jovens, que entraram na escola depois da reforma de 1971. Esses achados indicam uma diminuição da desigualdade que está de acordo com a hipótese DSM, porque foi somente depois das reformas de 1971 e 1982 que a escolaridade básica passou a estar disponível para a maioria da população. Como os grupos mais bem situados já viam serem atendidas suas necessidades básicas de escolaridade quando as reformas foram implementadas, o declínio na desigualdade segue as predições da DSM. Ainda que este primeiro afastamento da desigualdade persistente fosse esperado, ele revela ainda uma particularidade do caso brasileiro: o 62 declínio da desigualdade nas transições educacionais mais elementares – conclusão de um ano e de quatro anos de educação primária – começou apenas nos anos 1970. Essa evidência confirma a expansão tardia do sistema educacional brasileiro e é também uma indicação de que estudos de estratificação educacional em países em desenvolvimento devem prestar atenção às transições básicas, tais como as probabilidades de se entrar na escola, pois, se elas forem negligenciadas, as chances de se estimarem probabilidades erradas em transições educacionais subseqüentes podem se tornar um problema para a análise empírica. Em segundo lugar, minha análise detectou um aumento nos efeitos da educação da mãe sobre a probabilidade de se entrar na universidade para as coortes dos nascidos após 1948. Nos casos em que entraram na universidade, esses indivíduos o fizeram durante os anos 1970 e 1980, período marcado por uma enorme expansão da educação secundária e por uma estagnação no número de vagas na educação terciária (ver Figura 2). Essas tendências criaram um gargalo na entrada na universidade, que se relaciona diretamente ao aumento na desigualdade observada. Esse achado referente à crescente desigualdade também pode ser explicado pela hipótese DSM. Como as reformas educacionais no Brasil levaram a uma expansão das escolas secundárias, que não se seguiu de uma expansão das instituições de nível terciário, um grande número de estudantes que completaram o secundário durante os anos 1980 enfrentaram esse gargalo, e cresceu a competição pelas vagas na universidade. Estudantes cujas mães tinham mais formação possuíam vantagens crescentes nessa competição, o que pode explicar o crescimento da desigualdade que foi observado. O caso brasileiro se soma à evidência da desigualdade crescente na Rússia durante a abertura pós-soviética dos mercados (Gerber, 2003; 1995). No Brasil, depois da reforma educacional de 1961, houve uma expansão da educação secundária, porém, durante o fim dos anos 70 e os 80, o investimento nas universidades se centrou nos programas de pós-graduação e na pesquisa e não na expansão das vagas na graduação (Castro, 1986). Esse contexto histórico levou à tendência esperada da crescente desigualdade de oportunidades no nível educacional superior no Brasil e também poderia ser explicado pela DSM. Há, contudo, outra explicação possível, relacionada à expansão da educação secundária pública e privada no Brasil, que não pode ser testada com os dados utilizados neste capítulo. Com as reformas de 1961 e 1971, a educação secundária se expandiu especialmente no setor público. Visto que se sabe que as escolas secundárias privadas são melhores do que as públicas, é muito provável que uma variável que cubra o tipo de escola secundária (pública ou privada) pudesse explicar 63 o aumento da desigualdade no acesso à universidade. Conquanto não se possa testar essa hipótese, por falta de dados, é importante deixar a questão em aberto para futuras análises nas quais se utilizem dados que estão sendo atualmente coletados no Brasil. Se essa expectativa estiver correta, aspectos da hipótese da “desigualdade efetivamente sustentada” (DES) poderiam ser importantes para explicar os padrões observados no Brasil. É também possível que a inclusão de uma variável para o tipo de escola (pública ou privada) viesse a alterar os resultados, o que indicaria vantagem persistente, e não aumento, na desigualdade. Essas questões permanecem em aberto para pesquisas futuras. Finalmente, as evidências acerca da raça e de efeitos socioeconômicos sobre a probabilidade de se realizarem as transições educacionais subseqüentes entre coortes nos permitem avaliar as quatro hipóteses sobre relações raciais no Brasil, que foram brevemente descritas na seção 2. Minhas análises indicam que os efeitos da raça são constantes entre as coortes de nascimento. Contudo, elas também mostram que os efeitos de classe são mais importantes que os de raça para todas as transições, a despeito do fato de que o efeito da classe diminui constantemente entre todas as transições e de que o efeito da raça aumenta para a última transição (conclusão de um ano de universidade). Esses achados confirmam as expectativas de Hasenbalg (1979), embora alguma qualificação seja necessária. A saber, a raça é um fator independente da estratificação escolar e não se diminui em importância, ao longo do tempo, com a industrialização. Devo acrescentar, no entanto, que a desigualdade de classe é claramente mais importante que a desigualdade de raça (como se vê na Figura 6). Contudo, a desigualdade racial está claramente presente e não muda, a despeito da impressionante expansão do sistema educacional. Uma interpretação fácil é a de que isso seria uma conseqüência da “discriminação racial”; porém, isso não está nos dados. As análises aqui apresentadas apenas indicam que a desigualdade racial é persistente, mas não que ela se deva à discriminação. O que poderia explicar, então, a continuidade dos efeitos da raça entre coortes? É ela conseqüência de baixa autoconfiança, de discriminação no sistema educacional ou de variáveis não medidas? Essas perguntas permanecem para serem respondidas, e espero que pesquisas futuras hajam de encarálas, usando, para tanto, dados novos e relevantes. 64 Referências bibliográficas ALBANEZ, Alicia, FERREIRA, Francisco e FRANCO, Creso. “A escola importa? determinantes da eficiência e eqüidade no ensino fundamental brasileiro.” Pesquisa e Planejamento Econômico 23, 2002 , pp.453476. ALVEZ, Fernanda. “Qualidade na educação fundamental pública nas capitais brasileiras: tendências, contextos e desafios.” Tese de doutorado, Departmento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. AZEVEDO, Thales. 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R Comentários 2 A Escolha de especificação de classe e variáveis independentes: 1 T(d) + S + U + R + EM + B + P + OP(ISEI) -11542.2 6596.2 11 0.222 2 T(d) + S + U + R + EM + B + P + OP(d) -11782.3 6584.2 19 0.180 3 T(d) + S + U + R + EM + B + P + OP(SEI) -11379.6 6921.5 11 0.233 B Incluir interaçõs de duas variáveis (dummies): transição*coorte e background*transição: 4 [3] + TC(d) -11167.7 7345.3 31 0.248 5 [4] + S*T(d) + U*T(d) + R*T(d) + EM*T(d) + B*T(d) + P*T(d) + OP*T(d) -10868.4 7943.8 59 0.263 C Incluir todas as interações entre duas variáveis de background, remover as não significativas: 6 [5] + todas as interações entre duas variáveis de background -10850.0 7980.8 79 0.269 B*P foi excluída porque é colinear 7 [5] + S*R -10865.4 7949.9 60 0.268 nenhuma interação D Identificar e restringir interações entre backgroud, transição 1, e coortes 8 [7] + todas as interações entre T1*C*background 9 [7] + S*T1*C(d) + U*T1*C(d) + EM*T1*C(d) -10849.7 7981.4 72 0.269 10 [9] especificação com 1 g.l.para S*T1*Ctrend, + U*T1*Ctrend and EM*T1*Ctrend -10839.3 8002.1 88 0.270 Entre background e transição -10852.1 7976.4 63 0.269 S*T1*Ctrend (1 2=1) (3 4=2) (5=3) U*T1*Ctrend (1 2 3 =0) (4 5=1) EM*T1*Ctrend (1=1) (2 3 4 5=0) E Identificar e restringir interações entre backgroud, transição 2, e coortes 11 [10] + todas as interações entre T2*C*background -10826.3 8028.2 91 0.271 12 [10] + S*T2*C(d) + RT2C(d) + ET2C(d) -10836.6 8007.5 75 0.270 13 [12] especificação com 1 g.l.para S*T2*Ctrend -10840.8 7999.2 66 0.270 S*T2*Ctrend (1 2 3 =1) (4 5=0) + R*T2*Ctrend + EM*T2*Ctrend R*T2*Ctrend (1=1) (2 3 4 5=0) EM*T2*Ctrend (1 2 3 4=1) (5=0) F Identificar e restringir interações entre backgroud, transição 3, e coortes 14 [13] + todas as interações entre T3*C*background -10819.4 8041.9 94 0.271 15 [13] + S*T3*C(d) -10835.1 8010.5 70 0.270 16 [15] especificação com 1 g.l.para S*T3*Ctrend -10836.4 8007.9 67 0.270 S*T3*Ctrend (1 2 3 =1) (4 5=0) 70 G Identificar e restringir interações entre backgroud, transição 4, e coortes 17 [16] + todas as interações entre T4*C*background -10814.2 8052.3 95 0.271 18 [16] + OP*T4*C(d) -10831.3 8018.2 71 0.270 19 [18] especificação com 1 g.l.para OP*T4*Ctrend -10831.7 8017.3 68 0.270 OP*T4*Ctrend (1 5 =0) (2 3 4 =1) H Identificar e restringir interações entre backgroud, transição 5, e coortes 20 [19] + todas as interações entre T5*C*background -10805.3 8070.1 96 0.272 drop U*T5*C(d) because it is 21 [19] + S*T5*C(d) + U*T5*C(d) + EM*T5*C(d) -10811.7 8057.3 80 0.272 constant, not presented 22 [21] especificação com 1 g.l.para S*T5*Ctrend, -10815.3 8050.0 71 0.271 S*T5*Ctrend (1 2=0) (3 4 5=1) U*T5*Ctrend and EM*T5*Ctrend EM*T5*Ctrend (1 2=1) (3 4=2) (5=3) I Restringir interações entrebackgroud e transições 23 [22] especificação com 1 g.l.para S*Ttrend, U*Ttrend, R*Ttrend, EM*Ttrend, -10835.0 8010.6 50 0.270 Ttrend*S (1 5=1) (2 3 4 =0) B*Ttrend, P*Ttrend, and OP*Ttrend Ttrend*EM (1=1) (2 3=2) (4=3) (5=4) Ttrend*U (1=1) (2=2) (3=3) (4 5=4) Ttrend*R (1=1) (2=3) (3 4=4) (5=2) Ttrend*B (1 2 3 5=0) (4=1) Ttrend*P (1 2 3 5=0) (4=1) Ttrend*OP (1 2=0) (3 4 5=1) J Restringir transições por coortes 24 [23] especificação com 1 g.l.para T*Ctrend -10848.4 7983.9 35 0.269 T1*Ctrend (1=1) (2=2) (3=3) (4 5=4) T2*Ctrend (1 2=0) (3 4 5 =1) T3*Ctrend (1 2=0) (3 4 5 =1) T4*Ctrend (1 2 4 5=0) (3 =1) T5*Ctrend (1 3=2) (2=1) (4=3) (5=4) L Restringir efeito principal de transições 25 [24] especificação com 1 g.l.para para transições -10853.0 7974.6 32 0.269 Tendência das transições (1=2) (2=1) (3=4) (4=3) (5=2) G Ajustes fi nais 26 [25] - R*T2*Ctrend - OP*T4*Ctrend U*T5*Ctrend -10861.8 7957.1 29 0.268 Nota: Transições = termo geral, S = sexo, U = residência urbana até 15 anos, R = região de nascimento, EM = educação da mãe, B = branco, P = pardo, OP = ocupação do pai, Ttrend = recodificação ordinal para transições (padrão definido entre parenteses), Ctrend = recodificação ordinal para coortes (padrão definido entre parenteses), termos de interação usam um símbolo de multiplicação (*) e os nomes relevantes, defi nições dummy são (d), e Especificações com 1 g.l. são defi nidas como trend. 71 Tabela A2 – Coeficientes do modelo de regressão lógistica escolhido (26 na tabela A1): Brasil, 1996-97 Variáveis Independentes Coeficientes Transições (1 5=2) (2 4=1) (3=3) -0.675 *** S 0.258 *** U 1.859 *** R 1.134 *** EM 0.521 *** Ba 0.879 *** Pa 0.445 *** OP 1.062 *** Ctrend*T1 (1=1) (2=2) (3=3) (4=4) (5=5) 0.330 *** Ctrend*T2 (1 2=1) (3=2) (4=3) (5=4) 0.220 *** Ctrend*T3 (1 2=1) (3 4=3) (5=2) 0.217 *** Ctrend*T4 (1 2 5=0) (3=3) (4=1) 0.109 ** Ctrend*T5 (1 2=1) (3=2) (4=3) (5=4) -0.533 *** Ttrend*S (1 5=1) (2 3 4=0) -0.575 *** Ttrend*U (1=1) (2=2) (3=3) (4 5=4) -0.430 *** Ttrend*R (1=1) (2=3) (3 4=4) (5=2) -0.328 *** Ttrend*EM (1=1) (2 3=2) (4=3) (5=4) -0.138 *** Ttrend*B (1 5=1) (2=3) (3=3) (4=4) -0.158 *** Ttrend*P (1 3 5=1) (2=2) (4=3) -0.212 *** Ttrend*OP (1 2=0) (3 4 5=1) -0.414 *** S*R -0.150 ** S*Ctrend*T1 (1 2=1) (3 4=2) (5=3) 0.236 *** U*Ctrend*T1 (1 2 3=0) (4 5=1) -0.434 ** EM*Ctrend*T1 (1=1) (2 3 4 5=0) 0.226 ** S*Ctrend*T2 (1 2 3=1) (4 5=0) -0.333 *** EM*Ctrend*T2 (1 2 3 4=1) (5=0) 0.090 *** S*Ctrend*T3 (1 2 3=1) (4 5=0) -0.382 *** S*Ctrend*T5 (1 2=0) (3 4 5=1) 0.578 *** EM*Ctrend*T5 (1 2=1) (3 4=2) (5=3) 0.064 *** Constante 0.361 ** Nota: Transições = termo geral para transições, S = sexo, U = residência em área urbana até 15 anos, R = região de nascimento, EM = educação da mãe, B = branco, P = pardo, OP = ocupação do pai, Ttrend = recodificação ordinal para transições (padrão defi nido entre parênteses) , Ctrend = recodificação ordinal para coortes (padrão defi nido entre parenteses), termos para interação utilizam o símbolo (*) para multiplicação e os nomes de variáveis Relevantes. a Categória de referência Black 72 Tabela A3 – Parâmetros estimados pelo modelo logit escolhido para analisar o effeito das variáveis de background na transição 1 (T1) e na 2 (T2) Modelo para T1: Completa 1 ano de escola Variáveis Coef. C2 0.321 C3 0.608 C4 0.943 Modelo para T2: Completar Elementar Variáveis Coef. C2 0.279 *** C3 0.342 ** *** C4 0.392 ** ** ** C5 1.011 *** C5 0.433 ** C6 1.165 *** C6 0.327 ** *** C7 1.206 *** S -0.562 *** S 0.367 EM 0.589 *** EM 0.234 *** Wa 0.623 *** Wa 0.374 *** Ba 0.220 ** Ba 0.001 U 1.434 *** U 0.793 R 0.779 *** R -0.785 ** OP 1.233 *** OP 0.882 *** Ctrend*S (1 2=1) (3 4=2) (5=3) (6 7=4) 0.322 *** Ctrend*S (1 2 3=1) (4 5 6=0) -0.564 *** Ctrend*U (1 2 3=0) (4 5=1) (6 7=2) -0.383 *** Ctrend*EM (1=0) (2 3 4 5=1) (6 7=2) -0.116 ** Ctrend*EM (1 2 3 4=1) (5 6 =0) 0.102 ** Ctrend*R (1 2=1) (3 4 5 6=2) 0.547 *** *** Ctrend*OP (1 2 3 4 5=0) (6 7=1) -0.536 ** Ctrend*OP (1 2 3=1) (5 6 7=0) 0.152 ** _cons -0.481 ** _cons -0.009 * Estatísticas de ajuste Log-Likelihood -3487.3 -3173.197 Modelo LR X2 3050.3 1687.728 Parâmetros McFadden Adj R2: BIC 17 16 0.301 0.206 -2889.3 -1551.543 Nota: S = sexo, U = residência urbana até 15 anos, R = região de nascimento, EM = educação da mãe, B = branco, P = pardo, e OP = ocupação do pai, e Ctrend = especificação 1 g.l. * p < .05, ** p<.01, *** p<.001 (teste de duas caudas) a Categoria de referência preto 73 CAPÍTULO 2 Cor, educação e casamento: tendências da seletividade marital no Brasil, de 1960 a 20001 co-autoria de Nelson do Valle Silva – IUPERJ 1 – Introdução Estudos sobre casamentos inter-raciais no Brasil têm indicado que os indivíduos autoidentificados como pardos têm chances maiores de se casar com brancos do que com pretos. Ou seja, no mercado matrimonial, pardos se encontram relativamente mais próximos de brancos, e os pretos parecem estar mais isolados se comparados a esses dois outros grupos (Silva, 1987). Esses resultados sugerem que as distâncias separando brancos, pardos e pretos, no mercado matrimonial, não seriam equivalentes às distâncias mais estritamente socioeconômicas entre os grupos de cor, ou raciais, uma vez que essas desigualdades no sistema educacional e no mercado de trabalho indicam claramente que pardos estão bem mais próximos de pretos e que ambos os grupos estão em clara desvantagem em relação aos brancos. Além O autor agradece o apoio do Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences at Stanford University, onde este capítulo foi escrito. Agradeço em especial a Nelson do Valle Silva por ter concordado em publicar este artigo neste livro. O artigo foi publicado anteriormente em DADOS – Revista de Ciências Sociais, volume 52, número 1, 2009. Também apresentamos o trabalho no Center for Advanced Study in the Behavioral Science (Stanford University), na reunião da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em outubro de 2008, e no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) em novembro de 2008. Agradecemos os comentários de participantes em todos estes encontros. 1 75 disso, utilizando dados de 1980, os estudos sobre o mercado matrimonial prevêem um crescente aumento dos casamentos inter-raciais (Silva, 1992). Esses padrões de casamento inter-racial favorecem o aumento da miscigenação e sugerem que as relações raciais no Brasil se caracterizam por uma crescente fluidez ou abertura à aceitação dos diferentes grupos de cor na esfera dos relacionamentos sociais ou de sociabilidade. Os dados que analisamos no presente capítulo confirmam a indicação de que há um aumento dos casamentos inter-raciais no Brasil e, portanto, um provável aumento gradativo da miscigenação ao longo do último meio século. Em 1960, 1 em cada 10 de todos os casamentos era entre pessoas de grupos de cor diferentes; em 1980, esse número aumentou para 1 em cada 5; em 2000, para 1 em cada 3. Por outro lado, também sabemos que, nesse mesmo período, entre 1960 e 2000, o Brasil se transformou radicalmente em termos de estrutura social. Deixou de ser um país predominantemente rural para se tornar uma nação altamente industrializada, expandiu o acesso à educação em todos os níveis, modernizou-se de maneira rápida e definitiva. Acompanhando essa modernização, paralelamente ao aumento dos casamentos inter-raciais, ocorreram duas outras mudanças que podem a ele estar relacionadas. Por um lado, houve uma diminuição das barreiras educacionais aos casamentos (Silva, 2003), ou seja, o percentual de casamentos entre maridos e esposas com níveis educacionais distintos aumentou ao longo dessas quatro décadas. Em 1960, somente 20,8% dos casamentos eram entre maridos e esposas com níveis educacionais distintos, ao passo que, em 1980, esse percentual aumentou para 40,6% e, em 2000, para 51,9%. Somando-se a esse aumento de casamentos intereducacionais, verifica-se um aumento do acesso ao sistema educacional, bem como uma progressão relativa de pretos e pardos, levando a uma diminuição proporcional das desigualdades educacionais entre os grupos de cor. Enquanto em 1960 os brancos tinham em média 2,2 anos a mais de educação do que os pardos (com diferença muito semelhante entre brancos e pretos), em 2000 essa diferença se reduzia para 1,2 ano a mais. Em outras palavras, a desigualdade educacional entre brancos e não brancos diminuiu consideravelmente. Uma hipótese que pode ser interessante seria aquela propondo que a diminuição das barreiras educacionais ao casamento e das desigualdades educacionais entre os grupos de cor pode estar relacionada ao aumento dos casamentos inter-raciais, hipótese esta que, como vimos, foi prevista nos estudos anteriores e confirmada pelos dados analisados no presente capítulo. Nosso objetivo aqui será investigar a relação entre essas três tendências observadas no Brasil nas últimas décadas. Tentaremos responder 76 às seguintes perguntas: em que medida diminuíram as barreiras ao casamento inter-racial e intereducacional entre 1960 e 2000? Qual é a relação entre esses dois tipos de barreira? Será que a diminuição das barreiras ao casamento inter-racial pode ser explicada, em parte, pela diminuição das barreiras ao casamento intereducacional? Será que pode ser explicada pela diminuição das desigualdades educacionais entre os grupos raciais? Para responder a essas perguntas, utilizamos amostras dos censos populacionais de 1960, 1980 e 2000. Estudos anteriores sobre casamento inter-racial se concentraram nos anos específicos de 1980 ou 1991 e só analisaram as tendências de longa duração utilizando informações sobre coortes de idade (Silva, 1992; Telles, 2004). Já os estudos sobre barreiras educacionais ao casamento analisaram as tendências históricas, nas décadas de 1980 e 1990, utilizando dados de 1981, 1990 e 1999. Nenhum desses estudos, no entanto, combinou a análise das mudanças nas barreiras raciais e educacionais com os casamentos. Ao analisarmos conjuntamente a mudança nos dois tipos de barreira entre 1960 e 2000, seremos capazes de verificar em que medida a diminuição das barreiras ao casamento interracial é um reflexo da diminuição das barreiras educacionais ao casamento e da desigualdade educacional entre os grupos de cor. Com o objetivo de investigar essas questões, dividimos este capítulo em nove partes. A primeira é esta introdução. Na segunda, apresentamos o debate teórico sobre seletividade matrimonial; na terceira, a literatura sobre seletividade matrimonial no Brasil. Na quarta parte, descrevemos os dados e modelos utilizados. Na quinta, analisamos as taxas absolutas de casamento por cor e educação. Na sexta e na sétima, mostramos o ajuste dos modelos utilizados para analisar a seletividade matrimonial por cor e educação, respectivamente. Na oitava parte, analisamos conjuntamente (em um mesmo modelo) a seletividade matrimonial por cor e educação. A última parte se debruça sobre as conclusões que podemos tirar das análises feitas. 2 – Teorias sobre seletividade marital Um tema que tem uma longa tradição dentro das ciências sociais é o da escolha conjugal, ou, em outro termo também usual, a seletividade marital. Nesse caso, tenta-se explicar a tendência empírica e universalmente observada que as pessoas têm em escolher seu cônjuge, seja dentro de seu próprio grupo social, a chamada endogamia (por oposição ao casamento fora do grupo, a exogamia), seja entre aqueles com situação social seme77 lhante, a denominada homogamia (por oposição ao casamento socialmente desigual, a heterogamia). Assim, o estudo da seletividade marital diz respeito à análise da relação entre as características sociais dos esposos, bem como de suas conseqüências para a dinâmica da vida social. Esse tema tem sido estudado em grande diversidade de contextos sociais e nacionais (Murstein, 1976; Bozon e Héran,1989; Forsé e Chauvel, 1995; Smits, Ultee e Lammers, 1998), dando origem a uma produção bibliográfica bastante extensa, que foi objeto de uma útil revisão por Kalmijn (1998). Uma grande parte, se não a maioria dos estudos sociológicos sobre padrões de casamento entre diferentes grupos sociais, tem dois objetivos principais: por um lado, delinear as “fronteiras” que separam esses grupos; por outro, estudar as conseqüências dos padrões de intercasamento para as gerações futuras. Pelo menos desde os trabalhos de Weber (1978) sobre fechamento dos grupos de status e criação de grupos étnicos, estudiosos vêm considerando o padrão de casamentos um indicador das fronteiras mediando a relação entre grupos sociais distintos. Sobre grupos étnicos, por exemplo, Weber afirma claramente que: “Em todos os grupos com uma consciência ‘étnica’ desenvolvida, a existência ou ausência de intercasamentos (connubium) seria uma conseqüência normal da atração ou segregação racial” (1978:385; tradução dos autores). Tendo em vista que o casamento é, em geral, uma forma de relacionamento íntimo e duradouro, os padrões de intercasamento – raciais, nacionais, religiosos, socioeconômicos etc. – podem ser usados como uma medida tanto das barreiras que separam os grupos quanto da aceitação mútua entre os membros desses grupos. A heterogamia, ou intercasamento, pode ser entendida como uma forma de relação “íntima” entre grupos distintos; inversamente, a endogamia, ou homogamia, pode ser vista como indicador do grau de fechamento dos grupos sociais. Não são apenas as fronteiras entre grupos sociais que se revelam nos padrões de intercasamento, mas também as possibilidades de mudança nessas barreiras. Se houver índices altos de heterogamia, ou exogamia, em uma determinada sociedade, os filhos de casamentos mistos terão maior liberdade para se identificar com mais de um grupo, o que significa que uma maior miscigenação ou mistura dos grupos se tornará mais provável. Embora os padrões de intercasamento possam ser usados para definir fronteiras e formas de aceitação entre grupos sociais, como sugeria Weber, os estudiosos contemporâneos do tema propõem algumas especificações teóricas e metodológicas importantes na tentativa de explicar os mecanismos que levam aos padrões observados. Em particular, a literatura parte da idéia de que as taxas de endogamia e exogamia observadas em qualquer sociedade são o produto de forças sociais relacionadas a: (1) preferências 78 e vontades individuais; (2) influências dos grupos ou normas sociais; e (3) características estruturais dos mercados matrimoniais. Estudos sobre intercasamento devem elaborar modelos que especifiquem e mensurem explícita ou implicitamente essas três forças sociais. Na prática, a diferenciação metodológica entre variáveis relacionadas às preferências individuais e às influências dos grupos sociais (ou normas sociais) é difícil de ser feita em modelos estatísticos usando dados empíricos. Para organizar os conceitos envolvidos na discussão da seletividade por cor no casamento, podemos partir de uma representação gráfica (Figura 1), proposta por Silva (1987), com base nos estudos de Bumpass (1970) e Johnson (1980). Figura 1 – Esquema Conceitual da Análise da Seletividade Conjugal Elaboração dos autores Nos modelos estatísticos que elaboramos mais adiante, levamos em conta os seguintes fatores representados no esquema analítico acima: (b) similaridade socioeconômica e/ou educacional; (d) mercados locais (no caso, a escola); (e) composição populacional; (f) normas endogâmicas; e (g) 79 distância social. Na prática, é difícil distinguir (b) de (f) e (b) de (g), ou seja, é difícil verificar se são preferências individuais ou normas do grupo que influenciam os padrões de seletividade marital. Em contraste, os modelos log-lineares que utilizamos são adequados para distinguir as influências da composição populacional (e), das normas endogâmicas (f) e da distância social (g). Embora não tenhamos informações sobre os mercados locais, alguns autores sugerem que a homogamia educacional entre pessoas com algum nível universitário seria um reflexo do fato de a universidade ser um mercado local de casamento (Mare, 1991). Nesse sentido, também seria difícil, metodologicamente, distinguir as normas endogâmicas (f), em termos educacionais (principalmente entre universitários), do mercado local (d) representado pelas universidades. Outra limitação do modelo que utilizamos é o fato de não incluirmos características da segregação espacial (c). O efeito do preconceito (a) também será apenas presumido no modelo, na medida em que podemos imaginar que as normas endogâmicas (f) e a distância social (g) estão relacionadas não apenas às similaridades socioeconômicas (b) mas também ao preconceito (a). Apesar dessas limitações, cremos que o esquema acima (Figura 1) ajuda a organizar os conceitos e teorias utilizados nos estudos sobre seletividade marital. Em certa medida, todas as teorias sobre padrões de intercasamento levam em conta esses três aspectos que conformam os padrões observados. Não obstante, podemos, grosso modo, identificar teorias que dão maior ênfase a apenas um desses aspectos. O economista Gary Becker (1981), por exemplo, afirma que os indivíduos preferem e competem por parceiros que tenham características socioeconômicas valorizadas. Essas preferências, ou a maximização delas, seriam a principal força moldando os padrões de casamento observados. Por exemplo, as pessoas maximizam sua renda na medida em que procuram e encontram parceiros com recursos socioeconômicos atrativos. As competições por recursos socioeconômicos no mercado matrimonial poderiam ser investigadas a partir da associação estatística entre as características dos cônjuges, que por sua vez levam a padrões agregados de homogamia. Além disso, Becker afirma que a natureza da competição, no mercado matrimonial, variaria de acordo com o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade. Por exemplo, em sociedades em que há uma forte divisão sexual entre trabalho pago e doméstico, os homens procurariam se casar com mulheres que desempenhem bem o trabalho doméstico e de procriação, e as mulheres procurariam homens com capacidade de produzir mais renda. Argumentos semelhantes foram propostos para a troca de prestígio e status no mercado matrimonial, ou seja, quando o status ou prestígio 80 depende do trabalho do homem, haveria uma troca por outros aspectos valorizados das mulheres, como beleza, origem de classe ou sofisticação cultural (Jacobs e Furstenberg Jr., 1986). Tanto as trocas econômicas quanto as de prestígio ou status vêm passando por enormes modificações na medida em que as mulheres estão participando cada vez mais do mercado de trabalho. Essa mudança estaria levando a uma tendência crescente a valorização dos recursos propriamente socioeconômicos das mulheres nos mercados matrimoniais (Davis, 1984). Em contraste com essas teorias enfatizando a competição no mercado matrimonial, alguns autores sugerem que as pessoas tendem a se casar com pessoas com as quais compartilhem valores e visões de mundo. Dessa forma, semelhanças culturais favoreceriam a atração entre as pessoas, facilitariam a convivência e contribuiriam para o entendimento mútuo (DiMaggio e Mohr, 1985; Kalmijn, 1994). Na prática, a partir de análises empíricas, é muito difícil definir se as pessoas escolhem seus parceiros em uma competição no mercado matrimonial ou em um processo de procura por pessoas culturalmente semelhantes. Tendo em vista essa dificuldade metodológica, alguns autores argumentam que diversas características sociais estão correlacionadas a recursos socioeconômicos e que, portanto, a homogamia, ou endogamia, em termos de algumas características sociais, seria na realidade uma conseqüência indireta (ou by-product) desse tipo de correlação (Kalmijn, 1991a). Segundo Murstein (1976), o processo social para se encontrar um parceiro tem duas etapas. Em um primeiro momento, as pessoas criam círculos de amigos, conhecidos e possíveis candidatos ao casamento, com os quais compartilham certas características sociais em comum. Em um segundo momento, as pessoas encontram seus parceiros por meio da interação nesses círculos sociais relativamente homogêneos em termos de características sociais, econômicas e culturais. Por causa desse tipo de processo, seria comum encontrarmos uma forte correlação entre diferentes características dos cônjuges. Por exemplo, como renda ou educação estão correlacionadas aos grupos de cor no Brasil, poderíamos supor que a homogamia racial é, na realidade, uma conseqüência indireta da convivência dos indivíduos com outros tendo recursos socioeconômicos semelhantes. Essa última perspectiva é relevante para nossas análises neste capítulo, uma vez que investigamos em que medida os padrões de casamento inter-racial no Brasil estão relacionados (ou são um by-product) aos padrões de seletividade matrimonial por nível educacional dos cônjuges. Nossas análises permitem distinguir esses dois efeitos. 81 Além das preferências individuais, há normas (influências) dos grupos e fatores demográficos que podem estar relacionados aos padrões de casamento. Ao teorizar sobre casamentos inter-raciais nos Estados Unidos, Merton (1941) argumenta que normas de endogamia seriam muito fortes para os diferentes grupos étnicos. Outros autores enfatizam que a expansão educacional levaria os indivíduos a se tornarem mais independentes em relação às normas de seus grupos de origem, o que implicaria um aumento dos casamentos entre grupos raciais ou com origens de classe distintas (Qian, 1997). Valores particularistas relacionados aos grupos de origem seriam substituídos por valores universalistas ligados à sociedade moderna, em que as pessoas tendem a ter mais educação (Smits, Ultee e Lammers, 1998). Mais uma vez há dificuldades metodológicas para distinguir preferências individuais de normas dos grupos, uma vez que os estudos empíricos estão, na realidade, apenas analisando a associação estatística entre características dos cônjuges. Por exemplo, se a associação entre cor de maridos e de esposas estiver diminuindo ao longo do tempo, não temos como decidir se foi por causa de mudanças nas preferências dos indivíduos (o preconceito estaria diminuindo) ou nas normas de endo(homo) gamia impostas pelas famílias brancas, pardas e pretas. Poderíamos mesmo argumentar que, no mundo social, ambas estão relacionadas. De qualquer forma, o modelo que elaboramos mais adiante permite controlar a associação entre cor de maridos e de esposas por seus respectivos níveis educacionais. Podemos, portanto, testar se a distância entre os grupos de cor está relacionada (é um by-product) às distâncias educacionais entre cônjuges. A idéia weberiana de que os padrões de casamento são medidas adequadas das fronteiras entre grupos sociais e de status pode ser perseguida a partir dos modelos que apresentamos, mas não podemos decidir se são preferências individuais ou normas sociais que conformam esses padrões. Apesar dessas limitações, os modelos que utilizamos são adequados para separar o efeito da composição populacional (e) do efeito da associação estatística entre características de cônjuges, que poderia ser tanto um fruto das preferências individuais (1) quanto das normas dos grupos (2) ou de uma combinação entre ambas – (1) e (2) –, tal como representado no esquema da Figura 1. Em um importante estudo sobre círculos sociais, Blau e Schwartz (1984) propuseram uma teoria estrutural sobre os casamentos que aponta para a importância de aspectos demográficos, relativos ao tamanho dos grupos, e geográficos, relativos à distribuição espacial dos grupos. Do ponto de vista demográfico, a endogamia está negativamente relacionada ao grau de heterogeneidade da população. Para explicar essa tendência, Blau e 82 Schwartz nos dão o exemplo de duas populações hipotéticas constituídas cada uma por dois grupos sociais. A primeira população é heterogênea, tendo 50% em cada grupo social (por exemplo, 100 no grupo A e 100 no B), enquanto a segunda é relativamente homogênea, tendo 90% em um grupo e 10% no outro (por exemplo, 180 no grupo A e 20 no B). Ambas as populações têm número igual de homens e mulheres. Na população heterogênea, o número de mulheres casando com homens do mesmo grupo é 0,5 x 50 = 25 para A e 0,5 x 50 = 25 para B, ou seja, 50% dos casamentos seriam endogâmicos. Em contraste, na população homogênea, o número de mulheres casando com homens do mesmo grupo é 0,9 x 90 = 81 para A e 0,1 x 10 = 1 para B, ou seja, 82% dos casamentos seriam endogâmicos. Isso indica que, em populações heterogêneas, a endogamia é menor do que em populações homogêneas, se considerarmos que os casamentos ocorrem aleatoriamente. Por exemplo, considerando apenas brancos e não brancos, podemos dizer que, mesmo se não houvesse associação entre raça dos cônjuges no Brasil e nos Estados Unidos (ou seja, se o casamento inter-racial fosse aleatório), teríamos mais endogamia racial nos Estados Unidos do que no Brasil, simplesmente pelo fato de que a população norte-americana é mais homogênea (88% de brancos e 12% de não brancos – afro-americanos) do que a brasileira (54% de brancos e 45% de não brancos – pretos e pardos)2. No entanto, como sabemos, existe uma significativa associação estatística na escolha conjugal no que diz respeito à cor dos cônjuges (bem como a outras características). Em outras palavras, sabemos que as escolhas conjugais não são aleatórias. O esquema da Figura 1 parte da idéia de que há forças sociais unindo e separando pessoas pertencentes a diferentes grupos sociais e com diversas características, o que implica dizer que os casamentos não são aleatórios. Por isso, devemos considerar tanto o tamanho dos grupos sociais quanto a associação entre as características dos cônjuges mesmo que não saibamos bem se essa associação é fruto de preferências individuais (1) ou de normas dos grupos (2), como já argumentamos. Se imaginássemos que, no exemplo das populações A e B do parágrafo anterior, também houvesse associação estatística entre A e B, teríamos taxas de endogamia variando de acordo tanto com o nível de heterogeneidade/homogeneidade (tamanho dos grupos) quanto com o grau de associação estatística, o que significa que as taxas seriam diferentes Esses percentuais incluem apenas as populações branca e afro-americana para os Estados Unidos em 1998, e as branca e não-branca (parda e preta) para o Brasil em 2000. 2 83 das descritas para o caso de casamentos aleatórios. Em outras palavras, precisamos de um modelo que separe o efeito do tamanho dos grupos (da heterogeneidade/homogeneidade) da associação estatística entre características dos cônjuges na escolha marital. Além disso, podemos dizer que, em um modelo que leve em conta o tamanho dos grupos sociais, o grau de associação estatística entre as características dos cônjuges revela as preferências individuais (1) e/ou as normas dos grupos (2) que também conformam os padrões de intercasamento. Na seção sobre a metodologia adotada, apresentamos modelos log-lineares que atendem a essas exigências e que são, portanto, adequados para o estudo dos padrões de intercasamento. Antes, precisamos fazer uma pequena revisão da literatura brasileira sobre seletividade marital por cor e educação. 3 – A escolha conjugal por cor no Brasil Tendo em vista a importância dos intercasamentos para definir as fronteiras entre grupos sociais, não é novidade dizer que o tema dos casamentos inter-raciais e da miscigenação é fundamental para o debate sobre relações raciais no Brasil. De fato, há um conjunto razoavelmente numeroso de estudos sobre casamentos inter-raciais. Os três tipos de abordagem mais frequentemente adotados nesses estudos são: observações antropológicas ou qualitativas, registros civis de casamento e dados agregados (como censos e pesquisas por amostragem populacional). Enquanto os estudos fazendo referência à importância do tema dos casamentos inter-raciais para o entendimento das relações raciais no país são relativamente numerosos, há apenas algumas poucas pesquisas mais minuciosas sobre o tema. Os estudos usando observação qualitativa e registros civis de casamento tendem a focalizar regiões específicas do país. Analisando registros civis referentes aos anos 1933 e 1934, Pierson (1942) afirma que a incidência de casamentos inter-raciais na Bahia é muito baixa. Em contraste, Azevedo (1966) utiliza métodos antropológicos e sugere que, na década de 1950, praticamente um em cada cinco casamentos era inter-racial. Enquanto o trabalho de Pierson não se concentra no tema dos casamentos, Azevedo escreveu diversos artigos especificamente sobre o tema (1955; 1963; 1966; 1975). Nesses estudos, o autor afirma que os padrões de casamento inter-racial seguem uma série de normas ideais e de comportamentos reais. 84 Essas normas ideais e seus respectivos padrões reais são os seguintes: (1) idealmente, pessoas de cores diferentes podem se casar, mas na prática há sempre desconforto e tensão nas famílias quando ocorrem esses tipos de casamento; (2) o casamento entre homens mais escuros e mulheres mais claras seria mais aceito, e de fato esse tipo de casamento seria mais comum e menos problemático do que o inverso; (3) casamentos de tipos fisicamente mais próximos seriam mais aceitos, mas na prática a distância de cor que separa os tipos diferentes diminui na medida em que os casamentos se dão em classes ou grupos de status mais altos; e (4) casamentos inter-raciais são mais aceitos se os homens mais escuros tiverem status mais alto do que as mulheres, mas, de fato, em casamentos socialmente assimétricos, a diferença de cor é mais aceita do que em casamentos socialmente mais simétricos. Como veremos mais adiante, há evidências que comprovam a idéia de que homens mais escuros tendem a se casar com mulheres mais claras em maior proporção do que mulheres mais escuras com homens mais claros. Vários estudos qualitativos sugerem esse padrão (Azevedo, 1955; 1963; Willems, 1961). É interessante notar que, embora Azevedo e Pierson tendam a concordar que as relações raciais no Brasil são relativamente harmônicas, ambos observam uma incidência muito baixa de casamentos inter-raciais mesmo na Bahia, que seria o estado mais miscigenado. Além disso, a perspectiva de Azevedo se diferencia à medida que mostra as tensões relacionadas aos casamentos inter-raciais. Em ambos os casos, no entanto, há evidentemente limitações relacionadas aos métodos utilizados, uma vez que estudos qualitativos não possibilitam generalizações sobre os padrões observados. Além desses estudos, o trabalho mais pormenorizado sobre o tema de que temos conhecimento é a tese de doutorado do padre Austin Staley (1959), intitulada Racial Democracy in Marriage: A Sociological Analysis of Negro-White Intermarriage in Brazilian Culture. A pesquisa de Staley foi bastante detalhada e extensa, tendo utilizado uma série de metodologias distintas: uma análise de registros civis, uma pesquisa amostral sobre a atitude de jovens estudantes, uma análise de conteúdo de textos literários e um conjunto de entrevistas pormenorizadas com casais inter-raciais. Destacamos as seguintes conclusões de Staley, baseadas sobretudo nas entrevistas que fez: (1) no Brasil, uma boa proporção de casais inter-raciais revela um total desconhecimento da existência de preconceito racial nos círculos familiares e de amizade, enquanto um segundo tipo de casal se caracteriza pelo isolamento social e também não percebe a existência de preconceito (cerca de 70% dos casais inter-raciais estudados por Staley 85 estão nessas duas situações); (2) graus variados de preconceito são observados em todas as classes e partes do Brasil; (3) quanto mais elevada a posição social, maior a resistência ao casamento inter-racial. Embora Staley tenha mostrado que, a partir dos registros civis, na década de 1950 havia uma incidência muito baixa de casamentos interraciais, ele dá mais ênfase ao fato de a maioria dos casais que entrevistou ter desconhecimento de preconceito racial. Nesse sentido, conclui que: “[...] a sociedade brasileira parece ser capaz de conciliar o inconciliável. Pode mesmo haver uma ‘conspiração natural inconsciente’ para ignorar o conflito existente entre a norma geral de igualdade racial e normas específicas governando relações inter-raciais ao nível da família [...]