PDF - Jornal Plástico Bolha

Transcrição

PDF - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
aparentemente insólito...
Ano 2 - Número 16 - Setembro/2007
Distribuição Gratuita
Parte, sim, de uma
vontade de que o acaso
não seja em vão.
Toma a forma de trabalho, passos árduos de
uma penosa peregrinação.
Uma breve respiração entre as braçadas:
o caminho é longo, o
problema insolúvel e,
no momento, só há uma
saída: a próxima edição.
A capa dura
Essa necessidade — uma procura
Por definir o que é literatura —
É uma aventura mais uma tortura,
É pendurar o que não se pendura,
É tentar passar a limpo a rasura
De uma pintura numa sala escura.
Só o que há, na verdade, é a frescura
Das tintas, e, claro, a inútil moldura.
É loucura tentar numa leitura
Abarcar, da mistura, uma postura
Única, quase uma figura pura
Que se censura só numa estrutura.
Para alguns a cura da sepultura
É essa clausura que não perdura.
Gustavo Paes
Com solo, Consolo
Deixe eu deliciar esse cotovelo que tu tens. Cotovelo concreto e completo que tu tens, onde guardas ainda um pouco de simplicidade. O resto
do teu corpo é todo complicado, uma confusão de dentes e cabelos, cérebro
úmido e mal-entendido amarrado no nó dos intestinos. Amarrado à barriga,
amarrado ao útero inútil. Deixa eu tocar-te o cotovelo. Cotovelo belo como
aquela torta macieira que subias nos verões da tua infância. A macieira
tinha a mesma pele seca e umas cicatrizes que vocês deram uma à outra. E
tu ficavas escondida nos braços dela, e tu matavas as formigas. E comias
as maçãs, e comias as sementes das maçãs porque a tua mãe te disse que
uma pequena macieira cresceria dentro de ti se tu comesses as sementes das
maçãs. Era uma mentira de mãe, mas tornou-se verdade da filha quando arrancaram tua macieira numa tarde de raízes súbitas. Deixaram só as pétalas
caídas na bacia.
Eu quero despetalar-te. Deixa eu ver este teu cotovelo, maçaneta do teu
ser. Deixa eu entrar e assim entrando entender, talvez, a tua insistência nas
coisas que não existem.
Chegou!
Chloe Paisley
Heinz Langer
Ricardo Sternberg
No número passado, publicamos o primeiro poema que o poeta Ricardo Sternberg, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira
da Universidade de Toronto, enviou para o Plástico Bolha. Nesta edição, trazemos o segundo poema de Ricardo, que, junto com o anterior,
são parte da série These Stories (Estas Histórias). Ambos foram traduzidos por Marilena Moraes, com a supervisão de Paulo Henriques Britto.
Fate
Destino
Time passes and heals all wounds
then passes some more and scars
are effaced and the memory gone
of that most fateful afternoon
now that he is in a different city,
under a different climate and time zone
so that as he sits on the deck to survey
this coast, the very air seems saturated
with light, a golden pollen of promise
inducing a lotus-like torpor, a letting go
on the most curmudgeon of spirits,
never mind this man, inveterate optimist
who believes, ha ha ha his time has come
at last, his ship has sailed into port
when off camera, of course, some malignant
agent is moving and a dark cloud
is about to blot out his sun.
O tempo passa e cura todas as feridas
passa mais um tempo e as cicatrizes
se apagam e vai-se a lembrança daquela tarde fatal
agora que ele está em outra cidade,
num outro clima, num outro fuso horário
e assim quando ele senta no deque para observar
o mar, o próprio ar parece saturado
de luz e um pólen dourado de promessa
induz a um torpor como o do lótus, uma distensão
mesmo na pessoa mais mal-humorada,
quanto mais neste homem, um otimista inveterado
que acredita que, aha, chegou a hora dele
finalmente, que seu navio chegou ao porto
quando às escondidas, naturalmente, um agente maligno
se movimenta e uma nuvem escura
está prestes a esconder seu sol.
NESTA EDIÇÃO
armando nogueira ana chiara clÁudia castro rafael huguenin lucas viriato joÃo lima
nastassja pugliese heinz langer gustavo paes andrÉ sigaud mauro gaspar fred coelho
gregÓrio duvivier isabel wilker angelo abu joÃo francisco c. ribeiro
marcela s. rosa
henry pablo juliana cesar marilena moraes paulo h. motta lasana lukata luiz coelho
rodrigo n.c. chiara di axox ricardo sternberg chloe paisley isabel diegues regina pombo
Inefável
Aos alunos com carinho
2
Comecei a ensinar ainda menina. Primeiro, para
as almofadas de meu quarto de criança. Depois,
quando apenas alguns anos me separavam dos olhos
curiosos que tinha a minha frente. Passados quinze
anos como professora nesta universidade, talvez
possa perguntar: o que é ensinar filosofia? Há uma
grande diferença entre o ensino que hoje realizo e
minha brincadeira infantil de falar com as almofadas? Não seria esse prazer primevo a antecipação,
já a elaboração da tarefa que um dia iria realizar e à
qual dedicaria minha vida inteiramente? Hoje vejo
que sim. Porque no trabalho de formação filosófica não é o conteúdo o que mais importa, aquilo
que podemos chamar de saber e que traz consigo,
freqüentemente, um poder mutilante e nefasto. Em
seu sentido mais elevado, ensinar filosofia (se isto é
possível) é, ao mesmo tempo, ter o privilégio de viver
e suscitar uma experiência de parada, de interrupção
no curso das atividades práticas e automáticas de
nossas vidas, para que um pouco de ar fresco, livre,
possa atravessar.
Desde sua origem, os grandes pensadores
concluíram que o pensamento puro é desprovido de
utilidade. Ele é um momento de crítica, de indagação
sobre o que somos e desejamos profundamente. E o
professor enfrenta, a cada aula, o desafio de despertar
esse sutil questionamento.
Ensinar é, antes de tudo, amar. Entrar num
movimento em que nos despojamos de tudo que
nos caracteriza como um sujeito pequeno, “humano
demasiado humano”, nas palavras de Nietzsche, e,
nessa abertura, pensar-com, pensar junto aos espíritos com os quais o acaso nos colocou em relação.
Espíritos que também se abrem para o pensamento
que, de fora, os transforma, irreversivelmente.
Assim, o trabalho do professor – que se
inicia do zero a cada vez que ele adentra o espaço
sagrado da sala, com as carteiras e a sua mesa, o
quadro e o giz – se assemelha ao de um baloeiro que
ensaia fazer subir um balão. Pois uma aula é como
um balão. Se é boa, nos leva ao céu, para além de
nós mesmos, até o reino mais perfeito da liberdade.
Quando o balão consegue subir? Ele sobe se, inexplicavelmente, tanto o professor quanto os alunos,
encantados com a magia misteriosa das palavras,
tocam o insondável: a pergunta, sem resposta, sobre
o sentido de nossas vidas.
Cláudia Castro
Professora do departamento de Filosofia da PUC-Rio
PSICOLOGIA
Rosana de Oliveira Guia
CRP: 05-32053
Psicóloga clínica: individual, casal e família.
Rua Maria Quitéria 74, conj. 202, sala 9 - Ipanema, Rio de Janeiro
tel.: 7817-3502
e-mail: [email protected]
O impossível coice de um cavalo-marinho
Abriu a ostra onde havia pérola
E se eu não tivesse naufragado
Jamais veria esta cena
E não teria este colar de ilusões para aliviar
A aspereza dessas noites nervosas em que o poema não vem
Ou rebenta ao mínimo ruído como se fosse solitária
E o que poderia ser tudo metros mais de quinze
No papel é pouco milímetros quase nada
E em mim fica presa uma enorme madrugada
Inefável indizível cá por dentro deformada
O fato é que agora vôo além
Sou um feto retrocedente à vida
E fito daqui com muito desdém
A foto do esboço já distorcida
André Sigaud
Lasana Lukata
Transrepetição
Subjetivas
por Gregório Duvivier
Manifesto idiossincrático
para você que sempre quis ter um movimento literário só seu e de mais ninguém
1. Está proibido a qualquer outro poeta senão o autor deste
manifesto aderir ao movimento idiossincrático. Caso contrário,
o movimento deixará de ser idiossincrático.
