Histórias coloniais em áreas de fronteiras

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Histórias coloniais em áreas de fronteiras
Histórias coloniais
em áreas de fronteiras
Índios, jesuítas e colonos
Universidade Federal de Mato Grosso
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(Organizadoras)
Histórias coloniais
em áreas de fronteiras
Índios, jesuítas e colonos
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2008
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O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.
H673
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: índios, jesuítas e colonos /
organizado por Leny Caselli Anzai e Maria Cristina Bohn Martins.
– São Leopoldo, RS: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: EdUFMT, 2008.
259 p.; 16 x 23cm.
ISBN 978-85-7843-064-1
ISBN 978-85-327-0314-9 (EdUFMT)
1. Historiografia regional – nacional. 2. Período colonial sul
americano. 3. Índios – Jesuítas – Colonos – História. I. Anzai, Leny
Caselli. II. Martins, Maria Cristina Bohn.
CDU 930.1
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário
Apresentação ......................................................................................... 7
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade
no centro da América do Sul (1716-1750)
Tiago Kramer de Oliveira .................................................................. 17
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste
Alessandra Resende Dias Blau .......................................................... 50
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII
Gilian Evaristo França Silva .............................................................. 76
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela
da Santíssima Trindade (1748-1790)
Masília Aparecida da Silva Gomes .................................................. 99
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778)
Nathália Maria Dorado Rodrigues ................................................. 126
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos
civilizados. Chiquitania, século XVIII
João Ivo Puhl ..................................................................................... 158
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade
dos excessos
Luís Alexandre Cerveira ................................................................... 188
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província
do Paraguai (século XVII)
Fabiana Pinto Pires .......................................................................... 218
Itinerários de viagem pelos confins do território americano:
os missionários jesuítas e a expansão para a área ao sul de
Buenos Aires
Yesica Amaya .................................................................................... 232
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Apresentação
O presente livro é resultado de esforços de investigação despendidos por professores e alunos dos Programas de Pós-Graduação da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Trata-se de um dos resultados
das propostas de trabalho conjunto iniciadas com a aproximação entre
colegas das duas instituições, oportunizada pelas periódicas reuniões
nacionais do Fórum de Coordenadores dos Programas de Pós-Graduação.
Os interesses comuns explicitados durante as discussões sobre
a necessidade de intercâmbios entre os programas, no início pessoal e
individual, foram institucionalizados com a aprovação pela Capes de
um PROCAD, em 2007, proposto pela Universidade Federal de Mato
Grosso, que se associou à Universidade do Vale do Rio dos Sinos e à
Universidade Federal de Pernambuco, para o desenvolvimento conjunto do projeto: “Territórios diversos, múltiplas fronteiras. Práticas culturais no movimento de ocupação e reocupação dos espaços”1. A proposta
do PROCAD levou em consideração o fato de que a ocupação territorial
do atual estado de Mato Grosso sofreu intensa influência de grupos humanos advindos da Região Nordeste e da Região Sul do país, e que,
portanto, nos beneficiaríamos todos dos trabalhos a serem desenvolvidos, justificando plenamente as parcerias institucionais estabelecidas.
A proponente UFMT possui o único curso de mestrado em História do estado de Mato Grosso, e busca sua consolidação; para tanto,
envida esforços no sentido de firmar um espaço de reflexão interinstitucional e ampliar suas redes de investigação. Na presente publicação,
o compartilhar de esforços com a UNISINOS levou em consideração o
fato de ambas contarem com grupos de pesquisa cujas temáticas e
questionamentos possuem núcleos comuns, possibilitando uma real
1
Ver um dos resultados de trabalho deste PROCAD em MONTENEGRO, Antonio Torres et al
(Orgs.). História: cultura e sentimento. Outras histórias do Brasil. Recife: UFPE; Cuiabá: UFMT,
2008. 510p.
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Apresentação
colaboração entre professores/pesquisadores e estudantes, criando laços de efetiva cooperação interacadêmica.
Nos capítulos que compõem este livro estão contidos alguns resultados de atividades acadêmicas concretizadas em dissertações e
teses defendidas ou em andamento nas duas IES, nas quais foram problematizadas temáticas referentes ao período colonial sul-americano.
Os trabalhos apresentados analisam espaços que, no recorte temporal
que lhes é comum, estavam localizados em áreas distantes dos centros
dinâmicos da vida política, social e econômica dos domínios ibéricos,
espaços de fronteira por excelência. Estas fronteiras são interpretadas
em seu sentido mais amplo e complexo, ultrapassando a simples noção de limite, avançando rumo à compreensão da complexidade dos
conflitos, das negociações, das análises sobre um lócus no qual se confundiam temporalidades, ambientes e modos de vida distintos, articulados às diversas dimensões relacionadas aos diferentes mecanismos de reterritorializações colocados em prática pelos dois impérios
ibéricos coloniais. São fronteiras do sul, do centro-oeste e do norte sul
americanos. Cada qual com suas especificidades, os estudos apresentados evidenciam pontos de acordos/atritos/conflitos, entre si, com seus
entornos e com suas metrópoles, em ações que movimentavam essas
realidades históricas.
Ao ler os trabalhos produzidos no âmbito do Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, vislumbramos uma capitania cuja superfície era de 65 mil léguas quadradas, limitando-se ao norte com o Grão-Pará, ao sul com a Capitania de
São Paulo e a Capitania de Goiás, e a oeste com as possessões espanholas2. Os estudos apresentados sobre estas realidades ampliam o foco
de visão e tomam como objeto práticas em diversos campos, que contemplam o movimento de ocupação e reocupação dos espaços, em território próximo às ainda pouco estudadas missões jesuíticas de Chiquitos e de Moxos. Criada em 1748, com seus limites ultrapassando a
linha fronteiriça acordada com a Espanha, a base de sua população era
predominantemente indígena, mas contava também com uma presença significativa do escravo negro, trazido para as lavras de ouro.
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A Capitania de Mato Grosso era composta, no século XVIII, pelos atuais estados brasileiros de
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Zona de fronteira política em constante alerta, o território da Capitania de Mato Grosso merecia atenção especial da coroa portuguesa,
evidenciada no cuidado com que eram escolhidos seus administradores; todos seguiam uma rígida política, traçada para consolidar o poder lusitano na raia oeste, com o objetivo principal de manter os castelhanos além Guaporé. Por conta disto, durante grande parte do século
XVIII vigorou uma situação de constante tensão nas mais de quinhentas léguas entre os mal delimitados limites luso-castelhanos na América do Sul. Às questões de política internacional juntavam-se aquelas
resultantes das idiossincrasias próprias da necessidade de convivência
entre as múltiplas etnias e diferentes culturas que a habitavam.
No interior desta multiplicidade, Tiago Kramer de Oliveira, em
“Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade no centro
da América do Sul (1734-1750)”, analisa o modo pelo qual os colonos
luso-americanos se apropriaram de enunciados, que fundamentaram
a estratégia da “geografia política” portuguesa, em relação à conquista
do centro da América do Sul. O autor considera que, diferentemente
das conquistas litorâneas empreendidas entre os séculos XVI e XVII,
os súditos da coroa portuguesa que conquistaram os territórios do vale
do rio Cuiabá (e depois ampliaram as conquistas para o alto e baixo
Paraguai e o vale do Guaporé), invadiram territórios em litígio com
domínios coloniais espanhóis e territórios de povos ameríndios, que
mantinham relações de comércio, de alianças e de conflito com os exploradores e colonizadores castelhanos desde o século XVI. Além do
mais, para Oliveira, a presença espanhola no centro da América do
Sul e suas relações com os povos ameríndios, e destes uns com os outros, tiveram implicações determinantes para a formação de ambientes
coloniais portugueses nesta região.
Alessandra Resende Dias Blau, em “Roubo de índios, fugas e
ataques na fronteira luso-espanhola – Capitania de Mato Grosso”, discute a participação de grupos indígenas localizados na repartição do
Mato Grosso, na dinâmica de povoamento praticada pelo Estado português na fronteira oeste da América do Sul, no período compreendido desde 1752 até 1798, quando foi extinto o “Diretório dos Índios”.
Por considerar que as formações ameríndias, como quaisquer outras,
não são imutáveis, Blau, além de analisar o modo pelo qual as diversas sociedades indígenas participaram da dinâmica de povoamento,
também buscou desvendar as redes de sociabilidade estabelecidas no
entorno dos grupos indígenas da região. Focalizou, primeiramente, as
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Apresentação
estratégias colocadas em ação pelo Estado português, visando garantir
para si as sucessivas “conquistas” de territórios indígenas milenares
e, em seguida, tratou das tentativas de aldeamento de índios considerados “mansos”, e da política lusitana de inserção de diferentes grupos indígenas na ocupação e na defesa da fronteira. O estudo é beneficiário de documentação manuscrita e de fontes impressas, compostas
por correspondências oficiais, em sua maioria, com o cuidado de colher, nas entrelinhas, o modo pelo qual os índios foram representados
nessa documentação.
Gilian Evaristo França Silva, em “A Santíssima Vila Bela nas
festas devocionais do século XVIII”, nos apresenta as festas e as celebrações promovidas pelo Senado da Câmara de Vila Bela da Santíssima Trindade, ao longo da segunda metade do século XVIII, tanto as
ligadas a solenidades religiosas, quanto aquelas realizadas em razão
de eventos associados à família real. Considera tais manifestações como
práticas constitutivas das representações políticas e culturais vigentes no Império Português, e problematiza a produção de representações de poder no Guaporé, com vista a perceber sua utilização tanto
por parte da coroa lusa quanto por parte dos poderes locais. Nos momentos festivos, as hierarquias sociais eram reafirmadas, e, ao mesmo
tempo, os laços de pertença a Portugal eram reforçados nos colonos,
que participavam de todas as etapas da vida de seus soberanos, assegurando a conquista do território a oeste, reocupando material e simbolicamente o espaço. O autor analisa as representações de poder que
funcionaram como produtoras de imagens do monarca, da centralidade do império e dos poderes locais, representados pela câmara.
Masília Aparecida da Silva Gomes, em “Os ‘gêneros do país’: a
produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade (17481790)”, discute a constituição de uma paisagem agrícola voltada para a
produção de alimentos e as práticas alimentares dos moradores de
Vila Bela da Santíssima Trindade e seu termo, entre os anos de 1752 a
1790. Analisa a produção agrícola, articulando-a às demandas do mercado interno em crescimento e ao quadro maior de expansão e definição dos limites luso-americanos na fronteira oeste, na segunda metade
do século XVIII. Ao mesmo tempo, baseando-se em documentação que
registra a produção agrícola interna e o comércio de gêneros de diferentes categorias, vindos de outras regiões, discute as práticas alimentares em vigor, relacionando-as à produção interna e ao abastecimento
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
externo. Em sua análise, Silva Gomes evidencia a constituição de múltiplas paisagens rurais no Mato Grosso, nas quais diferentes agentes
sociais trabalhavam na produção e transformação de diversos gêneros,
reproduzindo e recriando práticas, movimentando uma complexa cadeia de produção que, de forma direta ou indireta, se interligava a outras atividades e aos mercados internos e externos.
Nathália Maria Dorado Rodrigues, em “A Capitania de Mato
Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão
(1755-1778)”, analisa questões relacionadas ao abastecimento da Capitania de Mato Grosso, cuja principal particularidade era possuir
minas auríferas e estar localizada em área de litígio com os domínios
hispânicos. Desse modo, medidas relativas à ocupação, à mineração,
ao comércio e à agricultura, se orientaram a partir da preocupação
com a fronteira. A autora evidencia que a Capitania de Mato Grosso,
além de seus recursos internos, contava com duas vias de abastecimento: as monções do norte, que saíam do Pará, e as monções do sul,
que saíam de São Paulo. Na via do norte atuava a “Companhia Geral
de Comércio do Grão-Pará e Maranhão”, criada durante a administração do Marquês de Pombal, com o objetivo de desenvolver economicamente a região e consolidar o poder luso. A Companhia de Comércio abastecia a capitania com produtos manufaturados de origem
européia, asiática e africana, e os principais comerciantes de Vila
Bela, embora atuassem também em outras frentes, estiveram atrelados aos seus interesses. Ao evidenciar os interesses privados e os
metropolitanos, a autora demonstra que essas relações originaram
diversos conflitos.
Em relação aos estudos produzidos no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, o foco centrou-se nas atividades da Companhia de Jesus e em
suas missões religiosas. Os estudos desenvolvidos analisam aspectos
relacionados à atividade jesuítica em seu trabalho de conversão, observando seus espaços de atuação, seu cotidiano e as intenções políticas que moviam missionários e índios em suas diferentes práticas.
Esses textos analisam relatórios pouco conhecidos, produzidos no
interior dessas missões, em seus diferentes aspectos, que vão do processo de conversão às práticas de resistência indígena.
Desse modo, João Ivo Puhl, em “Converter índios, animalia Dei,
em homens, cristãos e súditos civilizados”, enfocou a situação das re-
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Apresentação
duções chiquitanas, localizadas atualmente no que se configura como
oriente boliviano, na fronteira com o estado de Mato Grosso, que viviam uma situação de permanente conflito e tensão, por serem acossadas por colonos espanhóis e portugueses, mas também porque mantinham reunidos, precariamente, grupos de origens culturalmente diversas, um dos elementos característicos das Missões de Chiquitos.
Puhl trabalha especialmente com o relato do Padre Julián Knogler, um
dos religiosos em missão na área no momento do desterro dos jesuítas
das colônias espanholas por determinação do decreto de 1767, de Carlos III. A partir desta fonte, analisa um rico conjunto de temas, entre
os quais se destacam os processos de contato e conquista, organizados
a partir das chamadas “caçadas espirituais”, expedições promovidas
pelos padres, com ajuda de índios convertidos, para atrair outros índios para o interior das reduções, com o objetivo de inseri-los na cristandade européia.
Luis Alexandre Cerveira, em “As paixões e o campo platino: a
barbárie e a sensibilidade dos excessos”, aborda um tema que apenas
recentemente tem merecido, no Brasil, maior atenção por parte dos
especialistas: as chamadas “missões populares” ou campestres. Discutindo especialmente o conceito de “paixão”, termo que encontrou
recorrentemente nas Cartas Ânuas do período investigado, isto é, o
século XVII, o autor estuda as práticas desenvolvidas pelos padres da
Companhia no sentido de disciplinar a moral e os comportamentos
das populações (não indígenas) das áreas rurais na região do Rio da
Prata. Entre as condutas que encontrou como mais severamente condenadas, e sobre as quais as interdições seriam mais severas, estavam
várias que eram da ordem da moral sexual, tais como a luxúria, a sodomia e a bestialidade. Ao lado delas, estavam outras igualmente reprováveis, mas que se situavam em uma esfera diferenciada, como o
ócio, a embriaguez, a prática dos jogos de azar, a avareza e a violência
das relações interpessoais. De acordo com o autor, os jesuítas se referem, em suas correspondências, ao processo de “reforma” destes costumes, apresentando-o como um dos principais objetivos do trabalho
missionário, bem como à sua convicção de que os ambientes rurais,
marcados pelo isolamento e pelo afastamento da comunidade cristã,
acabavam por brutalizar e “barbarizar” as populações campesinas.
Fabiana Pinto Pires, em “Registros de experiências jesuíticas
nas reduções da Província do Paraguai”, analisa a “adaptabilidade”
que permitiu aos padres da Companhia atuar junto a povos e culturas
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
de naturezas variadas. Concentrando sua análise sobre o Paraguai do
século XVII, a autora ajuíza sobre a forma pela qual os conhecimentos
adquiridos, as reflexões e as práticas de discernimento produzem alterações nos documentos normativos da Ordem, permitindo novas
experiências e reflexões. Segundo a autora, as próprias Constituições da Ordem oportunizaram um relativo grau de liberdade que
todo o jesuíta deveria estar em condições de delimitar, isto é, dentro
de fronteiras aceitáveis pela instituição. Desta forma, a dinâmica entre os regramentos institucionais e o princípio da adaptabilidade da
Companhia articulam-se para possibilitar o trabalho missionário em
áreas diferenciadas, ou junto a sociedades marcadas por fortes peculiaridades. Sabemos, contudo, que nem sempre a compreensão das
características distintivas das sociedades americanas foi suficiente para
garantir o sucesso das práticas catequéticas. Muitas vezes, embora percebendo as contradições entre o modo de vida nômade das sociedades
de caçadores coletores e sua proposta de “missão por redução”, os
jesuítas reafirmavam sua convicção de que a vida “policiada”, isto é,
em pólis, era a que melhor representava a condição de humanidade.
Daí as notáveis dificuldades que encontraram diante dos grupos do
Chaco, ou junto às parcialidades que agregaram nas missões que ficaram conhecidas como “chiquitanas”, no oriente boliviano no século
XVIII.
Yesica Amaya, em “Itinerários de viagem pelos confins do
território americano: os missionários jesuítas e a expansão para a
área ao sul de Buenos Aires”, segue na discussão sobre o alargamento
destes “limites”. A autora estuda o papel dos missionários jesuítas
do Colégio de Buenos Aires no processo de expansão da fronteira
sul dos territórios americanos na segunda metade do século XVIII,
valendo-se das crônicas e dos diários de viagem de missionários que
percorreram estas terras, como os padres Jose Cardiel, Thomas
Falkner e Matias Strobel. Desta forma, o trabalho analisa o complexo
conjunto de diferentes interesses que entraram em jogo no momento
de definição e ocupação destes espaços, interesses estes que diziam
respeito tanto aos objetivos da Coroa e da Companhia de Jesus, quanto
àqueles particulares dos próprios missionários. A autora reflete,
ainda, sobre as estratégias ensaiadas e colocadas em prática pelos
atores envolvidos na expansão e exploração dos “confins do território
americano”, bem como sobre as diferentes expectativas dos
protagonistas destas viagens.
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Apresentação
Destaque-se, em todos os capítulos, o exercício desenvolvido a
partir da análise de fontes primárias, manuscritas e impressas, compostas por registros iconográficos, cartas, ofícios, relatórios, processos-crime, relatos de viagens, obras literárias, todas tratadas como fontes
historiográficas. Acreditamos que os estudos ora apresentados constituem-se em importantes contribuições a esta temática ainda pouco
visitada pela historiografia regional e nacional, ao mesmo tempo que
divulga uma rica documentação existente nos arquivos regionais.
A perspectiva que norteia todos os trabalhos – e este é o projeto
maior – é que estes espaços que não estão diretamente conectados
com a “economia atlântica”, embora estejam global e geopoliticamente
situados no interior de conexões maiores, não são meros reflexos de
um sistema circundante e de seus determinantes. A mediação entre
estes condicionantes mais amplos e as respostas locais, os desejos e
as ações dos sujeitos que vivem concretamente as experiências que
procuramos reconstruir na forma de narrativas historiográficas sugerem que observemos os processos de fronteira de modo a reconhecer
suas particularidades. O resultado foram análises que, interconectadas a movimentos espaciais mais amplos, evidenciam movimentos
de reconfiguração territorial desde o sul até o centro-norte da colônia,
nos séculos XVII e XVIII.
Apresentamos, pois, estudos que irão contribuir para o estabelecimento de debates historiográficos sobre uma história do Brasil
menos conhecida – a de seus espaços interiores –, e desenvolver reflexões e propostas que contribuam para um redirecionamento das práticas de ensino de pós-graduação, enriquecidas por meio de uma política de efetivo intercâmbio de metodologias de trabalho. Isto certamente irá estimular a produção acadêmica, que será objeto de constante avaliação e interlocução entre os pesquisadores, além de divulgar e valorizar as fontes de pesquisa existentes em diferentes regiões
do país, e mesmo fora dele.
A aproximação entre alunos e professores proporcionada pelo
desenvolvimento do Projeto tem permitido a consecução dos objetivos que foram propostos. Entre eles, devemos destacar os intercâmbios de estágios discentes de estudos e pesquisas, a participação dos
professores em bancas de mestrado e doutorado nas instituições conveniadas, a organização de simpósios e mesas, em eventos nacionais
e internacionais, além do fortalecimento das relações interinstitucionais 3.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Talvez, um dos resultados mais destacados desta iniciativa se
situe na esfera do importante aprendizado que temos experimentado
sobre as dificuldades e os ganhos dos trabalhos coletivos, especialmente se considerarmos as distâncias envolvidas, as grandes diferenças regionais, e as particularidades institucionais que nos situam. É
especialmente por isto que, como coordenadoras de duas das equipes
do projeto, nos sentimos muito estimuladas ao trazer a público este
livro.
Registramos nossos agradecimentos à CAPES, por haver disponibilizado os recursos que possibilitaram esta experiência; aos colegas gaúchos, pernambucanos e mato-grossenses, que participam deste PROCAD, e especialmente aos alunos, que dão concretude ao que,
no plano dos desejos, apresentamos como novos projetos a serem desenvolvidos.
Leny Caselli Anzai (UFMT)
Maria Cristina Bohn Martins (UNISINOS)
Cuiabá-São Leopoldo, novembro de 2008.
3
Entre 22 e 24 de maio de 2008, um grupo de professores e alunos da UFMT e da UNISINOS
participou do “I Congreso Internacional Chiquitano. La misión jesuita em territorio de frontera
en América” ocorrido em San Ignácio de Velasco, Bolívia. Foram organizadoras do Congreso,
pela UFMT, as professoras Leny Caselli Anzai e Tereza Cristina Cardoso de S. Higa, que também
organizaram e compartilharam a Mesa “História, territorialidades, prácticas culturales en áreas
de frontera”, orientada para o exame da importância das iniciativas missionárias em territórios
de fronteira, analisando seus impactos em períodos históricos diferenciados. O Congreso foi
organizado pela Universidad Católica Boliviana, Universidad Católica Técnica Particular de
Loja( Equador), Universidade Federal de Mato Grosso, e Universidad Autónoma de México. Ver
em http://www.utpl.edu.ec/congresochiquitos/ acesso dia 20 de julho de 2008, às 20 horas.
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Apresentação
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Entre dois impérios: conquistas portuguesas
e ruralidade no centro da América do Sul
(1716-1750)
Tiago Kramer de Oliveira
(...) sempre foram estes fidelíssimos e atenuados vassalos de
Vossa Majestade, rompendo sertões aspérrimos, talando campanhas estéreis, sulcando caudalosos rios, tolerando constantemente fomes, sedes, calores e frios, tudo a fim de ampliarem
os reais domínios de Vossa Majestade, servindo de muralha
aos castelhanos, que ambiciosos os pretendem minorar.
Oficiais da Câmara de Cuiabá ao rei, 19 de setembro de 1744
A epígrafe deste texto foi extraída de uma correspondência remetida pelos oficiais da câmara da Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá ao rei em 1744. No trecho supracitado, os colonos luso-americanos apropriam-se de enunciados que fundamentaram a estratégia da
“geografia política” portuguesa em relação à conquista da parte mais
central da América do Sul. Anos mais tarde, no parecer sobre a criação
da Capitania de Mato Grosso, o Conselho Ultramarino apontou que
“se procure fazer a Colônia no Mato Grosso tão poderosa que contenha
os vizinhos em respeito, e sirva de ante-mural a todo o interior do
Brasil” (apud CANAVARROS, 2004, p.58).
Mas, na epígrafe há outra questão importante. Os colonos atribuíam estas conquistas aos seus feitos e sacrifícios heróicos. A expansão territorial da coroa portuguesa no século XVIII em direção ao centro da América do Sul foi construída na memória dos brasileiros, sobretudo a partir do século XIX, como obra de “bandeirantes”, tornados
heróis por uma historiografia particularmente paulista. No século XX
Tiago Kramer de Oliveira possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade Federal de
Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “Ruralidade na terra da
conquista: ambientes rurais luso-americanos no centro da América do Sul”. Atualmente cursa
o Doutorado em História Econômica da Universidade de São Paulo, com bolsa Capes.
E-mail: [email protected]
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Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
uma contra-memória, alimentada também pela historiografia, transformou estes heróis em vilões, opressores, destruidores de culturas
indígenas. Por sorte a historiografia nas últimas décadas rompeu definitivamente com o voluntarismo e o personalismo, procurando entender, sem juízos de valor, o processo de formação de ambientes coloniais
no centro do subcontinente americano.
Analisamos este processo pelo que ele foi de fato: a desterritorialização de sociedades indígenas e a territorialização de ambientes coloniais. No entanto, este binômio (territorialização/desterritorialização) é insuficiente para entender o processo. Aliás, estas duas forças
são anteriores à ação, ou seja, ao se espacializarem, ambas se reterritorializam, se recompõem no jogo das relações sociais. A utilização do
termo espacialização (e os verbos derivados) em nossa análise subentende e tenta explicar este processo dialético que se materializa de
múltiplas formas na terra da conquista.
A conquista dos territórios que formariam a Capitania de Mato
Grosso, no centro da América do Sul, não pode ser percebida apenas
como avanço da colonização portuguesa para o interior da América. Diferentemente das conquistas litorâneas empreendidas entre os séculos
XVI e XVII, os súditos da coroa portuguesa que conquistaram os territórios do vale do rio Cuiabá (e depois ampliaram as conquistas para o alto
e baixo Paraguai e o vale do Guaporé) invadiram territórios em litígio
com domínios coloniais espanhóis e territórios de povos ameríndios
que mantinham relações de comércio, de alianças e de conflito com os
exploradores e colonizadores castelhanos desde o século XVI. A presença espanhola no centro da América do Sul e suas relações com os
povos ameríndios, e destes uns com os outros, tiveram implicações determinantes para a formação de ambientes coloniais portugueses nesta
região. Em 1703, foi composto por Guilhaume de L’Isle uma peça cartográfica intitulada L’Amerique Meridionale. No detalhe deste mapa (Mapa
1), percebemos que muitos territórios não conquistados por espanhóis
constam ali como parte das domínios de Castela.
Se tomarmos esta representação cartográfica como uma imagem
fidedigna dos domínios espanhóis naquele momento, estaremos sendo no mínimo ingênuos. Apesar de os espanhóis terem fundado missões jesuíticas e mantido contato com ameríndios, principalmente
nas margens dos rios mais caudalosos, nunca fundaram ambientes
coloniais estáveis na porção norte do que no mapa está representado
como “Províncias do Rio de la Plata”.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Assim como as outras tipologias documentais, a documentação
cartográfica deve ser analisada além do caráter aparentemente descritivo. Mapear e construir representações cartográficas são também práticas de apropriação de espaço. Não é, obviamente, por desconhecimento que o autor incluiu territórios não conquistados efetivamente
pela coroa espanhola nesta representação. A “cartografia da conquista”
visava legitimar, manter e ampliar territórios, já que o Tratado de Tordesilhas não parecia, principalmente após a União Ibérica1, ser referência para a legitimação de conquistas territoriais.
Do lado português (assim como do lado espanhol) o processo de
conquista não se devia apenas à ação particular dos colonos, mas estava articulado aos interesses geopolíticos da coroa, que planejava, intervinha e promovia a conquista de territórios na Bacia do Prata. Em
1676, os portugueses fundaram Laguna na costa rio-grandense, e, em
1680, a Nova Colônia de Sacramento. Sobre a colonização portuguesa
no extremo sul da América, na primeira metade do século XVIII, Fabrício Prado sintetiza:
A fundação de Sacramento, associada ao avanço dos paulistas para o sul,
às tentativas frustradas de ocupação de Montevidéu e à fundação do presídio de Jesus Maria José (futura vila de Rio Grande), e os avanços na
Banda Oriental (fundação do forte São Miguel no fim de 1737), constituíram etapas de um avanço contínuo para o sul, que partia de duas frentes
de colonização: uma desde o Rio de Janeiro, que materializou-se na fundação da Colônia, na tentativa de fundar Montevidéu, e na criação de Rio
Grande, e outra desde São Paulo, representada pela fundação de Laguna e
pelo avanço para o sul da expedição de João de Magalhães em 1725. Essas
duas frentes atendiam a interesses complementares da Coroa e dos grupos
locais, interessados em terras e acesso aos rebanhos, motivo principal do
avanço desde São Paulo, além do acesso à prata potosina (escoada para a
América portuguesa pelo comércio) e aos couros (principais atrativos para
a manutenção da Colônia de Sacramento). As duas frentes articuladas
constituíram a estratégia luso-americana de avançar sobre as terras do sul
durante a primeira metade do século XVIII (PRADO, 2002, p. 35-36).
1
Período entre 1580 e 1640, de dominação espanhola em relação a Portugal e seus domínios.
Embora submetidos aos espanhóis, os portugueses permaneceram com governo próprio no
âmbito da União Ibérica. Este período foi marcado pela expansão territorial portuguesa na América, desde os territórios ao sul, em Rio Grande de São Pedro, até as costas do extremo norte, além
da penetração em territórios além das áreas litorâneas tanto nas capitanias do norte quanto nas
capitanias do sul.
19
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
A “frente paulista”, para utilizarmos o mesmo termo de Prado,
desde pelo menos 1680, fazia suas incursões na região mais central da
América do Sul (ROSA, 2006, p. 4), onde, cerca de 40 anos depois,
começaria um processo efetivo de colonização nas “minas do Cuiabá”.
Enquanto os colonos paulistas exploravam os rebanhos, aprisionavam
ameríndios, também com o objetivo de abastecer um mercado interno
em expansão, os fluminenses buscavam consolidar um porto comercial
no extremo sul da América portuguesa e desenvolver contrabando com
os colonos espanhóis, particularmente através de Buenos Aires.
Bem mais ao norte da Colônia de Sacramento, na parte mais central da América do Sul, alguns fatores facilitaram a colonização portuguesa. A Guerra de Sucessão Espanhola, que ocorreu entre 1701 e 1714,
diminuiu as ações colonizadoras dos castelhanos na América e os impediu de colocar em prática uma estratégia de conquistas dos territórios a
leste das suas minas de prata. O número de navios que deixaram a
Espanha com destino à América é um indício da crise espanhola. A
“conexão entre a Espanha e suas colônias americanas diminuiu a níveis mínimos: entre 1701 e 1716, somente zarparam de Sevilha com
destino às colônias 106 navios, com a média um pouco superior a seis
unidades anuais” (AMEGHINO; BIROCCO, 1998, p. 34).
Outros fatores que permitiram o avanço português e que nos ajudam a entender a relação entre as dinâmicas imperiais das coroas ibéricas no centro da América do Sul são apontados por Uacury Ribeiro Bastos em “Expansão territorial do Brasil Colônia no Vale do Paraguai (17671801)”. Para Bastos, a presença mbayânica na extensa faixa de terras que
se estendia ao norte até o rio Taquari, e ao sul alcançava o rio Mboteteu
foi determinante para a colonização portuguesa (BASTOS, 1979, p. 124135). Os principais povos Mbayá citados na documentação da primeira
metade do século XVIII eram os Guaikurú e os Payaguá2.
As relações que os Mbayá-Guaikurú mantiveram com os espanhóis, com os demais povos ameríndios e posteriormente com os portugueses revelam aspectos singulares da sociedade colonial engendrada no centro da América do Sul. Os Mbayá-Guaikurú, após a conquista da província dos Itatins, tornaram-se senhores de um vasto territó2
Segundo Maria de Fátima Costa, “Os Evuevi-Payaguá eram um povo da família lingüística Mbayá,
também oriunda do Chaco. (...) Na chegada dos europeus, já estavam na bacia hidrográfica do
Paraguai e se subdividiam em dois grupos intertribais, os Siacuá e os Sigaeco, que habitavam a parte
sul, e os Serigué, os que ocupavam as terras inundáveis do Alto Paraguai” (COSTA, 2003, p. 89).
20
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
rio no vale do Paraguai, o que se configurou em uma conquista ameríndia entre as conquistas ibéricas, subjugando vários povos e aliando-se
com outros.
Com o domínio absoluto sobre a região, os Guaikurú renomearam a geografia do país. Nas “terras mbaiânica”, por exemplo, os rios Corrientes e
Piray passaram a ser Apa e Aquidabam; o distrito que correspondia a Pitun, Piray Itati, passou a ser Agaguizo; o monte de San Fernando ganhou
o nome de Itapucú-Guazú; o rio Guasarapo tornou-se Guache (COSTA,
1997, p. 37).
A renomeação dos topônimos “evidencia a verdadeira supremacia destes índios sobre os territórios ocupados” (COSTA, 1997, p. 37).
Com a conquista da província dos Itatins, os Mbayá-Guaikurú tornaram-se detentores de um imenso plantel de gado e de cavalos, fato que
foi fundamental para que estes pudessem subjugar outros povos ameríndios e também impor-se aos conquistadores espanhóis e portugueses. Segundo Costa, “durante quase dois séculos estes índios foram
senhores absolutos do território compreendido entre o Apa e o Mbotetey” (COSTA, 1997, p. 38).
Percebendo a instabilidade das conquistas missionárias, sabendo do avanço de vassalos portugueses, e temerosa com a evasão da
prata das minas andinas, a coroa espanhola vedou as comunicações de
Assunção com os territórios fronteiriços às possessões portuguesas, o
que obrigou os colonos assuncenhos a percorrerem um longo e incômodo caminho para que seus produtos chegassem a Potosí3.
Na representação cartográfica (Mapa 2) fica evidente o quanto a
medida da coroa espanhola afetou o comércio de Assunção com as
regiões mineradoras do Peru, ao obrigar que os assuncenhos transportassem seus produtos via Santa Fé. Além da proibição de comunicações
por meio dos territórios fronteiriços à América Portuguesa, a província
do Paraguai sofreu sucessivas divisões políticas e administrativas.
Entre 1680 e 1727 (ou: entre as incursões de Antonio de Campos Bicudo
e Pascoal Moreira Cabral e a fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus
do Cuiabá), a Província del Paraguay tinha passado por grandes partilhamentos político-administrativos. Desde pelo menos os anos 1560 fora cria-
3
Uacury Bastos destacou, justamente como outro fator determinante para a colonização portuguesa no centro da América do Sul, o “declínio” do “expansionismo assuncenho” (BASTOS,
1979, p. 59-75).
21
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
da a Santa Cruz de la Sierra, que desencadeou nova e corrente governación;
logo depois, Moxo (ROSA, 2006 p. 4).
A mudança de estratégia dos espanhóis em relação a suas conquistas foi um dos fatores que possibilitaram a investida portuguesa
no centro da América do Sul. O partilhamento político-administrativo diminuiu o raio de ação dos assuncenhos, principalmente ao norte.
É preciso reiterar, todavia, que a “ausência” espanhola não pode
ser definida em termos absolutos. O “recuo” espanhol não significou o
abandono das pretensões da coroa castelhana em garantir a posse dos
territórios que, de acordo com a linha do Tratado de Tordesilhas, pertenceriam ao reino de Castela. As missões jesuíticas espanholas ampliavam-se cada vez mais e estavam bem próximas aos territórios que
se constituíram, ao longo da primeira metade do século XVIII, como
conquistas portuguesas, inclusive colocando em contato colonizadores de ambas as coroas.
Os religiosos da Companhia da Província de Paraguai vão de Buenos Aires pelo rio acima (...) pelo rio Paraguai acima e pelos braços deste visitam
as muitas missões (...); isto viram com seus olhos Pascoal Moreira Cabral
e outros seus companheiros, primeiros descobridores do ouro de Coxiponé, porque estando na barra do rio Botetei, passaram os padres com bergantim e lhes ofereceram mantimentos que necessitavam; (...) (DEMONSTRAÇÃO, 1961, p. 206).
O que motivava a invasão por colonos portugueses, principalmente advindos da Capitania de São Paulo, aos territórios ameríndios
no centro da América do Sul era a reprodução de atividades que compunham o que se convencionou denominar de “sertanismo”. O “sertanismo” pode ser definido além da simples execução de atividades, como
o aprisionamento e venda de ameríndios como escravos ou a procura e
exploração de metais preciosos. As práticas sertanistas devem ser compreendidas articuladas a uma série de relações econômicas e sociais,
sendo parte de um “sistema” que, do ponto de vista econômico, possibilitava a mobilização e reprodução de capitais e que, do ponto de vista
social, provocou uma série de rupturas e reterritorializações.
O próprio termo “sertanismo” tende a mascarar este caráter eminentemente mercantil e moderno destas práticas, encobrindo de rusticidade relações sociais, econômicas e culturais que, embora tenham
contornos específicos, podem ser pensadas, ampliando a escala, como
parte de um sistema de relações típicas do processo de acumulação de
22
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
capital na época moderna, assim como, guardando as devidas proporções, o tráfico negreiro.
As minas do Cuiabá e a formação da ruralidade na terra da conquista
O deslocamento das práticas sertanistas para regiões cada vez
mais distantes do litoral atlântico ocorria tanto por vias terrestres quanto por vias fluviais. A reprodução destas práticas impulsionou o plantio de “roças” nas margens dos rios e caminhos de terra. Não é possível precisar quando foram formadas as primeiras espacialidades rurais luso-americanas nestes territórios; o que é certo, seguindo os indícios documentais, é que elas garantiram o abastecimento da empresa sertanista, e, ao mesmo tempo, funcionaram como fonte de lucros
para os roceiros (DOCUMENTO 1).
Muitas dessas roças, como aponta John Manuel Monteiro eram
formadas com trabalho ameríndio, seja submetido a regimes de trabalho compulsório, muitas vezes encobertos pela instituição da “administração”, seja aliado aos colonos, de forma relativamente independente (MONTEIRO, 1994, p. 91). O caráter fronteiriço destas relações,
entre colonos e povos ameríndios, extrapola o campo das indefinidas
fronteiras geopolíticas entre territórios portugueses e espanhóis. Estes ameríndios reproduziam práticas sociais que os inseriam na sociedade colonial em relações de troca com os colonos, com a produção de
excedentes, do mesmo modo em que em seus territórios reproduziam
práticas locais de longuíssima duração.
Ao mesmo tempo em que os ameríndios forneciam aos colonos
produtos do seu trabalho, recebiam em troca produtos que modificavam a lógica da produção ameríndia, como as ferramentas de metal,
por exemplo. De acordo com Monteiro,
(...) a organização do trabalho colonial, ao impor mudanças radicais à divisão do trabalho indígena, também contribuiu para o processo de transformação da população nativa. Nas unidades coloniais, os índios mantinham
roças para o seu próprio sustento, o que podia possibilitar a manutenção
de um elo entre formas pré-coloniais e coloniais de organização da produção. Mas as exigências da economia colonial muitas vezes alteraram a divisão do trabalho a ponto de romper definitivamente os padrões tradicionais da agricultura de subsistência. (...) Mais ainda a utilização de ferramentas européias aprofundava esta ruptura. O testemunho de Jerônimo
de Brito, senhor de um prestigioso plantel de escravos índios, é sugestivo
nesta trajetória. Determinando a liberdade para todos os índios, este doou
23
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
a cada homem uma foice, uma enxada e um machado “para fazerem suas
roças e sustentarem (...)” (MONTEIRO, 1994, p. 172).
As relações entre ameríndios e colonos não se davam apenas pelo
escambo, mas também na troca de mercadorias por dinheiro. Estas
trocas ocorriam nos pontos de contato entre as sociedades ameríndias
e parcelas da sociedade colonial. A repetição das trocas e a conseqüente regularidade destas transformavam parte da produção em excedente e, por conseguinte, em mercadorias, e, concomitantemente, as mercadorias produzidas pela sociedade colonial tornavam-se necessidades entre os povos ameríndios.
A produção agrícola de ameríndios relativamente autônomos,
possibilitando a expansão da exploração do trabalho ameríndio de forma compulsória, foi apenas uma das características da colonização
portuguesa que demonstra a diversidade das relações mantidas entre
colonos e povos ameríndios. Estas relações se tornariam ainda mais
complexas com o posterior contato com povos como os Payagoá, Caiapó e Mbayá-Guaykurú, que mantinham, desde o século XVI, relações
com os espanhóis.
Mesmo considerando que práticas coloniais se espacializavam
nos interiores da América do Sul, possibilitando a captura e tráfico de
“negros da terra” e a procura e exploração de metais preciosos, foi somente após a descoberta de significativos veios auríferos nas regiões
próximas ao rio Cuiabá que se espacializaram, de forma estável e interligada, ambientes coloniais fixos.
Antes da exploração aurífera de forma sistemática, já se reproduziam, ainda que de forma embrionária, atividades produtivas que
visavam o abastecimento. Quando se inicia a exploração de forma ordenada nas minas do rio Coxipó-Mirim, em 1718, percebe-se, por meio
da documentação, que, simultaneamente à atividade mineradora, expandem-se atividades agrícolas (SÁ, 1975, p. 11). Mesmo que os indícios apontem para formação de ambientes rurais fixos desde pelo menos 1718, muitos autores construíram suas análises tendo como pressuposto o caráter improvisado e inconstante dos ambientes rurais.
Estes pressupostos estão ancorados em uma tradição historiográfica que remete, entre outros autores, a Sérgio Buarque de Holanda.
Este afirmou que “os benefícios mais seguros, embora também mais
trabalhosos da lavoura, foram logo abandonados pelos do reluzente
metal das minas” (HOLANDA, 1994, p. 138). O autor chega a dizer que
24
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
“os primeiros moradores do arraial cuiabano tiveram uma existência
comparável à dos índios coletores e caçadores, existência que só se
concilia com um modo de vida andejo e inconstante” (HOLANDA,
1994, p. 149). Mas esta tradição tem outras raízes, das quais destacamos: “Anais de Mato Grosso”, de Henrique Beaurepaire-Rohan, escrito
em meados do século XIX. Tendo como base relatos de cronistas e
documentos do Conselho Ultramarino, este autor afirma:
Era tal o afã com que os primeiros colonos se entregavam aos trabalhos nas
lavras, que nem sequer tratavam de prover aos meios de subsistência. A
lavoura desprezada e as poucas plantações que havia pereciam já por falta
de trato, já pelo rigor das estações. Nem lançaram mão da pesca, sendo
aliás tão piscoso o rio (BEAUREPAIRE-ROHAN, 2001, p. 149).
Argumento análogo ao do engenheiro militar carioca Beaurepaire-Rohan foi o exposto, por volta da década de 30 do século XX,
por Washington Luís para explicar o não desenvolvimento da agricultura:
A agricultura, tarda na retribuição ao trabalho, não se compactua com o
desejo febril de enriquecer rapidamente; definhava, estiolava-se e recebia
golpe de morte com a descoberta das minas de ouro, que, excessivamente
remuneradoras, apesar dos quintos, absorviam a atividade de todos.