. A democracia racial brasileira permanece como uma das mais admiráveis na sociedade humana moderna” (1959:127). Enquanto Azevedo (1955) mostra os conflitos e tensões relacionados aos casamentos inter-raciais, Staley (1959) enfatiza a relativa falta de percepção de preconceito. Talvez essas conclusões opostas estejam relacionadas ao fato de que Azevedo analisou principalmente os casamentos inter-raciais nos grupos de elite e Staley em uma gama mais ampla de estratos sociais. De fato, ambos sugerem que os casamentos inter-raciais tenderiam a ser mais conflituosos e tensos à medida que se sobe na escala de posições socioeconômica. De qualquer forma, ambos os estudos baseiam suas conclusões em amostras não representativas da população brasileira. Foi apenas na década de 1980 que estudos sobre padrões nacionais de casamentos inter-raciais foram realizados. Usando dados do censo de 1980, Silva (1987) chega a algumas conclusões relevantes e faz algumas previsões sobre as tendências dos casamentos inter-raciais. A primeira conclusão é que, em termos de casamentos, os pardos estão mais próximos dos brancos do que dos pretos. Como afirma o autor, [...] contrariamente ao que sabemos das distâncias socioeconômicas entre os grupos de cor, o grupo pardo ocupa uma posição realmente intermediária entre brancos e pretos. De fato, parece mesmo estar ligeiramente mais próximo do grupo branco do que do grupo preto. O padrão dicotômico observado nos estudos socioeconômicos, isto é, brancos claramente diferenciados de pardos e pretos, estes últimos ocupando posição muito próxima entre si, claramente não se reproduz nos padrões de distâncias sociais implícitas nos padrões de casamento inter-racial no Brasil. Estes resultados sugerem que as distâncias sociais no casamento não são de natureza primariamente socioeconômica, seguindo talvez outras hierarquias como, por exemplo, hierarquias de status ou de prestígio (Silva, 1987:50). 86 Silva destaca que esse padrão favorece a miscigenação e prevê uma diminuição crescente não apenas das taxas absolutas de endogamia racial mas também das barreiras, dificultando os casamentos inter-raciais. No que diz respeito às taxas absolutas de endogamia, o trabalho de Telles (2004) confirma as previsões de Silva (1992), ao passo que, ao analisar coortes de idade, Silva (1987) mostra uma tendência à diminuição das distâncias sociais entre os grupos de cor. Em outro artigo, o autor (1992) mostra uma tendência à diminuição das taxas de casamento inter-racial entre as diversas regiões do Brasil, fato que também é confirmado no estudo de Telles (2004) sobre o tema. Embora Silva e Telles apresentem algumas análises sobre a relação entre casamentos inter-raciais e nível educacional dos cônjuges, sugerindo que não há interferência entre padrões de casamento por cor e por nível educacional, ambos os autores se limitam a analisar taxas absolutas de casamento e sua relação com níveis educacionais. Neste capítulo, fazemos a análise da relação entre seletividade marital por cor e educação não apenas no que diz respeito às mudanças demográficas representadas nas taxas absolutas mas também no nível da associação estatística que, como vimos anteriormente, pode ser usada para descrever as preferências individuais e/ou as normas sociais que estão relacionadas aos padrões observados de endogamia e exogamia. Dessa perspectiva, parece realmente haver uma lacuna na literatura, tendo em vista que houve tanto uma diminuição da desigualdade racial em termos de acesso à educação quanto um aumento dos casamentos entre pessoas com educação diferente. Diversos estudos mostram que houve uma diminuição no hiato educacional entre brancos, pardos e pretos desde 1960 (Beltrão, 2005). Além disso, as barreiras educacionais da seletividade marital se tornaram significativamente mais permeáveis durante as décadas de 1980 e 1990 (Silva, 2003). Será que essas mudanças estão relacionadas ao aumento dos casamentos inter-raciais? Essa é a principal pergunta que pretendemos responder neste capítulo. 4 – Os dados e os modelos Para analisar a seletividade matrimonial por cor e educação, utilizamos a classificação de grupos de cor padrão no Brasil, que os divide entre brancos, pardos e pretos. Dessa forma, excluímos os amarelos e indígenas não apenas porque há modificação na classificação desses dois grupos entre 1960 e 2000, mas, sobretudo, porque constituem grupos extremamente pequenos e não podem ser significativamente incluídos nas 87 análises estatísticas elaboradas neste capítulo. Quanto aos grupos educacionais, fazemos as seguintes distinções: 0 a 3 anos (sem escolaridade e/ou elementar incompleto); 4 a 7 anos (elementar completo); 8 anos (primário completo); 9 a 11 anos (alguma educação secundária); e 12 ou mais anos de escolaridade (alguma educação universitária). Analisamos três censos populacionais brasileiros cobrindo os quarenta anos, de 1960 a 2000. Para 1960, utilizamos uma amostra de 1% do censo populacional; para 1980 e 2000, uma amostra de 5% dos respectivos censos. Tendo em vista que as amostras para 1980 e 2000 são muito grandes e poderiam influenciar os resultados dando maior peso a esses dois últimos anos, seguimos o procedimento padrão de multiplicar cada amostra por uma constante com o objetivo de obter três bancos de dados com número de casos equivalente (Raymo e Xie, 2000). Além disso, as análises estão restritas a casais em que marido e esposa tinham entre 20 e 34 anos no ano do censo, com o objetivo de restringir a amostra a pessoas que estejam provavelmente em seu primeiro casamento, tendo em vista que os padrões de segundos casamentos podem ser diferentes (Mare, 1991). Obviamente, estamos apenas presumindo que as pessoas estão em seu primeiro casamento, porque não temos a informação completa. De qualquer forma, essa pressuposição faz sentido em termos do que se sabe sobre padrões de casamento. Tal organização dos bancos de dados implica dizer que analisamos o “estoque de casamentos” em cada um dos três anos estudados, ou seja, investigamos a associação entre características das pessoas entre 20 e 34 anos que estavam casadas no momento em que o censo foi coletado. Uma alternativa, geralmente preferível, seria analisar a incidência de casamentos em um determinado período, o que exigiria o uso de dados longitudinais ou de painel para verificar as chances de casar com pessoas tendo diferentes características. Esse tipo de abordagem é preferível porque permite calcular tanto as chances de as pessoas se casarem quanto o momento ou tempo em que esses eventos ocorrem (Blossfeld, 2003). No Brasil, não há dados longitudinais que permitam esse tipo de desenho analítico, embora alguns bancos de dados possuam perguntas retrospectivas sobre o momento em que as pessoas se casaram e poderiam ser usados, com alguma limitação, para estudar a incidência de casamentos usando modelos de sobrevivência. De qualquer modo, bancos de dados sobre estoques de casamento vêm sendo utilizados com sucesso em várias pesquisas sobre tendências de longa duração na seletividade matrimonial (Kalmijn, 1991b; Mare, 1991; Schwartz e Mare, 2005). Aparentemente, no Brasil, as chances de pessoas entre 20 e 34 anos de diferentes grupos educacionais e de cor se casarem não se modificou 88 muito entre 1960 e 2000. Entre os brancos, 62% em 1960 e 57% em 2000 estavam casados quando tinham entre 20 e 34 anos, enquanto que entre os pardos esse percentual era de 65% em 1960 e 57% em 2000; entre os pretos, de 57% em 1960 e 54% em 2000. Brancos e pardos tinham em geral chances um pouco maiores do que pretos de estarem casados na faixa de idade que estamos estudando. Além disso, como vemos, há também uma leve tendência geral de diminuição no percentual de pessoas casadas entre 1960 e 2000 em todos os grupos de cor. Os dados para educação revelam não apenas que o percentual de pessoas com menos educação que estão casadas é levemente menor do que o percentual para pessoas mais educadas, mas que há também a mesma tendência de diminuição do percentual de pessoas casadas entre 1960 e 2000. Todas essas variações percentuais são relativamente pequenas, o que indica que não levar em conta as probabilidades de os indivíduos se casarem não estaria enviesando substancialmente as análises que fazemos. Em outras palavras, o estudo do estoque de casamentos nos anos dos censos provavelmente permite analisar com relativa segurança as tendências de endogamia e exogamia na sociedade brasileira. Outra questão metodológica a qual já nos referimos diz respeito à distinção entre os efeitos da composição populacional (tamanho dos grupos de cor e de educação) e da associação estatística entre características dos cônjuges. Essa associação poderia ser usada para definir o efeito das normas dos grupos e/ou das preferências individuais influenciando os padrões de casamento observados. Para dar conta dessa distinção, utilizamos modelos log-lineares que controlam a associação estatística pelo tamanho dos grupos de cor e de educação. Dessa forma, temos como separar os efeitos da composição populacional da associação estatística líquida entre as características dos cônjuges. Inicialmente, na próxima seção, apresentamos as taxas absolutas de casamento por cor e nível educacional de maridos e esposas. Em seguida, utilizamos modelos log-lineares para analisar a tabela cruzando cor do marido com cor da esposa e ano do censo (1960, 1980 e 2000). O principal objetivo é estimar um modelo que represente bem as barreiras ao casamento inter-racial e as propensões à endogamia em cada grupo de cor. No passo seguinte, analisamos a tabela cruzando nível educacional do marido com nível educacional da esposa e ano do censo, também visando descrever as principais barreiras educacionais e as chances de endogamia. Tendo em vista que os modelos para analisar as tendências entre 1960 e 2000, tanto da seletividade marital por cor quanto da por educação, são muito semelhantes, apresentamos a seguir apenas o modelo para a 89 seletividade por cor (o modelo para analisar a seletividade educacional é o mesmo, com duas linhas e duas colunas a mais). A equação do modelo log-linear é: H W T HT WT HWT ln(Fijt) = μ0 + βi + βj + βt + βit + βjt + (υij βt) (1), em que ln(Fijt) é o logaritmo natural da freqüência esperada na célula (i, j, t); i = cor do marido; j = cor da esposa; t = ano do censo; βiH = distribuição marginal da cor do marido; βjW = distribuição marginal da cor da esposa; βtT = distribuição marginal dos censos; βitHT e βjtWT representam as interações entre cor do marido e ano do censo e cor da esposa e ano do censo, respectivamente. O termo (υij βt)HWT define a interação entre cor de maridos e de esposas e sua variação ao longo do tempo. Nesse termo, se βt for definido como tendo o valor 1, temos o modelo de associação constante entre 1960 e 2000; caso βt varie livremente, temos um modelo especificando mudanças temporais nas barreiras de cor. Para o termo υij, as seguintes condições se aplicam: Essas condições definem que a interação entre cor de maridos e de esposas é definida por um padrão de barreiras simétricas (iguais para homens e mulheres) entre os três grupos de cor e pela homogamia entre pardos (a homogamia entre brancos e entre pretos também é dada pelas barreiras). O logaritmo das chances de intercasamento relativas a esse modelo é apresentado na Tabela 1: 90 Tabela 1 – Parâmetros para os Efeitos de Barreira e Homogamia no Modelo de Seletividade por Cor no Casamento Cor do Marido Cor da Esposa Branca Parda Preta Branca 0 υ1 υ1+υ2 Parda υ1 ξ2 υ2 Preta υ1+υ2 υ2 0 Elaboração dos autores Como mencionamos, o modelo para seletividade educacional no casamento também é um modelo de barreiras como o apresentado na Tabela 1 para a seletividade por cor. A diferença é que, em vez de estimar apenas duas barreiras, inclui quatro dessas barreiras e, em vez de estimar apenas um parâmetro de homogamia, inclui três (para as três categorias educacionais intermediárias). Na análise das chances de casamento inter-racial, a Equação 1 define o “modelo de barreiras de cor”, que pode apresentar associação constante ao longo dos três anos (Modelo 3 da Tabela 6) ou variação ao longo do tempo (Modelo 4 da Tabela 6). Na análise dos casamentos intereducacionais, a Equação 1 (agora ampliada porque contém duas linhas e duas colunas a mais, como explicado anteriormente) define o “modelo de barreiras educacionais”, que é estimado nas seguintes combinações: (1) sem incluir os três termos de homogamia ( ) e assumindo associação constante no tempo (Modelo 4 da Tabela 7); (2) incluindo os termos de homogamia e assumindo associação constante no tempo (Modelo 5 da Tabela 7); (3) deixando o padrão de homogamia constante ao longo do tempo, mas permitindo que as “barreiras educacionais” ( 1, 2, 3 e 4) variem no tempo (Modelo 6 da Tabela 7); e adicionando à especificação anterior (Modelo 6 da Tabela 7) um termo para capturar a variação ao longo do tempo nas chances de hipergamia em relação à hipogamia (Modelo 8 da Tabela 7), ou seja, maior chance de mulheres se casarem com homens mais educados do que elas. Nas análises, também são usados outros modelos simples para a análise da associação entre cor ou educação de maridos e esposas: o modelo de independência (Modelos 1 das Tabelas 6 e 7); o modelo de associação completa (Modelo 2 das Tabelas 6 e 7); e o modelo de simetria (Modelo 3 da Tabela 7)3. Não é possível fazer uma explicação pormenorizada desses modelos por falta de espaço neste artigo, mas os leitores interessados podem encontrar as especificações em Powers e Xie (2000, pp. 107-119). 3 91 Depois de estimar modelos para a seletividade educacional e por cor, elaboramos outro mais complexo para analisar conjuntamente a variação dessas duas formas de seletividade entre 1960 e 2000. Isso implica ajustar modelos a uma tabela de contingência com cinco variáveis: cor do marido, cor da esposa educação do marido, educação da esposa, e ano do censo. A equação geral é a seguinte: H W E S T HE WS HT WT ln(Fijklt) = μ0 + βi + βj + βk + βl + βt + βik + βjl + βit + βjt + ET ST HW ES HWT + β WST + (υ β ) HWT + (υ β ) EST βkt + βlt + βij + βkl + βljt jkl ij t kl t (2), Em que ln(Fijklt) é o logaritmo natural da frequência esperada na célula (i, j, k, l, t), cujos subscritos são: i = cor do marido; j = cor da esposa; k = educação do marido; l = educação da esposa; t = ano do censo. Os parâmetros estimados são: βiH = distribuição marginal da cor do marido; βjW = distribuição marginal da cor da esposa; βk E = distribuição marginal da educação do marido; βlS = distribuição marginal da educação da esposa; βtT = distribuição marginal dos censos; βik HE, βjlWS, βitHT, βjtWT, βktET, βltST, βijHW e βklES representam, respectivamente, as interações entre cor do marido e educação do marido, cor da esposa e educação da esposa, cor do marido e ano do censo, cor da esposa e ano do censo, educação do marido e ano do censo, educação da esposa e ano do censo, cor do marido e cor da esposa, educação do marido e educação da esposa. O modelo também inclui termos para a interação entre as seguintes três variáveis: cor do marido, educação do marido e ano do censo (βiktHET); cor da esposa, educação da esposa e ano do censo (βjltWST). Finalmente, os parâmetros de maior interesse são os dois últimos, estimando a variação das associações entre: cor dos cônjuges ao longo do tempo (υij βt) HWT e educação dos cônjuges ao longo do tempo (υkl βt)EST. Esses dois termos seguem o padrão e as condições especificados para a Equação 1 e são, respectivamente, as “barreiras de cor” (que podem ou não incluir a homogamia entre pardos) e as “barreiras educacionais” (que podem ou não incluir a homogamia nas três categorias educacionais intermediárias). Na seção Seletividade Marital por Cor e Educação, Tabela 8, testamos essas diferentes combinações nos Modelos 3, 4, 5, 6, 7, 8, e 9. Tendo em vista que os modelos log-lineares seguem estrutura hierárquica, fazemos os testes partindo de um modelo de base (Modelo 1 da Tabela 8) que só inclui o ajuste das distribuições marginais e das interações de segunda ordem, e, em seguida, incluímos os termos de interação de terceira 92 ordem para a associação entre cor e educação do marido e cor e educação da esposa (Modelo 2 da Tabela 8). Nas análises empíricas, também testamos se havia interação entre todas as características dos cônjuges (βijklHWES) e entre todas as características dos cônjuges e o ano do censo (βijkltHWEST). Como mostramos adiante, essas interações não são estatisticamente significativas. Todos os modelos estimados são usuais e suas especificações podem ser obtidas na literatura (Hout, 1983; Powers e Xie, 2000). Além disso, modelos para testar a hipótese das trocas de status (Merton, 1941) também foram estimados, mas não se ajustaram bem aos dados, indicando que as barreiras de cor e educação são as características predominantes do mercado matrimonial brasileiro (Gullickson, 2006). Como usual, a referência aos termos utilizados nos modelos apresentados nas tabelas seguintes são feitas apenas utilizando os termos sobrescritos das Equações 1 e 2 anteriores4. 5 – Taxas absolutas de seletividade conjugal A endogamia por cor da pele parece ter realmente diminuído no Brasil, como previam os estudos anteriores, passando de 88% dos casamentos em 1960, para 80% em 1980 e 69% em 2000 (ver Tabela 2). Como argumentamos, há dois fatores relacionados a esse aumento: (1) mudanças na composição populacional, expressando causas demográficas; e (2) mudanças na associação estatística entre cor de cônjuges, expressando preferências individuais ou normas sociais. Se não houvesse o efeito de preferências individuais e/ou normas sociais, ou seja, se não houvesse associação estatística entre a cor dos cônjuges, as taxas de endogamia seriam: 51% em 1960, 48% em 1980 e 45% em 20005. Portanto, mesmo que não houvesse associação estatística entre cor dos cônjuges, haveria um percentual relativamente alto de casamentos endogâmicos por cor que seria produto unicamente do tamanho relativo dos grupos de cor no Brasil. Como a inclusão de apenas um termo de ordem superior (segunda ordem, por exemplo), em qualquer modelo, implica a inclusão de todos os termos de ordem inferior (primeira ordem, por exemplo), não faremos referência aos termos de ordem inferior na Tabela 8. 5 Esses percentuais foram calculados a partir do modelo de independência estatística entre a cor dos cônjuges. Como veremos adiante, esse modelo não se ajusta aos dados. 4 93 Tabela 2 – Cor do Marido e Cor da Esposa – (1960, 1980 e 2000) 1960 (N = 41.120) Cor do Marido Cor da Esposa Cor Branca Parda Preta Total (%) Branca 61,2 3,7 0,4 65,3 Parda 4,8 21,2 0,9 26,9 0,7 1,4 5,7 7,8 66,7 26,3 7,0 100,0 Parda Preta Total (%) Preta Total (%) 1980 (N = 308.432) Cor do Marido Cor da Esposa Cor Branca Branca 50,6 6,7 0,6 57,9 Parda 9,3 26,4 1,1 36,8 0,8 1,5 3,0 5,3 60,7 34,6 4,7 100,0 Preta Total (%) 2000 (N = 450.327) Cor do Marido Cor da Esposa Cor Branca Parda Preta Total (%) Branca 40,3 10,8 1,6 52,7 Parda 13,0 26,1 1,3 40,4 Preta 2,1 2,2 2,5 6,8 55,4 39,1 5,4 100,0 Total (%) Elaboração dos autores Estudos anteriores mostraram claramente que fatores demográficos e normas sociais e/ou preferências individuais conformam os padrões de casamentos inter-raciais no Brasil. No entanto, nenhum estudo verificou se esses efeitos sobre as taxas de casamento inter-racial estão relacionados a outras mudanças importantes que ocorreram na sociedade brasileira. Em particular, houve uma diminuição da desigualdade educacional entre os grupos de cor, bem como um aumento dos casamentos intereducacionais. A Tabela 3 apresenta a vantagem educacional média entre os grupos de cor no Brasil, ou seja, a razão entre as médias de anos de educação de cada grupo de cor. É evidente que houve uma significativa diminuição nessas vantagens educacionais médias de brancos em relação tanto a pardos quanto a pretos entre 1960 e 2000. Essa mudança se deve, em grande medida, à expansão educacional que ocorreu no país desde 1960 e pode estar relacionada ao aumento dos casamentos inter-raciais. 94 Tabela 3 – Vantagem Educacional Média entre os grupos de Cor no Brasil – (1960, 1980 e 2000) Vantagem (Razão) Educacional 1960 1980 2000 Branco/pardo 2,2 1,7 1,3 Branco/preto 2,5 1,9 1,3 Pardo/preto 1,1 1,1 1,0 Elaboração dos autores A expansão do acesso ao sistema educacional também representou uma enorme diminuição da desigualdade de gênero, uma vez que as mulheres passaram a ter cada vez mais acesso à educação de fato, como já vimos, revertendo a vantagem educacional que os homens tinham. Essa mudança está, provavelmente, relacionada a um aumento dos casamentos intereducacionais no Brasil. Enquanto em 1960 cerca de 70% das pessoas entre 20 e 34 anos tinham menos de quatro anos de escolaridade, em 2000 apenas 24% dos homens e 19% das mulheres tinham menos de quatro anos de educação. Em outras palavras, a expansão do sistema educacional tornou a distribuição educacional da população mais heterogênea (pessoas mais distribuídas por diferentes níveis educacionais), o que, como vimos, leva necessariamente a uma diminuição da endogamia (Blau e Schwartz, 1984; Blau, Blum e Schwartz, 1982). De fato, 79,2% dos casamentos eram educacionalmente homogâmicos em 1960, 59,4% o eram em 1980 e 48,1% em 2000 (ver Tabela 4 a seguir). Inversamente, podemos dizer que houve um aumento significativo dos casamentos intereducacionais no Brasil. De novo, lembramos que, se não houvesse associação estatística entre os níveis educacionais de maridos e esposas e se apenas as forças relacionadas à composição populacional estivessem presentes, as taxas de homogamia educacional seriam muito menores, mais precisamente 56% em 1960, 32% em 1980 e 26% em 2000. Assim, quando examinamos o quadro da escolha conjugal considerando os níveis de escolaridade do casal, os resultados gerais são semelhantes, tanto estrutural quanto temporalmente, ao caso do casamento inter-racial. Verifica-se igualmente um largo predomínio do casamento homogâmico, mas o nível da homogamia, como vimos, vem caindo rapidamente no tempo, a ponto de em 2000 já ser possível verificar o predomínio do casamento heterogâmico. No entanto, um ponto de diferenciação em relação ao caso da cor deve ser lembrado: diz respeito ao perfil educacional das esposas, que, de uma situação inicial de desvantagem em relação aos esposos em 95 1960, em 2000 já haviam efetuado uma inversão de posição, agora ultrapassando claramente o nível de escolaridade de seus parceiros. Tabela 4 – Educação (Anos de Escolaridade) do Marido e da Esposa (1960 a 2000) 1960 (N = 41.120) Educação do Marido Educação da Esposa Educação 0a3 4a7 8 9 a 11 12 e Mais 0a3 63,9 6,1 0,2 0,1 0,0 70,3 4a7 8,1 13,8 0,8 0,6 0,0 23,3 8 0,3 1,3 0,7 0,3 0,0 2,6 2,3 9 a 11 0,1 1,0 0,5 0,7 0,0 12 e mais 0,0 0,3 0,4 0,5 0,2 1,4 Total (%) 72,4 22,5 2,6 2,2 0,2 100,0 Total (%) 1980 (N = 308.432) Educação do Marido Educação da Esposa Educação 0a3 4a7 8 9 a 11 12 e Mais 0a3 30,4 10,0 0,7 0,6 0,0 41,7 4a7 9,1 20,2 2,6 2,7 0,4 35,0 8 0,8 2,9 1,6 1,4 0,3 7,0 9 a 11 0,4 2,5 1,5 4,1 1,1 9,6 12 e mais 0,1 0,5 0,5 2,4 3,2 6,7 Total (%) 40,8 36,1 6,9 11,2 5,0 100,0 2000 (N = 450.327) Educação do Marido Total (%) Educação da Esposa Educação 0a3 4a7 8 9 a 11 12 e Mais Total (%) 0a3 11,3 9,8 1,2 1,8 0,1 24,2 4a7 5,9 19,2 4,2 6,9 0,5 36,7 8 0,8 3,8 2,7 3,5 0,4 11,2 21,9 9 a 11 0,8 4,3 2,8 11,9 2,1 12 e mais 0,1 0,3 0,3 2,1 3,1 5,9 Total (%) 18,9 37,4 11,2 26,2 6,2 100,0 Elaboração dos autores Com o objetivo de verificar se há evidências de relação trivariada entre o nível educacional dos cônjuges e a endogamia por grupo de cor, calculamos as taxas de endogamia por cor para cada nível educacional de maridos e esposas. Esses resultados indicam que, entre os homens brancos, 94% casaram com mulheres brancas em 1960 e 76% em 2000. Tendência 96 semelhante ocorreu para a endogamia das mulheres brancas, que passou de 92% em 1960 para 73% em 2000. As endogamias de homens e mulheres brancas são maiores entre os grupos mais educados e menores entre os menos educados, e acompanham a mesma tendência de diminuição entre 1960 e 2000 para todos os níveis educacionais. Entre homens e mulheres pardos também observamos a tendência de diminuição das endogamias gerais e específicas para cada grupo educacional entre 1960 e 2000, mas, ao contrário do que ocorreu com os brancos, as endogamias, nesse caso, tendem a ser maiores para os níveis educacionais inferiores e menores para os níveis superiores. Finalmente, para os pretos também observamos a tendência geral de diminuição das taxas de endogamia por cor entre 1960 e 2000. Para os homens pretos há mais endogamia por cor nos grupos educacionais mais baixos e menos para os grupos educacionais mais altos, ao passo que para as mulheres pretas observamos que, em 1980, havia endogamia por cor maior nos grupos educacionais mais elevados do que nos menos elevados. Em 2000, as endogamias por cor das mulheres pretas são semelhantes em todos os níveis educacionais. Ao todo, esses padrões de endogamia por cor em cada nível educacional sugerem que a endogamia por cor varia de acordo com o nível educacional de homens e de mulheres, mas não mostram que a endogamia por cor é um reflexo da endogamia educacional. Na seção Seletividade Marital por Cor e Educação, utilizando um modelo adequado, analisamos com mais cuidado esta hipótese. Antes de analisarmos mais detalhadamente a associação entre características de maridos e esposas, vale a pena observar algumas informações relevantes para questões já levantadas pela literatura sobre seletividade marital. Na Tabela 5, apresentamos as taxas de hipogamia por cor, percentual de mulheres casando com homens mais claros, e hipergamia por cor, percentual de mulheres casando com homens mais escuros. Em 1960, 42% das mulheres em uniões exogâmicas por cor se casaram com homens mais claros do que elas e 58% com homens mais escuros. Em 2000, esses percentuais permaneceram semelhantes, sendo, respectivamente, 44% e 56%. Como previsto na literatura, é mais fácil encontrar mulheres casadas com homens mais escuros do que o inverso. Essa tendência não se modificou durante os quarenta anos estudados. Cabe lembrar que há uma leve tendência para mulheres pretas permanecerem solteiras, como observado na seção Taxas Absolutas de Seletividade Conjugal. Verificamos um padrão diferente para a tendência de mulheres se casarem com homens mais educados (hipergamia educacional). Em 1960, entre todas as mulheres em uniões educacionalmente heterogâmicas, 84% 97 se casaram com homens mais educados, ao passo que, em 2000, essa proporção diminuiu para 55%. De fato, na seção Seletividade Marital por Educação, estimamos um modelo incluindo um parâmetro para capturar a associação entre homens mais educados e mulheres menos educadas (hipergamia educacional) e verificamos que há evidência dessa associação para 1960 e 1980. No entanto, o padrão observado nos percentuais é claramente uma conseqüência da mudança na composição populacional, uma vez que o número de mulheres alcançando níveis educacionais mais elevados passou por uma completa revolução entre 1960 e 2000, e a associação estatística que acabamos de mencionar não é muito forte. Por exemplo, em 1960, apenas 0,2% das mulheres tinha alguma educação universitária, enquanto 1,4% dos homens tinha alcançado esse nível educacional. Em 2000, esses percentuais passaram a ser 5,8% para os homens e 6,3% para as mulheres. Realmente houve uma explosão do acesso das mulheres ao sistema educacional. Tabela 5 – Endogamia Racial e Educacional Total, Hipogamia e Hipergamia Racial e Educacional no Brasil (1960, 1980 e 2000) (%) 1960 1980 2000 Endogamia por cor total 88,0 80,0 69,0 Homem com mulher mais escura 5,0 8,4 13,7 Homem com mulher mais clara 7,0 11,7 17,3 Total 100,0 100,0 100,0 Homem com mulher mais escura 42,0 41,8 44,3 58,0 58,2 55,7 100,0 100,0 100,0 Endogamia educacional total 79,2 59,4 48,1 Mulher com homem menos educado 8,1 19,7 30,6 Mulher com homem mais educado 12,6 20,8 21,3 Total 100,0 100,0 100,0 15,9 35,0 44,1 84,1 65,0 55,9 100,0 100,0 100,0 Cor (Hipogamia racial dada endogamia) Homem com mulher mais clara (Hipergamia racial dada endogamia) Total Educação Mulher com homem menos educado (Hipogamia feminina) Mulher com homem mais educado (Hipergamia feminina) Total Elaboração dos autores Nota: Percentuais podem ultrapassar 100% por motivos de arredondamento. 98 Em resumo, os percentuais descritos nesta seção são o produto de dois tipos de força social: (1) composição populacional e (2) preferências individuais e/ou normas sociais. Como já vimos, se não houvesse associação estatística entre características de maridos e esposas, as taxas de homogamia e heterogamia descritas seriam significantemente diferentes. Mais especificamente, haveria muito mais heterogamia do que a descrita acima. Nesse sentido, é altamente relevante verificar os padrões de associação entre as características dos cônjuges não só para verificar em que medida eles determinam os padrões de casamento mas também para indicar qual é o papel que preferências individuais e/ou normas sociais desempenham nesses padrões de casamento para além das tendências demográficas. 6 – Seletividade marital por cor dos cônjuges Os poucos estudos sobre seletividade marital por cor dos cônjuges no Brasil se dedicaram, por um lado, a analisar os padrões de casamento em apenas um ano ou analisar tendências usando coortes de idade (Silva, 1987; 1992); por outro, a apresentar taxas absolutas comparando os censos de 1960 e 1991 (Scalon, 1992; Telles, 2004). Nenhum trabalho analisou tendências de longo prazo nas chances relativas de casamento inter-racial. Neste capítulo, dedicamo-nos a estimar essas tendências para o período que vai de 1960 a 2000. Além de apresentarmos e interpretarmos as taxas absolutas (ver a seção Taxas Absolutas de Seletividade Conjugal), procuramos estimar modelos que descrevam mudanças nas chances relativas de casamento inter-racial. Esse tipo de exercício é importante porque permite mensurar as chances relativas de casamento controlando pelo tamanho dos grupos que, como vimos anteriormente, determinam, em grande medida, os percentuais de casamentos homogâmicos e heterogâmicos. A análise das chances relativas de casamento, por sua vez, permite determinar o grau de fluidez social do mercado matrimonial. A Tabela 6 apresenta os modelos utilizados e os parâmetros obtidos pelo modelo preferido para analisar as tabelas de casamento cruzando raça do marido (H) com raça da esposa (W) e ano do censo (T). 99 Tabela 6 – Modelos para Tabela Cruzando Cor do Marido (H) com Cor da Esposa (W) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges tinham entre 20 e 34 anos em 1960, 1980 e 2000 Modelo 1. HT, WT 2. HT, WT, HW L2 g.l. Sig. Bic 13.112,9 12 0,000 12.991,9 828 8 0,000 750 3. HT, WT, HW (barreiras de cor + homogamia de pardos) 837,6 9 0,000 745,9 4. HT, WT, T * HW (barreiras de cor + homogamia de pardos) 6,4 3 0,094 -23,8 Parâmetros 1960 1980 2000 Branco/pardo -1,69 -1,26 -0,59 Pardo/preto -1,83 -1,65 -1,12 Homogamia entre pardos 0,90 0,53 0,84 Branco/pardo 0,19 0,28 0,55 Pardo/preto 0,16 0,19 0,33 Homogamia entre pardos 2,47 1,70 2,31 Chances relativas Elaboração dos autores Inicialmente, ajustamos o modelo de independência (1: HT, WT), que pressupõe não haver associação estatística entre a cor de maridos e esposas e, portanto, que os casamentos inter-raciais são aleatórios. Como esperado, esse modelo não é estatisticamente significativo (L2 = 13.112,9; g.l. = 12; Bic = 12.991,9), o que indica que os casamentos inter-raciais não são aleatórios. Em seguida, ajustamos o modelo de associação constante no tempo (Modelo 2), que pressupõe que há associação entre a cor de maridos e esposas, mas que ela não é a mesma entre 1960 e 2000. Embora o Modelo 2 não se ajuste aos dados (L2 = 828; g.l. = 8; Bic = 750), a inclusão de um termo para explicar a relação entre a cor de maridos e esposas explica 93,7%6 da associação não explicada pelo modelo de independência (Modelo 1). No Modelo 3, propomos uma Esse percentual é calculado da seguinte forma: (L2 modelo A1 - L2 modelo A2)/(L2 modelo A1). 6 100 especificação mais parcimoniosa e substantivamente interessante para a associação entre cor de maridos e esposas. Ou seja, utilizamos um parâmetro para capturar a barreira ao casamento entre brancos e pardos, outro para definir a barreira separando pardos e pretos, e um último efeito para dar conta da propensão à endogamia entre pardos7. Os dois parâmetros de barreira ao casamento inter-racial também servem para estimar a endogamia para brancos e pretos. Usando um grau de liberdade a menos, o Modelo 3 é melhor do que o 2, embora ainda não se ajuste bem aos dados. Finalmente, o Modelo 4 considera a mudança temporal na associação entre a cor de maridos e esposas, o que leva ao bom ajuste aos dados de acordo com a estatística L2 e o Bic (L2 = 6,4; g.l. = 3; Bic = -23,8) – quanto mais negativa a estatística Bic, melhor o ajuste dos modelos aos dados. Vamos deixar a interpretação dos parâmetros estimados para a seção seguinte, mas vale adiantar que o Modelo 4, assim como o modelo preferido da próxima seção, indica que há um aumento significativo entre 1960 e 2000 na probabilidade de casamentos entre brancos e pardos, bem como na de casamentos entre pardos e pretos ou entre pretos e brancos. Em outras palavras, a propensão para casamentos inter-raciais está aumentando significativamente no Brasil, sendo mais acentuada para os casamentos entre brancos e pardos, depois para aqueles entre pardos e pretos, tendo os casamentos entre brancos e pretos como os menos prováveis, embora essa propensão também esteja aumentando entre 1960 e 2000. Isso significa que os pardos estão mais próximos dos brancos do que dos pretos em termos de chances relativas de casamentos e que todas as barreiras para casamentos inter-raciais estão diminuindo significativamente entre 1960 e 2000. Esse resultado é importante porque confirma as previsões de Silva (1992), mostrando que, em termos de casamentos, brancos e pardos estão mais próximos do que pardos e pretos, bem como que a propensão para casamentos inter-raciais estaria aumentando no Brasil. Observe-se que a proximidade entre brancos e pardos contrasta com outra encontrada em análises sobre desigualdades no mercado de trabalho e no sistema educacional, em que pretos e pardos estão, com frequência, muito próximos entre si e distantes dos brancos. Ou seja, no mercado matrimonial, em Na tabela com três linhas para categorias de cor de maridos e três colunas para categorias de cor de esposas, diversas especificações desse mesmo modelo utilizando três graus de liberdade podem ser estimadas. Também estimamos uma alternativa com um parâmetro para cada homogamia por cor que é completamente equivalente ao modelo que apresentamos.- 7 101 oposição ao mercado de trabalho e ao sistema educacional, os pardos têm mais chances de se casar com brancos do que com pretos. Teoricamente, esses resultados são importantes porque, ao tomarmos weberianamente o casamento como um indicador de sociabilidade ou contatos sociais entre diferentes grupos raciais (isto é, da distância social, diferente de distância socioeconômica, entre os grupos de cor), confirmamos a observação de que o Brasil se caracteriza por relações raciais cada vez mais fluidas, com forte favorecimento à miscigenação. Esses resultados contrastam com as análises sobre ascensão social em áreas mais duras, como mercado de trabalho e sistema educacional, nas quais as desvantagens de pretos e pardos se alteram de forma mais lenta ao longo das décadas (ver Ribeiro, 2008). No mercado matrimonial e, portanto, na esfera da sociabilidade e da proximidade mais íntima entre os grupos raciais, há um aumento rápido e significativo da fluidez, indicando crescente proximidade e aceitação entre os diferentes grupos de cor. 7 – Seletividade marital por educação Só temos conhecimento de um estudo sobre tendências de seletividade marital educacional no Brasil (Silva, 2003). Esse estudo utilizou um modelo de barreiras educacionais e mostrou que, entre 1981 e 1999, observavamse as seguintes tendências: diminuição da barreira aos casamentos entre pessoas analfabetas e com primário (1 a 4 anos de estudo); diminuição da barreira separando aqueles com primário daqueles com secundário (5 a 8 anos de estudo); estabilidade da barreira separando os com secundário dos com colegial (9 a 11 anos de estudo); e aumento da barreira separando aqueles com colegial daqueles com alguma educação superior (12 ou mais anos de estudo). Esses resultados confirmam tendências encontradas em outros países (ver Mare, 1991). Nesta seção, apresentamos os resultados obtidos a partir de nossos dados. A Tabela 7 apresenta os diversos modelos ajustados à tabela cruzando educação do marido (E) com educação da esposa (S) e ano do censo (T). 