2. Na poesia idiossincrática estão proibidas as palavras “castelo”,
“querubim”, “alma”, “mente” e a palavra “vaso”, esta última
sendo permitida quando com a acepção de vaso sanitário.
3. Estão abolidas as reticências, por serem estas cafonas.
4. O poema-piada só é permitido no caso da piada ser, de fato,
engraçada.
5. Está proibido ao poeta idiossincrático abordar desconhecidos
na rua com a pergunta “você curte poesia?”. Também está
proibido ao mesmo distribuir filipetas, de qualquer tipo.
6. A apresentações em recitais de poesia também está proibida
pelo simples fato do autor deste manifesto achá-los um porre.
7. O verbo “poetar” ou qualquer neologismo do tipo é
considerado lamentável.
8. Os óculos de aro grosso são dispensáveis, assim como as
gravatas coloridas ou qualquer coisa que tenha como objetivo
fazer o poeta ter cara de poeta.
9. Por fim, é considerada detestável a escrita de manifestos,
sendo este, obviamente, uma exceção.
plástico bolha
produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Editor
Lucas Viriato
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho
Gregório Duvivier
Isabel Diegues
Comissão
Constanza de Córdova
Gregório Duvivier
Mauro Rebello
Julia Barbosa
Isabel Wilker
Edson Santana
Projeto Gráfico
Joana Petersen
Com
o poema trans
piro e trans
formo a imagem
sonora
transpasso
o limite trans
firo a metaterreno trans
porto o som
em círculos
transversos
trans
torno novo
o caminho
de quem trans
corre o espaço
rumo à lógica trans
figurada da
trans
codificação
de uma
idéia-som
transubstancio
trans
posiciono
o percurso e
transato
des
transo o poema
Isabel Diegues
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
Coordenação
Paulo Gravina
Lucas Viriato
Revisão
Marilena Moraes
Rubiane Valério
Rafael Anselmé
Gabriel Matos
Equipe
Márcia Brito
Esthér Oliver
Beatriz Pedras
Paloma Espínola
Fernando Fernandes
Apoiadores
Luisa Noronha
Marília Rothier
Envie seus textos para: [email protected]
Amor de armário
Que frio estava fazendo! E aquelas portas de
madeira prensada não ajudavam a manter o clima
dentro do armário mais aconchegante. Ainda mais
por se tratar de um armário de cozinha, onde tudo
é azulejado e frio. E, cá pra nós, aquelas dobradiças
já deveriam ter sido trocadas havia um bom tempo,
a porta mal fechava. E isso só agravava em muito o
frio que os produtos guardados no armário sentiam
naquelas longas noites de outono – que estavam mais
para noites de inverno.
Tudo começou após uma ida ao supermercado. Compras do mês. Ele sabia muito bem como
era aquilo. De repente, a prateleira que estava quase
vazia, privativa para aqueles produtos que não foram
consumidos, se enchia de novidades. E ele sempre
sobrava. Para falar a verdade, ele não sabia nem por
que havia sido comprado. Ninguém naquela casa
gostava de cereal de aveia, e isso era certeza.
Biscoitos diversos, fermento em pó, alguns
produtos de compota, torradas, adoçante líquido,
palitos; Nescau era na prateleira de baixo... Em
meio àquele redemoinho de novos colegas, algo
em especial havia lhe chamado a atenção: aquela
pequenina caixinha vermelha de uvas passas. Como
era graciosa aquela rapariga da embalagem! Cabelos
morenos longos, pele alva, bem vestida. Muito nova
para ele, pensou, e provavelmente deveria ser de
consumo rápido. Se ficassem uma semana juntos
naquela prateleira seria muito.
Em poucos minutos, todos os produtos foram guardados em seus devidos lugares para serem
esquecidos ali até a hora que alguém sentisse fome
ou a empregada resolvesse fazer um bolo.
Naquela mesma noite, algo inusitado, ou nem
tanto, sucedeu. Uma barata das grandes entrou
junto com o frio pela porta mal fechada. A rapariga,
como toda rapariga, se assustou. Ao perceber o
nervosismo da donzela, ele, velho de armário, se
pôs a acalmá-la:
— Acalme-se. Isso acontece de vez em quando.
Não tem com o que se preocupar. Você está bem
fechada?
— Estou... Quer dizer, acho que estou — respondeu aflita.
— Estou certo de que deve estar. Produtos
recém-chegados raramente vêm abertos — disse,
tentando abrandar o nervosismo da moça.
— Mas... Mas... Ela está em cima de mim...
— Isso é porque você provavelmente deve
ser docinha. Deve ter ficado junto de alguma amiga
aberta no supermercado e pegou o cheiro. Acontece.
Não há com o que se preocupar; logo, logo ela vai
embora.
Eles ficaram juntos durante toda a noite. Uma
hora a barata se foi, mas eles continuaram um com
o outro até adormecerem.
No dia seguinte, acordaram bem cedo, devido
à claridade que entrava pela abertura da porta.
— É claro aqui — disse a moça com voz de
quem acaba de acordar.
— Claro pela manhã e frio à noite! Esta porta
já devia ter sido trocada há muito tempo, mas aqui
eles não dão muita atenção a esses detalhes.
Depois de algum tempo, ela continuou:
— Obrigada por ontem à noite. Você foi...
muito gentil.
— Que isso! Não fiz mais do que a minha
obrigação. Eu sei como são essas coisas. Já estive
numa prateleira de supermercado uma vez, mas isso
faz muito tempo. Sei como é difícil esse período de
adaptação. Estamos acostumados a vida inteira a ver
e interagir com produtos que são milimetricamente
idênticos a nós. Mas aí, de repente, alguém nos tira
de nossa prateleira, nos joga num carrinho. Daí pra
frente é esteira, leitura ótica no nosso código de
barra (constrangedor!), saco plástico, mala do carro
sacudindo e, sem mais nem menos, caímos aqui,
nesta prateleira fria, repleta de produtos que nunca
imaginamos existir...
— Repleta de baratas também!
— Elas não costumam vir muito aqui — disse,
sorrindo — mas, de qualquer forma, uma hora nos
acostumamos com elas.
— Tudo é tão traumático. Se não fosse você
ontem à noite, eu não sei como teria agüentado. E
eu não sei nem o seu nome.
— Pode me chamar de Quaker. E você? Como
se chama?
— Bem, quando fui retirada de minha prateleira, falaram “Há quanto tempo não via essas passas!”.
Acho que meu nome é Passas.
— Não, “passas” é o que você é. Do mesmo
jeito que eu sou um cereal de aveia. O que tem escrito
na sua embalagem? – A forma como Quaker falava
era culta e explicativa, como se fosse portador de
grandes conhecimentos. E como isso encantava a
insegura rapariga.
— Deixe-me ver... Sunrise Raisains Secs, não
sei se é assim que se pronuncia.
— Um nome em francês! Encantador!
Quaker e Sunrise continuaram conversando
por muito tempo. Falavam sobre tudo: experiências
pessoais, memórias do supermercado, a vida naquela
prateleira. Quaker contava para ela os hábitos da
família e juntos ficavam imaginando o que haveria
nas outras prateleiras.