O ouro era a única mercadoria de exportação; tudo o mais era importado do reino. O comércio local era mais que insignificante (LUÍS, 1938,
p. 22).
Nos mesmos documentos que estes autores utilizaram, encontramos indícios para contrapor suas afirmações. Seguindo a crônica
de Barbosa de Sá, por exemplo, percebemos que, concomitantemente
aos descobertos, os sertanistas “trataram logo de fabricar casas e lavouras pelas margens dos rios Cuiabá e Coxipó; extinguindo uma aldeia de gentio que se achava no lugar chamado hoje porto do Borralho”
(SÁ, 1975, p. 11). Ocorreram, a partir de então, vários outros descobertos, o principal deles, no córrego Prainha, afluente do rio Cuiabá,
No mês de outubro deste ano (1722) fez Miguel Sutil, natural de Sorocaba,
viagem pra uma roça que tinha principiado na borda do Cuiabá. Lugar
onde depois foi sítio de Manoel dos Santos Ferreira; chegando plantou o
seu roçado e mandou dois carijós ao mel (...) (SÁ, 1975, p. 14).
Analisando este trecho da narrativa, percebemos indícios da
expansão de atividades rurais ao longo das margens do rio Cuiabá
e a exploração de atividades complementares, como a extração de
25
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
mel 4. Do local onde se formaram as roças, nos descobertos do Coxipó,
até o córrego do Prainha levava-se por volta de 18 a 20 dias de viagem
pelo rio Cuiabá (DOCUMENTO 2).
Além do relato de Barbosa de Sá, as cartas de sesmarias também
fornecem indícios sobre a formação de ambientes rurais nos primeiros anos de conquista portuguesa no centro da América do Sul. Em
muitas das cartas de sesmarias, concedidas partir de 1726, as autoridades foram informadas que os requerentes já ocupavam as terras há
alguns anos, além de citar vizinhos não requerentes que também possuíam roças e criações (DOCUMENTO 3).
As unidades produtivas multiplicaram-se na região das “minas
do Cuiabá”, à beira dos rios (principalmente do Cuiabá), abastecendo
os arraiais e povoados e um considerável fluxo de pessoas atraídas
pelos descobertos de ouro e por oportunidades de explorar atividades
comerciais e produtivas (CAMELO, 1961, p. 135-136). Ao norte, “rio
Cuiabá acima”, em direção à Chapada, também percebemos a espacialização de ambientes rurais.
Muitas unidades produtivas eram descritas como “roças”. Apesar
do termo “roças” aparentemente fazer referência à agricultura, nestas
unidades produtivas desenvolvia-se uma série de atividades. Além do
plantio, principalmente de milho e de feijão, também havia criações de
pequenos animais, como galinhas, porcos e carneiros, e, eventualmente, cabeças de gado; praticava-se ainda a caça, a pesca e outras atividades
extrativistas. Esta, inclusive, foi uma das razões por optarmos pelo termo “ruralidade”, e não atividades agrícolas ou agropastoris, para caracterizar as práticas de reprodução social no meio rural.
Na margem direita do descobrimento do Prainha, começou a ser
edificado, em 1722, o arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá. A partir
de então, percebemos, pela documentação sobre este arraial, que aos
poucos se delineou de forma mais concreta uma efetiva fronteira entre
o urbano e o rural.
Além dos interesses dos colonos, também havia, desde 1718, a
intenção formal, do Conselho Ultramarino, em fundar colônia nas Minas
do Cuiabá (ROSA, 1996, p. 65). Ainda segundo Carlos Rosa, “em fins
de 1721, o bispo do Rio nomeou Vigário da Vara (juiz eclesiástico) para
4
Nos documentos observamos que o mel era ingrediente de vários remédios e bebidas.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Cuiabá. Em 1723, criou freguesia ou comarca eclesiástica no Cuiabá,
sediada na Igreja Bom Jesus, elevada a Matriz. Em junho, o rei mandou
fundar vila no Cuiabá” (ROSA, 2003, p. 15).
A ordem real de “fundar vila” só foi cumprida em 1727, com a
vinda a Cuiabá do governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Meneses. Gervásio Leite Rebelo, secretário do governador de
São Paulo, construiu um relato sobre a viagem que, juntamente com o
governador e mais uma comitiva com cerca de 3 mil pessoas, percorreu de São Paulo às “minas do Cuiabá”. Outro relato que analisaremos
foi escrito por Cabral Camelo, que veio a Cuiabá no ano seguinte. A
partir da análise destes relatos e de outros documentos, percebemos
que no caminho fluvial as espacialidades rurais que abasteciam as
monções ampliavam-se ao longo do tempo. No varadouro de Camapuã, Camelo aponta que havia “duas roças povoadas” e acrescenta:
Esses dois pobres roceiros vivem como em um presídio, com suas armas
sempre nas mãos; para irem buscar água, não obstante o terem-na por
perto, vão sempre com guardas: no roçar, plantar e colher os mantimentos
levam sempre todas as armas, e enquanto vigiam uns trabalham outros,
mas sempre com espingardas à mão; e nem com toda esta cautela se livram
de que em várias ocasiões lhes tenham os Caiapós morto a alguns: colhem
contudo bastante milho e feijão, e o vendem muito bem; quando eu fui
venderam a dezesseis e dezoito oitavas o milho; o feijão a vinte; e as galinhas porcos e cabras, como quiseram. A roça de cima tem já canavial e
bananal, e está cercada toda de boa estacada (...) (CAMELO, 1961, p. 134).
A territorialização portuguesa no varadouro de Camapuã significou a desterritorialização dos índios Caiapó de parte do seu extenso
território, o que fica bastante evidente tanto na documentação quanto
na cartografia da época. O fato de Camelo fazer referência a “dois pobres roceiros” que vivem em Camapuã, não deve nos levar a conclusões precipitadas sobre as características das paisagens rurais do varadouro. As roças de Camapuã contavam com a presença de trabalhadores escravos. Não temos uma estimativa do número, mas em 1728
um documento aponta que em “Camapuã como no caminho dos Goiazes, nestes poucos anos passados, tem feito os ditos gentios (Caiapó)
muitos danos e hostilidades, porque só aos roceiros têm morto quarenta escravos” (DOCUMENTO 5).
Apesar de o documento apontar a morte de “escravos” não sabemos se se tratavam apenas de escravos de origem africana, pois no
mesmo documento fica evidente o costume de tomar os índios como
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Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
escravos. Fica claro, por outro lado, a marcante presença de escravos
africanos, sendo inclusive estes que carregavam em fileira as cargas e
empurravam os carros em que se transportavam as canoas que eram
atravessadas de um lado a outro do varadouro, em um percurso que
durava de quinze a vinte dias (CAMELO, 1961, p. 134). Além do trabalho escravo, a observação de Camelo de se tratarem de “duas roças
povoadas” é sinal de que, além dos dois “roceiros” e de escravos, também outras famílias habitavam o varadouro de Camapuã.
Seguindo o relato de Camelo há evidências de que, na medida
em que este se aproximava da região das “minas do Cuiabá”, havia
uma maior densidade de ambientes coloniais, o que pode ser percebido inclusive pelos elementos narrativos de seu relato. Ao entrar no rio
Taquari, ele narra:
Abaixo das itaipavas há duas roças, que se lançaram no ano em que eu
passei aquelas minas; mas como até aqui chegam os Caiapós, não foram de
muita dura: pelo Taquari abaixo se gastam dez ou onze dias, tem vários
sangradouros, que formam grandes lagoas no Pantanal. Pantanal chamam
os Cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que, começando no meio
do Taquari, vão acabar quase junto ao mesmo Rio Cuiabá. Este Rio Taquari
até o meio tem alguns matos, o mais tudo são campos; dizem que de uma
e outra parte há gentios; mas supõe-se que são restos de algumas nações
que os sertanistas conquistaram. Deste vi só três bugres, que traziam em
sua companhia um Sargento-mor Paulista e eram agigantados (CAMELO,
1961, p. 135).
O topônimo “Pantanal” merece atenção, pois mostra como em
suas narrativas os colonos luso-americanos “parecem ignorar a tradição precedente tão imbricada no imaginário ocidental, pelas narrativas espanholas e pelas cartas geográficas universais. Nos seus caminhos nomeiam uma nova geografia” (COSTA, 1997, p. 171). Esta região
descrita por Camelo, reconhecida pelos “cuiabanos” como Pantanal,
era denominada pelos colonizadores espanhóis do século XVI como
mar, lagoa ou terra de Xarayes (BASTOS, 1979, p. 25). Chegando ao rio
que emprestara seu nome à Vila Real, Camelo descreve:
Da barra deste rio serão vinte ou vinte dois dias de viagem. Ao quarto ou
quinto dia se chega ao Arraial Velho, ou registro, que vem a ser uma roça
com muito bom bananal: dia e meio acima desta roça está outra também
povoada, e desta até os Morrinhos, que serão sete ou oito dias de viagem,
a outras duas que dão bastante milho e feijão; porém, dos Morrinhos até a
vila, que são seis ou sete dias, quase todo este rio está cercado de roças e
28
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
fazendas, como também quatro ou cinco acima da mesma vila, e em todas
se plantam milho e feijão, em dois meses do ano, março e setembro; dão
também excelentes mandiocas, de que se faz farinha; há nelas muitas e
melhores bananas que as destas minas, e as suas bananas são mais suaves
e de melhor gosto: tem já muitas melancias, e quase todo o ano, só os
melões não produzem em tanta abundância; as batatas são singulares e
não menos o são os fumos para o tabaco e pito (CAMELO, 1961, p. 138139).
Camelo aponta que as roças eram plantadas duas vezes ao ano,
março e setembro, o que era possível graças à possibilidade de ocupar
grandes áreas para o plantio, pois era necessário um conjunto de ambientes com características diferenciadas. Devemos lembrar que nesta
época, em Mato Grosso, assim como em todas as áreas de floresta tropical do mundo, o plantio de muitos gêneros era feito por meio de
roças coivaradas, que, devido à abundância da terra e à pouca fertilidade dos solos, necessitavam de longos pousios, exceto nas roças de beira-rio, onde, uma vez desmatada a margem, as águas encarregavam-se
de renovar anualmente a fertilidade do solo.
Este plantio em março dava-se justamente à beira dos rios, aproveitando o adubo natural deixado pelas águas da vazante. A plantação
em setembro, logo nas primeiras chuvas, era feita em partes mais altas, para que, quando o milho e o feijão estivessem prontos para serem
colhidos, por volta de fevereiro, não estivessem sob as águas. Portanto, além de estar estrategicamente na rota das embarcações, a ocupação
das beiras dos rios justifica-se pela fertilidade dos solos e pela possibilidade de plantio em épocas diferenciadas.
Além das águas dos rios e dos córregos, também as chuvas eram
fundamentais para as atividades agrícolas. Em uma agricultura como a
praticada neste período a regularidade destes ciclos entre cheias e vazantes era fundamental. Uma não continuidade das chuvas a partir de
setembro obrigaria o replantio das roças (REBELO, 1961, p. 129).
Camelo faz referências ao “Arraial Velho, ou registro”, localizando-o cerca de cinco a seis dias de viagem pelo rio Cuiabá, onde também havia o “porto do Borralho”. Era um local importante para os sertanistas se abastecerem para o restante da viagem, mas também era o
local do “registro”, ou seja, onde os homens e as mulheres que faziam
parte das tropas pagavam tributos sobre os valores, os pesos e as medidas de suas cargas e seus escravos. Os Morrinhos provavelmente
fazem referência à área onde atualmente se localiza a cidade de Barão
29
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
de Melgaço, no rio Cuiabá abaixo. Também era outro importante local
de abastecimento.
Camelo diferencia “roças e fazendas”. Apesar de esta diferenciação estar presente tanto na documentação oficial quanto nos relatos,
muitas vezes é difícil distinguir e caracterizar as “roças” e as “fazendas”. Os termos “roça” e “roceiro”, de uma forma geral, caracterizam
ambientes rurais de pequena produção, encabeçados por livres pobres.
Já vimos, no entanto, que apesar da produção do varadouro de Camapuã ser marcadamente escravista, a forma de espacialização e os senhores destes escravos são descritos por Camelo como “roças” e “roceiros”. Há outras referências que caracterizam o ambiente rural de
Camapuã como uma fazenda pertencente a dois sócios (CAMELO, 1961,
p. 134).
Não percebemos o contrário, ou seja, não há referências de fazendas de pequenos produtores não escravistas. Apesar destas ponderações acerca dos limites de uma caracterização precisa de roças e
fazendas, acreditamos ser válida a percepção de uma e outra como
ambientes rurais distintos. Esta distinção se constitui em instrumento analítico para as relações entre a produção escravista em larga escala e a produção rural dos livres pobres (que poderiam eventualmente utilizar o trabalho escravo em uma escala menor).
Segundo Camelo, os principais produtos agrícolas eram o milho
e o feijão, mas, além destes, plantava-se também mandioca, banana,
melancia, batata, melão e fumo. Entre estes podemos destacar o fumo
como um produto que, ao lado da produção de aguardente, que veremos adiante, alargava as potencialidades do comércio, já que se tratavam de mercadorias de grande circulação não só na América, mas no
império português como um todo. A pesca era uma atividade desenvolvida desde o princípio da colonização, reproduzindo práticas portuguesas de longa duração. O peixe, fresco ou salgado, era vendido no
mercado local (CAMELO, 1961, p. 139).
A leste da Vila Real, nas espacialidades rurais no rio São Lourenço, as roças invadiam cada vez mais as margens dos rios em territórios dos índios Bororo. Ao norte, em território Pareci, os colonos avançavam em direção à Chapada (atual Chapada dos Guimarães), onde se
reproduziram, especialmente, lavouras de cana-de-açúcar. Além de
invadir os territórios ameríndios para reproduzirem atividades rurais,
o aprisionamento/venda de índios era uma lucrativa atividade econô-
30
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
mica. Com a intensificação do processo de colonização, esta atividade
não perdeu força. Entre as nações ameríndias que sofreram a violenta
ação dos colonos, uma das mais “caçadas” foi a dos Pareci. Mas não foi
o fato de serem alvos deste tipo de ação que confere aos Pareci singularidade entre os demais povos ameríndios. Cabral Camelo relata sobre
eles:
E gentio este (Pareci) que não faz mal a ninguém; são fracos e
inábeis para a guerra, mas nem por isso deixam de ser engenhosos, e de rara habilidade para o mais: as fêmeas são como nossas
bastardas, e boas para servirem uma casa com limpeza (CAMELO, 1961, p. 137).
Muito mais do que descrever como estes índios se organizavam
socialmente, o relato de Camelo permite ver a forma como os colonos
valorizavam os Pareci como uma mão-de-obra diferenciada dos demais
índios. Contudo, as imagens construídas sobre os Pareci não são homogêneas. O ouvidor de Cuiabá escreve ao rei, em 1731, queixando-se
das mortes que os Pareci, segundo ele antropófagos, estariam causando aos colonos (DOCUMENTO 6). No entanto, prevaleceram, ao longo
do tempo, as referências aos Pareci como “índios pacíficos”5.
A relação dos colonos com os Pareci não foram pautadas apenas
pelas práticas de aprisionamento. Os mesmos fatores que motivavam
os colonos a invadir os territórios Pareci, também serviram de justificativa para as autoridades estabelecerem outras relações com estes
ameríndios. Em 1732, Rodrigo César de Meneses escreve ao rei sobre
os Pareci:
Este habita ao norte da nossa povoação em grande distância, com estabelecimento de aldeias e lavouras para se sustentarem (...) é gentio muito pacífico e fácil de se domesticar (...) E por esta razão alguns sertanistas os vão
buscar e trazem por força (...) o que se lhes deve mandar proibir sob graves
penas (...) se deve esperar que ordene aos religiosos daquele Estado que
mandem missionários (DOCUMENTO 1).
Para os planos geopolíticos portugueses, a introdução de ameríndios na sociedade colonial pelo batismo, e a inserção destes nesta
sociedade como súditos do rei português era parte do que, curiosa-
5
Sobre a relação entre colonos e índios Pareci, e particularmente a construção da imagem de
“índios pacíficos”, ver Canova, 2003.
31
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
mente, se convencionou chamar de “política de povoamento”, o que na
verdade se constituiu em política de colonização, já que a densidade
demográfica, se levarmos em conta as sociedades indígenas (maioria
absoluta da população), diminuiu consideravelmente nas áreas colonizadas.
São vários os documentos que apontam na direção de tentar coibir que os sertanistas continuassem escravizando os Pareci. O juiz ordinário de Cuiabá acusa, em 1732, os sertanistas de prender ameríndios
Pareci e vendê-los como “cativos” (Documento 5). O Conselho Ultramarino, em 1734, condena o aprisionamento dos Pareci e, seguindo o
parecer de Rodrigo César de Meneses, recomenda o envio de missionários (DOCUMENTO 7).
É possível inferir, analisando estes documentos, que as tentativas de coibir a ação dos colonos não tiveram êxito. O fato é que os
Pareci foram explorados pelos colonos que praticavam o lucrativo “comércio de gentios”, assim como se incorporaram e foram incorporados de outras formas à sociedade colonial. O Conselho Ultramarino é
informado sobre a presença de ameríndios Pareci em São Paulo. E também é notório que os índios Pareci, pelo menos aqueles que habitavam
“ao norte da Vila Real”, passaram a integrar ambientes coloniais, urbanos e rurais, nestes últimos praticando a agricultura, a pesca e a salga
de peixes (DOCUMENTO 1; SÁ, 1975, p. 18; ROSA, 2003, p. 23).
A formação de ambientes rurais no centro da América do Sul,
nas primeiras décadas de colonização portuguesa, engendrou ambientes diversos, tanto do ponto de vista das paisagens rurais quanto da
diversidade de agentes sociais que encontraram nestas atividades possibilidades de reprodução social e econômica. A expansão das conquistas e a consolidação da posição portuguesa iriam cada vez mais
inserir esta “ruralidade” no âmbito da América lusitana e do império
português como um todo, articulando-se, por exemplo, a geografia
política da coroa em relação aos seus territórios ultramarinos.
As “minas do Mato Grosso” e a expansão das conquistas portuguesas
Durante todo o período de conflito com os Payagoá, a sociedade
colonial portuguesa engendrada “nas minas do Cuiabá” não ficou estagnada. Concomitantemente à “guerra justa”, os portugueses continuaram
expandindo sua presença no centro da América do Sul. Se ao sul da
Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e ao norte de Assunção a
32
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
presença mbaiânica dificultava a colonização tanto portuguesa quanto
espanhola, os colonos portugueses avançam a oeste da Vila Real.
Saindo de Cuiabá, os sertanistas portugueses aprisionavam índios Pareci e procuravam metais preciosos. A descoberta de ouro no
vale do rio Guaporé, em território Pareci, em 1734, deu um novo impulso à colonização portuguesa no centro da América do Sul. A descoberta e conquista dos territórios seguiu o padrão das conquistas portuguesas na região: aprisionamento de índios, procura por metais preciosos, descobertas, conquistas e efetivação da colonização. No entanto, este processo era cada vez melhor planejado pelos colonos, que
buscavam garantir as condições necessárias para a sua permanência.
Os colonos e autoridades metropolitanas sabiam que a efetivação das
conquistas dependia de muito mais que o “reluzente brilho do metal”.
Segundo Barbosa de Sá, apesar de, como afirma Canavarros (2004, p.
187), se enganar em relação às datas em que ocorrem os descobertos de
Mato Grosso:
Partiu em princípio deste ano (1731) o sargento mor Antonio
Fernandes de Abreu com os descobridores das Minas de Mato
Grosso e outros muitos a lançarem roças nos ditos descobrimentos. Por lá levaram todo este ano examinando as minas e depois
de feitas as roças voltarão em dezembro dando notícia miúda
daqueles sertões (SÁ, 1975, p. 32).
O desencontro das datas entre os autores não nos permite precisar o tempo em que estes colonos permaneceram nas minas do Mato
Grosso, mas tudo indica que tenham ficado aproximadamente um ano,
tempo suficiente para plantar as roças e criar condições seguras para o
retorno. Muitos mineradores que foram de Cuiabá para Mato Grosso
levaram suas “mulheres e famílias” (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p.
15), o que possibilitou e ocasionou não só a consolidação dos ambientes rurais, como também de ambientes urbanos.
Observando uma representação cartográfica de 1746 (Mapa 3),
podemos ter uma noção aproximada da disposição das espacialidades
coloniais portuguesas na “Chapada das Minas do Mato Grosso”, região banhada por vários rios e córregos e de grandes reservar auríferas.
O arraial de Santana não está representado na legenda no quadro no
alto da imagem, à direita, mas está no corpo da imagem, nas bordas da
chapada, próximo de várias lavras de ouro.
33
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
Em 1734, segundo Barboza de Sá, é levantada uma capela em
Santa Anna (SÁ, 1975, p. 35). Neste mesmo ano começa a ser formado
o arraial de Pilar (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 14), que na figura
está representado com a legenda 7 (entre o Arraial de Santa Anna e as
lavras do córrego Monjolo), onde foi “edificada outra capela, dedicada
à mesma Senhora” (FONSECA, 2001, p. 18).
Em 1736, foi edificado o arraial de São Francisco Xavier (FONSECA, 2001, p. 14-15) (que na legenda do Mapa 3 corresponde ao número 2). Localizava-se mais a oeste, em um vale entre as serras da
chapada. Em São Francisco Xavier, “as casas são fabricadas de madeira
e barro e algumas de pedra insossa, todas térreas e somente uma morada de taipa de pilão com seu sobrado, coberta de telha, e quatro mais
têm a mesma cobertura” (FONSECA, 2001, p. 18). Este último era o
mais importante dos arraiais, onde se concentravam instrumentos de
poder, tanto da coroa quanto da Igreja,
Neste ano em 28 de novembro tomou posse da Capelania destas minas, o
padre Pedro Leme, provido pelo mesmo Reverendo Vigário da Vara e da
Igreja de Cuiabá, acima nomeado, e lha entregou o padre Manoel Antunes
de Araújo que desde que se fez a Capela de São Francisco Xavier, se passou para a Chapada a exercer nela o ofício paroquial, por se achar ali junta
a maior parte do povo destas Minas6 (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 18).
Além dos arraiais, lavras e córregos, o último item da legenda faz
referência às “roças que há em circunferência da chapada”, que correspondem aos círculos, desenhados em várias partes do mapa. Fonseca,
em suas “Notícias sobre a situação de Mato Grosso e Cuiabá”, escreveu
sobre as “minas do Mato Grosso”:
Negros da Guiné escravos consta pelo livro da matrícula da capitação,
haver o número de mil e cem, dos quais somente seiscentos é que poderão
empregar nas faisqueiras e nas lavras, por se ocupar o resto de lavouras de
mantimentos; cujas fazendas se acham estabelecidas na planície em circunferência da chapada, entre esta e o Sararé (FONSECA, 2001, p. 16).
Na representação cartográfica podemos perceber que o rio Sararé
“desenha” esta “circunferência”. A planície banhada, além do rio Sara-
6
É significativo que os cronistas destaquem a construção das capelas como marco da edificação
dos arraiais. Em um artigo recente, o historiador Francisco Eduardo de Andrade destacou o papel
das capelas no processo de colonização portuguesa em Minas Gerais e sua importância para “o
enquadramento social da população” (ANDRADE, 2007, p.151-166).
34
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
ré por vários córregos afluentes, permitiu o plantio dos gêneros agrícolas que eram comercializados localmente. Nos “Anais da Vila Bela”
consta que os arraiais de Mato Grosso, em 1736, eram abastecidos de
milho pelas “roças e plantas do mesmo descoberto”, assim como dá a
entender que os cortes de carne também são de criações locais (ANAIS
DA VILA BELA, 2001, 16; FONSECA, 2001, p. 17). Outras mercadorias
vinham da produção de Cuiabá, ou via Cuiabá, por meio do comércio
monçoeiro. A ligação de Cuiabá às minas do Mato Grosso era feita, nos
primeiros dois anos de colonização, por um caminho misto, fluvial e
terrestre. Em 1736 foi aberto um caminho por terra, que encurtou o
tempo da viagem de Cuiabá a Mato Grosso.
Além da agricultura e da pecuária, a pesca exerceu um papel
muito importante no abastecimento do mercado local. A exemplo de
Cuiabá, desde o princípio da colonização o peixe era vendido seco ou
salgado. A pescaria do rio Sararé marcou inclusive a toponímia da
região. Em 1738, em uma viagem pelos rios Sararé e Guaporé, Salvador de Espinha deu início às atividades pesqueiras nos rios Guaporé e
Corumbiara. Nos “Anais da Vila Bela da Santíssima Trindade” consta:
Desta navegação do Espinha que foi o primeiro que fez pescaria neste rio
Guaporé, e levou de volta para a Chapada; que seguiram as pescarias por
este rio abaixo, não passando porém da barra do rio Verde, por haver
noticias que daí para diante tinha o rio muito gentio, e com esta insinuação mandou o brigadeiro Antonio de Almeida Lara a Antonio de Almeida
Moraes, homem bastardo, a examinar, com ordem que topando com as
aldeias de Castela voltasse, e daqui, se seguiu a abrir esta conquista ao
gentio que ao depois seguiram muitos outros; e daqui também se seguiu o
conhecimento que no rio Corumbiara (...) que na margem ocidental deságua no Guaporé, tinha ouro, por cujos sertões andaram estes conquistadores sempre na parte do oriente do Guaporé; e alongando-se por ele abaixo,
até com a descoberta dos Arinos de que ao diante se fará menção, se deixou esta conquista de descobrimento do Corumbiara, com o qual junto
com os sertanistas, se foram também estabelecendo pescadores pelo rio
abaixo (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 17-18).
Neste trecho fica claro que a atividade pesqueira na região do rio
Guaporé e do rio Corumbiara antecedeu outras práticas econômicas,
como o aprisionamento de índios e a exploração aurífera, e que a pescaria articulou-se com estas atividades.
Pelo mês de abril de 1742, se associaram Tristão da Cunha Gago, João da
Borba Gato, Mateus Corrêa Leme, Francisco Leme do Prado, Francisco
35
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
Borges Miranda, Dionísio Bicudo, naturais desta Capitania de São Paulo,
com Manuel Felix Lima, Joaquim Ferreira Chaves, Vicente Pereira de Assunção e Manuel de Freitas Machado, naturais do Reino, assistentes todos no arraial da Chapada de São Francisco Xavier do Mato Grosso e suas
vizinhanças do distrito desta Comarca do Cuiabá e determinaram seguir
todos viagem pelo rio Guaporé Abaixo (...); chegado ao rio Guaporé em
sítio chamado da Pescaria, fabricaram mais algumas canoas e com toda
cautela e vigilância se prepararam de mantimentos e mais necessário para
a viagem (...) (PEREIRA, 2001, p. 11).
Os pescadores que se estabeleceram ao longo do rio Guaporé também desenvolveram atividades agropastoris, o que passou a ser muito
importante para possibilitar explorações e contatos dos súditos da coroa
portuguesa com os castelhanos. Os sócios desta empresa de exploração ambicionavam, sobretudo, fazer contato com as missões jesuíticas
e estabelecer relações comerciais com os vizinhos espanhóis. Além do
aprisionamento de índios e da exploração aurífera, o comércio do pescado e dos mantimentos garantiu a continuidade da expansão da conquista portuguesa na região de litígio em relação à coroa espanhola.
Nos “Anais da Vila Bela”, é apontado que os sertanistas, que adentraram os territórios ao longo do rio Corumbiara, em 1746, antes de fazer
o “exame de ouro”, precisaram “primeiro vencer muito gentio que aquela
campanha tem e saindo para fora ao rio Guaporé”. Foi o “primeiro ano
em que se foram situar em forma de arraial na ilha Comprida”. Neste
povoado,
uns saíam à pescaria, que seca ou salgada, trazia a vender a estas minas, e
outros tomavam aos sertões à conquista do gentio, e ao mesmo tempo
entravam os padres Missionários das Índias de Espanha a fundar aldeias
que fizeram na margem oriental deste rio, ajudados para isso dos mesmos
portugueses a que pediram várias vezes ajuda para domarem o gentio
(ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 21).
Havia uma evidente articulação das atividades extrativistas e agrícolas com outras atividades econômicas e com a geopolítica, inclusive
antecedendo e possibilitando estas outras atividades. Os sertanistas
encontravam nestas espacialidades rurais os mantimentos que necessitavam, a segurança para descansar e preparar-se para seguir viagem. As
autoridades coloniais e metropolitanas também se favoreciam com a
formação destas espacialidades rurais que, além de efetivar a conquista
de territórios indígenas, possibilitavam o avanço cada vez mais a oeste,
próximo dos territórios espanhóis, em relação aos quais podiam ter in-
36
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
formações mais consistentes. Percebemos que a pesca e as atividades
agrícolas não têm apenas um caráter acessório e secundário para outras
atividades, mas que possuem uma relativa autonomia em relação às atividades econômicas e aos interesses geopolíticos.
Embora não apareça na última imagem que analisamos, o Porto
Geral do rio Sararé era conhecido como “Porto dos Pescadores” ou “sítio da Pescaria”. Navegando pelo rio Sararé acima, os pescadores estabeleceram-se ao longo do rio Guaporé abaixo, juntamente com sertanistas que exploravam ouro e aprisionavam índios (ANAIS DA VILA
BELA, 2001, p. 21).
Em outro mapa (Anexo 4), em escala menor, percebemos a ligação entre o rio Sararé e o rio Guaporé. Apesar do mapa ser datado de
1769, percebemos que várias destas espacialidades formaram-se ainda
na primeira metade do século XVIII, antes da fundação da Capitania
de Mato Grosso e da Vila Bela da Santíssima Trindade. Nota-se que
também ao longo do rio Alegre, afluente do Guaporé, formaram-se
espacialidades rurais.
Até 1736, as “minas do Mato Grosso” e “as minas de Cuiabá”,
ambas no âmbito administrativo da Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá, ligavam-se aos ambientes coloniais portugueses mais próximos do litoral atlântico pelo caminho fluvial percorrido pelas monções. Em 1737, o caminho de terra que ligava Cuiabá a Goiás foi concluído (SÁ, 1975, p. 36-37). A estrada de terra de Cuiabá a Goiás, além
de constituir-se em uma via de comércio alternativa às monções, desempenhou um papel fundamental para a conquista de territórios de
índios, principalmente dos Caiapó e Bororo, e ainda efetivou, com a
edificação de povoados, a conquista de territórios que constituíam uma
lacuna entre as conquistas portuguesas no litoral e no extremo oeste.
Entre a Vila Boa de Goiás e a Vila Real do Cuiabá, as ligações passaram
a ser cada vez mais intensas, preenchendo de roças, engenhos, sítios
os caminhos que levavam de uma a outra vila, consolidando cada vez
mais a posse portuguesa destes territórios.
As “cavalarias e gado” que foram trazidas ao longo dos anos pelo
caminho de terra também tiveram impacto sobre a dimensão territorial
da conquista. Principalmente a partir da década de 1740, o gado invadiu a porção norte do Pantanal, possibilitando a espacialização de fazendas, que, além de muito gado, contavam também com trabalho escravo, de negros e ameríndios, e com trabalho livre de camaradas e
37
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
agregados. As cartas de sesmarias, principalmente a partir da década
de 50, são indícios da espacialização das fazendas nesta região.
A colonização portuguesa avançava, espacializando ambientes
coloniais articulados em uma diversidade de atividades econômicas:
comércio, mineração, agricultura, pecuária, atividades extrativistas. Este
avanço aproxima-se cada vez mais das missões jesuítas espanholas de
Moxos e Chiquitos. Em 1736, havia 24 missões em Moxos e 10 em
Chiquitos, somando ao todo 47 250 índios (CANAVARROS, 2004, p.
292). O primeiro contato de que se tem notícia entre portugueses e as
missões jesuíticas espanholas ocorreu em 1740 (CANAVARROS, 2004,
p. 216). Outra viagem exploratória para o território espanhol ocorreu
em 1742 e partiu do arraial de São Francisco Xavier. Esta viagem foi
minuciosamente relatada em uma “Relação” feita pelo ouvidor geral
da comarca de Cuiabá, João Gonçalves Pereira (PEREIRA, 2001). Mesmo antes de se explorar a rota Guaporé-Madeira havia ambientes rurais que possibilitavam o abastecimento das embarcações, além de tornarem-se locais estratégicos de contatos entre os súditos das coroas portuguesa e espanhola. Sobre o contato com a missão de São Miguel, se lê:
No dia 12 de julho chegaram à missão de São Miguel, na qual foram recebidos pelo padre principal Gaspar do Prado, com grandes júbilos de alegria e com muita caridade (...) se resolveram rodar rio abaixo e subiram
pelo rio Itonamas com muito trabalho pela grande correnteza que tem, e
chegando a dita missão Santa Maria Madalena, foram recebidos pelo padre principal José Reiter com grande prazer e alegria e com a mesma os
hospedou com grandeza; (...) a vista de que resolveram (...) seguir a viagem para a Exaltação de Santa Cruz, na qual foram recebidos pelo padre
principal Leonardo de Valdivia com as mesmas demonstrações de alegria
(...). Vendo o dito Francisco Leme do Prado e companheiros o bom agasalho que lhe faziam os padres, especialmente o principal da missão da
Exaltação no discurso de dezoito dias que nela estiveram, lhe ofertaram
algumas coisas que levavam e somente aceitaram alguma (sic) miudezas e
um retalho de seda para espaldar do lado de um altar, também prendaram
os índios com algumas facas flamengas, pentes, fitas, miçangas ou fio de
contas, e os padres lhe remuneraram a oferta com algum, pão de sal, açúcar, cera branca, sabão, vinho, pão de trigo, biscoito, aguardente de cana,
pano de algodão, livros espirituais e outras miudezas. (...) Nos fins de
fevereiro do presente ano chegaram ao Mato Grosso os ditos Tristão da
Cunha Gago, João da Borba Gato e Antonio de Almeida Morais, com as
suas tropas com bastante gentio de várias nações que conquistaram, e
alguma amostra do ouro que acharam em seis ribeirões pelo discurso do
sertão que sulcaram, (...) (PEREIRA, 2001, p. 11-15).
38
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Além de visitar as missões jesuíticas, os sertanistas foram os
primeiros, de quem se tem notícia, que empreenderam viagem de Mato
Grosso ao Pará, a partir do rio Guaporé (ANAIS DE VILA BELA, 2001,
p. 20). Esta aproximação entre colonos portugueses e missões jesuíticas dava-se entre os dois estados da América portuguesa, o Estado do
Brasil e do Grão Pará e Maranhão, e com bastante cautela de todos os
lados.
O extremo oeste não era o único espaço a contar com o interesse
dos sertanistas. Em 1746, no curso do rio Arinos, expandia-se a conquista ao norte. José Gonçalves da Fonseca relata com detalhes as experiências dos colonos na região dos Arinos:
Só com o pensamento de conquistarem algum gentio: e não achando em
que fazer preza, sucedeu que em um ribeirão, (...) viram alguma disposição de haver nele ouro: (...), e acharam com efeito algumas mostras. Recolhida a bandeira ao Cuiabá, não deu o cabo dela conta a ministro algum do
sucedido: e somente andava entre os moradores o sussurro de que no
Arinos havia ouro, pelo que nesta matéria ficaram os referidos aventureiros. (...) Fizeram logo algumas experiências, e sem entrar no ribeirão dos
primeiros descobridores acharam algumas mostras, que fez cômputo de
umas quatro oitavas de ouro, que remeteram logo ao dito mestre de campo, o qual sem esperar mais averiguação, as mandou ao ouvidor de Cuiabá, Manoel Antunes Nogueira, dando-lhe conta do sucedido. Com estas
notícias se comoveu o povo de Cuiabá, e não menos o do Mato Grosso,
que desamparando faisqueiras, roças, e ainda as próprias casas, seguiram
em vários ranchos o mestre de campo (...) seguiu viagem à parte mencionada, aonde logo formaram arraial (...). Estabelecido assim o arraial, se
ocuparam aqueles novos povoadores em plantar roças de mantimentos, e
depois desta operação, se seguiu a diligência a socavar o terreno, sem mais
utilidade de que a de acharem algumas poagens, que não faziam conta (...)
(FONSECA, 2001, p. 25-26).
Tão logo foram descobertas as minas dos Arinos, os comerciantes cuidaram de abastecer a incipiente povoação de ferramentas, sal e
outros mantimentos que não se produziam no local. Além de buscar
lucros, as práticas comerciais impulsionavam a exploração de novos
caminhos, a descobertas de rotas e marcavam territórios, avançavam
as fronteiras (FONSECA, 2001, p. 27). A colonização dos Arinos não
foi bem-sucedida, não pela característica efêmera do projeto de colonização, mas ao contrário, o que não possibilitou a efetiva colonização
destas minas foi a não possibilidade de colocar em funcionamento as
engrenagens de sua reprodução social, já que os achados auríferos não
39
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
se mostraram rentáveis e a região não estava no curso de nenhuma
importante rota de comércio (FONSECA, 2001, p. 28). Mesmo assim,
deve-se tomar com cautela a afirmação de que a região das minas dos
Arinos foi completamente abandonada. A busca por novos achados ao
norte resultou na descoberta das minas do Alto Paraguai, segundo Joaquim da Costa Siqueira, ainda em 1746,
Foi o doutor ouvidor desta vila ao arraial do Paraguai, fez justiça, juízes
ordinários e oficiais deles para o regimento do povo, fez partilhas das
terras minerais e tudo mais que convinha para o bem comum e retirou-se
para esta vila. Chegado que fosse (sic), divulgou-se que havia diamantes
nos ditos descobertos, formou um sumário de testemunhas e, achando
certo mandou logo despejar o povo e por guardas para que não se lavrassem mais as minas. Retirou-se o povo com outra tal perdição, como a que
causou o descobrimento dos Arinos, sobrevindo uma seca que não se viu
chuva senão nos fins de 1749, que pôs estas povoações a extrema miséria,
que não só padeceram as gentes, com também os animais (SIQUEIRA,
2001, p. 60).
A colonização do Alto Paraguai, assim como a dos Arinos, malogrou. A descoberta de diamantes e o monopólio da coroa portuguesa
sobre sua exploração, fizeram com que as autoridades metropolitanas
ordenassem a evasão da região do Alto Paraguai (SIQUEIRA, 2001, p.
60). O relato de que não só padeceram as pessoas, mas “também os
animais”, sugere que se desenvolveram em curto período de tempo
atividades agropastoris na região.
A rota Arinos-Tapajós não se tornou regular como o trajeto pelo
rio Guaporé. Cremos que os principais motivos para este fato foram os
descobrimentos de diamantes na região do Alto Paraguai7, os interesses geopolíticos portugueses em avançar a conquista para os territórios
em litígio com a coroa espanhola (CANAVARROS, 2004, p. 232) e os
interesses dos comerciantes e também da coroa portuguesa em manter
relações comerciais com os espanhóis.
Em representação cartográfica (Mapa 5) de 1746, além de ser construída uma imagem parcial dos domínios portugueses, podemos perceber que havia um caminho por terra que ligava o arraial de São Francisco Xavier à missão de San Rafael (Mapa 6).
7
A exploração de diamantes na região do Alto Paraguai foi proibida pela coroa, devido ao monopólio real sobre sua exploração.
40
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Além desta ligação por terra, ao longo do rio Guaporé acima, as
missões jesuíticas espacializavam-se, principalmente na margem oriental dos rios amazônicos.
Se as relações metropolitanas entre Portugal e Espanha eram tensas, na fronteira entre as duas Américas estreitavam-se os laços entre
lusos e hispano-americanos. Além de demonstrar a cooperação entre
os súditos das duas coroas ibéricas, percebemos que ambientes de produção rural, como a Ilha Comprida, se consolidaram como espaço da
atividade pesqueira e também como produtor de gêneros alimentícios.
As espacializações coloniais, tanto portuguesas quanto espanholas,
marcavam a posse de territórios que permaneciam sem legitimação
oficial desde o Tratado de Tordesilhas, e que só foram delineados com
alguma precisão a partir do Tratado de Madri, assinado em 1750.
Nos anos que antecederam o Tratado de Madri, a coroa buscava
garantir os territórios colonizados pelos luso-americanos e agia estrategicamente para alcançar tal objetivo.
De fato, na conjuntura político-administrativa de 1748, muita coisa havia
mudado em relação ao Extremo Oeste. Em dezembro de 1745, o papa
Bento XIV criava duas Prelazias na região: Vila Boa e Cuiabá. Em agosto de
1746, D. João V, finalmente, enviara a ordem para se fundar uma vila às
margens do Guaporé que seria a futura Vila Bela. Enquanto isso, os jesuítas
continuaram a instalar missões a oriente daquele rio, como Santa Rosa, na
foz do Itonamas, São Miguel e São Simão, ambas rio-acima. Mas o grande
acontecimento foi a criação das Capitanias Gerais de Mato Grosso e Goiás,
pelo alvará régio de 9 de maio de 1748. Essa iniciativa da Coroa Portuguesa, há muito esperada e até esboçada, visava consolidar as posições lusitanas, não apenas nas conversações sobre limites em Madrid, iniciadas em
1746 após a morte de Felipe V, mas no terreno concreto das fronteiras
vivas. Os dois princípios que nortearam os negociadores, balizas naturais
e uti possidetis, tinham no Guaporé e no Paraguai seu maior teste, para o
qual a política patrimonialista de D. João V vinha se preparando há muito
tempo, desde a fundação da vila de Cuiabá (...) (CANAVARROS, 2004, p.
232).
Entre 1716 e 1750, os marcos temporais da pesquisa que desenvolvemos, espacializaram-se no centro da América do Sul ambientes
coloniais espanhóis e portugueses. Estes últimos, embora alcançassem o centro do subcontinente mais de um século após os primeiros,
favoreceram-se da conjuntura da política imperial hispânica e das características espaciais para colonizar as regiões ricas em ouro, primei-
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Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
ro nas “minas do Cuiabá” e depois nas “minas do Mato Grosso”. Percebemos que os ambientes rurais que se espacializaram junto com estas
conquistas faziam parte de seu engendramento, garantiam a efetiva conquista da terra, essencial para a posse por meio do uti possidetis, além
de garantirem a circulação de mercadorias, fundamentais para a reprodução social e econômica dos colonos.