102 Tabela 7 – Modelos Ajustados à Tabela Cruzando Educação do Marido (E) com Educação da Esposa (S) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges Tinham entre 20 e 34 anos em 1960, 1986 e 2000 Modelos L2 g.l. Valor-p Bic 1. ET, ST 12.783,4 48 0,000 12.299,3 2. ET, ST, ES 493,0 32 0,000 170,8 3. ET, ST, ES (simetria) 512,5 38 0,000 129,2 4. ET, ST, ES (barreiras educacionais) 818,9 44 0,000 375,2 5. ET, ST, ES (barreiras educacionais + homogamia nas categorias intermediárias) 546,1 41 0,000 135,5 6. ET, ST, ES (homogamia nas categorias intermediárias), ES (barreiras educacionais) * T 76,4 33 0,000 -256,5 7. ET, ST, ES (homogamia nas categorias intermediárias) * T, ES (barreiras educacionais) * T 55 27 0,001 -216,4 8. ET, ST, ES (homogamia nas categorias intermediárias) + ES (barreiras educacionais) * T + (hipergamia/hipogamia) * T 63 30 0,000 -239 Elaboração dos autores. Como era esperado, o modelo de independência (Modelo 1) não se ajusta aos dados (L2 = 12.783,3; g.l. = 48; Bic = 12.299,3). O modelo seguinte (2) inclui a associação entre educação do marido e da esposa, e assume que essa associação é constante entre 1960 e 2000. Embora apresente uma enorme melhora do ajuste em relação ao modelo anterior, ainda não é estatisticamente significativo (L2 = 493,0; g.l. = 32; Bic = 170,8). Os Modelos de 3 a 5 testam diferentes especificações para a associação entre educação de maridos e esposas, mas, em todos os casos, assumem que a associação é constante ao longo do tempo. O Modelo 3 testa um padrão de simetria e homogamia na associação, ou seja, testa a hipótese de que os padrões de casamento de esposas são simétricos aos dos 103 maridos e que há homogamia variável em cada nível educacional. Embora não se ajuste aos dados, o Modelo 3 indica que o padrão de simetria e homogamia, apesar de usar menos gruas de liberdade, não é pior do que o de associação completa do Modelo 2. Esse teste é importante porque sugere que há simetria nos padrões de casamento de maridos e esposas. O Modelo 4 também não se ajusta aos dados, mas utiliza outro tipo de especificação da simetria, que é teoricamente mais interessante porque permite estimar barreiras ao casamento entre maridos e esposas com diferentes níveis educacionais. O Modelo 5, que acrescenta ao 4 o padrão de homogamia nas três categorias educacionais intermediárias, também não se ajusta. Os Modelos 3 e 5 são teoricamente equivalentes porque testam um padrão de simetria e homogamia nos casamentos, embora em ambos os casos esse padrão seja constante entre 1960 e 2000. Finalmente, o Modelo 6 permite que o padrão de simetria estimado a partir das barreiras educacionais varie ao longo do tempo, mantendo o padrão de homogamia constante ao longo do tempo. Esse Modelo 6 é o primeiro a se ajustar bem aos dados de acordo com a estatística Bic (L2 = 76,4; g.l. = 48; Bic = -256,5). O Modelo 7 (L2 = 55,0; g.l. = 27; Bic = -216,4) acrescenta ao anterior a variação temporal da homogamia nas três categorias educacionais intermediárias, o que não melhora significativamente o ajuste e gasta mais graus de liberdade. Finalmente, o Modelo 8 acrescenta ao 6 um parâmetro para capturar uma possível assimetria representada pela maior chance de mulheres casarem com homens mais educados do que elas. Como vimos na análise das taxas absolutas, há uma mudança espetacular na expansão educacional das mulheres, o que se poderia traduzir em uma mudança na assimetria dos padrões de casamento em que homens tendiam a ter educação mais elevada do que a esposa. Embora o Modelo 8 não se ajuste melhor do que o 6, que é o preferido para a análise desses dados, o parâmetro indicando que homens tendem a casar com mulheres menos educadas proposto no Modelo 8 fornece informação interessante. Ou seja, em 1960, os maridos tinham 1,3 vez mais chance de serem mais educados do que as esposas; em 1980, essa chance diminuiu para 1,1 vez mais; em 2000, não há assimetria educacional nas chances de casamento de maridos e esposas. Em outras palavras, em 2000, as chances de encontrarmos maridos mais educados do que suas esposas são aleatórias, ao passo que, nos anos anteriores, essas chances são mais sistemáticas, ou não aleatórias. O Modelo 6, que, como já indicamos, é o preferido para esta análise, apresenta resultados interessantes sobre as mudanças nas barreiras educacionais aos casamentos no Brasil. Tendo em vista que as análises da 104 próxima seção sobre a seletividade matrimonial por cor e educação dos cônjuges revelam que o padrão de barreiras educacionais não se modifica quando consideramos a cor dos cônjuges, deixaremos a interpretação desses parâmetros para a seção seguinte. Vale adiantar, no entanto, que as tendências são de diminuição das barreiras educacionais entre 1960 e 2000. De todo modo, as análises acima são importantes para determinar que modelo utilizar para a seletividade matrimonial por nível educacional dos cônjuges. Agora sabemos que, para a seletividade matrimonial por cor, podemos usar um padrão de associação tal como o especificado no Modelo 4 da seção anterior e que, para a seletividade por educação, devemos utilizar um padrão de associação tal como o definido no Modelo 6 desta seção (ambos representados na Equação 1 da quarta seção). Ao combinarmos esses dois modelos, estaremos testando se as barreiras ao casamento inter-racial se modificam quando levamos em conta as barreiras ao casamento intereducacional. Como mencionamos na introdução, é possível que os padrões de casamento inter-racial observados sejam, na realidade, um reflexo da diminuição das barreiras educacionais e da desigualdade educacional entre os grupos de cor. 8 – Seletividade marital por cor e educação Nesta seção, combinamos os modelos preferidos das duas seções anteriores em uma única análise, ou seja, aplicamos uma série de modelos à tabela cruzando cor do marido (H) com cor da esposa (W), educação do marido (E), educação da esposa (S) e ano do censo (T). Essa tabela com cinco variáveis requer uma série de testes mais complexos do que os apresentados até agora. O aumento da complexidade na análise é importante na medida em que permite testar formalmente se as mudanças na seletividade matrimonial por educação dos cônjuges têm alguma influência sobre as mudanças nas chances de casamento entre grupos de cor e vice-versa. Esta pesquisa é a primeira a analisar conjuntamente os dois tipos de seletividade matrimonial no Brasil. A Tabela 8 apresenta as diferentes etapas de ajuste dos modelos aos dados. Procedemos por etapas adicionando parâmetros em cada modelo subseqüente. 105 Tabela 8 – Ajuste de Modelos Log-Lineares à Tabela Cruzando Cor do Marido (H) com Cor da Esposa (W), Educação do Marido (E), Educação da Esposa (S) e Ano do Censo (T) para Casais em que Ambos os Cônjuges Tinham entre 20 e 34 Anos de Idade em 1960, 1986 e 2000 Modelos L2 g.l. Valor-p Bic 1. Modelo de base H, W, E, S, T, HE, WS 37.716 644 0,000 31.219 2. Modelo 1 + HT, WT, ET, ST, HET, WST 24.834 588 0,000 18.902 3. Modelo 2 + ES (barreiras educacionais) 13.240 584 0,000 7.349 4. Modelo 3 + HW (barreiras de cor) 2.022 582 0,000 -3.849 5. Modelo 4 + T * ES (barreiras educacionais) 1.580 574 0,000 -4.211 6. Modelo 5 + T * HW (barreiras de cor) 780 570 0,000 -4.970 7. Modelo 6 + ES (homogamia nas três categorias intermediárias) 578 567 0,368 -5.142 8. Modelo 7 + HW (homogamia dos pardos) 429 566 1,000 -5.281 9. Modelo 7 + T * ES (homogamia dos pardos) 545 561 0,683 -5.115 Elaboração dos autores. O primeiro modelo é o de independência entre cor e educação de maridos e esposas. Como era esperado, ele não se ajusta aos dados (L2 = 37.716; g.l. = 644; Bic = 31.219). O segundo modelo controla pela variação dos marginais da tabela ao longo do tempo, mas assume que não há associação entre as características de maridos e esposas. Como o anterior, esse modelo também não se ajusta bem aos dados. O Modelo 3 acrescenta ao 2 a associação entre educação de maridos e esposas segundo o padrão de barreiras educacionais, o que também não leva a um ajuste aceitável. Ao adicionarmos um parâmetro para as barreiras ao casamento inter-racial, obtemos o Modelo 4, que é o primeiro a se ajustar bem aos dados de acordo com a estatística Bic (L2 = 2.022,4; g.l. = 582; Bic = -3.849). Esse modelo assume que a associação entre educação de maridos e esposas segue um padrão de barreiras educacionais; a associação entre cor de maridos e esposas também segue um padrão de duas barreiras de 106 cor; e ambos os tipos de associação são constantes ao longo do tempo. Ao permitir que os parâmetros de barreiras educacionais variem ao longo do tempo, o Modelo 5 apresenta um ajuste ainda melhor do que o 4 aos dados (L2 = 1.580; g.l. = 574; Bic = -4.211). No Modelo 6, acrescentamos a variação temporal aos parâmetros de barreiras de cor e alcançamos um melhor ajuste em relação aos modelos anteriores (L2 = 780; g.l. = 570; Bic = -4.970). Como vimos nas duas seções anteriores, alguns parâmetros de homogamia são necessários para explicar a associação entre as características de maridos e esposas. No Modelo 7, acrescentamos a homogamia para as três categorias educacionais intermediárias. Ao incluirmos esse parâmetro, obtemos um ajuste melhor do que o de todos os modelos anteriores em termos tanto da estatística Bic (= -5.142) quanto da razão de verossimilhança (L2 = 578; g.l. = 567; valor-p < 0,368). No Modelo 8, incluímos o parâmetro para a homogamia de pardos, o que leva a um ajuste excessivo do modelo aos dados (poderíamos dizer que o ajuste quase reproduz os dados, o que não é recomendável). Finalmente, o Modelo 9, adicionando ao 7 a variação temporal do parâmetro de homogamia educacional, não apresenta um melhor ajuste aos dados. Modelos testando a interação entre cor dos cônjuges e educação dos cônjuges também não apresentam melhora em relação ao Modelo 7, que permanece sendo o melhor para analisar esses dados. De acordo com o Modelo 7, há variação temporal nas associações entre cor do marido e da esposa, e entre educação do marido e da esposa. Esses efeitos são aditivos, ou seja, um deve ser somado ao outro, mas não há interferência ou interação entre as propensões de casamentos intereducacionais e entre grupos de cor. Em outras palavras, ao controlarmos a associação entre cor de maridos e esposas pela associação entre educação de maridos e esposas, observamos que esses dois efeitos se somam, ou seja, eles não são reflexo um do outro. Substantivamente, isso significa que os padrões de seletividade matrimonial por cor e educação, analisados a partir dos modelos das seções anteriores, são válidos. A única diferença é que, ao incluirmos a homogamia educacional e a por cor no mesmo modelo, a segunda não é estatisticamente significativa. Além disso, a análise conjunta permite verificar não apenas em que medida um tipo de efeito se soma ao outro (cálculo que fazemos mais abaixo para interpretar os resultados) mas também qual barreira é mais difícil de ser transposta: a de cor ou a educacional. A Tabela 9 apresenta alguns parâmetros estimados pelo Modelo 7, bem como as chances relativas derivadas desses parâmetros (exponencial dos parâmetros). Barreiras educacionais de curta distância 107 (entre grupos educacionais próximos) são mais fáceis de serem transpostas do que barreiras de cor, ao passo que barreiras educacionais de longa distância tendem a ser mais difíceis de serem transpostas do que barreiras de cor. A soma desses dois tipos de barreira, no entanto, revela algumas tendências interessantes que descrevemos mais adiante. Tabela 9 – Parâmetros Selecionados Estimados pelo Modelo 7, Casais com Ambos os Cônjuges com Idade entre 20 e 34 Anos Brasil, 1960, 1980 e 2000 Parâmetros Estimados Chances Relativas 1960 1980 2000 1960 1980 2000 Branca/parda -2,005 -1,433 -0,889 0,135 0,239 0,411 Parda/preta -2,037 -1,743 -1,194 0,130 0,175 0,303 Branca/preta -4,042 -3,175 -2,083 0,018 0,042 0,125 0-3 a 4-7 -1,723 -1,240 -0,900 0,178 0,289 0,407 4-7 a 8 -1,450 -1,058 -0,787 0,235 0,347 0,455 8 a 9-11 -0,587 -0,799 -0,684 0,556 0,450 0,505 9-11 a 12 ou mais -0,915 -1,089 -1,126 0,401 0,337 0,324 4-7 -0,620 -0,620 -0,620 0,538 0,538 0,538 8 0,040* 0,040* 0,040 – – – 9-11 -0,388 -0,388 -0,388 0,679 0,679 0,679 Cor Educação Homogamia educacional Elaboração dos autores Nota: * não significativo Como especificamos anteriormente, o Modelo 7 inclui parâmetros para barreiras aos casamentos entre grupos de cor e entre pessoas com níveis educacionais distintos. Quanto menores essas barreiras, mais prováveis são os casamentos inter-raciais e intereducacionais. Parâmetros com valores mais altos (menos negativos) correspondem a maiores chances relativas de cruzar as respectivas barreiras. Chances relativas menores (obtidas por parâmetros menores) indicam barreiras educacionais e de 108 cor menos permeáveis ou, inversamente, mais rígidas. Todas as barreiras a casamentos entre grupos de cor se tornaram significativamente mais permeáveis entre 1960 e 2000. As chances de casamento entre brancos e pardos aumentaram de 0,135 em 1960 para 0,239 em 1980 e para 0,411 em 2000. Aumento semelhante ocorreu para o casamento entre pardos e pretos, passando de 0,130 em 1960 para 0,303 em 2000, e entre brancos e pretos, passando de 0,018 para 0,125 nessas mesmas datas. Outra maneira de entender esses números é calcular as chances de casamento dentro dos mesmos grupos de cor (homogâmicos). Por exemplo, mantendo-se a educação constante, podemos dizer que, em 1960, uma pessoa preta tinha 56 vezes (ou 1/0,018) mais chances de se casar com outra pessoa igualmente preta do que de se casar com uma pessoa de outra cor, ao passo que quarenta anos mais tarde, em 2000, essas chances haviam diminuído para apenas oito vezes mais chances. De forma semelhante, uma pessoa branca tinha sete vezes mais chances de se casar com outra pessoa branca do que com uma pessoa de outra cor em 1960 e apenas duas vezes mais em 2000. Em suma, as barreiras aos casamentos inter-raciais estão se tornando cada vez menos rígidas ou, inversamente, a sociedade brasileira está se tornando significativamente mais aberta ou fluida em termos de casamento entre grupos de cor. É bom lembrar, no entanto, que essas chances que acabamos de mencionar assumem que o nível educacional se mantém constante, ou seja, que não há variação nos níveis educacionais. Mais adiante apresentamos informações sobre chances de casamento entre pessoas com cor e educação distintas, mas antes é importante apresentarmos as mudanças nas barreiras educacionais também obtidas pelo Modelo 7. As mudanças nas barreiras educacionais entre 1960 e 2000 seguem um padrão um pouco diferente do das mudanças nas barreiras aos casamentos inter-raciais. Enquanto as barreiras separando grupos educacionais mais baixos diminuíram, aquelas separando pessoas com segundo grau (9 a 11 anos de educação) de pessoas com alguma educação universitária (12 ou mais anos) aumentaram. A Tabela 8 também apresenta essas tendências. As chances de cruzar barreiras separando pessoas com 0 e 3 anos de estudo de outras com 4 e 7 anos passaram de 0,18 em 1960 para 0,41 em 2000. Uma tendência semelhante ocorreu na barreira separando pessoas tendo entre 4 e 7 anos de estudo daquelas com primário completo (8 anos de educação), ou seja, a permeabilidade aumentou de 0,23 em 1960 para 0,46 em 2000. Já a barreira separando pessoas com primário completo (8 anos) daquelas com algum secundário (9 a 11 anos) diminuiu em menor proporção, passando de 0,56 em 1960 para 0,50 em 2000. 109 Em contraste com esse aumento de permeabilidade nas três barreiras educacionais mais baixas, a barreira separando pessoas com alguma educação de segundo grau (9 a 11 anos) de pessoas com alguma educação universitária (12 anos ou mais) se tornou ligeiramente mais rígida ou menos permeável. A permeabilidade dessa barreira diminuiu de 0,40 em 1960 para 0,32 em 2000. Inversamente, podemos dizer que a homogamia entre pessoas com algum nível universitário aumentou. Em 1960, as chances de casamento homogâmico para pessoas com alguma educação universitária eram 2,5 vezes maior do que as chances de casamento educacionalmente heterogâmico, ao passo que em 2000 essas chances aumentaram para 3,1 vezes mais. Mais uma vez devemos tomar cuidado ao interpretar esses números, porque eles assumem que não há variação na barreira separando grupos de cor, que, como vimos, está na realidade diminuindo. Uma maneira mais realista de interpretar esses números é observar alguns tipos de combinação entre barreiras aos casamentos entre pessoas com níveis educacionais distintos e em diferentes combinações de cor dos cônjuges. Fazemos esses cálculos a seguir. Uma das propriedades do Modelo 7 é que os parâmetros para cada uma das quatro barreiras educacionais podem não apenas ser somados entre si, para obtermos estimadores de chances relativas de casamento cruzando mais de uma barreira, mas também somados às chances de cruzar barreiras ao casamento entre grupos de cor. Aproveitando essa característica do modelo, calculamos, na Tabela 10, as chances relativas de cônjuges cruzarem uma, duas, três ou quatro barreiras educacionais para os três tipos de casamento inter-racial. Apresentamos apenas valores para o triângulo inferior porque o modelo é simétrico, ou seja, o valor para os casamentos entre maridos mais educados do que esposas é exatamente o mesmo que para o caso inverso, em que esposas são mais educadas. Podemos, assim, interpretar as linhas ou colunas como sendo a especificação do nível educacional de esposas ou de maridos. As barreiras educacionais são cumulativas, portanto cruzar uma é mais fácil do que cruzar duas e assim por diante. Casamentos cruzando quatro barreiras educacionais (entre pessoas com educação entre 0 e 3 anos e pessoas com 12 ou mais anos de escolaridade) são extremamente raros, independentemente da cor dos cônjuges. Isso indica que, para casamentos entre pessoas com nível socioeconômico (medido pela educação) muito diferente, praticamente não há efeito das barreiras de cor, ou seja, nesses casos, é realmente a barreira educacional que impede casamentos de qualquer tipo. Para casamentos cruzando uma, duas ou três barreiras educacionais, o efeito das barreiras de cor parece ser mais relevante. De 110 fato, as barreiras educacionais são crescentemente mais rígidas (o valor numérico diminui cada vez mais) na seguinte ordem por tipo de casamento entre grupos de cor: entre brancos e pardos; entre pardos e pretos; e entre brancos e pretos. Além disso, há uma tendência de aumento das chances de cruzar barreiras educacionais entre 1960 e 2000 (o valor numérico é cada vez maior), ou seja, todas as barreiras educacionais e de cor se tornam mais permeáveis ao longo dos quarenta anos estudados. Mesmo assim, as chances de cruzar quatro barreiras educacionais ainda permanecem muitíssimo baixas para casamentos entre pessoas de todas as cores. Tabela 10 – Chances Relativas de Cruzar Barreiras Educacionais e Raciais aos Casamentos em 1960, 1980 e 2000. Cálculos Feitos a partir dos Parâmetros Estimados pelo Modelo 7, da Tabela 8, Apresentados na Tabela 9 Barreiras Educacionais para Casamentos entre Brancos e Pardos 1960 Educação 0-3 4-7 1980 8 4-7 0,024 8 0,006 0,032 9-11 0,003 0,018 0,075 12 ou mais 0,001 0,007 0,030 9-11 0-3 4-7 2000 8 9-11 0,069 0,054 0-3 4-7 8 9-11 0,167 0,024 0,083 0,011 0,037 0,107 0,004 0,013 0,036 0,080 0,076 0,187 0,038 0,094 0,207 0,012 0,031 0,067 0,133 Barreiras Educacionais para Casamentos entre Pardos e Pretos 1960 Educação 0-3 4-7 1980 8 4-7 0,023 8 0,005 0,031 9-11 0,003 0,017 0,073 12 ou mais 0,001 0,007 0,029 9-11 0-3 4-7 2000 8 9-11 0,051 0,052 0-3 4-7 8 9-11 0,123 0,018 0,061 0,008 0,027 0,079 0,003 0,009 0,026 0,059 0,056 0,138 0,028 0,070 0,153 0,009 0,023 0,050 0,098 Barreiras Educacionais para Casamentos entre Brancos e Pretos 1960 Educação 0-3 4-7 1980 8 4-7 0,003 8 0,001 0,004 9-11 0,000 0,002 0,010 12 ou mais 0,000 0,001 0,004 9-11 0-3 4-7 2000 8 9-11 0,012 0,007 0-3 4-7 8 9-11 0,051 0,004 0,014 0,002 0,007 0,019 0,001 0,002 0,006 Elaboração dos autores 111 0,014 0,023 0,057 0,012 0,029 0,063 0,004 0,009 0,020 0,040 As tendências gerais de mudanças nas barreiras educacionais ao casamento para cada combinação de grupo de cor já foram descritas no parágrafo anterior, mas a descrição de alguns exemplos pode ajudar a ilustrar os resultados. Em 1960, as chances de casamento entre pessoas tendo 8 anos de escolaridade e pessoas tendo entre 0 e 3 anos eram de: 0,006 para casamentos entre brancos e pardos; 0,005 para casamentos entre pardos e pretos; e 0,001 para casamentos entre brancos e pretos. Em 2000, essas chances aumentaram para: 0,076 para casamentos entre brancos e pardos; 0,056 para casamentos entre pardos e pretos; e 0,023 para casamentos entre brancos e pretos. Várias outras mudanças seguindo o mesmo padrão podem ser observadas nos valores das chances relativas apresentadas na Tabela 10. Outra maneira de observar os dados da Tabela 10 é apresentada abaixo, nos Gráficos 1, 2 e 3. Essas representações gráficas apenas reordenam os números da Tabela 10 a fim de facilitar a visualização das tendências. Os gráficos mostram as chances de cruzar uma, duas, três e quatro barreiras educacionais para casamentos inter-raciais em 1960, 1980 e 2000. As colunas para uma barreira educacional estão ordenadas da esquerda para a direita: 0-3 anos de escola para 4-7 anos; 4-7 anos para 8 anos; 8 anos para 9-11 anos; e 9-11 anos para 12 anos ou mais. As colunas para duas barreiras educacionais também estão ordenadas da esquerda para a direita: 0-3 anos para 8 anos de escola; 4-7 anos para 9-11 anos; e 8 anos para 12 anos ou mais. Da mesma forma, as colunas para três barreiras educacionais: 0-3 anos para 9-11 anos; e 4-7 anos para 12 anos ou mais. Finalmente, a coluna para quatro barreiras educacionais representa chances de casamento entre pessoas com 0-3 anos de escolaridade e com 12 anos ou mais. Gráfico 1 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento interracial, Brasil 1960 112 Gráfico 2 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento interracial, Brasil 1980 Gráfico 3 – Barreiras educacionais para cada tipo de casamento interracial, Brasil 2000 As tendências expressas nos Gráficos 1, 2 e 3 são bastante claras. A primeira informação relevante e válida para todos os anos é que as chances de casamento entre brancos e pardos são um pouco maiores do que as entre pardos e pretos, e ambas são muito maiores do que as entre brancos e pretos. Como previsto na literatura, os pardos ocupam uma posição intermediária entre brancos e pretos, estando um pouco mais próximos dos brancos, e as chances de todos os tipos de casamento inter-racial aumentam entre 1960 e 2000. Além disso, podemos dizer que: (1) as chances de casamento cruzando uma e duas barreiras educacionais aumentam para todos os tipos de casamento inter-racial entre 1960 e 2000; (2) as chances de casamento cruzando três barreiras educacionais eram muito pequenas em 1960, mas também apresentam tendência de aumento ao longo dos 113 anos para todos os tipos de casamento inter-racial; e (3) as chances de casamento cruzando quatro barreiras educacionais são muito pequenas para qualquer tipo de casamento inter-racial. De fato, há evidências de que as chances de casamento cruzando quatro barreiras educacionais são extremamente baixas, o que expressa claramente a desigualdade socioeconômica existente no Brasil. Ou seja, pessoas com 12 anos ou mais de escolaridade estão muito distantes em termos socioeconômicos de pessoas com educação entre 0 e 3 anos. Casamentos cruzando quatro barreiras são, portanto, raríssimos, independentemente da cor dos cônjuges. 9 – Conclusão Em suma, podemos concluir que, entre 1960 e 2000, houve uma diminuição realmente significativa nas barreiras, dificultando o casamento entre pessoas brancas, pardas e pretas, bem como entre pessoas com níveis educacionais diferentes. Isso significa que a sociedade brasileira parece estar se tornando significativamente mais aberta aos casamentos cruzando barreiras educacionais e de cor. Isso não quer dizer, no entanto, que as barreiras de cor e educacionais não existam, mas indica uma forte tendência de diminuição dessas barreiras. Interpretando os casamentos como um indicador da proximidade entre os grupos de cor, podemos concluir que, pelo menos na esfera da sociabilidade representada pela união matrimonial, há uma crescente tendência de aceitação de pessoas de grupos de cor distintos, sendo a proximidade de brancos e pardos significativamente maior do que a de pardos e pretos. Essas tendências são independentes do nível educacional dos cônjuges, ou seja, não são apenas um reflexo da diminuição das desigualdades educacionais entre brancos, pardos e pretos nem da crescente diminuição das barreiras educacionais aos casamentos. Essas últimas barreiras, por sua vez, também estão diminuindo, o que indica que casamentos entre pessoas com níveis educacionais distintos são cada vez mais comuns. As barreiras entre grupos educacionais adjacentes diminuíram significativamente entre 1960 e 2000, com exceção da barreira aos casamentos entre pessoas com segundo grau (9-11 anos) e universidade (12 anos ou mais), a qual está se tornando mais rígida, sobretudo por causa do aumento do número de mulheres alcançando educação universitária entre 1960 e 2000. Ou seja, como as mulheres passaram a freqüentar em números cada vez maiores as universidades entre 1960 e 2000, a tendência aos casamentos entre homens e mulheres com algum nível universitário aumentou 114 muito: a endogamia nesse grupo educacional cresceu significativamente. Além disso, é importante ressaltar que as barreiras aos casamentos entre pessoas com níveis educacionais muito distintos continuam extremamente fortes, o que torna esse tipo de casamento muito improvável, independentemente da cor dos cônjuges. De fato, as barreiras ao casamento entre pessoas com níveis educacionais muito diferentes são muito mais fortes do que as barreiras aos casamentos inter-raciais. Referências bibliográficas AZEVEDO, Thales de. As Elites de Cor: um Estudo de Ascensão Social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. AZEVEDO, Thales de. “Mestiçagem e ‘Status’ no Brasil”. Actas do V Coloquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Coimbra, 1963. pp. 87-112. AZEVEDO, Thales de. Cultura e Situação Racial no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. AZEVEDO, Thales de. Democracia Racial, Ideologia e Realidade. Petrópolis: Vozes, 1975. BECKER, Gary S. A Treatise on the Family. Cambridge: Harvard University Press, 1981. BELTRÃO, Kaizô I. e TEIXEIRA, Moema de Poli. “Cor e Gênero na Seletividade das Carreiras Universitárias”. In S. B. Soares et al. (orgs.), Os Mecanismos de Discriminação Racial nas Escolas Brasileiras. Brasília, IPEA, 2005. 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São Paulo: Difel, 1961 117 CAPÍTULO 3 Classe e Gênero no Brasil Contemporâneo: Mobilidade Social, Casamento e Divisão do Trabalho Doméstico1 1 – Introdução Gênero e classe social são dois princípios básicos da estratificação social. Embora a distinção de gênero seja ainda mais antiga e universal do que a de classe, as teorias sociológicas clássicas sempre deram mais atenção ao estudo das classes sociais como elemento essencial de diferenciação social e ação política. A análise de classes, em particular, insiste em considerar classe social como sendo mais “importante” ou “fundamental” do que gênero, na medida em que seria um mecanismo mais geral de estratificação social, estruturando, inclusive, diferenças entre mulheres e entre homens. Essa abordagem, que confere primazia às relações de classe sobre as de gênero, tem sido constantemente criticada nas ciências sociais contemporâneas. Em oposição a uma visão simplificada, que procura definir o que é mais importante, se classe ou gênero, alguns estudiosos da estratificação social nas sociedades industriais procuram entender os diferentes mecanismos de interação ou não-interação de classe e gênero na produção de desigualdades sociais (Wright, 1997). Não se trata apenas de constatar que há diversas formas de desigualdades entre homens e mulheres, mas sim de entender quais as conseqüências destas formas de desigualdade para o entendimento das relações de classe e de gênero na sociedade moderna. Uma versão anterior deste artigo foi publicada em ARAÚJO, Clara e SCALON, Celi . Gênero, família e trabalho no Brasil. FGV Editora, 2005. Agradeço a Clara, a Celi e à editora por concordarem que eu publicasse o texto neste livro. 1 119 São justamente a definição e a análise dos mecanismos de interação entre classe e gênero que podem contribuir para o avanço da análise de classe nas relações de gênero, bem como da análise de gênero nas relações de classe. Quando se trata de estudar a interação entre classe e gênero, há ainda um outro elemento a ser necessariamente levado em conta: a família. Formas de interação de gênero e classe dentro das famílias certamente contribuem para a estratificação social entre indivíduos fora das famílias, e vice-versa. Neste capítulo, procuro definir algumas formas de interação ou nãointeração entre classe e gênero em casais heterossexuais na sociedade brasileira contemporânea. Meu objetivo é tanto o de contribuir para o entendimento da desigualdade de gênero e classe no Brasil quanto o de discutir mecanismos mais gerais de estratificação social nas sociedades contemporâneas. Mais especificamente, trato de três temas relevantes para se entenderem as relações de classe e gênero na sociedade brasileira: (1) mobilidade e classe sociais, (2) casamento e classes sociais, e (3) divisão doméstica do trabalho e classes sociais. O primeiro tema, mobilidade social, é importante para a discussão sobre a unidade de análise dos estudos de estratificação e para definir a diferença nas chances de mobilidade de homens e mulheres. Teorias sociológicas funcionalistas, marxistas e weberianas determinam que a unidade básica de estratificação é a família e não o indivíduo (Sorensen, 1994). Ou seja, a estrutura de classes de uma determinada sociedade deve ser definida pela posição de classe ocupada por cada família e não pelos indivíduos. Tendo-se em vista que na maioria das famílias os homens têm posições de classe superiores às das mulheres, a estrutura de classes, bem como os padrões de mobilidade que a constituem, poderia ser descrita e analisada a partir do estudo da mobilidade de classe dos homens. Neste sentido, torna-se fundamental verificar em que medida há diferenças nos padrões de mobilidade de homens e mulheres. Se houver diferença, poderse-á dizer, então, que há interação entre classe e gênero, e, portanto, seria necessário incluir alguma forma de distinção de gênero para descrever a própria estrutura de classes, mesmo se se considerar a família como unidade básica de estratificação. Estes padrões de mobilidade também podem ser estudados por outros motivos, a saber, para que se possam entender as diferentes trajetórias de mobilidade de homens e mulheres independentemente de sua posição de classe, definida pela família em que vivem; porém, neste segundo caso também é importante definir-se a mobilidade intergeracional de mulheres em relação a suas mães. Tendo-se em vista que há ocupações tipicamente femininas, a comparação da mobilidade 120 das filhas em relação aos pais não é suficiente para definir trajetórias de mobilidade de mulheres. Informações sobre ocupação das mães não são comuns em pesquisas amostrais, mas felizmente estão presentes nos dados que analisarei neste capítulo. O segundo tema, casamento e classe social, também é relevante, porque está relacionado à questão da unidade básica de estratificação. O estudo dos padrões de casamento de classe pode confirmar, ou não, a idéia de que os maridos tendem a ter posição ocupacional hierarquicamente superior às de suas esposas ou companheiras, e que, portanto, a posição ocupacional do marido é um bom indicador da posição de classe em que a família se encontra (Erickson e Goldthorpe, 1993). Além disso, os padrões de casamento de classe podem servir como um indicador da desigualdade de classe interna em cada família. Embora faça sentido dizer-se que um casal pode ser considerado como uma unidade básica de consumo e nível de vida, não é difícil imaginar que a posição hierárquica diferenciada de cada cônjuge na estrutura ocupacional pode ser um fator importante na distribuição de poder entre homens e mulheres, casados ou que vivem juntos.2 Finalmente, o estudo da associação estatística entre classe de maridos e esposas possibilita definir o grau de permeabilidade de classe do mercado matrimonial (Hout, 1982; Wright, 1997). Uma sociedade em que há maior probabilidade de casamentos inter-classes deveria ser considerada mais aberta ou fluida do que outra sociedade, em que há baixa permeabilidade. O último tema, o estudo empírico da divisão sexual do trabalho doméstico, nos permite analisar se a composição de classe dos casais brasileiros tem algum impacto sobre a divisão do trabalho dentro de casa. Será que, em casais, por exemplo, em que a esposa tem posição direta de classe superior à do marido, os homens tendem a desempenhar mais atividades domésticas? Ou será que a divisão do trabalho doméstico é totalmente definida pelo gênero? Como se verá adiante, a resposta a esta segunda pergunta é positiva, o que leva a constatar quantitativamente algo de que já se tinha quase certeza de que era verdade, a saber, a divisão do trabalho doméstico é praticamente inexistente, tendo-se em vista que as mulheres de todas as classes desempenham pelo menos três vezes mais trabalhos domésticos do que seus maridos e companheiros. A quantificação desta informação também é importante, pois permite comparar o Brasil com outros países. 2 Veja-se Zelizer (1994) para uma interessante interpretação sobre o papel do dinheiro na distribuição de poder dentro dos casais. 121 Para discutir e analisar estes três temas, dividi este capítulo em seis partes, além desta introdução. Na segunda seção, apresento o debate sobre classe, família e gênero e descrevo algumas formas de interação entre gênero e classe. Na terceira parte, apresento brevemente as variáveis do banco de dados da pesquisa ISSP3 que foram utilizadas, a metodologia e os modelos estatísticos estimados. Na quarta parte, trato da mobilidade intergeracional de homens e mulheres. Na quinta parte, descrevo e analiso os padrões de casamento de classe. Na sexta parte, apresento as análises sobre divisão do trabalho doméstico e composição de classe dos casais. Na conclusão, discuto algumas das implicações teóricas derivadas das análises empíricas das partes anteriores. 2 – Interconexões de família, gênero e classe Todas as teorias clássicas de estratificação e classes sociais pressupõem que a família é a unidade de estratificação (Parsons, 1953). Homens, mulheres e crianças no mesmo núcleo familiar estariam, todos, na mesma posição na hierarquia de classes, independentemente do trabalho que cada um dos membros da família executa. Em outras palavras, membros de uma mesma família são vistos como partilhando dos mesmos interesses e padrões de consumo, bem como níveis e oportunidades de vida. Partindose desta perspectiva, não haveria qualquer forma de interação entre classe e gênero; os dois princípios seriam responsáveis por formas totalmente distintas de diferenciação social. Foi exatamente contra esta perspectiva “convencional” que os estudos de gênero levantaram as críticas mais desafiadoras às teorias clássicas de estratificação social e análise de classes (Abbot e Sapsford, 1987). De acordo com essas críticas, a crescente entrada das mulheres no mercado de trabalho pago, nas sociedades industriais, a partir da década de 1960, imporia sérios limites aos estudos de estratificação e análise de classe que partissem da família como unidade básica de estratificação. Tendo em vista que os estudos clássicos consideravam a família não apenas como uma ISSP é o International Social Survey Program. Neste livro utilizo dois destes surverys coletados no Brasil. Neste capítulo utilizo o survey “Gênero, família e trabalho”, coletado em 2003 com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e coordenado por Celi Scalon (UFRJ) e Clara Araújo (UERJ). Agradeço a estas colegas pelo convite para trabalhar com estes dados. 3 122 unidade econômica, mas também como uma comunidade de interesses e opiniões, os estudos de gênero, na realidade, reivindicavam a necessidade de se estudarem aspectos particulares da atividade das mulheres dentro e fora das unidades familiares. Esta reivindicação deu início a uma série de estudos extremamente importantes sobre a divisão doméstica do trabalho e sobre as características da atividade feminina no mercado de trabalho (por exemplo, Hartman, 1979, 1981; Acker, 1973; Lewis, 1985; Crompton e Mann, 1986). No entanto, não se pode tão-somente taxar a perspectiva “convencional” de preconceituosa ou sexista. Parece que há razões realmente importantes para que se considere a família como a unidade básica de estratificação (Sorensen, 1994; Goldthorpe, 1983). Esta idéia fica muito mais clara nos estudos de desigualdade de renda do que nos estudos de desigualdade de classe. Ao se estudar a distribuição de renda em uma determinada sociedade, deve-se considerar a renda familiar per capita, e não a renda individual, porque somente assim ter-se-á como derivar a distribuição do padrão de consumo e bem-estar. Em uma família em que a esposa recebe rendimentos de 950 reais mensais, por exemplo, e o marido, 50 reais mensais, deve-se considerar a média entre estas duas rendas como sendo a renda familiar per capita (nesse caso, 500 reais mensais). É esta renda familiar per capita que deve ser comparada, para que se possa saber a distribuição de renda no país. Se isto não for feito, se estaria superestimando, por exemplo, o número de pobres em uma determinada sociedade. No caso acima, o marido seria pobre, e a mulher não, mas, de fato, o marido não o é, pois, pelo menos em parte, compartilha o nível de consumo da esposa. Da mesma forma, ao analisar a estrutura de classes de uma determinada sociedade, deve-se considerar as famílias como unidades, e não os indivíduos. No caso de classes sociais, em vez da renda, utiliza-se geralmente a posição no mercado de trabalho e a ocupação como instrumentos de mensuração. Desta forma, um casal em que o marido é advogado e a esposa é operária têxtil estaria em uma única posição de classe. Mas em qual posição? Como somar a classe do marido e a da esposa de forma semelhante a que se fez com a renda? Embora haja algumas propostas metodológicas para combinar as duas posições de classe (Britten e Heath, 1983), defensores da posição “convencional” argumentam que o fato de a desigualdade de gênero ainda ser tão grande na sociedade moderna faz com que o uso somente da posição de classe dos maridos, para definir a estrutura de classes, não implique em erros de mensuração (Erickson e Goldthorpe, 1993). Ou seja, o número de maridos em posição de classe 123 mais elevada do que as de suas esposas continua sendo tão grande, que não seria necessário levar em conta a posição de classe das esposas para se delinear a estrutura de classes de uma dada sociedade. De certa forma, os defensores da perspectiva “convencional” estão certos. Estudos empíricos em diversas sociedades industriais, inclusive no Brasil, comprovam que os maridos continuam a ter posições mais elevadas no mercado de trabalho do que suas esposas (Scalon, 1999; Erickson e Goldthorpe, 1993). Conseqüentemente, estudos baseados apenas na posição de classe de homens representam fidedignamente a estrutura de classes das sociedades estudadas (Sorensen, 1994). Vale lembrar que os defensores da perspectiva “convencional” não são ingênuos, uma vez que consideram que, em famílias nas quais a esposa têm posição de classe mais elevada, é esta posição que deve ser usada para definir a classe da unidade familiar (Erickson, 1984). Além disso, pessoas solteiras, de ambos os sexos, entrariam como unidades familiares separadas no cálculo da estrutura de classes. Se a posição relativa de homens e mulheres no mercado de trabalho se modificar, havendo mais igualdade, aí sim seria necessário rever a idéia da família como unidade de classe, ou, pelo menos, seria mais comum medir-se a unidade de classe pela posição de classe das mulheres. No entanto, nas sociedades contemporâneas (e também no Brasil) a desigualdade de gênero no mercado de trabalho é tão grande, que ainda é possível utilizar a posição de classe do marido para definir a posição de classe da unidade familiar (Scalon, 1999). Embora os estudos que utilizem a posição de classe do marido para definir a estrutura de classes não estejam empiricamente errados, não há a menor dúvida de que são em grande parte limitados, porque deixam de analisar importantes aspectos da estratificação ligados as desigualdades de gênero. As unidades familiares não são homogêneas internamente. Famílias em que marido e esposa, ou outros membros da família, ocupam posições distintas na hierarquia ocupacional provavelmente disputarão autoridade e divisão do trabalho dentro da própria família. Será que, em uma família em que marido e esposa têm posições de classe semelhantes, a disputa de poder é diferente de em famílias nas quais um dos dois tem posição superior? Será que as posições de classe internas à família têm relevância nas inevitáveis disputas de poder entre homens e mulheres? Para responder a tais perguntas, tem-se que pensar em duas posições de classe paralelas para cada pessoa, das quais uma deriva-se da sua família nuclear e outra, de sua posição no mercado de trabalho. É justamente esta distinção que o sociólogo norte-americano Erick O. Wright (1997) propõe, ao afirmar que cada indivíduo pode ter uma posição de 124 classe direta e outra indireta. A primeira diz respeito à posição de classe derivada do trabalho que o indivíduo desenvolve na hierarquia ocupacional, enquanto a segunda deriva-se da posição de classe dominante no domicílio. Por exemplo, uma secretária que é casada com um industrial teria uma posição direta na classe dos trabalhadores não-manuais de rotina e, ao mesmo tempo, uma posição indireta na classe dos capitalistas. De acordo com esta perspectiva, as pesquisas na área de estratificação e de análise de classes estariam interessadas ora na posição de classe direta, ora na indireta. Esta distinção é muito interessante em termos analíticos, pois permite uma maior clareza dos objetivos de cada pesquisa. A partir da idéia de que há posições de classe, diretas e indiretas, compartilhadas por um mesmo indivíduo, pode-se pensar, de forma mais clara, em diferentes maneiras de interconexão de família, classe e gênero. Em cada uma das seções a seguir, analisarei diferentes tipos de interação de classe e gênero, mas, antes, apresentarei, brevemente, os grupos de classe elaborados e a metodologia que será utilizada. 