Uma hora, já de noitinha, o já esperado aconteceu. Eles estavam juntos, da mesma forma como
tinham sido guardados. Pela porta mal fechada,
avistavam a janela da cozinha e, através dela, um
magnífico céu estrelado. O frio também contribuía
para uma atmosfera bem romântica.
— Posso te perguntar uma coisa? — titubeou
Sunrise com sua voz graciosa.
— Claro.
— Você acredita em reciclagem?
— Não sei. Não costumo pensar muito nessas
coisas.
— Me acha boba? — perguntou, insegura.
— De modo algum. Acho que o bobo devo
ser eu, por ser tão objetivo e divagar pouco sobre a
vida. Você acredita?
— Acredito, sim. Eu acho que não pode tudo
acabar assim, simplesmente indo pro lixo. Imagino
que deve ter algo mais, algo além de tudo isso que
conhecemos.
— É capaz. Não costumo pensar muito sobre
isso... — Do mesmo jeito que ela se encantava com
toda a sabedoria de Quaker, ele era fisgado pelo ar
misterioso que ela exalava em suas palavras.
— Sabe, ontem à noite você me chamou de
docinha... — disse em tom apaixonado.
— Chamei? Desculpe a indeli...
— Não precisa se desculpar. (pequena pausa)
— Eu gostei.
E, daí em diante, eles se amaram como um
casal em lua-de-mel. Ficaram se amando, olhando
para as estrelas e, enquanto todos os produtos daquele
armário sentiam um frio danado, eles reclamavam do
calor. Ela pouco se importava com a idade avançada
dele, até gostava de seus cabelos brancos. E ele nunca
havia imaginado que conseguiria moça tão bela em
toda a sua vida.
O tempo foi passando e os dois consolidavam
a relação. Mesmo aparentemente não tendo nada em
comum, descobriram juntos que ambos eram ricos
em fibras. Mas não era só isso que os unia. Os gostos
musicais e artísticos também. Apesar de que o sonho
da vida de Sunrise era se tornar uma latinha de sopa
Campbell de Andy Warhol. Já Quaker não apreciava
muito o artista, achava que ele os expunha demais e,
assim, deturpava a condição de produto, inerente a
todos eles. Mas não era Warhol o maior motivador
das brigas do casal:
— Você acha que eu não percebo como você
olha pra Gina dos palitos??? — revelou um dia, em
tom irritado.
— Como? Ah, pelo amor de Deus! Deixe de
ser ciumenta dessa maneira! Você enxerga situações
que não existem!
— Não existem?!? Quaker, eu te conheço. É só
passar uma loirinha que você se assanha todo.
— E você? Já reparou como aqueles “monges”
do chocolate em pó te comem com os olhos? De
monges não têm é nada. São uns safados, isso sim!
— Ei, fale baixo. Não queremos criar um clima
ruim na prateleira.
Mas essas discussões eram passageiras e, na
verdade, só adicionavam aquele ciúme normal, que
apimenta e estimula os relacionamentos. E por falar
em apimentado...
— E aí, garotão? Não tem caloria pra noite toda
não? — disse com um sorrisinho na boca.
— Vou te mostrar quantas gramas tem aqui
nessa embalagem!
— Levadinho!
A idade avançada de Quaker não atrapalhava
em nada a vida sexual do casal. Ele era uma máquina
e ela, insaciável.
De vez em quando, alguém abria o armário
e pegava um biscoito ou o adoçante. E foi numa
dessas vezes que passou pela primeira vez na cabeça
de Quaker o que ele sempre soube: aquele amor, a
vida a dois, não iria durar para sempre. Ele sempre
soube, desde a primeira vez que viu Sunrise, que uma
hora ela seria consumida e ele ficaria ali, esquecido no
armário, como sempre. Isso já havia ocorrido diversas vezes. Nenhum produto das compras dele ainda
estava ali. Foram todos embora aos pouquinhos, ou
comidos no almoço, ou num lanchinho rápido. E ele
ali, resignado a permanecer esquecido na prateleira.
Por vezes, pensava que tinha sido comprado por
engano e que iria passar da validade ali, sem que
ninguém o notasse.
Como seria difícil suportar a solidão no armário
sem ela! E depois que ela se fosse, também iriam
todos os que conviveram com eles naquele armário.
Chegariam novos produtos, que não fariam a menor
idéia de quem era Sunrise e do que o amor deles tinha
representado. Chegaria o dia em que só ele saberia
que esse amor tinha existido, e — quem sabe — ele
não tivesse existido só na sua cabeça, já que ninguém
mais partilharia com ele essas memórias. Ficaria velho
e perturbado.
Chegará o dia — porque um dia todos os dias
chegarão, até este — em que consertarão a dobradiça
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da porta. Ou — quem sabe — comprarão armários
novos? E ele se lembrará dela, do frio que sentiam,
das estrelas que viam através da janela. E sentirá um
aperto forte no fundo do peito, uma vontade apenas
de poder contar pra ela essa novidade. Chorará por
horas, dias sem fim. Chegará até mesmo — veja
só que besteira — a desejar nunca tê-la conhecido,
para não ficar condenado a uma vida posterior de
saudades e sofrimento. Mas, no fundo, sabia que só
conhecera o que é a vida naquele dia de compras,
quando avistou pela primeira vez aquela menina
ainda sem nome. Aquela menina apavorada com a
barata em cima dela.
Só de imaginar isso tudo, Quaker emudecia.
— O que houve, amor? Por que você está
com essa cara?
— Nada não, querida. Pensando. Será mesmo
que existe aquela história de reciclagem? Será que no
passado a gente não pode ter sido um produto só?
— Às vezes, eu penso nisso. Quem sabe, no
futuro, nós não nos tornaremos os dois uma só
embalagem, guardando o mesmo produto?
Pensar no futuro era fatal para Quaker. Todos
os fantasmas da separação voltavam à sua cabeça
e, ao seu rosto, voltava aquela expressão que tanto
incomodava Sunrise.
Quando ela ia perguntar novamente sobre
o que ele estava pensando dentro daquele chapéu,
foi interrompida. A porta se abriu e a empregada
enfiou o rosto na frente da prateleira. A primeira a ir
embora foi Sunrise, quando ainda estava pensando
no que afligia o companheiro. Depois, foi a vez do
pote de açúcar — mas este sabia que iria retornar.
E, por fim, nosso querido Quaker, que também faria
parte da receita!
É, por essa ele não esperava. Nunca imaginou
que chegaria o dia em que seria consumido. E ainda
mais: não foi preciso se separar de Sunrise. Seriam
consumidos juntos, tendo seu amor eternizado.
Ingredientes:
200g de flocos de aveia
200ml de água
Uma casca de laranja ou de limão
Duas maçãs descascadas e picadas
Uma colher de chá de açúcar
Uma colher de chá de erva-doce
50g de passas de uvas
Modo de preparo:
1. Cozinhe os flocos de aveia em água fervendo com uma casca de limão.
2. Junte as maçãs picadas, as passas de uva
e a erva-doce.
3. Misture, adicione açúcar e introduza numa
forma untada.
4. Asse em forno moderado durante 20
minutos.
Esta é a história do amor entre Quaker e
Sunrise, que tiveram o seu conteúdo unido numa
deliciosa receita de bolo de aveia com passas. Suas
embalagens foram jogadas juntas na lata de lixo. Se
foram reciclados ou não, ninguém sabe. E, mesmo
se alguém soubesse, não viria ao caso estragar os
mistérios da vida.
Lucas Viriato
3
Aquela lâmpada no teto espreita-me.
Meus pensamentos vão borboletear
fora, em torno dela
como um estouvado besouro
girando
semelhante a não sei que ritual
pitoresco, profano.
A cabeça pesada
que os ombros não suportam
pendurada ao corpo.