Ao longo do caminho essencialmente fluvial que ligava São Paulo e Cuiabá, formaram-se, ao longo dos rios, roças, sítios e fazendas.
No varadouro de Camapuã, consolidaram-se ambientes rurais. Nos rios
Paraguai, Taquari, São Lourenço até chegar ao “Arraial Velho”, e ao longo dos afluentes destes rios, espacializaram-se ambientes rurais que
forneciam mercadorias à Vila Real e aos comerciantes que transitavam
nestes caminhos. No rio Cuiabá, adensava-se cada vez mais a população rural até chegar ao Porto Geral da vila, local de recepção das embarcações e também de comercialização das mercadorias produzidas
no meio rural. Ao norte, em direção à Chapada, atual Chapada dos
Guimarães, formavam-se também ambientes rurais.
Ao longo do caminho de terra aberto entre a Vila Boa de Goiás e
a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, colonos espacializaram
ambientes rurais em territórios Bororo e Caiapó. Com a descoberta das
minas do Mato Grosso, formaram-se ambientes rurais a oeste da Vila
Real, bastante próximos das aldeias castelhanas de Moxos. Concomitantemente aos descobertos auríferos, desenvolveram atividades rurais ao longo do rio Sararé, e, a partir deste, os colonos chegaram ao
Guaporé, fixando ambientes rurais que marcavam o limite dos domínios portugueses e que se tornaram pontos de contato entre os súditos
das duas coroas ibéricas.
42
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Mapa 1
L’Amerique Meridionale, de Guilhaume de L’Isle, 1703. Fonte: BNB (Catálogo Virtual).
Detalhe
Mapa 2
“Carte du Paraguay et des Pays voisins pour servir a l’Histoire Generale des Voiages”,
1756. Fonte: Biblioteca Virtual del Paraguay, adaptado por ROSA, 2006, p. 4.
43
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
Mapa 3
“Bacia do Médio Guaporé”, 1769. In: GARCIA, 2000.
44
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Mapa 4
“Configuração da Chapada das Minas do Mato Grosso”, 1746. In: GARCIA, 2000, p. 446.
Mapa 5
“Territórios do Norte e do Centro do Brasil”. In: GARCIA, 2000, p. 326.
45
46
“Territórios do Norte e do Centro do Brasil”. In: GARCIA, 2000, p. 326. Detalhe.
Mapa 6
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Referências
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Lisboa, 08-01-1732. mss., microfilme Rolo 01, doc. 54, (AHU) – NDIHR/UFMT.
DOCUMENTO 2 - AUTO SUMÁRIO, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá,
12-04-1736; mss., microfilme Rolo 01, doc. 84, (AHU) – NDIHR/UFMT.
DOCUMENTO 3 - CARTA DE SESMARIAS concedida a Ângelo da Fonseca
Leitão – Cuiabá, 08-01-1727 – AESP-Sesmarias – 1720/1736.
DOCUMENTO 4 - CARTA do rei D. João V ao governador Antônio da Silva
Caldeira Pimentel. Lisboa, 08-10-1730. Registro de Cartas Expedidas Livro C
001, APMT.
DOCUMENTO 5 - CARTA do Juiz ordinário da Vila Real do Senhor Bom Jesus
do Cuiabá ao rei D. João V. Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, 06-1732
mss., microfilme Rolo 01, doc. 57, (AHU) – NDIHR/UFMT.
DOCUMENTO 6 - CARTA do ouvidor da Vila de Cuiabá José de Burgos Vila
Lobos ao rei D. João V. Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, 07-04-1731.
mss., microfilme Rolo 01, doc. 52, (AHU) – NDIHR/UFMT.
DOCUMENTO 7 - CONSULTA do Conselho Ultramarino; Lisboa 18-11-1734.
mss., microfilme Rolo 01, doc. 70, (AHU) – NDIHR/UFMT.
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Tomo III. 2. ed., São Paulo: Melhoramentos, 1961.
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FONSECA, José Gonçalves da. Notícia da situação de Mato Grosso e Cuiabá.
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47
Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira
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49
Roubo de índios, fugas e ataques:
o cenário da fronteira oeste
Alessandra Resende Dias Blau
Na tentativa de justificar o domínio e defender o território, a
coroa portuguesa passou a considerar importante a consolidação de
sua presença nas zonas de fronteira, fossem estas constituídas pela
orla ou pelo sertão. Com a assinatura do Tratado de Madri entre as
duas metrópoles ibéricas, as terras da América portuguesa diminuíram no sul, porém aumentaram no norte, em conseqüência dos acordos firmados entre Portugal e Espanha1.
No planejamento da área de fronteira, que acontecia tanto no
lado espanhol quanto no português, “os índios tiveram uma importância estratégica enquanto meio de implantação do direito de uti possidetis” (DOMINGUES, 2000, p.85 e 213), parte do programa geopolítico e civilizacional previsto pela própria coroa no território, em diferentes fases, durante o Setecentos.
A forte presença indígena reduzida – organizada nas missões jesuíticas de Moxos e Chiquitos2 até a expulsão da Ordem de possessões
espanholas, em 1767 –, existente na fronteira oeste luso-espanhola, exigia dos portugueses, além da fundação de vilas e arraiais, que também
procurassem “regular a liberdade concedida aos índios”, encaminhando-os “para os fins almejados – tornando-os habitantes estáveis das diversas povoações coloniais e agentes produtores das riquezas espera-
Alessandra Resende Dias Blau possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso. Foi bolsista SEDUC/MT, e defendeu a dissertação “O ‘ouro vermelho’
e a política de povoamento na capitania de Mato Grosso”, em 2007. Atualmente é professora
da Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso.
E-mail: [email protected]
Além da América, Espanha possuía territórios coloniais também na Ásia e na África, posses
negociadas com Portugal durante a elaboração do Tratado de Madri (1750), e do Tratado de
Santo Ildefonso (1777).
2
Sobre essas missões ver: MEIRELES,1989; COSTA, 2006; ANZAI, 2005a, ANZAI, 2005b.
1
50
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
das” (COELHO, 2006, p. 119). Após a expulsão dos jesuítas, os grupos
de reduções passaram a ser administrados por curas, e conforme Mesa
e Gisbert, não se pode negar “el desastroso destino de los pueblos
misionales cuando fueron abandonados por los jesuitas, forzados por
la expulsión del rey” (DE MESA; GISBERT, 2003, p. 248).
O principal objetivo das missões, do ponto de vista espanhol,
segundo Denise Maldi Meireles “era o de transformar comunidades
‘sem lei nem governo’ em comunidades que refletissem as concepções
de uma sociedade ordenada no século XVIII” (MEIRELES, 1989, p.
85). Além de exercerem funções catequéticas sobre povos indígenas,
os missionários também disciplinariam a utilização da mão-de-obra,
bastante atingida pela insaciável demanda dos colonizadores (CANAVARROS, 2004, p. 276-278). As missões não foram criadas à revelia
do estado espanhol, já que as autoridades coloniais indicavam jesuítas através de ordens reais, e a administração espanhola prestava toda
a ajuda necessária para a criação das reduções, situação que se manteve até meados do século XVIII (ANZAI, 2005), pois interessava à administração espanhola o estabelecimento dessas missões em zonas
estrategicamente importantes à Espanha.
Mesmo com a assinatura do Tratado de Madri, a questão da
fronteira ainda não estava totalmente resolvida e consolidada, até
mesmo porque muito se consideraram as fronteiras geográficas naturais como demarcação. Não sendo esta a única forma utilizada para
demarcar, houve ainda outras questões que se levaram em consideração, como, por exemplo, o próprio interesse político e econômico
de ambas as coroas – portuguesa e espanhola – quanto a determinado território. Os jesuítas das missões de Chiquitos e Moxos passaram a armar os índios, fazendo deles verdadeiros “guardiões da fronteira” espanhola. Os confrontos eram inevitáveis: “o encontro entre
os portugueses e as missões espanholas assinalou o antagonismo
que passou a ser o grande articulador das relações direcionadas dentro da condição inexorável da região: a fronteira” (MEIRELES, 1989,
p. 10).
Em diversas correspondências, encontramos referências aos índios missioneiros da Província de Chiquitos e da Província de Moxos, assim como informações sobre as providências tomadas por capitães-generais portugueses para incentivar as suas fugas e mantê-los
no lado português da fronteira.
51
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
Ricardo Franco de Almeida Serra informava, em uma “memória
ou informação” sobre as províncias de Chiquitos e de Moxos:
A Província e Governo de Chiquitos, povoada por vinte mil almas, é
como uma barreira, que cobre por Sul, e por não pequena extensão, os
estabelecimentos portugueses adjacentes a Vila Bela, como a Província de
Moxos é outro terreno, que semelhantemente cobre a extrema do forte do
Príncipe da Beira, e a navegação portuguesa do Guaporé e rio Madeira,
para a cidade do Pará. A Província de Chiquitos é saudável, tem gado
vacum e cavalar, belas terras para cultura, sendo os índios que a povoam
menos hábeis do que os de Moxos (SERRA, 1840, p. 19-48).
O estabelecimento de missões do lado português e mesmo as
aldeias de índios “selvagens” auxiliariam os portugueses na luta pela
posse do território para a coroa lusa. Em carta enviada por Rolim de
Moura ao Padre Nicolas Altogradi, de Moxos, datada de 3 de novembro de 1757, em resposta a uma correspondência enviada pelo missionário reclamando que havia sido hostilizado pelos índios Topoaia,
quando havia tentado entrar em suas aldeias, localizadas em terras
que considerava espanholas, para catequese, a resposta do governador português não deixava margem a dúvidas sobre a quem pertenciam
as terras das aldeias:
(...) se o dito gentio Topoaia tivesse feito hostilidades aos portugueses,
necessariamente deviam proceder estas diligências; porém, como eles nos
não têm feito a nós hostilidades, senão a Vossa Reverendíssima, não tenho eu autoridade para lhe mandar fazer guerra de minha cabeça, e só o
posso fazer em virtude do tratamento requerido por Vossa Reverendíssima (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS, 1983, p. 81).
Desse modo, Rolim marcava a presença do estado luso. Certamente também incentivava os ataques dos Topoaia aos padres espanhóis, barrando suas intenções de acesso ao território ocupado por
portugueses. Foram freqüentes as trocas de correspondências deste
mesmo teor entre Rolim de Moura e padres das missões espanholas,
evidenciando que os roubos de índios das missões era prática comum,
conforme podemos observar em carta que Rolim de Moura enviou ao
padre Ramon Laines, em 10 de janeiro de 1752, em resposta à carta
que havia recebido deste, com data de 22 de julho de 1751:
Chegando a este Distrito de Mato Grosso, a dezenove do mês passado, me
deram daí alguns dias a carta de vinte e dois de julho de mil setecentos e
cinqüenta e um, em que se queixa de que alguns sertanistas portugueses
têm roubado vários índios dessas missões trazendo algumas mulheres
52
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
casadas, a quem ficaram nas mesmas missões os maridos. E, asseguro,
tenho sentido muito esses distúrbios, tanto pelo dano, que diz recebem
as mesmas missões, como também pelas grandes recomendações que tenho de conservar boa harmonia com vossos padres evitando o motivo de
escândalo (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS, 1982, p. 62).
Alguns pontos desta carta se destacam, um dos quais é o fato de
os sertanistas terem roubado mulheres. Essa prática era até de certa
forma comum, já que nos aldeamentos os padres procuraram seguir a
divisão sexual do trabalho presente na maioria das comunidades indígenas, o que significava que às mulheres e às crianças cabiam o plantio e colheita das roças. Porém, no caso de regiões de minas havia
outro fator importante: a predominância da população masculina. Na
Capitania de Mato Grosso não era diferente. Havia muito mais homens do que mulheres e, provavelmente, os sertanistas roubavam
mulheres índias para fazê-las trabalhar nas roças ou em atividades
domésticas, ou até mesmo para fazerem delas suas mulheres.
Em nome da manutenção da “boa harmonia” com Espanha, a resposta de Rolim ia ao encontro das intenções portuguesas de investigar o modo pelo qual funcionavam as missões jesuíticas e, desse modo
utilizou o pretexto diplomático de devolver as índias roubadas, que
se encontravam sob domínio de particulares, conforme se pode observar na carta enviada ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real (28 de
maio de 1752):
Para o fim deste mês mando um dos padres da Companhia que trouxe
comigo à dita Aldeia de São Miguel, com o pretexto de os visitar e levarlhes as índias que se acharam pertencentes às missões castelhanas, e
juntamente para tomar conhecimento da economia e governo delas, pois
é certo excedem nisso muito as nossas (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS,
1982, p. 70).
O governador ainda esclareceu ao ministro, na mesma correspondência: “Fico na averiguação do que me representa para obrar nisto o que for justo, e quanto às mulheres casadas está já uma em depósito, e outra, assegurou Antonio de Almeida, a ia entregar”.
Provavelmente não seriam somente duas mulheres, e quanto a
ficar uma “em depósito”, pode dever-se às negociações entre o governador e os padres, uma garantia, talvez uma troca de favores. No outro
caso, o da mulher que estava com Antonio de Almeida, embora tenha
havido promessa de entrega, não conseguimos confirmação na documentação pesquisada.
53
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
E o roubo de mulheres das missões espanholas continuava. A
Aldeia de São Miguel foi alvo de assédio às índias, conforme documento de 1765, no qual o governador da Capitania de Mato Grosso,
João Pedro da Câmara, informava:
A aldeia de São Miguel, composta dos índios que no tempo de guerra
passaram para a nossa parte, das minas castelhanas que se queimou, e de
outros que fugiram e vinham fugindo das mais desordens, ficou situada a
pouca distância deste destacamento, porque naquele tempo se não podia
dar outra melhor providência. Quis meu antecessor mudá-la, para evitar
os distúrbios que cometiam os soldados desta guarnição com as índias, e
os contínuos furtos que faziam nas plantações e criações dos mesmos
índios. Porém, alguns obstáculos dilataram tão justo e santo projeto. Eu
tenho trabalhado em vencê-los e, com efeito, consegui mudar a referida
aldeia para outro sítio rio acima, quatro léguas distante da primeira, de
muito bons ares e largueza bastante (1765, dezembro, 16).
Não é difícil inferir, baseando-nos nas palavras escritas pelo
capitão-general, que índios e índias utilizados como mão-de-obra pelos colonos eram em geral tratados com violência, nisso incluídos os
freqüentes abusos sexuais sofridos pelas índias. Os criminosos, quando identificados, eram julgados em tribunal, e as penas impostas consistiam no degredo para fora do termo da povoação ou no trabalho em
obras de fortificações que se iam construindo (DOMINGUES, 2000, p.
254-255).
Havia motivos também para a fuga consentida. Como aos índios
não faziam sentido as fronteiras estabelecidas pelos europeus, poderiam passar para o lado português por seus interesses familiares ou
religiosos. Desse modo, podiam lançar mão das estratégias lusas para
facilitar sua passagem, em um processo no qual fica claro seu poder
de negociação e de decisão, mesmo em um contexto, no geral, desfavorável a ele. Ao adentrar territórios portugueses “acabavam sendo incorporados ao processo colonizador lusitano” (ANZAI, 2005a). Aos
portugueses, que necessitavam aumentar a população, de preferência
com mão-de-obra especializada das missões, essa era uma prática desejável. Quanto maior fosse a ocupação da fronteira do lado luso, maior
também a possibilidade de rechaçar os avanços espanhóis para a parte oriental do Guaporé. Esta estratégia fazia parte “da segunda fase do
plano de civilização dos índios contidos no Diretório: a consideração
política de seu lugar na colonização” (ALMEIDA, 1997, p. 249).
54
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Aldeia de Santa Rosa
Mapa 1: As repartições do Cuiabá e do Mato Grosso – século XVIII
Forte N. Srª.
da Conceição
Fonte: ROSA; JESUS, 2003. p. 64
Havia aldeias espanholas localizadas no lado oriental do rio
Guaporé que, com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, passariam a pertencer a Portugal. Desse modo, as aldeias espanholas de São
Miguel, São Simão e Santa Rosa seriam portuguesas. Especificamente
sobre Santa Rosa, uma Instrução Real ainda de 1749 chamava a atenção para a necessidade de prudência no trato da questão, já que estavam envolvidas minas de ouro:
É tão sujeita a produzir contendas, conseqüência gravíssima, que enquanto
não se faz amigavelmente a respeito dela alguma transação que as evite
para o futuro, ficando os limites das duas monarquias pelo rio Guaporé,
deveis pôr todo o cuidado para que ao menos não cresça o mal que dali
pode resultar. Por detrás daquela aldeia se descobriram ultimamente as
minas dos Arinos, e em um ribeirão que está antes de chegar a ela, na
mesma margem oriental, se tinha já há alguns anos feito outro descobrimento, e é provável que naquelas vizinhanças se vão achando minas diversas (INSTRUÇÕES, 2001, p. 14).
As orientações reais que Rolim de Moura devia seguir eram precisas:
55
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
Enquanto esta dependência se não ajusta com a corte de Madrid, o remédio que por ora deveis aplicar é persuadir moradores, que vão situar-se
no círculo daquela aldeia a não muitas léguas de distância, dando-lhes
sesmarias, para assim evitar que os índios da mesma aldeia se alarguem
nos seus contornos. E deveis defender eficazmente os sesmeiros de qualquer insulto e moléstia dos mesmos índios (INSTRUÇÕES, 2001, p. 14).
Observe-se que conceder sesmarias era visto como estratégia eficaz para evitar que os índios restabelecessem suas territorialidades
tradicionais, e, caso houvesse perigo aos sesmeiros, o governador deveria protegê-los.
Logo após a assinatura do Tratado de Madri, os padres espanhóis resolveram mudar a Aldeia de Santa Rosa para a outra margem
do rio, ou seja, o lado ocidental, espanhol, e tentaram levar consigo os
índios que se encontravam aldeados. Esse fato deu início a longas
discussões e negociações, pois, segundo o tratado, os padres deveriam
deixar a mudança ou não a critério dos índios. Em carta a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 2 de setembro de 1760, Rolim de
Moura explicava:
Vamos agora mostrar que as mesmas terras em que estiveram fundadas as
Aldeias, ou Povoações de Santa Rosa, São Miguel e São Simão, são presentemente do domínio de Portugal, em virtude das cláusulas do Tratado de
Limites. Diz este, no artigo 14, que Sua Majestade Católica [Espanha] cede de
presente a Aldeia de Santa Rosa, e outra qualquer que se possa ter estabelecido por parte da Espanha, na parte oriental do Rio Guaporé. De onde se vê
logo, pelo mesmo Tratado, nos foi conferido jus cederem as ditas aldeias.
Isto suposto, vendo os Padres da Companhia que, pelo Artigo 16 se deixa
na liberdade dos índios das ditas aldeias passarem para a outra parte ou
ficarem nas mesmas aldeias, e sendo certo moralmente que haviam antes
escolher o ficar, pelo grande apego que têm às terras, se fossem perguntados pelos comissários, com o que não somente perderiam os índios, mas
também os bens que lhes pertencessem; logo, com a primeira notícia do
Tratado, entraram a mudar as aldeias; o que concluíram no ano de 1754,
deixando-as não somente desertas, mas queimadas (MOURA, Carta 146).
Como se viu, os padres espanhóis, diante da cláusula do Tratado colocaram fogo em tudo, acabando com as plantações, e forçaram
os índios à mudança. Atravessaram o rio Guaporé e fundaram, em
frente à antiga aldeia, uma nova povoação com o mesmo nome, Santa
Rosa, que passou a ser denominada “Santa Rosa Nova”, do lado ocidental do rio Guaporé, em contraposição à do lado oriental do rio,
portuguesa, “Santa Rosa Velha”.
56
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Não se contentaram os padres da Companhia com passarem violentamente os índios para a outra banda, contra as ordens de Sua Majestade Católica, sendo certo que, nestas mudanças perdem muitos as vidas, e outros
fogem para os matos, pelo desgosto que tomam de os tirarem das suas
terras; mas também sem escrúpulo nenhum lançaram fogo aos edifícios e
às plantas a que a Coroa Portuguesa havia já adquirido jus. E o Padre
Medenilha, por aproveitar as portas da igreja, deixou esta exposta a servir de curral de éguas, como, com efeito, esteve servindo enquanto se
conservou em pé, o que eu vi com os meus olhos, no ano de 1755, pois
querendo-me mostrar o padre Francisco Xavier Pozobonelli, não pudemos passar da porta, por se achar a dita igreja cheia e atestada de esterco
(MOURA, Carta 146).
No entanto, os índios levados para Santa Rosa Nova quiseram
voltar para as suas antigas terras, conforme consta nas correspondências de Rolim de Moura. Ora as cartas de Rolim de Moura parecem
estar bem fundamentadas, ora as acusações dos padres das missões
espanholas parecem ser verdadeiras quanto aos roubos de índios. Para
Rolim, os roubos de índios realizados por portugueses em Santa Rosa
Nova eram calúnias lançadas pelos espanhóis, e afirmava que havia
presenciado muitos índios manifestarem o desejo de passarem para o
lado português, apesar dos esforços dos padres espanhóis.
Os mesmos padres sabem muito bem o grande apego que esta gente tem
às terras em que nasceram e se criaram, e por conhecer isso é que se
mudaram sem esperar pelos Comissários, e queimaram as povoações,
para lhes tirarem o sentido de tornar para elas. E como tudo isto foi
violentíssimo aos mesmos índios, esta é a causa verdadeira das suas fugas, que os padres agora, sem fundamento algum, como o seu louvável
costume, querem atribuir aos portugueses. E se estes trouxeram para a
nossa banda os índios por força, que é que lhes embaraça o tornarem para
lá? Não estão vivendo fora, e longe da Guarda? Não saem a pescar cada
vez que lhes parece? Pois que embaraço têm para fugir de cá? Que portugueses obrigaram os muitos que haviam fugido para o mato, como acima
disse? Com também os de São Pedro o fizeram para a Guarda? O que
suposto, e ser a intenção de Sua Majestade Católica, que fique na liberdade dos índios passarem para a banda de Espanha ou ficarem nos domínios de Portugal, como se vê no Artigo 16. É contra a dita intenção do
mesmo Senhor, e contra a determinação do Tratado entregá-los eu contra
sua vontade. Além de que, quando eu cheguei a este Mato Grosso, remeti
aos padres todos os índios que aqui se achavam, de que tive notícia pertencerem às suas missões, mandando vir, para esse efeito, até do Cuiabá,
um índio. Porém, sucedendo, depois disso, fugirem de cá alguns índios,
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Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
e escravos para lá, nem uma nem outra coisa quiseram entregar (MOURA,
Carta 146).
A aldeia de Santa Rosa Nova rapidamente se despovoava, obrigando mais uma vez os padres jesuítas a mudarem rapidamente os
poucos índios que restavam para São Pedro (MOURA, Carta 172).
Quanto aos índios que passaram para o lado oriental do rio Guaporé,
Rolim de Moura explicou o modo como procedeu:
Aos ditos índios que para cá passaram, mandei situar cousa de uma légua distante deste Destacamento, na mesma paragem em que lhes haviam
plantado, quando aqui vim no ano de sessenta. E ordenei equipassem
sempre com algumas canoas que andam na condução do mantimento de
Vila Bela para cá, e este trabalho se lhes paga com baetas, principalmente
encarnadas, bombachas e chapéus, de que eles gostam muito, ao que se
acrescentem algumas quinquilharias ou ferramentas, se eles as necessitam. Isto sai mais barato do que os pretos de aluguel, e serve-lhes para se
vestirem e plantarem. Mas, a maior utilidade que daqui se tira é tê-los
contentes, pelo apreço que fazem destas cousas, e vendo-lhes os índios
das missões de Castela com os quais se comunicam, quando por aqui
passam ou pelos padres ou encontrando-se no rio, quando vão às suas
pescarias, se movem a passar para nós (MOURA, Carta 172).
Porém, os padres insistiam nas acusações de roubo de índios
das missões espanholas por portugueses. Em carta a Tomé Francisco
da Costa Corte Real, em 26 de agosto de 1760, Rolim de Moura respondeu às acusações de que os portugueses foram buscar violentamente as mulheres dos índios:
Tudo quanto nela lhe digo é a mesma verdade. Como também é calúnia
manifesta, a que o padre superior nos quer atribuir, de que foram à Aldeia de Santa Rosa os portugueses buscar violentamente as mulheres dos
índios, pois, além do que, na mesma carta lhe digo da filha do Canavarro.
O que mais houve foi que, depois de se haverem passado para a nossa
banda, alguns, voluntariamente, querendo ultimamente vir um lote maior
de índios, passaram a uma ilha, e daí avisaram a guarda que os fossem
buscar, por não terem canoas para virem, o que assim se fez, segundo
a parte que me deu o alferes de dragões, que havia ficado para comboiar
a canoa que trouxe apetechos do Pará (1760, agosto, 26).
Nesta correspondência, o governador da Capitania de Mato Grosso diz que “alguns” índios passaram voluntariamente, o que significa
dizer que não foram todos. E os que não passaram “voluntariamente”?
Teriam passado à força? A justificativa que Rolim de Moura deu para
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
a “passagem voluntária” dos índios espanhóis para o lado luso consta
no ofício que se segue:
Com que estão naquele sítio presentemente alguns noventa índios, que
eram da Missão de Santa Rosa, e os padres, para que os outros lhes não
fugissem, os passaram muito depressa para São Pedro, para onde entendo mais ou enganados ou violentados do que por sua vontade. Pois,
estando eu ainda em Santa Rosa Velha, diziam eles muitas vezes quando
aí vinha, que o padre os queria mudar, mas que em querendo dar princípio a isso, que eles todos haviam de vir gritar da outra banda do rio que
os fossem logo buscar. E todos eles andavam bastantemente abalados, e já
alguns haviam passado para a nossa banda antes que eu me retirasse,
assim pela inclinação natural que têm às suas terras, como por algum
jeito que se lhes deu, pretendendo-os algumas das coisas de que eles
gostam, como verônicas e outras semelhantes (MOURA, Carta 141; 1760,
agosto, 26).
A devolução ou não de índios e escravos que se encontrassem
na parte portuguesa ou espanhola da América dependia muito de acordos e obrigações mútuas. Se uma das partes não cumpria o acordo, a
outra também se sentia no direito de não cumprir, como consta do
ofício a seguir:
(...) tenho mostrado bem patentemente, desde que aqui estou, o quanto
procurei fazer boa vizinhança; porém, tem-me isso sido tão mal correspondido, que não somente vários padres, como o padre Medenilha, antecessor de Vossa Reverendíssima, e o padre Ramos Laynes, se ficaram
com os índios que da parte de Portugal passaram para as suas missões,
mais nelas, e nas mais se lhe está francamente dando couto a todos os
escravos fugidos de Mato Grosso, nem sendo lhes requerido, por várias
vezes, se têm entregue nenhum. E havendo eu escrito já há mais de um
ano uma carta de ofício sobre esta matéria, ao padre vice superior, até
agora ainda não tive resposta dela. O que tudo me parece, essa me desobrigaria de mandar entregar a índia, em que Vossa Reverendíssima me fala,
ainda que não houvesse a razão primeiramente apontada (1760, agosto, 7).
Rolim de Moura deixa claro que, como não havia sido atendido
na devolução de índios e escravos que fugiam do lado português, julgava que não tinha o dever de devolver os que haviam fugido do lado
espanhol. Além disso, no caso da índia casada, conforme veremos a
seguir, justificava que a mesma gostaria que trouxessem o seu marido,
que havia ficado na missão espanhola de San Nicolas, o que era muito
cômodo para a política portuguesa, um casal especializado para aumentar a população de Mato Grosso:
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Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
(...) logo que cheguei a Mato Grosso mandei ajuntar todos os índios de
que tive notícia pertencerem às missões espanholas, e os remeti pelo padre Agostinho Lourenço que, segundo a minha lembrança foram nove,
que alguns sertanistas tinham conduzido para Mato Grosso, segundo eles
diziam, e só depois me constou, não sem faculdade e insinuação de um
religioso da mesma religião de Vossa Reverendíssima, o qual se achava na
Missão do Patrocínio, quando os índios dela se levantavam contra os
seus padres, e fugiram para o Mato Grosso, o que insinuou o dito Padre
aos ditos sertanistas os fossem abalroar, como fizeram. Não só remeti
estes, não havendo obrigação disso, pelo que fica dito, mas ainda achava
[uma índia] na Missão de S. Ana, por me dizerem pertencia a Missão de
S. Nicolas, espanhola, e que era lá casada, sendo que era mais natural,
como a mesma índia requeria, que o marido fosse para onde ela estava,
pois podia fazer aquela viagem com menos descômodo, e risco; e também
era governada por um jesuíta: mas como o padre Magi [sic] não quis
convir nisto, a mandei entregar remetendo-a mesmo dentro das missões
espanholas (1760, agosto, 7).
Para a maioria dos índios pouco importavam as fronteiras políticas, interessava a eles seus territórios tradicionais, e esse fato influía na política ibérica relacionada aos grupos indígenas da área em
litígio. Caso não houvesse tratamento adequado, muitos grupos empreenderiam fuga e, de acordo com Ângela Domingues, a indefinição
das fronteiras estava relacionada às hesitações de cada coroa em relação à política a ser adotada. As definições estabelecidas pelas duas
coroas nada significavam aos índios, “que tinham familiares, amigos
e trocas comerciais em áreas pertencentes à potência rival e que facilmente transitavam para cada lado da divisão convencionada” (DOMINGUES, 2000, p. 244).
No início do mês de fevereiro de 1754, logo após a conclusão
da retirada dos índios da Aldeia de Santa Rosa Velha, Rolim de Moura
estabeleceu uma guarda na região para tentar evitar a fundação de
novas aldeias espanholas do lado português, e também para evitar a
captura de “índios portugueses” pelos espanhóis. Havia também a
preocupação de prevenir contra a fuga de escravos negros para o lado
espanhol.
Em 1761, o Tratado de Madri foi substituído pelo de El Pardo,
que, em relação à demarcação de fronteiras, anulou o de Madri (APMT,
1759-1764). Voltaram a vigorar, então, as disposições do Tratado de Tordesilhas e, desse modo, as repartições do Cuiabá e do Mato Grosso ficavam novamente pertencendo a Sua Majestade Católica, promovendo,
60
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
desta forma, a possibilidade de guerra entre as duas coroas, o que veio a
acontecer a partir de 1763.
Em 1777 foi assinado o Tratado de Santo Ildefonso. No entanto,
a questão das fronteiras ainda não estava bem definida, conforme fica
explícito nas colocações do tenente-coronel Ricardo Franco:
A capital da Capitania de Mato Grosso ficaria do domínio espanhol, e da
mesma forma Cazal Vasco e outros antigos estabelecimentos, mandados
conservar pelo artigo 16°; sendo estes terrenos, com os cultivados da
margem do Guaporé, fronteira a Vila Bela, e os dos rios, Alegre e Barbados, com as minas de Santa Bárbara ou Aguapeí; e quanto ocupa a Coroa
de Portugal no distrito de Mato Grosso, e dele para Oriente, terrenos, que
a Coroa de Espanha, pelo artigo 20° cede, renuncia, e traspassa toda a
posse e direito que possa ter ou alegar a eles; e de outra sorte, admitindose esta implicatória linha, ficaria a Coroa de Espanha de melhor partido
no mesmo terreno que expressamente cede, e os espanhóis nunca viram,
nem povoaram (SERRA, 1840, p. 19-48).
Desde 1762, a guarda estabelecida em Santa Rosa Velha havia se
transformado em presídio. O de Nossa Senhora da Conceição (consultar Mapa 1) deveria, segundo Rolim de Moura, se transformar em
um forte, pretensão materializada seis anos após, no Forte de Bragança, construído durante o governo de João Pedro da Câmara.
Fazia parte da política lusa a criação, nessas fronteiras, de referências alusivas ao Reino. Desse modo, “a autoridade da coroa sobre o
território exerce-se através de uma presença efetiva e por referências
simbólicas” (DOMINGUES, 2000, p. 78), o que podemos observar nos
Anais de Vila Bela do ano de 1769:
Em 15 de março se deram às aldeias de índios deste Estado, por um
bando público, as denominações das povoações do Reino, em conformidade com as ordens de Sua Majestade, apelidando-se o forte da Conceição, Bragança; Aldeia de São João, Lugar de Lamego; Destacamento das
Pedras, Palmela; o Lugar de São José, Leomil; e o de Santa Ana, no distrito do Cuiabá, Lugar de Guimarães (AMADO; ANZAI, 2006, p. 133).
O Forte de Bragança desabou em 1771, em conseqüência de uma
enchente, e teve parte do seu material aproveitado na construção do
Forte do Príncipe da Beira.
O Forte de Bragança, em larga medida, tornou-se um pólo de atração de índios
migrados de Mojos. Pelos dados oficiais dos capitães-generais, os maiores
contingentes vinham das missões de San Martin, San Nicolas, Santa Magdalena e Exaltación. Como essas migrações tiveram lugar sobretudo entre os anos
61
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
de 1770-1780, esses contingentes devem ter sido formados principalmente de
índios Txapakura, Baure, Itonama e Cajubaba (MEIRELES, 1989, p. 173).
Sobre o estado civil da população do Forte de Bragança, no ano
de 1773, temos as seguintes informações:
Tabela 1: Distrito do Forte de Bragança – Capitania de Mato Grosso3
Mapa do estado civil da povoação do distrito – janeiro de 1773
Casamentos no ano de 1772 ............................................ 7
Mortos no dito ano ........................................................ 25
Nascimentos no dito ano ............................................... 11
Homens de 50 anos para cima ....................................... 27
De 16 até 50 ................................................................. 164
Rapazes de 8 até 15 ....................................................... 20
Meninos de 1 até 7 ........................................................ 16
Mulheres de 40 anos para cima ..................................... 16
De 15 até 40 ................................................................... 62
Raparigas de 8 até 14 ..................................................... 11
Meninas de 1 até 7 ......................................................... 14
Somas totais ................................................................. 330
Escravos compreendidos na soma total ....................... 127
Famílias ou fogos das povoações ................................... 52
Fonte: 1773, Janeiro. MAPA do estado civil da povoação do distrito do Forte de Bragança.
CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc.1015.
Analisando os dados apresentados na tabela acima, observa-se
que a quantidade de mulheres era bem inferior à de homens, no Forte.
O número de mulheres que já poderiam constituir família, isto é, entre 15 e 40 anos, é bem inferior em relação aos homens na faixa etária
de 16 a 50 anos. Estas mulheres que ocupavam o Forte, provavelmente
trabalhavam em serviços domésticos, além da tecelagem ou produção
de roças. Podiam, também, servir de mulheres para esses homens.
Segundo Denise Maldi Meireles, não havia dúvida quanto ao
maior gosto dos portugueses no acolhimento dos índios fugidos das
missões, “familiarizados com o trabalho, do que os índios que vinham
3
Optamos por transcrever somente o distrito de Bragança, porém o Mapa apresenta também a
população de outros locais, como Lugar de Lamego, Lugar de Leomil, Destacamento de Palmela,
e Lugar de Balsemão.
62
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
das aldeias ‘selvagens’. Os espanhóis reagiram a essas acolhidas recebendo os escravos fugidos da margem direita” (1989, p. 177).
Nessas acusações de roubo de mulheres e índios que, segundo
informações portuguesas, passaram voluntariamente para as terras
lusitanas, temos um dado novo que é o caso da “filha do Canavarro”,
já citado por Rolim de Moura. É possível obter em outra correspondência maior informação sobre esse assunto. Em carta ao padre Nicolas Sarmento, de 27 de março de 1760, Rolim de Moura informa:
Recebi a carta de Vossa Reverendíssima, escrita no dia de hoje, na Missão
de Santa Rosa Nova, na qual me faz Vossa Reverendíssima duas queixas
da comitiva que aqui se acha neste sítio: a primeira de haver ela colhido
algum mantimento e cana que se achava plantado pelos índios dessa missão; e a segunda de haver apanhado uma rapariga da mesma missão.
Começando por esta última, me consta que a dita rapariga é filha de Manoel José Canavarro, que aqui se acha e a tem em seu poder. E como ela é
já de 8 anos, conforme o direito, pertence a seu pai. E assim, contra sua
vontade, nem devo nem posso obrigá-lo a largá-la (1760, agosto, 7).
Em outra carta, ao padre Juan de Beingoolea, de 18 de agosto de
1760, Rolim de Moura descreveu o caso da filha de Canavarro. Apesar
de ser uma citação longa, vale a pena conhecer o documento:
E enquanto a Vossa Reverendíssima disser que os índios de Santa Rosa
passavam para a nossa banda porque os portugueses lhes foram buscar
violentamente as mulheres, posso assegurar a Vossa Reverendíssima não
só que o informaram nisso falsamente, senão com grande cavilação.
É de saber que Manoel José Canavarro, hoje soldado aventureiro no destacamento de Santa Rosa Velha, assistiu muito tempo naquela mesma
paragem, no princípio do estabelecimento da dita Missão de Santa Rosa,
em companhia do padre Amâncio, cura da mesma missão, e por mandado do dito padre recolheu ele a maior parte dos índios com que ela se
achava, que não foram catequizados com o Cristo na mão, mas, sim, tirados das suas terras violentamente e à força de armas.
Na dita assistência, teve o dito Manoel José Canavarro uma filha, de uma
índia da missão, o que é notório, e os índios da mesma missão o confessavam, como eu presenciei, e mais o padre capelão do Destacamento, e a
sua vista dela, pela cor e pelo cabelo, dá a conhecer ser filha de mulato, e
não índia pura, pois sabem todos os que têm algum uso e experiência de
índios, que não há nenhum que seja puramente índio com o cabelo crespo, como ela é.
Pelo que, indo o dito Manoel José Canavarro buscar madeira para os quartéis, lhe trouxeram a falar com ele os mesmos índios, e ele, com o direito
de pai pegou ela e a trouxe consigo, em que me parece obrou o que tinha
63
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
de obrigação, por ela se achar com 8 anos, e ser certo e sem dúvida, que
o padre Nicolas Sarmento lhe não havia de nunca entregar, por mais
manifesto que fosse o seu jus, para a haver a si.
Excelência, aqui as mulheres todas que os portugueses tiraram da Aldeia de Santa Rosa, que consistem em uma rapariga de 8 anos, que seu
pai houve a si, de forma que fica dito o que posso assegurar com todas
[ilegível] por haver passado isto ao tempo que eu me achava em Santa
Rosa Velha, e tanto nessa ocasião como depois disso, nunca português
algum tirou por força índios nenhum, macho nem fêmea da dita missão;
mas todos os que dela passaram para a nossa banda foi muito por sua
livre vontade. Nem isso deve fazer admiração, pois se Vossa Reverendíssima quiser informar-se há de conhecer a grande repugnância que
tiveram todos os índios que se achavam nas três missões de S. Simão,
S. Miguel, e Santa Rosa, para passarem para a outra banda, e que foi
preciso valerem-se os padres que as administravam de portugueses, pelo
meio dos quais obrigavam violentamente os índios para a dita passagem
(MOURA, Carta 140).
O fato de a menina ser filha de pai negro e de mãe índia, da
missão espanhola, levantou certa polêmica, pois ambos os lados reivindicavam sua posse. Segundo Antonio Manuel Hespanha, o direito
português só se aplicou aos naturais, e, conforme as Ordenações Filipinas, os nativos foram regidos por direitos específicos (HESPANHA,
2001, p. 173). Hespanha esclarece que, no século XVII, com base no
Regimento das aldeias e capitães das aldeias, “no Brasil, os capitães
das aldeias decidiam as questões das comunidades índias, segundo
um modelo de justiça patriarcal” (2001, p. 173, nota 14). É possível
que Rolim tenha se baseado neste modelo de justiça, ao justificar a
permanência da menina com o pai, pois, além do mais, o Diretório
não previa essa questão. Também é possível que a menina tenha nascido em Santa Rosa Velha, portanto, à época, território luso, despertando em Rolim um sentimento de “posse” pelos nascidos em território português.
Bruna Sirtori, com objetivo de pesquisar as relações econômicas e sobretudo sociais estabelecidas no Aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos, no Rio Grande de São Pedro, às margens do Rio Gravataí, chama a atenção para a “transcrição de registros batismais pelo
Padre Bernardo Lopes da Silva e sua concepção de ‘índio’ (1765-1783)”.
Nos registros de batismo que este padre elaborou, onde havia somente um antepassado nomeado como indígena, os batizados foram considerados “não-índios” (SIRTORI, 2006, p. 2). Entendemos que pode
64
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
também ter sido este o mesmo princípio utilizado para a filha do Canavarro, em que o filho mestiço de índio não é índio, é mestiço, logo,
um tipo mais adaptado para a região, e também mais um vassalo real
sendo incorporado à sociedade colonial.
Entretanto, temos que considerar também que, se a mãe da menina pertencesse a um grupo de descendência matrilinear, a criança
deveria ficar com ela. Se entendermos pelo viés de que filha de índia,
independente do pai ser índio, é índia, Rolim de Moura acobertou o
roubo da menina.
Manoel José Canavarro deveria ser mulato ou negro em melhor
situação do que outros de sua mesma condição. Além disso, há na
mesma correspondência informações sobre o seu papel como administrador de índios:
(...) porém aqueles que livremente passassem para a nossa parte os recolhesse, o que não somente é conforme ao que determina o Tratado de
Limites, mas também ao que Vossa Reverendíssima mesmo tem praticado
comigo; porque, fugindo para a Missão de Santa Rosa [Nova?] uns índios
que estavam na administração de Manoel José Canavarro, nunca o padre
Nicolas de Medenilha os quis mais entregar (MOURA, Carta 140).
Alguns dados chamam a atenção. Em 1760, os jesuítas já haviam
sido expulsos dos domínios lusitanos (1759), porém, a expulsão dos
territórios espanhóis só aconteceu em 1767. O Diretório era o que
regulamentava as ações entre índios e portugueses. Outra questão
que se coloca é a situação da mãe da criança: teria ela passado da
missão de Santa Rosa Velha para a missão de Santa Rosa Nova? E, se
isso realmente aconteceu, qual teria sido o motivo da fuga, já que
Rolim de Moura dizia que os índios espanhóis eram muito bem tratados no lado português? Considerando que o Diretório já estava em
vigor, o mais razoável é que Manoel José Canavarro tenha roubado a
menina.