3 – Metodologia Com o objetivo de analisar diferentes formas de relação entre classes sociais e gênero, classifico os grupos ocupacionais de acordo com uma metodologia que é amplamente utilizada em pesquisas comparativas de estratificação social. A partir de uma combinação entre posição na divisão do trabalho e títulos ocupacional, alocam-se os indivíduos em diferentes grupos de classe (veja-se Ribeiro, 2007). Neste capítulo utilizo, infelizmente, apenas três grupos de classe, além de um grupo de indivíduos fora do mercado de trabalho, uma vez que, havendo poucos casos na amostra, as tabelas que cruzam mais do que quatro categorias ficam com várias células vazias. O primeiro grupo é o dos profissionais, administradores e pequenos empregadores (ou pequenos proprietários). Indivíduos neste grupo se caracterizam ora por possuir altos níveis educacionais, que conferem relativa autonomia em relação aos empregadores, ora por serem pequenos empregadores que exercem o controle sobre seus próprios negócios. Em termos de médias de renda mensal e anos de educação completos, este grupo, como se pode ver na tabela 1, encontra-se no topo da hierarquia de classes. Logo a seguir, tem-se a classe dos trabalhadores não-manuais de rotina, ou seja, o pessoal de escritório e do comércio que ocupa uma 125 posição intermediária no processo produtivo das sociedades contemporâneas. O trabalho dos indivíduos deste grupo é supervisionado por algum superior e se concentra, geralmente, no setor de serviços. Em termos de renda mensal de trabalho e anos completos de escolaridade, este grupo se encontra numa posição intermediária, como fica claro na tabela 1. O terceiro grupo de classe é composto pelos trabalhadores manuais, em geral pouco qualificados, que vão desde estivadores até operários da indústria, passando por trabalhadores rurais. Esta é a classe menos privilegiada no esquema que utilizo nas análises deste capítulo. Obviamente, esta divisão é bastante simplificada, mas, mesmo assim, representa três posições de classe distintas em termos de renda e educação, bem como das relações de emprego que as caracterizam. Finalmente, a tabela 1 mostra as médias de renda mensal e os anos de educação completos para um quarto grupo de indivíduos. Este grupo não constitui propriamente uma classe social, já que é composto por indivíduos que estão fora do mercado de trabalho. No caso dos entrevistados do sexo masculino, este grupo contabiliza os desempregados e, no caso dos respondentes do sexo feminino, é constituído por aquelas que se definiram como “do lar”, ou seja, donas de casa. Há apenas um homem que se definiu como “do lar” (como “dono” de casa). Embora este quarto grupo não constitua um agregado minimamente homogêneo, uma vez que pode consistir de um conjunto de pessoas com rendas familiares e níveis educacionais distintos, é importante, em análises sobre classe e gênero, que se definiam os indivíduos nesta categoria. Tabela 1 – Categorias de classe e respectivas médias de renda individual mensal e de anos de educação completos: Brasil, 2003 Renda Educação 1 Prof, Adm e Prop. 1116 11 2 Nao-manual de Rotina 619 9 3 Trab Manuais 378 5 4 “Do lar” ou “Desemp.” 274 6 0,40 0,45 Coeficiente de correlação Nota: Inclui todos os entrevistados (homens e mulheres) 126 Utilizam-se os quatro grupos acima para se definir a posição de classe direta de homens e mulheres nas análises sobre mobilidade social e casamento. Na seção sobre divisão do trabalho doméstico, a posição direta de classe de maridos e esposas é cruzada, formando diferentes tipos de composições familiares de classe. Estes tipos de família são utilizados nas analises estatísticas como variáveis independentes. No restante deste capítulo, utilizo três tipos de análises: estatísticas descritivas ou percentuais, para descrever as diferentes distribuições de interesse; modelos log-lineares, para desvendar os padrões de associação entre classes de origem e destino ou classes de maridos e esposas (neste caso, descreverei as taxas relativas de mobilidade e casamento, respectivamente), e regressões lineares (usando o método dos mínimos quadrados), para analisar o efeito de diversas variáveis independentes sobre a probabilidade de diminuir a desigualdade na divisão do trabalho doméstico. 4 – Mobilidade Social As análises dos padrões de mobilidade intergeracional entre pais ou mães e seus filhos ou filhas serão interpretadas com o objetivo de: (1) delinear diferenças de gênero nas posições de classe, (2) verificar o efeito relativo das origens de classe e da diferença de gênero na determinação das chances de mobilidade social, e (3) verificar em que medida a análise dos padrões de mobilidade intergeracional de homens é suficiente para se estudar a formação de classes da sociedade. Nos dois primeiros casos, interessa-me a posição de classe direta de homens e mulheres e, no terceiro, a posição de classe indireta, definida pela família. Para verificar se as posições de classe diferenciam-se por gênero, deve-se observar os percentuais nas colunas que descrevem o destino de classe nas distribuições que se baseiam na relação entre a classe dos pais e a dos filhos e filhas na tabela 2, a seguir (a conclusão não mudaria, se se interpretassem os números referentes à comparação da classe de mães e filhos ou filhas).4 Ao observar os dados que descrevem a posição de classe de homens e mulheres em casais em que ambos estão no mercado de trabalho, fica claro que há mais homens na classe de trabalho manual e mais mulheres na classe de trabalho de rotina não-manual: 67% dos Os percentuais são distintos porque se baseiam em tabelas diferentes: a que cruza a classe dos pais com os fi lhos ou fi lhas e a das mães com os fi lhos ou fi lhas. 4 127 homens estão no trabalho manual e 59% das mulheres exercem este tipo de trabalho, em contraposição a 27% das mulheres que estão no trabalho de rotina não-manual e a 20% dos homens nesse mesmo tipo de trabalho. Estes dados comprovam que os homens têm maiores chances de desenvolver trabalho manual, ao passo que as mulheres têm maiores chances de entrar no setor de serviços (comercio e escritório). Claramente, há indícios de uma divisão de gênero entre estas duas posições de classe. Os dados sobre casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho também indicam que um percentual de 14%, tanto de homens quanto de mulheres, se encontra na classe de profissionais. Deve-se interpretar esses números percentuais de maneira algo distinta ao se analisarem as informações referentes a todos os casais. Neste caso, observa-se que, em todas as classes, há um percentual maior de homens do que de mulheres, em conseqüência do fato de que 41% das mulheres estão na categoria “do lar”. Ou seja, de cada cinco mulheres casadas, duas são donas de casa. Na última seção deste capítulo analisarei a divisão doméstica do trabalho tanto em famílias em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho quanto em famílias que incluem donas de casa e homens desempregados. Estas análises indicarão se a participação das mulheres no mercado de trabalho implica numa diminuição da desigualdade na divisão do trabalho doméstico. Os dados descritos acima, e apresentados na tabela 2, confirmam a expectativas da literatura sobre estratificação e gênero (Baron, 1984, 1992; Tilly, 1998) segundo as quais as relações de gênero e de classe se complementam reciprocamente, na medida em que a própria organização da divisão do trabalho se identifica com a distinção de gênero. Dados mais detalhados mostram que certas ocupações são tipicamente desenvolvidas por mulheres, enquanto outras se destinam aos homens. Obviamente, esta divisão do trabalho em gêneros funda-se em aspectos culturais que determinam certas atividades como sendo tipicamente masculinas e outras como sendo femininas. Caminhoneiros ou estivadores, por exemplo, são geralmente homens e manicures e telefonistas, ocupações desempenhadas, na maioria das vezes, por mulheres. Desta forma, a divisão do trabalho e de gênero se complementa na estratificação das sociedades. 128 Tabela 2 – Distribuição de classes de origem e destino e taxas absolutas de mobilidade intergeracional para homens e mulheres, tabelas de mobilidade do pai para o filho(a) e da mãe para o filho(a), Brasil 2003 (em números percentuais %) Mobilidade do pai para o fi lho ou fi lha Todos Só respondentes no mercado de trabalho Origem Classes Sociais Destino Origem Destino Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres 1 Prof., Adm., e Pq Empr. 9 10 12 9 9 12 14 14 2 Trab. nao-manuais rotina 10 9 18 16 10 9 20 27 3 Trab. manuais urb e rur 81 80 61 35 81 79 67 59 - - 8 41 - - - - 100 100 100 100 100 4 Do lar ou desempr. Total Taxas Absolutas de Mobilidade Homens Mulheres 100 Homens Mulheres Mobilidade Total 36 64 30 38 Mobilidade Ascendente* 20 16 22 27 Mobilidade Descendente* 7 7 8 11 Entrada no dest. “do lar ou desemp.” 8 41 - - Índice de Dissimilaridade - - 14 20 Mobilidade da mae para o fi lho ou fi lha Todos Classes Sociais Só respondentes no mercado de trabalho Origem Destino Origem Destino Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres 1 Prof., Adm., e Pq Empr. 3 4 12 8 8 8 11 12 2 Trab. nao-manuais rotina 4 5 18 16 6 10 18 22 3 Trab. manuais urb e rur 40 50 62 35 86 82 71 66 4 Do lar ou desempr. 52 41 8 42 - - - - 100 100 100 100 100 100 100 100 Total Taxas Absolutas de Mobilidade Homens Mulheres Homens Mulheres Mobilidade Total 65 57 29 32 Mobilidade Ascendente* 10 8 22 23 Mobilidade Descendente* 3 3 7 8 Entrada no dest. “do lar ou desemp.” 4 23 - - Saida da orig.”do lar ou desemp.” 48 22 - - Imob. na cat. “do lar ou desemp.” 4 19 - - Índice de Dissimilaridade 44 16 15 16 * Estas taxas nao incluem a categoria “4 – Do lar ou desempr.” porque não é possível determinar se há verticalidade da mobilidade nestes casos 129 Conforme dito acima, as análises sobre mobilidade e posição de classe também são importantes para que se possa comparar as chances de mobilidade social de homens e mulheres. A tabela 2 mostra algumas taxas absolutas de mobilidade social para homens e mulheres (em casais em que ambos estão no mercado de trabalho e em todos os casais) em relação a seus pais e suas mães. As taxas de mobilidade absoluta para homens e mulheres casados indicam que 20% dos homens tiveram mobilidade ascendente em relação a seus pais e 10% em relação a suas mães, ao passo que 16% das mulheres tiveram mobilidade ascendente em relação a seus pais e 8% em relação a suas mães. Os dados para a mobilidade em relação à mãe são de interesse por mostrar que 19% das mulheres que são donas de casa são fi lhas de donas de casa e 23% são fi lhas de mulheres que estavam no mercado de trabalho. Metade das donas de casa são fi lhas de mulheres que também são donas de casa. Embora os dados indiquem que os homens têm mais chances de mobilidade ascendente do que as mulheres, esta interpretação muda quando se observam os dados referentes aos casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho. Neste caso, os percentuais são mais próximos: 22% dos homens casados com mulheres que estão no mercado de trabalho tiveram mobilidade ascendente em relação a seus pais e 29% em relação a suas mães. Dentre as mulheres no mercado de trabalho, 38% tiveram mobilidade ascendente em relação a seus pais e 32% em relação a suas mães. Em suma, quando se consideram todos os casais, observa-se que os homens têm chances maiores de mobilidade ascendente do que as mulheres, mas, quando se consideram os homens casados com mulheres no mercado de trabalho e as mulheres no mercado de trabalho, as chances de mobilidade são maiores para as mulheres. Ou seja, para os casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho, as taxas de mobilidade ascendente, mobilidade descendente e imobilidade são mais semelhantes entre si do que essas mesmas taxas para ambos os tipos de casais, o que indica uma melhor situação das mulheres que estão no mercado de trabalho, quando comparadas a seus maridos. Embora interessantes, estas comparações de taxas absolutas de mobilidade não permitem definir aquilo que é mais determinante das chances de mobilidade social: a classe ou o gênero. Para se determinar se os padrões de mobilidade de homens e mulheres com origens na mesma classe são distintos, tem-se que lançar mão de modelos estatísticos mais complicados. Na tabela 1 do anexo, apresento o resultado do 130 ajuste de três modelos log-lineares a quatro tabelas de mobilidade. Os dados analisados são os seguintes: (I) uma tabela que cruza três classes de pais com três classes de destino para homens e mulheres em casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho, (II) uma tabela que cruza três classes de mães com três classes de destino para homens e mulheres em casais em que ambos estão no mercado de trabalho, (III) uma tabela que cruza três classes de pais com três classes de destino para homens e mulheres em todos os tipos de casais, e (IV) uma tabela que cruza três classes de pais com três classes de destino para homens e mulheres em todos os tipos de casais. Utilizei três modelos log-lineares para analisar cada uma destas tabelas (veja-se o ajuste destes modelos na tabela 1, em anexo). Estes modelos são de interesse porque seu ajuste aos dados possibilita que se verifiquem hipóteses simples e sociologicamente significativas. O primeiro modelo é o de mobilidade perfeita; se este modelo se ajustar aos dados, pode-se dizer que as classes de origem não são relevantes para explicar as chances de mobilidade de indivíduos. É muito pouco provável que este modelo se ajuste aos dados, tendo-se em vista que, em todas as sociedades estudadas até hoje, ele nunca se mostrou verdadeiro; no entanto, ele serve como um modelo de base. O segundo modelo é o de associação constante, que testa a hipótese de que o impacto da origem de classe nas chances de mobilidade é o mesmo para homens e mulheres. Ou seja, se este modelo se ajustar aos dados, pode-se afi rmar que homens e mulheres com as mesmas origens de classe têm chances iguais de mobilidade social. O terceiro modelo testa a hipótese de que homens e mulheres com a mesma origem de classe têm chances diferentes de mobilidade social. O ajuste destes três modelos às quatro tabelas descritas anteriormente indica que o segundo modelo é o que melhor se ajusta a todas as tabelas. Portanto, não se pode rejeitar a hipótese de que: homens e mulheres têm chances iguais de mobilidade social, ou seja, é a classe social de origem (que pode ser medida tanto pela classe da mãe quanto pela do pai) que determina as chances relativas de mobilidade social. Não há diferença de gênero. As freqüências esperadas que se derivam de cada um destes modelos permite que se comparem as chances relativas de mobilidade social de homens e mulheres, levando-se em conta sua classe de origem, medida ora pela classe do pai, ora pela da mãe. Veja-se um exemplo destas chances relativas: homens e mulheres cujas mães estavam na classe de profissionais e pequenos proprietários (classe 1) têm 12 vezes mais 131 chances de permanecer nesta classe, em vez de descer para a classe de trabalhadores manuais, do que homens ou mulheres cujas mães estavam na classe de trabalhadores manuais. Estas chances relativas são as mesmas para homens e mulheres, porém muito diferentes para fi lhos ou fi lhas de trabalhadoras manuais e profissionais ou proprietárias. Esta situação não muda muito quando se considera a classe dos pais em vez da classe das mães. Ou seja, homens ou mulheres cujos pais eram profissionais ou pequenos proprietários têm 11 vezes mais chances de permanecer nesta classe do que homens ou mulheres cujos pais eram trabalhadores manuais. Estas chances relativas confi rmam que há muita desigualdade de oportunidades de mobilidade social entre indivíduos cujas origens de classe são distintas, mas não há desigualdade entre homens e mulheres na distribuição destas oportunidades. Em outras palavras, as chances relativas de mobilidade social são determinadas antes pela classe de origem do que pelo gênero dos indivíduos Além de indicar que homens e mulheres têm chances semelhantes de mobilidade social, o ajuste do modelo de associação constante nas tabelas acima reforça a conclusão de trabalhos anteriores segundo a qual se pode estudar a estrutura de classes da sociedade brasileira a partir da análise das chances de mobilidade dos homens que são chefes de família. Tendo-se em vista que 41% das mulheres casadas são donas de casas e que não há diferença nas chances relativas de mobilidade social de homens e mulheres, é mais prudente descrever a estrutura de classes da sociedade partindo-se da posição de classe dos maridos como definidora da posição de classe das famílias. Ou seja, se o objetivo for descrever a estrutura de classes brasileira e os padrões de mobilidade que a formam, deve-se continuar analisando os dados para os homens. No entanto, se o objetivo da análise for discutir diferenças na posição de classe diretas de homens e mulheres, deve-se fazer análises comparativas de gênero, como o fi z nesta seção. As análises mostraram, entre outras coisas, que as chances de mobilidade são definidas pela classe de origem e não pelo gênero dos indivíduos. No que diz respeito às chances de mobilidade social, a classe é mais determinante do que o gênero. 132 5 – Casamentos: Homogamia e Heterogamia Ao descrever padrões de casamento de acordo com a classe social de maridos e esposas, proponho interpretações semelhantes às que sugeri para os padrões de mobilidade social. Estes padrões de casamento indicam: (1) se se pode considerar a classe social dos maridos como um bom indicador da classe social da família, (2) uma possível distribuição de poder interna aos casais, e (3) a rigidez da estrutura de classes em termos de permeabilidade matrimonial de suas fronteiras. No primeiro tipo de interpretação interessa saber se, em geral, os maridos têm posições de classe superiores às de suas esposas e quais são estas desigualdades de posições. Caso realmente haja este tipo de desigualdade interna aos casais, ter-se-á mais evidências de que a posição de classe dos maridos é um bom indicador da posição de classe das famílias. Proponho uma segunda interpretação dos mesmos dados visando a verificar a possível distribuição de poder derivada desta desigualdade interna dos casais. A saber, é possível que a desigualdade na posição de classe entre maridos e esposas esteja relacionada a comprometimentos distintos com a divisão doméstica do trabalho e/ou com o mercado de trabalho. Desta forma, pode-se estudar a desigualdade interna, em termos de posição de classes, não só porque ela traz mais evidências para que se entenda a posição de classe das famílias, mas também porque se pode vê-la como um indicador da distribuição de poder dentro dos casais brasileiros. Finalmente, as taxas relativas de casamento indicam o grau de fluidez matrimonial de classe. Caso haja fluidez alta (pouca associação) entre as classes de maridos e esposas, então se poderá dizer que há pouca rigidez de classes no mercado matrimonial brasileiro. A tabela 3 mostra distribuições de classe em todos os casais pesquisados e nos casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho. Também apresenta algumas taxas absolutas de casamento inter e intra-classes. As duas primeiras colunas da tabela 3 revelam que, nos casais brasileiros, os maridos têm posição de classe superior às das esposas. 12% dos maridos, por exemplo, estão na classe de profissionais e pequenos proprietários, ao passo que 8% das esposas estão nesta mesma classe. A informação que mais se destaca é a de que 55% das esposas estão fora do mercado de trabalho, isto é, são donas de casa ou, em alguns poucos casos, estão desempregadas. Na parte da tabela 3 que apresenta as taxas absolutas de casamento, encontram-se outras informações importantes sobre todos os casais. Por exemplo, enquanto 59% das esposas se casam 133 com maridos que têm posições de classe superiores, apenas 12% dos maridos se casam com mulheres que tenham posições superiores às deles. Estas informações são evidências de que, na grande maioria dos casais brasileiros, os homens têm posições de classe superiores às de suas esposas. Desta forma, as evidências continuam a indicar que a posição de classe dos maridos parece ser adequada para medir a posição de classe das famílias. Esta conclusão é uma conseqüência direta da desigualdade de classes entre homens e mulheres, ou seja, é justamente porque os homens têm posições de classe superiores às mulheres que ainda se deve utilizar estas posições masculinas para definir a estrutura de classes da sociedade como um todo. Este tipo de interpretação se modifica um pouco quando se consideram apenas os casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho. Nesses casos, há mais igualdade entre os cônjuges. As duas últimas colunas da primeira parte da tabela 3 indicam que, em casais cujos cônjuges estão no mercado de trabalho, a distribuição de classes é mais parecida. Nesses casais, 18% dos maridos e 19% das esposas estão na classe de profissionais e pequenos proprietários, 21% dos maridos e 24% das esposas estão na classe de trabalhadores de rotina não-manual, e 61% dos maridos e 57% das esposas estão na classe de trabalhadores manuais. Além disso, 63% dos casamentos dão-se entre homens e mulheres com a mesma posição de classe (homogamia total). Um dado interessante sobre estes casais, em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho, é que 21% dos homens e 16% das mulheres casam-se com pessoas de classes mais altas. O que é surpreendente nesses tipos de casal é que há mais homens que se casam com mulheres de classes mais altas do que mulheres que se casam com homens de classes mais altas. Obviamente, como se viu relativamente aos dados de todos os casais, este padrão não é dominante nos casais brasileiros, mas apenas nos casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho. De fato, os dados indicam que há pouca desigualdade de classe nos casais em que ambos estão no mercado de trabalho e muita desigualdade de classe nos casais brasileiros em geral. 134 Tabela 3 – Distribuição de classe de maridos e esposas, e taxas absolutas de homogamia e heterogamia de classe para todos os casais, e casais em que ambos estão no mercado de trabalho: Brasil 2003 (em números percentuais %) Todos os Casais Classes Casais no Merc Trab Maridos Esposas Maridos Esposas 1 Prof., Adm., e Pq. Propr. 12 8 18 19 2 Trab. nao-manuais rotina 19 11 21 24 3 Trab. manuais urb. e rur. 63 25 61 57 4 Do Lar ou desempregado 7 55 - - 100 100 100 100 Total Taxas absolutas de casamento Tabela incluindo todos os casais Heterogamia total 71 Homogamia total 29 Casamentos asc. maridos 12 Casamentos asc. esposas 59 Ind. Diss. Todos 49 Percentual de casais em que espo. e “do lar” 52 Percentual de casais em q marido e desemp 4 Tabela incluindo casais em que ambos estão no mercado de trabalho Heterogamia total 37 Homogamia total 63 Casamentos asc. maridos 21 Casamentos asc. esposas 16 Ind. Diss. Todos 5 O terceiro tema que me propus a analisar foi o do grau de fluidez no mercado matrimonial brasileiro. Para realizar estas análises, utilizei alguns modelos log-lineares, cujas estatísticas de ajuste se encontram na tabela 2, em anexo, a fim de desvendar o grau de associação entre as classes dos maridos e das esposas. O modelo selecionado para descrever a associação estatística na tabela 4, por 4, incluindo-se todos os casais (inclusive maridos desempregados e mulheres do lar) revela que há forte associação entre a classe do marido e a da esposa. A melhor maneira de 135 se descrever esta associação é a partir de algumas das chances relativas de casamento entre classes. Vejam-se alguns exemplos: 1. homens na classe de profissionais e pequenos proprietários têm 17 vezes mais chances de se casarem com donas de casa do que homens da classe de trabalhadores manuais, 2. homens na classe de profissionais e pequenos proprietários têm 28 vezes mais chances do que homens da classe de trabalhadores manuais de se casarem com mulheres que estejam na classe de profissionais, em vez de se casarem com mulheres que sejam trabalhadoras manuais, e 3. homens na classe de profissionais e pequenos proprietários têm 1,8 vez mais chances do que homens na classe de trabalhadores de rotina não-manual de se casarem com mulheres que estejam na classe de profissionais, em vez de se casarem com mulheres que estejam na classe de trabalhadores de rotina não-manual. Esses três exemplos bem representam as características da associação entre classes de maridos e esposas no Brasil. Em geral, homens das classes mais altas tendem a se casar ora com mulheres das classes mais altas, ora com donas de casa. Há fortes barreiras para casamentos entre a classe de “profissionais e pequenos proprietários” e a classe de trabalhadores manuais. Estas constatações indicam que o mercado matrimonial no Brasil é fortemente estruturado por barreiras de classe. A associação estatística entre classe de maridos e esposas revela que há barreiras rígidas para casamentos entre pessoas de classes altas e baixas, e barreiras fracas para casamentos entre pessoas de classes sociais hierarquicamente próximas. Além disso, o modelo indica que os homens das classes altas têm chances maiores de se casarem com donas de casa do que os homens das classes baixas. Em suma, todos os dados analisados nesta seção indicam que há forte homogamia de classes no Brasil. Os homens tendem a se casar ou com mulheres que tenham posições de classe semelhantes às suas, ou que sejam donas de casa. Os eventuais casais inter-classes são geralmente compostos por maridos que têm posição de classe direta superior à de suas mulheres. Estes padrões revelam uma forte rigidez e tradicionalismo no mercado matrimonial brasileiro. 136 6 – Divisão do Trabalho Doméstico Será que os padrões de distribuição de posições de classe entre maridos e esposas descritos acima têm algum efeito sobre a divisão do trabalho doméstico? Embora casamentos em que a esposa esteja em posição de classe superior à de seu marido sejam pouco freqüentes, será que, nesses tipos de casais, os homens ajudam mais nas tarefas domésticas? Enfim, será que há algum efeito de classe sobre a divisão do trabalho doméstico, ou esta divisão é puramente determinada pela distinção de gênero? Nesta seção procuro dar respostas para estas questões. Para responder estas perguntas, adoto a seguinte estratégia metodológica: 1. Descrevo as respostas de homens e mulheres casados sobre o montante de trabalho doméstico que seus cônjuges realizam. Analiso separadamente as respostas de homens e mulheres, pois parto do pressuposto de que as percepções de maridos e esposas sobre a divisão do trabalho doméstico são distintas. Os maridos podem achar, por exemplo, que fazem mais do que as esposas pensam que eles fazem ou vice-versa. 2. Analiso a distribuição da percepção sobre a divisão do trabalho doméstico de acordo com diferentes tipos de composição de classe dos casais. Ou seja, verifico se as porcentagens de trabalho doméstico atribuídas aos cônjuges por homens e mulheres variam de acordo a combinação entre classe direta de maridos e esposas. Estas descrições permitem observar se há diferenças na divisão do trabalho doméstico entre, por exemplo, os casais em que os maridos estão em classes inferiores às de suas mulheres e os casais em que eles estejam em classes superiores ou iguais às de suas mulheres. 3. Finalmente, estimo modelos de regressão múltipla (pelo método dos mínimos quadrados) para verificar quais são os principais fatores relacionados à divisão doméstica do trabalho. Estes três tipos de análise são realizados tanto para casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho quanto para todos os casais, que incluem mulheres donas de casa e maridos desempregados. 137 6.1 – Distribuição percentual da divisão do trabalho doméstico A tabela 4 mostra a distribuição percentual das respostas que homens e mulheres (em todos os casais e em casais com ambos os cônjuges no mercado de trabalho) deram a uma série de perguntas sobre a divisão do trabalho doméstico. Na última coluna, apresento um índice de trabalho doméstico total, que é a soma ponderada das respostas referentes às atividades descritas nas colunas anteriores – para a metodologia de ponderação, veja-se Wright (1997:306). Nos dados referentes a todos os tipos de casais, pode-se ver que 81,9% das mulheres dizem que sempre fazem o trabalho doméstico, enquanto 36,2% dos maridos afirmam que a divisão do trabalho doméstico é igualitária. Obviamente, há uma clara diferença na percepção de maridos e de esposas acerca da divisão doméstica do trabalho. As esposas tendem a dizer que fazem quase todo o trabalho, e os maridos, embora reconheçam que não fazem quase todo o trabalho, tendem a dizer que fazem mais do que suas esposas percebem. Os padrões são semelhantes para os casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho, embora haja uma leve tendência dos maridos e de suas esposas a reconhecerem que há um pouco mais de divisão de trabalho. Nestes tipos de casais, 69% das mulheres afirmam que sempre fazem o trabalho doméstico (veja-se a última coluna), e 40% dos homens dizem que a distribuição é igualitária. Poderíamos imaginar, de acordo com a literatura feminista, que os homens tendem a ser mais indulgentes e as mulheres, realistas em suas percepções sobre a divisão do trabalho doméstico. Adotando-se esta perspectiva, pode-se estimar que, em todos os tipos de casais (ou seja, no conjunto que representa os casais brasileiros), as mulheres tendem a fazer 4/5 do trabalho doméstico. Ao observar os dados referentes aos casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho, estimo que as esposas fazem 2/3 do trabalho doméstico. Embora haja, aparentemente, menos desigualdade na distribuição do trabalho nos casais em que ambos trabalham fora de casa, os números brasileiros são semelhantes aos de outros países, onde os homens tendem a afirmar que os maridos fazem entre 20% e 30% do trabalho doméstico (veja-se Wright, 1997:288). Esta semelhança entre diversos países é impressionante e, certamente, trata-se de uma regularidade que convida a maiores especulações teóricas. 138 Tabela 4 – Distribuição percentual da contribuição de cada cônjuge para o trabalho doméstico no Brasil, 2003 Todos os tipos de casais Lava e passa roupa Compra comida Limpa a casa Sempre eu 81,2 42,6 71,6 Geralmente eu 12,4 13,8 15,9 Igualmente 4,9 27,8 10,6 Geralmente meu cônjuge 1,0 8,9 1,3 Frequencia que faz Lava os pratos Trabalho doméstico de rotina Cuida das Criancas 74,4 69,1 81,5 71,3 81,9 12,4 15,1 13,9 25,7 13,9 10,7 11,8 3,5 2,5 3,4 1,5 3,2 1,1 0,5 0,8 Cozinha Trabalho doméstico total Respondentes Mulheres Sempre meu cônjuge 0,5 6,9 0,5 1,0 0,8 0,0 0,0 0,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Media 12,5 21,9 14,1 13,9 15,3 14,7 16,0 14,8 N 388 406 377 394 372 475 202 475 Sempre eu 2,1 17,1 3,6 3,5 5,3 2,3 4,2 2,3 Geralmente eu 1,2 7,4 1,9 2,1 2,9 3,9 8,5 4,3 Igualmente 8,1 36,9 16,6 15,6 21,4 35,2 47,3 36,2 Geralmente meu cônjuge 42,1 19,4 36,1 34,3 33,2 44,4 21,8 44,4 Sempre meu cônjuge 46,4 19,1 41,8 44,4 37,3 14,2 18,2 12,8 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Media 42,7 31,8 40,8 41,1 39,0 40,2 36,9 40,1 N 420 444 416 423 416 486 165 486 Trabalho doméstico total Respondentes Homens Respondentes em casais em que ambos estão no mercado de trabalho Lava e passa roupa Compra comida Limpa a casa Cozinha Lava os pratos Trabalho doméstico de rotina Cuida das criancas Sempre eu 73,2 Geralmente eu 15,3 34,5 60,9 65,0 58,9 68,3 63,8 69,1 16,4 18,5 14,1 14,6 23,1 31,9 23,0 Igualmente Geralmente meu cônjuge 8,9 32,2 18,5 17,2 21,2 7,9 0,9 7,2 1,9 10,5 2,0 2,5 4,6 0,7 0,0 Sempre meu cônjuge 0,7 0,6 6,4 0,0 1,2 0,7 0,0 0,0 0,0 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 96,6 100,0 Media 14,0 23,5 16,0 16,3 17,4 16,6 17,3 16,6 N 157 171 151 163 151 139 47 139 Sempre eu 1,9 14,9 5,2 5,1 5,2 2,1 2,1 2,1 Geralmente eu 1,3 8,0 2,6 3,2 3,3 5,6 12,5 7,0 Igualmente 12,8 42,9 18,8 19,2 29,4 42,0 56,2 40,6 Geralmente meu cônjuge 42,3 17,7 35,7 32,7 31,4 38,4 16,7 39,8 Sempre meu cônjuge 41,7 16,6 37,7 39,7 30,7 11,9 12,5 10,5 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Media 42,00 30,80 39,90 39,80 37,70 39,20 36,48 39,14 156 175 154 156 153 143 48 143 Frequencia que faz Respondentes Mulheres Respondentes Homens N 139 6.2 – Tipos de família e divisão doméstica do trabalho Numa primeira tentativa de verificar se as diferentes combinações de classes nos casais brasileiros podem ter impacto sobre a divisão do trabalho doméstico, descrevo o percentual de trabalho doméstico que homens e mulheres destes tipos de família declaram que seus cônjuges realizam. Os tipos de família são simplesmente algumas combinações possíveis entre as posições de classe diretas de maridos e esposas. Tendo em vista que, em alguns casos, há poucas famílias, tive que fazer algumas simplificações. Para os dados sobre casais que incluem donas de casa e homens desempregados, elaborei os seguintes tipos de família: (1) profissionais casados com profissionais, (2) profissionais casados com trabalhadores de rotina não-manual, (3) profissionais casados com trabalhadores manuais, (4) marido profissional com mulher dona de casa, (5) ambos trabalhadores de rotina não-manual, (6) marido trabalhador de rotina não-manual e mulher trabalhadora manual, (7) marido trabalhador de rotina não-manual e mulher dona de casa, (8) marido trabalhador manual e mulher trabalhadora de rotina não-manual, (9) ambos trabalhadores manuais, (10) marido trabalhador manual e mulher dona de casa, (11) marido desempregado e mulher empregada em qualquer classe, e (12) ambos fora do mercado de trabalho. Para os dados que incluem apenas os casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho, construí sete tipos de família: (1) ambos profissionais, (2) profissional casado com trabalhador de rotina não-manual, (3) profissional casado com trabalhador manual, (4) ambos o marido e a esposa trabalhadores de rotina não-manual, (5) marido trabalhador de rotina não-manual e mulher trabalhadora manual, (6) marido trabalhador manual e mulher trabalhadora de rotina não-manual, e (7) ambos trabalhadores manuais. A tabela 5 mostra a média do percentual do trabalho doméstico realizado pelo cônjuge em cada um destes tipos de família, de acordo com a declaração de maridos e esposas. Algumas hipóteses podem ser avaliadas a partir destes dados. Inicialmente, deve-se verificar se a distribuição do trabalho doméstico é mais igualitária em famílias em que ambos os cônjuges estão na mesma classe social. Em seguida, pode-se observar se, em casais em que a esposa tenha posição de classe mais alta do que a do marido, a divisão do trabalho doméstico é mais equânime do que em famílias nas quais o marido tem posição de classe mais alta ou semelhante à da esposa. A primeira observação que deve ser destacada é a de que as mulheres, em qualquer tipo de família, declaram que seus maridos fazem em torno 140 de um terço do trabalho doméstico. Na realidade, o percentual varia entre 27% e 36%, entre os diferentes tipos de casais. É fácil concluir que a variação das respostas não é grande entre os tipos de casais. Os maridos, por sua vez, declaram que suas esposas realizam entre 4/5 e 2/3 do trabalho doméstico. O percentual varia entre 59%, no caso de famílias em que o marido está desempregado e a esposa está empregada em qualquer uma das classes, e 84%, no caso em que o marido é trabalhador de rotina não-manual e a esposa é trabalhadora manual. Nas respostas dos homens, somente nos casos em que eles estão fora do mercado de trabalho é que há uma contribuição um pouco maior na divisão do trabalho doméstico. Mas, de um modo geral, os dados indicam claramente que o tipo de composição de classe dos casais não tem efeito significativo sobre a divisão do trabalho doméstico. Tabela 5 – Percentual do Trabalho Doméstico Realizado pelo Conjuge Segundo Respondente, Brasil 2003. Tipo de família entre parênteses (explicação no texto) Domicílios com casais (marido e esposa) Todos os respondentes (N = 746) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Prof, Adm e Prop. Nao-manual de Rotina Trab Manuais Desempregado Prof, Adm e Prop. 55 58 63 42 Nao-manual de Rotina 58 44 55 42 Trab Manuais 63 55 58 42 Do lar 56 55 61 41 Prof, Adm e Prop. Nao-manual de Rotina Respondentes mulheres (N = 349) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Trab Manuais Desempregado Prof, Adm e Prop. 36 (1) 35 (2) 35 (3) 36 (11) Nao-manual de Rotina 35 (2) 30 (5) 34 (8) 36 (11) Trab Manuais 35 (3) 33 (6) 33 (9) 36 (11) Do lar 29 (4) 27 (7) 27 (10) 28 (12) Prof, Adm e Prop. Nao-manual de Rotina Respondentes Homens (N = 397) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Trab Manuais Desempregado Prof, Adm e Prop. 71 (1) 73 (2) 70 (3) 59 (11) Nao-manual de Rotina 73 (2) 83 (5) 82 (8) 59 (11) Trab Manuais 70 (3) 84 (6) 78 (9) 59 (11) Do lar 77 (4) 81 (7) 84 (10) 68 (12) 141 Domicílios em que marido e esposa estao no mercado de trabalho Todos os respondentes (N = 376) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Prof, Adm e Prop. Não-manual de Rotina Prof, Adm e Prop. 55 58 Trab Manuais 61 Nao-manual de Rotina 58 44 55 Trab Manuais 61 55 58 Respondentes mulheres (N = 188) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Prof, Adm e Prop. Não-manual de Rotina Trab Manuais Prof, Adm e Prop. 36 (1) 35 (2) 36 (3) Nao-manual de Rotina 35 (2) 30 (4) 34 (6) Trab Manuais 36 (3) 33 (5) 33 (7) Respondentes Homens (N = 188) Classe de Trabalho do Marido Classe de Trabalho da Esposa Prof, Adm e Prop. Não-manual de Rotina Trab Manuais Prof, Adm e Prop. 71 (1) 73 (2) 80 (3) Nao-manual de Rotina 73 (2) 83 (4) 82 (6) Trab Manuais 80 (3) 84 (5) 78 (7) 6.3 – Análises multivariadas Nas seções anteriores, analisei as distribuições percentuais da divisão do trabalho doméstico e os desta divisão dentro de famílias com diferentes composições de classe entre maridos e esposas. De um modo geral, estas análises indicam que tanto mulheres como homens declaram que a maior parte do trabalho doméstico é realizado pelas esposas. Também observei que aparentemente não há variação na divisão do trabalho doméstico entre famílias com diferentes composições de classe dos cônjuges. Para realizar um teste final, implementei análises de regressão que incluem diversas variáveis independentes, as quais poderiam correlacionar-se à divisão do trabalho doméstico. Uma vez que o principal interesse era o de verificar se haveria variação na divisão do trabalho doméstico, de acordo com a composição de classe dos casais, incluí as variáveis sobre tipo de casal em todas as regressões e fui adicionando diversas outras variáveis como, por exemplo, educação em anos completos, renda individual, renda do cônjuge, ideologia de gênero, presença de empregada doméstica, presença de crianças menores de 5 anos no domicílio, idade do respondente, e horas que o cônjuge trabalha por semana. Dentre estas variáveis, a única estatisticamente significativa 142 é educação do respondente. Por isto, apresento na tabela 6 os modelos que incluem o tipo de família e a educação do respondente. Esta tabela apresenta o resultado de quatro regressões múltiplas que foram estimadas pelo método dos mínimos quadrados. As duas primeiras incluem todos os tipos de arranjos familiares e educação para, respectivamente, respondentes homens e mulheres, e as duas últimas incluem apenas casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho e educação para, respectivamente, respondentes homens e mulheres. As equações estimadas têm a seguinte equação: Y = β0 + β1X1 + β2X2 + ε, onde Y é a variável dependente (trabalho doméstico), β0 é o termo para a intersecção, β1 define o efeito de X1, que é o tipo de família (na realidade β1 é um conjunto de estimadores para dicotomias, tendo-se os casais em que ambos são profissionais como a categoria de referência), β2 define o efeito de X2, que são os anos de educação do respondente, e ε é o termo de erro. Tabela 6 – Regressão linear da composiçãoo de classe do casal e outras variáveis selecionadas no trabalho doméstico do cônjuge Homens (p) Mulheres (p) 2 Prof + N-M Rotina 0,07 (0,78) 0,11 (0,70) 3 Prof + Manual 0,28 (0,30) -0,04 (0,90) 4 Marido Prof + Mulher do lar 0,18 (0,48) 0,25 (0,30) 5 Ambos Tr Não-manu Rotina 0,48 (0,18) 0,25 (0,31) 6 Marido Rot + Mulher Manual 0,44 (0,12) 0,03 (0,90) 7 Marido Rot + Mulher do lar 0,29 (0,21) 0,35 (0,11) 8 Marido Manual + Mulher Rotina 0,37 (0,17) 0,05 (0,83) 9 Ambos Manual 0,11 (0,63) -0,06 (0,76) 10 Marido Manual + Mulher do lar 0,41 (0,06) 0,28 (0,18) Todos os casais Categorias de classe 11 Marido Desemp + Mulher Empr -0,86 (0,01) 0,11 (0,77) 12 Ambos Desemp -0,36 (0,27) -0,04 (0,50) Educação do respondente -0,03 ´(0,00) 0,25 ´(0,00) R2 0,14 0,12 N 397 347 143 Homens (p) Mulheres (p) 2 Prof + N-M Rotina 0,04 (0,88) 0,12 (0,72) 3 Prof + Manual 0,18 (0,54) -0,14 (0,65) 4 Ambos Tr Nao-manu Rotina 0,40 (0,31) 0,23 (0,43) Casais ambos no mercado de trabalho 5 Marido Rot + Mulher Manual 0,33 (0,31) -0,06 (0,84) 6 Marido Manual + Mulher Rotina 0,27 (0,37) 0,03 (0,92) 7 Ambos Manual -0,05 (0,86) -0,19 (0,46) Educação do respondente -0,06 ´(0,00) -0,06 ´(0,00) R2 0,13 0,11 N 143 137 “Educação” é a única variável estatisticamente significativa (p > 0,5) em todas as quatro regressões. No entanto, o efeito é muito pequeno em três modelos, observando-se um efeito um pouco mais intenso apenas no caso das respondentes mulheres que incluem todos os tipos de casais, o qual indica que mulheres com mais anos de educação tendem a ter maridos que contribuem mais na divisão do trabalho doméstico. Além do efeito da educação, no modelo para respondentes do sexo masculino que incluem todos os tipos de casal pode-se observar também que a variável referente a casais em que o marido está desempregado também é estatisticamente significativa. O modelo indica, portanto, que maridos desempregados tendem a afirmar que contribuem mais no trabalho doméstico. Com base nos quatro modelos acima, é preciso limitar as conclusões que acabo de expor. No entanto, todos estes modelos separam respondentes do sexo masculino de respondentes do sexo feminino. Neste sentido, estimei mais uma regressão que inclui respondentes de ambos os sexos e a variável sexo como única variável explicadora da divisão do trabalho doméstico. Estes modelos, para todos os tipos de casais e para casais com ambos os cônjuges no mercado de trabalho, são simples, na medida em que incluem apenas uma variável independente (sexo), mas são extremamente eficazes; a saber, explicam, respectivamente, 79% e 71% da variação da variável dependente. Em Ciências Sociais é muito difícil encontrarem-se modelos com tal magnitude de poder explicativo. O que isto significa? Significa, simplesmente, que a divisão do trabalho doméstico é uma divisão sexual do trabalho em que as esposas fazem muito mais do que seus maridos. Mais precisamente, pode-se asseverar que respondentes do sexo masculino, nas análises que incluem todos os tipos de casais, declaram 144 que suas esposas fazem 81% de todo o trabalho doméstico, ao passo que as mulheres afirmam que seus maridos fazem, em média, apenas 30% desse trabalho. A análise que inclui apenas os casais em que ambos os cônjuges estão no mercado de trabalho indicam que os homens declaram que suas esposas realizam, em média, 78,4% de todo o trabalho doméstico, ao passo que as mulheres afirmam que seus maridos fazem, em média, 33,6% do trabalho doméstico. Estas análises indicam, por um lado, que não há diferença dramática entre casais em que ambos os cônjuges trabalham fora de casa e os outros tipos de casais e, por outro lado, que as mulheres tendem a declarar que seus maridos fazem um pouco mais do que eles próprios declaram fazer. Ou seja, enquanto os maridos dizem fazer em torno de 20% do trabalho doméstico, as esposas tendem a afirmar que eles fazem algo em torno de 30% desse trabalho. De qualquer forma, não resta dúvidas de que as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico. Embora não seja novidade, o presente capítulo comprova que: há realmente jornadas duplas para as mulheres brasileiras de todas as classes sociais. Tabela 7 – Regressão linear simples de gênero em trabalho doméstico do cônjuge Todos os casais Gênero Casais no mercado de trabalho Hom e Mulh (p) Hom e Mulh (p) -2,53 ´(0,00) -2,23 ´(0,00) R2 0,79 0,71 N 746 282 Média de trabalho doméstico do cônjuge: Resp. Homem 4,04 3,92 Resp. Mulher 1,50 1,68 7 – Conclusão Neste capítulo discuti e apresentei análises sobre as interações entre gênero e classe na sociedade brasileira. Dois aspectos desta interação foram investigados: as relações entre classe e gênero na sociedade, e as relações entre classe e gênero dentro das famílias. Em ambos os casos observamos diferenças na forma como homens e mulheres se relacionam com o mercado de trabalho e nas famílias. 