O papel intacto,destemido.
A inspiração prostrada
num uníssono copo de outono.
Experimento a tênue ampulheta:
cinza primeva
brinca nos olhos secretos.
Quase inverno e estio
fim da linha,desvio.
4
Mas na paisagem enviesada
na geometria infalível do quarto
bem ali, está a primavera que recende
e se evola num prado
que se sobreporá
num outro viés
onde quase posso ver
as esfinges e pirâmides de Pessoa.
Sem palavras
Você começou a nascer no
dia em que me dei um presente.
E agora desanda desanda e nada
estanca. Escrevo na parede de pedra. Texto.Teso. Tudo. e logo saio.
O alívio ocupa o que me aflige.
Chego em casa às quatro. No armário café, pão e queijo. O relógio
de ponteiro parado às doze. Mudo
como a sala. escrevo escrevo escrevo e nada pára. Meu Deus não
pára. Na mesa o caderno guarda
todas as palavras a lápis, caneta.
São muitas e estão soltas. Folhas
agora marcadas por palavras palavras palavras. Guardei pra você por
todos esses anos. A boca sem voz.
Aqui ao lado da sua cama procuro
seu lábio. Desenho com o dedo o
sorriso que me lembro. E me levo
ao jardim onde brincava. E rodava
rodava rodava quando a vida nada
me custava. Só soava e se anunciava. Um mar de palavras palavras
Regina Pombo
João Lima
mulheres-damas
por
Ana Chiara
Orides
Orides
Bebo pouco em tua fonte
Senhora
Das feras
E esferas
Agora vou enfiar a língua
no céu da tua pouca palavra
da tua economia
fazer carnaval...
Puzzles
Bendito seja o Benedito, de Spinoza
Dizem que temos sorte por vivermos em uma época em que a filosofia é considerada um
trabalho inofensivo. No outono de 1676, Benedito de Spinoza tinha motivos suficientes para
temer por sua própria vida. Um de seus amigos tinha sido executado cruelmente não fazia
muito tempo, e outro, morrera na prisão. Spinoza, “o judeu ateu”, era “o homem mais ímpio
e mais perigoso de todo o século”.
Ele vivia na Holanda, numa casa de tijolos vermelhos a beira do canal Paviljoensgracht,
numa cidade povoada de moinhos de vento. Seus amigos e os curiosos que faziam visitas diziam
ver nele algo profundamente enigmático e o descreviam como possuidor de uma personalidade
que misturava estranhamente cuidado, coragem, modéstia e arrogância. Aparentava uma frieza
lógica e tinha uma força apaixonadamente revolucionária. Ele era um herege com percepções
de um verdadeiro beato, era um santo sem religião. Mas, apesar de seu carisma, Spinoza tinha
uma facilidade tremenda de fazer inimigos.
Com sete anos de idade, no ano da morte de sua mãe, Spinoza entrou na escola judaica,
onde teve uma educação tão profunda quanto estreita. Memorizava a Bíblia, estudava hebreu,
aprendia sobre os costumes judaicos. Ele era um estudante excepcionalmente dotado em suas
capacidades intelectuais, e logo atraiu a atenção dos líderes da comunidade, principalmente,
de Saul Morteira, rabino mais consagrado de Amsterdam. Morteira via Spinoza como o pupilo
que, um dia, herdaria seu cargo. Mas o pequeno estudante não procurava um mestre. Decidido
a ler a Bíblia por conta própria, passou a não sentir mais a necessidade de ouvir as interpretações de Morteira. Spinoza, depois de ter afirmado publicamente que as escrituras tinham
intenção não de educar, mas de fazer os homens fiéis e obedientes ao poder das autoridades
religiosas, perdeu não só a admiração de Morteira como também ganhou muitos adversários.
Ele afirmava sem balbucios que Deus era um ser corpóreo, e que não havia nada na Bíblia
provando o contrário.
No dia 27 de julho de 1656, na sinagoga de Amsterdam era lida sua sentença de excomunhão:
“...sabendo das diabólicas opiniões de Spinoza, depois de termos tentado, sem sucesso, livrá-lo
deste caminho do mal... nós decidimos que Spinoza deve ser excomungado e expulso do povo
de Israel. Ele deve ser maldito de dia, e de noite. Maldito quando se deita e quando se levanta...
inflame-se o furor de Adonai contra esse homem...advertindo que ninguém pode falar, nem
escrever a ele, nem conceder-lhe nenhum favor. Não se pode estar, dele, uma distância menor
do que quatro côvados, nem se pode ler papel algum escrito por ele.” Spinoza tinha, neste dia,
23 anos e uma desculpa a mais para ir na direção de sua própria liberdade de pensar.
Tamanha era a pressão contra o filósofo que, um dia, um judeu fanático tenta esfaqueá-lo.
Spinoza sai ileso do ataque e com um corte nas costas de seu paletó. Ardiloso, ele continua
a usar a vestimenta, mesmo rasgada, e quando o perguntam por que não o costura, responde
acidamente: é para que vocês possam ver como é perigoso pensar... Em 1661, ele se muda
para Rijnsburg e começa a polir lentes para sobreviver. Torna-se famoso por esse trabalho,
que o consagrou como capaz de produzir, nas lentes, uma geometria perfeita. Quando seu pai
faleceu, Benedito deixou toda herança para a irmã, tendo pegado para si apenas uma cama.
Ele parecia não ter avareza nem desejo de riqueza e honrarias. Era movido por suas próprias
regras de vida e pelo desejo intenso de pensar.
As cartas entre Spinoza e seus correspondentes formavam os ciclos clandestinos. Elas
eram fechadas com a cera, onde se podia ler a marca do carimbo “cuidado” e as iniciais de
Spinoza. Nelas estavam sendo escritos conceitos revolucionários para a história da filosofia
e do mundo. Dentre os correspondentes estavam o filósofo Leibniz, o cientista Huygens, o
secretário da Royal Society de Londres – Henrich Oldenburg, e o médico Lodewijik Meijer,
grandes intelectuais do século XVII.
Além de escrever cartas e fumar cachimbo, um dos passatempos prediletos de Spinoza
era colocar duas aranhas num vaso e vê-las lutarem, brigando até a morte. Brincadeira sarcástica que mostrava seu sangue frio frente à finitude e ao fatalismo das leis naturais. Spinoza
também arriscava na pintura. Os últimos anos de sua vida foram vividos em Haia, na casa do
pintor Hendrik van der Spyck. Talvez inspirado pelo ambiente, nessa época Spinoza pintou
uma série de croquis representando um personagem da lenda de Masaniello que conta a
história de Tommaso, um pescador italiano que é assassinado na rua enquanto lutava numa
revolução. Colerus, responsável pela biografia do filósofo, conta que os desenhos reproduziam
a iconografia da lenda, com redes de pesca e elementos deste tipo, mas que o rosto não era o
de Tommaso, mas de Spinoza ele mesmo – era uma série de auto-retratos.
Na tarde do dia 21 de fevereiro de 1677, enquanto Hendrik vai com sua esposa à igreja,
Spinoza recebe a visita de um médico desconhecido. Na volta da missa, o casal encontra-o
sozinho, morto. O “doutor”, que alguns historiadores pensavam ser Lodewijk Meyer, amigo
de Spinoza, era Schüller - indivíduo mandado à Haia por Leibniz. As análises das cartas entre
Leibniz e Schüller denunciam o médico, que tinha conhecimentos de alquimia. Schüller escreve a Leibniz contando que após ter vasculhado todos os papéis de Spinoza, destruíra alguns,
mas não fora capaz de encontrar o manuscrito de suas obras. Apesar das evidências, elas não
passam de especulações e a única coisa que se sabe é o fato de Leibniz ter tido ciência de que
Schüller iria visitar Spinoza que, por coincidência ou não, morrera no dia da visita. Spinoza,
que sabia dos perigos que corria, havia escrito um testamento onde deixava uma escrivaninha
de madeira, trancada com chave, para um amigo. O móvel então, depois de atravessar silenciosamente os canais de Amsterdam, chegou às mãos do editor.