A confirmação da paternidade da filha de Canavarro deu-se por
intermédio de pistas, evidências, como a cor da pele e o tipo de cabelo. Não sendo, portanto, “índia pura”, era mestiça. De acordo com Rolim de Moura, o mestiço provindo da mistura de negros com índios
era o tipo mais adequado para povoar a região. A filha de Manoel Canavarro se enquadrava nesta característica.
No caso da região da missão de Santa Rosa Velha, depois Forte
de Bragança, as acusações feitas pelos espanhóis de que os portugue65
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
ses roubavam as mulheres dos índios deve ter procedência, se analisarmos pelo viés de que, na falta de mulheres, iam buscá-las onde as
havia em abundância, ou seja, do lado espanhol. Porém, apesar das
investidas em roubos, as mulheres continuaram sendo minoria.
As fugas
São mútuas as acusações de roubo de índios, tanto os do domínio espanhol quanto os do domínio português. Nas correspondências
de Rolim de Moura há diversas reclamações sobre padres espanhóis
que adentravam as terras lusitanas em busca de índios para suas missões. Também são recorrentes as acusações dos padres espanhóis sobre portugueses que retiravam violentamente índios das missões espanholas.
Há também informações sobre escravos negros que fugiam do
lado português e recebiam abrigo do lado espanhol e que, mesmo exigidos, não eram devolvidos pelos padres espanhóis. Da mesma maneira, portugueses não devolviam os índios espanhóis que haviam
fugidos das missões e que se encontravam em seu poder.
Chegaram presos do registro do Jauru, em 18 do mesmo mês [janeiro de
1779], um Pedro Taques, com alguns pardos, bastardos e escravos, em
que entravam umas mulheres, que tendo fugido de Vila Maria do Paraguai, se encaminhavam para os domínios de Espanha, dentro dos quais
já foram apanhados. Foram aqui castigados com açoites e galés (AMADO;
ANZAI, 2006, p. 219).
Foi no governo de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772 a 1789), o capitão-general que mais tempo permaneceu na
Capitania de Mato Grosso, que houve maior incentivo ao desenvolvimento de aldeias, lugares e vilas com a população nativa, em período
pós-jesuítico, dando continuidade à política iniciada no governo de
Antonio Rolim de Moura. Em relação aos índios das missões espanholas, já não mais jesuíticas, segundo Meireles, seu governo “foi
marcado por uma política que, seguindo instruções reais, difere fundamentalmente dos governos anteriores, sobretudo no que se refere
às relações com os espanhóis” (1989, p.165). No período da administração de Luiz Albuquerque, muitos índios fugiram das missões de
Moxos e Chiquitos e se estabeleceram em terras da Capitania de Mato
Grosso. Utilizando-se desses índios, Luiz de Albuquerque fundou,
66
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
por exemplo, Vila Maria do Paraguai4, sobre a qual os Anais de Vila
Bela nos dão as seguintes informações:
Em 31 de agosto [de 1778] mandou Sua Excelência a esta Câmara o termo
de fundação de Vila Maria do Paraguai; e que, por ordem e direção sua,
havia feito, a 6 de agosto, o tenente-de-dragões Antônio Pinto do Rego o
caminho na margem esquerda e oriental do rio Paraguai, onde há o registro do ouro. Foi posto o seu nome em obséquio da nossa augusta soberana. Na dita povoação se acham 161 pessoas de ambos os sexos, em que
entram [ilegível]... perto de cem índios de ambos os sexos que haviam
desertado este ano, por várias vezes, da missão de São João, da província
de Chiquitos, pela porta do Jauru. Fica a povoação no meio do caminho
desta Vila para a de Cuiabá e [ilegível]... de muito cômodo para o comércio
e correspondência de ambas as vilas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 216-217).
A partir do governo de Luiz de Albuquerque, o Forte de Bragança tornou-se um pólo para atração de índios vindos de Moxos, e os
capitães-generais receberam com muito gosto estes migrantes. Porém,
com as vindas cada vez mais constantes, criaram-se novos problemas,
sendo o mais grave a falta de mantimentos. Segundo Meireles, chegavam em canoas, sem qualquer outro bem, e recebiam no forte aquilo
de que necessitavam, em geral, roupas e ferramentas. No entanto, tornavam-se “devedores da Fazenda Real. A dívida era posteriormente
descontada do seu ‘produto’ e, em alguns casos, passaram a ser credores, saldada a dívida inicial” (1989, p. 173-175). Esses índios eram
vistos com bons olhos pelos portugueses:
Nos fins desse mês [novembro de 1775] entraram nesta Capitania 12 índios pelo Registro do Jauru, fugindo da missão de São João de Chiquitos.
Foram eles os primeiros que entraram por aquela parte. Pouco depois
vieram outros índios. Sendo uns e outros recebidos com agasalho, foram
mandados por sábia providência de Sua Excelência para a aldeia da Chapada do Cuiabá, em que há índios portugueses e também castelhanos
vindos da missão de Exaltação e de outras, a fim de que não dêm tão
facilmente execução à variedade de sentimentos que faz o seu caráter (AMADO; ANZAI, 2006, p. 201).
No entanto, muitos deles fugiam novamente para o lado espanhol. O fato de se tornarem devedores da Fazenda Real poderia leválos para prisão, o que fazia com que fugissem novamente.
4
Para maiores informações sobre a fundação da Vila, consultar MORAES, 2003.
67
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
Os ataques
Apesar de todas as medidas tomadas pelos portugueses sobre a
necessidade dos índios se civilizarem, aumentando assim a população desejada pela coroa lusa, muitos deles resistiram.
Nesse mesmo mês [março] chegou a infausta notícia de que nele repetiram os índios Caiapós, vizinhos da Vila do Cuiabá, os seus cruciantes
insultos, matando 12 pessoas nas imediações da mesma vila, havendo,
aliás, também a notícia de que os mesmos, em menos de dois anos, haviam
proximamente morto perto de duzentas pessoas por aquelas vizinhanças
(AMADO; ANZAI, 2006, p. 187-188) .
Contudo, não era apenas os Caiapó que cometiam ataques aos
demais moradores. Os Paiaguá, os Mura, além de outros, também eram
considerados hostis pelo mesmo motivo:
A nação do gentio Mura, que habita as margens do rio Madeira faz um
grande mal ao desenvolvimento do comércio e impossibilita a regularidade dos correios. Porém, este impedimento, só a Capitania do Pará o pode
remover, estabelecendo uma povoação presidida junto à foz do rio Jamariz, e afugentando aquele gentio indomável com uma expedição de guerra
(INSTRUÇÕES, 2001, p. 39).
Em 1775, os Paiaguá atacaram novamente:
Ao mesmo mês [maio de 1775] entrou gentio Paiaguá no sítio de passagem do Paraguai e matou oito pessoas brancas e vinte escravos. Degolaram alguns e deixaram as cabeças em pontas de pau; roubaram e queimaram as casas dos mesmos sítios (AMADO; ANZAI, 2006, p. 197).
Como se verifica, havia resistência acirrada dos grupos indígenas à entrada do colonizador, e à sua insistência em civilizá-los. O
fato de alguns grupos aceitarem sua integração nos aldeamentos coloniais, pode ter sido uma tática de resistência: através da condição de
“índios aldeados”, tais grupos poderiam pleitear os direitos outorgados aos “súditos reais”, buscando assim negociar, de forma mais vantajosa, as perdas sofridas.
Aqui se diz se haverá de fazer uma povoação para cômodo dos que viajam
por este rio Guaporé, ficando em meia viagem da fortaleza da Conceição.
Quando Sua Excelência passou pela cachoeira da Bananeira, apareceu na
margem ocidental do rio Mamoré um lote de quarenta índios silvestres,
chamados Pacanauas. Nesse número entraram algumas mulheres e crianças. Como mostravam vontade de admitir civilização, Sua Excelência os
mandou convidar e socorrer com algum mantimento e gêneros da sua
68
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
inclinação; consistia em ferramentas e quinquilharias de todos os índios.
Vieram em 4 de maio [de 1774] para a fortaleza e ali foram vestidos com as
competentes roupas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 193).
Segundo Rita Heloísa de Almeida, “é preciso saber que o Diretório, regulamentando as condições em que se fazia legítima a liberdade dos índios, ainda deu margem à continuidade de certas práticas de
escravidão” (1997, p. 15). Pequenas ou grandes seriam as punições
aos índios que não agissem conforme impunha o governo português.
Diz o Diretório:
(...) e aos Principais, no caso de haver neles alguma negligência ou descuido, a indispensável obrigação que têm por conta dos seus empregos,
de castigar os delitos públicos com a severidade que pedir a deformidade
do insulto, e a circunstância do escândalo, persuadindo-lhes, que na
igualdade do prêmio, e do castigo, consiste o equilíbrio da Justiça e bom
governo das Repúblicas. Vendo porém, os Diretores, que são infrutuosas
as suas advertências, e que não basta a eficácia da sua direção para que os
ditos Juízes Ordinários, e Principais, castiguem exemplarmente os culpados; para que não aconteça, como regularmente sucede, que a dissimulação dos delitos pequenos seja a causa de se cometerem culpas maiores, o
participarão logo ao Governador do Estado, e Ministro da Justiça, que
procederão nesta matéria na forma das Reais Leis de Sua Majestade, nas
quais recomenda o mesmo Senhor, que nos castigos das referidas culpas
se pratique toda aquela suavidade e brandura que as mesmas Leis permitirem, para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as suas
povoações, tornando para os escandalosos erros da gentilidade (ALMEIDA, 1997, Apêndice, p. 2).
O descumprimento do Diretório
A presença do Diretório foi constante durante todo o período
estudado. Ele visava normatizar a relação do colonizador com as populações indígenas envolvidas na definição de fronteiras. Os índios,
considerados “livres”, “vassalos” da coroa, deveriam ficar concentrados em povoações sob o controle de um administrador, que deveria
zelar por seus interesses. Nessas aldeias havia imposição da língua
portuguesa e se organizava o trabalho dos índios. Os administradores
eram remunerados com a sexta parte da produção indígena, o que levou a excessos na exploração da mão-de-obra, provocando muitas fugas e levantes. Os índios também eram alugados a particulares, mediante diárias. Podiam trabalhar em expedições, como remeiros, e em
69
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
obras públicas. Esses aldeamentos localizavam-se em lugares estratégicos, ao longo do Madeira e do Guaporé, e serviam como ponto de
apoio para os viajantes. O Diretório incentivava a distribuição dos
índios por lavouras familiares, nas quais deviam plantar mandioca,
feijão, milho, arroz, algodão e o tabaco, explorar os “negócios do sertão”, que consistiam na coleta de raízes, folhagens, sementes, cascas,
etc., além de retirar do trabalho seu sustento e um excedente comerciável. Tudo deveria ser desenvolvido próximo às “povoações”; cada uma
delas contava com um diretor, um pároco e um principal, e muitos
deles utilizavam o trabalho dos índios em benefício próprio. Os índios
respondiam a essa exploração com fugas constantes, não estando satisfeitos com as condições impostas pelos diretores, o que anunciava
a futura falência da lei. D. Francisco de Souza Coutinho denunciava as
atitudes dos diretores e o descumprimento do Diretório:
(...) no pé atual a que os diretores reduziram os índios e as povoações
deles, isto é, no pé de considerarem os índios como servos ou escravos,
e a povoação como curral deles, no de nem respeitarem a sua vontade, o
seu interesse, a sua propriedade, a sua vida, pode ser que os viajantes
encontrassem sabendo cometer ao diretor bons partidos. Mas, se esta
povoação se reduzisse aos termos que prescrevem as leis; se fosse possível haver um diretor que não abusasse das suas disposições e da confiança que fazem dele, reconhecer-se-á por mui incerta outra vantagem aos
viajantes mais que a de acharem descanso, víveres e reforço, e muito por
acaso uma vez ou outra alguns indivíduos, que por conveniência própria
os queiram servir largando o seu estabelecimento, grande ou pequeno, e a
sua família, para empreenderem uma viagem, que ainda daquela situação
para diante é dilatada, ou mesmo para somente se arriscarem a violentíssimos trabalhos na passagem das cachoeiras, sendo de mais a mais, tais
trabalhos e tais viagens em climas tão funestos aos mesmos índios (COUTINHO, 1840, p. 281-304).
As manifestações de insatisfação com a aplicação do Diretório
eram cada vez mais constantes, como no caso da Povoação de Casalvasco:
Os índios moradores desta povoação, depois de aqui estar bastante tempo, os conheci mais hábeis e satisfeitos, e agora cada vez mais mal satisfeitos, não obstante tratarem-se com menos sujeição. Sucede que quando
os mando avisar para a equipação desta igarité, que precisamente anda na
Câmara desta povoação, para se a fazer, olham muito, dizendo que não
são cativos, e que se lhes não pagam. O mesmo sucede com os que estão
empregados no serviço do gado, que sempre mandam requerendo que os
70
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tire dele, porque [ilegível] lição que tem o sábado e o domingo, e os dias
de serviço que trabalham como querem. É que o sábado são obrigados ir
para onde o fazendeiro os mandar, seja a hora que for, sem ganhar nada
(APMT, Fundo: Defesa, Ano: 1795).
Esses documentos demonstram bem o descumprimento do Diretório. Apesar da “garantida” liberdade dos índios, ainda continuavam sendo tratados como cativos, e, mais, a regularização do trabalho
e do pagamento dos índios foi algo que praticamente não se cumpriu.
Para Ângela Domingues, “o estatuto dos vassalos ameríndios do monarca português era contrastante com a situação que, de fato, ocupavam, sendo um procedimento corrente a infração dos direitos básicos
estipulados na lei da liberdade”. Além do mais, segundo Domingues,
os diretores eram acusados de explorar os índios em benefício próprio “ou em benefício dos seus amigos e apaniguados, não lhes pagando os salários devidos e fazendo-os trabalhar nos serviços de moradores mais tempo do que aquele prescrito por lei” (DOMINGUES, 2000,
p. 49-50).
O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira denunciou, em seus
registros, o descumprimento da legislação contida no “Diretório dos
Índios”, não concordando com o tratamento que lhes era prestado. O
naturalista criticava em especial os diretores de aldeia, “por considerar que não aplicavam as leis como deviam. Na realidade, Ferreira não
era contrário à utilização da mão-de-obra indígena, mas ao modo pela
qual era aplicada a lei” (ANZAI, 2005, p. 273). A lei previa que esse
trabalho não poderia exceder a seis meses, já que os mesmos índios
deveriam cuidar de suas roças e famílias. Mas isso dificilmente era
obedecido, o que levava a que os índios praticamente abandonassem
suas famílias, promovendo desequilíbrio na divisão das tarefas das
aldeias.
O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira foi um dos que mais
denunciou esta situação. Ferreira registrou em seus escritos, que os
índios eram requisitados como remeiros para expedições diversas, e
que, apesar da existência de portarias definindo que deveriam permanecer em suas casas por seis meses após executar um trabalho, para
trabalhar em suas roças, quando cumpriam uma tarefa eram imediatamente convocados para a próxima (ANZAI, 2005, p. 276). Ferreira
observou que o excesso de trabalho deixava os índios doentes, e oferece o exemplo dos índios remeiros, que sofriam com as picadas de
insetos, que infeccionavam, além de doenças como obstrução, apople71
Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau
xia, hidropisia, asma, febres, e a “corrupção”, esta última a mais temida, e para cuja cura levavam sempre um estoque de pimenta, considerada um dos medicamentos preventivos da doença (ANZAI, 2004. p.
117). Para o naturalista, além do excesso de trabalho, também contribuíam para deixá-los doentes a falta de agasalhos, e a alimentação deficiente.
Em agosto de 1797, D. Francisco de Souza Coutinho, governador
da Capitania do Grão-Pará e Maranhão, enviou a Portugal seu “Plano
para a Civilização dos Índios”. Coutinho denunciou os baixos índices
de produção agrícola, a instabilidade demográfica dos povoados, a “rudeza e a ociosidade contumaz dos índios”, debitando tudo na conta
dos excessos cometidos por diretores e demais funcionários. Esses
problemas seriam os responsáveis pelo fracasso do Diretório enquanto projeto de civilização (SAMPAIO, 2003, p. 127-128).
Devemos observar que o Diretório foi uma lei que se baseou, em
grande medida, nas diretrizes básicas do Regimento das Missões, de
1686, corrigindo-as em alguns pontos, inovando em outros, de modo
que melhor se adaptasse às necessidades daquele momento histórico
em que foi implantado. Do mesmo modo o “Plano para a Civilização
dos Índios” utilizou-se de princípios previstos no Diretório, e que
também buscou corrigir as falhas, principalmente no que dizia respeito à utilização da mão-de-obra indígena, que, segundo Coutinho,
não atendia às necessidades da época. Dessa forma, entendemos que
nem o Diretório nem o “Plano” foram leis totalmente inovadoras. Buscavam corrigir as falhas observadas, permanecendo, em ambos, aqueles princípios que julgavam ter sido exitosos. Um exemplo disso é
que, apesar das críticas de Coutinho ao Diretório dos Índios, alguns
de seus princípios permaneceram, como os incentivos aos casamentos interétnicos que, no caso da capitania de Mato Grosso, contribuiu
com um dos objetivos da coroa lusa para a segurança de suas fronteiras na América, ao promover o aumento de uma população que pudesse defender o território luso dos avanços dos colonos da Espanha.
72
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Referências
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1760, Agosto, 26, Vila Bela. OFÍCIO do [governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [Secretário de Estado
da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a carta do
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Cx. 11, Doc. 622.
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INSTRUÇÕES aos Capitães-Generais. Publicações Avulsas, n. 27. Cuiabá: IHGMT, 2001.
74
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
MOURA, Antonio Rolim de. Correspondências. v. 4.
PAIVA, Ana Mesquita Martins de.; SOUSA, Maria Cecília Guerreiro de.; GEREMIAS, Nyl-Iza Valadão Freitas. D. Antonio Rolim de Moura, primeiro Conde de
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Documentos Ibéricos – Série: Capitães-Generais, 2). v. 1. Cuiabá: NDIHR, Imprensa Universitária, 1982.
______. D. Antonio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja (correspondências). Compilação, transcrição e indexação. (Coleção Documentos Ibéricos –
Série: Capitães-Generais, 4). v. III. Cuiabá: NDIHR, Imprensa Universitária, 1983.
4 Páginas da internet consultadas
COUTINHO, Francisco de Souza. Informações sobre a navegação Pará-Mato Grosso. In: RIHGB, n. 7, outubro de 1840. p. 281-304. Disponível em: <http://
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SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Memória sobre a Capitania de Mato Grosso. In: RIHGB, n. 5, 1840, p. 19-48. Disponível em: <http://documenta.
incubadora.fapesp.br>. Acesso em: 27 jan. 2006.
75
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais
do século XVIII
Gilian Evaristo França Silva
No percurso de levantamento e análise de fontes documentais
relativas à Capitania de Mato Grosso encontramos muitos indícios
sobre festas e celebrações. No século XVIII, a vila capital, Vila Bela da
Santíssima Trindade foi palco de muitas solenidades ligadas às ocasiões religiosas católicas, conforme explicitaremos neste texto, na discussão de práticas constitutivas das representações políticas e culturais vigentes no império português, presentes na Capitania.
As terras constituintes da Capitania de Mato Grosso, criada por
desmembramento da capitania paulista em 1748, situadas a oeste, eram
espacialidades pluriétnicas, assim como todas as que Portugal conquistou na extensão de seu império colonial, nas quais se movimentavam diferenciados atores sociais, muitos deles advindos da repercussão das notícias de achados auríferos. Isto significou importante elemento motivador dos deslocamentos populacionais no território da
América portuguesa. Esse movimento deu-se também em outras capitanias mineiras, como em Minas Gerais e Goiás.
Era preciso garantir a efetiva ocupação desses territórios mineiros situados em territorialidade espanhola, estabelecida pelo Tratado
de Tordesilhas de 1494, sendo que esse processo de avanço territorial
ocorreu principalmente pela busca de riquezas minerais, como ouro e
diamante, e também de indígenas para escravização. Nesse contexto, os
paulistas foram protagonistas dessas ações, fundamentais para a conquista desses territórios para Portugal. Os achados auríferos deram vi-
Gilian Evaristo França Silva é Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso –
UFMT. Foi bolsista CNPq, e defendeu a dissertação “Festas e celebrações em Vila Bela da Santíssima
Trindade no século XVIII”, em 2008. Atualmente é professor da Educação Básica, Técnica e
Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Mato Grosso – CEFET/MT.
E-mail: [email protected].
76
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
sibilidade a essas investidas da coroa lusa, que logo tratou de providenciar maior controle sobre esses espaços que posteriormente configurariam as duas repartições da capitania, a do Cuiabá e a do Mato Grosso.
Os avanços sobre as terras pertencentes à Espanha envolveram
embates entre os que para lá se dirigiam e os que ali já estavam. Os
diversos grupos étnico-culturais produziam e reproduziam seus modos de vida nessas espacialidades, com suas lógicas próprias de uso
do espaço, perpassadas pelas representações que orientavam suas práticas sociais; muito antes da chegada dos primeiros conquistadores
ao interior da América do Sul, sociedades ameríndias já ocupavam
essas terras.
Existia, portanto, uma pluralidade de características culturais,
com as quais se depararam os conquistadores portugueses. Resistentes ao avanço luso-paulista, grupos indígenas como os Paiaguá e os
Guaicurú, promoveram diversas investidas contra as monções que
transportavam pessoas e mercadorias para os núcleos populacionais
e mineradores da Capitania de Mato Grosso.
Com esse processo de avanço territorial sobre terras já habitadas, iniciou-se o povoamento de Cuiabá, tendo Pascoal Moreira Cabral explorado ouro nas margens do rio Coxipó, em 1719. A descoberta de novas jazidas junto ao córrego da Prainha, por Miguel Sutil, em
1722, fez com que o povoamento fosse transferido para as proximidades do morro do Rosário, e aquela localidade foi elevada à categoria de
vila – a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá –, em 1727, por ato
de Rodrigo César de Meneses (VOLPATO, 1987, p. 30-31).
A fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, num
primeiro momento, pode ser entendida como manobra fiscal da coroa
portuguesa, o que é válido. No entanto, não foi o único fator motivador dessa iniciativa, pois desde anos anteriores já eram cobrados tributos sobre sua população. A criação da vila deve ser compreendida
como produtora de condições básicas de governabilidade, no interior
de um sistema comum a outros domínios portugueses nos quatro cantos do mundo (ROSA, 2003, p.16). Por outro lado, a categoria de vila
estabelecia uma ligação maior do núcleo com a sede da Capitania de
São Paulo, da qual o arraial do Cuiabá fazia parte. Na medida em que o
arraial assumia a condição de vila, eram transmitidas aos seus habitantes perspectivas de estabilidade, de durabilidade do povoado, tanto assim que já havia merecido a atenção das autoridades coloniais,
que a haviam transformado em município (VOLPATO, 1987, p.31).
77
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
No momento de fundação de uma vila, explicitavam-se os elementos
dessa governabilidade, tais como levantar pelourinho, criar Câmara
municipal e cadeia, com eleições, estatutos e posturas municipais,
normatização da edificação, da higienização, da saúde, da alimentação
e das manifestações públicas (ROSA, 2003, p.16).
Além dos veios auríferos setecentistas cuiabanos, outros importantes foram sendo encontrados na repartição do Mato Grosso, no vale
do rio Guaporé (AMADO; ANZAI, 2006). No entanto, mesmo sendo
uma importante prática impulsionadora dos deslocamentos populacionais no século XVIII, a mineração não foi a única atividade econômica desenvolvida na Capitania de Mato Grosso. Não podemos deixar de evidenciar também as rotas comerciais de abastecimento da
região com produtos vindos pelo sul e pelo norte, além, é claro, das
práticas agrícolas e da atividade criatória interna. A Capitania de Mato
Grosso, por outro lado, também era uma capitania “fronteira”, situada
nos limites com territorialidades ocupadas pelos agentes colonizadores espanhóis, num momento em que as fronteiras geopolíticas entre
as colônias ibéricas na América ainda estavam sendo definidas ao longo
do século XVIII.
Foi intenso o fluxo de pessoas para as lavras situadas no vale do
Guaporé, formando-se nesses espaços muitos arraiais e povoações, a
exemplo de São Francisco Xavier, Santana, Pilar, Ouro Fino, São Vicente, Casalvasco. A ocupação do vale do rio Guaporé é tributária do
Cuiabá; foi a partir do Cuiabá que se descobriu o ouro nas mediações
do Guaporé, e se deu início aos núcleos de povoamento em seu derredor (LUCÍDIO, 2004, p. 3). Entre essas espacialidades, foi criada outra
vila, a Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, vila
capital da então recém-criada Capitania de Mato Grosso (1748), anteriormente parte constituinte da Capitania de São Paulo. Desse modo,
Vila Bela da Santíssima Trindade serviu de ponto referencial, juntamente com a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, para a consolidação do domínio de Portugal sobre as terras luso-americanas situadas
a Oeste (ROSA, 2003, p. 41). Observa-se, pois, que as duas vilas foram
edificações urbanas fundamentais na conquista territorial lusa.
Na manutenção do controle militar e burocrático em suas terras
coloniais, o domínio da coroa contaria, em larga medida, com uma
série de símbolos e rituais importantes para a transmissão de valores
culturais a serem considerados comuns a todos que faziam parte do
império. Assim, as festividades, sem aparente uso da coerção, consti78
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tuíam-se em um sofisticado instrumento persuasivo. As cerimônias
públicas, explicitadas em diversos tipos de festejos, sagrados e profanos, estiveram presentes na formação dos núcleos de povoamento,
tanto em arraiais quanto em vilas, conforme observamos em Vila Bela
da Santíssima Trindade.
Não eram poupados esforços para atrair público para esses eventos. No dia marcado para a festa ou celebração pública, logo em seguida às procissões que abriam as festas levantava-se um mastro comemorativo relacionado aos santos católicos, momento em que eram evidenciados os oragos das vilas coloniais. Nessas celebrações, os elementos de caráter litúrgico confundiam-se com o profano, em um espetáculo de intenso colorido rítmico, pleno de explicações simbólicas (FERNANDES, 2002, p. 94). Esses eventos diminuíam tensões e
conferiam sentido ao viver nos espaços urbanos que agregavam os representantes do poder metropolitano, sendo um dos momentos demonstrativos desse significado aos demais colonos.
As festas devocionais católicas contavam com a atuação das irmandades religiosas, responsáveis que eram também por sua promoção e organização, juntamente com a Câmara, que aproveitava esses
momentos para exibir as insígnias do poder metropolitano e dos poderes locais. Essas oportunidades agregavam os fiéis e a todos os grupos dessa sociedade colonial, reunida em torno da montagem e dos
enfeites dos andores, ricamente adornados com as cores de cada entidade religiosa homenageada.
Essas manifestações, dedicadas aos oragos católicos, tinham sua
data fixada segundo o calendário litúrgico, e, por isso, eram denominadas “festas ordinárias”. Muitas delas marcaram o cenário vilabelense. Essas manifestações religiosas proporcionavam momentos de pausa
ao movimento regular e tenso do trabalho diário. Nas vilas coloniais,
o centro das festividades eram as igrejas, locais onde se realizavam os
ofícios litúrgicos, se recitavam ladainhas e se entoavam cânticos.
Na dinâmica colonizadora colonial, quando da instalação dos
povoados, fossem arraiais, vilas, roças, sítios ou fortificações, construíam-se também igrejas e capelas, que marcavam e nomeavam territórios, colocando-os sob a invocação de um santo ou de uma santa,
que passavam a exercer a função de guardiões nomeadores dos novos
agrupamentos. Esses santos e essas santas desempenharam um significativo papel na vida desses grupos colonizadores, servindo a eles de
protetores, por meio das potencialidades que cada um trazia consigo,
79
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
fosse proteção contra doenças ou contra males provocados por fenômenos naturais, a exemplo dos trovões e das ventanias.
As igrejas eram centros irradiadores da cultura européia no Novo
Mundo, pois congregavam os moradores dos povoados na promoção
de eventos religiosos ou políticos, em que era comum o uso do seu
espaço por parte das autoridades políticas metropolitanas e dos poderes locais. Isso ocorria pela dificuldade de estabelecer uma fronteira rígida e bem delimitada entre o político e o cultural, ou ainda entre
o sagrado e o profano, pois ambas as esferas estavam inseridas em um
mesmo movimento de apropriações diversas, estabelecendo empréstimos culturais mútuos em seus campos de ação. Dessa forma, a utilização do espaço da igreja exemplificaria muito bem, nesse período, o
intenso intercâmbio e as conexões estabelecidas entre as diferenciadas esferas do poder. Na tabela abaixo, constam as igrejas destacadas
nos registros dos Anais de Vila Bela, no período de 1734 a 1789, com
suas denominações, localizações e datas de fundação.
Igrejas registradas nos “Anais de Vila Bela da Santíssima Trindade”
(1734-1789)
Localidade
Entidade religiosa nomeadora
Período
Vila Bela – porto
Santo Antônio
Anterior à fundação da
da vila até fins de 1752
Vila Bela – praça
Santo Antônio
1752 - 1753
Arraial de São
Francisco Xavier
São Francisco Xavier da Chapada
Anterior à fundação
de Vila Bela
Vila Bela
Capela Nossa Senhora Mãe dos
Homens
1753-1754
Arraial de Santa Ana Capela de Santa Ana
Anterior à fundação
de Vila Bela
Arraial do Pilar
Capela Nossa Senhora do Pilar
Anterior à fundação
de Vila Bela
Vila Bela
Matriz da Santíssima Trindade
1755
Vila Bela
Nossa Senhora Mãe dos Homens
1755
Vila Bela
Pedra fundamental da igreja
Santo Antônio de Lisboa
1779
Vila Bela
Início da construção da capelinha
dedicada a Nossa Senhora do
Monte do Carmo
1781
Casalvasco
Nossa Senhora da Esperança
1785
Fonte: AMADO; ANZAI, 2006.
80
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
As festas de Vila Bela da Santíssima Trindade seguiam o previsto nas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, legislação
eclesiástica que era referência para as ações religiosas e laicas na Capitania de Mato Grosso. Eram as seguintes, conforme tabela abaixo:
Dias santos fixos no calendário litúrgico
MESES
JANEIRO
DATAS COMEMORATIVAS
1 Circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo
6 Epifania (Dia de Reis)
FEVEREIRO
2 Purificação de Nossa Senhora
24 São Matias Apóstolo, e no ano bissexto, 25
MARÇO
19 São José, esposo da Virgem Nossa Senhora
25 Anunciação de Nossa Senhora
MAIO
1 São Felipe e Santiago Apóstolos
3 Invenção da Santa Cruz
JUNHO
13 Santo Antônio, “por ser natural do nosso Reino”
24 Nascimento de São João Batista
29 São Pedro e São Paulo Apóstolos
JULHO
25 Santiago Apóstolo
26 Santa Ana, Mãe da Virgem Nossa Senhora
AGOSTO
10 São Lourenço Mártir
15 Assunção da Virgem Nossa Senhora
24 São Bartolomeu Apóstolo
SETEMBRO
8 Nascimento da Virgem Nossa Senhora
21 São Mateus Apóstolo
29 Dedicação de São Miguel Arcanjo
OUTUBRO
28 São Simão e São Judas Apóstolos.
NOVEMBRO
1 Festa de todos os Santos.
30 Santo André Apóstolo
DEZEMBRO
8 Conceição da Virgem Nossa Senhora, “Padroeira do nosso Reino”
3 São Francisco Xavier
21 São Thomé Apóstolo
25 Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
26 Santo Estevão Protomártir
27 São João Apóstolo e Evangelista
28 Santos Inocentes
31 São Silvestre Papa
Fonte: NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720.
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A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
A orientação eclesiástica era para que em cada igreja paroquial
da jurisdição do arcebispado baiano se guardasse o dia da festa principal do orago que dava nome à localidade, e acrescentava que nenhum pároco ou prelado poderia conceder outros dias santos de guarda que não constassem da relação do calendário litúrgico ou da relação das datas cristãs móveis. Os párocos deveriam também divulgar,
durante as celebrações litúrgicas dominicais, os dias santos da semana que entrava, anunciando a todos que deveriam abster-se de trabalho, dedicando-se a orações e missas. No calendário litúrgico, além
dos dias santos fixos, havia os móveis, que deveriam, igualmente, ser
considerados pelos fiéis:
Dias santos móveis
Todos os Domingos do ano
Domingo de Páscoa da Ressurreição, a segunda e a terça-feira seguintes
Quinta-feira da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo
Dia do Espírito Santo, com os dois dias imediatamente seguintes
Quinta-feira em que a Igreja universal celebra a festa do Corpo de Deus
Fonte: NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720.
Desse modo, diversos elementos da religião oficial do império
lusitano começaram a fazer parte do cotidiano dos moradores do território a oeste da América portuguesa, que vinha sendo esquadrinhado e reconfigurado ao longo de todo o século XVIII.
As santas festas
Na festa, o sagrado e o profano caminhavam juntos, “como se
dentro de cada festa religiosa existisse uma profana e vice-versa”(DEL
PRIORE, 2000, p.19). Repleta de rituais que não se encerravam nos
atos, no próprio ritual, mas no que eles sinalizavam, a festa tornava-se
espaço de manifestação pública para diversos setores sociais (AMARAL, 2001, p. 36). Nesse sentido, ela organizava espaços de sociabilidades dos grupos em questão (JANCSÓ; KANTOR, 2001, p. 3), a exemplo da chegada da imagem do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em 1729,
quando ocorreram muitos festejos organizados pelos moradores da
Vila Real. A imagem foi trazida em procissão do Porto Geral, e, em
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
seguida, levada à igreja matriz, onde ficou alojada em um altar. Houve
missa cantada e sermão pregado pelo padre José Angola, religioso franciscano. As manifestações profanas foram compostas por representações de duas comédias, banquetes e fogos de artifício, que duraram
quatro dias, por conta das “pessoas principais” da vila (SUZUKI, 2007,
p. 61-62).
Já em 1753, houve uma festa concorrida em Vila Bela, em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, registrada nos Anais de Vila Bela,
quando da chegada da imagem em um barco vindo das monções do
norte, e que provocou muita alegria e devoção. A imagem de Nossa
Senhora do Rosário foi colocada na capela de Santo Antônio, que servia provisoriamente de matriz da vila capital.
Todas essas manifestações colocavam em movimento pessoas,
idéias, objetos, símbolos, autoridades políticas e clericais da repartição do Mato Grosso. Contamos também com descrições de outras festas concorridas, como aquela em louvor a Nossa Senhora Mãe dos
Homens, realizada no dia 21 de novembro de 1754, quando aconteceu
a bênção da capela na qual seria entronizada a santa. Os registros indicam que, após a bênção, deu-se início ao tríduo, e em seguida à novena, sempre com festividades que agregavam a população de Vila
Bela e de seu entorno. No dia da bênção, houve a exibição de três
companhias de milícia: a dos brancos, capitão Antônio da Silva Fagundes Borges; a dos pardos, capitão Baltazar de Brito Rocha; e a dos
pretos, capitão Henrique Ribeiro Cavaco, “as quais, circulando a capela em roda na função da bênção, a concluíram com as suas três descargas” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 56). Este ato lembrava em muito os
rituais pagãos antigos de encanto do mastro votivo, sempre feito em
círculo, como uma etapa feiticeira elaborada pelos homens em prol de
alguma graça ou benção (DEL PRIORE, 2000, p. 34).
Festas religiosas – Repartição do Mato Grosso (1734-1789)
LOCALIDADE
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
ENTIDADE RELIGIOSA
Santo Antônio
Santo Antônio
Nossa Senhora do
Rosário
Vila Bela
Solenidade da Semana
Santa
Repartição do Desobrigas
Mato Grosso
PERÍODO
Junho
Junho
Chegada da imagem
em 12 de julho
Data móvel
ANO
1752
1752/1753 - 1789
1753
Quaresma e Páscoa
do Espírito Santo
Móvel
1754
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A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
Vila Bela
Nossa Senhora Mãe
dos Homens
Arraial de
Santa Ana
Santa Ana
Vila Bela
Santo Antônio com
trezenas (restauração
dos cultos ao protetor)
Pedra fundamental da
igreja de Santo Antônio
de Lisboa
Santo Antônio de Lisboa
Santo Antônio
Santo Antônio
(nova capela)
Chegada da imagem
de Nossa Senhora
Monte do Carmo
Santo Antônio
Nossa Senhora Monte
do Carmo (primeira
vez de sua realização)
Santo Antônio
Santo Antônio
Nossa Senhora da
Esperança
Santo Antônio de Lisboa
Nossa Senhora da
Esperança
Santo Antônio de Lisboa
Santa Ana
Vila Bela
Bênção – lançamento 1754
da pedra fundamental
21 de novembro
Julho
Anterior à
fundação de Vila
Bela
Junho
1777
1º de junho
1779
13 de junho
Junho
Junho
1779
1781
1782
26 de dezembro
1782
Junho
16 de julho
1783
1783
Junho
Junho
Setembro
Junho
Setembro
1784
1785
Desde a fundação
1785
1786
1786
Junho
Julho
1787
1787
Sagrada Eucaristia –
procissão e luto pelo
roubo da partícula
Julho - agosto
1787
Setembro
1787
Casalvasco
Nossa Senhora da
Esperança
São Lourenço
9 de setembro
Vila Bela
Vila Bela
Santo Antônio de Lisboa
Santo Antônio de Lisboa
Junho
Junho
1787 (indícios de
sua realização em
anos anteriores)
1788
1789
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Vila Bela
Casalvasco
Vila Bela
Casalvasco
Vila Bela
Arraial de
Santa Ana
Repartição
do Mato
Grosso –
Vila Bela
Casalvasco
Fonte: AMADO; ANZAI, 2006.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Uma das festas mais prestigiadas era aquela em honra ao “Glorioso Santo Antônio de Lisboa”, realizada nas primeiras semanas do mês
de junho. Conhecido como Santo Antônio de Pádua, este santo nasceu em Lisboa no ano de 1195, e foi canonizado em 1232. Até a idade
de vinte e cinco anos, Antônio foi cônego regular em Portugal, prosseguindo seus estudos em Coimbra. Tornou-se missionário e uniu-se
depois aos frades franciscanos, sendo enviado para trabalhar entre os
muçulmanos de Marrocos. Santo Antônio era um dos principais santos nomeadores das igrejas em Portugal, e recebeu homenagens de várias vilas e cidades do império luso, assim como outros santos e santas de devoção da realeza portuguesa, tais como Nossa Senhora da
Esperança, São Pedro, São Paulo, Nossa Senhora do Carmo, Nossa
Senhora do Rosário, entre outros.
Durante o tempo de edificação de Vila Bela da Santíssima Trindade, em vários momentos os ofícios litúrgicos foram efetuados em “altar
portátil”, pela falta de lugar único e fixo para as celebrações litúrgicas.
Mas, em breve, foi construída uma capelinha coberta de palha, dedicada a Santo Antônio, e já no ano de 1752 há registros de realização de
festividades em homenagem a esse santo em Vila Bela da Santíssima
Trindade, como as cavalhadas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 52).
Com o aumento da população de Vila Bela, o local de edificação
dessa igreja foi transferido, passando do porto para a praça central,
lugar destinado à matriz da Santíssima Trindade (AMADO; ANZAI,
2006, p. 53). Desse modo, a capela de Santo Antônio passou a ser a
matriz de Vila Bela, até que a igreja dedicada à Santíssima Trindade
fosse construída e definitivamente ocupasse o espaço principal e central, temporariamente ocupado pela igreja de Santo Antônio. Como
matriz provisória, a igreja de Santo Antônio agregava a população em
torno dos rituais litúrgicos católicos, de acordo com o calendário cristão vigente. Em 1754, realizou-se pela primeira vez a solenidade da
Semana Santa nessa capela, que servia de matriz, por ordem do Bispo
D. Antônio do Desterro, vinda do Rio de Janeiro (AMADO; ANZAI,
2006, p. 55).
No ano de 1755, a capela de Santo Antônio foi demolida por
ordem do juiz-de-fora, para que no local pudesse ser construída, de
modo definitivo a igreja matriz da Santíssima Trindade. Durante o
tempo dessa construção, ficou a capela de Nossa Senhora Mãe dos
Homens servindo provisoriamente como matriz de Vila Bela (AMADO; ANZAI, 2006, p. 59-60).
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A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
As festividades em honra a Santo Antônio de Lisboa eram iniciadas com uma trezena, desde o dia primeiro de junho até o dia 13, dia
do santo. Nesse período de orações e cantos participavam os moradores da vila, arraiais, sítios e fazendas, e conforme os Anais de Vila
Bela do ano 1777 “(...) de forma que em todas as festividades a trezena
se encheu de povo esta Capital, que jamais teve dias tão alegres e cheios de divertimentos, publicados por um bando de máscaras no dia 22
de maio” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 210).
Na véspera do dia de Santo Antonio do ano de 1777, os céus de
Vila Bela da Santíssima Trindade ficaram iluminados por fogos de
artifício por quase três horas. No dia seguinte, houve cavalhadas, com
vinte cavaleiros que formavam duas alas, uma composta por homens
vestidos de azul, e outra de homens vestidos de vermelho. Foi um dia
de muito festejo, durante o qual foram apresentadas também “óperas,
comédias”, e que, com as outras festividades, foram cheios de “farsas,
de muitas máscaras” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 211). O público da
festa era diversificado, com destaque para a participação do governador e das famílias mais abastadas, vestindo suas melhores roupas. No
palácio do capitão-general “houve um grande panegírico”, e em seguida “deu Sua Excelência jantar com a costumada grandeza, como também ceia, fazendo-se todo o festejo do dia seis; e repetindo-se, em
ambas, várias poesias” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 211).
Em 1779, quando do lançamento da primeira pedra da capela
em honra a Santo Antônio de Lisboa, que contou com o auxílio financeiro da “nobreza da terra” e contribuições do povo, “no alicerce de
um ângulo da capela-mor”, o governador e capitão-general Luís de
Albuquerque lançou “algumas marcas de prata, que mandou lavrar
com as armas reais, e uma esfera com declaração do ano 1779, mandando repartir outras muitas pela nobreza” (AMADO; ANZAI, 2006,
p. 219-220).
A capela dedicada a Santo Antonio estava localizada junto ao rio
Guaporé,
(...) no fim da rua que já se denominava de Santo Antônio. Vai principiada com tanta segurança que se não pode temer que as inundações lhe
causem alguma ruína. Para ela deu Sua Excelência uma grande esmola,
seguindo esse exemplo de devoção os oficiais da provedoria e todo corpo
militar, do qual se presume que o mesmo santo fica sendo protetor e
patrono (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219-220).