145 No mercado de trabalho, observei que há uma divisão sexual da estrutura de classes. Ou seja, enquanto os homens se concentram em certas atividades masculinas, as mulheres fazem trabalhos femininos. Para entendermos os mecanismos de funcionamento do mercado de trabalho, temos que levar em conta estas divisões. Meu estudo neste ponto é apenas indicativo e mostra algumas tendências deste tipo de divisão sexual do mercado de trabalho; no entanto, as análises são limitadas porque trabalho com um número muito reduzido de categorias ocupacionais. Em suma, no mercado de trabalho classe e gênero são dois fatores importantes de estruturação social. No que tange à mobilidade social, os resultados apontam para conclusões distintas. As chances de mobilidade social não diferem para homens e mulheres cujos pais estavam na mesma classe de origem deles, ou seja, as chances de mobilidade social são inteiramente determinadas pela origem de classes. Além disso, minhas análises indicam que os homens continuam a ter posição de classe superior à das suas mulheres (ver também Ribeiro, 2007), o que implica em dizer que, para descrever a estrutura de classes brasileira, basta observarmos a posição de classe dos chefes de família (que ainda continuam a ser em sua grande maioria homens). Como mostrei em outro trabalho, há sinais de mudança neste sentido, mas ainda há muita desigualdade de gênero, o que corresponde, em certa medida, a dizer que os homens casados continuam a ter posição ocupacional e socioeconômica superior as de suas esposas. Sendo que um grande percentual das esposas continua fora do mercado de trabalho, ou seja, se dedicando apenas ao trabalho doméstico. Quando observamos os casais em que ambos o marido e a esposa estão no mercado de trabalho, é possível verificar um pouco menos desigualdade entre suas posições ocupacionais. Por exemplo, em casais em que ambos estão no mercado de trabalho há inclusive uma tendência marginal para homens casarem com mulheres que têm maior nível ocupacional do que eles. Estes dados, no entanto, podem estar sendo influenciados pelo pequeno número de grupos ocupacionais usado para analisar os dados. De qualquer forma, algumas das análises indicam que em casais em que ambos trabalham os padrões de casamento e mobilidade são ligeiramente diferentes do que para o total dos casais brasileiros. Finalmente, analiso a divisão sexual do trabalho doméstico. Neste caso as conclusões são simples e diretas: as mulheres realizam a maior parte do trabalho doméstico no Brasil e as classes não têm qualquer efeito sobre a divisão deste tipo de trabalho. Em média, as mulheres brasileiras realizam 80% das tarefas domésticas – média muito maior do que a observada nos E.U.A e na Suêcia (Wright 1997). 146 Em suma, embora as classes sociais sejam mais importantes do que o gênero para definir chances de mobilidade social e a estrutura de classes brasileira possa ser descrita usando a ocupação dos homens como principal indicador, a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e no interior das famílias brasileiras é extremamente elevada. Na realidade, é justamente por causa da grande desigualdade de gênero que ainda é possível definir a estrutura de classes brasileira utilizando apenas indicadores masculinos. Torçamos para que neste próximo milênio mudanças sejam alcançadas e a diminuição da desigualdade de gênero leve a uma feminização da estrutura de classes. Referências bibliográficas ABBOT, P. e SAPSFORD, R. Women and Social Class. London: Tavistock, 1987. 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Mobilidade pai para fi lho e para fi lha 1, Perfect mobility 160,10 8 104 100,0% <.001 2, Constant association (CSF) 13,69 4 -14 8,6% ,008 3, Additive layer effect 11,70 3 -9 7,3% ,008 4, Mulitplicative layer effect 13,09 3 -8 8,2% ,004 II. Mobilidade mae para fi lho e para fi lha 1, Perfect mobility 77,69 8 26 100,0% <.001 2, Constant association (CSF) 4,39 4 -21 5,7% ,356 3, Additive layer effect 4,38 3 -15 5,6% ,223 4, Mulitplicative layer effect 3,97 3 -15 5,1% ,265 III. Mobilidade pai para fi lho e para fi lha incluindo destino “do lar ou desp.” 1, Perfect mobility 165,73 12 79 100,0% <.001 2, Constant association (CSF) 18,16 6 -25 11,0% ,006 3, Additive layer effect 18,12 5 -18 10,9% ,003 4, Mulitplicative layer effect 17,80 5 -18 10,7% ,003 IV. Mobilidade mae para fi lho e para fi lha incluindo ori. e des. “do lar ou desp.” 1, Perfect mobility 117,17 18 -15 100,0% <.001 2, Constant association (CSF) 21,82 9 -44 18,6% ,009 3, Additive layer effect 21,57 8 -37 18,4% ,006 4, Mulitplicative layer effect 19,23 8 -39 16,4% ,014 Nota: L2: estatística de razão de verossimilhança 149 Tabela 2 – Estatísticas de ajuste de modelos log-lineares estimados para analisar tabelas de mobilidade intergeracional entre: (I) pai e filho ou filha no mercado de trabalho (3x3x2), (II) mãe e filha ou filha no mercado de trabalho (3x3x2), (III) pai e filho ou filha incluindo destino desempregado (3x4x2), e (IV) mãe filho ou filha incluindo orig e dest “do lar” (4x4x2). Brasil 2003. # Model L2 df Bic L m 2 / L 02 p I. Casamento em que ambos estao no mercado de trabalho (3x3) 1, Idependência 96,23 4 73 100,0% <.001 2, Quase independência 0,08 1 -6 0,1% ,777 3, Efeito das linhas (row effect) 2,80 2 -9 2,9% ,247 4, Associação uniforme 3,06 3 -15 3,2% ,382 5, Modelo RCII 1,91 1 -4 2,0% ,167 II. Casamento incluindo “do lar” e “desempregado” (4x4) 1, Idependência 117,11 9 56 100,0% <.001 2, Quase independência 28,80 5 -5 24,6% <.001 3, Quase Simetria 3,27 3 -17 2,8% ,352 4, Efeito das linhas (row effect) 38,09 6 -3 32,5% <.001 5, Associação uniforme 68,88 8 14 58,8% <.001 6, Quase Efeito das linhas 1,05 2 -13 0,9% ,592 7, Quase Associação uniforme 5,84 4 -21 5,0% ,211 8, Modelo RCII 4,89 4 -22 4,2% ,299 150 CAPÍTULO 4 Classe, Raça e Mobilidade Social no Brasil1 1 – Introdução Recentemente, tem sido constante o debate público sobre as desigualdades raciais e de classe. Embora não haja dúvidas sobre os altos níveis de desigualdade (Oliveira, Porcaro e Costa, 1983; Hasenbalg, 1979; Hasenbalg e Silva, 1988; 1992; 1999; Henriques, 2001), a principal questão do debate atual continua sendo a de definir se as desigualdades de oportunidade são determinadas por preconceito de classe ou de raça. Alguns comentadores afirmam que o preconceito racial é menos importante do que o de classe, ao passo que outros argumentam que o preconceito racial é importante e deve ser levado em conta como um fator que vai além do estigma de se vir de uma classe baixa. Ao analisar estas questões, a grande maioria dos estudos utiliza informações estatísticas sobre as desigualdades nas condições de vida (renda, educação, etc.) de indivíduos e famílias em um determinado momento, tipicamente em algum ano ou mês, e freqüentemente comparam estas condições de vida ao longo de diversos anos. Embora permita observar diversas formas de desigualdade racial e de classe, este tipo de abordagem não pode ser usada para decidir o que é mais relevante, se raça ou classe, na determinação das chances de ascensão social. Ou seja, informações Este capítulo foi publicado anteriormente em DADOS – Revista de Ciências Sociais, volume 49 n. 4, 2006. Diversos colegas e alunos, com opiniões diferentes sobre o tema das cotas raciais e da ação afirmativa no Brasil, leram este capítulo antes de sua publicação. Como a lista é grande, faço aqui apenas um agradecimento generalizado a todos. As críticas dos dois revisores anônimos da revista Dados foram especialmente importantes para dar forma ao texto final, publicado na forma de artigo, que deu origem a este capítulo. Todas estas leituras e comentários me ajudaram a melhorar o argumento deste capítulo. Como de praxe, sou inteiramente responsável pelo resultado final. 1 151 sobre desigualdade de resultados não substituem informações sobre desigualdade de oportunidades. Esta distinção é de extrema importância, porque o principal foco de interesse no debate é a desigualdade de oportunidades entre pretos, pardos e brancos, e entre pobres e ricos, mas os dados utilizados são freqüentemente sobre desigualdade de resultados em determinado período de tempo. Neste sentido, torna-se fundamental estudar a associação entre a classe de origem, e da cor da pele, e as chances de mobilidade social ascendente, já que este tipo de análise é uma das únicas formas de se abordar o principal tema do debate: a desigualdade de oportunidades entre grupos de classe e de cor. As perguntas relevantes que se deve responder são as seguintes: será que pessoas com origens de classe distintas e de diferentes grupos de cor ou raça têm oportunidades desiguais de mobilidade ascendente? De que forma a cor da pele e a classe de origem se relacionam às oportunidades de mobilidade ascendente? São exatamente estas perguntas que me proponho a responder neste capítulo a partir de análises empíricas sobre desigualdades de oportunidades de mobilidade social. Para realizar estas análises, é necessário utilizar bancos de dados que tenham informações sobre: origem de classe (mensurada através da ocupação do pai quando o entrevistado tinha 14 anos); destino de classe (medido pela ocupação do indivíduo); cor ou raça e escolaridade. As três últimas variáveis estão presentes em diversas pesquisas usualmente coletadas no Brasil, nas quais, porém, normalmente não se obtém a primeira. O último banco de dados nacionalmente representativo e que contém informações sobre a ocupação dos pais dos respondentes é a Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar de 1996. Utilizo este banco de dados em todas as análises do presente capítulo. Faço três tipos de análise. Primeiro, descrevo a mobilidade intergeracional entre a classe dos pais ou a classe de origem e a classe de destino de brancos, pardos e pretos. O objetivo é verificar o que mais influencia a desigualdade de oportunidades de mobilidade ascendente: a classe de origem e/ou a cor da pele. Em seguida, faço uma decomposição desta mobilidade, tomando como ponto intermediário o nível educacional alcançado. Como é de conhecimento geral, a educação é um dos fatores mais importantes de ascensão social. Sem qualificações educacionais não é possível, por exemplo, ocupar os cargos dos profissionais liberais, entre outros que proporcionam condições de vida relativamente mais confortáveis. Desta forma, analiso a desigualdade de oportunidades educacionais, ou seja, procuro verificar o peso da origem de classe e da cor de pele nas chances de se completarem diversos níveis educacionais. Por fim, analiso 152 as chances de mobilidade das classes mais privilegiadas, de acordo com o nível educacional alcançado, a origem de classe e a cor dos indivíduos. Esta análise em três etapas não somente permite desvendar quais são as principais barreiras de mobilidade social ascendente, como também revela em quais pontos a raça e a classe de origem se combinam como fatores inibidores desta mobilidade ascendente. Antes de apresentar as análises empíricas, discutirei, na próxima seção, os estudos anteriores sobre mobilidade social de brancos, pretos e pardos no Brasil não apenas com o objetivo de descrever os resultados anteriormente encontrados, mas também com o de definir hipóteses que possam ser testadas e discutidas a partir das análises empíricas. Na seção que se segue a ela, apresentarei a metodologia que utilizo nas análises e as estatísticas de ajuste dos modelos aos dados. Por fim, discuto os resultados das análises e proponho respostas às perguntas iniciais deste capítulo. 2 – Trabalhos anteriores2 Embora, na literatura sobre relações raciais, o tópico da mobilidade social seja considerado fundamental para determinar se há preconceito ou discriminação racial, os estudos que utilizam metodologia quantitativa sobre o tema não são muito numerosos no Brasil. Até a década de 1970, a grande maioria dos trabalhos baseou-se ora em pesquisas qualitativas, ora em interpretações históricas. Foi apenas no final dessa década que começaram a surgir estudos que utilizavam bancos de dados agregados e estatísticas descritivas. A maioria desses novos estudos, no entanto, faz análises das desigualdades de condições, sendo que somente alguns poucos trataram da mobilidade social e da desigualdade de oportunidades educacionais e de mobilidade social. Alguns estudos dos anos 1940, 1950 e 1960 argumentavam que não havia preconceito racial, mas sim de classe. Donald Pierson, por exemplo, afirmava que “não existem castas baseadas nas raças; existem somente classes. Isto não significa que não exista algo que se possa chamar propriamente de ‘preconceito’, mas sim que o preconceito existente é um preconceito de classe e não de raça” (1945:402). Esta afirmação de Pierson confirmava a interpretação de Freyre (1973) sobre a convivência relativamente harmônica entre grupos raciais no Brasil. Outros estudos 2 Para uma revisão mais detalhada da literatura, veja-se Osório (2004). 153 realizados na cidade de Salvador (Azevedo, 1996) e em comunidades rurais (por exemplo, Wagley, 1952) também seguiram e confirmaram, a partir de estudos de caso e estudos qualitativos, a interpretação freyreana. Mas nem todos os estudos do período chegaram à conclusão de que o preconceito seria, antes, de classe do que de raça. No livro O Negro no Rio de Janeiro: Relações de Raça numa Sociedade em Mudança, Costa Pinto (1952) propõe uma interpretação distinta. Embora sugerisse que a modernização da sociedade brasileira tornava a estratificação por classe social mais relevante do que aquela por raça ou casta, argumentava que, com o aumento da mobilidade social advindo de mudanças na estrutura de classes, haveria uma ameaça ao establishment e, conseqüentemente, um retorno da estratificação por casta e um acirramento das discriminações raciais. Para chegar a estas conclusões, esse autor utilizou os Censos Populacionais para mostrar que os pretos se concentravam nas ocupações de trabalho manual e que tiveram poucas chances de mobilidade entre 1872 e 1940. Outros estudos também indicavam a existência de discriminação racial e as desvantagens de mobilidade social dos pretos e dos pardos em relação aos brancos, no interior de São Paulo (Nogueira, 1998) e no sul do país (Cardoso e Ianni, 1960). O estudo de Cardoso e Ianni (1960) sobre Florianópolis chegou a uma interpretação diferente daquela feita por Costa Pinto, aproximando-se da perspectiva de Florestan Fernandes (1965). Segundo esse autor, o Brasil estaria rapidamente se transformando em uma sociedade de classes, e a estratificação por raça era uma herança do passado colonial que persistia, mas que seria aos poucos substituída por discriminações de classe. As desvantagens raciais existiam como um legado do passado de escravidão. Pode-se observar três hipóteses sobre a relação entre classe, raça e mobilidade social nessa literatura. A primeira deriva-se do trabalho de Pierson (1942:59) e sugere que “não haveria barreiras raciais fortes a mobilidade ascendente, mas sim barreiras de classe”. A segunda é de Costa Pinto (1952:212) e pode ser formulada da seguinte maneira: “a expansão da sociedade de classes vai levar a um aumento da mobilidade social e na medida em que não-brancos comecem a entrar nas classes mais privilegiadas haverá um retorno e acirramento da discriminação racial”. A terceira é a de Fernandes (1965:159) e sugere que “a discriminação racial no processo de mobilidade social será paulatinamente substituída pela discriminação de classe, ou seja, o preconceito racial é uma herança do passado colonial”. Em 1979, Carlos Hasenbalg publicou o livro Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Esse livro faz uma revisão da literatura sobre relações 154 raciais no Brasil e sugere uma hipótese, alternativa àquela de Florestan Fernandes (1965), que pode ser resumida da seguinte forma: a discriminação racial continuaria sendo um importante fator de estratificação social na sociedade brasileira, mesmo com a expansão da sociedade de classes advinda da industrialização. Esta quarta hipótese, portanto, previa que: haveria desigualdade nas chances de mobilidade social entre brancos e não-brancos (pretos e pardos) independentemente de sua classe de origem. Estas quatro hipóteses foram, direta ou indiretamente, o foco de discussões nos estudos sobre relações raciais realizados a partir do final da década de 1970, principalmente a partir de 1976, quando as pesquisas nacionais por amostragem domiciliar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE começaram a coletar informações sobre raça ou cor dos entrevistados (principalmente: branco, preto e pardo). Os principais trabalhos empíricos foram desenvolvidos por Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988; 1992; 1999). Embora a maioria dos artigos tenha sido sobre desigualdade de condições entre brancos e não-brancos,3 esses dois autores também escreveram sobre desigualdade de oportunidades educacionais e de mobilidade social. Estudos sobre desigualdade de oportunidades procuram, em geral, analisar a relação entre origem de classe (O), educação (E) e destino de classe (D). O gráfico a seguir apresenta o triângulo básico das análises sobre desigualdade de oportunidades: Figura 1 Os estudos sobre desigualdade de oportunidades educacionais dedicam-se a analisar a relação entre O e E. Procuram, portanto, determinar se há associação estatística entre origem de classe e raça, por um lado, e transições educacionais, por outro, para diferentes coortes de idade. Este tipo de análise utiliza modelos de regressão logística ou de logitos, Utilizo a categoria não-branco para enfatizar que a soma de pretos e pardos é antes uma necessidade metodológica, e não uma escolha política ou uma escolha advinda de alguma fundamentação teórica. 3 155 ou seja, estima o logaritmo das chances relativas de se fazer ou não uma determinada transição educacional. Normalmente, estas chances relativas são estimadas para cada uma das coortes de idade. Para cada transição é utilizado um modelo;4 por exemplo, um modelo para as chances relativas de cada coorte concluir o ensino fundamental, outro para as chances de que aqueles que completaram o ensino fundamental concluam o ensino médio, e assim por diante. Além de variáveis independentes, como classe de origem e raça, utilizam-se, nas análises, algumas outras variáveis. Esta metodologia foi inicialmente proposta por Mare (1980; 1981) e amplamente utilizada em pesquisas comparativas (Shavit e Blossfeld, 1993). O primeiro artigo sobre o Brasil a utilizar tal metodologia foi o de Silva e Souza (1986). Nesse estudo, os autores são bastante cuidadosos ao destacar que algumas variáveis importantes (principalmente capacidade cognitiva e aspiração educacional) não estavam disponíveis no banco de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 1976, que eles utilizaram. De fato, estas variáveis, extremamente importantes, ainda não existem nos bancos de dados mais contemporâneos.5 De qualquer forma, os autores chegam à importante conclusão de que, para os homens que tinham entre 20 e 64 anos de idade em 1976, tanto a ocupação e a educação do pai quanto a cor dos indivíduos associam-se fortemente às transições escolares. Esta associação, como era de se esperar, diminui quando das transições nos níveis mais elevados do sistema escolar. Posteriormente, Silva (1992) utilizou dados da PNAD de 1982 para mostrar que havia desigualdade racial nas transições educacionais para pessoas entre 6 e 24 anos de idade. Os pretos e os pardos tinham desvantagens em relação aos brancos. Silva (1992) usou controles para a idade dos indivíduos, mas não analisou os efeitos das origens de classe. Posteriormente, Hasenbalg e Silva (1999) ampliaram o estudo incluindo outras variáveis independentes, além da cor dos indivíduos. Ao incluir variáveis relativas à estrutura familiar no modelo, mostraram que houve uma diminuição substancial da magnitude do efeito da cor do indivíduo, embora ele permaneça significativo mesmo assim, o que indica a existência de um viés racial. Esses autores concluíram que deve realmente haver discriminação racial no momento da matrícula das crianças no sistema escolar. Finalmente, Silva (2003) analisou as transições escolares de indivíduos entre 6 e 19 anos em três Há casos de anállise conjunta de todas as transições em um único modelo, mas, para os dados brasileiros, isso ainda não foi feito. 5 Sobre este assunto, veja-se a crítica de Cameron e Hackman (1998) à metodologia de Mare (1980; 1981). 4 156 momentos, 1981, 1990 e 1999 (também utilizando dados das PNADs), e chegou à interessante conclusão de que os efeitos da cor nas transições educacionais “crescem conforme se progride dentro do sistema escolar” (Silva, 2003:132). Além disso, o efeito da renda familiar (uma variável socioeconômica) também cresce ao longo das transições. Outro estudo importante sobre desigualdade de oportunidades educacionais é o de Fernandes (2004). Nesse artigo, a autora analisa as transições educacionais para diversas coortes de idade utilizando dados da PNAD de 1988. Sua principal conclusão é a de que o efeito da raça aumenta nas transições mais elevadas (conclusão do ensino médio). Embora o efeito das outras variáveis socioeconômicas diminua ao longo das transições educacionais, não é possível comparar a magnitude dos efeitos das variáveis socioeconômicas e de raça sobre as transições educacionais, pois o artigo não apresenta coeficientes padronizados. A autora, no entanto, revela que o efeito da raça diminui ao longo das transições e aumenta bastante justamente no momento da conclusão do ensino médio. No que diz respeito aos efeitos de raça e classe de origem (características socioeconômicas), os estudos sobre desigualdade de oportunidades educacionais apontam para a permanência de ambos sobre as transições educacionais. Pessoas brancas com origens nas classes mais privilegiadas tendem a ter melhores chances de se tornarem bem-sucedidas nas transições educacionais. Os brancos passam a ter vantagens ainda maiores para completar o ensino médio. Essas conclusões corroboram a quarta hipótese, apresentada anteriormente (a de Hasenbalg, 1979). A saber, as desigualdades de oportunidades educacionais são marcadas pela estratificação racial, que parece ser ainda mais acentuada nos níveis mais elevados do sistema educacional. Além de estudar as transições educacionais, as pesquisas sobre desigualdade de oportunidade costumam analisar a mobilidade intergeracional para verificar se há vantagens e desvantagens de classe e de raça nas chances de ascensão social. O estudo da mobilidade diz respeito à associação entre origem de classe (O) e destino de classe (D). No Brasil, a maioria dos estudos sobre a mobilidade social dos diferentes grupos raciais baseou-se principalmente na análise das taxas absolutas de mobilidade, ou seja, dos percentuais calculados a partir da tabela de mobilidade que cruza classe do pai com classe do filho. Mais adiante, mostrarei por que esta metodologia confunde os efeitos de raça e de classe de origem nas chances de mobilidade. Os primeiros estudos sobre mobilidade e raça a utilizar metodologia quantitativa foram realizados por Hasenbalg (1979; 1983; e Hasenbalg e 157 Silva, 1988), usando, respectivamente, dados para seis estados da região Centro-sul do Brasil, das PNADs de 1976 e de 1982. Em todos esses estudos, o autor mostra que brancos têm mais mobilidade ascendente do que não-brancos e interpreta os resultados como indicações de que deve haver discriminação racial ou barreiras raciais no processo de mobilidade intergeracional. Posteriormente, as conclusões de Hasenbalg foram confirmadas por Caillaux (1994), que comparou os dados das PNADs de 1976 e de 1988. Em 1996, uma nova PNAD, contendo dados sobre mobilidade social, foi coletada. Utilizando esses dados, Hasenbalg e Silva (1999a) e Telles (2003) confirmaram, mais uma vez, o que haviam observado nos estudos em que se utilizaram dados anteriores, ou seja, concluíram que, em 1996, continuava a haver barreiras raciais à mobilidade intergeracional. Apesar de todos esses estudos terem sido fundamentais para avançar o conhecimento sobre a mobilidade social, o fato de serem baseados na simples análise de percentuais gera dúvidas sobre quais os efeitos da raça e quais os efeitos da classe de origem nas chances de mobilidade, uma vez que estas duas variáveis estão correlacionadas. Ou seja, pretos e pardos consistem de um percentual maior dentre indivíduos que cresceram nas classes mais baixas e menor dentre os que cresceram nas classes mais altas. Portanto, ao analisar as chances de mobilidade social ascendente, tem-se que ficar atento com esta desproporção inicial. Se houver mais mobilidade ascendente de brancos, como indicam os estudos supracitados, isto pode se dever ao fato de o grupo contar com um maior percentual do que os outros nas classes mais privilegiadas. Para resolver este problema, é necessário utilizar modelos log-lineares que controlem os marginais das tabelas de mobilidade, ou seja, que controlem a desproporção de brancos e não-brancos nas classes de origem. Cientes dessa limitação, Silva (2000) e Hasenbalg e Silva (1999b) utilizam modelos log-lineares para analisar a mobilidade social intergeracional de brancos, pretos e pardos. Os testes estatísticos que utilizam os modelos log-lineares indicam que destino ocupacional e cor associam-se independentemente da origem de classe dos indivíduos, ou seja, os modelos indicam que há desigualdade de oportunidades de mobilidade social entre brancos e não-brancos. Uma das limitações dos modelos utilizados é o fato de que permitem somente conclusões globais, como as que foram indicadas, mas não possibilitam uma análise mais detalhada da interação entre cor e origem de classe. Nas análises do presente capítulo, utilizo modelos log-lineares mais avançados, que permitem verificar não somente se há interação entre classe de origem e raça nas chances de mobilidade social, como também qual o padrão desta interação. 158 Finalmente, há alguns artigos que procuram analisar conjuntamente a relação entre origem de classe (O), qualificação educacional (E) e destino de classe (D), bem como seus diferenciais por grupo racial. Os trabalhos de Silva (1988), Pinto e Néri (2002) e Osório (2003) estudam diferentes aspectos da relação entre origem, educação e destino de classe. Para entender o processo de realização socioeconômica (status attainment), Silva (1988) propõe modelos de regressão linear a fim de explicar a posição ocupacional e a renda alcançada pelos indivíduos. Estimados separadamente para brancos e não-brancos, os modelos incluem variáveis explicativas de características da origem socioeconômica (como ocupação do pai, instrução do pai), da situação de moradia (como região de residência e de nascimento) e de educação alcançada (anos de escolaridade). Com base nessas análises, Silva (1988:158) conclui que: “além dos indivíduos herdarem uma situação socioeconômica, existe, ainda, uma herança de raça que faz com que os indivíduos de cor se encontrem em desvantagem competitiva em relação aos brancos na disputa pelas posições na estrutura social”. Outro artigo que trata da mobilidade ocupacional é o de Pinto e Néri (2000), que se baseia na análise dos dados da Pesquisa Mensal de Emprego – PME de 1996. Além de fazer as usuais análises percentuais das tabelas de mobilidade (nesse caso, de mobilidade intrageracional), os autores estimam modelos de regressão logística. Concluem, por um lado, que, nas tabelas que cruzam ocupação inicial com ocupação final, há um diferencial de mobilidade entre brancos e não-brancos e, por outro lado, que a variável raça não é estatisticamente significativa quando analisada em conjunto com outras variáveis de origem socioeconômica na regressão. Em suma, as variáveis socioeconômicas são mais importantes do que a raça nas chances de mobilidade intrageracional. Finalmente, Osório (2003) estima modelos log-lineares que incluem origem de classe (O), destino de classe (D), escolaridade (E), sexo (S), idade (I) e cor (C). Embora modelos log-lineares estimados desta forma sejam de complicada interpretação, Osório, em um bom trabalho, chegou a conclusões interessantes sobre o processo de mobilidade intergeracional. Afirma, por exemplo, que “[...] Não completar o segundo grau na classe alta representa um risco concreto de cair para as classes média e baixa, mas ser branco reduz especificamente o risco de que o movimento se direcione à baixa – negros terão mais chances de o terem como destino – além de aumentar a chance de permanência na classe” (Osório, 2003:144). Os resultados desses três artigos são importantes. Por um lado, Silva (1988) e Osório (2003) mostram em suas análises que há diferença nas chances relativas de mobilidade entre brancos e não-brancos. Osório 159 (2003) indica que tal diferença é mais acentuada nas classes mais altas – resultado que se assemelha aos encontrados por mim no presente capítulo. Por outro lado, Pinto e Néri (2002) indicam que no processo de mobilidade intrageracional as variáveis socioeconômicas melhor explicam as chances de mobilidade. Embora não discutam diretamente suas implicações teóricas, os estudos de Osório (2003) e Pinto e Néri (2002) desafiam a hipótese de Hasenbalg (1979) segundo a qual fatores de desigualdade racial são independentes de fatores de estratificação por classe. O que esses trabalhos indicam é que alguma forma de interação entre classe e raça deve existir na formação das desigualdades. De certa forma, a teoria de Hasenbalg (1979) prevê isso, embora a interpretação mais simplificadora do argumento não enfatize a interação entre raça e classe. Uma das implicações dos resultados deste capítulo é justamente a necessidade de se pensar mais coerentemente sobre as interações entre raça e classe na produção de desigualdades sociais. 3 – Os dados, os modelos e os ajustes dos modelos Nesta seção apresento os modelos que utilizo para analisar a desigualdade de oportunidades de mobilidade social entre homens brancos, pardos e pretos de 25 a 64 anos. Os dados analisados são os da PNAD de 1996 e são representativos para todo o Brasil. Ao apresentar as características dos modelos e seus ajustes aos dados, também descrevo as variáveis que são incluídas em cada um. Antes, no entanto, discuto brevemente os quatro estratos que são utilizados para classificar classes de origem (mensuradas a partir da ocupação do pai dos respondentes quando estes tinham 14 anos) e de destino (baseadas na ocupação dos respondentes em setembro de 1996). As classes de origem e destino foram classificadas da seguinte forma: (1) profissionais, administradores e empregadores (as médias de renda e os anos de educação para classe de destino são: R$ 2.074,00 e 11 anos); (2) trabalhadores de rotina não-manual, técnicos e proprietários sem empregados (as médias de renda e anos de educação para classe de destino são: R$ 801,00 e 8 anos); (3) trabalhadores manuais e pequenos empregadores rurais (as médias de renda e anos de educação para classe de destino são: R$ 490,00 e 5 anos); e (4) trabalhadores rurais (as médias de renda e anos de educação para classe de destino são: R$ 244,00 e 2 anos). Estes quatro grupos de classe são uma agregação dos 160 16 grupos descritos por Costa Ribeiro (2006: cap. 2). Obtêm-se estas 16 classes a partir das variáveis ocupacionais, (que também incluem posição na ocupação) presentes na PNAD, com o objetivo de construir uma versão brasileira do esquema internacional que é descrito no segundo capítulo de Erickson e Goldthorpe (1993), tendo sido obtido a partir da metodologia proposta por Ganzeboom e Treiman (1996). No caso dos dados brasileiros, as classes de trabalhadores manuais qualificados (VI) e não-qualificados (VIIa) podem ser subdivididas em sete categorias, de acordo com o tipo de indústria em que se concentra o trabalho. Para analisar a mobilidade intergeracional dos grupos de cor (brancos, pretos e pardos), fui obrigado a diminuir o número de categorias de classe, porque o grupo de pretos é muito pequeno, o que leva à impossibilidade metodológica de se analisar a tabela de mobilidade para este grupo. Diante desta limitação, agreguei os grupos de classe de 16 para 4 categorias, levando em conta as características de trabalho de cada grupo e as condições socioeconômicas expressas nas respectivas médias de escolaridade e renda do trabalho principal. As médias de renda e de anos de educação para os esquemas com 16 e 4 categorias são apresentadas na Tabela B, em anexo. Todas as análises do presente capítulo baseiam-se em modelos estatísticos referentes a dados categórico; mais especificamente, a modelos log-lineares, logit (regressão logística) e logit multinomial condicional. Esses três tipos são matematicamente equivalentes, ou seja, são especificações distintas a partir de um mesmo tipo de modelo. Minhas análises encontram-se na seguinte ordem: inicialmente, descrevo a mobilidade intergeracional e estimo modelos para verificar se a força e o padrão de associação entre classe de origem (O) e de destino (D) variam entre os três grupos de cor (C). Em seguida, analiso a associação entre origem de classe (O) e transições educacionais (E), por um lado, e os impactos das qualificações educacionais adquiridas (E) e da origem de classe (O) sobre as chances de mobilidade para as classes de destino (D), por outro lado. Para cada uma destas etapas, utilizo modelos distintos. Para analisar a mobilidade intergeracional, ajustei três modelos loglineares à tabela que cruza quatro classes de origem (O) com quatro de destino (D) por três grupos de cor (C).6 Os três modelos ajustados a esta tabela foram os que descrevo a seguir. Modelo de associação constante: 6 Veja-se a Tabela A, em anexo. 