Alguns anos depois, celebra-se o pensamento de Benedito, que sai da clandestinidade.
Inclusive Hegel chega a dizer que “ser Spinozista é o ponto de partida essencial para toda
filosofia.” E, depois que liberdade de expressão já tinha sido conquistada como um direito
fundamental, Einstein, quando o perguntam sobre sua fé, responde: “eu acredito no Deus de
Spinoza.” Eternizando-se junto à filosofia na luta por pensar, a história de vida de Spinoza
é uma herança preciosa. Herança dele, que viveu com três paletós, dois pares de sapato,
sete camisas, um retrato, um pequeno jogo de xadrez, um travesseiro, uma manta e cento e
sessenta livros.
Nastassja de Saramago A. Pugliese
Aluna da Pós-Graduação de Filosofia da PUC-Rio
INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER
FOTOGRAMA VI:
A ESCRITA COMO MÚSICA
As palavras se movem, a música se move. A
base da escrita sampler está calcada na idéia de que
literatura é movimento, de que a literatura está em
movimento contínuo, em relação de interferência e
reflexão permanente de vida e do seu tempo. Tradição
e memória estão inscritas em determinado momento
histórico, mas estão “acontecendo” agora, no instante
da escrita.
A literatura é, a música é. Sou, logo não serei mais,
apenas outro remix de deus perdido na espécie, solto
no ar, flutuando no texto do homem, fluindo no som
da música que não retorna, porque é eternamente, é.
Um novo procedimento, que não é novo. Uma nova
estética, que não é propriamente nova. Uma nova possibilidade, que nova também não é. Mas, sim, um ânimo novo, um novo ar, uma nova respiração, não mais
artificial, fora dos aparelhos da morte. Conectado mas
desligado, antenado mas descorporativado, incorporado mas desenraizado, ativado mas des-hierarquizado.
A linguagem não indica o sentido, ela está no
lugar do sentido.
O paralelo da escrita com a música tem como
base a revolução causada pelos novos meios eletrônicos
de produção musical. Abrem-se sulcos no paradigma
da criação musical. Isso, é claro, desconsiderando
purismos, preconceitos, pudores e hierarquias que
pressupõem que a linguagem pára onde nossos ouvidos alcançam, ou seja, no limite da nossa recepção.
O elemento mais importante desse novo sistema de
produção é o sampler: um gravador em que se armazena qualquer espécie de som e que permite reproduzir a gravação da forma que convier, no tom desejado, seja ela um ruído, uma música, um latido. Se é
uma música, pode-se utilizar um trecho determinado
e repeti-lo em loops incessantes, ou silenciar instrumentos para deixar apenas uma batida específica da
bateria de Stewart Copeland ou um riff de guitarra de
Jards Macalé ou uma linha do baixo de Bootsy Colins,
ou um fraseado do sax de John Coltrane.
A partir desse novo horizonte, ganha força a cultura hip-hop, que emerge das periferias e que tem no
rap o seu veio musical. Ganha força a música eletrônica. Ganha força quem está interessado na linguagem
como possibilidade. E, fundamentalmente, ganha
força a idéia de que é possível combater o poder das
corporações através de comunidades que hoje são comunidades locais no sentido de afinidade, espaço de
interesse e afeto comum, não mais no sentido geográfico. Mesmo sem propriedade, rappers e DJs se apropriam dos meios de produção tecnológicos.
Em 96, DJ Shadow lança “Endtroducing...” (introduzindo o final), disco que é o marco da música
eletrônica recente, baseado na estética sampler. Uma
obra feita como uma colcha de retalhos que se torna,
através de sua construção, um tecido entrelaçado,
dando forma e corpo a uma outra colcha. Uma colcha
em que os retalhos estão presentes, integrados e ativos
num material que se desprende do material anterior
e da pressuposta individualidade de cada fragmento.
Shadow propõe, e consegue, criar uma nova impressão,
um corpo fundado na invasão do outro.
Escrita e música se movimentam em temporalidades simultâneas, num fluxo fragmentado e sensorial
constante.
Em 1964, um aspirante a sampleador flerta, através
da poesia, com o procedimento sampler via computador. Ele pensa: é honesto com os outros poetas e com
os mestres mortos usar o sampler para escrever? Ouve
música montada com ruídos eletrônicos, estalidos, barulhos de rua, trechos de velhas gravações e fragmentos
de discursos. Faz uma aproximação da escrita com a
música eletrônica em sua vertente erudita e experimental. Stockhausen é seu escritor predileto. Eliot e Pound,
seus músicos de cabeceira.
O argumento: se a música traz os “cortes” da vida,
o que está fora, ruídos, barulhos, máquinas, silêncios
que não são “traduzidos” pela linguagem, e sim incorporados, por que não operá-los na escrita? Não é tempo
de a poesia se equiparar à música?
Não há corpos intactos para a escrita sampler.
O FIM É O MEIO
Esqueça o que foi dito, o que já está escrito. Esqueça para lembrar. Escrever é esquecer.
Este texto não é meu, não tem posse nem origem.
É preciso aprender todos os movimentos para esquecê-los. A música toca sozinha, através (de mim).
Falamos através, com e a partir de irmãos de espírito, invasores de corpos também invadidos aqui e
sempre: Walter Benjamin, Ricardo Piglia, Helio Oiticica, Jorge Luis Borges, Silviano Santiago, DJ Shadow,
Samuel Beckett, Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche,
Thomas Bernhard, Fernando Pessoa, Artur Miró &
Matafina, Glauber Rocha, Antonin Artaud, Bruce Chatwin,
T.S. Eliot, Franz Kafka.
INSPIRAÇÃO: todos os artistas sampleados pela
escrita sampler — essa é a homenagem literária suprema, não importa o que digam os seus advogados.
Além dos já citados, esta invasão de corpos contém samples de:
Ana Paula Kiffer, Artur Omar, Bertolt Brecht,
Claude Lévi-Strauss, Eneida Maria de Souza, Hans Ulrich Gumbrecht, Jacques Derrida, Jacques Rancière,
Jean Baudrillard, Jean-François Lyotard, J.M. Coetzee,
Karl Kraus, Marília Rothier Cardoso, Michel de Certeau, Michel Foucault, Michel Schneider, Pierre Joseph
Proudhon.
NOSSA NATUREZA ESTÁ NO MOVIMENTO; A CALMA COMPLETA É A MORTE. ESTE
TEXTO NÃO ACABA AQUI.
Os invasores: Frederico Coelho & Mauro Gaspar
Safeganistão/Dar es Salaam-Cabana, 31 de maio
de um 2005 sem fim.
Crawling
Tem uma força forte que me prende ao
chão desta minha casa.
Como um apaixonado deita em cima do
seu objeto de paixão, eu deito sobre a minha cama
ou me estendo pelo chão, fazendo uma verdadeira
ode existencial à vida horizontal.
Me deleito ao sentir o roçar das almofadas de veludo entre as coxas, ou ao perceber o
quão macios são os travesseiros de penas.
Ao ler, estudar ou jogar videogame, fico
sempre de bruços, com a barriga apoiada no
chão.
Quando tomo banho, sento no box e lavo
a cabeça deixando a água do chuveiro cair em
minha barriga.
Outro dia eu resolvi sair de casa, estava
com muita saudade das gaivotas da praia e pretendia me estender até lá para vê-las voarem em V.