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Aos poucos, os lugares passam de pontos de referência, de organização social, para uma ampla rede de significados, que lhes eram
atribuídos no transcorrer da vida cotidiana. Os agentes metropolitanos, bem como religiosos, luso-brasileiros reocupavam esse território, reterritorializando suas devoções, construindo pertencimentos.
Construir uma capela em homenagem a Santo Antonio, protetor de
Lisboa, reforçava laços com Portugal e com a religião. Ao nomear espaços e prestar homenagem aos santos, instaurava-se outra temporalidade, aquela advinda da interrupção das atividades cotidianas, da
celebração religiosa da memória de um santo, do festejar, do momento
de congraçamento, mesmo que efêmero.
A imagem de Santo Antônio foi entronizada em sua capela apenas em 1781, e houve trezena em sua homenagem. A imagem foi carregada em procissão pelas principais ruas da vila, percorrendo e demarcando territórios. Na procissão, houve a participação dos principais
representantes do poder metropolitano, da Capitania de Mato Grosso
e da Igreja Católica. Nesse cortejo, os poderes se explicitavam:
[houve] uma luzida procissão, dando Sua Excelência a mais exemplar edificação em pegar no andor do mesmo santo, com os ministros e oficiais
militares mais graduados [...] Continuou a festividade com a maior magnificência e luzimento, mandando Sua Excelência distribuir grande quantidade de medalhas ou verônicas de ouro e prata por toda a nobreza e
militares, que as puseram muito gostosamente nos peitos, como insígnias
da irmandade, e quase como de uma ordem militar, que tem no santo um
grande general e o mais famoso protetor (AMADO; ANZAI, 2006, p. 227).
Além da procissão, fogos de artifício e luminárias clareavam as
ruas, e nos dias da trezena apresentaram-se quatro óperas. No pátio
em frente à capela de Santo Antônio de Lisboa, a guarnição de dragões
e auxiliares postou-se solenemente com duas peças de artilharia, e no
pórtico da capela-mor havia elogios escritos ao santo, com mensagens
devotas dos moradores e do governador e capitão-general Luís de Albuquerque, principal devoto e responsável pelo dístico colocado em homenagem ao santo. Em seguida a essas festividades, houve jantar no
palácio dos governadores, oferecido às famílias mais abastadas e demais representantes da coroa lusa (AMADO; ANZAI, 2006, p. 227-228).
As festas em homenagem a Santo Antônio eram muito concorridas, e para seu brilho contribuíam o governador, ministros, militares,
“nobreza da terra”, sob a coordenação da Irmandade de Santo Antônio
de Lisboa, que congregava em sua maioria homens provenientes das
87
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
tropas militares. Pelo fato de o santo ser patrono dos militares, a tropa
ficava sempre apostada diante da capela e dava salva real. Logo após
os ritos e as funções religiosas, como era comum acontecer, no ano de
1782 foi oferecido “um suntuoso e magnífico jantar, na forma dos
mesmos anos antecedentes, tudo com muito júbilo, alegria e animação” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 232).
Os registros sobre a festa em homenagem a Santo Antônio variam
de acordo com o escrevente. Nos anos de 1787 e 1788, contamos com
detalhes sobre os festejos que são bastante elucidativos:
No dia 13 de junho celebrou-se, na capela de Santo Antônio, a festividade ao mesmo santo, com a maior solenidade e grandeza, precedendo a
sua trezena, da mesma sorte. Assim sendo, Sua Excelência saiu do palácio na sua carruagem, pelas 9 horas da manhã, acompanhado da sua
guarda militar. Foi recebido, apostada na mesma capela, com as conveniências devidas ao mesmo militar, e de todas as irmandades do mesmo
santo, de que é protetor, e o mais exemplar devoto; também dos ministros, oficiais militares e nobreza, ministrando água benta o padre vigário,
paramentado de capa e asperge, e a [ilegível]... de todos os mais, havendo
na mesma o mais primoroso concurso de ambos os sexos, uma festa com
solene procissão ao redor da capela. E no ato dela se deu uma salva de
artilharia, com as mais continências devidas. [...] Recebendo Sua Excelência, em seu palácio deu um magnífico e bem ordenado jantar a todos
os ministros, oficiais e nobreza que para isso tenha feito convidar. [...] Foi
juiz nessa festa, no presente ano, Vitoriano Lopes de Macedo, natural de
Vila Bela, que Sua Excelência nomeou tenente ajudante-de-ordens, sendo
servido com boa satisfação os postos de alferes e de tenente dos dragões
e outros, nos corpos de ordenação a auxiliares do mesmo juiz, tanto na
ação de pôr o mastro, como nos dias da trezena e tarde do dia do santo.
Celebrou a festividade com várias danças e comédias e com vistosa iluminação e fogo de cor, com grande despesa sua (AMADO; ANZAI, 2006, p.
266-267).
As festas religiosas foram momentos privilegiados para a exibição dos símbolos sociais de distinção no espaço da vila capital. A
procissão aparece como o principal símbolo a produzir a diferenciação entre os grupos sociais, pois era organizada e fragmentada por
situação sócio-econômica, de acordo com a posição que cada indivíduo ocupava naquela sociedade colonial. Quando do momento de circularem a capela de Santo Antônio, os ocupantes de cargos políticoadministrativos seguiam sempre à frente, junto ao governador e capitão-general, que, inclusive, ajudava a carregar o andor do santo.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Seguiam-se as irmandades religiosas, famílias abastadas da vila capital e dos arraiais e povoações próximas e, nas últimas posições, apareciam livres pobres, alforriados, escravos e indígenas. Este esquema
organizativo era comumente seguido nas demais “santas festas” dos
oragos católicos.
Outra festa bastante significativa era aquela em homenagem a
Nossa Senhora da Esperança, em Casalvasco. Construída para receber
os comissários da Terceira Partida de Limites, que tinha como intuito
reconhecer as terras que serviriam de fronteira entre as colônias de Portugal e Espanha, Casalvasco foi fundada no extremo oeste da América
portuguesa. Nesse contexto de definição de fronteiras geopolíticas, a
povoação regular foi concebida tendo como parâmetro o Tratado Preliminar de Santo Ildefonso (1777). Havia o questionamento, por parte
dos portugueses, da raia proposta por esse tratado, especificamente o
artigo X, que traçava a linha demarcatória desde o Marco do Jauru até o
rio Galera. Com a instalação de Casalvasco, essa linha demarcatória
chegaria até o rio dos Barbados, ficando a povoação distante oito léguas
da vila capital, território assegurado aos interesses portugueses.
Mesmo assim, a povoação regular de Casalvasco não serviu exclusivamente de cenário para as demarcações de limites, tampouco
como casa de veraneio dos governadores e capitães-generais da Capitania de Mato Grosso, sobretudo de Luís de Albuquerque, que a fundou; Casalvasco representava também a defesa das terras onde nasciam
alguns dos principais rios que formam as bacias hidrográficas amazônica e do Paraguai. Além disso, essas terras seriam garantidas à coroa
portuguesa pelo uti possidetis, que assegurava o domínio pela ocupação humana e uso do espaço, fosse através da concessão de sesmarias
na localidade, pela edificação desse espaço urbano ou no emprego de
outras atividades econômicas. Edevamilton de Lima Oliveira discute
essas questões (OLIVEIRA, 2003), ressaltando, sobretudo, o planejamento, a instalação e a fundação dessa povoação regular por Luís de
Albuquerque. Para Oliveira, Luís de Albuquerque teve a sagacidade
de perceber uma inteligente forma de assegurar as terras situadas a
oeste aos portugueses, com a edificação de um espaço urbano nos limites com os territórios espanhóis, garantindo até mesmo a instalação de Vila Bela, ameaçada com as linhas demarcadoras determinadas
pelo Tratado Preliminar de Santo Ildefonso, de 1777.
Casalvasco agregou relações significativas com os domínios espanhóis, pela prática do contrabando controlado e até mesmo pela
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A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
espionagem relacionada a questões internas da vizinha colônia ibérica. A povoação está inserida no contexto da atuação política de Luís
de Albuquerque, cujas ações legitimaram a reocupação portuguesa na
região, como a instalação de fortalezas, povoados e vilas. A povoação
regular surgia em planta no ano de 1782, importante projeto geopolítico para a demarcação dos limites coloniais. Oliveira (2003) trabalhou
com a hipótese de que o desenho da povoação tenha sido realizado
por Luís de Albuquerque, com a ajuda dos engenheiros demarcadores, em Vila Bela. As primeiras edificações eram de palha, e os edifícios
projetados na planta foram executados com regularidade. Depois de
limpo o terreno, e à medida que as casas eram construídas, o governador Luís de Albuquerque determinava a introdução de pessoas para
habitar a povoação, como ocorreu durante os primeiros meses de sua
fundação. Indígenas das missões jesuíticas espanholas de Moxos foram enviados para lá, e eram dadas a eles ramas de algodão para cultivarem e tecerem para os moradores da localidade.
As visitas de Luís de Albuquerque à “povoação regular” eram
freqüentes, e são ricas as descrições das festas que lá eram promovidas. Em 1785, no dia 2 de setembro, Luís de Albuquerque partiu de
Vila Bela rumo a Casalvasco, com o objetivo de regular o novo destacamento (AMADO; ANZAI, 2006, p. 252). Chegou à povoação por volta das seis horas da tarde, e foi recebido pelo capitão-comandante,
engenheiro Joaquim José de Morais, juntamente com o corpo militar
ali presente, que deu salva de três descargas, em demonstração de
regozijo e contentamento por sua presença. A partir daquela noite e
das duas seguintes, “ficou toda aquela povoação iluminada em demonstração do caráter festivo e celebrativo de sua chegada” (AMADO;
ANZAI, 2006, p. 252).
Desde o dia 6 de setembro de 1785 chegavam pessoas a Casalvasco, como o Provedor da Fazenda Real, Felipe José Nogueira Coelho,
“acompanhado dos oficiais da provedoria e intendência, mais algumas pessoas”, e o movimento, segundo os registros, lembrava “as festividades da vizinhança das Cortes de Lisboa”. Em seis canoas, pessoas
“saíam, lançando fogo no ar, dando tiros de bacamarte, tocando flautas
e outros instrumentos, tendo iluminada a canoa em que ia a bandeira
da Senhora da Esperança”. Uma vez em terra, formaram-se alas, que
precediam a bandeira, “levando todos velas e laços de fita encarnadas
no chapéu, para insígnia de festeiros do círio do ouro, em diferença da
prata”. Em seguida, entraram todos na capela para rezar, “largaram a
90
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
bandeira e foram depois beijar a mão à Sua Excelência, em cuja presença se repetiu um poema, e se continuou no fogo de vários artifícios”
(AMADO; ANZAI, 2006, p. 252-253).
Dando continuidade aos festejos, no dia 7 de setembro de 1785,
o reverendo Estevão Ferro, vigário da vara e da igreja, realizou bênção
da capela, e aspergiu água benta na igreja e nas pessoas presentes.
Contribuíram financeiramente para a festa o capitão-general Luís de
Albuquerque, ministros, ajudantes-de-ordens, secretários do governo, oficiais das demarcações, militares e a “nobreza da terra”. Nessa
ocasião foram distribuídas às autoridades presentes, a pedido de Luís
de Albuquerque, “grandes medalhas ou verônicas de prata, com a imagem da Senhora da Esperança, que com laços de boa fita puseram todos ao peito” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 253).
Em 8 de setembro, dia de Nossa Senhora da Esperança, muitos
foram cumprimentar Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, desde militares, religiosos e pessoas provenientes das famílias
abastadas, que estavam em Casalvasco para participar da festa em
homenagem à santa. Durante a festa, houve missa e exposição do
Santíssimo Sacramento, além de procissão. O culto contou com a
atuação do mestre da capela e de músicos da vila capital, e “a tropa
militar formada diante da capela deu carga de três descargas, continuando sempre os instrumentos musicais e alegres toques dos sinos, o que tudo infundia um regozijo e alegria visível” (AMADO;
ANZAI, 2006, p. 253-254). Como em todas as ocasiões festivas, o
governador ofereceu
(...) um jantar público com toda a grandeza e magnificência. Houve depois dela uma boa orquestra de músicos e instrumentos. Nessa noite e na
do dia seguinte se representaram, em teatro, óperas com várias danças e
outros divertimentos festivos (AMADO; ANZAI, 2006, p. 253-254).
Em setembro de 1787, para a festa em homenagem à mesma Nossa Senhora da Esperança, o capitão-general Luís de Albuquerque havia chegado à povoação regular na tarde do dia 3 de setembro, sendo
recepcionado à beira do rio pelo capitão-comandante Joaquim José
Ferreira e pela Companhia de Dragões, que lhe fez as devidas continências. Em seguida, no percurso que fez até o palácio, foram “matizando
o caminho com flores as índias espanholas que ali se acham, caminhando formadas em duas alas, de um e outro lado, diante de Sua
Excelência” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 209).
91
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
Os Anais de Vila Bela descrevem esses festejos também nos anos
de 1786 e 1787, sempre seguindo as mesmas etapas rituais. Contudo,
chama a atenção um relato sobre a festa de 1787, por relacionar, além
dos nomes dos organizadores, também as etapas do evento:
No dia 8 de setembro celebrou-se, na capela real de Casalvasco, a festividade de Nossa Senhora da Esperança, sua padroeira, ornada a capela
com a magnificência possível. Foi a missa cantada pelo Reverendo Vigário da vila, assistindo à mesma festividade e procissão, Sua Excelência, o
doutor Ouvidor-Geral e sua mulher, Dona Ana Isabel da Purificação, muitas
pessoas da nobreza e grande concurso de gente. No ato da procissão se
deram 21 tiros de [ilegível]... e deu Sua Excelência às pessoas que o acompanharam um jantar, com todo o asseio e grandeza. Na noite desse dia se
representou a ópera “O Alecrim e Mangerona”. Houve luminárias, por
conta da festividade de São Lourenço, que no dia seguinte se celebrou,
por estar transferida do dia próprio em que os moradores desta povoação
há muitos anos festejam esse santo, e, à mesma festividade assistiu Sua
Excelência, com as mais pessoas que o costumam acompanhar (AMADO;
ANZAI, 206, p. 270).
Observe-se, no registro, a presença de peças teatrais, clara demonstração da circulação de produções culturais da Europa para a
América portuguesa. As canoas que chegavam à Capitania de Mato
Grosso traziam, além de “fazendas” diversas, também as gazetas e almanaques que registravam a vida cultural do reino. Essas encenações
públicas eram relatadas em variadas ocasiões festivas, com grande
aceitação do público pelas representações de tragédias, óperas e comédias. É possível percebê-las desde 1729 nos Anais do Senado da
Câmara do Cuiabá, que registrou, durante as festividades em homenagem à chegada da imagem do Senhor Bom Jesus a Cuiabá, duas comédias. Outros registros ainda aparecem sobre as peças teatrais, como as
ocorridas no ano de 1763, em homenagem ao nascimento do Príncipe
da Beira em festas que duraram um mês, “com comédias, cavalhadas,
danças e outras mostras de alegria”; também em 1769, nas cerimônias
de posse do governador Luís Pinto de Souza Coutinho, houve “cinco
comédias, e duas óperas”, apresentações feitas “em tablado público na
rua”, além de “outras danças e folguedos” (SUZUKI, 2007).
Ainda conforme os Anais do Cuiabá, no dia 12 de fevereiro “se
representou em tablado público, com toda a magnificência e maior
ostentação que permitiu o país, a comédia intitulada “O capitão Belizário”. Consta ainda, nos mesmos Anais, que, nos dias que se segui-
92
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
ram, foram apresentadas “outras comédias e óperas, cujos títulos foram: Os triunfos de São Francisco; Demofonte em Pracia; Artaxerxes;
Dido abandonada; Filinto perseguido e exaltado” (SUZUKI, 2007).
A partir da análise dos relatos dos cronistas José Barboza de Sá
e de Joaquim da Costa Siqueira, registrou-se a informação de que na
Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, durante as festividades em
homenagem ao nascimento do neto de D. José, no ano de 1775, houve
apresentações de comédias, óperas, danças, carros triunfantes, cavalhadas, com muitos fogos de artifício na praça principal e nos tablados públicos. Também no ano de 1794, em homenagem ao nascimento
da Princesa da Beira, o governador João de Albuquerque ordenou a
realização de algumas óperas, comédias e danças, em sinal de alegria
pelo acontecido. Ainda nesse ano, os comerciantes de Cuiabá concordaram em mandar construir dois navios de madeira, “pintados e bem
armados”, dentro dos quais haveria danças e representações de duas
óperas, cuja despesa seria dividida por todos, e seriam representadas
no teatro que o senado da Câmara montaria em praça pública. Nesse
mesmo evento, os alfaiates ofereceriam uma comédia e os sapateiros
outra, juntamente com o professor de gramática latina, José Zeferino
Monteiro de Mendonça, que ofereceu três (ANZAI, 2007). Carlos Francisco Moura levantou documentação sobre apresentações teatrais em
Cuiabá no século XVIII, e destacou as seguintes peças:
Aspásia na Síria; Eurene perseguida e triunfante; Saloio cidadão; Zenóbia no oriente; Tragédia de dona Inês de Castro; Amor e obrigação; O
conde de Alarcos; Tamerlão na Pérsia; Zaíra; O tutor namorado ou a indústria das mulheres; Ézio em Roma; Tragédia de focas; Esganarelo ou o
casamento por força; Emira em Susa, e fugir à tirania para imitar a clemência; Sesóstris no Egito (MOURA, 1976).
As representações teatrais foram significativas na vida dos moradores da Capitania de Mato Grosso, no século XVIII, ao ocupar o
espaço público, transmitindo códigos de conduta e no reforço da
socialização, aspectos importantes para garantir a governabilidade e a
manutenção dessas terras conquistadas por Portugal.
Em 16 de julho de 1783, aconteceu em Vila Bela, pela primeira
vez, a festa em homenagem a Nossa Senhora do Carmo, na capela construída em homenagem à santa. Houve missa cantada e sermão, “assistindo Sua Excelência, doutor provedor, nobreza e grande concurso de
povo, que assistiu debaixo de toldos, como em tabernáculos ordena-
93
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
dos no campo nas primitivas festividades” (AMADO; ANZAI, 2006,
p. 239-240). Santa Ana também mereceu concorridas manifestações,
principalmente no arraial que levava seu nome, para cuja festa participaram as principais autoridades políticas da repartição do Mato
Grosso e de outros locais da Capitania, conforme o relato sobre a festa
de julho de 1787:
No dia 20 partiu Sua Excelência para o arraial de Santa Ana, a visitar e
assistir à festividade da mesma Senhora, na capela no mesmo arraial,
sendo acompanhado do ajudante-de-ordens, secretários do governo e capitães engenheiros, doutor astrônomo e outros oficiais de sua guarda
militar, de dragões e pessoas de sua família. [...] Foram juízes da dita
festividade o capitão José Ferreira de Araújo e Dona Ana Isabel da Purificação e Morais, mulher do doutor ouvidor-geral. E se fez a festa com toda
a grandeza e solenidade, havendo, nas noites antecedentes ao dia da festa, duas óperas e duas comédias, havendo também, na mesma noite da
festa, um baile em casa do ministro, em que dançou Sua Excelência [ilegível]... e outras senhoras e pessoas que ali se achavam (AMADO; ANZAI, 2006, p. 267).
Espaços de múltiplos usos, as festas religiosas em homenagem
aos santos do catolicismo foram mostradas aqui apenas em frestas,
em fragmentos das apropriações operadas, sobretudo pelas autoridades políticas e religiosas. Todavia, é preciso ressaltar, que os ritos que
começavam nos altares terminavam, na maioria das vezes, nas praças,
onde os homens representavam seus diversos papéis. No papel festivo estiveram presentes em sua organização as Irmandades das Ordens Terceiras, constituídas por leigos devotos responsáveis pela assistência material e espiritual da população (TIRAPELI, 2005, p. 10;
SILVA, 2001), de cada igreja presente nesses espaços coloniais, somadas à Câmara municipal, representando a poder da coroa lusitana,
juntamente com a figura do governador e capitão-general.
Além das festas religiosas mais freqüentes, registradas nos Anais
de Vila Bela, havia outras comemorações votivas na repartição do Mato
Grosso, conforme indícios existentes na documentação a respeito de
outros festejos, sobretudo ao tomarmos como referência os diferentes
e numerosos santos nomeadores de localidades ao longo da fronteira
com os domínios espanhóis, bem como aquelas fixadas nos Estatutos
Municipais ou Posturas da Câmara de Vila Bela.
Quando a Câmara comparecia nesses festejos religiosos com as
insígnias do poder metropolitano, encontrava-se em “Corpo de Câma94
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
ra”, sinal demonstrativo da presença das autoridades políticas, locais
e metropolitanas, pois cada um dos que ocupavam cargos públicos,
sobretudo os mais importantes, posicionavam-se em lugares distintos durante as procissões, segurando andores, bem como nos lugares
mais próximos ao altar-mor da igreja matriz da vila.
Segundo os Estatutos Municipais de Vila Bela da Santíssima
Trindade (ROSA, 2003, p. 195-212), a Câmara deveria assistir com o
“Real estandarte” às festas “ordinárias” do mártir São Sebastião, à ladainha de São Marcos, às três ladainhas de maio, à Festa do Corpo de
Deus, à do Santo Custódio, da Visitação de Nossa Senhora à Santa
Isabel, à Festa de Nossa Senhora Monte do Carmo, à Festa de Nossa
Senhora da Conceição, do Te Deum Laudamus, em dia de São Silvestre, e à publicação da Bula da Santa Cruzada, além da festa da Santíssima Trindade, padroeira da vila capital. Sobre os gastos com essas
festividades, apontam os Estatutos Municipais:
(...) deve a Câmara fazer à custa dos bens do Concelho, as festividades da
visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, a do Anjo da Guarda e a Solenidade do Corpo de Deus, pelo que: Acordaram seria a Cera do altar e a
que se desse ao corpo da Câmara de meia libra, como também se daria aos
cavalheiros da ordem de Cristo que no dia de Corpo de Deus assistissem
e acompanhassem a procissão com Mantos, e aos sacerdotes nesse mesmo dia e ato, se daria vela de 4° e da mesma qualidade seria a do Trono do
Santíssimo exposto, seguindo-se a Constituição, assim no número de
Luzes, como em ficar ao Reverendo vigário a que lhe tocar ou pertencer
por direito, e se não daria Cera a pessoa mais alguma, sob pena de a
pagarem os camaristas pelos seus bens. E que para a festividade do Mártir São Sebastião, bem necessário nestas Minas do Mato Grosso por advogado da Peste, que por isso pertence a todos, obrigaria a Câmara aos mercadores, oficiais mecânicos, vendas, cortes de carne e Boticas a pagar
Cera, música, sacerdotes e mais despesas que houvesse rateada por eles ,
e o mesmo se observaria na festividade de N. Sra. da Conceição, como
Padroeira do Reino (ROSA, 2003, p. 196-197).
Para a festa da Santíssima Trindade, padroeira e nomeadora da
vila capital, deveria a Câmara nomear, um ano antes, na véspera do
dia festivo, três festeiros dos “homens bons”, que possuíssem sangue,
linhagem, ocupação e privilégio que os fizessem pertencer a um estrato social distinto o bastante, dentre os que possuíam mais posses. Os
festeiros ficariam responsáveis pelos gastos: o mais velho com a cera,
o segundo com a música e os sacerdotes, e o terceiro com o pregador.
95
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
Ao pregador cabia explicar o mistério da Santíssima Trindade (ROSA,
2003, p. 197). Contudo, muitas vezes as condições socioeconômicas
da vila não permitiram que essas determinações fossem seguidas à
risca. Requereram os oficiais da Câmara e mais “nobreza da terra e
povo” a revogação do parágrafo sexto do capítulo primeiro dos estatutos, que determinava:
(...) que fizessem a festa da Santíssima Trindade, padroeira da igreja matriz desta vila três homens bons e de mais posses dos da terra, que seriam
nomeados para fazer a dita festa, a sua custa, por eleição que esta Câmara
faria em cada um ano; por quanto ainda que a dita festividade seja muito
do agrado de Deus e por ela se assinala esta terra no zelo da religião que
fervorosamente tem a este respeito, contudo, suposta a pobreza da terra e
impossibilidade de se acharem em cada ano três festeiros para fazerem a
dita festa, se fazia o dito Estatuto inobservável, e que por tal se devia
declarar, pelo prejuízo grave que dele resultava (APMT, Câmara de Vila
Bela 1770-1779, 21 de agosto de 1762).
Apesar de formalizada a declaração de impossibilidade de realização dos festejos conforme orientavam os estatutos ou posturas municipais vilabelenses, ordenou o ouvidor geral e corregedor, Manoel
José Soares, que os oficiais camarários observassem os mesmos estatutos para realização dos festejos em que a Câmara de Vila Bela deveria comparecer em “Corpo de Câmara”. Ressaltou Manoel José Soares
que essa era uma determinação real, cabendo a todos cumprir o que
desejava Sua Majestade, até segunda ordem. Outra saída apontada por
Manoel José Soares foi a de que os oficiais camarários procurassem
dividir as despesas desses festejos com os oficiais mecânicos e artesãos de Vila Bela da Santíssima Trindade, e da própria repartição do
Mato Grosso, a exemplo do que já faziam os que moravam na repartição do Cuiabá (APMT, Câmara de Vila Bela 1770-1779, 21 de agosto de
1762).
Procuramos delinear os cenários festivos da vila capital, elaborados a partir de relatos colhidos na documentação sobre o período,
em especial nos Anais de Vila Bela. Essas festas esboçaram um cotidiano fronteiriço marcado pela crença nos elementos católicos trazidos
junto com a ação colonizadora portuguesa na América. Elas significaram espaços de circulação de símbolos, alegorias, pessoas. Além disso, as festas ocultaram conflitos entre os grupos sociais nos espaços
por onde os santos e santas desfilaram em seus andores, levados pelos representantes do poder metropolitano e religioso na repartição
96
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
do Mato Grosso, denunciando os silêncios presentes nos registros
documentais acerca dessas festividades.
As festas votivas aqui apresentadas constituíram-se em uma das
formas de trocas culturais presentes na sociedade colonial da Capitania de Mato Grosso. Outros aspectos da dinâmica urbana expõem
outras sociabilidades que se formaram nesse período, montando o tecido social multicolorido de práticas e representações sociais, que
reforçam os vínculos entre os grupos de uma dada sociedade.
Referências
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NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720.
APMT – Fundo: Câmara de Vila Bela, 1770 a 1779 – Alteração dos capítulos 5°,
6°, 7°, 9°, 12°, 13°, 14º, 15°, 16° do livro das Correições e Audiências Gerais que
serve na Ouvidoria. Vila Bela, 21 de agosto de 1762.
AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela 1734-1789. Cuiabá:
EdUFMT/Carlini & Caniato, 2006.
ROSA, Carlos A.; JESUS, Nauk Maria de (Orgs.). Estatutos Municipais ou Posturas da Câmara da Vila Bela da Santíssima Trindade para o Regimento da República nos casos em que não há lei expressa segundo o Estado do País. Territórios e Fronteiras. Cuiabá: UFMT, v. 3. 2002, p. 129-150.
SUZUKI, Yumiko Takamoto (Org.). Annaes do Sennado da Câmara do Cuyabá:
1719-1830. Cuiabá: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007.
2 Bibliografia
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XVIII. Enciclopédia da Amazônia, 2007.
DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense,
2000. (O caminho das utopias)
FERNANDES, Dirce Lorimier. Liturgias barrocas. In: Territórios e Fronteiras.
Cuiabá: UFMT, v. 3, 2002, p. 85-104.
JANCSÓ, I. KANTOR, I. (Orgs.). Falando de festas. In: Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 3-13.
LUCÍDIO, João Antônio Botelho. A Vila Bela e a ocupação portuguesa do Guaporé no século XVIII. Relatório final de pesquisa do Projeto Fronteira Ocidental
– Arqueologia e História: Vila Bela da Santíssima Trindade. Cuiabá: SEDUCMT, 2004.
97
A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva
MOURA, Carlos Francisco. O teatro em Mato Grosso no século XVIII. Cuiabá:
Edições UFMT, 1976.
ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA,
Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (Orgs.). A terra da conquista: história de
Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003.
TIRAPELI, Percival. Patrimônio religioso na formação das cidades do vale do
Paraíba, São Paulo. In: TIRAPELI, Percival (Org.). Arte sacra: barroco memória
viva. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: editora UNESP,
2005, p. 14-26.
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL,
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festejar, no país que “não é sério”. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2001. Tese de doutorado.
OLIVEIRA, Edevamilton de Lima. A Povoação Regular de Cazal Vasco e a fronteira Oeste do Brasil Colônia (1783-1802). Dissertação de Mestrado. Cuiabá,
UFMT, 2003.
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmãos no poder: a irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá (1751-1819). Dissertação de Mestrado. Cuiabá, UFMT, 2001.
98
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos
em Vila Bela da Santíssima Trindade (1748-1790)
Masília Aparecida da Silva Gomes
A constituição da paisagem agrícola no Vale do Guaporé, nas
terras onde, a partir de 1748, se constitui o termo do Mato Grosso, se
deu concomitantemente aos descobrimentos auríferos (1734), iniciando sua espacialização ainda no final dos anos trinta dos Setecentos. A
princípio, a produção de alimentos oriundos dos diversos ambientes
agrários que compunham essa paisagem, tais como sítios, roças, engenhos e fazendas, estava ligada às necessidades de abastecimento do
grande contingente de pessoas que se deslocaram para essa região,
atraídas pelo ouro.
Contudo, aos poucos, somaram-se a essas necessidades as preocupações com a defesa do território. Desse modo, desde a segunda
metade da década de 1740, a coroa portuguesa colocou em prática um
arrojado projeto que congregava ações econômicas, políticas e culturais, cujo objetivo era assegurar para Portugal a posse efetiva das terras tomadas aos índios e aos espanhóis, na fronteira oeste. A criação
da Capitania de Mato Grosso (1748) – com seus dois termos, o Cuiabá
e o Mato Grosso –, a fundação de Vila Bela (1752), a espacialização de
uma rede formada por vilas e arraiais na linha de fronteira luso-espanhola e a implementação de uma política de povoamento foram algumas das estratégias lusas para alcançar seus objetivos e garantir as
vitórias alcançadas com o Tratado de Madri (1750).
É nesse contexto que o presente texto tem como objetivo analisar quais foram os principais gêneros alimentícios cultivados nos diversos ambientes agrários que compunham a paisagem agrícola de Vila
Masília Aparecida da Silva Gomes é Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de
Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “Produção agrícola e
práticas alimentares na fronteira oeste. Vila Bela da Santíssima Trindade (1752- 1790)”.
E-mail: [email protected].
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Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
Bela e seu termo, entre os anos de 1752 e 1790, buscando identificar o
por quê da preferência no cultivo de determinados produtos em detrimento de outros.
A espacialização da produção na fronteira oeste
Plantar roças pelos caminhos por onde passavam em suas andanças era um hábito bandeirante. Desde o início da ocupação não
índia no Vale do Guaporé, iniciou-se a implementação de unidades
agrícolas voltadas para a produção e o abastecimento alimentar, nas
quais se plantavam milho, feijão e mandioca. Também foi iniciada a
criação de animais de pequeno porte, como galinhas e porcos. Esses
sítios dedicados ao abastecimento de alimentos seguiam a rota dos
novos descobertos auríferos, ao longo do caminho de terra que ligava
a Vila Real ao Mato Grosso. Em novembro de 1751, após alguns meses
de estadia na Vila Real, o primeiro governador Antônio Rolim de Moura
Tavares, em viagem aos arraiais do Vale do Guaporé, encontrou, ao
passar pelas imediações do rio Jaurú,
(...) quatro sítios em distância de duas léguas em que vivem poucos moradores pobres. Um, que pertence a Antônio da Silveira Fagundes, assistente nestas minas, é maior, e tem uma boa fazenda de gado, que é o que
aqui se gasta. Atendendo a isso, lhe mandei passar várias sesmarias das
mesmas terras que está cultivando, e de que se está servindo, ficando ele
obrigado não somente a aumentar a mesma fazenda de gado, mas também
nela bastantes éguas, para o que as terras têm excelentes pastos (NDIHR,
1982; v. I, p. 64).
Observa-se, na expressão “é o que aqui se gasta”, que parte da
carne produzida por seus animais era destinada a abastecer os viajantes daquela rota, e também os arraiais localizados nas imediações da
Chapada. Pelos relatos de José Gonçalves da Fonseca, constatamos a
existência de outra fazenda de gado na região do Jaurú, de propriedade de Antônio Francisco, na qual, além de se dedicar à lavoura, criavase gado vacum, com o qual se socorria muitas vezes os arraiais do
Mato Grosso (FONSECA, 2001, p. 20).
A trilha de expansão de estabelecimentos agrícolas voltados para
o plantio de alimentos e abastecimento do mercado local acompanhou
de perto o itinerário dos veios auríferos. Além das roças espalhadas
ao longo dos caminhos, outras foram se constituindo nas imediações
da planície da Chapada de São Francisco Xavier, no entorno das pri-
100
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
meiras minas localizadas na Chapada. A documentação nos fornece
indícios de que a formação dessas primeiras unidades de produção
agrícola ocorreu simultaneamente ao descobrimento e início das extrações auríferas no Mato Grosso. Nos “Annaes do Sennado da Câmara do Cuiabá”, nas primeiras narrativas referentes às minas do Mato
Grosso, ressaltam informações sobre o plantio de roças: “... chegaram
neste ano, de Mato Grosso, o sargento-mor Abreu e outros, deixando
já roças plantadas”, ou, “quiseram muitas pessoas fazer viagem para
Mato Grosso, a colher as roças que haviam deixado do ano antecedente” (SUSUKI, 2007, p. 67). Encontramos informações semelhantes nos
“Anais de Vila Bela”, como o registro de que, no ano de 1736, “valia um
alqueire de milho seis oitavas”, milho este “produto das roças e plantas do mesmo descoberto” (AMADO & ANZAI, 2006, p. 42).
Após a criação de Vila Bela, outras unidades de produção agrícola
foram se formando próximo às vilas e povoações e aos fortes. Vila Bela
da Santíssima Trindade era a principal vila do Mato Grosso, criada em
1752, para sediar a recém-criada Capitania de Mato Grosso. Sua edificação visava ser a representação maior da posse da coroa portuguesa na
fronteira oeste. Logo após criar a vila, o governador Rolim de Moura
envidou esforços no sentido de incentivar a plantação de roças nas suas
vizinhanças, medida que visava combater a falta e a carestia dos alimentos na vila. Em carta ao rei de Portugal, D. José I, datada de 22 de
outubro de 1752, o capitão-general informava que “havia dez roças plantadas na borda do rio Guaporé e perto da vila, com a planta que basta
para fazer a abundância grande para o tempo da colheita” (NDIHR, 1982;
v. I, p. 100).
Segundo Rolim de Moura incentivar a formação de uma base
produtiva no entorno da vila seria muito útil para atrair novos moradores, haja vista que a falta de alimentos e os preços exorbitantes eram
grandes obstáculos para se atrair novos moradores para a vila capital.
Ao que tudo indica, os esforços despendidos pelo primeiro capitão-general não demoraram a apresentar seus primeiros resultados.
Três anos após a criação da vila, Rolim de Moura informava a Diogo
de Mendonça Corte Real que Vila Bela havia crescido, que já contava
com “mais de quarenta casas” em seu espaço urbano e que, pelas suas
vizinhanças, à borda do rio havia “vários lavradores estabelecidos que
fabricavam os mantimentos necessários para seus moradores”. O capitão-general informava ainda, que em “uns campos contíguos aos da
vila em maior distância” havia dado início à criação de fazendas, ten101
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
do começado “com bastante número de cabeças de gado”, e que havia
iniciado também a criação de éguas (NDIHR, 1983; v. II, p. 56).
Se, na década de 1750, a paz entre Portugal e Espanha e o constante estímulo à produção agrícola contribuíram para que a produção
de alimentos na vila capital e no termo se tornasse cada vez mais “independente de outras povoações e colônias mais antigas”, na década
seguinte a produção sofreu uma considerável queda. Isso porque, com
a assinatura do Tratado de El Pardo, em 1761, que anulou o Tratado de
Madri, aumentou o clima de tensão, e a constante disputa territorial
resultou em conflito armado entre portugueses e espanhóis, no ano
de 1763. Embora o conflito militar tenha sido breve, o clima de tensão
e instabilidade política nessa área fronteiriça levou à necessidade de
aumentar o contingente militar no termo do Mato Grosso, e chegaram
a Vila Bela militares vindos do Cuiabá, de Goiás e do Pará (AMADO;
ANZAI, 2006, p. 107-109), aumentando assim o número de pessoas a
serem alimentadas. Além disso, as freqüentes secas que ocorreram
nessa década, contribuíram para a queda na produção de víveres na
vila e em seu distrito.
Ao assumir a capitania, em fins de 1768, Luís Pinto de Sousa
Coutinho deparou-se com vários sítios abandonados no termo do Mato
Grosso. Para fazer frente à situação preocupante, o terceiro capitãogeneral, no ano seguinte, ordenou aos seus subordinados que fizessem um levantamento completo da situação da capitania, com o objetivo de conhecer suas reais condições e potencialidades econômicas,
que auxiliassem na montagem de um plano de ação visando sua recuperação, crescimento, e aumento da capacidade produtiva de alimentos. Em 4 de fevereiro de 1770, Luís Pinto de Sousa Coutinho escreveu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, expondo as razões do levantamento e seus resultados. Sousa Coutinho relatou que, após ter o estudo em mãos, fez
“convocar uma assembléia dos seus moradores” exortando-os a “tornarem a restabelecer a cultura das terras desamparadas”, apontando
para a existência de “certo número de escravos conducentes que podiam aplicar” para este fim, “sem prejuízo da atual cultura das minas” (PR – MT, 1770, cx. 14, doc. n. 876).
O governador encerrou a carta argumentando com Mendonça
Furtado que seu “apelo” daria os resultados esperados se fossem concedidos certos estímulos, tais como “perdoar direitos de sua Real Fazenda”, e para isso pedia o apoio de Mendonça Furtado, para que in102
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tercedesse junto ao rei. No teor dessa correspondência percebe-se que
Sousa Coutinho considerava a agricultura como fundamental para o
sucesso do empreendimento português na região. Aliás, a preocupação com o desenvolvimento da agricultura na capitania parece ter sido
uma de suas maiores preocupações no governo; para ele, da agricultura dependiam todos os outros setores da economia, e até mesmo o
futuro do povoamento da capitania, pois:
(...) sem a abundância das primeiras produções naturais eram ruinosas
todas as mais empresas e manufaturas; se acrescentava excessivamente o
valor de todas as fazendas que o comércio introduz; o preço do salário e,
finalmente, se derramava a infelicidade e o descômodo por todas as classes de pessoas, a destruir, por último, a povoação e o próprio trabalho
das minas (PR – MT, 1770, cx. 14, doc. n. 876).
Quanto ao total de sítios levantados no termo, o capitão-general
informava a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário da
Marinha e Ultramar, que em Vila Bela e seu distrito, no ano de 1770,
haviam sido identificados oitenta e quatro sítios, sendo dez de fundação recente, e onze que se encontravam abandonados. Portanto, no
ano de 1771, do total de oitenta e quatro sítios identificados na repartição do Mato Grosso, setenta e três estavam em plena atividade,
haja vista que dos vinte e um sítios que haviam sidos abandonados,
dez haviam sido restabelecidos, e apenas onze continuavam em abandono.
Nas observações anexadas a esse mapa econômico, Sousa Coutinho esclareceu que dos dez sítios fundados de novo, nove se destinavam à criação de gado vacum e um era de engenho de cana, localizado
próximo à vila capital. Quanto aos engenhos, segundo o governador,
sua produção estava organizada da seguinte forma: “cinco de farinha,
dezesseis de aguardente de cana, quatro de mandioca, e dois de açúcar” (PR – MT, 1771, cx. 15, doc. n. 972).
No ano seguinte, ao passar instruções a Luís de Albuquerque,
seu sucessor na administração da capitania, Sousa Coutinho esboçou
suas preocupações em garantir o aumento da agricultura. De acordo
com o governador, para assegurar o bom andamento no abastecimento
de alimentos, seria necessário que Luís de Albuquerque não perdesse
de vista a relação entre a quantidade de sementes que os lavradores
lançavam à terra e sua produção média, a demanda gerada pelas vilas
e tropas da capitania e as reservas que a capitania deveria manter para
suprir os casos de necessidade. A partir da observação desses três
103
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
itens, segundo Sousa Coutinho, o governo poderia “prescrever a quantidade das monções que devem lançar à terra, em proporção ao que
devem produzir nos anos médios” (INSTRUÇÕES AOS CAPITÃESGENERAIS, 2001, p. 43).
Pouco tempo após assumir o comando da capitania, em 1772,
Luís de Albuquerque demonstrava preocupação com a produção agrícola e com a distribuição de alimentos básicos à população, ao recomendar à câmara da vila que:
(...) aplicasse todo o cuidado em promover e facilitar a agricultura, como
tão indispensável para a subsistência da república e como objeto por
muitas vezes recomendado por Sua Majestade; e que, igualmente, vigiassem atentamente sobre os oficiais mecânicos e mais pessoas que dão comestíveis ao povo, a fim de conter uns e outros dentro dos limites de um
regimento prudente bem econômico (AMADO; ANZAI, 2006, p. 189).
Ao que tudo indica, Luís de Albuquerque deu continuidade às
medidas tomadas por seu antecessor para fomentar e florescer a agricultura, seguindo de perto as recomendações deixadas por Luís Pinto. Esse fato certamente foi decisivo para aumentar a capacidade de
cultivo da capitania. Nos anos subseqüentes a 1773, a documentação
analisada indica que a produção de gêneros alimentícios na vila capital e seu termo floresceu, garantindo aos moradores certa regularidade no abastecimento alimentar e estabilidade nos preços.