161 log Fijk = µ + λiO + λjD + λkC + λikOC+ λjkDC+ λijOD (M1), onde log Fijk é o logaritmo da razão de chances que mede a associação entre origem i e destino j condicional em cor k; o termo µ é a média geral; os termos λiO, λjD e λkC controlam as distribuições marginais de origem, destino e cor; o termo λikOC controla a associação entre origem e cor; e o termo λjkDC controla a associação entre destino e cor. Como este modelo inclui um termo para a associação entre origem e destino (λijOD), e não inclui um termo para a interação entre origem, destino e cor (λijkODC), caso se ajuste aos dados, deve-se concluir que a associação entre origem e destino é a mesma para os três grupos de cor. O segundo modelo que ajusto aos dados é o log-multiplicativo proposto por Xie (1992), cuja formula geral é: log Fijk = µ + λiO + λjD + λkC + λikOC+ λjkDC + exp(ψijφk ) (M2) A única diferença deste modelo (M2) para o primeiro (M1) é que o termo λijOD do primeiro é substituído por exp(ψijφk). ψij descreve um único padrão de associação entre origem e destino e é multiplicado por φk, que define a variação por grupo de cor da força da associação entre O e D. Se este modelo se ajustar melhor aos dados do que o anterior, pode-se concluir que a força da associação é diferente para cada grupo de cor, de acordo com o valor numérico de φk. Finalmente, utilizo um último modelo, que permite não apenas que a força da associação entre origem e destino varie por grupo de cor, mas também que o padrão desta associação seja diferente. Este modelo, que foi proposto por Goodman e Hout (1998), é o seguinte: log Fijk = µ + λiO + λjD + λkC + λikOC + λjkDC + λijOD + exp(ψijφk) (M3) Esta fórmula (M3) simplesmente adiciona o termo λijOD ao modelo anterior (M2). Ao fazer esta inclusão, permite analisar a diferença no padrão da associação entre os três grupos raciais, além daquela na força (exp[ψijφk]). Este terceiro modelo pode ser reescrito de modo a tornar sua fórmula semelhante à de uma regressão linear que inclui uma interseção (que mede o padrão da associação – µij) e uma inclinação (que mede a força da associação – µ’ij). Esta maneira alternativa de conceber o mesmo modelo permite uma interpretação mais clara, ajuda a melhorar o ajuste 162 do modelo a partir de restrições aos seus estimadores e é a ele que se deve o nome do modelo, qual seja “regression-type layer effect model” (Goodman e Hout, 1998). A fórmula alternativa é: lnθij/k = µij + µ’ij φk (M3’) Este terceiro modelo (fórmulas M3 e M3’) é bastante complexo, e sua interpretação correta depende da inclusão de restrições aos termos de interseção (µij) e/ou de inclinação (µ’ij). A tabela a seguir mostra o ajuste dos três modelos (M1, M2, e M3) à tabela que cruza quatro classes de origem com quatro de destino e com três grupos de cor (Tabela A, em anexo). Além disso, apresento o ajuste do modelo de mobilidade perfeita (M0), segundo o qual não há associação entre origem e destino, e o modelo M4 que impõe restrições ao modelo M3. Tabela 1 – Estatísticas de Ajuste dos Modelos de Associação Aplicados a Tabela 1 do anexo: Tabelas de Mobilidade Intergeracional para Homens Brancos, Pardos e Pretos entre 25 e 64 anos de idade, Brasil 1996 (N = 40.635) # Model L2 X2 df Bic L m 2 / L 02 p 9.726,05 9.453,23 27 9.440 100,0% <.001 M1 Constant association (CSF) 80,19 77,94 18 -111 0,8% <.001 M2 Mulitplicative layer effect 68,01 66,67 16 -102 0,7% <.001 M3 Regression-type layer effect 11,23 10,38 7 -63 0,1% ,129 M4 Regression-type layer effect + mu6 15,75 14,93 11 -101 0,1% ,497 M0 Perfect mobility Fonte: PNAD/IBGE, 1996. Tabulação do autor 163 Para avaliar o ajuste dos modelos, utiliza-se o teste de qui-quadrado (χ2) e o teste bic, dando-se preferência ao χ2. O modelo de mobilidade perfeita (M0) não se ajusta aos dados, o de associação constante (M1) ajusta-se de acordo com o bic (quanto mais negativo o bic, melhor o ajuste do modelo), o modelo log-multiplicativo (M2) também se ajusta, mas não representa uma melhora significativa em relação à M1. Finalmente, o modelo “regression-type” (M3) ajusta-se, de acordo com o bic e o χ2. Este modelo deveria ser escolhido como o melhor ajuste, mas ele ainda é muito complexo, pois utiliza 9 graus de liberdade a mais do que M2 (df = 16 – 7 = 9), razão pela qual a estatística bic, que penaliza modelos muito complexos, é menos negativa do que nos modelos anteriores. Por causa deste tipo de complexidade, Goodman e Hout (1998) sugerem restrições específicas aos parâmetros estimados da interseção e/ou da inclinação. Estes parâmetros para o modelo M3 são apresentados na Tabela 2. Tabela 2 – Parametros de Interseção, Inclinação, e Escore de Cor para o Model 3 Estimado por Máxima Verossimilhança: Tabela de Mobilidade para Homens Brancos, Pardos, e Pretos j Parâmetros i 1 2 3 Interceção (:ij) 1 0,264 -0,670 1,569 2 0,055 0,887 -0,555 3 0,342 0,185 2,378 1 0,523 0,992 -2,054 2 0,156 0,213 0,803 3 -0,099 0,071 -0,460 - ,900 ,460 ,100 brancos pardos pretos Inclinação (:ij’) Escore (Nj) Fonte: Elaborada pelo autor a partir da análise dos dados da PNAD 1996. 164 Tendo em vista que inclinações entre –0,3 e + 0,3 são praticamente iguais a zero, pode-se definir as inclinações nas coordenadas i e j (2,1), (2,2), (3,1) e (3,2) como sendo iguais a zero. Uma vez aplicada esta restrição, tem-se o modelo M4 da tabela anterior. Este modelo (M4) utiliza menos graus de liberdade do que M3 (é menos complexo), ajusta-se melhor aos dados do que todos os outros modelos anteriormente propostos (para M4 o χ2 = 14,93 com valor de p = 0,497) e, portanto, será utilizado na próxima seção para interpretar a variação entre os três grupos raciais na associação entre origem e destino de classe. Além de analisar a mobilidade intergeracional, investigo a correlação entre classe de origem e transições educacionais. Para analisar estas transições, utilizo modelos de regressão logística cujas fórmulas encontram-se em diversos livros de metodologia (por exemplo, Powers e Xie, 2000:49). Estes modelos são utilizados para estimar seis transições educacionais importantes: 1. entrada na escola (comparando-se os que concluíram a 1ª série do ensino fundamental com todos os que não concluíram); 2. completar com sucesso a 4ª série do ensino fundamental (tendo-se em vista que se terminou a 1ª série do ensino fundamental); 3. completar com sucesso a 8ª série do ensino fundamental (para os que terminaram a 4ª série, mas não completaram a 8ª); 4. completar com sucesso o ensino médio (para os que concluíram o ensino fundamental); 5. entrar na universidade (comparando-se os que completaram um ano de universidade com todos os que terminaram o ensino médio); e 6. completar a universidade (comparando-se os que completaram o curso com todos os que completaram apenas um ano). Cada uma destas transições, a partir da segunda, é condicional em relação à anterior. Ou seja, para que se tenha a chance de fazer uma dada transição educacional, é necessário ter sucesso na transição anterior. Os modelos estimados para as seis transições são apresentados na Tabela 3. 165 Tabela 3 – Ajuste, Parâmetros Estimados e Desvios Padrões dos Modelos Logit Estimados para Cada uma das Transições Educacionais: Homens entre 25 e 64 anos, Brasil 1996 Transição 1 Transição 2 Transição 3 Transição 4 Transição 5 Transição 6 L2 5777 3942 4146 1115 827 165 g.l. 7 7 7 7 7 7 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 Cox & Snell R Square 0,14 0,12 0,15 0,08 0,09 0,04 Nagelkerke R Square 0,23 0,18 0,20 0,11 0,12 0,06 BIC -5.703 -3.869 -4.075 -1.049 -763 -108 N 38106 31556 24931 13024 8104 3652 p-value B S.E. B S.E. B S.E. B S.E. B S.E. B S.E. 1,087 0,030 0,709 0,030 0,457 0,029 0,479 0,040 0,706 0,056 0,209 0,100 Origem Estrato 1 2,739 0,157 2,332 0,106 2,506 0,064 1,579 0,069 1,347 0,075 0,483 0,128 Origem Estrato 2 2,172 0,089 1,988 0,070 1,887 0,044 1,027 0,055 0,699 0,070 0,079 Origem Estrato 3 1,457 0,042 1,148 0,035 0,903 0,031 Coorte 25-34 1,182 0,046 0,931 0,049 0,570 0,056 -0,336 0,084 -0,707 0,103 -1,308 0,195 Coorte 35-44 1,037 0,044 0,829 0,048 0,598 0,055 -0,035 0,084 -0,266 0,101 -0,773 0,192 Coorte 45-54 0,503 0,044 0,399 0,050 0,360 0,059 Constante -0,231 0,038 -0,323 0,045 -1,491 0,057 -0,278 0,088 -0,929 0,113 Não-Branco (ref.) Branco Origem Estrato 4 (ref.) 0,340 0,046 0,177 0,125 0,068 -0,278 0,122 Coorte 55-64 (ref.) 166 0,185 0,090 0,029 0,106 -0,367 0,202 1,653 0,219 Cada um dos modelos analisa as probabilidades de se fazer ou não uma transição educacional, de acordo com cor ou raça, origem de classe e coorte de idade. Todos os modelos bem se ajustam aos dados (as estatísticas bic são negativas) e serão interpretados mais adiante. Finalmente, utilizei um modelo “condicional para logitos multinomiais” para explicar a associação entre raça, classe de origem e escolaridade, por um lado, e as chances relativas de se entrar em uma das quatro classes de destino, por outro. Este tipo de modelo é equivalente por completo a um modelo log-linear, mas permite a inclusão de mais de três variáveis sem tornar a interpretação muito complexa (como ocorre, por exemplo, no trabalho de Osório, 2003). Apesar de ter sido considerado por Logan (1983), Breen (1994) e DiPrete (1990) como importante para a análise da mobilidade social, o modelo só passou a ser utilizado na literatura sociológica depois que Hendrickx (2000) forneceu sintaxes para operacionalizá-lo usando-se o pacote estatístico STATA. A fórmula para a versão que utilizo no presente capítulo é: Lij = γj – (α1ri.1 + αjrij) + δuaij + βj1ci + βj2ei , onde Lij é o logit para o indivíduo i na classe de destino j, γj (j = 2, 3 e 4) são variáveis indicadoras da classe de destino; (α1ri.1 + αjrij) são os parâmetros de herança de classe (probabilidades de imobilidade); δ é o efeito da origem no destino, de acordo com o padrão de associação uniforme (associação linear com escala de origem e destino idêntica) para o indivíduo i na classe de destino j; βj1 é o efeito de ser branco na classe j para o indivíduo i; e βj2 é o efeito de cada ano de educação do indivíduo i.7 Ajustei duas versões do modelo anterior: (1) uma excluindo as variáveis independentes para raça e educação (βj1ci + βj2ei); que equivale ao modelo log-linear de associação uniforme com restrições para a diagonal, e (2) outra incluindo todas as variáveis independentes. A segunda versão melhora bastante o ajuste do modelo, como fica claro pelo valor do pseudo-R2 na Tabela 4. Os efeitos de imobilidade e de associação uniforme (UA) diminuem quando se incluem raça e anos de educação. A vantagem dos brancos é mais acentuada para entrar na classe 1 do que na 2 e na 3; e cada ano de educação tem um efeito positivo que aumenta as chances de mobilidade ascendente. A interpretação detalhada do modelo será feita mais adiante. Tendo-se em vista que a diferença entre pretos e pardos não é estatisticamente significativa, ela não foi incluída neste modelo, de modo que trabalhei com a diferença entre brancos e não-brancos (pretos + pardos). A variável “anos de educação completos” alterna entre 0 e 15 anos. 7 167 Tabela 4 – Modelos Logit Multinomiais em Forma Condicional para Probabilidades de Entrar em 4 Estratos Ocupacionais em 1996. Homens entre 25 e 64 anos: Brasil Modelos Logit Multinomial Condicional Modelo de Associação Quase Uniforme Modelo de Associação Quase Uniforme com Variáveis Indep. (Raça e Anos de Educação) Log likelihood -43921,27 -38570,38 Número de casos (expandidos 4 vezes) 152736,00 152424,00 18025,99 28511,51 8 14 Ajustes do Modelo LR chi2(8) g.l. Prob> chi2 = 0,00 0,00 Pseudo R2 = 0,17 0,27 Parâmetros Estimados Interceções Coef, Inteceção p/ Tr. Manual vs Rural ( 3 vs 4) 1,033 Inteceção p/ Tr. Não-man. vs Rural (2 vs4) Inteceção p/ Prof. vs Rural (1 vs 4) Std, Err, z P>|z| Coef, 0,418 Std, Err, 0,062 z 6,75 P>|z| 0,050 20,630 0,000 0,000 -0,585 0,060 -9,750 0,000 -2,039 0,076 -26,94 0,000 -1,849 0,078 -23,860 0,000 -4,690 0,101 -46,38 0,000 Efeitos de Imobilidade Est. 4 - Trab. Rurais 1,297 0,047 27,790 0,000 1,175 0,050 23,45 0,000 Est. 3 - Trab. Manuais 0,285 0,026 10,770 0,000 0,384 0,029 13,25 0,000 0,353 0,037 9,610 0,000 0,294 0,038 7,67 0,000 -0,045 0,056 -0,810 0,420 0,113 0,062 1,84 0,066 0,010 42,880 0,000 0,134 0,012 10,95 0,000 0,214 0,006 37,46 0,000 Est. 2 - Trab. Não-manuais Est. 1 - Prof e Adm Efeito das Classes de Origem (UA) 0,449 Efeito das Variáveis Independentes Anos de Edu. por Est. 3 vs 4 Anos de Edu. por Est. 2 vs 4 0,405 0,007 62,05 0,000 Anos de Edu. por Est. 1 vs 4 0,569 0,008 75,2 0,000 Raça (branco) por Est. 3 vs 4 0,007 0,030 0,24 0,807 Raça (branco) por Est. 2 vs 4 0,110 0,038 2,88 0,004 Raça (branco) por Est. 1 vs 4 0,568 0,049 11,68 0,000 4 – Raça ou classe: os determinantes da mobilidade social O principal problema metodológico que um estudo sobre as chances de mobilidade social ascendente de pessoas em grupos de cor diferentes e com origens de classe distintas enfrenta é que, em geral, estas duas variáveis estão relacionadas. Ou seja, pretos e pardos são um percentual maior das 168 pessoas que cresceram nas classes mais baixas e menor das que cresceram nas classes mais altas. Portanto, ao se analisarem as chances de mobilidade social ascendente, tem-se que ficar atento para esta desproporção inicial. Usando dados de 1996, pode-se observar este fato (ver Tabela C, em anexo). Enquanto 61% dos pardos e 56% dos pretos eram filhos de trabalhadores rurais, apenas 49% dos brancos tinham esta origem familiar. As famílias de trabalhadores rurais são historicamente as mais pobres no Brasil. Podese, então, concluir facilmente que uma proporção de pretos e pardos maior do que a de brancos cresceu em famílias pobres. O inverso se dá com as famílias mais ricas. Entre todos os brancos, 9% são filhos de profissionais e pequenos empresários, ao passo que apenas 4% dos pardos e 2% dos pretos têm origem semelhante. Portanto, uma proporção de brancos maior do que a de pretos e pardos advém de famílias mais abastadas. Esta maior proporção de pretos e pardos que têm origem nas classes baixas e de brancos oriundos da classe alta se reflete no destino de classe, nas ocupações, em que os indivíduos se encontram no presente. Em 1996, 56% dos pretos, 48% dos pardos e 43% dos brancos eram trabalhadores manuais urbanos (classe também muito pobre). No topo há mais brancos e menos pretos e pardos. Em 1996, 18% dos brancos eram profissionais e pequenos empresários, ao passo que apenas 7% de pardos e 5% de pretos tinham esta posição de classe. Logo, a diferença na posição de classe, em 1996, é determinada, em parte, pela diferença na posição de classe de origem. Não se pode, por exemplo, dizer simplesmente que a desproporção de pretos e pardos na classe de profissionais e pequenos empresários, em 1996, é fruto do preconceito racial, porque, como se viu, pretos e pardos se concentram, mais do que brancos, nas classes de origem baixas, o que diminui suas chances de mobilidade social ascendente. De fato, 50% dos brancos, 45% dos pardos e 43% dos pretos tiveram mobilidade ascendente. Para se definir o papel da raça e da classe de origem nas chances de mobilidade social ascendente, tem-se que utilizar modelos que controlem estatisticamente as desproporções nas classes de origens. Depois de implementar as diversas análises estatísticas que foram apresentadas na seção anterior, cheguei a um modelo (modelo M4, na Tabela 1) que, embora complexo matematicamente, expressa de forma clara a interação entre raça e classe de origem nas chances de mobilidade ascendente. A principal maneira de expressar os resultados deste modelo é a partir de um valor numérico conhecido como “razão de chances”, que define as chances relativas de pessoas com origens de classe semelhantes em grupos de cor distintos alcançarem as mesmas classes de destino. Estas razões de 169 chance, ou melhor, o logaritmo delas permite desenhar a figura a seguir, que mostra o diferencial nas chances relativas de mobilidade social ascendente entre brancos, pardos e pretos, controlando pelas desproporções nas classes de origem que expliquei anteriormente. Se a reta que liga pretos, pardos e brancos for completamente horizontal em relação ao eixo dos escores de cor em cada gráfico da figura, as “razões de chances”, ou as chances relativas de mobilidade, serão, logo, idênticas para pretos, brancos e pardos. Caso contrário, haverá desigualdade entre os grupos de cor nas chances relativas de mobilidade ascendente. Figura 2 – Log das Razões de Chances Observadas e Experadas Segundo Modelo M3* por Escore de Cor Nota: As linhas em cada gráfico mostram a razão de chances esperada, os pontos mostram a razão de chances observada. O círculo aberto representa os pretos, o círculo fechado representa os pardos e o triângulo representa os brancos 170 Embora a Figura 2 seja bastante complexa, o que ela revela é bem simples e muito importante para que se avalie aquilo em que a classe de origem é mais importante do que a raça na determinação das chances de mobilidade social e vice-versa. Os quatro gráficos do canto inferior esquerdo indicam que não há diferença nas chances relativas de mobilidade ascendente entre pretos, pardos e brancos cujos pais pertenciam às classes mais baixas. Estes gráficos comparam as chances relativas de filhos de trabalhadores rurais e de trabalhadores manuais urbanos experimentarem mobilidade ascendente rumo às classes de profissionais e trabalhadores não-manuais urbanos. Em nenhuma destas comparações há diferença entre as chances relativas de mobilidade de homens pretos, pardos e brancos. Por exemplo, independentemente de sua cor ou sua raça, os filhos de trabalhadores manuais urbanos têm 1,3 vez mais chances de chegar à classe de profissionais do que filhos de trabalhadores rurais. Em suma, as chances de mobilidade ascendente de indivíduos de origens nas classes mais baixas são inteiramente determinadas pela origem de classe, sendo que a cor da pele não tem relevância. Não há desigualdade racial nas chances de mobilidade ascendente de pessoas com origem nas classes baixas. No entanto, se se observam as chances relativas dos filhos de profissionais e trabalhadores não-manuais de rotina (representadas nos três primeiros gráficos, na primeira linha da Figura 2), observa-se que as chances relativas de imobilidade no topo e de mobilidade descendente são diferentes para pretos, pardos e brancos. Filhos brancos de profissionais, por exemplo, têm 2 vezes mais chances de permanecer nesta classe do que de descer para a classe de trabalhadores não-manuais de rotina, ao passo que filhos pretos de profissionais têm apenas 1,2 vez mais chances de fazê-lo. Em suma, as chances de mobilidade descendente e de imobilidade de indivíduos de origens nas classes mais altas são significativamente influenciadas pela cor da pele. Há desigualdade racial nas chances de mobilidade descendente e de imobilidade de indivíduos de origem nas classes altas. O que estas análises sugerem é que o preconceito racial se torna mais relevante na medida em que se sobe na hierarquia de classes, no Brasil. Indivíduos de origem nas classes mais baixas encontram dificuldades de mobilidade ascendente porque pertencem a classes mais baixas e não por causa de sua cor ou de sua raça. No entanto, há evidências importantes que sugerem que, possuindo suas origens nas classes mais altas, indivíduos negros teriam desvantagens, ou seja, teriam chances menores do que os brancos oriundos destas mesmas classes, de permanecer no topo e chances maiores de mobilidade descendente. As análises revelam que 171 a desigualdade de oportunidades de mobilidade social é racial apenas nas classes altas, mas não o é nas classes baixas. Esta conclusão é muito importante, pois indica que o preconceito racial deve estar presente com mais força no topo, e não na base, da hierarquia de classes. 5 – Desigualdade de oportunidades educacionais Na sociedade contemporânea, uma das mais importantes vias de mobilidade social é a educação formal. Para ocupar certas posições de prestígio, é essencial que se tenha qualificação educacional, não bastando ser filho de alguém que é qualificado. Por exemplo, para se tornar médico ou juiz de direito, é necessário ter educação superior. Ser filho de médico ou juiz não qualifica ninguém como médico ou juiz, o que o faz são as escolas de medicina e de direito. No entanto, é um fato amplamente discutido o de que filhos de profissionais qualificados têm chances maiores do que filhos de trabalhadores não-qualificados de alcançarem níveis educacionais mais altos. Além disso, no debate contemporâneo, no Brasil, muito se fala sobre chances educacionais desiguais entre brancos e não-brancos. Estas pressuposições devem ser investigadas empiricamente. A metodologia sociológica moderna relativa ao estudo da estratificação educacional indica que é necessário estudarem-se as diversas transições educacionais importantes. Ou seja, deve-se ver quais são as principais características que influenciam as chances de as crianças e os jovens virem a fazer, com sucesso, uma transição. No presente capítulo, analiso seis transições: (1) entrada na escola; (2) conclusão da 4a série do ensino fundamental; (3) conclusão da 8a série do ensino fundamental; (4) conclusão do ensino médio; (5) entrada na universidade; e (6) conclusão da universidade. Uma das conseqüências esperadas ao longo destas transições educacionais é que as características herdadas (tais como classe de origem, raça ou gênero) tendem a ter peso maior nas primeiras transições do que nas últimas, já que a cada transição é feita uma seleção em termos de qualificação educacional. Indivíduos com diferentes origens de classe que entram na universidade apresentam, por exemplo, uma importante semelhança entre si: todos eles completaram o ensino médio. Embora diversas características influenciem as chances de sucesso em cada uma das transições educacionais (nos modelos de regressão logística que utilizei, incluí origem de classe, idade e cor), apresento no Gráfico 1 apenas o peso da origem de classes e da cor dos indivíduos em 172 cada uma das transições. Meu objetivo é verificar qual é a magnitude da desigualdade de oportunidades educacionais em termos de raça e classe de origem em cada transição. Gráfico 1 – Efeitos de Origem de Classe e Cor sobre Log Chances de Fazer Transições Educacionais para Homens O Gráfico 1 revela, de fato, que a influência das classes de origem e da cor das pessoas diminui progressivamente ao longo das transições educacionais. Além disso, a origem de classe parece ter um efeito maior do que a cor dos indivíduos nas chances de se fazerem transições. A saber, indivíduos cujos pais pertenciam às classes mais altas (eram, por exemplo, profissionais) têm mais chances de obter sucesso nas transições educacionais do que indivíduos cujos pais pertenciam a classes mais baixas. Brancos também têm mais chances de sucesso do que não-brancos, mas o peso da classe de origem é maior do que o da raça. Em outras palavras, pode-se afirmar que há mais desigualdade de oportunidades educacionais em termos de classe do que de raça. No entanto, nas últimas transições, a raça passa a ter um efeito semelhante ao da classe, ou seja, as chances de se adentrar e de completar a universidade são desiguais em termos raciais e de classe. Veja-se um exemplo: filhos de profissionais têm 15 vezes mais chances de entrar na escola do que filhos de trabalhadores rurais, ao passo que brancos têm 3 vezes mais chances do que não-brancos de fazê-lo. Há desigualdade de oportunidades educacionais tanto em termos de classe de origem quanto de raça, embora a primeira seja mais forte do que a segunda. Para ingressar na universidade, filhos de profissionais têm 4 vezes mais chances do que filhos de trabalhadores rurais; e brancos têm 2 vezes mais chances do que não-brancos. Em suma, 173 no início da carreira escolar, a desigualdade de classes é muito mais forte do que a de raça, ao passo que, nos níveis educacionais mais elevados, os dois tipos de desigualdade diminuem em relação ao que ocorre nas primeiras transições e se tornam mais semelhantes. Assim, nas transições educacionais de níveis mais altos, as desigualdades de raça e de classe têm magnitudes semelhantes. Estas conclusões acerca das transições educacionais reforçam aquelas relativas à mobilidade ascendente que foram apresentadas na seção anterior deste capítulo. Em termos de oportunidades, a desigualdade de classe é muito mais forte nas transições iniciais do que a desigualdade de raça. Em contraposição, a desigualdade racial passa a ser mais relevante, em relação à de classe, nas transições mais elevadas do sistema educacional. Na medida em que se sobe na hierarquia socioeconômica da sociedade, a desigualdade racial parece se tornar mais importante que a de classe, ou, pelo menos, tão importante quanto ela. 6 – Destinos de classe: efeitos de raça, origem de classe e qualificação educacional Tendo-se analisado a mobilidade social intergeracional e a estratificação educacional nas duas seções anteriores, cabe agora integrar as duas análises. Em outras palavras, resta saber quais os efeitos da origem de classe, da cor e da educação alcançada nas chances de mobilidade social para as classes de destino em 1996, ano em que foram coletados os dados do IBGE que analiso neste capítulo. Convém, ainda, utilizar aqui modelos estatísticos que sejam capazes de controlar pela proporção diferente de brancos, pardos e pretos de origens nas classes altas e baixas. Além disso, introduzi a variável “anos completos de escolaridade” como um dos principais fatores que determinam a mobilidade social. O modelo que utilizei é conhecido como “modelo logit multinomial condicional” (veja-se a seção acerca da metodologia). Os resultados do modelo (segundo a Tabela 4) reforçam ainda mais as conclusões que encontrei anteriormente. A desigualdade racial parece ser realmente mais forte para se entrar nas classes mais altas do que para se entrar nas classes mais baixas. A saber, a entrada nas classes mais baixas é antes desigual, em termos de origem de classe, em vez de o ser em termos de raça, ao passo que, para se entrar nas classes mais altas, há desigualdade de oportunidades entre brancos e não-brancos (pardos + 174 pretos), o que indica que a discriminação racial fica mais forte na medida em que se sobe na hierarquia de classes. O Gráfico 2 apresenta as chances relativas de homens brancos e não-brancos entrarem na classe de trabalhadores manuais urbanos, no lugar de trabalhadores rurais, de acordo com os anos de escolaridade que completaram. O cálculo destas chances também leva em conta a classe de origem. Em linguagem estatística, dize-se que se controla pela classe de origem, ou seja, que estão sendo observadas as chances condicionais (em termos de educação e de classe de origem) de brancos e não-brancos entrarem na classe de trabalhadores manuais. O que o gráfico revela é que não há diferença entre as chances de brancos e não-brancos e que, quanto mais forem os anos de educação, maiores serão as chances de se entrar na classe de trabalhadores urbanos (mais alta em termos hierárquicos que a de trabalhadores rurais). Gráfico 2 – Chances Estimadas de Homens Brancos e Negros se Tornarem Trabalhadores Manuais ao Invés de Trabalhadores Rurais por Anos de Escolaridade. (Modelos 2 tabela 4): Brasil 1996 Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos modelos estimados com base nos dados da PNAD 1996. Encontra-se um resultado diferente por completo quando se analisam as chances de se entrar na classe de profissionais, em vez de na classe de trabalhadores rurais (os dois extremos da hierarquia de classes). O Gráfico 3 apresenta justamente esta comparação, de acordo com o mesmo modelo que foi utilizado para desenhar o gráfico acima. 175 Gráfico 3 – Chances Estimadas de Homens Brancos e Negros se Tornarem Profissionais ou Administradores ao Invés de Trabalhadores Rurais por Anos de Escolaridade. (Modelos 2 tabela 4): Brasil 1996 Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos modelos estimados com base nos dados da PNAD 1996. Este gráfico revela que há uma diferença significativa nas chances de brancos e não-brancos entrarem na classe de profissionais. Tendo os mesmos anos de escolaridade do que os brancos, os não-brancos possuem chances bem menores de se tornarem profissionais (lembre-se de que esses dados controlam pela origem de classe). Entre os homens que completaram 15 anos de escolaridade (que concluíram a universidade), por exemplo, os brancos têm 3 vezes mais chances do que os não-brancos de se tornarem profissionais. É interessante observar que, apesar de não haver desigualdade racial nas chances de se completar a universidade, há fortes evidências de que não-brancos formados em universidades encontram mais dificuldade para ingressar em cargos profissionais do que brancos que têm o mesmo nível educacional. Estas análises confirmam, mais uma vez, o que observei anteriormente. A saber, no processo de mobilidade ascendente, a desigualdade racial está presente nos níveis mais elevados da hierarquia de classes, principalmente, ao passo que as chances de ascensão de quem é originário das classes baixas são determinadas pela posição de classe e não pela raça ou pela cor da pele. 176 7 – Conclusões A principal conclusão deste capítulo é a de que a desigualdade racial está presente nas chances de mobilidade apenas para indivíduos originários das classes mais altas. Homens brancos, pardos e pretos de origens nas classes mais baixas têm chances semelhantes de mobilidade social. Cheguei a este resultado a partir da análise detalhada de três aspectos da mobilidade social: (1) as desigualdades de oportunidades de mobilidade intergeracional de classes de origem e de destino; (2) as desigualdades nas chances de se fazerem transições educacionais; e (3) os efeitos da educação alcançada e da origem de classe nas chances de mobilidade social. Em todas as análises, enfatizei as comparações entre os efeitos da cor da pele e os da classe de origem. O principal problema na análise da mobilidade intergeracional de brancos, pardos e pretos é que o primeiro grupo tende a estar representado em maior proporção nas classes de origem mais altas e os dois últimos grupos, nas classes de origem mais baixas. Este fato faz com que as oportunidades de mobilidade de brancos sejam maiores do que as de pretos e pardos. Portanto, ao se analisarem as chances de mobilidade utilizando apenas as taxas brutas (percentuais), não se têm como separar o efeito da classe de origem do efeito da cor de pele. Por este motivo, utilizei modelos estatísticos que controlam esta desproporção na classe de origem, e que permitem analisar a variação entre os grupos de cor do padrão e da força da associação entre classes de origem e de destino. Em outras palavras, eles permitem verificar não apenas quais são os efeitos da classe de origem e da cor de pele nas chances de mobilidade, mas também como estes efeitos se combinam (interagem) ou não. Os resultados desta análise levam à conclusão de que, para os homens originários das classes mais baixas (trabalhadores rurais, trabalhadores manuais urbanos e pequenos empregadores rurais), não há desigualdade racial nas chances de mobilidade ascendente, ou seja, nos estratos mais baixos, brancos, pardos e pretos enfrentam dificuldades semelhantes de mobilidade ascendente. Em contrapartida, homens brancos, pardos e pretos originários das classes mais altas (profissionais, administradores e pequenos empregadores; e trabalhadores de rotina, técnicos e autônomos), têm chances de imobilidade e mobilidade descendente distintas. Os brancos têm chances maiores do que os pardos e os pretos de imobilidade no topo da hierarquia de classes, enquanto estes últimos têm chances maiores de mobilidade descendente. Assim, há desigualdade racial nas oportunidades 177 de mobilidade intergeracional para homens originários das classes mais altas. Estes resultados revelam que: a desigualdade de oportunidades está presente no topo, mas não na base, da hierarquia de classes. Esta conclusão leva a sugerir que a discriminação racial ocorre principalmente quando posições sociais valorizadas estão em jogo.8 Outro aspecto fundamental do processo de mobilidade social é a aquisição de educação formal. A escolarização é um dos principais fatores que levam à mobilidade social. A análise das desigualdades de oportunidades educacionais, portanto, é fundamental para que se entenda o processo de mobilidade. Neste sentido, analisei os efeitos de raça e classe de origem nas chances de se fazerem seis transições educacionais: (1) completar a 1ª série do ensino fundamental; (2) completar a 4a série do ensino fundamental, tendo-se feito a transição 1; (3) completar o ensino fundamental, tendo-se feito as transições 1 e 2; (4) completar o ensino médio, tendo-se feito as transições anteriores; (5) completar um ano de universidade, tendose feito as transições anteriores; e (6) completar a universidade, tendo-se feito todas as transições. Segundo a interpretação corrente (Shavit e Blossfeld, 1993), o efeito das variáveis de origem de classe tende a diminuir ao longo das transições educacionais. Esta tendência se confirma nas minhas análises. No entanto, meu maior interesse foi o de verificar qual o peso da cor da pele e da classe de origem nas chances de se fazerem transições educacionais. As análises indicam que há desigualdade nas chances de se fazerem transições tanto em termos de cor da pele quanto de classe de origem, mas que o segundo tipo de desigualdade é maior do que o primeiro. Além disso, enquanto a desigualdade de classe diminui ao longo das transições, a desigualdade racial aumenta na transição cinco, que diz respeito a completar ou não o primeiro ano de universidade. Até a quarta transição (completar o ensino médio) os efeitos de classe de origem são, pelo menos, seis vezes maiores do que o efeito de raça. Ou seja, até a quarta transição, a desigualdade de classes é maior do que a de raça. Na quinta e na sexta transições (completar o primeiro ano da universidade e terminar a universidade) a desigualdade racial torna-se mais semelhante à desigualdade Conclusões sobre discriminação com base em estudos estatísticos como o que apresento neste capítulo não são inequívocas. Pode haver uma série de outros fatores que levem ao padrão de desigualdade racial que apresento aqui. Uma alternativa interessante para se investigar diretamente a discriminação são estudos quase-experimentais. Para uma discussão metodológica a partir do caso norte-americano, veja-se Pager (2003). 8 178 de classe, tendo-se em vista que o peso da classe de origem é apenas 2,5 vezes maior do que o peso da cor de pele. Ter origens nas classes mais altas aumenta as chances de se fazerem as transições educacionais de modo bem-sucedido; ser branco, em vez de não-branco (preto ou pardo), também as aumenta. Em suma, nas transições educacionais, até a entrada no ensino médio, a desigualdade de classe é muito maior do que a de raça, ao passo que, para completar um ano de universidade e para concluí-la, a desigualdade racial é quase tão grande quanto a desigualdade de classe. Por fim, analisei os efeitos de escolaridade alcançada, raça e classe de origem nas chances de mobilidade ascendente. Nestas análises, que combinam as duas anteriores, fica claro que o efeito da raça sobre as chances de mobilidade, levando-se em conta a escolaridade e a classe de origem, está presente somente em relação a indivíduos com mais de 10 ou 12 anos de educação e que pertencem à classe de profissionais, administradores e empregadores. Tendo mais de 12 anos de escolaridade, brancos possuem, em média, três vezes mais chances do que não-brancos de vivenciar mobilidade ascendente rumo às classes mais privilegiadas. Embora a educação seja importante para qualquer tipo de mobilidade ascendente, a desigualdade racial está presente apenas nas chances de mobilidade referentes ao topo da hierarquia de classes. Mais uma vez, os resultados comprovam que: só há desigualdade racial nas chances de mobilidade ascendente para as classes mais altas hierarquicamente. Os resultados desta pesquisa são extremamente relevantes para se discutirem as quatro teorias sobre estratificação racial e de classe que apresentei, resumidamente, na seção 2 deste capítulo. A primeira, que é derivada do trabalho de Pierson (1945), sugere que: não haveria barreiras raciais fortes à mobilidade ascendente, mas sim barreiras de classe. A segunda, apresentada por Costa Pinto (1952), sugere que: a expansão da sociedade de classes levaria a um aumento da mobilidade social e, na medida em que não-brancos começassem a entrar nas classes mais privilegiadas, haveria um retorno e um acirramento da discriminação racial. A terceira, apontada por Fernandes (1965), assevera que: a discriminação racial no processo de mobilidade social seria paulatinamente substituída pela discriminação de classe, ou seja, o preconceito racial seria uma herança do passado colonial. Finalmente, o trabalho de Hasenbalg (1979) sugere que: a discriminação racial continuaria sendo um importante fator de estratificação social na sociedade brasileira mesmo com a expansão da sociedade de classes advinda da industrialização. Esta apresentação das quatro perspectivas é, obviamente, reducionista. Até mesmo Pierson (1945:221-239) sugere que alguma forma de 179 estratificação por raça poderia surgir de um aumento da competição dos não-brancos com os brancos por posições socialmente privilegiadas.9 Neste ponto, a perspectiva de Pierson parece se aproximar da de Costa Pinto (1952), embora este último argumente que existe discriminação racial. Embora minhas análises não permitam estudar as mudanças temporais nas chances de mobilidade, na medida em que descrevo a mobilidade apenas em um determinado momento do tempo, elas sugerem que as competições por posições sociais hierarquicamente mais elevadas são marcadas por desigualdades raciais, ao passo que as chances de ascensão daqueles originários das classes mais baixas são inteiramente determinadas por sua posição de classe. Este resultado indica que a desigualdade racial está presente no topo, mas não na base, da hierarquia de classes. Estas conclusões também desafiam as teorias de Fernandes (1965) e de Hasenbalg (1979). A idéia de Fernandes (1965) de que a desigualdade racial seria uma herança do passado estaria bem representada se as análises não tivessem levado em conta a desproporção de não-brancos e brancos na classe de origem. Esta desproporção, que influencia as taxas brutas de mobilidade, é uma conseqüência da desigualdade do passado que determina as chances de mobilidade do presente. No entanto, ao controlar estas diferenças iniciais, a metodologia que utilizei permite afirmar que as formas de desigualdade racial nas chances de mobilidade encontradas não são apenas uma conseqüência da desigualdade do passado. Não são tampouco generalizadas, como a teoria de Hasenbalg (1979) sugere, ou seja, a idéia de que haveria desigualdade nas chances de mobilidade entre não-brancos e brancos independentemente de sua origem de classe não se comprova em minhas análises. Pelo contrário, indico que as desigualdades raciais nas chances de mobilidade são marcadas por diferenças significativas nas origens de classe.10 Os resultados das análises apresentadas neste capítulo indicam que há necessidade de novas sínteses teóricas acerca da relação entre classe, raça e mobilidade social. A resposta não pode ser, simplesmente, a de que há ou não discriminação e desigualdade racial nas chances de mobilidade. Este tipo de visão maniqueísta, que parece estar presente em grande parte do debate atual, não vai ajudar no desenvolvimento de novas teorias e análises sobre as relações raciais no Brasil. Este estudo pretende ser Agradeço ao parecerista anônimo do periódico Dados, onde uma versão anterior deste capítulo foi publicada, por ter me alertado para estes pontos. 10 Mais uma vez, conforme a nota anterior, agradeço ao parecerista anônimo de Dados por me alertar para este ponto. 9 180 uma pequena contribuição ao debate acadêmico. Análises sobre o tema que incluam mudanças, ao longo do tempo, nas chances de mobilidade seriam possibilidades interessantes de extensão deste trabalho. Referências bibliográficas AZEVEDO, T. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira: Um Estudo de Ascensão Social, Classes Sociais e Grupos de Prestígio. Salvador: Edufba, 1996. 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Empegadores Rurais 57 155 595 40 847 4 Trabalhadores Rurais 37 118 648 558 1361 125 333 1361 606 2425 Brancos Total Pardos Total Pretos Total Fonte: PNAD 1996, tabulação do autor 184 Tabela B – Hierarquia de Classes e Estratos por Médias de Anos de Escolaridade e Renda Mensal e Coeficientes de Associação: Brasil 1996 Média de Anos de Escolaridade e (desvio padrão) 4 Estratos 1 2 3 4 16 Classes I - Prof e Adm, nível alto 16 Classes 4 Estratos 14.4 (2) 11 (2.1) Média de Renda Mensal e (desvio padrão) 16 Classes 4 Estratos 2661.8 (261.64) 2074.44 (407.9) II - Prof e Adm, nível baixo 11.7 (2.9) 1392.9 (379.72) IVa - Pequenos Propriet., empregadores 10.2 (2.6) 2133.6 (224.79) IIIa - Não-manual rotina, nível alto 11.1 (2.7) V - Técnicos e supervisores do Trab. Manual 9.5 (3.1) 897.29 (192.83) IIIb1 - Não-manual rotina, nível baixo (escritório) 8.5 (3.1) 575.34 (175.05) IVb - Pequenos Propriet., sem empregados 7.1 (2.5) 766.08 (134.08) VIa - Trabalhadores Manuais Qualif., Ind. Moderna 7.4 (2) VIc - Trabalhadores Manuais Qualif., Serviços 6.7 (2.4) 599.99 (140.26) VIIa2 - Trabalhadores Manuais Não-qualif., Ind. Mod. 6.6 (1.9) 507.92 (138.82) IVc1 - Pequenos Prop. rurais, com empregados 6.4 (2.6) 1173.25 (388.14) VIIa4 - Trabalhadores Manuais Não-qualif., Ambulantes 5.7 (2.1) 440.52 (159.31) VIb - Trabalhadores Manuais Qualif., Ind. Tradicional 5 (2.1) 408.88 (166.63) VIIa3 - Trabalhadores Manuais Não-qualif., Serv Domest 5 (2.2) 287.44 (114.45) VIIa1 - Trabalhadores Manuais Não-qualif., Indu. Trad. 4.9 (2.2) 345.84 (120.81) VIIb - Trabalhadores Manuais Rurais 2.2 (1.6) 2.2 (1.6) 240.9 (72.42) 244.34 (61.4) 6,7 5,7 710,9 715,0 0,45 0,38 0,25 0,20 Total Coeficiente de Associação (Eta ao quadrado) 185 8 (2.2) 4 (2.1) 969.42 (333.14) 608.81 (122.72) 800.95 (79.3) 490.48 (49.1) Tabela C – Distribuições de Classes de Origem e de Destino, e Índices de Mobilidade Absoluta para Homens Brancos, Pardos e Pretos entre 20 e 64 anos de Idade, Brasil 1996 (dados da PNAD-1996) Brancos Estratos Origem Destino Pardos Origem Pretos Destino Origem Destino 1 Prof., Admin., e Propr. Empreg 8,9% 18,1% 3,6% 6,7% 2,1% 5,2% 2 Trab de Rot. Não-man., Téc., e Propr s/ empreg. 