Me vesti como sempre, sentada no chão,
primeiro uma perna depois a outra , levantando
os quadris, apoiada nos ombros e pés. Coloco
calça depois blusa.
Após calçar os sapatos, na intenção de me
levantar para abrir a fechadura de cima da porta, caio desajeitosamente, o que me rende uma
enorme fenda sanguinolenta na testa.
Passada a tonteira, faço uma nova tentativa e me rendo.
Parece que desaprendi de andar.
Marcela Sperandio Rosa
5
Sem nome, mas com motivo
Pensei que sentiria falta
Daquele nosso tempo açucarado
Daquele tempo arrumado, arranjado
De um cigarro tragado, apagado
Pensei que estava triste
Mas somente não estava
Sua ausência nunca foi maior que minha própria ausência
A lã que nos segurava, que nos atava
Na verdade nunca esteve amarrada
Solta no ar ela pairava sobre nossas cabeças tão mal elaboradas.
Juliana Cesar
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Parto astrológico
– Amor, tô com dificuldades de engravidar.
– Eu também.
– Hã?
– Quer dizer, tô com dificuldades de engravidar você.
– Mas a culpa não é sua.
– Com certeza!
– Como assim, é minha?!
– Hã! Não, não é minha nem sua.
– Pois é.
– Pois é... Vamos adotar?
– Não. Não é a mesma coisa. Eu quero um bebê que
saia das minhas entranhas, entende?
– Eu também. Eu também gostaria. Você já ouviu
falar em inseminação artificial?
– Nem me venha com esses chás malucos da sua
mãe! Da última vez, posei de rainha por duas semanas com
aquele tal de “chá de sena”. Nem lembro pra que aquela
porcaria servia.
– Você tava meio gordinha.
– Gordo é você! Eu tava um pouquinho acima do
meu peso.
– Tudo bem. Não vamos mudar de assunto. Vamos
falar do meu filho.
– Seu filho! Você tem um filho?
– Não meu amor, o nosso filho, o filho que queremos ter.
– Ah! Então tá, então. Mas você quis dizer filha.
– Não, eu tenho certeza do que falei. Mas esse é
outro assunto. Pois então, inseminação artificial é quando
inseminam artificialmente o bebê em você.
– Já grande? Que estranho!
– Não. Eles inseminam o espermatozóide no seu óvulo, sei lá, alguma coisa assim. Coisas da ciência.
– Não sei não, eu prefiro da forma tradicional.
– Eu também. Até porque fica a cargo de Deus escolher
como será nosso bebê.
– Como assim, eu posso escolher?
– Sim, nós podemos escolher o sexo.
– Estou começando a gostar.
– Que bom. Então agora já podemos discutir o sexo.
– Como discutir? Já está decidido. Vai ser menina.
– É melhor tirarmos na sorte para não brigarmos.
Desse jeito, escolher o sexo vai ser complicado. Olha só,
mudando de assunto, já que estamos em outubro, se fizermos logo, o bebê poderá nascer em junho.
– Que bom, então vai ser pro dia 21 de junho!
– Mas você é sistemática mesmo, né? Que diferença
faz 20, 21...? E como você vai escolher a data? Tá louca!
– Em vez de eu fazer parto normal, quero fazer cesariana.
– E se o médico disser que você terá de fazer o parto dia 20?
– Ué, eu espero mais um dia.
– E pra que isso tudo?
– Bom, se ele nascer dia 20, será de gêmeos, mas, se ele
nascer dia 21, será de câncer. Um dia faz toda a diferença,
amorzinho.
Bolhas Geraes
Fim de Tarde
Deixe-me num buteco,
numa mesa de ébano e aço
pra viajar no guardanapo
preso pelo copo de cerveja.
Deixe-me em paz
debaixo da TV lendo novas teorias.
Deixe-me cachaça
no final desta tarde.
As tristezas foram diluídas
Deixe-me. O volume da TV está alto.
E o controle não está em
minhas mãos.
Henry Pablo
Paulo Henrique Motta
6
UERJ
No ventre do verão
O ano todo enfurnado nestas salas,
dissolvido no lodo comunal,
ouvindo toda sorte de cavalas
relinchando em discurso doutoral!
O ano todo enfurnado nestas valas,
eu massa amorfa em baço lodaçal,
ouvindo à força de novela e balas
chafurdo na burrice universal!
Entre sons sempre os mesmos como ser
alguém que vive, sente, quer e toca,
enveredando em rumo do saber,
se o que confere o ganho é ser boboca?
Mais vale então o soco que desmonta
que este lugar comum, que não afronta.
No ventre do verão sem calma ou vento,
não tive a quem gritar. O sol queimante,
o suor, a febre, o espasmo delirante
secava em todo peito todo intento.
Era dezembro, o mês do fingimento.
As ruas, eu cruzava em pranto andante,
espremido entre a massa e o cru cimento,
sem ninguém que me ouvisse o grito arfante.
Em meio à gente tanta, solitário,
no ventre do verão incinerário
queimava os pés no solo e a pele no ar.
E em todos os rostos um sorriso,
tão belo, tão bonito e tão preciso
com prazo até Janeiro pra pagar.
Uai?! Tá sabendo não?
A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos
nossos leitores e colaboradores mineiros, que,
desde a edição número 13, recebem o Plástico
Bolhas em diversos pontos de Belo Horizonte.
Envie também os seus trabalhos para
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Tel.: 2512-7109
Dois poemas de Rafael Huguenin
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Entrevista por Luiz Coelho e Isabel Diegues
Literatura, jornalismo e futebol
Armando Nogueira já trabalhou ao lado de grandes figuras do jornalismo impresso, como Nelson Rodrigues e Clarisse Lispector.
Na rede Globo, foi o criador dos programas Jornal Nacional e Globo Repórter. Hoje, dedica a vida às suas paixões: o esporte e o ofício da escrita.
Considerado o maior cronista esportivo do Brasil, Armando arrumou um tempinho para um bate-papo com a equipe do jornal.
Entre suas milhões de atividades está o ofício da escrita, mais especificamente, a
escrita sobre o futebol. O que une as duas paixões?
Tem a paixão em si, do esporte, e tem a paixão pelo ato de escrever;
você fica de certa maneira dependente da palavra, porque não pode
deixar de escrever. Existe o respeito pela palavra, embora seja muito
penoso mantê-lo; é uma das raras profissões em que você tem a
chance de fazer e refazer. Na verdade, a palavra é um ser vivo que
fica pulsando na gaveta, te incomodando; você bota na gaveta, no
computador, onde quiser, mas, de noite, na cama, fica pensando que
tem um ser te aporrinhando, enchendo teu saco. Você não se livra
da palavra. Às vezes você é salvo por uma leitura. Você pode estar
empacado numa palavra e ter uma insônia e, de repente, acorda com
aquela palavra na ponta da língua. Isso já me aconteceu. Eu estava
escrevendo um texto um pouco poético, “as bolas murcham no campo
como as flores...”. Precisava de um trissílabo e não havia jeito de achar
essa palavra, atravessada na garganta. Um dia, lia Machado de Assis,
à uma hora da manhã, e uma palavra surgiu como se cintilasse na página; era a palavra “campina”, que dava certinho na minha métrica.