Quatro gêneros principais cultivados nas roças constituíam a
base da dieta alimentar cotidiana dos habitantes de Vila Bela e seu
termo: o milho, o feijão, a mandioca e o arroz. Desses quatro produtos,
sem dúvida, o milho e o feijão foram os mais cultivados, seguidos de
perto por cana-de-açúcar, mandioca, arroz, além de frutas e verduras.
Os “gêneros do país”
Caio Prado Júnior, ao analisar o que denominou cultura de “subsistência” no Brasil colônia, dividiu a América portuguesa em duas
áreas distintas: “área do milho” e “área da mandioca”. De acordo com
as análises de Prado Júnior, o Mato Grosso faria parte da “área do
milho”, composta pelas regiões colonizadas por paulistas (PRADO
JÚNIOR, 1942, p. 166). Nessa mesma trilha, Sérgio Buarque de Holanda sugere que nos locais colonizados pelos paulistas fora se formando uma verdadeira “civilização do milho”, e que a predominância
no cultivo desse cereal teria assegurado aos moradores dessas áreas a
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
mobilidade de que necessitavam (HOLANDA, 1975, p. 217). Corrobora essa idéia a afirmação do terceiro capitão-general Luís Pinto de Sousa
Coutinho, registrada nas observações anexadas ao “Mapa econômico
da capitania tirada no ano de 1770”, no qual afirmava que os gêneros
alimentícios mais cultivados pelos moradores de Vila Bela e seu termo eram o milho, o feijão e a cana-de-açúcar, embora se produzisse
“pouco arroz e pouca mandioca” (PR – MT. cx. 15, doc. n. 927).
Na farta documentação consultada, encontramos diversos indícios que apontam ser bem provável que o capitão-general estivesse
correto na especificação dos gêneros mais cultivados no Mato Grosso.
Em novembro de 1781, ao passar pela quinta cachoeira do rio Madeira, denominada “Salto do Girau”, com destino a Vila Bela, o astrônomo e demarcador Antônio Pires da Silva Pontes diz ter encontrado,
por aquelas paragens, “grande roça”, na qual se cultivavam “o aipim,
que é uma espécie de mandioca, e muito milho” (PONTES, 1781, p.
161). Dois anos depois, Joaquim José Ferreira, comandante da povoação de Casalvasco, informava a Luís de Albuquerque que já se ia “principiando a roça para feijão” (APMT – Lata: 1785, doc. n. 08). Em 1785,
o comandante do Forte do Príncipe da Beira, José Pinheiro de Lacerda,
comunicava a Luís de Albuquerque, que
(...) o soldado José Rodrigues, com outros vários, se acha estabelecido
presentemente no dito curral da estância, com (...) uma boa roça de milho
e mandioca, seus pés de bananeiras e algumas canas de açúcar, que tudo
pode servir para plantar, em ordem ao aumento do dito estabelecimento,
e muito mais se poderá ir adiantando (APMT – Lata: 1785, doc. n. 114B).
As referências a esses gêneros também podem ser encontradas
nos mapas dos armazéns dos fortes enviados aos capitães-generais,
como podemos observar pelo relato a seguir:
Remeto a vossa excelência os mapas do mês de julho, a saber: um de toda
a guarnição, e outro do mantimento existente nestes armazéns, e além do
mantimento que dele consta, recebeu-se para eles mais neste mês quarenta e oito alqueires de feijão, e dezesseis alqueires de farinha (APMT –
Lata: 1773, doc. n. 08).
Portanto, considerando os indícios que a documentação aponta,
confirma-se a afirmação de Sousa Coutinho, de que os dois gêneros
alimentícios mais cultivados no Mato Grosso, que entravam na alimentação cotidiana da população, eram o milho e o feijão. O milho era
destinado a satisfazer as necessidades alimentares não só dos mora-
105
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
dores e de seus animais domésticos, como porcos e galinhas, mas também de mulas e cavalos, utilizados na locomoção de pessoas e transporte de mercadorias. Nas minas do Mato Grosso, cada vez que se
pretendia deslocar tropas de animais de um lugar ao outro, as autoridades requeriam junto aos moradores quantidades significativas desse cereal para garantir a alimentação dos animais. Em outubro de 1769,
o ajudante de ordens Antônio Felipe da Cunha Ponte comunicou a
Sousa Coutinho que frei José havia lhe entregado
(...) uma ordem de vossa excelência para os moradores do Paraguai, Jaurú, e Lavrinha do Guaporé, terem pronto o milho que fosse necessário
para cinqüenta cavalos, que até vinte deste mês partiriam dessa para esta
vila. E me disse que a todos a tinha apresentado, e que todos lhe responderam a executariam. Além disto, mandei chamar uma preta, chamada
Maria Tereza, que mora nesta vila, e é casada com um preto assistente na
dita Lavrinha, e dos que têm mais posses, e lhe perguntei se seu marido
poderia ter nela pronto quinze alqueires de milho para os referidos cavalos, até dez de novembro. E segurando-me ela que sim, e que desde já se
encarregava desta assistência, me escusa mandar eu desta vila o dito milho para aquele sítio (APMT – Lata: 1769, doc. n. 221).
Sérgio Buarque de Holanda identifica o cultivo da tríade milho,
feijão e abóbora nas roças em Cuiabá desde os primeiros anos de ocupação lusitana na região, e afirma que fatores como a facilidade no
transporte, aliado a um tempo de produção mais curto, foram elementos importantes na escolha desse cereal pelos paulistas, em detrimento da mandioca. O milho, em relação à mandioca, apresentava a vantagem de poder ser transportado em grãos por longas distâncias, sem
que isso comprometesse sua capacidade de germinação, e, enquanto
que a mandioca levava cerca de um ano ou mais para produzir, o milho tinha um tempo de produção relativamente curto, cerca de cinco a
seis meses, entre plantio e colheita (HOLANDA, 1785, p. 108-175).
O desenvolvimento das lavouras de milho e de feijão se estendeu também ao termo do Mato Grosso, já nos anos iniciais de sua
reterritorialização. Quanto ao rendimento desses cereais, Sousa Coutinho afirmara em relatório enviado ao Secretário da Marinha e Ultramar Martinho de Mello e Castro, em 1º de maio de 1771, que a produção do milho “neste país é prodigiosa”, pois cada quantia de milho
lançado à terra não deixava de “render 200”, nos anos regulares, e “20
a 25 o feijão” (PR – MT, cx. 15, doc. N. 927). O que significa que, para
cada quatro ou cinco grãos de milho lançados à terra (CARRARA, 2006,
106
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
p. 115), obtinha-se um rendimento equivalente a 200 grãos em anos
normais, o que dá uma média de 40 grãos por um, e de quatro ou cinco
grãos de feijão conseguia-se um rendimento de 20 a 25 grãos, o que dá
a média de cinco grãos por um.
Ao analisar o rendimento desses gêneros nas Minas Gerais, no
século XVIII, Ângelo Alves Carrara aponta um rendimento para o milho de no mínimo 40, e no máximo 75 por um, e, para o feijão, uma
média de dez por um. Porém, em lugares de mato virgem, a sementeira
do milho alcançava um rendimento de quinhentos por um, chegando
o feijão a render sessenta por um (CARRARA, 2006, p. 207). Evidentemente as condições da terra influenciavam no rendimento desses grãos,
mas outros fatores também interferiam, como práticas de plantio mais
adequadas. É o que se constata no relato do diretor do Forte do Príncipe da Beira, informando a Luís de Albuquerque que havia mandado
(...) a relação do milho, que com boa regularidade se acha plantado em
distância ou intervalo de seis para sete palmos, cujo arbítrio fiz este ano
praticar, a bem dos mesmos lavradores, que costumavam plantar o seu
milho com feijão, e por isso colhiam espigas de restolho, e tão pouco, que
a menos de cento por um correspondia de ordinário (APMT – Lata: 1785,
doc. n. 146).
Além disso, a proporção de duzentos por um, relatada por Sousa Coutinho, só era alcançada em anos de boa safra. Porém, é interessante observar que Sousa Coutinho não fez qualquer menção a esses
cuidados em seu relatório, limitando-se a dizer que o alto rendimento
do milho e do feijão era devido ao maior “empenho” dos agricultores e
à boa qualidade das sementes (PR – MT; cx. 15, doc. n. 927). Mas qual
seria a razão desse maior “empenho” dos moradores de Vila Bela com
o cultivo do milho?
Luce Giard, em “Cozinhar”, afirma que os alimentos que compõem o prato cotidiano fazem parte de um complexo sistema simbólico pelo qual uma cultura ordena o mundo sensível; no entanto, é preciso reconhecer que esse jogo de diferenças e preferências pode ser
condicionado não só por fatores culturais e simbólicos, mas também
por fatores ligados à história natural (espécies vegetais e animais disponíveis, natureza dos solos cultivados, condições climáticas), à história material e técnica e, finalmente, por fatores ligados à história
econômica e social (GIARD, 1996, p. 234-238). Seguindo o raciocínio
de Giard, observamos que o “empenho” dos lavradores do termo do
107
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
Mato Grosso no cultivo do milho e do feijão ligava-se não só a fatores
culturais, mas também a fatores técnicos, pois milho e feijão eram
dois produtos que alcançavam bom rendimento e eram de fácil cultivo e beneficiamento.
O processo de limpeza, preparação da terra, semeadura e colheita do milho e do feijão não ocupava mais que alguns meses e não requeria por parte dos lavradores cuidados contínuos, já que no período entre a semeadura e a colheita desse gênero não se exigiam mais
que duas capinas, liberando a mão-de-obra para o desenvolvimento
de outras atividades. Em princípios de fevereiro, tinha início o processo de limpeza da terra para a primeira semeadura do feijão. Quando limpa, a terra era dividida em colunas, que continham entre cinco
e sete palmos de distância uma da outra (APMT – Lata: 1785, doc. n.
146); vencida essa etapa, abriam-se covas onde se lançavam ao solo os
grãos de feijão, estocados da colheita anterior (MENESES, 2000, p.
184).
Como milho e feijão eram cultivados de forma consorciada, todo
o processo de preparo da terra para a sementeira do milho implicava
seu aproveitamento concomitante para a semeadura do feijão; no entanto, a colheita se dava em períodos diferentes. Três meses depois da
semeadura, o feijão já estava pronto para ser colhido. Já o milho demorava ainda em torno de um mês e meio, mais ou menos, para chegar no ponto de colheita. Câmara Cascudo afirma que na região norte,
assim como o plantio da mandioca, a semeadura do milho ocorria no
mês de janeiro, sendo sua colheita em junho (CASCUDO, 2004, p.
111), dando uma colheita por ano. Já no Mato Grosso, tudo indica que
a semeadura do milho ocorresse duas vezes no ano, pois, nas correspondências dos comandantes dos fortes enviadas para Luís de Albuquerque, encontramos expressões como “está acabado o milho velho, e será conveniente prosseguir-se a moer o novo à proporção que
ele for secando, por estar plantado em três quartéis”. Essa informação
nos fornece indícios para afirmar que o plantio de milho no termo do
Mato Grosso ocorria mais de uma vez ao ano, provavelmente fosse
lançado à terra duas vezes no ano, oferecendo duas colheitas (APMT –
Lata: 1785, doc. n. 115). Ainda de acordo com os indícios apresentados por essa documentação, é bem provável que a primeira semeadura ocorresse por volta do final de fevereiro e no mês de março, e a
segunda, em fins de setembro e em todo o outubro (APMT – Latas
1773 e 1785).
108
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
As técnicas agrícolas na segunda metade do século XVIII eram
ainda bastante rudimentares. O processo de lavrar a terra consistia
em derrubar a mata e as capoeiras com machados, aproveitando troncos e galhos como lenha. Após a secagem da mata derrubada, ateavase fogo à área desmatada, e, em seguida, destocavam-se, com enxadões
e picaretas, troncos e raízes. Feito isso, a terra já estava pronta para ser
coveada e semeada. Não há evidências, na documentação analisada,
sobre o uso do arado, nem tampouco menção a qualquer processo de
fertilização da terra, como uso de estrume de animais. Portanto, fatores de ordem cultural, econômica, técnicos e geográficos fizeram com
que as culturas do milho e do feijão reinassem soberanas, no período
estudado, no Cuiabá e no Mato Grosso.
O milho era base de alimentos e bebidas consumidos na capitania, tais como: canjica, cuscuz, biscoitos, pipocas, catimpuera, aluá,
aguardente, vinagre, entre outros (HOLANDA, 1975, p. 216-217). Uma
das bebidas derivadas do milho mais apreciadas pelos povos da nação Paresi era a chicha, largamente utilizada em suas festas e rituais1.
A chicha era preparada através da maceração do milho verde. Mastigado por mulheres, era posteriormente cuspido em recipientes de
madeira para fermentar, ganhando um gosto adocicado. Após esse processo, a massa de milho macerado era guardada em um recipiente tirado do buritizal, ao qual as mulheres acrescentavam água até encher.
Dessa mistura derivava a chicha. No entanto, embora importante base
alimentar, o milho não podia suprir a todas as necessidades dos moradores da capitania.
Ainda verde e em espigas, o milho poderia ser consumido tanto
assado em brasas quanto cozido em água. Do milho verde fazia-se ainda o curau e a pamonha. Contudo, o consumo do milho na repartição
do Mato Grosso se dava, sobretudo, sob a forma de fubá e de farinha.
Esses dois produtos eram fabricados em engenhos d’água. Embora fosse
considerada mais indigesta, tinha-se a farinha de milho como mais
nutritiva que a farinha de mandioca, e, segundo Sérgio Buarque de
Holanda, parece ter sido a maior contribuição oferecida pelo milho à
dieta alimentar cotidiana dos habitantes das minas (HOLANDA, 1975,
p. 216-217), tanto nas Gerais quanto em Mato Grosso.
1
A chicha ainda hoje pode ser encontrada no comércio de Vila Bela.
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Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
A preferência pela farinha de milho parece ter sido mais acentuada nos fortes, fator que certamente contribuiu, e muito, para o aumento da demanda por esse alimento no termo. Essa alta demanda aliada à
queda na safra de milho fez com que em determinadas ocasiões os comandantes dos fortes fossem obrigados a ordenar aos lavradores donos de engenho que moessem o milho ainda meio verde para se fabricar a farinha, como podemos observar no relato abaixo:
(...) está faltando aqui a farinha para suprir as datas, de sorte que me vi
obrigado a mandar aos donos dos engenhos que fizessem quarenta alqueires dela cada um deles, com algum prejuízo, por estar o milho ainda
verde (APMT – Lata: 17777, doc. n. 64).
Em épocas de falta de milho, substituía-se a farinha de milho
pela de mandioca. Em 1785, o comandante do Forte do Príncipe da
Beira informou a Luís de Albuquerque que era preciso prevenir,
( ...) fazendo esforçar os três engenhos do falecido Rocha, Ignácio Ferreira
Marinho e Domingos Francisco dos Santos, os monjolos de João Cardoso
dos Santos, na fabricação unicamente de farinha, evitando o desperdício
de tempo que se costumam divertir com as cachaças, enquanto os ditos
fabricantes se não esforçassem com maior número de escravaturas, pois
em tempo desperdiçado com tal manobra se podia aproveitar em fazer
farinha de mandioca, em ordem a suprir a falta de milho, e não seria
menos proveito e lucro que a mencionada cachaça (APMT – Lata: 1785;
Fundo: defesa; doc. n. 115).
A mandioca foi outra fonte importante de alimento cultivada
pelos moradores de Vila Bela e região. Conhecida dos povos ameríndios antes da chegada dos europeus, a mandioca dominou facilmente
o paladar português, tornando-se alimento indispensável no uso cotidiano dos colonos americanos (CASCUDO, 2004, p. 92). Em 1799, ao
discorrer sobre a utilidade de se ter plantações de alimentos próximas às lavouras de café, frei José Mariano da Conceição Veloso, autor
de “O fazendeiro do Brasil”, argumentava:
A mandioca é outra raiz muito útil, e de muita serventia, mas raras
vezes vem bem nos distritos chuvosos. De mais não vegeta bem à sombra, e conseguinte se não deve plantar entre as bananeiras, mas em
lugar separado. A preparação desta raiz é matéria de alguma delicadeza,
porque seu suco é mortal. A mandioca doce não tem esse inconveniente, e pode-se comer cozida ou assada, como os inhames e outras raízes
(VELOSO, 1799).
110
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Vimos, pois, pelas palavras de Veloso, que havia no Brasil duas
espécies de mandioca bem distintas: uma brava (amarga), e outra doce,
de sabor suave. A brava continha uma forte concentração de ácido cianídrico, substância tóxica, o que inviabilizava seu consumo em estado
natural; já a mandioca doce não era venenosa, e podia ser consumida
cozida, assada ou em forma de farinha. Quanto à denominação, Manihot utilíssima é usada para designar as amargas, e Manihot palmata é
a designação das mandiocas doces (ALENCAR, 2003, p. 91). Observase ainda, pelas palavras de Veloso, que a mandioca requeria alguns cuidados, que, a depender da situação, poderiam ser considerados inconvenientes para o seu cultivo constante e sistemático. Segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, a mandioca, quando deixada de molho, desprendia um suco cru que era “um mortal veneno para a maior parte dos
animais” que o bebiam (ANZAI, 2004, p. 177).
Freqüentemente cultivada pelos moradores das minas do Mato
Grosso, a mandioca parece não ter disputado com o milho espaço em
área cultivada. As explicações para ter sido plantada em menor escala
que o milho podem estar associadas a fatores tais como: tempo de
produção mais longo; ser um alimento restrito à alimentação de pessoas, não servindo de alimento para animais, como era o caso do milho; não possibilitar certas combinações na produção consorciada, além
de apresentar dificuldade no transporte das ramas utilizadas para plantio. Contudo, isso não significa que a mandioca e seus derivados não
tivessem um papel importante na alimentação da população de Vila
Bela e região. Enfatize-se que grande parcela da população de Vila Bela
era composta por indígenas e seus descendentes, habituados ao consumo dessa raiz. Na documentação consultada, é freqüente a referência a roças de mandioca, que aparece sob a denominação de macaxeira, aipim ou simplesmente mandioca.
Tubérculo rico em carboidrato, a mandioca poderia ser consumida cozida, assada, em forma de polvilho para a confecção de biscoitos, em caldos misturada à verduras, em forma de beijus, mas, sobretudo, sob a forma de farinha. Fabricada em engenhos destinados a esse
fim, a farinha de mandioca era item de presença garantida nas listas
de mantimentos destinados a abastecer os viajantes que trafegavam
pelos caminhos da capitania. Pelos idos de 1770, foram identificados
quatro engenhos de mandioca em plena atividade no termo de Vila
Bela (PR – MT, cx. 15, doc. n. 927).
111
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
Trazido pelos portugueses para o Brasil, desde as primeiras décadas de ocupação lusitana, o arroz2 foi, na opinião de Armesto, o
segundo produto agrícola mais importante transplantado para a América (ARMESTO, 2004, p. 260). Esse cereal figura entre os produtos
cultivados em São Paulo já em meados do século XVI. No entanto, ao
que tudo indica, seu cultivo foi preterido em benefício de outras culturas durante mais de um século, só reaparecendo na pauta dos produtos cultivados naquela capitania em fins do século XVII (HOLANDA, 1975, p. 237-240). As capitanias do Maranhão, Grão-Pará e Rio de
Janeiro se destacaram como grandes produtoras de arroz no período
colonial, e há registros de que, em 1781, parcela considerável do “arroz consumido em Portugal era proveniente do Brasil” (MARIN, 2005,
p. 81).
Por volta dos anos setenta dos Setecentos, o arroz era um cereal
ainda pouco cultivado na Capitania de Mato Grosso. As explicações
para esse baixo cultivo não estavam na qualidade das terras ou no
baixo rendimento desse gênero, mas, sim, na má qualidade das sementes e na falta de máquinas adequadas para descascá-lo, de forma a
deixar os grãos totalmente limpos sem quebrá-los demasiadamente.
Visando resolver esse problema e fomentar o cultivo desse cereal na
capitania, em 1770, Sousa Coutinho “mandou vir do Pará melhor qualidade de semente, e um modelo para se fabricarem nesta capitania as
referidas máquinas auxiliares” (PR – MT, cx. 15, doc. 927).
O arroz foi por algumas vezes o substituto providencial de outros alimentos básicos, como a farinha, e até mesmo o feijão. Em 1773,
o comandante do Forte da Conceição avisava Luís de Albuquerque de
que havia recebido
(...) quarenta e oito alqueires de feijão, e dezesseis alqueires de farinha de
mandioca. Do fumo e arroz, consta do mapa, supre muito bem a falta de
feijão, dando-se por cada quarta de feijão uma vara de fumo, e uma quarta
de arroz em casca em lugar de meia de feijão, na forma do costume, por
onde julgue o não ser preciso vir feijão para a guarnição, que existe neste
ano (APMT – Lata: 1773, doc. n. 08).
2
Originário dos vales secos da Ásia Central, onde surgiu há cerca de 5 mil anos a.C., o arroz
transformou-se depois em uma planta semi-aquática, o que lhe assegurou o seu alto rendimento. Cf. BRAUDEL, 1995, p. 127. No entanto, somente nos séculos XVII e XVIII houve
expansão de espécies agricultáveis. Cf. MARIN, 2005. Disponível em: <http://www.naeaufpa.org/revistaNCN/ojs/viewarticle.php?id=7&layout=html>. Acesso em: 16 fev. 2008.
112
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Duas espécies de arroz poderiam ser encontradas em Vila Bela:
o arroz branco e o arroz vermelho, ou arroz nativo, como também era
conhecido. O arroz vermelho brotava naturalmente pelos espaços alagados da capitania e, associado ao peixe ou à carne de caça, serviu de
sustento para os novos habitantes das minas desde os primeiros anos
de ocupação do território, como podemos constatar pelo relato de um
autor anônimo, que esteve nas minas do Cuiabá entre os anos de 1720
a 1722:
(...) [passava] só com peixe do rio que um negro pescava no Cuiabá com
fisga e rede trançada de cipó e palmito de aguaçú, que tirava do mato,
comia com capim arroz das beiradas [dos rios], que pilava, e do pilado
comia tudo misturado, só com toucinho de caça gorda, com pouco sal
(...) mel das [abelhas] europa que tirava dos paus, que tudo o tempo
ardentíssimo estragava e consumia (SILVA, 2005, p. 88).
Durante todo o século XVIII, o arroz vermelho foi largamente
utilizado como alimento pela população da capitania. Essa espécie de
arroz foi registrada nos documentos produzidos pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Quando seguia viagem de Vila Bela em
direção à Vila Real, o naturalista Ferreira registrou: “Todos os rios e
ribeiros que se atravessam, continuando a jornada até o Cuiabá, são
mais ou menos bordados de palmares, tabocais e diversos arvoredos,
assim como as lagoas e as várzeas, semeadas de arroz vermelho” (ANZAI, 2004, p. 186).
A cana-de-açúcar foi outra planta que fez parte da paisagem agrícola de Vila Bela desde os primeiros anos de ocupação lusitana na
região. Largamente cultivada nos sítios de Vila Bela, a cana deu origem a vários produtos consumidos por sua população, tais como a
rapadura, o melado, o açúcar e, sobretudo, a aguardente. A construção
de engenhos em áreas de extração mineral fora proibida pela coroa
portuguesa desde 1715, e tinha como objetivo conter a proliferação de
engenhos nas Minas Gerais, fato que vinha ocorrendo desde o início
do século XVIII. No entanto, apesar da proibição, Zemella constata,
através das constantes reiterações da legislação portuguesa a respeito
dos engenhos, que tal proibição não surtiu os efeitos esperados, e a
construção de engenhos nas áreas de mineração continuara a se expandir durante todo o século XVIII (ANZAI, p. 212-213).
A construção dos primeiros engenhos no Mato Grosso parece
ter iniciado logo após a descoberta de ouro nas margens dos rios que
113
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
compunham a bacia do Guaporé. A esse respeito, o primeiro documento de que temos notícia é de autoria de Tomé Gouveia e Sá Queiroga, que no ano de 1735, após receber licença do governador de São
Paulo, o Conde de Sarzedas, para construir engenho nas minas do
Mato Grosso, pedia ao rei a confirmação de sua licença, como podemos constatar pelo documento abaixo:
Diz Tomé Gouvêa e Sá Queiroga, assistente nas minas de Vila Real do
Bom Jesus do Cuiabá, aonde assiste, (...), a Vossa Majestade, como também ser ele suplente o motor do descobrimento do sítio do Mato Grosso
do sertão Parecizes, donde se espera haver umas minas continuadas de
grande rendimento, e pela sua boa inteligência, zelo e verdade, o proveu
o governo na ocupação de Provedor da Fazenda Real, o qual exercitou
com muito zelo do real serviço, e por ser muito consciente haver naquele
sítio novamente descoberto do Mato Grosso, e um engenho que se possam fabricar aguardentes e melados, para se acudir com eles o façam, por
não haver um naquele sítio, recorreu ao governador conde de Sarzedas
para lhe dar licença para poder levantar engenho, que com efeito senhor
governador lhe concedeu (...), e pede a Vossa Majestade lhe faça mercê,
em atenção ao referido mandar ao suplente se lhe passe carta de confirmação da licença que lhe deu o dito governador, para poder levantar um
engenho de aguardente, de melados, no novo sítio do Mato Grosso, tudo
a custa do suplente (NDIHR/UFMT. Rolo 1, MT, cx. 1, doc. 68).
Quase três anos depois, em fins de 1738, Queiroga finalmente
recebia a resposta do rei, que, além de negar a confirmação de sua
licença, ordenou que “no caso de se haver erigido engenho o mandais
demolir, e não consintas se estabeleçam engenhos de novo” (NDIHR/
UFMT. Rolo 1, MT, cx. 1, doc. 68). Naquele período, Cuiabá já havia se
constituído como verdadeiro entreposto comercial para o Mato Grosso, e as intenções de Queiroga e de outros homens de posses interessados na construção de tais engenhos no Mato Grosso não agradaram
aos proprietários de engenhos do Cuiabá, que, interessados nas oportunidades de comércio abertas por aquele novo mercado, se articularam em torno da câmara da Vila Real para se manifestarem ao rei e
pedirem que
(...) no novo descobrimento do Mato Grosso se não plantasse cana, nem
fabricasse engenho algum de novo. Sem embargo do que tenho notícia
que já destas Minas foram alguns instrumentos para se fabricar um engenho no dito descobrimento, que se conservem os que estão feitos nestas
Minas parece justo, para não perder de todo os donos deles de se fabricarem de novo, e principalmente em descoberto é divertir do exercício de
114
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
minerar vinte ou trinta escravos, que em cada um se ocupam, e buscar
meio para se perderem muitos homens com bebidas, como aqui se experimenta, e será justíssimo que Vossa Majestade proíba com penas graves
que se não façam para o futuro semelhantes engenhos. E assim o praticou
o general desta capitania, Antonio da Silva Caldeira, na criação das minas dos Goiases, por experiência ter mostrado o prejuízo que causam os
ditos engenhos (CANAVARROS et al., 2007, volume II, p. 78).
Importante notar que os oficiais camarários de Cuiabá, além de
pedirem para que não se levantassem novos engenhos no Mato Grosso, pediam ainda que não se demolissem os engenhos já existentes na
Vila Real, como estabelecia a ordem régia de 1715, ordem que aparece
reiterada na negativa a Tomé Gouveia e Sá Queiroga. A brecha deixada
pela legislação através do recurso às licenças foi um espaço por onde
atuaram diversos interesses, sendo ao mesmo tempo espaço de disputa, mas também de negociação. Esse caso mostra o quão complexas
eram as relações entre a metrópole e a colônia.
A provisão régia de 12 de outubro de 1737 não só proibiu a construção de novos engenhos, como também extinguiu o recurso à licença, numa tentativa de fechar as brechas deixadas pela legislação anterior. Quase seis anos depois, uma nova lei foi editada pelo rei, e estabelecia que,
(...) sendo-lhe também presente que sem embargo das ditas reais ordens
se tinham fabricado nestas minas alguns daqueles engenhos de que resultaram vários inconvenientes, e detrimento grande aos moradores sendo mui prejudiciais a conservação das ditas minas, era servida que desde
logo se fizessem demolir todos os que se achassem proibindo a sua reedificação ou nova construção, debaixo da pena de dois mil cruzados que
pagaria cada transgressor, a metade para a sua Real Fazenda e a outra
metade para o denunciante, e de cinco anos de degredo para o Rio Grande
de São Pedro, além da perda dos escravos e mais fábrica dos ditos engenhos mandando que esta real ordem se publicasse e registrasse nesta dita
secretaria, e aonde mais conviesse (APMT – Lata: Bandos, doc. n. 47).
Apesar da lei de 1743 ter estabelecido duras penas para os transgressores, os engenhos continuaram a prosperar, tanto em Cuiabá quanto em Mato Grosso. Em 1751, ano em que D. Antônio Rolim de Moura
Tavares chegara à recém-criada Capitania do Mato Grosso, o distrito
de Vila Bela contava com treze engenhos de aguardente e três de açúcar e rapadura, e em Cuiabá existiam vinte e quatro engenhos de aguardente e vinte e dois de açúcar e rapadura (CORRÊA FILHO, 1994, p.
115
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
694). Após quase vinte anos, em 1770, Vila Bela contava com dezoito
engenhos de aguardente e três de açúcar e rapadura em pleno funcionamento, enquanto a Vila Real contava com vinte e um engenhos de
aguardente e dois de açúcar (PR –(AHU) – MT; cx. 15, doc. 927). Analisando essas informações, observa-se que, por um período de aproximadamente dezenove anos, o total de engenhos destinados a fabricar
aguardente aumentou na vila capital, e continuou praticamente estável na Vila Real; já os engenhos de açúcar mantiveram-se estáveis em
Vila Bela, e apresentaram uma queda vertiginosa em Cuiabá, passando de vinte e dois, em 1751, para apenas dois, em 1770.
Em novembro de 1782, Luís de Albuquerque baixou um novo
bando, no qual esclarecia que, através da provisão régia de 9 de outubro de 1749, o rei deixara a cargo dos capitães-generais a decisão de se
demolir ou não os engenhos erguidos em áreas mineradoras.
Vários moradores se animaram a multiplicar semelhantes engenhos, e
com grave prejuízo público, depois de haverem merecido a real contemplação e providência que deixo referido, sem nem ao menos me pedirem
a necessária licença, que deverão para isso nos ponderados termos, pelo
que tudo, usando do poder expresso, que a mesma Senhora me tem concedido para conservar ou demolir as ditas fábricas, regulando ao meu
arbítrio a sua existência, enquanto não tomo uma resolução mais positiva
e oportuna às circunstâncias políticas que me incumbe não perder de
vistas, sou servido proibir inteiramente a nova construção ou reedificação de qualquer dos engenhos ou engenhocas, expressados debaixo das
mesmas penas que Sua Majestade se dignou estabelecer contra os transgressores, pela dita real ordem de 12 de junho de 1743, se pagarem dois
mil cruzados, que se aplicarão na forma específica, e de perderem todos
os escravos e bens da fábrica, além do dito degredo de cinco anos a que
ficam sujeitos (APMT – Lata: bandos; Fundo: bandos; doc. n. 47).
Três anos depois, em abril de 1785, Luís de Albuquerque baixou uma nova portaria, na qual mandou apreender “nos alambiques
quaisquer outros instrumentos de destilar e fabricar cachaças” (APMT
– Lata: 1785; Fundo: defesa; doc. n. 134). No mês seguinte, o escrivão
da Fazenda Real do Forte do Príncipe da Beira, Antônio Ferreira Coelho, lavrou um auto de apreensão, e registrou que:
Em virtude da portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador e capitão general desta capitania, expedida em 24 de abril do corrente ano, fui por mandado
do ajudante engenheiro comandante José Pinheiro de Lacerda aos enge-
116
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
nhos abaixo mencionados, e lhe fiz apreensão nos [alambiques] que achei
haver nos mesmos engenhos, que são os seguintes:
A Domingos Francisco dos Santos
Um alambique de cobre, grande ............ 1}
Dois ditos mais pequenos ...................... 2}=3
A Manoel José da Rocha
Um alambique grande ............................ 1}
Dois mais pequenos ............................... 2}=3
E por ter com efeito executado tudo quanto se me ordenou a este respeito,
relativo à referida apreensão, passo o presente.
Forte do Príncipe da Beira a 14 de maio de 1785. O escrivão da Fazenda
Real, Antônio Ferreira Coelho (APMT – Lata: 1785, doc. n. 134).
Não há informações na documentação levantada sobre mais apreensões, além dos seis alambiques citados. De qualquer forma, tal medida
nos parece ter tido mais a finalidade de intimidar e desacelerar a proliferação dos engenhos de aguardente do que necessariamente acabar de vez
com eles no termo, pois o cultivo da cana e a produção de seus derivados
continuou a ser atividade econômica importante em Vila Bela.
Apesar da importância do açúcar e de outros derivados da cana,
como o melado e a rapadura, a aguardente foi, sem dúvida, o produto
mais consumido nas regiões de minas. Além de ser presença garantida em reuniões e festas, a aguardente fazia parte do consumo cotidiano dos mineiros, que creditavam a ela também dons terapêuticos. Essa
associação é perfeitamente explicável, segundo Leila Mezan Algranti,
com a difusão cada vez mais acentuada do açúcar, e o valor terapêutico creditado a ele desde Hipócrates, que “acabou sendo associado também aos demais produtos derivados da cana-de-açúcar, como o melaço e a aguardente, bem como aos alimentos fabricados com açúcar: os
confeitos e os doces de frutas” (ALGRANTI, 2005, p. 34). Soma-se a
isso o fato de muitos medicamentos serem, naquele período, preparados com aguardente, para não estragar.
A aguardente era muito utilizada no tratamento de dores, inflamações, feridas e outros males. No tratamento aplicado aos doentes
de “disenteria bacilar, doença grave que geralmente degenerava em
ulceração do intestino e gangrena retal, recomendava-se, além da limpeza corporal, uma dose de aguardente pela manhã em jejum” (SILVA,
2002, p. 189). No termo do Mato Grosso, a utilização de aguardente e
outros derivados da cana, como o açúcar e a rapadura, foram largamente utilizadas nas práticas de cura aplicadas aos doentes acometi117
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
dos de febres e sezões. Tal prática foi identificada pelo naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira e registrada no documento que produziu sobre as doenças que acometiam os moradores da Capitania de
Mato Grosso, denominado de “Enfermidades endêmicas da capitania
de Mato Grosso”. Ao elencar as práticas de cura americanas aplicadas
às febres cotidianas e terçãs, Ferreira diz que entre outros tratamentos
a “gente popular” costumava tomar “eméticos do sumo de dois ou até
três limões azedos, em uma chávena de aguardente da terra a que chamam cachaça”. Usava-se ainda adicionar em “uma pequena quantidade de cachaça a dois ovos batidos” para provocar vômitos, práticas
que o naturalista classificou como “as mais extravagantes” que havia
visto (ANZAI, 2004, p. 216; 2008).
De modo geral, a fabricação da aguardente ou cachaça, como também era chamada, se dava associada à produção de açúcar, ou até mesmo a outras atividades, como a cultura e fabricação de farinha de mandioca e milho (APMT – Lata: 1784, microficha 783). Seu processo de
fabricação foi registrado em um documento anônimo da Capitania de
Minas Gerais. Certamente no século XVIII esse processo não apresentava diferenças nas regiões auríferas, sendo, portanto, aplicável ao Mato
Grosso. O processo descrito seguia as seguintes etapas: primeiro, a
cana era moída no engenho para se extrair o caldo ou garapa, que era
armazenado em um recipiente de madeira, onde permanecia por cerca
de vinte e quatro horas; em seguida, o caldo era fervido e fermentado,
após o que era levado para o alambique, “onde com o fogo por baixo
fervia até que destilava a aguardente, e dali ia para as pipas e se podia
beber logo” (SILVA, 2002, p. 74).
O cultivo de frutas e verduras marcou a paisagem rural e até
mesmo a urbana de Vila Bela, acrescentando novas cores e formas.
Seja nos amplos quintais da casas de Vila Bela e seus arraiais ou nos
pomares e hortas dos sítios espalhados pelo distrito, o cultivo de frutas e verduras prosperou desde os anos iniciais de fundação da vilacapital, contribuindo para a diversificação da alimentação de seus
moradores. Os “Anais de Vila Bela” nos informam que em 1758 já era
possível encontrar na vila frutas de diversas espécies, tais como “figos, uvas, laranjas, limas, limões, bananas, mamões, melancias” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 70) e melões (SERRA, 1790, p. 427), além de
frutas da terra como o cacau, o ananás e a baunilha. Vale destacar
que, dentre as frutas elencadas acima, várias são originárias de outras regiões do mundo, como melancias, uvas e figos.
118
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Com o aumento do número de moradores da vila-capital, a demanda por esses produtos aumentou consideravelmente, criando a
necessidade de se ampliar seu cultivo para abastecer o florescente
mercado.
Nas vilas coloniais, as câmaras municipais tinham o poder de
disciplinar o bem-viver de seus moradores. No que tange à alimentação, as câmaras tiveram amplos poderes de editar normas que abrangiam desde o controle do comércio e o incentivo de determinada rota
de navegação até medidas que interferiam diretamente nas práticas
agrícolas, tais como o incentivo ao plantio de determinados tipos de
produtos e alimentos ou até mesmo a adoção de outras práticas agrícolas. Em Vila Bela da Santíssima Trindade, assim como em outras
vilas coloniais, isso ocorreu com certa freqüência. Visando ampliar a
oferta de frutas e verduras na vila, o Senado da Câmara de Vila Bela
ditou normas para que
(...) os moradores dos subúrbios desta vila pusessem cuidado na agricultura de frutas e hortaliças (...) para que a ela mandassem vender. E o
mesmo entendem os lavradores circunvizinhos a este meio, uns dez bastaria para abundar a vila de compradores, na certeza de que podem nesta
vila dar gasto diariamente às hortaliças.3
Dentre os legumes e verduras cultivados em Vila Bela, os mais
citados nos documentos analisados foram o cará, a batata (LACERDA
E ALMEIDA, 1841, p. 24), e verduras, como couve, repolhos (APMT –
Lata: 1787 A, doc. n. 906), cebolas (PONTES, 1781, p. 169) e quiabo
(Idem, p. 177), além de diversas hortaliças, que Ricardo Franco afirmava “tinham abundante cultura” (SERRA, 1790, p. 427).
O quiabo, planta africana da família das malvas, “que no Rio de
Janeiro era conhecida como “quincambó” [Quinganbô]” (PONTES,
1781, p. 177), servia não só como fonte de alimento, mas também para
a fabricação de medicamentos. Silva Pontes, ao identificar o cultivo
dessa planta na capitania, ressaltou suas propriedades medicinais:
“na medicina pode ser do maior socorro, em todas as indicações de
remediar a acrimônia”4. Do quiabo também se faziam xaropes, sendo
3
CARTA do Senado da Câmara de Vila Bela a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 03/02/
1770. APMT – Lata: 1770; Fundo: câmara; doc. n. 72. Nesta mesma reunião, atendendo a uma
solicitação de Sousa Coutinho, os vereadores criaram normas para incentivar o cultivo do
algodão e do tabaco na capitania.
119
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
muito eficientes no tratamento de pacientes com “tosses ferinas”. Era
remédio utilizado não só nos caminhos dos sertões, mas também em
Portugal, inclusive por pessoas ilustres: “Em Lisboa a uma pessoa
muito ilustre reconheci que deveu a este remédio, incógnito na farmácia européia, o salvar-se de uma tosse que o conduzia ao túmulo” (BLUTEAU, 1720).
O tabaco e o algodão foram dois produtos agrícolas que, embora
não destinados à alimentação, constituiram-se em gêneros importantes na manutenção da vida material dos habitantes de Vila Bela no
período estudado. Planta nativa da América, o tabaco começou a ser
cultivado na Bahia, por volta do começo do século XVII. Um século
depois, já era o segundo produto da pauta de exportação da América,
tornando-se, inclusive, moeda de troca para a compra de escravos africanos (CARNEIRO, 2005, p. 86). Na Capitania de Mato Grosso, o cultivo do tabaco teve seu início no termo do Cuiabá, cuja produção, além
de guarnecer o mercado local, era enviada para outras regiões do termo. Em Vila Bela e seu distrito, a cultura do tabaco principiou por
volta de 1770 (PR – MT, cx. 15, doc. 927), e até então era comprado da
Vila do Cuiabá.
Quanto ao algodão, até 1770 não era cultivado no termo do Mato
Grosso. Aliás, datam deste ano as ordens emitidas por Luis Pinto de
Sousa Coutinho para que se promovesse no termo a cultura do algodão (PR – MT, cx. 14, doc. 876). Em Cuiabá, a cultura desse gênero já
se encontrava mais adiantada, sendo que parte de sua produção abastecia a vila-capital (PR – MT, cx. 15, doc. 927).
Mesmo a despeito dessas ordens, não encontramos evidências
na documentação consultada de que a cultura do algodão tenha se
desenvolvido em Vila Bela, embora tenhamos identificado na documentação a prática da tecelagem em algumas povoações, como Lamego e Casalvasco. Ao passar por Lamego, em 1782, Antônio da Silva
Pontes registrou em seu diário que ali havia poucos casais de índios,
que viviam “com grande descanso e felicidade, porque o que trabalham é para si, fazendo seus tecidos de algodão por um método muito
simples, à maneira dos índios das missões espanholas, que é como
quem tece uma esteira sobre uma grade de quatro paus” (PONTES,
1781, p. 170).
4
Idem, p. 177. Segundo Bluteau “acrimônia” é um termo médico que significa “agudeza de
humor picante que ofende as partes do corpo em que se acha”. (BLUTEAU, 1720)
120
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Em fevereiro de 1785, dois anos após a criação da povoação de
Casalvasco, iniciou-se ali a implantação de pequena fábrica de tecelagem. A fábrica iniciou suas atividades com alguns índios (APMT –
Lata: 1785, doc. n. 07), práticos na arte de tecer, que Luís de Albuquerque mandou para a povoação aos cuidados de seu comandante, Joaquim José Ferreira. Cinco dias após sua chegada, os índios já estavam
“fiando não só para os tecidos finos, mas também para algum rolo de
pano grosso”, que, segundo Joaquim José Ferreira, “desejo com brevidade remeter a vossa excelência as amostras” (APMT – Lata: 1785, doc.
n. 08).