12,7% 21,5% 8,8% 17,1% 6,8% 13,7% 3 Trab. Manuais, e Pq. Empegadores Rurais 29,7% 42,9% 26,3% 48,1% 34,9% 56,1% 4 Trabalhadores Rurais 48,7% 17,6% 61,3% 28,2% 56,1% 25,0% Índices de Mobilidade Absoluta Brancos Pardos Pretos Mobilidade Total 59% 54% 50% Mobilidade Ascendente 49% 45% 43% Mobilidade Descendente 10% 9% 7% 5 para 1 5 para 1 6 para 1 31% 33% 31% Razão Mob. Asc./Mob. Desc. Dissimilaridade entre Origem e Destino 186 CAPÍTULO 5 Mobilidade Social Passada e Futura: Correlações com Opiniões Políticas, Percepções sobre Conflito e sobre Chances de Vida1 “Numa sociedade onde há mobilidade social ocorre ‘deslocalização’, ‘atomização’ e difusão. Uma vez que um indivíduo pretence a diferentes grupos sociais e mude de um [...] para outro, sua área de solidariedade não se limita a um único grupo’2 Pitirim A. Sorokin Social and Cultural Mobility,1927 “[…] as classes ainda não estão fixas, mas em fluxo constante, com uma persistente troca de seus elementos.”3 Karl Marx O 18 Brumário de Louis Bonaparte, 1852 1 – Introdução Classes sociais não são grupos estáticos. Embora praticamente todo cientista social concorde com esta proposição, é comum que emitam frases como, por exemplo, “fulano pertence à classe A ou B, etc.”. Foi justamente com o propósito de relativizar a idéia de que as classes seriam estáticas que surgiram os primeiros estudos sobre mobilidade social. Para Pitirin Sorokin (1927), que escreveu o primeiro livro totalmente dedicado Este capítulo foi inicialmente publicado em SCALON, Celi. Imagens da Desigualdade. Belo Horizonte: UFMG, 2004. Agradeço a Celi e à editora por permitirem a publicação aqui. 2 “In a mobile society a ‘delocalization’, and ‘atomization’, and difusion tend to take place. Since an individual belongs to different social groups and shifts from one (...) to another his area of solidarity is not limited within one group”. 3 “[...] classes are not yet fi xed, but in constant flux, with a persistent interchange of their elements”. 1 187 ao estudo da mobilidade social, os indivíduos estão constantemente em movimento entre as diversas classes, e, por meio desses indivíduos em movimento, idéias e valores também circulam pela sociedade. Muitos anos antes, também Karl Marx (1852) reconhecera este fato, ao afirmar que as classes sociais estavam em “fluxo constante”, e que, portanto, as idéias dos membros de cada classe seriam influenciadas não apenas por sua posição, mas também por sua origem de classe e por suas possibilidades, reais ou imaginárias, de mudar de classe, no futuro. Partindo das sugestões destes pensadores, diversos cientistas sociais voltaram-se ao estudo da relação entre classes sociais e atitudes políticas ou sociais, levando em conta os padrões tanto da mobilidade social de fato quanto das possibilidades reais e imaginárias de mobilidade social futura. Em tese, as idéias dos indivíduos em cada sociedade deveriam estar relacionadas tanto com a posição que ocupam nesta sociedade, de acordo com suas origens sociais, quanto com as posições que eles acreditam que deverão ocupar no futuro. Será que esta tese se aplica à sociedade brasileira contemporânea? Esta é a questão que procuro investigar neste capítulo; porém, antes de começar a fazê-lo, convém recordar alguns fatos acerca da estrutura de classes e da mobilidade social brasileiras. Embora a literatura sobre mobilidade social no Brasil não seja volumosa, todos os estudos concordam, pelo menos, em um ponto: há muita mobilidade estrutural. Isto significa que as rápidas industrialização e urbanização, que ocorreram no país desde 1950, se espelham na enorme dissimilaridade existente entre a estrutura de classes contemporânea e a distribuição da origem de classe dos trabalhadores. Em 1996, mais de 50% dos homens, entre 20 e 64 anos de idade, eram filhos de trabalhadores rurais, ao passo que menos de 20% desses homens trabalhavam no campo (Costa Ribeiro, 2002), o que mostra que houve muita oportunidade agregada de mobilidade intergeracional. Obviamente, estas oportunidades nunca foram distribuídas de forma equânime, tendo-se em vista que (1) filhos das classes mais privilegiadas sempre tiveram chances relativas muito maiores de chegar ao topo do que filhos das classes desprivilegiadas; e que (2) a maior parte da mobilidade social é de curta distância, ou seja, para classes próximas na estrutura ocupacional. Contudo, é inegável o fato de que muitos indivíduos se encontram em uma classe social um pouco mais promissora do que a de seus pais. Considerando-se que houve muitas oportunidades agregadas de mobilidade intergeracional (taxas absolutas), é de se esperar que posições políticas, e opiniões sobre conflito e sobre oportunidades de vida, variem de acordo com as trajetórias de mobilidade vivenciadas pelos indivíduos. 188 Em outras palavras, o estudo sobre a relação entre posições de classe e ideologias na sociedade brasileira deveria necessariamente levar em conta os padrões de mobilidade social. Também parece fazer sentido a idéia de que as imagens que os indivíduos têm da sociedade desempenham um papel tão ou mais relevante em suas opiniões políticas e sociais do que o lugar que realmente ocupam nesta sociedade e do que sua origem social. Dentre as imagens que cada indivíduo faz da sociedade em que vive, talvez uma das mais importantes seja a das oportunidades que eles teriam no futuro. Uma maneira de se observar estas perspectivas imaginárias de oportunidade futura é por meio das expectativas, ou esperanças, de mobilidade futura, o que torna a investigação sobre a correlação entre mobilidade futura e opiniões políticas e sociais teoricamente relevante. Neste capítulo, procuro avaliar as idéias expostas acima mediante análises estatísticas a respeito da associação das mobilidades sociais passada e futura com: (1) as chances de se identificar com partidos de esquerda (PT) e de se concordar com políticas redistributivas; (2) as percepções sobre conflitos entre classes e grupos de cor; e (3) a valorização da sorte e do esforço como fatores necessários para se melhorar de vida. 2 – Hipóteses de trabalho Diversos sociólogos especularam sobre os efeitos da mobilidade social, de fato e esperada, nas idéias e nos valores dos indivíduos, mas poucos se preocuparam em desenvolver estudos sistemáticos sobre este tema. Há algumas pesquisas qualitativas no Brasil sobre as características psicossociais de pessoas que têm propensão à mobilidade ascendente – como os japoneses em São Paulo (Cardoso, 1972) –, mas não tenho conhecimento de trabalhos acerca dos impactos da mobilidade social sobre as opiniões sociais e políticas. A despeito desta lacuna na literatura brasileira, várias hipóteses que correlacionam mobilidade social e percepções sociais e ideologias são recorrentes desde os primeiros trabalhos sobre estratificação social (i.e., Marx, 1852; Sorokin, 1927; Bendix e Lipset, 1966; Merton, 1968; Strauss, 1971; Goldthorpe, 1980). Esta literatura deu origem a duas tradições distintas de pesquisa sobre classes sociais, mobilidade social e opiniões políticas ou sociais. A primeira tradição, iniciada por Blau e Duncan (1967), constitui-se de vários estudos empíricos que se preocuparam em analisar os impactos da mobilidade social sobre os comportamentos e opiniões dos indivíduos, independentemente das posições de classes de 189 origem e destino. Ao contrário das especulações, as pesquisas empíricas indicam que há apenas um efeito moderado da mobilidade social sobre opiniões sociais e posições políticas em países europeus e nos EUA.4 A segunda tradição de estudos, relacionada aos trabalhos de Merton (1968) sobre grupos de referência, dedicou-se a mostrar como as correlações entre classes (e outros tipos de grupos sociais) e opiniões devem ser entendidas em um contexto de constante fluxo de indivíduos entre grupos reais e imaginários. Tendo em vista que se deve considerar classes sociais como entidades formadas por indivíduos em constante movimento, e não como entidades fixas, as correlações entre classes e diversos tipos de opiniões podem ser entendidas somente quando se leva em conta o movimento dos indivíduos entre grupos sociais reais e imaginários. Erick Olin Wrigth (1997), por exemplo, sugere que a relação entre classes e ideologias pode ser desvendada somente quando se consideram os padrões de mobilidade entre classes, de amizades entre classes, de casamentos entre classes, e outros tipos de relações sociais que cruzam fronteiras de classe. Na realidade, as próprias classes só seriam identificadas a partir destes padrões de relações sociais, entendidas ao longo do tempo e do espaço. O presente capítulo segue esta segunda tradição de estudos sobre classes, mobilidade e opiniões. Procuro, portanto, mostrar como a correlação entre classes sociais e opiniões políticas ou sociais deve ser entendida levando-se em conta o fato de que, em sociedades modernas, há sempre mobilidade social e movimento de indivíduos entre diversos grupos e classes sociais. Obviamente, meu estudo não dará uma solução definitiva para a questão da relação entre classes e opiniões políticas, pois apenas indicará a importância de se levarem em conta os padrões reais e imaginários de mobilidade social, para que se possa compreender as possíveis correlações entre classes sociais e ideologias. Como mencionei acima, também procurarei observar as possíveis correlações entre as esperanças de mobilidade e as opiniões sociais e políticas. Nos últimos dez anos, alguns poucos estudos vêm sugerindo que as perspectivas futuras de mobilidade social têm efeito considerável sobre atitudes políticas. Graham e Pettinato (2002) afirmam que as esperança de mobilidade social futura, para si próprio ou para seus filhos, leva os indivíduos a terem posições políticas e percepções sobre conflito e sobre Os estudos mais sofisticados e recentes desta tradição utilizam modelos de “referência diagonal” (Sobel, 1981; 1985) para distinguir os efeitos da mobilidade social dos efeitos das classes de origem e de destino nas atitudes sociais e políticas, bem como nos padrões de fecundidade. 4 190 oportunidades de melhorar de vida que são distintas daqueles que possuem no presente. Indivíduos que acreditam em um futuro mais próspero, por exemplo, tendem a suportar mais privações, e a concordar com elas, no presente. No presente capítulo, dou início a algumas análises sobre a relação entre as esperanças relativas ao futuro e as opiniões presentes. Para investigar as correlações das mobilidades sociais passada e futura com opiniões sociais utilizo os dados do ISSP,5 coletados em 2001, sobre percepções de desigualdade no Brasil. Embora tenha trabalhado com diversas variáveis desta pesquisa de opinião, limitar-me-ei à análise de apenas algumas delas, visto que os resultados não se modificam muito em relação a outras variáveis. Meu objetivo principal é verificar se há ou não correlação das mobilidades sociais, passada e futura, e as opiniões políticas e sociais; e, caso haja, qual é o padrão e/ou a força desta correlação. Para definir a mobilidade social passada (intergeracional), classifico a origem e o destino de classe de homens e mulheres com mais de 18 anos em cinco grupos: 1 – profissionais, administradores e empregadores; 2 – trabalhadores não-manuais de rotina de alto nível, técnicos, e supervisores; 3 – trabalhadores não-manuais de rotina de baixo nível e autônomos no comércio; 4 – trabalhadores manuais; e 5 – trabalhadores rurais. Quatro trajetórias de mobilidade social são definidas usando-se estas cinco classes: 1 – imobilidade ou mobilidade de curta distância no topo (imobilidade nas classes 1 e 2 e mobilidade entre estas duas classes); 2 – mobilidade ascendente de longa distância (mobilidade das classes 3, 4 e 5 para as classes 1 e 2); 3 - mobilidade descendente de longa distância (mobilidade das classes 1 e 2 para as classes 3, 4, e 5); e 4 - imobilidade ou mobilidade de curta distância na base (imobilidade nas classes 3, 4 e 5 e mobilidade entre estas três classes). O esquema de cinco classes que ora utilizo está hierarquizado de acordo com a renda e a educação dos indivíduos pertencentes a cada uma das classes, conforme disposto na Tabela 1, na seção 4, a seguir. Este esquema é uma combinação especial de classes do esquema CASMIN, que foi desenvolvido para se analisar a mobilidade de classes em sociedades industriais (Erickson e Goldthorpe, 1993). Para investigar as esperanças de mobilidade social, utilizo as respostas a duas perguntas da pesquisa do ISSP. Após mostrar uma escala de sete ISSP é o International Social Survey Program. Neste livro utilizo dois destes surverys coletados no Brasil. Neste capítulo utilizo o survey “Percepções da desigualdade”, coletado com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e coordenado por Celi Scalon (UFRJ). Agradeço a Celi pelo convite para trabalhar com estes dados. 5 191 grupos hierárquicos aos entrevistados, os entrevistadores perguntavamlhes: “onde o Sr.(a) acha que se situa e que sua família se situa”, e “onde o Sr.(a) acha que estará daqui a 10 anos”. Cruzando os valores das duas respostas, tem-se uma tabela de mobilidade social para o futuro (ou esperada) em que se contrasta o lugar que o indivíduo pensa ocupar no presente com o lugar que acha que vai ocupar daqui a dez anos. A partir do cruzamento destas informações, defini quatro trajetórias de mobilidade esperada para os próximos dez anos: 1 – imobilidade ou mobilidade de curta distância no topo; 2 – mobilidade ascendente de longa distância; 3 - mobilidade descendente de longa distância; e 4 - imobilidade ou mobilidade de curta distância na base. Embora estas quatro categorias tenham o mesmo nome das quatro categorias referentes à mobilidade social passada (intergeracional), é importante ter em mente que não se trata de variáveis totalmente equivalentes. Portanto, utilizarei com cautela as comparações entre ambas. A mobilidade passada diz respeito à transição da posição da família de origem, quando o indivíduo tinha 15 anos de idade, para a classe em que ele se encontrava em 2001,6 enquanto a mobilidade futura designa a transição do local imaginário que as pessoas pensam ocupar na sociedade, em 2001, para o que pensam que ocuparão, em 2011. Como mostram os dados analisados a seguir, não há correspondência exata entre a posição de classes que o indivíduo ocupa e a que imagina ocupar. Na seção 4, apresento algumas análises comparativas sobre mobilidade futura e passada com o objetivo de descrever semelhanças e diferenças entre ambas. Finalmente, analiso as correlações entre trajetórias passadas e futuras de mobilidade com seis variáveis que indicam opiniões políticas e sociais. Estas seis variáveis foram selecionadas seguindo-se três hipóteses de trabalho que são propostas por Peter Blau (1956) em sua teoria sobre grupos e trocas sociais (Blau, 1956, 1966); segundo esta teoria, há correlação entre opiniões ou atitudes individuais e grupos sociais. No entanto, esta correlação só pode ser compreendida corretamente quando se entendem os grupos sociais como entidades dinâmicas, formadas por indivíduos em constante movimento entre estes grupos. Assim, um indivíduo nunca pertence a um único grupo, na medida em que participa, diacrônica e sincronicamente, de diversos grupos sociais. A correlação entre os grupos Utilizo o critério de dominância proposto por Erickson (1983). Segundo este critério, a classe a que cada um pertence é definida pela posição mais alta do indivíduo na família (marido ou esposa). A classificação da origem também segue este princípio em relação à classe do pai ou da mãe. 6 192 e as idéias expressas pelos indivíduos só pode ser devidamente entendida quando se leva em conta esta característica dinâmica das sociedades.7 A primeira hipótese de Blau é a de “aculturação”. Indivíduos que vivenciaram mobilidade social tendem a ter preferências políticas intermediárias, isto é, entre as de suas classes de origem e as de suas classes de destino,8 uma vez que ainda estão sofrendo o processo de “aculturação” ao novo grupo, o qual passaram a integrar. Esta hipótese é contra-intuitiva em relação à idéia de que os indivíduos tendem a ter posições e atitudes racionalmente condizentes com a posição material que ocupam na sociedade. Para observar a validade desta hipótese, escolhi duas variáveis: (1) se a pessoa se identifica com partido de esquerda (PT) ou não, e (2) se a pessoa concorda totalmente, em parte, não concorda nem discorda, ou discorda, em parte ou totalmente, com a proposição de que “o governo deve aumentar os impostos e, com isso, garantir melhor educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Em tese, tanto a identificação com um partido de esquerda quanto a tendência a concordar com a proposição acima estariam ligadas a posições políticas mais progressistas e menos conservadoras. Neste sentido, investigo se há algum indício de aculturação política não apenas em quem vivenciou a mobilidade social intergeracional, como também naqueles que esperam a mobilidade social para os próximos anos. Estes últimos sofreriam aculturação, na medida em que adotariam posições que imaginam ser as do grupo em que estarão no futuro. Embora Blau não tivesse previsto a possibilidade dos impactos da mobilidade futura sobre as preferências políticas, recentemente alguns autores começaram a desenvolver pesquisas sobre este tema (vejam-se, por exemplo, Graham e Pettinato, 2002; Bénabou e Ok, 1998). Bénabou e Ok propõem, por exemplo, a hipótese das possibilidades de mobilidade ascendente (POUM – Possibility of Upward Mobility), segundo a qual a possibilidade futura de mobilidade estaria correlacionada a opiniões políticas no presente. Indivíduos que acreditam num futuro com possibilidades de mobilidade ascendente, por exemplo, tenderiam, no presente, a concordar com políticas recessivas. A segunda hipótese de trabalho é a da “insegurança social”; a saber, indivíduos que vivenciaram a mobilidade social teriam uma tendência As hipóteses de Blau foram retomadas, recentemente, em estudos sobre mobilidade de classes e preferências políticas (De Graaf, Nieuwbeerta e Heath, 1995; Clifford e Heath, 1993). 8 Esta hipótese também seria válida para as taxas de fecundidade. 7 193 maior a se sentirem inseguros. Indivíduos que experimentaram mobilidade ascendente, por exemplo, tenderiam a ser mais conscientes dos conflitos sociais advindos da mobilidade e da entrada em novos grupos sociais; o mesmo seria válido para os indivíduos que tiveram mobilidade descendente. Inversamente, indivíduos imóveis, no topo, em sociedades nas quais há muita mobilidade também tenderiam a se sentirem inseguros, justamente por causa da “invasão” de suas classes por indivíduos de origens menos privilegiadas. Para verificar a validade destas proposições, utilizei duas variáveis referentes a percepções de conflito social. Uma sobre o grau de conflito (muito forte; forte; não muito forte; não há conflito) entre classe trabalhadora e classe média, e outra sobre o grau de conflito entre pretos e brancos. Também analisarei a correlação entre as perspectivas de mobilidade futura e as percepções acerca dos conflitos. A terceira e última hipótese é a das “dimensões da mobilidade social”, segundo a qual indivíduos que mudaram para um estrato social superior sentiriam a necessidade de enfatizar a importância de seus esforços individuais para que tivessem alcançado a posição em que se encontram. Em contrapartida, aqueles que tiveram mobilidade descendente ou que permaneceram nos estratos mais baixos tenderiam a atribuir a possibilidade de mobilidade ascendente a fatores externos, e não a capacidades individuais. Para investigar estas proposições, utilizo os dados sobre a opinião dos entrevistados (concorda totalmente; em parte; não concorda nem discorda; discorda em parte; discorda totalmente) em relação às idéias de que “as pessoas são recompensadas pelos seus esforços” e de que “é preciso sorte para se dar bem na vida”. Também procurarei verificar se há correlações entre estas opiniões e as esperanças de mobilidade para os próximos dez anos. Todas estas hipóteses de trabalho relacionam-se a teorias sociológicas que procuram enfatizar as “relações sociais”, e não as vontades individuais (racionais ou não), como principal fonte de explicação das ações sociais. Esta tradição de teoria sociológica, que tem origem nos trabalhos de George Simmel e de Norbert Elias, entre outros, vem, ultimamente, sendo denominada como “relacional” (Emirbayer, 1998), justamente por enfatizar as “relações sociais”, em vez de estruturas supra-individuais ou de volições individuais. Apresento, a seguir, as análises empíricas; voltarei a discutir esta tradição teórica ao final do capítulo. 194 3 – Metodologia de análise Para analisar as possíveis correlações entre mobilidade social (passada e futura) e opiniões, é necessário ir além da simples análise dos percentuais. Em trabalhos de ciências sociais, é comum observar o simples cruzamento de uma variável X com outra, Y, e o cálculo de percentuais proveniente deste cruzamento como uma forma de se descrever a relação entre as duas variáveis. Embora cálculos percentuais deste tipo nos revelem informações importantes, por exemplo, sobre a proporção de homens e mulheres que concordam com determinada opinião ou dela discordam, estes cálculos não permitem a análise do grau de associação entre o gênero e a opinião em jogo. Além disso, quando o número de casos é pequeno, os cálculos percentuais se tornam imprecisos. Diante destas dificuldades, é necessário lançar mão de modelos para se estimar a probabilidade de os indivíduos da população com determinadas características terem determinadas opiniões. Estes modelos permitem que se descrevam as taxas relativas de adesão a determinadas opiniões, ou seja, possibilitam comparar as chances relativas de que indivíduos com características diferentes venham a ter opiniões também diferentes. No presente capítulo, utilizo modelos log-lineares hierarquicamente aninhados (Silva, 1990) e modelos log-lineares para dados categóricos ordinais, conforme desenvolvidos por Goodman (1984), para estimar tais probabilidades. Estes modelos permitem não apenas determinar se há associação estatística entre as variáveis estudadas, como também qual é a forma característica da associação. A metodologia de análise utilizada foi a seguinte: 1. Utilizei modelos log-lineares aninhados hierarquicamente (Silva, 1990) para analisar as diversas tabelas que cruzam tipo de mobilidade, sexo e opinião política ou social. Por meio deste exercício, é possível determinar se as três variáveis associam-se ou se são independentes; caso não haja associação entre duas delas, é aconselhável que se agregue a tabela (que passa, então, de 3x3 para 2x2). Estas análises seguem o exercício usual de se estimarem modelos log-lineares para tabelas tridimensionais (que cruzam três variáveis). Consiste este exercício em encontrar-se o melhor modelo que haja entre o saturado e o de eqüiprobabilidade. O modelo saturado é o seguinte: Fijk = t0 t iA t jB t kC t ikAC t jkBC t ijAB t ijkABC e o modelo de eqüiprobabilidade é apenas: 195 (1) Fijk = t0. (2) Na medida em que os termos da equação 1 são adicionados à equação 2, realizam-se testes, para verificar hipóteses de independência entre pares de variáveis, até o ponto em que se encontra o modelo mais adequado para a descrição dos dados. 2. Em seguida, utilizei análises propostas por Duncan (descritas em Knoke e Burke, 1980) para verificar se há independência entre categorias da variável de tipo de mobilidade social; se houver, é aconselhável diminuir o número de categorias, juntando-se aquelas que sejam independentes entre si. Na prática, esta metodologia consiste em definir uma variável para cada uma das quatro categorias de mobilidade social e estimar modelos log-lineares para verificar se há associação de cada uma destas novas variáveis com a variável de opinião em jogo. O resultado destas análises permite verificar, por exemplo, se há diferença significativa de opinião entre indivíduos com mobilidade ascendente e descendente, ou entre indivíduos que se encontram imóveis, no topo e na base, ou, ainda, entre quaisquer outros pares de categorias de mobilidade social. 3. Nos casos em que havia correlação estatística entre as três variáveis em jogo, utilizei modelos para camadas log-multiplicativos (Xie, 1992) a fim de observar se a associação entre tipo de mobilidade e opinião tinha força e padrão distintos para homens e mulheres. Os modelos log-multiplicativos utilizados têm a seguinte formula geral: Fijk = t0 t iA t jB t kC t ikAC t jkBC exp(yijfk ) (3) Enquanto o termo yij define o padrão de associação entre tipo de mobilidade e opinião, o termo f k descreve a variação da força desta associação entre homens e mulheres (ou brancos e não-brancos, em um dos casos analisados a seguir). 4. Finalmente, nos casos em que não havia diferença por gênero, utilizei modelos log-lineares de associação linha por linha (Goodman, 1984) para analisar as características da associação entre tipo de mobilidade e opinião política ou social. Usei quatro modelos desta família: o primeiro é o modelo de associação uniforme, que segue a hipótese de que as variáveis das linhas e das colunas ordenam-se corretamente e com distância igual entre as categorias. A fórmula do modelo de associação uniforme é: 196 log Fijk = m + liA + ljB + bij (4), onde o termo bij define a interação do tipo de mobilidade (A) com a opinião (B) como sendo linear e uniforme. Neste modelo, considerase como sendo idênticas as distâncias entre as categorias, tanto nas linhas quanto nas colunas. O segundo modelo utilizado é semelhante ao anterior, mas impõe somente a restrição de que a variável das colunas seja linear, de modo que define, portanto, o efeito da variável das linhas na variável linearizada das colunas. Este é o modelo do efeito das linhas que tem a seguinte fórmula: log Fijk = m + liA + ljB + jfi (5), onde o termo fi define o efeito da variável das linhas da tabela (nos casos analisados neste capítulo, o efeito do tipo de mobilidade ou imobilidade) na variável da coluna (j), que se encontra linearizada (no presente caso, as variáveis de coluna são os diferentes tipos de opinião). Também é possível definir-se a variável das linhas como sendo linearizada. O modelo com esta especificação é o do efeito das colunas, que tem a seguinte fórmula: log Fijk = m + liA + ljB + ijj (6), onde o termo jj define o efeito da variável das colunas da tabela (nos casos ora analisados, o efeito dos tipos de opinião) na variável da linha (i), que se encontra linearizada (no caso do presente capítulo, a variável da linha é o tipo de mobilidade e imobilidade). Substantivamente, o modelo do efeito das colunas é menos interessante para a presente análise, tendo-se em vista que meu principal interesse é definir o efeito da mobilidade sobre a opinião. No entanto, não se deve descartar, de antemão, a possibilidade inversa. Finalmente, utilizo o modelo II, de efeito de linhas e colunas (conhecido como o modelo RCII de Goodman), que é bastante versátil, pois, além de pressupor que as categorias das variáveis de linhas e colunas encontram-se ordenadas, estima a ordem e a distância corretas entre as categorias, sem que para isso exija uma ordenação prévia. Assim, esse modelo pode ser usado, inclusive, para verificar quais são a ordem 197 e a distância corretas entre as categorias, nas linhas e nas colunas. A fórmula deste modelo é: log Fijk = m + liA + ljB + fijj, onde os termos fi e jj são, respectivamente, os escores de linhas e colunas, diretamente estimados a partir dos dados que foram observados. Para maiores detalhes sobre esta família de modelos, vejam-se Goodman (1984) e Agresti (1984). Antes de aplicar a metodologia descrita acima, apresento os percentuais de homens e mulheres, em cada tipo de mobilidade ou imobilidade, que se identificam com o Partido dos Trabalhadores (PT), bem como as médias de cada opinião, estudada neste capítulo, para homens e mulheres. A simples investigação destas estatísticas descritivas não revela uma diferenciação importante entre tipos de mobilidade ou de imobilidade, gênero e opiniões políticas e sociais. Assim, diante destas distribuições percentuais e médias, o investigador seria obrigado a concluir: (1) que não há relação entre tipo de mobilidade ou imobilidade e opinião política ou social; e (2) que as opiniões são praticamente as mesmas para todas as pessoas, independentemente do gênero e das trajetórias de mobilidade, ao passo que a análise da associação estatística entre estas variáveis revela padrões significativos de correlação entre mobilidade social (passada e futura) e opiniões políticas, percepções sobre conflito e sobre chances de vida. Antes de iniciar a discussão do resultado destas análises, apresentarei as taxas absolutas e relativas, tanto de mobilidade social passada (intergeracional) quanto de mobilidade social futura (esperada para os próximos dez anos). 4 – Classes, Mobilidade Passada, e Mobilidade Futura Nesta seção, analiso os padrões de mobilidade social intergeracional (passada) e esperada para os próximos dez anos (futura) a partir dos dados coletados, em 2001, na pesquisa de opinião sobre percepções de desigualdade do ISSP. Os dados analisados são referentes a indivíduos (homens e mulheres) com 18 anos de idade ou mais. A inclusão deste grupo de idade ampliado, assim como dos dois sexos em conjunto, faz-se necessária porque a amostra da pesquisa não é muito grande e não possibilita a desagregação dos dados. É também por este motivo que utilizo 198 um esquema de classes que contém apenas cinco categorias, tanto para mobilidade social passada quanto para a futura. Estas cinco categorias não possuem o mesmo significado para os dois tipos de mobilidade social. Enquanto as categorias de classe utilizadas para analisar a mobilidade social passada foram elaboradas usando as informações sobre ocupação de respondentes ou seus cônjuges, e as ocupações dos pais (mãe ou pai) destes, as categorias de classe da mobilidade futura são auto-atribuídas, ou seja, indaga-se aos respondentes sobre onde eles se encontram e sobre onde estarão no futuro, em uma escala de classes hipotética que contém sete categorias. Tendo em vista que análises preliminares indicam que as duas categorias do topo e as duas da base desta escala de sete são respectivamente independentes, optei por agregá-las, obtendo, assim, uma distribuição de classes que são percebidas com cinco categorias. Embora as categorias de classe sejam distintas, fiz algumas comparações entre a mobilidade passada e a futura. Obviamente, estas comparações são limitadas e devem ser lidas com cautela, pois não há correspondência exata entre as classes de fato (definidas de acordo com a posição ocupacional dos indivíduos) e as classes percebidas (definidas pelo auto-posicionamento do próprio respondente em uma escala hipotética de classes hierárquicas). De fato, não se pode usar a classe percebida como proxi para a classe de fato, pois não se sabe nem se todos os respondentes imaginam uma distância igual entre as sete classes percebidas, nem se eles as concebem como tendo o mesmo significado. Enquanto um respondente pode imaginar, por exemplo, que existe uma classe baixa que é enorme, bem como cinco classes médias e apenas uma classe alta, outro respondente pode perfeitamente ter uma percepção diferente desta e imaginar, por exemplo, seis classes baixas e uma classe alta. Isto fica ainda mais claro quando se cruzam as classes de fato com as classes percebidas e se verifica que diversos indivíduos que ocupam posições altas na classe de fato se auto-posicionam em lugares baixos na classe percebida, ou vice-versa. As duas tabelas a seguir apresentam as médias de renda e de anos de educação completos para cada classe de fato e para cada classe percebida. Estas médias provam que não há, de forma alguma, correspondência entre as classes de fato e as classes percebidas. Enquanto as classes de fato estão claramente hierarquizadas de acordo com a renda e a educação e têm um coeficiente de correlação com estas variáveis que é relativamente alto (0,48), as classes percebidas não se hierarquizam desta forma e apresentam coeficiente de correlação baixo com a renda e a educação (0,22). Apesar de constatar que as classes percebidas não correspondem a nenhuma medida de classe ou de nível sócio-econômico 199 objetivo, sugiro que devemos continuar a seguir o que os indivíduos imaginam, com relação à sua posição na hierarquia da sociedade, para analisar a mobilidade percebida para o futuro (mesmo porque não há outra forma de se definir a mobilidade social esperada para o futuro). Deve-se ter o cuidado, no entanto, de saber que se está tratando de um mundo totalmente imaginário, tanto no que diz respeito tanto à classe percebida quanto à mobilidade futura, esperada para os próximos dez anos. Tabela 1 A Cinco Classes Sociais Hiererquizadas, por Média de Renda Individual, e Média de Anos Completos de Escolaridade. Brasil, 2001, pessoas com mais de 18 anos de idade. B Classe Percebida por Média de Renda individual e média de anos de escolaridade. Brasil, 2001, pessoas com mais de 18 anos de idade Renda Individual Escolaridade dos Filhos Renda Individual Escolaridade dos Filhos 1 Profi ssionais, administradores, e empregadores. 1493,0 11,2 1 Posição 1-2 (topo), escala de 7 categorias de classe 347,56 6,86 2 Não manual de rotina de alto nível, técnicos, e supervisores 592,3 8,2 2 Posição 3 550,02 7,3 3 Não manual de rotina de baixo nível, e autonomos no comércio 487,9 7,2 3 Posição 4 685,03 9,65 4 Trabalhadores manuais 335,4 5,1 4 Posição 5 472,27 8,23 5 266,8 3,8 5 Posição 6-7 (base) 360,59 6,87 446,4 6,1 450,27 7,71 0,48 0,48 0,22 0,22 Classes Trabalhadores rurais Total Coeficiente de correlação Classes Percebida Total Coeficiente de correlação Apesar da dissimilaridade entre classes de fato (Tabela 1A) e classes percebidas (Tabela 1B), há uma impressionante semelhança nas taxas absolutas e relativas de mobilidade social, que foram calculadas a partir das tabelas de mobilidade social passada (usando-se as classes de fato) e futura (usando-se as classes percebidas). Diante do fato de que classes percebidas e as classes de fato não são, de nenhuma forma, correspondentes, não sei como explicar a semelhança nas taxas de mobilidade que descreverei a seguir. Talvez as semelhanças sejam pura coincidência, talvez se devam às pessoas tenderem a acreditar que o passado da sociedade se repetirá no futuro de suas vidas, individualmente. 200 Deve-se ler com muito cautela a semelhança nas taxas absolutas e relativas de mobilidade social passada e futura que apresento a seguir. Não se pode concluir, por exemplo, que o fato de haver 51% de mobilidade ascendente passada (intergeracional) e 48% de mobilidade ascendente futura (esperada para os próximos dez anos) seja uma tradução da experiência individual passada para as expectativas futuras dos indivíduos. Não são os 51% com mobilidade ascendente no passado que esperam mobilidade social ascendente nos próximos dez anos. A despeito da devida cautela, não se pode negar que a semelhança das taxas de mobilidade passada e futura seja impressionante. Como mencionei acima, uma possibilidade para isso é a de que as pessoas imaginem que seu futuro será como o passado da sociedade, mesmo que este não seja o passado individual delas. As taxas absolutas de mobilidade social estão dispostas no Gráfico 1 e foram calculadas a partir das tabelas de mobilidade que se encontram como anexo ao presente capítulo. Gráfico 1 – Taxas Absolutad de Mobilidade Social Passada (Intergeracional) e Futura (esperada para os próximos 10 anos), Homens e Mulheres com mais de 18 anos de idade, Brasil, 2001 O índice de mobilidade total passada mede o percentual de indivíduos que se encontram numa classe social diferente daquela de seus pais (65% das pessoas), e a mobilidade total futura mede o percentual de indivíduos que acham que estarão, em 2009, numa posição social diferente da que imaginavam estar em 1999 (60% das pessoas). A proporção de indivíduos que estão em classe social (de fato) superior à de seus pais é de 51%, e a 201 proporção dos que esperam estar numa posição futura que é superior à que imaginam estar no presente é de 48%. Entre a geração dos pais e a dos filhos, apenas 14% tiveram mobilidade descendente. Com relação ao futuro, apenas 13% imaginam que terão mobilidade descendente. O mesmo ocorre com o grau de imobilidade intergeracional (35%) e o grau de imobilidade esperado para o futuro (40%). O único índice que não segue este padrão de semelhança é o que mede a dissimilaridade entre a distribuição de classe dos pais e dos filhos (no caso da mobilidade passada), que é de 32 %, e a dissimilaridade entre a distribuição de classes imaginada no presente e a imaginada para o futuro (no caso da mobilidade futura), que é de 21%. Ou seja, há mais dissimilaridade entre a distribuição de classe de origem (dos pais) e a de destino dos filhos do que entre as distribuições de classe imaginadas, no presente e no futuro. É difícil definir se todas essas semelhanças entre mobilidade social passada e futura são apenas uma coincidência ou se revelam alguma correlação entre percepções do passado e esperanças para o futuro. Qualquer que seja a interpretação, a semelhança, em todas as medidas apresentadas, não deixa de ser impressionante. A seguir, apresentarei as correlações entre tipos de mobilidade social e opiniões políticas e sociais. Apesar de não mostrar semelhanças tão impressionantes como as descritas acima, as análises seguintes revelam informações essenciais para se avaliar a correlação entre classes sociais e ideologias políticas e sociais. 