Era a palavra que eu queria. “As bolas murcham no campo como as flores na
campina”. Até então, faltava alguma coisa para completar o verso. E,
quando é assim, a cabeça fica funcionando, você fica refém daquela
busca. É aí que vem a recompensa: do fato de você ler; porque, se eu
não gostasse de ler, talvez essa palavra não cintilasse na página, não
ficasse piscando, como vi piscar. Há uma máxima que diz: escrever
é reescrever. Escrever é cortar palavras. Mesmo que seja um bilhete
para a namorada, não goste, desconfie sempre da primeira versão. Às
vezes, falar menos é melhor. É preciso exercer o desapego para com
a palavra; ao contrário do que se pensa, isso é uma forma de valorizar e não menosprezar a palavra; de buscar a palavra essencial, a
palavra inevitável, a palavra irrecusável. Me parece que, sendo esta a
premissa do ponto de vista da forma — e considerando sempre que
a primeira versão do texto não é boa —, você tem um bom começo,
um bom caminho. Então vem o mais complicado da história, que
ainda não contei, que é você ter a capacidade de mentir. No meu
caso, entro de maneira meio marginal nessa história, porque meus
personagens todos são da vida real. Eu escrevo, mas, literariamente,
não sou escritor, escritor é quem cria seus personagens.
Mas quando você retrata um personagem real , não o está recriando?
Eu recrio o personagem, mas ele já existe. Posso até retocar, melhorar ou piorar o personagem, mas ele precede a minha obra. Então
minha obra não é de criação, é de recriação. Um dia, Clarice Lispector, que trabalhava no mesmo jornal que eu, O Diário Carioca, escreveu uma crônica muito simpática sobre o meu trabalho; ela dizia
que eu deveria escrever um romance. Foi aí que me dei conta de que
havia um grande equívoco entre os meus amigos, a começar por
ela, mas também do Paulo Mendes Campos e outros: achavam que
eu era um escritor. Romancista, contista e até poeta era o Nelson
Rodrigues, que inventa personagens que não existem. Embora ele
recrie alguns personagens, outros ele cria, como o “Gravatinha” e o
“Sobrenatural de Almeida”. Estas são características do escritor; eu
sou cronista. Tenho consciência de que pertenço a uma categoria,
hoje, quase fora do jornalismo. Me dei conta disso não só quando
comecei a escrever crônica, mas porque como eu lia muito Nelson
Rodrigues, e como ele era um grande cronista, eu percebia que ele
era capaz de melhorar ou piorar os jogos sobre os quais escrevia,
ficava a critério dele, coisa que o jornalista não pode fazer, somente
o cronista pode. Então, acho que temos, nas nossas categorias profissionais, o repórter, que tem o comprometimento com o fato, o
analista/comentarista, que comenta o fato, mas não necessariamente
opinando, apenas analisando, e temos o cronista, que tem liberdade
absoluta. O cronista não precisa ir ao jogo para gostar ou não do
jogo. Passa-se a ter a liberdade (a que hoje me permito) de não ver o
jogo todo; um pequeno episódio de uma partida de futebol pode me
dar uma crônica. Costumo dizer que mais importante que o jogo é o
jogador, mais importante que o jogador é a jogada, mais importante
do que a jogada é o gesto. Posso, de um gesto, escrever uma crônica,
Arquivo Pessoal
o esporte é uma coisa épica. Nos jogos olímpicos da antiguidade,
já havia grande exaltação poética — Píndaro e tantos outros escreveram odes maravilhosas aos grandes heróis —, o que permite
realmente aproximar o esporte da arte. Seja da arte da dança, ou
do gestual do esporte, que nos salva um pouco desse excesso de
realismo do futebol.
Não haveria um certo saudosismo seu de um futebol mais aristocrático?
o repórter não. O cronista viaja. Fico, então, nessa fronteira. Pelo
fato de eu ter uma forma requintada, trabalhada e sofrida, as pessoas me consideram um literato, mas eu não me considero um
literato. Os livros que escrevo são apenas livros de crônica.
Há alguns meses, você passou a ter o Blog do Armando Nogueira. Como é
escrever para a internet?
Eu me dei muito bem com a internet, porque a internet é o reencontro com a palavra escrita. Comecei a tentar entender o meio e
vi que, escrevendo da maneira que eu escrevo, tradicional, passo a
minha mensagem com muito ardor, com muito calor, e as pessoas
respondem imediatamente. A grande surpresa que tive com a internet foi que eu pensava que essa era uma ferramenta virtual, mas
ela não é virtual, é absolutamente carnal. Ela chega a provocar um
corpo a corpo, é atritada. Você põe um texto e, um minuto depois,
tem uma resposta para o texto. É uma coisa que aproxima demais
as pessoas, e isso me deu uma alegria muito grande.
Há novos talentos se revelando hoje na crônica esportiva?
Eu acho que sim. Mas este é um meio cruel, porque os jornais
não abrem espaço para a pouca objetividade. Acho que o que me
distingue dos outros é que, desde muito cedo, entrei pelo veio da
poesia. Percebi — e não fui o primeiro — que a poesia está muito
próxima do esporte, na medida em que o esporte é uma coisa
lúdica, uma forma de brincar. A poesia te permite fantasias que
a prosa não te permite. Então, de quando em quando, faço incursões na poesia. Tenho a impressão de que, com essa superdose,
overdose, de realismo que baixou no jornalismo de um modo
geral, e na vida das pessoas, ninguém tem muito tempo para ficar
recriando palavras, inventando metáforas. Além da matéria-prima
estar escasseando. No futebol, por exemplo, você vê um Robinho
despontando, que te permite refazer a recriação de um gesto, mas
tem dez que não te permitem escrever uma linha. O futebol não
era assim, o futebol, nos primórdios, se chamava o Jogo do drible.
Aí, primeiro acabaram com o ponta, que era o exímio driblador,
porque o ponta sempre teve um espaço melhor para driblar do que
quem está na faixa central do campo, sempre muito congestionada.
Ao extinguirem o ponta, extinguiram praticamente o drible, porque
o drible mal dado na faixa central do campo pode representar um
contra-ataque brutal. Então, os treinadores não querem correr riscos;
e o futebol, com isso, se empobreceu. Aí, começou a aparecer um
outro universo ligado à ludicidade do esporte, que é muito próxima
da poesia. Foi a atenção com os Jogos Olímpicos. Lembro que
o primeiro gesto olímpico que inspirou um poema meu foi da
Nadia Comaneci, nos Jogos de 76, em Montreal. Tem outro dado,
também, que contribui muito para instigar a inspiração poética:
Nesse sentido, há dois aspectos. Um aspecto puramente estético,
que fascina a gente, como o gestual do Robinho, que mistura um
pouco de finta com drible e jogo de cintura, e alude às raízes de
uma cultura. Por exemplo, existe um texto do Pasolini sobre a
seleção de 70 que vale a pena ler. Ninguém podia ficar indiferente
à seleção de 70 do ponto de vista estético. Coincidia também com
todo o charme que a televisão estava inaugurando para o corpo
— isso enriquecia muito o espetáculo. Quando se diz que o Brasil tem o melhor futebol do mundo, não é porque ele ganha; é
porque ele tem o melhor futebol do mundo. E o que é o melhor
futebol do mundo? É o futebol mais bem jogado, esteticamente. A
experiência da Copa de 1994, em que o Parreira mandou para os
Estados Unidos uma equipe européia — com exceção de Bebeto e
Romário — era de uma chatice inominável, porque, fora esses dois
jogadores, não havia um gesto que ficasse. Isso não é você romper
com as raízes? Porque a raiz é o Leônidas da Silva, que eu não vi
jogar, mas adorei. Você também não viu, mas adora, porque ele faz
um apelo à sua fantasia. Ele inventou a bicicleta. Costumo dizer
que o que distingue o futebol brasileiro, quando ele é fiel às suas
raízes, é isso. O inglês inventou o futebol e o brasileiro inventou as
delícias do futebol. (risos). No momento em que você não tem as
delícias no campo, vira o futebol inglês, o futebol europeu. O fato
é que ninguém tolera esse tipo de jogo, porque, se você não respeita
as raízes, daqui a pouco você vai mandar para um festival internacional de música como representante do Brasil um sujeito que
compôs bons boleros. Temos compromissos com a música popular brasileira, com o samba. Se nós transportarmos o fenômeno do
Ari Barroso, do Noel Rosa, do Bide, do Armando Marçal, enfim,
dos grandes compositores brasileiros para o futebol, o nosso compromisso passa a ser buscar o Garrincha, o Didi, o Pelé. Porque,
nas obras de arte que você cria para identificar um povo, você cria
impressões digitais, que precisam ser respeitadas. Por que tanto se
lutou para se implantar o Cinema Novo no Brasil? Porque era um
cinema brasileiro, autenticamente nacional. Não é o chauvinismo,
não é o nacionalismo não, é o compromisso que nós temos com
a identidade do povo brasileiro. Porque senão, você pega a camisa
da seleção brasileira e coloca na seleção italiana. Nos agrada? Não.