No termo do Mato Grosso, boa parte dessas atividades era exercida por índios, atraídos para as povoações localizadas ao longo das
margens dos rios Madeira, Guaporé e Barbados, muitas vezes índios
que haviam fugido das missões espanholas de Moxos e de Chiquitos,
atraídos pelas autoridades portuguesas. Esses índios, sob administração portuguesa passavam a desempenhar atividades importantes,
como a fiação, o trabalho nas lavouras e na criação de gado. O fato
desses índios “espanhóis” já serem treinados para trabalhos especializados foi, certamente, um fator decisivo para a adoção dessa prática
de atração por parte das autoridades lusas na fronteira oeste5.
Referências
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APMT – Lata: 1785; Fundo – defesa; doc. n. 134. AUTO de apreensão feito por
Antônio Ferreira Coelho, escrivão da Fazenda Real do Forte do Príncipe da
Beira. 14/05/1785.
APMT – Lata: bandos; Fundo: bandos; doc. n. 47. BANDO expedido por Luís
de Albuquerque Pereira e Cáceres. Vila Bela, 06/11/1782.
APMT – Lata: 1769; Fundo: Governadoria. Lata, 1769; doc. n.221. CARTA de
Antônio Felipe da Cunha a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 12/10/
1769.
APMT – Lata: 1785; Fundo: Governadoria; doc. n. 08. CARTA de Joaquim José
Ferreira a Luís de Albuquerque Casalvasco, 02/02/1785.
5
Para uma análise mais aprofundada da utilização do trabalho indígena no termo do Mato
Grosso ver: BLAU, 2007.
121
Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes
APMT – Lata: 1785; Fundo: Governadoria; doc. n. 09CARTA de Joaquim José
Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 26/02/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo: governadoria; doc. n. 07. CARTA de Joaquim José
Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 15/02/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo: governadoria; doc. n. 08. CARTA de Joaquim José
Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 20/02/1785.
APMT - Lata: 1785; Fundo: Governadoria, doc. n. 10. CARTA de Joaquim José
Ferreira. Casalvasco, 02/03/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo Defesa; doc. n. 146. CARTA de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque de Melo Pereira de Cáceres. Forte do Príncipe
da Beira, 11/11/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo: Defesa; doc. n. 134. CARTA de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Forte do Príncipe da
Beira; 15/5/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo: Defesa, doc. n. 114B. CARTA de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785.
APMT – Lata: 1785; Fundo: defesa; doc. n. 115. CARTA de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785.
APMT – Lata: 1777; Fundo: defesa; doc. n. 64. CARTA de Joseph Manoel Cardoso
da Cunha a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 30/03/ 1777.
APMT – Lata: 1773; Fundo: Governadoria; doc. n. 08. CARTA de Manoel
Caetano da Silva a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 22/08/1773.
APMT – Lata: 1773; Fundo: defesa; doc. n. 84. CARTA de Manoel Caetano da
Silva a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 24/10/1773.
APMT – Lata: 1770; Fundo: câmara; doc. n. 72. CARTA do Senado da Câmara
de Vila Bela a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 03/02/1770.
APMT – Lata:1785; Fundo: defesa; doc. n. 115. OFÍCIO de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785.
APMT – Lata: 1784; Fundo: defesa, microficha 783. OFÍCIO de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1784.
APMT – Lata: 1787 A; Fundo: defesa; doc. n. 906. OFÍCIO de José Pinheiro de
Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 28/09/1787.
Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDIHR/UFMT
CARTA de Antônio Rolim de Moura a Diogo de Mendonça Corte Real. 28/05/
1752. In: UFMT – NDIHR, 1982; v. I, p. 64.
CARTA de Antônio Rolim de Moura a Diogo de Mendonça Corte Real. Vila
Bela, 31/01/ 1755. In: UFMT – NDIHR, 1983; v. II, p. 56.
122
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
CARTA de Antônio Rolim de Moura ao rei de Portugal D. José. Vila Bela, 22/10/
1752. In: UFMT – NDIHR, 1982; v. I, p. 100.
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UFMT.
PETIÇÃO de Tomé Gouvêa e Sá Queiroga enviada ao Conde de Sarzelas. Vila do
Cuiabá, 21/01/1736. NDIHR/ UFMT. Rolo 1, microfilme, CTA–(AHU) – Mato
Grosso; cx. 1, doc. 68; CT-(AHU)– ACL – CU – 010, cx. 1, doc. 81.
Projeto Resgate – PR
OFÍCIO de Luís Pinto de Sousa Coutinho a Francisco de Mendonça Furtado.
Vila Bela, 04/02/1770. PROJETO RESGATE – AHU – cx.14; doc. n. 876.
OFÍCIO de Luís Pinto de Sousa Coutinho à Martinho de Mello e Castro. Vila
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125
A Capitania de Mato Grosso e a
Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão (1755-1778)
Nathália Maria Dorado Rodrigues
Na segunda metade do século XVIII, a Capitania de Mato Grosso1, localizada a oeste da América lusa, em fronteira com os domínios
hispânicos, esteve marcada por políticas metropolitanas que tinham
por objetivo desenvolver a agricultura, o comércio, a defesa e o povoamento. Desse modo, os portugueses buscavam afirmar sua posição
em importante região de fronteira e assegurar a posse sobre terras que
também eram áreas de mineração. A partir da criação de Vila Bela da
Santíssima Trindade em 1752, os portugueses se dedicaram à ocupação de áreas ainda não colonizadas, fundando vilas, arraiais, povoações e construindo fortes.
A partir de 1755, a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará
e Maranhão2, criada com um monopólio de navegação, comércio e tráfico de escravos destinados ao Estado do Grão-Pará e Maranhão durante vinte anos, incluiu também a Capitania de Mato Grosso em suas
negociações, tornando-se fornecedora de produtos manufaturados diversos e de mão-de-obra escrava africana. A articulação desta companhia com a Capitania de Mato Grosso, colocando em constante comu-
Nathália Maria Dorado Rodrigues possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “A Companhia
Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão e os homens de negócio de Vila Bela (1752-1778)”.
O “Mato Grosso” era como se chamava a região de minas e arraiais onde se descobriu ouro em
1734, e foi espacializado como distrito do termo da Vila Real do Cuiabá, pertencente à Capitania
de São Paulo. Criada capitania em 1748, esta se chamou Mato Grosso, com capital Vila Bela da
Santíssima Trindade, fundada estrategicamente em 1752 às margens do Rio Guaporé, região de
fronteira com os domínios hispânicos. Assim, dois distritos a compunham: Cuiabá e Mato
Grosso (ROSA, 2003, p. 40-42).
2
Neste texto, vamos utilizar o termo Companhia do Pará para nos referir à Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão.
1
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
nicação o Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará e Maranhão, auxiliaria não só no abastecimento de produtos manufaturados, como também desempenharia um importante papel na ocupação dos territórios
localizados no norte e no extremo oeste da América portuguesa. Esses
territórios estavam ligados por extensa fronteira que dividia domínios hispânicos e portugueses, e as medidas de Sebastião de Carvalho e
Melo, o Marquês de Pombal, contribuíram para ocupá-los efetivamente, em um momento decisivo para as negociações e a definição de áreas
de litígio entre os impérios ibéricos na América nos Setecentos3.
Nesse contexto, buscamos analisar no presente texto as relações
comerciais estabelecidas entre a Companhia do Grão-Pará e Maranhão
e a Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII,
tratando também dos negociantes residentes em Vila Bela que mantinham negócios com a Companhia, isto é, aqueles que estavam ligados
à “carreira do Pará”, entre 1755, ano de criação da companhia, e 1778,
ano de sua extinção oficial.
Os caminhos do sertão: as rotas comerciais
A extração de ouro não se constituiu na única atividade econômica praticada nas minas de Cuiabá e Mato Grosso. Durante os primeiros anos de ocupação portuguesa, observamos uma produção inicial,
principalmente de milho, feijão, abóbora, melão, melancia, banana,
mandioca, e também a criação de galinhas, porcos, cabras, e tempos
depois, de gado vacum e cavalar. O milho constituía-se em um dos principais alimentos na dieta dos sertões, tanto para seus moradores quanto para as criações de animais que dele se alimentavam (OLIVEIRA,
2008, p. 25). A pesca também constituiu importante atividade e supria
parte das necessidades de alimentos. Deste modo, o abastecimento vindo de fora tinha por objetivo prover os moradores com diferentes tipos
de mercadorias, tais como tecidos, ferramentas, armas, pólvora, utensílios domésticos, azeite, vinagre, vinho, alimentos finos (queijos flamengos, presuntos, chocolates, chás), sal e escravos africanos.
Para se chegar às minas, era preciso percorrer árduos caminhos
fluviais ou terrestres. Aos viajantes que desejavam atingir o “extremo
oeste” era necessário também sobreviver aos obstáculos naturais e às
3
Neste sentido, nos referimos aqui à necessidade dos portugueses de garantir as vitórias alcançadas no Tratado de Madrid de 1750.
127
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
dificuldades do trânsito, aos ataques de índios e animais, às doenças
ou ainda à má alimentação, em alguns casos. O terceiro governador e
capitão-general da Capitania de Mato Grosso, Luís Pinto de Souza Coutinho, assim se referiu às rotas comerciais:
Os dois principais estabelecimentos desta Capitania, situados sobre as
margens dos rios Cuiabá e Guaporé, oferecem de sua natureza diferentes
direções para a freqüentação do comércio. O primeiro facilita a comunicação desta Capitania por via de São Paulo, com as praças do Rio de Janeiro
e Santos, o segundo com a cidade do Pará. Pelo sertão do Cuiabá, se liga
a nossa Capitania com a de Goiás, e se tem aberto a poucos anos uma boa
correspondência com a praça da Bahia, pelo que toca ao comércio de
escravos (IHGMT, Instruções aos Capitães Generais, 2001, p. 37).
Os caminhos fluviais eram percorridos pelas monções do sul e
do norte. A palavra “monção” possuía mais de um significado; porém,
para os colonos do século XVIII, servia para designar os comboios,
isto é, o conjunto de canoas que cumpriam certa periodicidade, e chegavam às minas carregadas de produtos, mão-de-obra escrava africana
e demais pessoas livres motivadas pelas mais diversas razões (LAPA,
1973, p. 57). Sérgio Buarque de Holanda nos informa que, no seu significado inicial, “monção” designava os ventos alternados que marcavam as épocas de navegação no Oceano Índico, havendo um ponto
comum entre as monções do Brasil e as do oriente: ambas estavam
sujeitas a uma periodicidade regular, mas o que determinava essa periodicidade no Brasil era o regime das águas, e não dos ventos (HOLANDA, 1975, p. 162-163).
As monções que chegavam ao Cuiabá, também conhecidas na
historiografia como “monções de povoado”, por vezes eram compostas por cerca de trezentas a quatrocentas canoas, para abastecer Cuiabá e regiões circunvizinhas, surgidas a partir da expansão cuiabana.
As monções partiam de Araritaguaba, ultrapassando trechos de difícil navegação até chegar a Cuiabá. As monções destinadas a Cuiabá
chegavam após percorrer caminhos perigosos e rios caudalosos4. Os
viajantes dos primeiros empreendimentos das monções percorriam
4
Para chegar a Cuiabá, as monções de povoado contaram com dois roteiros. No primeiro roteiro,
partia-se do Tietê e depois se navegava pelos rios Grande, Pardo, Anhandui, travessia por terra
pelos Campos da Vacaria, rios Mboteteu, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá. No segundo roteiro,
partia-se do Tietê e depois se navegava pelos rios Grande, Pardo, travessia por terra pelo Varadouro do Camapuã, rios Cochim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá.
128
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
um trajeto difícil e cheio de obstáculos. Após tempos de experiência,
a rota das monções ficou estabelecida de modo que os viajantes pudessem ter uma estrutura capaz de atendê-los razoavelmente. Com a
utilização do Varadouro do Camapuã, os viajantes contavam com maior
comodidade, podendo consertar as canoas, alimentar-se melhor e reabastecer seus estoques de alimentos, por haver, em Camapuã, produção agrícola e criatória suficiente para isso. Um dos principais obstáculos encontrado pelos viajantes das monções dizia respeito aos ataques dos povos indígenas durante o percurso. Ferozes opositores à
invasão de suas terras pelo colonizador, os Payagua e os Guaykuru
atacavam as monções do sul. Vários relatos podem ser tomados como
exemplo para se ter uma idéia das lutas travadas entre os Payagua e os
paulistas que vinham nas monções, na região do rio Paraguai.
Entretanto, o caminho pelas águas não foi o único que dava acesso
a Cuiabá. O caminho terrestre São Paulo-Goiás-Cuiabá, freqüentado e
aberto desde 1737, também foi utilizado, pois este trajeto servia para
passar o gado. As demais cargas seguiam por vias fluviais. A abertura
desse caminho possibilitou, entre outros resultados, a “formação de
fazendas e currais nas redondezas de Cuiabá” e a diminuição de preços de mercadorias diversas, até então exorbitantes (CANAVARROS,
2004, p. 211). As descrições das transações comerciais dos tropeiros
em Cuiabá, segundo Canavarros são pouco minuciosas, mas, de fato,
muitos escravos chegaram até a Vila Real do Cuiabá por este trajeto
(idem, 2004, p. 214). Embora o caminho de terra tivesse duzentas léguas a menos que a rota das monções de povoado e fosse mais seguro,
a atividade dos tropeiros não substituiu a das monções, constituindo
apenas mais uma rota de acesso às minas cuiabanas.
As monções do norte percorriam os rios Madeira-Mamoré-Guaporé, trajeto que ligava a Capitania de Mato Grosso ao Estado do GrãoPará e Maranhão. As canoas chegavam em menor número, porém eram
maiores, o que aumentava sua capacidade de carga. Enquanto as embarcações do sul possuíam capacidade para transportar de 300 a 400
arrobas de mercadorias, as canoas do norte, que navegaram o rio Madeira, também denominadas ubás, eram bem maiores, com capacidade para transportar 20 homens e até 3000 arrobas de mercadorias, que,
se comparadas com a capacidade de carga das embarcações empregadas nas monções de povoado, eram bem superiores (HOLANDA, 1990,
p. 30).
129
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
A primeira navegação pela rota Madeira-Mamoré-Guaporé data
de 1742, muito antes da abertura oficial da navegação por esses rios
(1752), e da permissão da coroa para realizar o comércio com o Pará. A
rota utilizada pelas monções do norte foi percorrida primeiramente
em 1742, por Manuel Félix de Lima. Segundo José Barbosa de Sá, cronista do século XVIII, Félix de Lima era um negociante falido, morador do arraial de São Francisco Xavier, que receava ir ao Cuiabá, onde
tinha alguns credores. Juntou-se, então, a alguns aventureiros, e navegaram pelo rio Guaporé abaixo, à procura de povoações de castelhanos para onde pudessem passar. Barbosa de Sá nos relata:
Rodaram estes em uma canoa sem notícia alguma da navegação nem aonde aquele rio ia surgir, tiveram encontros de gentios, passaram as cachoeiras, viram o que gentes católicas não tinham ainda visto, deram consigo
na cidade de Belém do Grão-Pará, sem mais para a corrente das águas que
os levaram às cegas, foram na dita cidade presos e remetidos à corte aonde dando notícias da sua viagem e de tudo o que tinham visto e passado
foram soltos (SÁ, 1975, p. 41).
Mas foi no ano de 1749 que chegava João de Sousa Azevedo à
Capitania de Mato Grosso, com “a primeira carregação de negócio que
nestas minas entrou vindo do Pará”. Consta que entrou pelo rio Sararé, até o porto chamado dos “Pescadores” ou “Porto Geral”, e que lá
colocou parte das cargas em cavalos, e seguiu em direção à Chapada;
outra parte conduziu em canoas, pelo rio Sararé, até chegar ao porto
do Mombeca, localizado no interior das minas (AMADO; ANZAI, 2006,
p. 48-49).
Sobre a navegação pelos rios Madeira-Mamoré-Guaporé, o capitão-general Luís Pinto de Souza Coutinho, durante sua viagem em direção à Capitania de Mato Grosso, em 1769, registrou latitudes, a direção geral dos rios, seu encontro com as populações nativas, a situação
das produções, e tudo aquilo que considerava vantajoso conhecer. O
governador registrou que a região das cachoeiras do rio Madeira possuía terreno elevado abundante em cacau, salsa, baunilha, jalapa, resinas e outras drogas medicinais, produtos com boas possibilidades de
serem comercializados (PR – AHU/MT, 1769, cx. 13, doc. n. 829).
Um dos problemas enfrentados pelos navegantes desta rota dizia respeito à alimentação. A dieta alimentar dos navegantes consistia
em farinha, toucinho, feijão e demais alimentos fornecidos pela natureza durante o percurso. Alimentavam-se dos peixes do rio Madeira, e
caçavam antas, veados, porcos do mato, pacas, patos silvestres e tarta130
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
rugas, das quais aproveitavam os ovos para fazer manteiga e a banha
para fazer azeite, utilizado na iluminação. Era freqüente os navegantes
não contarem com bons alimentos à disposição. Com a umidade e o
mau acondicionamento, os alimentos poderiam apodrecer. Também
ficavam “as carnes e peixes mal salgados, amontoados nos porões das
canoas, meio apodrecidos” (ANZAI, 2004, p. 162), contribuindo para
o aparecimento de doenças, outro agravante para os viajantes das monções.
O reabastecimento era feito nas aldeias, feitorias, fortalezas e
povoações estabelecidas ao longo do trajeto fluvial, locais nos quais
conseguiam legumes, milho, arroz, bananas, mamões, galinhas, etc.
(LAPA, 1973, p. 70-75). As povoações existentes no percurso dos comboios de canoas foram muito importantes, pois garantiram não só a
assistência aos comerciantes e demais viajantes, como a posse da região ocupada para a coroa lusa.
Nas feitorias5 erigidas no caminho, seriam construídos armazéns
para estocar as mercadorias necessárias ao comércio. Estas seriam levantadas com o apoio da Companhia de Comércio do Grão-Pará, já que
iam ao encontro de seus interesses.
O abastecimento de produtos importados em Vila Bela e suas
imediações era praticamente dependente das praças do Rio de Janeiro
e de São Paulo, até o efetivo estabelecimento da Companhia do Pará,
quando as transações comerciais pela rota norte ficaram mais intensas. As monções de povoado, quando chegavam carregadas de mercadorias, aportavam umas em Cuiabá e outras seguiam pelo rio Jauru,
em direção ao Mato Grosso, para abastecer a vila-capital e suas imediações. Contudo, mesmo com a atuação da Companhia do Pará, Vila Bela
e seu termo continuaram sendo abastecidas pelas monções do sul
durante o século XVIII.
Todas as carregações trazidas nas monções tinham que pagar o
tributo das entradas nos postos de registro, nos quais se anotavam e
se pesavam todas as cargas que entravam na capitania; isso fazia com
5
As feitorias, em geral, constituíam-se em um entreposto fortificado que, na fase inicial da
colonização dos domínios ultramarinos portugueses negociava com os nativos e recolhia e
armazenava os produtos que deviam ser transportados para a metrópole. Inúmeras foram as
feitorias estabelecidas pelos portugueses em seu vasto império colonial ultramarino, erigidas
em lugares comercialmente e politicamente estratégicos.
131
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
que o preço final se alterasse, e se refletia na diminuição do poder de
compra dos moradores. A cobrança das entradas em Cuiabá foi realizada pela primeira vez em 1724, quando se estabeleceu um valor a ser
pago pela entrada de fazendas e negros (ARRUDA, 1987, p. 51). A
partir da abertura da navegação pelos rios Madeira e Guaporé, os gêneros trazidos para Mato Grosso por essa rota pagavam as entradas,
“na mesma quantia e forma que se pagam nas Minas Gerais”, excetuando-se os escravos (PR – AHU/MT, 1754, cx. 07, doc. n. 438).
No ano de 1754, Francisco Xavier de Mendonça Furtado informava ao Rei D. José o estabelecimento de um registro na Cachoeira do
Aroaia, localizada no Rio Madeira, limite norte da Capitania de Mato
Grosso pelo Contratador das Entradas Afonso Ginabel (PR – AHU/
MT, 1754, cx. 07, doc. n. 444). Quando o comércio com o Pará já estava
bem estabelecido, os produtos que entravam na Capitania de Mato
Grosso eram pesados em dois registros, “do Forte e Jauru, e há todo o
cuidado em cobrar, de sorte que há mais de seis anos não houve uma
oitava de caducas nem se executou ninguém” (APMT, Fundo Fazenda,
1774, doc. n. 33). O forte aqui mencionado provavelmente é o Forte de
Bragança, também chamado da Conceição. Encontramos relato que nos
leva a supor que este local fosse parada de monção para abastecimento de artilharias, tecidos e outros produtos para as tropas que lá estavam fixadas, pois no ano de 1765 chegava monção “toda a salvamento” naquele forte. (NDIHR – AHU/MT, 1765, MF, Rolo 12, cx. 13, doc.
n. 763).
A tabela abaixo foi construída a partir dos Anais de Vila Bela, e
procura oferecer uma idéia geral das monções que ali aportaram de
1749 a 1776. Devemos considerar que esses dados não são finais, e
que o número de monções conduzidas para a capitania pode ter sido
superior.
132
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Tabela 1 – Monções e carregações de fazendas que chegaram em Vila
Bela no período de 1749 a 1776
Ano
Mês
Descrição
1749
Julho
Carregação de fazendas de João de Souza Azevedo
1752
Março
Monção vinda do Pará conduzida por José dos Santos
Branco, Calixto de Rego Souza, Antonio Francisco Serra
e João Antunes da Costa
1754
Janeiro
Carregação de fazendas de João de Moura Colasso
1757
–––
Monção vinda do Pará
1758
Julho
Monção vinda do Rio de Janeiro conduzida por José
da Silva e José Afonso Branco
1760
–––
Monção vinda do Pará
1761
–––
Monção vinda do Pará
1762
Agosto
Monção vinda do Rio de Janeiro
1762
Outubro
Monção vinda do Pará com três canoas
1765
Dezembro
Monção vinda do Pará com trinta embarcações
1765
Setembro
Monção vinda do Rio de Janeiro com dezessete canoas
para Mato Grosso
1770
Novembro
Monção vinda do Pará composta de 18 embarcações
entre ubás e botes
1772
Janeiro
Monção vinda do Pará composta de 24 embarcações
entre botes, igarités e canoas ordinárias
1773
Fevereiro
Monção vinda do Pará conduzida por Flavio Antônio
de Almeida Pessoa e Manoel da Silva Barata
1774
–––
Carregação de escravos e gêneros do Pará e Rio de
Janeiro composta por José da Silva Pena e outros
cinco comerciantes
1775
Março
Correio trazido por Carlos Daniel com botes de fazendas
para os Armazéns Reais e um particular para as
viagens de Sua Excelência
1776
Janeiro
Monção composta por oito comerciantes carregadas
de fazendas secas e molhadas
Fonte: NDIHR – AHU/MT, 1765, MF, Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763; AMADO; ANZAI,
2006.
133
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
Negócios com a Companhia do Pará
Em 1751, quatro anos antes do início do funcionamento da companhia, a já existente ligação comercial com o Pará oferecia a Rolim de
Moura a possibilidade de solucionar problemas de abastecimento, além
de efetivar para Portugal a conquista desses caminhos. Rolim enumerou as vantagens:
A primeira, que do Pará hão de concorrer naturalmente muitas pessoas
para aquelas minas. A segunda, que as fazendas e mantimentos do reino
vindos por ali hão de ser mais baratos, o que facilitará a subsistência dos
seus moradores. A terceira, que por aquela parte fica muito mais breve a
comunicação com a corte, donde pode ser socorrida esta capitania com
grande brevidade. E quarta, fazermo-nos senhores daquela navegação
(NDIHR – UFMT, 1982, v. 1, p. 32).
Esses motivos eram considerados fundamentais para a conservação desse comércio, que, apesar dos riscos, não poderia ser dispensado, ainda que existissem outras rotas de abastecimento. Apesar de
opiniões contrárias, além dos motivos já expostos por Rolim de Moura, essa comunicação incrementaria o comércio e traria maior arrecadação, da mesma forma que a concorrência com as monções do sul
conteriam a especulação dos preços (LAPA, 1973, p. 30). Na recémcriada capitania, havia não só a necessidade de um abastecimento de
produtos importados, como também um aumento do número de mãode-obra escrava africana que, a partir de 1755, ficaria também a cargo
da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Dela se
esperava a introdução de muitos escravos africanos, que substituiriam
o trabalho escravo dos índios, os quais, desde 1755, eram considerados vassalos do rei, e não deveriam ser escravizados, embora tal proibição não funcionasse na prática. Para Diogo de Mendonça Corte-Real,
eram claros os benefícios da atuação da companhia em relação ao abastecimento de escravos:
Como se tem estabelecido, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o grande fim que se propõe é de introduzir muitos negros; espero que a abundância deles possa chegar a esse país, para que se continue em novos
descobertos de minas, em que não cuidam os mineiros que atualmente
estão nesse país, que por falta deles se acham sós nas faisqueiras, entretidos a passar a vida, e sem cuidarem na sua utilidade, nem da Real
Fazenda (APMT, 1756, Fundo Governadoria, doc. n. 62).
A utilização da mão-de-obra escrava indígena e africana não estava circunscrita apenas às minas, sendo também encontrados negros
134
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
e índios6 nas lavouras, e ainda no desempenho de outras funções, como
a de remeiros, no beneficiamento de alimentos, bem como em atividades manufatureiras, como a fiação e a tecelagem.
Umas das razões pelas quais se criaram expectativas quanto ao
comércio praticado com o Pará foram os preços dos gêneros secos e
molhados que entravam pelas minas, vindos do Rio de Janeiro, e que
eram absurdamente caros. Um alqueire de sal, por exemplo, que em
sua origem custava 2.200 réis, chegava em Mato Grosso acrescido dos
custos com a despesa, custando 30.440 réis, quase quatorze vezes mais
caro (CANAVARROS, 2004, p. 212). Em correspondência de Rolim de
Moura enviada a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em 1756, o
governador se mostrava esperançoso em relação ao aumento das transações comerciais com a companhia e com a concorrência entre os
comerciantes do norte e do sul, apesar das dificuldades apresentadas
no princípio do empreendimento:
Daqui é natural se aumente o interesse à nova Companhia de Comércio;
pois pelas dificuldades que ainda experimentam os viandantes deste caminho, como sucede a todas as coisas nos seus princípios, não tem agora
podido dar um tal preço, principalmente as fazendas secas, que tire o
lucro as que vêm do Rio de Janeiro, o que faz que para aquela cidade se
divirta a maior parte do ouro que se tira destas minas, o que é certo há de
diminuir, à proporção que o comércio com o Pará se for franqueando e
facilitando mais (NDIHR – UFMT, 1982, v. 3, p. 23).
Assim como ocorria em outras regiões que contavam com a atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma
de suas atribuições consistia em oferecer assistência financeira ou
fornecer produtos diversos, como tecidos destinados ao fardamento
das tropas, armas, munições e outros equipamentos, bem como auxiliar na construção de fortalezas ou feitorias para a segurança de seu
comércio e das regiões em que estava estabelecida, embora fosse embolsada depois pela Fazenda Real. Os empréstimos de dinheiro feitos
pelo Estado do Grão-Pará e Maranhão à Companhia do Grão-Pará e
Maranhão serviam para pagar despesas diversas, das quais podemos
citar, para a década de 1770, gastos com a fortificação da Vila de São
José do Macapá, pagamento das tropas, pagamento das côngruas, madeiras para o arsenal, ou ainda com as charruas de Sua Majestade
6
Sobre a utilização da mão-de-obra indígena na Capitania de Mato Grosso ver: BLAU, 2007.
135
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
(PR – AHU/PA, 1769, cd 07, cx. 64, doc. n. 5527). As despesas da
capitania de Mato Grosso para com a Companhia se referiam basicamente a munições, ferramentas, mantimentos e quinquilharias, medicamentos, jornais e soldos, e outros empréstimos (APMT, Fundo Fazenda, 1768, doc. n. 119).
Entre 1756 e 1760, o comércio com a Companhia e Mato Grosso
foi insatisfatório pelas condições em que se encontravam as mercadorias, ou mesmo pela falta delas. Durante a década de 1760, houve um
estímulo à produção paraense, e os fazendeiros do Pará tinham prioridade sobre as vendas, ficando aos comerciantes de Mato Grosso, segundo Davidson, com as sobras. Notadamente esse foi um período
complicado, em que as reclamações dos comerciantes de Mato Grosso
se fizeram ouvir (DAVIDSON, 1970, p. 141-142).
A partir da década de 1760, a atuação dos homens de negócio
com a Companhia aparece com maior regularidade na documentação
oficial registrada pelos capitães-generais e demais funcionários da
coroa. João Pedro da Câmara comentou positivamente a atuação dos
comerciantes:
Os homens de negócio vêm muito satisfeitos do bom tratamento e franqueza que acharam na Companhia, por cujo motivo julgo que não só
estes, mas outros que negociam para o Rio e Bahia, freqüentarão o comércio por esta parte, com grande utilidade da mesma companhia (NDIHR –
AHU/MT, 1765, MF Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763).
Era o que se esperava e o que de fato ocorreu no início das atividades comerciais entre Mato Grosso e Pará. Segundo Lapa, havia negociantes de Mato Grosso que atuavam nas duas rotas, do norte e do
sul. Os conflitos com a Companhia em relação à má qualidade dos
produtos, principalmente no que se refere à mão-de-obra escrava foram um dos motivos para que alguns preferissem comercializar com o
Rio de Janeiro e Bahia, causando grande preocupação aos capitãesgenerais, uma vez que o comércio com a Companhia não poderia deixar de ser realizado. Ainda segundo Lapa, transcorridos cinco anos da
atuação da Companhia, os comerciantes alegavam que “o rígido monopólio sobre o comércio entre as duas capitanias, os obrigara a apenas se dirigirem para o norte, chegando a proibir o trânsito pelo caminho fluvial para São Paulo, além de outras medidas coercitivas para
forçar as transações com o Pará” (LAPA, 1973, p. 91), medida revogada
por Rolim de Moura. Nos anos seguintes, as relações comerciais com
136
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
a Companhia primavam pela estabilidade. Os Anais de Vila Bela registraram, para o ano de 1760, a continuidade do comércio com o GrãoPará, assim como com o que vinha pelas monções do sul, que também
abasteciam Vila Bela e seus arredores. Segundo os Anais de Vila Bela,
neste ano (1760) “não tem sido com muita abundância pelas faltas da
fazenda que tem havido pelos povoados ou portos de mar” (AMADO;
ANZAI, 2006, p. 81).
Nos momentos em que ocorria o atraso das monções, os mantimentos disponíveis eram vendidos a preços elevados. Quando chegavam os barcos, os produtos eram vendidos “pelo costumado preço”
(SUZUKI, 2007, p. 91). Nos Anais do Cuiabá encontramos o registro
para o ano de 1765, em que consta relato do atraso da monção, que
provocou a falta de alguns víveres do Reino, como o sal e o vinho, que
“se chegou a vender a medida a três oitavas de ouro de 1500, que corresponde a quatro mil e quinhentos, cuja vasilha muito pouco excede
de um prato de estanho fundo, e este a oito oitavas de ouro do mesmo
valor, que corresponde a doze mil réis” (SUZUKI, 2007, p. 91).
A partir do governo de Luís Pinto de Souza Coutinho, o trânsito
pelo Madeira e as relações comerciais com a companhia tornaram-se
mais intensas. Estes anos foram o auge do desenvolvimento do comércio, cujas dificuldades já estavam relativamente sanadas, se considerarmos os esforços empreendidos pelas autoridades metropolitanas na manutenção desse comércio. Para Davidson, alguns fatores contribuíram para que fosse alcançado esse desenvolvimento, tais como
um maior envolvimento da Companhia do Pará,
nas transações públicas e privadas, a proliferação das operações da coroa
no oeste, e a expansão da mineração em Mato Grosso, a qual acrescentou
poder de demanda e aquisição, contribuindo para o florescimento do comércio e da navegação entre Belém e Vila Bela” (DAVIDSON, 1970, p. 157).
Tão logo iniciou seu governo, o capitão-general organizou uma
assembléia dos comerciantes de Mato Grosso tentando convencê-los
a não se desviarem do caminho do Pará, prometendo-lhes numerosas
mercadorias e crédito junto à companhia, sugestão essa que foi bem
recebida por uns, e recusada por outros (DAVIDSON, 1970, p. 166167). O capitão-general tentou ao máximo persuadir os “negociantes
destas minas à freqüentação do comércio do Pará, como o mais vantajoso aos seus verdadeiros interesses, e para que os mesmos tinham a
mais decidida repugnância” (PR – AHU/MT, 1770, cx. 15, doc. n. 893).
137
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
A relutância mencionada se dava também pela recusa dos comboieiros em mudarem suas rotas comerciais. Entre 1769 e 1770, Luís Pinto
de Sousa Coutinho, após persuadir e convencer os comerciantes a não
abandonarem a rota norte, conseguiu “gerar condições econômicas em
Mato Grosso que tenderam a um comércio florescente”, e, além do
mais, “sua promoção da mineração e agricultura foram instrumentais
em criar demanda e liberar capital necessários para o comércio do
Madeira” (DAVIDSON, 1970, p. 167-168).
Garantir a posse das terras devidamente ocupadas pela coroa
portuguesa significava fixar sua população, aumentar o número de
povoações, bem como oferecer os meios necessários para sua sobrevivência. Como prioridades para o aumento da povoação da capitania,
segundo o governador, estavam: conceder a maior liberdade possível
ao comércio, fomentar a agricultura, animar os descobrimentos das
minas, promover casamentos e atrair novas famílias (IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 36). As quatro questões apontadas pelo governador constituem o que era essencial para concretizar
seus objetivos.
Para realizar seu propósito em relação ao comércio, em especial
o da rota norte, Luís Pinto tomou algumas medidas, tais como: facilitar aos homens de negócio a liberdade de partirem em todo o tempo
da capitania, “quase soltos”; não negar licença a qualquer pessoa que
quisesse se dedicar ao comércio independente de grandes cabedais;
ser menos austero em dar baixa aos soldados que a requeressem e possuíssem algum ouro para empreender em qualquer negócio (IHGMT.
Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 35). Era de interesse metropolitano a manutenção da rota comercial pelo norte, fruto de constantes inquietações, uma vez que os negociantes preferiam o comércio
do Rio de Janeiro, não obstante as maiores despesas e as incomparáveis dificuldades do trânsito.
Em 18 de setembro de 1769, o capitão-general publicou um bando no qual estabelecia a liberdade de partida das monções:
Atendendo a ser a liberdade do comércio o primeiro princípio, em que
consiste a sua estabilidade, sou servido declarar a todas as pessoas, em
como daqui em diante não fica existindo para a partida das monções
tempo algum pré fixo de meses certos determinados, como até agora se
tinha estabelecido, mas a todos será lícito freqüentarem as suas viagens,
tanto deste porto, como do sítio do Camapuã, em todo tempo que se
ajuntar um competente número de embarcações, que possam fazer con-
138
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
serva e resistir com segurança a qualquer acontecimento, ficando em tudo
o mais sujeitas as ditas expedições, a polícia estabelecida pelos meus antecessores, para a boa ordem de sua navegação, e para não levarem outras
algumas pessoas nas suas comitivas, mais do que aquelas que derem em
relações, sob pena de serem incursos nos castigos que pelas mesmas ordens se acham prescritos (...) (ACBM. Acesso Pasta 95, doc. n. 1459).
O abastecimento pelas monções do norte, ao longo da segunda
metade do século XVIII, nem sempre foi regular, fosse pela falta de
produtos nos armazéns de seus fornecedores ou pela falta de remeiros; ou ainda pela época do ano em que os monçoeiros se dirigiam aos
portos para buscar os produtos para serem revendidos na capitania,
pois se chegassem em tempo errado, não coincidiariam com a chegada
dos navios da Europa. As irregularidades da monções contribuíram
para o atraso do abastecimento e pela falta de mercadorias, ocasionando, por algumas vezes, carência de mantimentos na capitania.
Em correspondência enviada pelos agentes administrativos da
Companhia ao governador e capitão-general Luís Pinto de Souza Coutinho, registraram-se os motivos de tal carestia. Longe de ser uma conseqüência da liberdade de tempo para a partida das monções concedida aos comerciantes, essa correspondência expressava os problemas
enfrentados nas transações comerciais com a Companhia, e seus administradores no Pará ofereciam sugestões para assegurar um negócio
regular e periódico. Na correspondência datada de 4 de junho de 1769,
os agentes argumentavam sobre a inconstância dos negociantes e o
prejuízo que isso acarretava à Companhia, relatando:
Há muitos anos que esta Companhia deseja fazer para essa capitania um
comércio sólido e avultado, sem lhe ter sido possível consegui-lo até o
presente por encontrar uma grande inconstância nos negociantes, e não
terem estes exigido monções certas de virem a esta cidade fazerem o seu
comércio, e como se pratica nas mais partes, esta incerteza é o motivo
principal se não encontrarem os gêneros que necessitam para bem formar e surtirem as suas carregações (APMT, Fundo Governadoria, 1769,
doc. n. 208).
E continuavam justificando que devido à irregularidade das
monções dispunham somente dos gêneros que consideravam serem
mais consumidos, deixando claro que seria “conseqüência infalível
que a metê-los a Companhia forçosamente os há de perder, como o
tem experimentado em várias ocasiões” (APMT, Fundo Governadoria, 1769, doc. n. 208). Por conta disso, para contornar a situação,
139
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
sugeriam que os comerciantes deveriam ir ao Pará todos os anos, mas
dividindo-se em dois corpos, sendo que uns em um ano, e outros no
seguinte, de modo a se estabelecerem na cidade até o início do mês de
agosto, quando encontrariam todos os gêneros de que precisassem
(APMT, Fundo Governadoria, 1769, doc. n. 208).
Os administradores da Companhia reforçavam a inconstância
dos comerciantes, e estes, a má qualidade dos produtos disponíveis,
os preços e juros. Resolver tais questões e problemas a respeito do
trânsito no Madeira era o objetivo de Luís Pinto, que buscou justa
medida para convencer os comerciantes das vantagens desse empreendimento, e os administradores da Companhia da necessidade de
fornecer abundantes produtos importados e crédito (DAVIDSON, 1970,
p. 168). Mas as reclamações que chegavam da parte dos comerciantes
ao governador era justamente o fato de que eles “não encontram na
Companhia provimentos alguns competentes para fornecerem as suas
carregações, e pouquíssimos escravos para se proverem e juntamente
facilitarem o trânsito daquela navegação” (PR – AHU/MT, 1770, cx.
15, doc. n. 893).
Quanto aos administradores, estes foram informados das decisões tomadas a respeito da regularidade das monções. Em reunião
convocada com os homens de negócio, eles mesmos buscaram uma
organização das monções:
(...) pelo que toca a regularidade das monções, já se acha completamente
estabelecida pelo acordo unânime dos homens de negócio, que para isso
fiz convocar, assim como também sobre a partida de todos aqueles que
aqui tem por hora melhor estabelecimento, de sorte que a respeito destes
dois portos ficam removidas todas as dificuldades (PR – AHU/MT, 1770,
cx. 15, doc. n. 893).
As transações comerciais com a Companhia deveriam se dar pela
boa correspondência entre os comerciantes e administradores com
vistas à satisfação de ambos em seus negócios e interesses. Uma questão fundamental foi observada pelo governador: as desculpas dos administradores pela falta de mercadorias em seus armazéns e as queixas da falta delas pelos comerciantes. Tais desculpas só contribuíram
para mais empates nos negócios que da parte dos comerciantes a falta
de provimentos servia como justificativa para deixarem de praticar a
navegação em direção ao Pará. Mas nem sempre tais razões podem ser
consideradas como motivadoras para a mudança na direção dos negó-
140
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
cios pessoais, uma vez que alguns que permaneceram nesse empreendimento obtiveram algum tipo de êxito, como veremos adiante. A busca
pela estabilidade comercial e pela regularidade do comércio com o
Pará foi perseguida pelas autoridades metropolitanas durante quase
toda a segunda metade do século XVIII. Um grupo de comerciantes
não se abalou diante dos empecilhos e se aventurou nessa empreitada
comercial. Entre 1774 e 1778, cinqüenta e sete comerciantes navegaram
e realizaram negócios com a Companhia, muitos dos quais eram militares, lavradores, oficiais da câmara, entre outros (APMT, Fundo Governadoria, 1774, doc. n. 02; APMT, Fundo Fazenda, 1778, doc. n. 33).
Ao final do governo de Luís Pinto, alguns entraves no comércio
com o Pará ainda permaneciam, como: a falta de fazendas sortidas, de
escravos considerados “bons” e de preços justos. Em relação à Companhia do Grão-Pará, os principais empecilhos que resultaram na preferência dos negociantes pelo comércio com os portos de São Paulo e
Rio de Janeiro eram os seguintes:
1° A falta de provimentos sortidos nos armazéns da Companhia; 2° A
penúria dos escravos com que a mesma Companhia dirigia as suas especulações, e na carestia e na qualidade deles; 3° A rigorosa obrigação em
que constituía aos negociantes de se abonarem cada um de per si, e um
por todos, contra a prática estabelecida nos mais portos de mar; 4° Em
não dar a Companhia espera alguma de juros, quando se efetua a venda,
ao mesmo tempo em que nas mais praças se lhes faculta ao menos; 5°
Finalmente, nos grandes empates que muitas vezes sofrem as monções
naquele porto, assim por falta dos sobreditos escravos, como pela dificuldade em lhe aprontarem índios para a sua navegação, por parte do governo (IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 38).
Em relação às transações comerciais com a Companhia, concedia-se aos comerciantes créditos que variavam de seis meses a um
ano, o que era prática comum nas minas. As compras dos gêneros pela
Companhia eram asseguradas pelas parcelas que deveriam pagar os
comerciantes devedores. Pagando-se as dívidas, o crédito para novas
compras estava garantido. Embora os negócios fossem permeados de
queixas e acusações de ambos os lados, gerando tensões que deveriam
ser controladas, os capitães-generais intervinham para garantir a assistência contínua de mercadorias. As decisões tomadas em Mato Grosso estavam em consonância com os interesses portugueses não só no
plano das relações políticas entre Portugal e Espanha pelos territórios
na América, como também pela existência e pelo funcionamento da
141
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
própria Companhia, envolvida numa rede comercial de distribuição
de produtos e de mão-de-obra escrava que abrangiam a Europa, África
e América.