5 – Posições Políticas, a Hipótese de Aculturação e a Hipótese da Possibilidade de Mobilidade Ascendente Futura Em seus estudos sobre a formação de grupos e sobre as trocas sociais, Peter Blau (1966) reformulou algumas teses recorrentes do pensamento sociológico clássico. Entre estas teses, uma das mais relevantes é a da “aculturação”. Partindo de uma simplificação das idéias de Simmel (1955) sobre a interação de indivíduos e grupos, Blau sugere que algumas opiniões e atitudes políticas estão fortemente relacionadas a determinados grupos sociais, mesmo tendo-se em vista que os indivíduos participam de diversos grupos distintos. Conseqüentemente, quando estes indivíduos deixam de fazer parte de um determinado grupo, para se juntar a outro, tendem a adotar gradualmente a atitude política do novo grupo, apesar de continuarem compartilhando algumas das idéias provenientes de seu grupo de origem. A mudança de um grupo para outro leva, por assim dizer, a ideologias e 202 atitudes intermediárias. O agregado de indivíduos imóveis na classe média, por exemplo, teria, de um modo geral, posições políticas mais conservadoras do que o agregado de indivíduos imóveis na classe trabalhadora. Em contraposição, o contingente de indivíduos que vivenciaram mobilidade social entre a classe média e a classe trabalhadora, e vice-versa, teriam, em média, posições tanto de uma quanto da outra classe. Haveria uma grande proporção de conservadores entre os indivíduos imóveis na classe média, uma pequena proporção entre os que estão imóveis na classe trabalhadora, e uma proporção intermediária entre aqueles que tiveram mobilidade social intergeracional ascendente ou descendente. Além da possibilidade das opiniões políticas estarem relacionadas a posições de classe e mobilidade social, Benabou e Ok (1998) sugerem que elas poderiam também estar associadas à possibilidade de mobilidade ascendente futura. De acordo com esta hipótese (POUM – Possibility of Upward Mobility), indivíduos com esperança de mobilidade ascendente no futuro tendem a ter posições políticas diferentes daqueles que não têm tal expectativa. No presente capítulo, faço um teste inicial e provisório sobre a hipótese POUM; um teste completo dependeria de modelos multivariados mais complexos e de dados mais pormenorizados, contendo informações que não estão disponíveis na pesquisa do ISSP. Para verificar a validade das hipóteses de “aculturação” e POUM, utilizo duas questões da pesquisa do ISSP sobre percepções de desigualdade. A primeira é uma pergunta sobre o partido com o qual o respondente mais se identifica. Esta questão informa sobre identificação partidária e não sobre intenções de voto, como é usual em pesquisas eleitorais. Portanto, não estamos investigando as chances de um determinado partido vencer alguma eleição, mas, simplesmente, a identificação partidária de um modo geral. Parece-me consensual que o Partido dos Trabalhadores (PT) se filie a posições políticas de esquerda. Neste sentido, descreverei as chances relativas de que indivíduos, imóveis no topo da hierarquia de classes, imóveis na base, e que vivenciaram mobilidade ascendente e descendente de longa distância, se identifiquem ou não com o PT, ou seja, de que possuam identificação relativamente clara e inequívoca com a esquerda. A segunda questão que analiso é a resposta (concorda totalmente; concorda em parte; não concorda nem discorda; discorda em parte; e discorda totalmente) à indagação sobre se “o governo deve aumentar os impostos e, com isso, garantir mais educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Teoricamente, indivíduos de posições políticas mais à esquerda tenderiam a concordar com esta indagação, e pessoas de posição política mais conservadora tenderiam a discordar dela. 203 Procurarei verificar se há diferenças significativas nas respostas das para estas duas perguntas por homens e mulheres que vivenciaram a mobilidade ascendente e descendente, ou a imobilidade intergeracional (mobilidade passada), e que imaginam que vão vivenciar imobilidade ou mobilidade nos próximos dez anos (mobilidade futura). A Tabela 2 descreve: (1) a porcentagem de homens e mulheres com mobilidade futura (esperada para os próximos dez anos) e passada (intergeracional) que se identificam com o PT (respectivamente, nas colunas 1 e 2); e (2) a média em escala com cinco valores (que variam entre concorda totalmente e discorda totalmente) das respostas de homens e mulheres com mobilidade futura (esperada para os próximos dez anos) e passada (intergeracional) à pergunta sobre se o governo deve aumentar os impostos para financiar políticas sociais. Antes de apresentar os resultados destas análises sobre opinião política e mobilidade social (futura e passada), gostaria de alertar os leitores para o fato de que a identificação com o PT e com políticas distributivas parece ser mais comum junto às classes mais altas das hierarquias que utilizo neste capítulo. Seria lógico imaginar que indivíduos das classes mais baixas fossem as que mais claramente se identificassem com o PT e com políticas distributivas (i.e., a classe trabalhadora se identificaria com o partido e as idéias de esquerda); no entanto, no topo da hierarquia utilizada (classes 1 e 2) não se encontram indivíduos das classes mais altas da sociedade, mas sim aqueles da classe média. As classes mais baixas, por sua vez, incluem, na realidade, um grupo de pessoas muito pobres (vejam-se os anos de educação e a renda média em cada classe na Tabela 1A). De fato, poder-se-ía considerar as classes 1 e 2 (profissionais, administradores, trabalhadores não-manuais de rotina, supervisores e técnicos) como constituindo o “espaço poliárquico”, que, segundo Santos (1993), é onde há disputas políticas organizadas. Ou seja, as classes 1 e 2 não são constituídas por burgueses, mas sim por trabalhadores com alguma chance de se organizar politicamente, enquanto os pobres, representados nas classes 3, 4 e 5, teriam menores chances e recursos para o embate político. 204 Tabela 2 – Percentagem se identificando com partido de esquerda (PT) e média em escala concorda-não concorda (5pontos) com aumento de impostos para financiar políticas sociais, por quatro trajetórias de mobilidade, por sexo, e por mobilidade passada e futura Percentagem se Média de escala concorda – identificando com partido de não concorda: aumento de esquerda (PT) impostos para políticas sociais Direção da Mobilidade Sexo Mobilidade Mobilidade Futura Passada Futura Passada Imobilidade ou curta distância no topo Homem 9,5 42,5 2,7 3,32 Mulher 14,9 26,7 2,79 3,53 Ascendente de longa distância Homem 19,9 13,3 2,95 2,99 Mulher 12,8 13,9 2,97 3,04 Descendente de longa distância Homem 11,1 14,6 2,8 3,47 Mulher 10 16 2,81 3,93 Homem 15,5 12,2 3,11 2,83 Mulher 13,7 9,2 2,9 2,82 Imobilidade ou curta distância na base 5.1 – Chances de se identificar com o PT Os dados da segunda coluna de números da Tabela 2 mostram que indivíduos imóveis no topo possuem maiores chances de se identificar com o PT, ao passo que aqueles com mobilidade ascendente e descendente têm menores chances de fazê-lo, e aquele indivíduos imóveis na base são os que apresentam a menor chance de identificação com o PT. Esta conclusão fica ainda mais evidente nos resultados do modelo logit que analisam as chances de que homens e mulheres com imobilidade no topo, com mobilidade ascendente ou descendente, e com imobilidade na base, se identifiquem com o PT. Os resultados deste modelo, que bem se ajusta aos dados (L2 = 4,59; g.l = 3; e valor de p < 0,20), conforme dispostos na Gráfico 2, comprovam que há associação estatística entre mobilidade, ou imobilidade, e identificação com o PT. Segundo este modelo, não há diferença nas chances de homens e mulheres votarem no PT. Nas porcentagens da Tabela 2, parece haver diferença de gênero, mas a estimação do 205 modelo indica que esta diferença não é estatisticamente significativa. Além disso, o modelo revela que não há diferença significativa de identificação entre indivíduos com mobilidade ascendente e aqueles com mobilidade descendente (as chances são as mesmas). Gráfico 2 – Efeito do tipo de mobilidade no log das chances de se identificar com o PT (Modelo Logit) Conforme as chances estimadas (cujos logaritmos estão representados no gráfico acima), indivíduos imóveis, ou com mobilidade de curta distância, no topo, têm 4,5 vezes mais chances de se identificar com o PT do que indivíduos imóveis, ou com mobilidade de curta distância, na base; e indivíduos que vivenciaram mobilidade ascendente ou descendente têm 1,3 vezes mais chances de se identificar com o PT do que aqueles na base da hierarquia de classes. Em outras palavras, o gráfico indica que as chances de se identificar com o PT decrescem à medida que as pessoas se afastam das classes de profissionais, administradores, trabalhadores manuais de rotina, supervisores e técnicos (classes 1 e 2). Estas análises indicam que a hipótese de “aculturação” proposta por Blau (1956) parece ser pertinente para explicar a identificação partidária no Brasil. Embora não seja possível chegar à determinação das causas da identificação partidária a partir de simples correlações estatísticas, minhas análises confirmam que é essencial levar em conta os padrões de mobilidade social para se entender a relação entre classes sociais e identificação partidária. Em sociedades industriais, classes sociais não são grupos estáticos, havendo sempre a possibilidade de mobilidade social entre gerações. Desta 206 forma, a origem social das pessoas que constituem cada classe social pode variar muito, de acordo com a velocidade do processo de industrialização ou de outras mudanças sociais. No Brasil, a industrialização foi muito rápida, o que implicou em muita mobilidade intergeracional. Conseqüentemente, a origem de classe dos indivíduos (classe dos seus pais) é bem diferente da classe à qual eles pertencem quando adultos. Em suma, muito da mobilidade social e das classes constitui-se por pessoas de origens heterogêneas. De acordo com as análises que desenvolvi acima, esta heterogeneidade de origem tem impacto significativo na identificação partidária dos grupos de classe. Será que este impacto também está presente na correlação entre classes imaginárias, presentes e futuras? Não há correlação estatística entre mobilidade futura e identificação com o PT (proporções da primeira coluna de números da Tabela 2). Assim, o modelo de independência é o que melhor se ajusta aos dados (L2 =0,50; g.l.=3; valor de p = 0,91) e confirma a hipótese de que as duas variáveis não estão associadas. 5.2 – Opinião sobre políticas distributivas A associação entre o tipo de mobilidade social e a opinião sobre aumento de impostos a fim de melhorar políticas sociais segue um padrão semelhante ao da associação entre identificação partidária e tipo de mobilidade. A única conclusão que se pode tirar da investigação da última coluna da Tabela 2 é que há uma leve tendência geral de se discordar da idéia de que deve haver aumento de impostos para financiar políticas sociais. Esta leve tendência se expressa no fato de que as médias se aproximam mais de 5 (discorda totalmente) do que de 1 (concorda totalmente) – as médias variam entre 2,99 e 3,93. Embora estas médias não sugiram outra interpretação que seja de interesse, o modelo de associação uniforme bem se ajusta aos dados (L2 = 9,36; g.l.=7; e valor de p = 0,23) e mostra que há associação estatística entre tipo de mobilidade e opinião sobre aumento de impostos para financiar políticas sociais. Este modelo também indica que não há diferença de opinião entre homens e mulheres, nem entre indivíduos com mobilidade ascendente e descendente de longa distância. O padrão da associação entre tipos de mobilidade e opinião sobre aumento de impostos que é revelado pelo modelo de associação uniforme pode ser resumido da seguinte forma: (1) há mais chances de se discordar, de um modo geral, do aumento de impostos para financiar políticas sociais do que de se concordar com isto (esta tendência também é visível 207 nas médias da última coluna da Tabela 2); (2) indivíduos imóveis no topo da hierarquia de classes e que vivenciaram mobilidade ascendente ou descendente tendem a ser mais favoráveis ao aumento de impostos a fim de financiar políticas sociais do que indivíduos imóveis na base; e (3) indivíduos imóveis no topo da hierarquia de classes tendem a ser mais favoráveis ao aumento de impostos para financiar políticas sociais do que indivíduos que vivenciaram mobilidade ascendente ou descendente. Assim, indivíduos que vivenciaram, por exemplo, imobilidade ou mobilidade de curta distância no topo têm 1,8 vezes mais chances de concordar totalmente com a idéia de que deve haver aumento de impostos a fim de financiar políticas sociais do que aqueles que tiveram mobilidade ascendente ou descendente de longa distância, e 1,5 vezes mais chances de concordar com esta idéia do que indivíduos imóveis, ou que tiveram mobilidade de curta distância, na base. Por seu turno, indivíduos que tiveram mobilidade ascendente ou descendente de longa distância têm 2 vezes mais chances de concordar totalmente com o aumento de impostos do que indivíduos imóveis, ou com mobilidade de curta distância, na base. Estas análises também indicam uma leve tendência, por parte de indivíduos que são do topo, ou que vêm do topo, ou que chegam ao topo, da hierarquia de classes (lembre-se de que o topo, no esquema utilizado aqui, é uma posição de classe média trabalhadora), de concordar mais com políticas distributivas do que aqueles na base (em ocupações com baixa remuneração e escolaridade). A hipótese de “aculturação” de Blau é válida para descrever a correlação entre classes sociais e opiniões políticas, ou seja, é necessário levar em conta os padrões de mobilidade social para se entender a correlação entre classes sociais e opiniões políticas. Estas análises reforçam as conclusões da seção anterior do presente capítulo. De fato, parece ser necessário considerar os padrões de mobilidade social para que se entenda a relação entre classes sociais e opiniões políticas. As altas taxas de mobilidade social intergeracional que tornam as classes sociais heterogêneas em suas origens parecem influenciar significativamente os padrões de identificação partidária e de opinião sobre políticas redistributivas. Finalmente, conduzi algumas análises a fim de investigar a correlação entre mobilidade futura e opinião sobre política redistributiva. Além de indicar uma tendência geral de se discordar de políticas redistributivas, as médias da terceira coluna da Tabela 2 não sugerem nenhum outro padrão que seja de interesse. Com efeito, as análises que utilizam modelos loglineares também não sugerem interpretações diferentes. O único modelo que se ajusta aos dados é o de independência, que testa a hipótese de 208 que sexo, tipo de mobilidade futura e opinião sobre política redistributiva não se associam (L2 = 40,0; g.l.=31; e valor de p = 0,13). Enfim, não há associação entre esperança de mobilidade e opinião sobre aumento de impostos a fim de financiar políticas sociais. As análises acima confirmam que o estudo da relação entre classes sociais e posições políticas não pode ser conduzido de maneira correta se não se levarem em conta os padrões de mobilidade que contribuem para formar as classes sociais. Portanto, a hipótese de “aculturação” tem validade como fonte de explicação das opiniões políticas. Em contraposição, não há indícios de que as esperanças de mobilidade futura mantenham quaisquer relações com as opiniões políticas. Não se pode defender a hipótese POUM a partir das análises acima; talvez dados mais pertinentes (como mobilidade de renda) sejam necessários para que se teste esta hipótese. 6 – Insegurança social e percepções sobre conflito Segundo Peter Blau, alguns aspectos das percepções sobre “insegurança social” também estariam relacionados à mobilidade social. Indivíduos que mudaram de classe social ao longo de sua vida teriam maior tendência a se sentirem inseguros. Indivíduos que tiveram mobilidade ascendente, por exemplo, tenderiam a estar mais cientes dos conflitos sociais advindos da mobilidade e da entrada em novos grupos sociais, algo que seria válido também para os indivíduos que tiveram mobilidade descendente. Além disso, também é possível que indivíduos que se encontram imóveis no topo se sintam inseguros com a mobilidade ascendente de indivíduos de origem em classes mais baixas. Para investigar estas proposições, analisarei as respostas a duas variáveis sobre percepções de conflito social. A primeira investiga a percepção sobre o grau de conflito entre classe trabalhadora e classe média, e a segunda, a percepção sobre o grau de conflito entre negros e brancos. Também examinarei a correlação entre as perspectivas de mobilidade futura e as percepções sobre os conflitos. A Tabela 3 apresenta as médias (em escala que vai de: 1 = muito forte; 2 = forte; 3 = não muito forte; a 4 = não há conflito) de percepção de conflitos, entre as classes média e trabalhadora, e entre negros e brancos, conforme declarada por homens e mulheres em quatro tipos de mobilidade social, passada e futura (as quatro primeiras colunas de números). As duas últimas colunas da tabela descrevem a média das opiniões de negros e brancos sobre conflitos raciais. 209 Tabela 3 – Tabela 3 - Média em escala muito forte-não há (4 pontos) conflito entre classe trabalhadora e classe média, e conflito entre brancos e pretos, por trajetória de mobilidade, por sexo, e por mobilidade futura e passada. Direção da Mobilidade Imobilidade ou curta distância no topo Ascendente de longa distância Descendente de longa distância Imobilidade ou curta distância na base Sexo Média de escala “muito forte-não há”conflitos entre classe trabalhadora e média Média de escala “muito forte-não há” conflitos entre pretos e brancos Mobilidade Mobilidade Futura Passada Futura Passada Homem 2,64 2,73 2,47 2,44 Mulher 2,42 2,7 2,28 Homem 2,56 2,57 Mulher 2,4 Homem Média de escala “muito forte-não há” conflitos entre pretos e brancos Cor Mobilidade Futura Passada Branco 2,39 2,27 2,31 Preto 2,34 2,48 2,53 2,48 Branco 2,5 2,44 2,52 2,32 2,31 Preto 2,34 2,35 2,59 2,55 2,21 2,43 Branco 2,05 2,46 Mulher 2,25 2,44 1,88 2,24 Preto 2,02 2,15 Homem 2,75 2,62 2,65 2,56 Branco 2,72 2,61 Mulher 2,69 2,54 2,61 2,52 Preto 2,54 2,42 A observação mais imediata que se pode fazer a partir da Tabela 3 é a de que há uma tendência geral de se achar que os conflitos de classe e raciais são “fortes” ou “não muito fortes”. Em outras palavras, de um modo geral, as pessoas consideram que há conflito, mas que ele não é agudo. Além desta tendência geral, que é válida para homens, mulheres, brancos e negros com qualquer trajetória de mobilidade social, passada e futura, não há outra diferenciação relevante que se possa observar a partir da Tabela 3. A seguir, apresentarei as análises em que uso os modelos estatísticos para investigar padrões de associação que não são perceptíveis na Tabela 3. 6.1 – Percepções sobre Conflito de Classes e Conflitos de Raça A análise hierárquica de modelos log-lineares aninhados para a tabela que cruza sexo, tipo de mobilidade passada e opinião sobre conflito de classes revela claramente que não há associação entre estas três variáveis. O modelo que testa a hipótese de independência estatística entre as três variáveis é o que melhor se ajusta aos dados (L2 = 12,25; g.l.=24; e valor 210 de p = 0,97). Também não há correlação entre sexo, tipo de mobilidade social passada e opinião sobre conflito entre brancos e negros. O modelo de independência entre estas três variáveis é o que melhor se ajusta aos dados (L2 = 30,14; g.l.=24; e valor de p = 0,18). Em suma, não há correlação estatística entre tipo de mobilidade social passada e opinião sobre conflito de classe ou de raça, nem entre sexo e opinião sobre conflito de raça ou de classe, nem, ainda, entre raça e opinião sobre conflito de classe ou de raça. Este quadro de independência não se repete quando se analisa a associação entre mobilidade social futura (esperada para os próximos dez anos) e opinião sobre conflito de classe e de raça. A análise de modelos hierárquicos aninhados indica que não é necessário levar em conta a raça e o sexo para se descrever a associação entre o tipo de mobilidade social futura e a opinião sobre conflito de raça ou classe, ou seja, tanto homens e mulheres quanto brancos e negros tendem a ter opiniões semelhantes. Conseqüentemente, apresento as análises apenas para os cruzamentos entre mobilidade social futura e opiniões sobre conflito, sem levar em conta a raça ou a classe dos respondentes, uma vez que estas não se associam significativamente à opinião sobre conflito de classes. O melhor ajuste da Tabela que cruza tipo de mobilidade futura e opinião sobre conflito de classe é o do modelo II, de efeito de linhas e colunas (conhecido como o modelo RCII de Goodman). Este modelo, que se ajusta com estatística L2 = 1,23, com 4 graus de liberdade (g.l.=4) e com valor de p = 0,87, testa a hipótese de que há associação linear entre o tipo de mobilidade desejada e a opinião sobre conflito de classes. Por esse modelo estimam-se também a distância e a ordem entre as categorias de tipo de mobilidade e de opinião sobre o conflito. Como era de se esperar, a ordem entre os graus de conflito está correta, embora a distância não o esteja. Os estimadores para as categorias de grau de conflito são os seguintes: muito forte = -,80; forte = -,04; não muito forte = ,34; e não há conflito = ,50. Estes resultados sugerem que se deveria recalcular as médias da primeira coluna de números da Tabela 3. Se isto fosse feito, encontrar-se-ía uma tendência ainda maior do que aquela que está expressa na tabela quanto aos indivíduos acharem que os conflitos são “fracos”, em vez de “fortes” (os números ficariam ainda mais próximos de 4, ou seja, da categoria segundo a qual “não há conflito” entre classes média e trabalhadora). Além de relativizar a distância entre as categorias de grau de conflito, o modelo RCII sugere uma nova ordem crescente para as categorias de tipo de mobilidade futura: (1) mobilidade ascendente de longa distância e mobilidade descendente de longa distância estão praticamente juntas; (2) 211 imobilidade ou curta distância no topo vêm em seguida; e (3) imobilidade ou curta distância estão na base. Respeitando esta ordem estimada das categorias de tipo de mobilidade e a distância, também estimada, entre as categorias de grau de conflito, a associação entre o tipo de mobilidade futura e a opinião sobre conflito de classes que é revelada por esse modelo tem as seguintes características: (1) indivíduos com expectativa de mobilidade ascendente ou descendente e de imobilidade no topo têm duas vezes mais chances do que aqueles com expectativa de imobilidade na base de considerar o conflito entre classes média e trabalhadora “muito forte”, em vez de “forte”; (2) indivíduos com expectativa futura de mobilidade ascendente ou descendente têm pelo menos cinqüenta vezes mais chances, do que aqueles que acham que ficarão imóveis na base, de considerar o conflito entre classes média e trabalhadora como sendo “forte”, em vez de “não muito forte”; (3) indivíduos com expectativa de imobilidade no topo têm pelo menos vinte vezes mais chances do que aqueles com expectativas de imobilidade na base de considerar o conflito entre classes média e trabalhadora “forte”, em vez de “não muito forte”; e (4) indivíduos com expectativa de imobilidade no topo ou de mobilidade ascendente ou descendente têm quatro vezes mais chances do que aqueles com expectativa de imobilidade na base de considerar o conflito de classes “não muito forte”, em vez de “inexistente”. Em suma, o modelo RCII permite concluir que: Indivíduos com esperanças de mobilidade futura ascendente ou descendente de longa distância têm chances significativamente maiores do que outros indivíduos de responder que há conflito relativamente forte entre as classes média e trabalhadora. Esta conclusão não fica clara nem a partir das médias da Tabela 3, nem pela análise de percentuais (que não é apresentada aqui). Estas análises sugerem, por sua vez, que os indivíduos que imaginam que experimentarão mobilidade social no futuro têm maiores chances relativas de pensar que há fortes conflitos de classe no Brasil. Também há associação estatística entre tipo de mobilidade social futura e opinião sobre conflito de raça. Neste caso, também não há o efeito de raça ou sexo dos respondentes. O modelo RCII é o que melhor se ajusta aos dados da tabela que cruza o tipo de mobilidade futura e a opinião sobre conflito racial (L2 = 2,52; g.l.=4; e valor de p = 0,64). O melhor resumo da associação entre mobilidade futura e opinião sobre conflito racial que se define por este modelo é o seguinte: (1) indivíduos que se imaginam imóveis na base da estrutura de classes nos próximos dez anos têm três vezes menos chances do que os outros de achar que há 212 conflito “muito forte”, em vez de “forte”, entre brancos e negros, e duas vezes menos chances do que os outros indivíduos de achar que há conflito “forte”, em lugar de “não muito forte”. Portanto, pode-se concluir que: • Indivíduos que acham que ficarão imóveis na base da estrutura de classes nos próximos dez anos têm menos chances de achar que há conflito entre brancos e negros no Brasil, ao passo que aqueles com esperança de mobilidade ascendente ou descendente e de imobilidade no topo tendem a considerar que há conflito relativamente forte entre brancos e negros no país. As conclusões sobre a relação entre mobilidade social e as percepções sobre o conflito são claras: indivíduos que se imaginam vivenciando mobilidade social nos próximos dez anos têm chances maiores do que os outros de considerar os conflitos de classe e racial como sendo “fortes”, em vez de “fracos”. Parece que a perspectiva de mobilidade futura (seja ascendente ou descendente) está relacionada à tendência de se perceberem conflitos de classe e de raça na sociedade. Em suas proposições sobre “insegurança social”, Peter Blau não previa esta possibilidade sobre mobilidade futura. Desconheço outros artigos que tragam conclusões semelhantes, mas vale a pena teorizar sobre esta correlação. Parece plausível a idéia de que indivíduos que esperam mobilidade social no futuro tendam a imaginar que enfrentarão situações de conflito social. 7 – Dimensões da mobilidade: percepções sobre características de mobilidade Nesta seção, farei um balanço da hipótese das “dimensões da mobilidade social” proposta por Peter Blau (1956). Segundo esta hipótese, indivíduos que vivenciaram mobilidade social ascendente tenderiam a enfatizar a importância de seus esforços pessoais como fatores que os levaram à ascensão social, ao passo que aqueles com mobilidade descendente ou imobilidade nos estratos mais baixos tenderiam a atribuir a possibilidade de ascensão a fatores externos, e não a capacidades pessoais. Para investigar estas proposições, utilizarei as respostas a perguntas sobre a opinião dos entrevistados (concorda totalmente; em parte; não concorda nem discorda; discorda em parte; ou discorda totalmente) sobre 213 as idéias de que “as pessoas são recompensadas pelos seus esforços” e de que “é preciso sorte para se dar bem na vida”. Também verificarei se há correlações entre estas opiniões e as esperanças de mobilidade para os próximos dez anos. O fato de que alguns indivíduos mostram-se otimistas quanto às suas possibilidades futuras de mobilidade ascendente talvez se correlacione à tendência que têm de concordar com a idéia de que seus esforços serão recompensados. A Tabela 4 apresenta as médias em escala de cinco pontos entre “concorda totalmente” e “discorda totalmente” com as idéias de que é preciso esforço e sorte para se subir na vida. Estas médias são apresentadas para homens e mulheres com quatro tipos diferentes de trajetórias de mobilidade social, passada e futura. Tabela 4 – Tabela 4 - Média em escala concorda-discorda (5 pontos) que pessoas são recompensadas pelos seus esforços e que é necessário sorte para subir na vida por quatro trajetórias de mobilidade, por sexo, e por mobilidade futura e passada Direção da Mobilidade Imobilidade ou curta distância no topo Ascendente de longa distância Descendente de longa distância Imobilidade ou curta distância na base Média de escala concordadiscorda: pessoas são recompensadas pelos seus esforços Média de escala concordadiscorda: sorte para se dar bem na vida Mobilidade Mobilidade Sexo Futura Passada Futura Passada Homem 2,84 3,88 2,21 2,15 Mulher 3,43 3,47 1,87 2,2 Homem 3,31 3,25 2,05 1,92 Mulher 3,44 3,48 2,12 2,16 Homem 3,5 2,94 2,13 2,45 Mulher 3,85 3,41 1,85 1,94 Homem 3,33 3,15 2,09 2 Mulher 3,34 3,31 1,93 1,94 214 Por um lado, os dados da tabela, nas duas primeiras colunas de números, indicam que há a tendência, comum a homens e mulheres, em todos os tipos de mobilidade social, futura e passada, de se discordar da idéia de que os esforços individuais são recompensados (as médias variam entre 2,84 e 3,85 e, portanto, estão mais próximas de 5, que mede “discorda totalmente”). Por outro lado, os dados das duas últimas colunas indicam a tendência geral de que homens e mulheres concordem com a idéia de que é preciso sorte para se dar bem na vida (as médias variam entre 1,85 e 2,45 e, portanto, estão mais próximas de 1, que mede “concorda totalmente”). Não se pode aferir nenhuma outra conclusão a partir dos dados da tabela acima; contudo, as análises da associação estatística entre as variáveis acima indicam alguns padrões relevantes. 7.1 – Opinião sobre a idéia de que os esforços individuais são recompensados A análise da associação entre sexo, tipo de mobilidade social passada e opinião sobre se os esforços individuais são recompensados mostra que não há associação estatística entre estas variáveis. O modelo de independência é o que melhor se ajusta aos dados (L2 = 33,67; g.l.= 24; e valor de p = 0,10). Outras análises indicam que há associação entre mobilidade social esperada (futura) e a opinião sobre esforços individuais. Os modelos também sugerem, por um lado, que não há diferença entre as opiniões de homens e mulheres e, por outro lado, que as categorias para mobilidade futura ascendente e descendente são independentes. Logo, os resultados que serão apresentados a seguir se resumem à tabela que cruza três tipos de mobilidade futura (imobilidade no topo, mobilidade ascendente ou descendente, e imobilidade na base) e a opinião sobre a recompensa a esforços individuais. O modelo que melhor se ajusta aos dados da tabela é o dos efeitos da coluna (L2 = 5,53; g.l.= 4; e valor de p = 0,24). De acordo com este modelo, a variável das linhas (tipo de mobilidade social futura) está linearizada. A associação estatística que é encontrada por este modelo revela que não há muita diferença relativa nas opiniões extremas (concordar totalmente ou discordar totalmente), ou seja, indivíduos que esperam imobilidade no topo (1), mobilidade ascendente ou descendente (2), ou imobilidade na base (3) têm chances semelhantes de ter opiniões extremas. Já suas chances relativas de ter opinião moderada são bastante diferenciadas. 215 Indivíduos que se imaginam imóveis no topo nos próximos dez anos, por exemplo, têm dezesseis vezes mais chances de responder que não concordam com a idéia, nem discordam dela, de que “esforços individuais são recompensados” do que indivíduos imóveis na base, e quatro vezes mais chances de dar esta resposta do que aqueles que esperam algum tipo de mobilidade social no futuro. Em suma, indivíduos que se imaginam imóveis no topo da hierarquia imaginária de classes durante os próximos dez anos têm chances maiores do que os outros de apresentar uma opinião neutra (não concordar nem discordar) sobre a idéia de que “esforços individuais são recompensados”. Estes resultados sugerem que aqueles que imaginam que estão e que permanecerão no topo da hierarquia de classes nos próximos anos acham que os esforços individuais são importantes para se subir na vida, mas que não são o único fator determinante disto. Eles acham que estão no topo e que lá continuarão não apenas por seus esforços, mas também por motivos outros. Como veremos a seguir, estas pessoas, que se imaginam no topo, também têm chances maiores do que os outros de achar que a sorte é importante para se subir na vida. 7.2 – Opiniões sobre a idéia de que “é preciso ter sorte para subir na vida” Não há associação estatística entre tipo de mobilidade social passada, sexo e opinião sobre a sorte. O modelo de independência bem se ajusta aos dados (L2 = 34,47; g.l.= 4; e valor de p = 0,30). Em contrapartida, há a associação estatisticamente significativa entre esperança de mobilidade futura e opinião sobre se “é preciso ter sorte para se subir na vida” (não há diferença de opinião entre homens e mulheres). O modelo que melhor se ajusta aos dados é o RCII (modelo de efeito de linhas e colunas II de Goodman), que possui estatística L2 = 7,16; 6 graus de liberdade; e valor de p = 0,31. Os padrões de associação deste modelo revelam as chances relativas (para cada tipo de mobilidade futura) de se concordar com a idéia, ou de se discordar dela, de que “é preciso ter sorte para se subir na vida”. De acordo com este modelo, indivíduos que se imaginam imóveis no topo nos próximos anos apresentam chances maiores de concordar com esta idéia do que aqueles que se imaginam imóveis na base, ou que se imaginam experimentando algum tipo de mobilidade, no futuro. Indivíduos que se vêem imóveis no topo no futuro, por exemplo, têm três vezes mais chances de concordar com a idéia de que a sorte é necessária para se subir na vida 216 do que aqueles que se imaginam imóveis na base, ou que se imaginam experimentando algum tipo de mobilidade. As análises desta seção, assim como as da seção anterior, ajudam para que se definam algumas características de interesse por parte das pessoas que se imaginam no topo da hierarquia de classes durante os próximos dez anos. Estes indivíduos têm chances maiores do que outros de acreditar que é necessária uma combinação de sorte e de esforços para se vencer na vida. Eles estariam no topo e permaneceriam lá não apenas porque são esforçados, mas também porque têm sorte. 8 – Conclusão Além de fazer um resumo dos resultados das análises apresentadas acima, aproveitarei esta conclusão para propor algumas idéias que considero importantes sobre a relação entre grupos sociais e opiniões individuais. Os principais resultados são os seguintes: 1. Há correlação entre mobilidade social intergeracional e identificação político-partidária, e, ainda, opinião sobre política redistributiva. Indivíduos que se encontram imóveis no topo têm chances maiores de se identificarem com o PT e de serem a favor de políticas redistributivas do que os outros. Por sua vez, os indivíduos que vivenciaram mobilidade ascendente têm chances maiores de se identificarem com o PT e de serem a favor de políticas redistributivas do que aqueles que ficaram imóveis na base. Estas conclusões confirmam que a correlação entre classes sociais e opiniões políticas deve levar em conta os padrões de mobilidade social, ou seja, que se considerar não apenas a classe atual dos indivíduos, mas também sua classe de origem, para definir suas opiniões políticas. 2. Há correlação entre mobilidade social esperada para o futuro e opinião sobre conflitos de classe e de raça. Pessoas que acham que experimentarão algum tipo de mobilidade social no futuro têm chances maiores do que os demais de achar que há conflito entre as classes média e trabalhadora, e entre pretos e brancos. Além disso, os indivíduos que se imaginam imóveis no topo da hierarquia de classes no futuro também apresentam chances maiores, 217 do que aqueles que se imaginam imóveis na base, no futuro, de achar que há conflitos entre brancos e pretos no Brasil. Estes resultados sugerem que há uma tendência maior das pessoas que se imaginam mudando de classe no futuro a achar que há conflitos de raça e classe no país. O que as pessoas imaginam para o seu futuro parece correlacionar-se à maneira pela qual percebem os conflitos na sociedade brasileira. 3. Há correlação entre mobilidade futura e a opinião sobre a sorte e os esforços como fatores de promoção social. Pessoas que se imaginam imóveis no topo da hierarquia de classes têm chances maiores do que os demais de concordar que é necessário haver uma combinação de esforços e de sorte para se subir na vida. Gostaria de ressaltar que a metodologia utilizada – para que eu chegasse às conclusões acima – possibilitou as análises das taxas relativas de adesão a cada uma das opiniões estudadas. Estas taxas relativas, que são representadas pela associação estatística (pelas razões de chances), permitem a apreciação comparativa das chances relativas dos indivíduos em cada um dos tipos de mobilidade, passada ou futura. Embora envolvam modelos log-lineares relativamente complexos, estas comparações possibilitam um entendimento mais adequado das chances que cada um tem de concordar com as questões investigadas (identificação partidária, políticas redistributivas, a existência de confl itos de raça ou classe, e a opinião sobre a importância da sorte ou dos esforços individuais para se subir na vida) ou de discordar delas. As taxas puras e absolutas (percentuais) não permitiriam a análise comparativa que desenvolvi no presente capítulo. A primeira conclusão é importante porque mostra que as classes sociais não são entidades estáticas, mas sim dinâmicas, na medida em que se constituem de indivíduos de origens em classes distintas. Considerar esta heterogeneidade interna das classes, no que diz respeito à origem de seus membros, é essencial para se entender a correlação entre classe e opinião política. Tendo em vista que, no Brasil, as classes foram formadas por pessoas com origens sociais bastante distintas, novos estudos sobre classe e opinião política deveriam levar em conta os padrões de mobilidade social entre gerações, pois as pessoas cresceram em classes muito distintas das classes a que pertencem atualmente. Conforme as análises do presente capítulo, este fato é bastante significativo para que se entendam as opiniões políticas desses indivíduos. Novos estudos nesta 218 área deveriam continuar investigando esta questão para que se possa fazer avaliações cada vez melhores sobre as conexões entre classe, mobilidade e política. As duas últimas conclusões acima levam a indagações ainda mais complexas. Os resultados sugerem que as percepções sobre confl ito e sobre chances de vida estão relacionadas às classes imaginárias e aos padrões de mobilidade social futura, também imaginários. Com efeito, Robert Merton desenvolve uma teoria sobre os “grupos de referência” nos capítulos X e XI de seu livro, Social Theory and Social Structure, capítulos estes em que o autor procura fomentar várias proposições e uma taxonomia acerca da correlação entre atitudes, idéias e grupos sociais. Mostra, enfim, que, para se entenderem as opiniões e as idéias dos indivíduos, é necessário definir quais são os grupos (que, às vezes, podem ser até mesmo imaginários) aos quais eles se fi liam com freqüência ou aos quais se referem quando expressam estas opiniões – trata-se dos “grupos de referência”. Minhas análises mostram que a referência a classes reais ou imaginárias às quais os indivíduos se filiam correlaciona-se a opiniões sobre política, sobre conflito e sobre chances de vida. Assim, neste capítulo, procurei dar uma pequena contribuição ao estudo de um tema clássico da Sociologia: a relação entre grupos sociais e idéias individuais. Obviamente, para tanto, mais estudos fazem-se necessários, de modo que espero que outros pesquisadores continuem a investigar esse tema, procurando observar padrões empíricos e produzir generalizações teóricas. Referências bibliográficas AGRESTI, Alan. An Introduction to Categorical Data Analysis. Nova York: Willey, 1984. BENDIX, Reinhart e LIPSET, Seymour M. Social Mobility in Industrial Society. Berkeley: University of California Press, 1959. BÉNABOU, Roland, e OK, Efe. “Social Mobility and the Demand for Redistribution: The POUM Hypothesis”. NBER Working Paper # 6795, 1998. (http://www.nber.org/papers/w6795). BLAU, Peter. Exchange and Power in Social Life. Nova York: Wiley, 1966. BLAU, Peter. “Social Mobility and Interpersonal Relations.” American Sociological Review, 21, 1956, pp. 290-95. 219 BLAU, Peter e DUNCAN, Otis D. The American Occupational Structure. Nova York: Willey, 1967. CARDOSO, Ruth. Estrutura Familiar e Mobilidade Social: Estudo dos Japoneses no Estado de São Paulo. 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(baixo), e autôn. comércio 5 20 21 28 3 77 4 - Trabalhadores manuais 11 50 69 208 13 351 5 - Trabalhadores rurais 5 41 66 254 143 509 Total 37 150 182 530 167 1066 Mobilidade Futura (Esperada para os Próximos 10 anos) Classe Esperada para 2011 Classes Percebidas em 2001 1 2 3 4 5 Total 1 - Posição 1-2 (topo) 20 11 5 5 5 46 2 - Posição 3 28 23 19 16 11 97 3 - Posição 4 64 58 42 19 39 222 4 - Posição 5 60 89 98 154 79 480 5 - Posição 6-7 (base) 47 51 89 201 404 792 Total 219 232 253 395 538 1637 222 Educação, Trabalho e Desigualdade Social Jorge Alexandre Neves, Danielle Cireno Fernandes, Diogo Henrique Helal (Org.) Desigualdade e Desempenho: uma introdução à sociologia da escola brasileira Maria Ligia de Oliveira Barbosa Desemprego, uma construção social. São Paulo, Paris e Tóquio Nadya Araujo Guimarães As escolas dos dirigentes paulistas: Ensino médio, vestibular, desigualdade social Ana Maria Fonseca de Almeida Qualidade na Educação Fundamental Pública nas Capitais Brasileiras: Tendências, contextos e desafios Fátima Cristina de Mendonça Alves Ensaios de Estratificação Celi Scalon Escola e Destinos Femininos: São Paulo, 1950/1960 Graziela Serroni Perosa À Procura de Trabalho: Instituições do Mercado e Redes Nadya Araujo Guimarães Desigualdade de Oportunidades no Brasil Carlos Antonio Costa Ribeiro Trabalho: opção ou necessidade? Um século de informalidade no Rio de Janeiro Patrícia Sonia Silveira Rivero 1ª EDIÇÃO: IMPRESSÃO: FORMATO: TIPOLOGIA: PAPEL DA CAPA: PAPEL DO MIOLO: Maio, 2009 O Lutador 15,5 x 22,5 cm; 224 p. Bodoni Supremo 250 g/m2 Master 90 g/m2 PRODUÇÃO EDITORIAL: Daniela Antonaci & DIAGRAMAÇÃO: Milton Fernandes REVISÃO DE TEXTOS: Erick Ramalho CAPA ARGVMENTVM Editora