Só porque ganhou? Só porque venceu? O objetivo não é esse. É
preservar as raízes e, conseguir juntar isso ao lado estético, ao lado
técnico, e produzir equipes como tivemos em 58, como tivemos em
70, e que ficaram na história. Os europeus não vieram buscar aqui
um jogador — e continuam levando num arrastão monumental
deles — por ele ser atlético, vêm buscar aqui a habilidade individual
do jogador brasileiro, que é a nossa marca, nossa característica.
Então, a essência da nossa escola futebolística são as delícias do
futebol, um esporte que tem a capacidade de criar espaço no reino
da fantasia, não necessariamente à custa de um bate-estaca.
Quando entrevistamos o poeta Adriano Espínola, ele propôs que os leitores
praticassem mais esportes, que a poesia agradeceria. Você concorda?
O importante é ter uma vida saudável. Gostar efetivamente de alguns esportes, como eu, por exemplo, que gosto muito de tênis.
Tenho até uma crônica em que me defino entre esses dois amores,
o amor do esporte individual e o amor do esporte coletivo. Mas
tem o momento em que o esporte coletivo pode virar individual,
como é o caso típico do Robinho. Tem uma máxima no futebol
que diz que o futebol é um por todos e todos por um. O Robinho
prova que não é bem assim: é um por todos, e nem sempre todos
por um. (risos).
7
The man who mistook his wife for a hat
A Oliver Sacks
Meu marido me confundiu com seu chapéu
Botou as mãos na minha cabeça e
tentou me arrancar do meu pescoço
Meu marido me confundiu com seu chapéu
Chegou em casa fechou a porta e
Tentou me pendurar na parede
Meu marido me confundiu com seu chapéu
Acordou, olhou pra minha cabeça e
se perguntou como o dito cujo foi parar em sua cama
Meu marido me confundiu com seu chapéu
E não brigamos mais
Não nos falamos mais
Meu marido me confundiu com seu chapéu
E não me toca mais
não me conhece mais
Meu marido me confundiu com seu chapéu
E não me ama mais
Não me deseja mais
8
Desde de que meu marido me confundiu com seu chapéu
me acostumei a ser esquecida
na solidão de ser chapéu
Isabel Wilker
Room with a view
Notas Cáusticas
RISUS SARDONICUS
por Indolêncio Fanfarrão
Sua idiota, tá rindo do quê? Qual é a
graça? Esses dentes aí à mostra, engolindo
poeira — que coisa mais nojenta...
É lindo, sim. É lindo esse teu
sorriso, essa felicidade que te enfiaram no
meio da fuça, isso daí que não é nada, essa
conjuntura de carne, de tecido, de dente.
É lindo, sim, e triste... triste porque é só
carne, é só tecido, e essa fantasia que você
tá me atirando na cara, sem querer.
Você ri, e eu choro... outra besta,
outra fantasia (outra manifestação do
nada). Mas a tua boca vai murchar, essa
boca gorda, esses teus dentes. Vai ficar só
osso, o osso vai chupar a tua cara, o teu
sorriso, e até a graça que você viu — não
sei em quê... E aí, quem é que vai te chamar
de bonita? Sua idiota... Quando você ficar
velha e feia, e ninguém mais quiser olhar
para a tua cara... quem vai saber? Quem
vai lembrar que você riu, e eu chorei?
Ninguém!
Há-Há-Há-Há-Há-Há!
Cipreste
A senhora tem a minha atenção, agora se cale. Mais aprazível ainda seria se esses seus pêlos brancos e nasais se
quedassem imóveis. E esses fiapos de cabelos que escapam do chapéu e que o vento leva. Atravancam. Se é por isso,
que se mate, mumifique-se, mas não tire esses seus olhos de cima de mim. Não, você se engana, não tenho a menor
intenção de ser afável; os óculos escuros, a barba e as rugas eu conservo comigo durante todo o processo, não tiro por
toda a simpatia do mundo. De resto, não lhe devo satisfações e afirmo, por nós dois, não haver titubeios quanto à constatação de a senhora ser perfeitamente ridícula (aos sessenta e tantos anos, isso deve lhe ocorrer pelo menos três vezes
ao dia, quando se pilha de soslaio — o espelho atrás servindo de filmadora — a pegar uma bolsa, na ponta dos pés,
no topo da estante). É ridícula até mesmo do outro lado da calçada, entre palhaços de rua e cachorrinhos de madame,
até mesmo da forma que a senhora está: um mal-ajambrado triunvirato de pernas, barrigas e carapinha num banco da
Praça Nossa Senhora da Paz.
Mas aprecio justamente a comprovação imediata de que você é algo muito próximo da argamassa do lugar-comum. Gosto de saber que posso atravessá-la, incólume, com os olhares mais canhestros, mais fora-de-mão. No afã juvenil da minha idade, me bato constantemente com meus companheiros, uns tipos meio gordos e sebosos, que sonham
diariamente com imensos projetos sociais e infalivelmente acordam molhados no dia seguinte. Praguejam a favor da
mudança do mundo com um descaramento depravado. Pois bem, minha senhora, em toda essa lama na qual sempre
chafurdo minha atenção, sua existência é o único seguro maternal de que tudo permanecerá exatamente como está. Os
arautos, transatlânticos dos reveses, a percorrem como se você fosse besta água lacustre. Não sabe o quanto isso me vai
bem. Aliás, delicia-me tanto a idéia que agora até descumpro minha promessa e desando a esboçar um sorriso, a mente
ansiando para que sua pele se desgaste no ar, bem devagar.
Seria de suma pertinência se nesse instante você se mexesse e fizesse uma panorâmica de si mesma, esquadrinhando a vida, paixão e morte de todas as traças que tiveram sua vez nesse seu vestidinho azul. E, allegro, ma non troppo,
um ricto fechado — sei que não tem mais dentes, não cometo abusos — casando com esses olhos de papel reciclado,
ficaria agradecido, talvez extasiado.
Não, você não faz idéia do que esse seu corpo realmente seja. Um olhar de si mesma, montado no vigésimo andar
de um edifício comercial, nunca lhe passou pela cabeça. Na sua contumácia imbecil de viver debaixo de uma lente de
aumento, você nunca atinou para seu potencial geográfico. Estudo-o há cinco minutos, pela primeira vez, e já posso
lhe advertir que há grandes desperdícios. Muitas contrações e expansões despropositadas. Mesmo assim, não a troco
por toda essa Ipanema. Daqui do alto, senhora, você ainda é o ponto mais elegante da cidade.
Exéquias foram tomadas
abaixo do cipreste negro fui enterrado
o silêncio e a escuridão adornam-me
a morte respira fúnebre sobre a minha face fria
a cada inseto que me vê como o prato do dia
alguém descobre a verdade sobre mim
vivo pouco minha vida vil e materialista
sem amor, sem dignidade
agora, com uma bala em meio peito,
jazo na terra fria
infeliz e solitário
apenas contemplado
por um cipreste solidário.
João Francisco Costa Ribeiro
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