Foi durante o governo de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres que um ambicioso plano de comércio deveria ser posto em
prática. Em instrução chamada “secretíssima”, esse plano, cujas ordens deveriam ser executadas no mais absoluto segredo, tinha por
objetivo ampliar o comércio da Companhia do Grão-Pará com as “capitanias de Mato Grosso, de Cuiabá e todas as mais regiões confinantes com as referidas capitanias e a de São José do Rio Negro”, com a
justificativa de que todos ficassem bem supridos com os gêneros de
que careciam (PR – AHU/PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919).
Além de outras capitanias do Brasil, pretendia-se com este plano incluir nos negócios da Companhia do Grão-Pará “parte das vastas
províncias espanholas do Orinoco, Quito e Peru” (PR – AHU/PA, 1772,
cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Os avanços dos espanhóis sobre território
português partindo do Orinoco eram observados rigorosamente pelas
autoridades do Estado do Grão-Pará e de Mato Grosso. Com bastante
cautela, buscavam os lusitanos resguardar também seus territórios ao
norte. Em 1761, Rolim de Moura foi informado dos planos para proteger o Rio Negro das incursões espanholas. Nas cachoeiras deste rio,
estabelecer-se-ia uma escolta com o pretexto de se fundar povoação,
informando ao governador de Mato Grosso para “mandar até a cachoeira Grande, a descobrir alguma notícia dos seus movimentos, sem
que eles de nenhum modo possam vir no conhecimento desse projeto” (APMT, Fundo Governadoria, 1761, doc. n. 84). Contudo, as relações comerciais no norte eram mantidas não só com os espanhóis do
Orinoco, mas também com os franceses de Caiena. Para animar ainda
mais esse comércio, o plano propunha a criação de novos estabelecimentos, como as feitorias. Estava expresso na instrução até o roteiro
de navegação e, portanto, a localização das feitorias, que deveriam estar dispostas no caminho da Vila de Barcelos até Vila Bela (PR – AHU/
PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919).
A duração das viagens e o elevado preço decorrente das dificuldades de transporte, que atingiam os escravos africanos e gêneros secos e molhados em Mato Grosso vindos tanto do Pará quanto do Rio
de Janeiro e da Bahia, impulsionaram a criação destas instruções. Outro motivador foram as relações comerciais mantidas com os vizinhos
hispânicos que compravam os mais variados gêneros comercializa142
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
dos na Capitania de Mato Grosso, permitindo-se a entrada de prata
em domínios portugueses. Essas mercadorias chegavam aos espanhóis
pelos caminhos de terra, considerados mais árduos que aqueles percorridos até o Rio de Janeiro e a Bahia. O comércio com o Pará, de
acordo com essas ordens, deveria assumir papel principal na distribuição de mercadorias para as referidas regiões, suplantando inclusive outras praças mercantis:
Para que isto assim se efetue é necessário que o novo comércio seja dirigido com uma prudência tal, e tão bem regulada, que inteiramente desterre o abuso dos excessivos preços, a que até agora se venderam os negros
e as ditas fazendas que vêm do Rio de Janeiro e da Bahia: é necessário que
a relação delas não [ilegível] de exemplo, mas tão somente de argumento,
para se concluir dela o meio que ministra para o comércio do Pará suplantar todos os comércios que até agora houve é necessário que se degrade toda a idéia de cobiça insaciável, entendendo-se por uma parte que o
barateamento das mercadorias do Pará há de ser a espada aguda com que
se cortem todos os referidos comércios, que até agora se fizeram; e entendendo-se pela outra parte, que quanto mais baratos chegarem os gêneros
ao Mato Grosso, tanto mais se propagará e dilatará a introdução deles por
todas as regiões vizinhas, para se virem a colher na maior extensão dos
consumos os avultados lucros, que não permitem as pequenas quantidades vendidas. (PR – AHU/PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919).
Estas ordens foram enviadas em 1772, e, depois de passados
dezessete anos da instituição da Companhia, os mesmos problemas
ainda vigoravam, apesar do comércio com o Pará ter se solidificado,
mesmo que para isso pesasse a mão do Estado. Aos “mercadores
d’água”, assim referidos na secreta instrução, cabia se dirigirem ao Pará
instruídos de que as vendas dos produtos, acrescentando-se os preços
de transportes pelos rios, não excedessem os lucros em 12% (PR – AHU/
PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Portanto, nisso consistia a “espada que cortaria todos os outros comércios”.
Davidson menciona que, em 1773, Pombal ordenou a João Pereira Caldas que remetesse em cada monção com destino a Mato Grosso
uma lista exata de produtos e seus preços, para permitir que Luiz de
Albuquerque ajustasse a margem de lucro em não mais que 12%. Pereira Caldas cumpriu as ordens e mandou listas paras os carregamentos de 1774 e 1775 (DAVIDSON, 1970, p. 170). Essas atitudes foram
os primeiros reflexos da Instrução Secretíssima de 1772. Com base
nas ordens que recebeu, Luiz de Albuquerque baixou uma portaria em
143
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
1775 fixando o preço dos produtos vendidos na capitania. Alegava o
capitão-general que os exorbitantes preços dificultavam a manutenção das pessoas comuns, impossibilitando que adquirissem os gêneros mais necessários ao seu sustento (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc.
n. 1093).
Luiz de Albuquerque argumentava também que essa ordem diminuiria a dívida que se prolongava por anos da maior parte das pessoas que compravam fiado dos comerciantes. Devidamente informado sobre os custos das fazendas secas e molhadas nos portos do Pará,
Bahia e Rio de Janeiro, o governador estabeleceu a pauta de preços.
Essa prática de se vender a crédito propiciava que as mercadorias alcançassem, com o passar do tempo, valor altíssimo, questão que em
muito preocupava Luiz de Albuquerque, em especial o que chegava a
custar os escravos. Sendo assim, foi estabelecido que as vendas a crédito só se realizariam por tempo determinado, cujo débito não ultrapassasse um ano, limitando os juros em 5% anualmente sobre o valor
da venda a crédito (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc. n. 1093).
Assim como seus antecessores, Luiz de Albuquerque reconhecia que a ordem que executava se dava em benefício das três bases que
sustentavam o Estado: “o comércio, a agricultura e a população”, segundo suas próprias palavras. A severa portaria previa ainda, para os
comerciantes que não respeitassem a taxação dos preços, a prisão em
cadeia por dois meses, multa e o confisco das fazendas vendidas, que
seriam utilizadas em benefício do governo, conforme se achasse conveniente (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc. n. 1093).
Os Anais de Vila Bela registraram para o ano de 1776 nova decisão do Marquês de Pombal em relação à Companhia de Comércio.
Dessa vez, a Companhia faria o abastecimento diretamente pelos seus
administradores:
No princípio do presente ano de 1776 se esperava uma grande revolução
no comércio desta capitania, porque vulgarmente se daria que a Companhia Geral do Pará introduziria aqui, diretamente por seus administradores, todos os gêneros de que a costumam fornecer os comerciantes particulares. Mas, pareceu ficarem desvanecidos os fundamentos da presunção, por entrarem nesta vila, a 28 do mês de janeiro e em fevereiro, oito
comerciantes providos com toda a abundância dos gêneros costumados
pelos administradores da mesma companhia na cidade do Pará (AMADO; ANZAI, 2006, p. 203).
144
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Em janeiro de 1777, Luiz de Albuquerque comunicava o Marquês
de Pombal sobre a escassez do comércio com o Grão-Pará em decorrência da execução das ordens reais que regularam as tarifas de bens
no ano de 1775. A situação estava cada vez mais complicada, uma vez
que os comerciantes relutavam em descer ao Pará para continuar os
negócios com a Companhia. Sugeriu Luiz de Albuquerque que, para
dar prosseguimento ao plano de comércio, era primordial que a Companhia assumisse o mais rápido possível a condução das “provisões
ordinárias do mesmo comércio, na proporção e consumo deste país”,
estabelecendo feitores para administrar as fazendas nas feitorias que
seriam erguidas. Caso não se procedesse desta maneira, argumentava
o governador, em pouco tempo faltariam produtos essenciais na capitania e informava que os armazéns da Fortaleza da Conceição já estavam prontos para “logo terem exercício os dois administradores” (PR
– AHU/MT, 1777, cx. 18, doc. n. 1143). Ainda em 1777, Luiz de Albuquerque reclamava da má qualidade dos gêneros disponíveis na capitania, que não animavam o comércio com os vizinhos hispânicos (PR
– AHU/MT, 1777, cx. 18, doc. n. 1145). No entanto, em 1777 ainda
havia expectativas em relação à atuação direta da Companhia do Pará
na Capitania de Mato Grosso. O registro apresentado pelo vereador
Francisco de Paula Correa informava:
Agora se fez público que, com efeito, intentará a Companhia Geral introduzir aqui, imediatamente, o comércio, para o que se esperavam as divididas carregações que unicamente faltavam. É certo, porém, que arruinava a Capitania, pois que ela tem sido povoada, na maior parte, pelos
homens de negócios, e os mesmos mineiros atuais o tinham sido antecedentemente. Não havendo comerciantes, esta Vila viria a ser uma povoação de negros e mulatos, sendo igualmente certo que a mesma Companhia contraísse muitas dívidas, pois que, de ordinário se vende fiado, do
que se faz uma grande parte incobrável e falida (AMADO; ANZAI, 2006,
p. 213).
Esse registro expressa, além dos intentos da empresa, a importância que havia assumido o grupo mercantil na Capitania de Mato
Grosso. Os comerciantes, ao se sentirem lesados com a possível presença da Companhia para realizar negociações diretas, direcionaram
seus capitais à mineração. Durante o período em que vigorou a taxação
dos preços de produtos a partir do bando de 1775, parte dos comerciantes havia aplicado seu capital em outras atividades, em razão dos lucros que julgavam diminutos nos negócios com a Companhia.
145
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
Entretanto, em dezembro de 1777, por ordem régia, revogava-se
a pauta que havia estabelecido o preço dos gêneros na capitania em
1775, ficando “sem efeito algum, livre aos comerciantes, a convenção
de preços, como em todas as praças dos negócios” (AMADO; ANZAI,
2006, p. 213). Não sendo mais necessário o fornecimento direto de
gêneros pela companhia, Luiz de Albuquerque se aproximou dos comerciantes da Capitania de Mato Grosso tentando convencê-los a retomar o comércio e dirigirem-se aos portos marítimos, obtendo êxito
nesse propósito:
Intimei, persuadi, e capacitei com grande eficácia a todos estes povos e
negociantes, de que lhes ficava sendo perfeitamente livre todo o gênero de
comércio, grande ou pequeno, ativo ou passivo, que desejassem fazer, assim de umas para outras capitanias, como daqui para qualquer dos portos
do Brasil (PR – AHU/MT, 1777, cx. 19, doc. n. 1177).
Durante o período em que vigorou o “plano de comércio”, o contrabando com os espanhóis foi promovido ainda mais. Esse “contrabando oficial”, permitido e reforçado pelas ordens reais, continuou
sendo prática corrente controlada pelo governador. Em 1778, Luiz de
Albuquerque informava a Martinho de Melo e Castro sua dúvida em
relação ao comércio clandestino com os espanhóis. Luiz de Albuquerque não sabia se deveria continuar ou parar com as transações mercantis clandestinas após o cancelamento do “plano de comércio” secretíssimo; informava também que, enquanto não obtivesse resposta,
continuaria a “favorecer sempre o dito comércio clandestino, ainda
que não supõe umas tão expressas, tão vivas e árduas diligências como
as que prescreviam o referido plano hoje suprimido” (PR – AHU/MT,
1778, cx. 19, doc. n. 1183). Os castelhanos tinham especial interesse
por escravos negros e, ávidos por adquiri-los, negavam-se a qualquer
outro “gênero de tráfico considerável”, e o capitão-general tinha dúvidas se deveria fornecê-los.
A ordem que dissolveu a Companhia de Comércio, em janeiro
de 1778, veio de D. Maria I, em razão das muitas críticas sofridas principalmente pelos opositores de Pombal, resultado também dos problemas gerados com a execução do plano de comércio. As preocupações
do novo governo centravam-se na definição do destino que dariam às
companhias de comércio criadas durante a administração pombalina.
Não obstante a defesa dos dirigentes da Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão, que argumentavam sobre os êxitos alcançados
146
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
por esta na diminuição da dependência do comércio britânico, a empresa monopolista foi extinta (MAXWELL, 1996, p. 94).
No ano de 1779, chegou um correio do Pará informando ao governador que, por ordem real, deveria convocar uma junta que determinasse o tempo necessário para que os comerciantes da Capitania de
Mato Grosso pagassem suas dívidas à Companhia do Comércio do
Pará, que se achava extinta. A junta foi composta por Luiz de Albuquerque, Felipe José Nogueira Coelho, Manoel Cardoso da Cunha e
Antônio Felipe da Cunha Ponte.
Os sobreditos devedores pagariam, a semestres, apenas dívidas de vulto,
de dois, três, quatro e seis anos, atendendo a maior e menor quantia. Que
os mesmos semestres se pagarão em barras de ouro, na Provedoria da
Fazenda, para do seu cofre serem remetidos, por conta e risco dos mesmos devedores, na forma de suas obrigações, que eles usarão da mesma
moratória com quem lhes devessem, passando crédito da quantia de cem
oitavas, e não havendo perigo na arrecadação. E que, finalmente, enquanto não completassem os seus pagamentos, não fariam comércio algum,
interior e exterior (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219).
Nos dois anos seguintes, remessas de pagamentos das dívidas
dos comerciantes saíram de Vila Bela em direção ao Pará com certa
regularidade7. Se considerarmos que a extinta companhia continuou
sendo fornecedora de produtos, é possível que não fosse vantajoso
dever a ela. A extinção da companhia, segundo Maxwell, foi um triunfo do velho grupo de comerciantes livres, do velho sistema e dos devedores brasileiros das companhias, porém isso não afetou por completo o privilegiado grupo de comerciantes ricos que surgiram e se
fortaleceram durante o governo pombalino. Para Maxwell, “os colaboradores de Pombal estavam por demais incrustados na estrutura social e associados à arrecadação de tributos e às repartições públicas,
para desaparecerem com a simples abolição de privilégios das companhias brasileiras” (1996, p. 95).
Em Mato Grosso, tornava-se livre o comércio com o Pará, mas a
extinta companhia assegurou remessas de mercadorias durante a década de 1780, convencendo os comerciantes de que seus armazéns
7
Os Anais de Vila Bela registram para os anos de 1779 remessa correspondente ao primeiro
semestre das dívidas dos comerciantes no valor de 18:478$431 réis, e, no ano de 1780, o valor
correspondente ao segundo semestre dos devedores foi de 12:619$309 réis (AMADO & ANZAI, 2006, p. 220-223).
147
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
estavam cheios de produtos. Apesar de ser um número pouco expressivo, Davidson estimou que, entre 1780 e 1788, apenas nove expedições de comércio saíram de Belém em direção a Vila Bela, isto é, apenas a metade do número de comboios que fizeram o mesmo percurso
entre 1769 e 1778 (DAVIDSON, 1970, p. 190). Provavelmente, a diminuição de monções deveu-se à pauta de preços estabelecida em 1775.
Quatro anos após a referida pauta, em 1779, a câmara dos vereadores
havia registrado a “diminuição da entrada das monções”, que provocou
menor entrada de dinheiro e aumento de despesas, dificultando a realização total dos pagamentos, situação que já se mantinha há cerca de três
anos (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1779, doc. n. 105).
Contudo, o declínio do comércio com a Companhia de Comércio entre 1788 e 1808 coincide com a perda de importância estratégica e econômica do Madeira e quando se acentuaram os problemas
relativos ao transporte e à mão-de-obra indígena necessária às viagens. Aos poucos, o comércio com o Pará perdia espaço para aquele
realizado com os portos costeiros do Rio de Janeiro e de São Paulo
(DAVIDSON, 1970, p. 204).
Os homens de negócio de Vila Bela
Era comum encontrar na capitania três tipos principais responsáveis pelo desempenho das atividades econômicas mais importantes na sociedade colonial: o lavrador, o mineiro e o comerciante. Ao
tratar do comerciante, é preciso destacar o caráter versátil de suas atividades econômicas, pois encontramos aqueles que se dedicavam,
concomitantemente, à agricultura, à mineração e ainda às atividades
administrativas, não se podendo falar em poder local, defesa e economia, sem considerar sua presença.
Durante nossa investigação, listamos 57 comerciantes devedores da Companhia do Grão-Pará e Maranhão nos anos de 1774 e 1778
(APMT, Fundo Governadoria, 1774, doc. n. 02; APMT, Fundo Fazenda,
1778, doc. n. 33), dos quais obtivemos algumas informações sobre 30
deles; do restante, sabemos apenas que deviam à Companhia do GrãoPará. Desses 30 homens, 18 possuíam duas coisas em comum: o fato
de se dedicarem ao comércio do Pará e de terem exercido em algum
momento funções administrativas na Câmara de Vila Bela da Santíssima Trindade. Em determinada época, outros comerciantes também partilharam de experiências comuns, ao se dedicarem a outras atividades
148
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
econômicas, seja como donos de engenhos ou de propriedades agropastoris, seja como possuidores de minas auríferas ou ainda por terem
feito parte das companhias militares da vila-capital almejando aumentar suas patentes e obter privilégios. Porém, daremos destaque a apenas
alguns desse comerciantes neste texto.
Essa tendência à diversificação de atividades econômicas, sabemos, não é prerrogativa da Capitania de Mato Grosso; entretanto, consideramos que, assim como ocorria em Minas Gerais, o enriquecimento, por exemplo, não se dava somente pela mineração, mas também
pelo comércio e pela agricultura ou por uma junção dessas atividades,
situação esta que também pode ser percebida na Capitania de Mato
Grosso, apesar de suas particularidades. Deste modo, destacamos alguns aspectos socioeconômicos dos comerciantes que nos levaram a
concluir que alguns deles fossem efetivamente ricos, baseados no modo
pelo qual ampliavam seus negócios ou ainda pelo modo como sustentavam sua posição de “principais da terra” através do assento nas câmaras, aspecto presente em todo império ultramarino português.
Os comerciantes envolvidos na Carreira do Pará ocuparam cargos militares com patentes que variavam de soldado a sargento-mor,
dos dragões às ordenanças, como Antônio da Cruz Leitão; Antônio
Gonçalves dos Santos; Francisco Pedro de Melo; Francisco Pinheiro
da Costa; Hilário Antônio de Almeida Pessoa; José Adão; José Antônio Gonçalves Prego; José Vieira Passos; Manoel Pedro (PR – AHU/
MT, 1765, cx. 12, doc. n. 739). Durante o governo de Luís Pinto de
Souza Coutinho, foi permitido aos militares, mesmo os de baixas patentes, aplicar no comércio o ouro que possuíssem, sendo-lhes concedida também dispensa para poderem se dedicar exclusivamente à atividade mercantil. Aos mais abastados, a ocupação dos altos cargos
militares significava a possibilidade de alcançar honrarias, títulos e
mercês.
Comerciante e devedor da Companhia, José Antônio Gonçalves
Prego também era militar e, em 1776, foi procurador da coroa em Vila
Bela (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1776, doc. n. 70).
No ano de 1803, requereu à coroa a confirmação de sua patente no
posto de sargento-mor do Terço das Ordenanças de Vila Bela, um dos
postos mais altos dessa companhia militar. A 16 de dezembro de 1821,
foi eleito procurador junto à Assembléia da Corte pelo distrito de Vila
Bela, mesmo estando em Lisboa (SILVA, 2005, p. 198-199).
149
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
Em 1765, também Manoel da Silva Barata fazia parte do corpo
de soldados da Companhia de Ordenanças de Vila Bela, e até 1778
ainda era membro dela, quando almejou um posto mais alto e ficou em
terceiro lugar na eleição para ocupar o posto de Capitão das Ordenanças
em Vila Bela, em substituição a Francisco Aranha de Godoy que se dirigiu ao Reino (APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1778, doc. n.
95). Apesar de não sabermos se ele conseguiu ou não o posto, Manoel da
Silva Barata também ocupou lugar como oficial da Câmara de Vila Bela.
Dentro do quadro dos oficiais da câmara estavam juízes, vereadores, procuradores, escrivães e tesoureiros, e quase todos eram eleitos. Havia também outros cargos inferiores que dependiam de nomeações ou provisões, como os de escrivão da almotaçaria, alcaide, quadrilheiros e carcereiros. Faziam parte também do oficialato da câmara
os tabeliães notários e do judicial, distribuidores, contadores, inquiridores e outros mais especializados, como escrivão dos órfãos (CANAVARROS, 2004, p. 119-120). Alberto Nunes de Freitas, Alexandre
Henriques, Dionizio Leite Ribeiro, Joaquim Geraldo Tavares, Manoel
da Silva Barata e Marcelino Ribeiro atuaram como oficiais da câmara
entre 1770 e 1780, exercendo diferentes funções, que foram de escrivão a juiz ordinário.
A vida desses homens não estava circunscrita a uma única participação na Câmara; desde que lhes fosse permitido, almejavam postos superiores na governança. Alberto Nunes de Freitas, nas eleições
de 1778 ficou em segundo lugar para ocupar o cargo de almoxarife do
Real Armazém de Vila Bela (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila
Bela, 1778, doc. n. 85), mas nesse mesmo ano conseguiu ser eleito para
o posto de fiscal da Casa de Fundição (APMT. Fundo Senado da Câmara
de Vila Bela, 1778, doc. n. 89); entretanto, sua participação na governança local nos anos seguintes saltou de escrivão para a vereança, e
culminou com sua eleição para juiz ordinário nos anos de 1786 e 1788
(SILVA, 2005, p. 103). Outro juiz ordinário foi Antônio Leite Guimarães, eleito em 1789 (AMADO; ANZAI, 2006, p. 287), que também havia sido vereador de Vila Bela em 1787 (AMADO; ANZAI, 2006, p. 265).
Dentre os comerciantes que se destacaram no cargo de vereador,
constam Alberto Nunes de Freitas, Antônio Caetano Bragança, Antônio Leite Guimarães, Jerônimo Martins Fernandes, Joaquim da Fonseca Freitas, Joaquim Geraldo Tavares, Manoel da Silva Barata, Manoel
José de Azevedo e Marcelino Ribeiro. Aos vereadores da câmara, cabia
elaborar os “códigos de posturas” e zelar por seu cumprimento, exer150
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
cendo, portanto, o papel de “legisladores e administradores das questões relacionadas ao bem-comum do concelho” (CANAVARROS, 2004,
p. 117).
Dos proprietários de terras, temos Joaquim Geraldo Tavares, José
Caetano da Fonseca, Alexandre Henriques e Manoel da Silva Barata.
Joaquim Geraldo Tavares era proprietário de terra na Vila Real e foi
requerente de sesmaria8 na região do Rio Manso e do Rio da Casca
(APMT, Fundo Sesmaria, 1789, doc. n. 247). Fez parte da câmara da
vila-capital em 1783. Segundo Paulo Pitaluga Costa e Silva, no ano de
1780 Joaquim Geraldo Tavares exercia a função de escrivão da ouvidoria e solicitou, no dia 31 de janeiro desse ano, sua nomeação para
outro cargo em Goiás, não sendo atendido. Em 1796, era segundo vereador no Senado da Câmara de Cuiabá, onde redigiu os registros para
o ano de 1796 (SILVA, 2005, p. 245). É provável que Joaquim Geraldo
Tavares residisse na Vila Real e de lá mantivesse negócios na carreira
do Pará, de quem era devedor, em 1778, de 487$835 réis (APMT, Fundo Fazenda, 1778, doc. n. 33).
Alexandre Henriques era dono de engenho e foi requerente de
terras na região do Rio Barbado (1/2 légua) (APMT, Fundo Sesmaria,
1782, doc. n. 155). Atuava na Câmara de Vila Bela em 1780, como
provedor tesoureiro, recebendo para os cofres das câmaras quantias
relativas aos contratos de arrematação, aferição e outros. Em outubro
de 1780, Alexandre Henriques pagava à Câmara os subsídios de seus
engenhos.
Manoel da Silva Barata, além de vereador, comerciante e militar,
era dono de mineração e de propriedades agrícolas. Requereu sesmarias na região do Rio Alegre (1 légua) e Paragem do Porto Velho – Rio
Guaporé (3/4 légua) destinadas à agricultura (APMT, Fundo Sesmaria,1776, doc. n. 90). Manoel da Silva Barata abarcou todas as frentes
que pôde para ampliar seus negócios e seu lucro. Segundo Paulo Pitaluga Costa e Silva, este comerciante fazia a rota do Pará e distribuía
mercadorias para o comércio em Vila Bela e em Cuiabá. Em 1783, já
morando em Cuiabá, teve a sua casa arbitrariamente invadida pelo
tesoureiro da Provedoria dos Defuntos e Ausentes de Cuiabá, João de
Souza Pinto, para cobrança de dívida e, por isso relatou este fato ao
8
Para mais informações sobre concessão de sesmarias na Capitania de Mato Grosso ver: SILVA,
2008.
151
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
ouvidor-geral da capitania requerendo providência (SILVA, 2005, p.
38). João de Souza Pinto foi processado pela invasão.
Evidentemente que para o desempenho de suas atividades agrícolas era imprescindível que possuíssem um considerável número de
escravos, e da mesma maneira isso se dava em relação aos serviços da
mineração. Se considerarmos que cada engenho contava, em média,
com a quantia de 20 a 30 escravos (PR – AHU/MT, MF, 14, doc. n. 176),
são poucos os que se dedicavam a esta atividade. Segundo Masília
Gomes, era comum as terras compreenderem os dois setores de produção:
A unidade produtiva escravista, ou seja, sítios ou fazendas cujo caráter
do processo de produção seguia o modelo escravista eram, geralmente,
propriedades extensas, que contavam com um grande número de escravos para o trabalho. Em áreas de mineração, como no Mato Grosso, a
maioria dessas unidades compreendia os dois setores, minerador e agrário, sendo, portanto, as responsáveis pela produção de boa parcela dos
excedentes voltados para o atendimento das demandas geradas pelo mercado intra-capitania (GOMES, 2008, p. 51).
Alguns comerciantes, já no findar do Setecentos ocuparam lugar na Câmara de Vila Real do Cuiabá, como foi o caso de Marcelino
Ribeiro, que no ano de 1796 foi mencionado nos Anais do Cuiabá como
o “vereador mais velho” da câmara (MORGADO et al., 2007, p. 151), e
com a morte do capitão-general João de Albuquerque fez parte da Junta Governativa assumindo o governo da capitania juntamente com o
ouvidor-geral Antonio da Silva do Amaral e o tenente-coronel de engenheiros Ricardo Franco de Almeida Serra (SILVA, 2005, p. 207). Marcelino Ribeiro havia sido escrivão das forjas em 1776 (APMT, Fundo
Senado da Câmara de Vila Bela, 1776, doc. n. 70), e fez parte da Câmara de Vereadores de Vila Bela em 1781 e 1782 (JESUS, 2006, p. 430).
O comerciante Antônio Caetano Bragança era proprietário de um
dos imóveis mais ricos de Vila Bela. A sua casa foi destruída pela
enchente do Guaporé, no ano de 1784 (JESUS, 2006, p. 245). Em comparação com os demais habitantes da vila, que não possuíam condições de habitar casas confortáveis ou de se vestir com os tecidos mais
finos e de se alimentar com os alimentos mais caros, esse privilegiado
grupo sempre aparecerá no topo da hierarquia social, e seus membros
estavam aptos a exercerem funções administrativas a serviço da coroa
portuguesa.
152
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Segundo Almeida, as solicitações mais freqüentes de mercês e
graças em Minas Gerais referiam-se à confirmação de carta de sesmaria, confirmação de patente militar, pedido de provimento em cargos
públicos, pedidos de licença para passarem ao Reino, e até mesmo
solicitações para que fizessem valer os privilégios cabíveis a seus postos. Os homens mais ricos solicitavam permissão para ingressar no
Hábito da Ordem de Cristo (ALMEIDA, 2005, p. 374). Os pedidos de
mercês e privilégios para os “homens bons” da Capitania de Mato Grosso eram semelhantes aos de Minas Gerais. Entretanto, raros foram os
casos que encontramos de comerciantes que solicitaram a mercê do
Hábito da Ordem de Cristo. O único que parece ter adquirido tal graça
foi João de Souza Azevedo, um dos primeiros comerciantes a realizar
negócios com o Pará e considerado pelo capitão-general D. Antônio
Rolim de Moura um dos melhores sertanistas daqueles tempos.
A participação desses “homens bons” nas câmaras, além das possibilidades de obtenção de privilégios e mercês, acesso a títulos nobiliárquicos e ascensão política e social, significou também que, ao ocuparem lugar na câmara, interesses pessoais poderiam estar envolvidos, principalmente os de ordem econômica, em especial por se tratar
de um canal de negociação entre os poderes local e central.
Os comerciantes foram aos poucos ocupando lugar e posição
privilegiada na vila capital, e consideramos que os negócios realizados com a Companhia do Pará foi uma alternativa para obterem lucros. Evidentemente que neste percurso esses comerciantes vão trilhando caminhos diferenciados, diversificando seus empreendimentos, tentando sobreviver motivados pelas mais diversas razões. Até
1778, ainda eram devedores da extinta companhia e ainda pela década
de 1780, os mais proeminentes continuaram envolvidos nas malhas
administrativas do poder local, sendo possível perceber que alguns
não abandonaram os negócios com o Pará e com a própria companhia.
153
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
Referências
1 Documentos manuscritos
Arquivo Casa Barão de Melgaço – ACBM
ACBM. Acesso Pasta 95, doc. n. 1459. Bando de Luís Pinto de Souza Coutinho
publicado em 18/set/1769.
Arquivo Público do Estado de Mato Grosso - APMT
APMT. Lata 1756 A, Fundo Governadoria, doc. n. 62, Belém, 19/fev/1756.
Correspondência de Diogo de Mendonça Corte Real a D. Antônio Rolim de
Moura.
APMT. Lata 1765-1768, Fundo Governadoria, doc. n 84, Barcelos, 10/fev/1761.
Correspondência de Gabriel de Souza a D. Antônio Rolim de Moura.
APMT. Lata 1765-1768, Fundo Fazenda, doc. n. 119. Pará, 18/fev/1768. Resumo
do que deve a Provedoria da Capitania de Mato Grosso com a Companhia Geral
de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em 1761, 1764, 1765 até 1768.
APMT. Lata 1769, Fundo Governadoria, doc. n. 208, Pará, 4/jun/1769.
Correspondência de Gonçalo Pereira França a Luís Pinto de Souza Coutinho.
APMT. Lata 1774, Fundo Fazenda, doc. n. 33, Vila Bela, 12/maio/1774.
Correspondência de Miguel Pinto Teixeira a Luiz de Albuquerque de Mello
Pereira e Cáceres.
APMT. Lata 1774, Fundo Governadoria, doc. n. 02, Pará, 18/jun/1774.
Correspondência de Gonçalo Pereira de França e Antônio Coutinho de Almeida
a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres em que consta relação de
vários devedores da Companhia Geral do Pará que se acham em Vila Bela de
Mato Grosso.
APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 70, Vila Bela, 14/set/
1776. Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Jerônimo Martins
Fernandes, Francisco de Bastos Ferreira, José da Silva e Francisco Botelho a
Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 85, Vila Bela, 4/jan/1778.
Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Antônio José da Costa e
Nóbrega, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Marcelino Ribeiro a Luiz de
Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 89, Vila Bela, 10/jun/
1778. Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Manoel de Oliveira
Pombal, José da Silva, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Marcelino Ribeiro a
Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
154
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
APMT. Lata 1778, Fundo Fazenda, doc. n. 33, Pará, 20/set/1778. Correspondência
de Antônio Coutinho de Almeida e Manoel José da Cunha a Luiz de Albuquerque
de Mello Pereira e Cáceres em que consta relação das várias pessoas assistentes
em Vila Bela de Mato Grosso que são devedoras da Companhia Geral do Pará.
APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 95, Vila Bela, 27/out/
1778. Ata assinada em Câmara pelo Capitão-mor Antônio Soares Lima, João de
Souza Pinto, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Antônio Caetano Bragança a
Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 105, Vila Bela, 15/set/
1779. Ata assinada em Câmara por Felisberto Leite Pereira, Manoel de Oliveira
Pombal, Alberto Nunes de Freitas, Joaquim da Fonseca Freitas e Antônio Teixeira
de Oliveira a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Sesmaria, 1782, doc. n. 155. Requerimento de Alexandre
Henriques a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Sesmaria, 1776, doc. n. 090. Requerimento de Manoel da Silva
Barata a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
APMT. Fundo Sesmaria, 1789, doc. n. 247. Requerimento de Joaquim Geraldo
Tavares a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
Projeto Resgate - PR
PR – AHU/MT. Vila Bela, 25/jan/1754, cx. 07, doc. n. 438. Carta de Rolim de
Moura ao rei D. José.
PR – AHU/MT. Grão-Pará, 20/fev/1754, cx. 07, doc. n. 444.Correspondência de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei D. José.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 15/fev/1765, cx. 12, doc. n. 739. Carta de João Pedro
da Câmara a Francisco Xavier de Mendonça Furtado na qual envia relações e o
estado de forças da capitania.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 20/jan/1769, cx. 13, doc. n. 829. Ofício de Luís Pinto
de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
PR – AHU/PA. Pará, 10/mar/1769, cd 07 (pasta 071/001/031), cx. 64, doc. n.
5527. Ofício do Provedor da Fazenda Real do Pará Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio para Sebastião José de Carvalho e Melo.
PR – AHU/MT. Forte Bragança, 29/abr/1770, cx. 15, doc. 893. Correspondência
de Luís Pinto de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
PR – AHU/PA. Pará, 16/dez/1772, cd 07 (pasta 077/001/064), cx. 69, doc. n.
5919. Ofício de João Pereira Caldas a Martinho de Mello e Castro.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 28/jan/1775, cx. 17, doc. n. 1093. Portaria do
governador e capitão general Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres
fixando o preço em ouro dos produtos secos e molhados.
155
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues
PR – AHU/MT. Vila Bela, 10/jan/1777, cx. 18, doc. n. 1143. Ofício de Luiz de
Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres ao Marques de Pombal.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 4/jan/1777, cx. 18, doc. n. 1145. Ofício de Luiz de
Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres ao Marquês de Pombal.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 23/dez/1777, cx. 19, doc. 1177. Ofício de Luiz de
Albuquerque de Mello Pereira a Martinho de Melo e Castro.
PR – AHU/MT. Vila Bela, 9/jan/1778, cx. 19, doc. n. 1183. Correspondência de
Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a Martinho de Melo e Castro.
Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional - NDIHR
NDIHR – AHU/MT. Nossa Senhora da Conceição, 14/dez/1765, Microfilme Rolo
12, cx. 13, doc. n. 763. Ofício de João Pedro da Câmara para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado.
NDIHR – AHU/MT. Nossa Senhora da Conceição, 14/dez/1765, Rolo 12, cx. 13,
doc. n. 763. Ofício de João Pedro da Câmara para Francisco Xavier de Mendonça
Furtado.
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MORGADO, Eliane Maria Oliveira; DOURADO, Nileide Souza; CANAVARROS,
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156
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
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Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal de Mato Grosso,
Cuiabá.
157
Converter índios, animalia Dei, em homens,
cristãos e súditos civilizados
João Ivo Puhl
Analisamos imagens dos índios e da missão no relato do Pe.
Julián Knogler (1769) sobre a conversão na Chiquitania. Documento
da prática de escrita jesuítica que explicita a perspectiva cultural eurocêntrica, destaca a vida dos nativos na selva, nos montes e chacos
como selvagens, bárbaros, mais feras que homens. Na expressão “vivem nos montes”, em épocas diferentes se veiculam vários sentidos
como: hábitat natural, lugar geográfico, lugar sagrado da memória tradicional, terra da promessa messiânica, etc. Em oposição, a vida na
redução significava experiências distintas para missionários e índios
reduzidos (catecúmenos e neófitos), gentios e apóstatas ou infiéis. A
redução tornou-se território da civilização cristã européia e de um
cristianismo indígena na fronteira dos impérios coloniais ibéricos nas
Américas.
Neste texto, analisamos o relato do Pe. Julián Knogler (1769),
escrito depois da expulsão dos jesuítas das colônias espanholas nas
Américas, como indica o editor Werner Hoffmann (1979). Porém, num
documentário em vídeo da APCOB, dirigido por Jurgen Riester (1997),
tem-se a impressão de que o mesmo tenha sido manuscrito poucos
meses antes da expulsão na própria redução de Santa Ana de ChiquiJoão Ivo Puhl é professor efetivo de História da América no Campus Universitário Jane Vanini,
de Cáceres – Universidade do Estado de Mato Grosso. Mestre em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso é membro fundador e primeiro coordenador do NECALCA – Núcleo de
Estudos Científicos da América Latina e Caribe, da UNEMAT. Desde agosto de 2007, é doutorando
em História na UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo-RS. É
bolsista FAPEMAT.
Este texto é o resultado de análises parciais apresentadas no I Congresso Internacional Chiquitano realizado em San Ignácio de Velasco – Bolívia, entre os dias 23-25 de maio de 2008 e nas XII
Jornadas das Missões Jesuíticas do Rio da Prata, que aconteceram em Buenos Aires – Argentina,
entre 24 e 26 de setembro de 2008. A versão foi complementada com novas leituras, sugestões
e críticas de participantes destes eventos e de amigos leitores.
158
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tos onde o autor trabalhou. Tomichá (2002), em nota, explica que o
texto publicado por Hoffmann (1979) foi originalmente transcrito ao
alemão por Riester (1970), dando a entender que se trata do mesmo
escrito apenas traduzido ao espanhol.
Knogler nasceu na Baviera, Alemanha, em 1717, e chegou a Chiquitania em 1740. Saiu das reduções com os demais companheiros da
Companhia, expulsos em 1767, tendo permanecido 27 anos nas missões. Tomichá (2002, p. 292, nota 158) fala que este missionário desenvolveu suas atividades em Santa Ana entre 1762-1767, a penúltima redução chiquitana fundada por ele mesmo em 1755. Portanto,
nos seus últimos anos nas reduções, esteve ligado àquela comunidade multiétnica composta por índios chiquitos, tabicas ou basorocas e
outras etnias como Xarayes (os zarabecas), Curuminas (os curuminacas), Ecobares (os ecorabecas) e nos últimos oito meses de sua permanência foram associados um expressivo número de guanás e alguns
guaicurus para iniciar a sua redução, pois eram povos muito numerosos no Chaco.
Estes dados indicam a situação de conflito e tensão em que vivia
aquela comunidade, acossada por colonos espanhóis e portugueses e
reunidos recente e precariamente numa comunidade de vida culturalmente tão diversificada.
Este relato foi o mais explorado nesta análise. Ele o escreveu na
Alemanha em 1769, intitulado: Relato sobre el país y la nación de los
Chiquitos en las Indias Occidentales América del Sud y las misiones
en su territorio, redactado para un amigo. Trata-se de um relato sintético de diversos aspectos da vida dos nativos, que representa antecedentes à conquista, os processos de contatos e conquista pelas “caçadas espirituais”, o funcionamento das reduções e os trabalhos dos
missionários. Os aprendizados dos índios e suas resistências foram
contados a um amigo do missionário num gênero de literatura edificante para estimular o destinatário ou o possível leitor a favor da empreitada missionária e civilizatória.
Este e outros relatos são representativos de uma prática de escrita jesuítica, mas também significativos das ideologias religiosas e
políticas dominantes e compartilhadas naquele tempo. Explicitam a
forma de olhar, perceber, representar e intervir na realidade a partir
do ponto de vista eurocêntrico do branco, cristão e civilizado que se
considerava superior a qualquer outra manifestação humana com a
159
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
qual se defrontava no processo de conquista e expansão colonial. A
conquista militar e política das Américas se complementava com a
conquista cultural e espiritual dos povos nativos, genérica e equivocadamente denominados índios.
Na conquista colonial etnocêntrica, os missionários construíam a
civilização cristianizando as gentes destes territórios, inserindo-as na
cristandade européia. Muitas vezes os instrumentos da conquista e os
funcionários coloniais cumpriam funções complementares na pacificação e submissão de populações nativas resistentes ou rebeldes, e com
elas asseguravam a defesa de territórios fronteiriços com o império colonial português na América do Sul e com os ingleses no Norte.
As questões fundamentais que tentamos responder a partir dos
relatos foram: Como viviam os nativos antes dos contatos dos conquistadores e colonizadores na representação do missionário? Por que
despender esforços para evangelizar “animais de Deus”, que viviam
nas selvas e “montes”? Como cristianizar e civilizar estes selvagens e
bárbaros? Que significava a redução para missionários e índios?
Cristianizar e civilizar índios significava reduzir gente que vivia em liberdade a uma vida sedentária, disciplinada e controlada por
uma lógica eurocêntrica. Tematizamos as respostas a estas questões
em três eixos fundamentais: a vida nos montes e os significados do
viver no monte; a tensão permanente entre a redução e o monte e a
negociação e participação dos índios na missão.
1 A vida dos índios nos “montes”
Destacamos algumas características culturais e a vida dos nativos na selva, nos montes e chacos como foram descritas ou representadas por missionários jesuítas no século XVIII em território hoje do
oriente boliviano. O Pe. Knogler (1769) afirma que descreverá o território chiquitano e os habitantes a partir do que viu e observou nos
seus mais de vinte anos de experiência nas missões.
(…) describiré solamente el territorio de los chiquitos y a sus habitantes,
incluidas las tribus vecinas (…) relataré únicamente lo que he visto y
experimentado personalmente en los muchos años pasados en las misiones de este país (…) lo que he observado durante mi estadía entre la gente
de este pueblo no vale también para otras tribus indias; las cualidades y
costumbres de la gente de ¡esta raza son tan desiguales como las regiones
donde habitan (KNOGLER, 1979, p. 2).
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
O importante registro que fez é que existiam enormes diferenças culturais entre as tribos indígenas que conheceu como eram diversos os ecossistemas que ocupavam e manejavam. Apresentou o
ambiente natural, o clima, tendo como referência a realidade experimental do leitor europeu, para mostrar as possibilidades e empecilhos à missão.
El país está comprendido, en su totalidad, dentro de la zona tórrida, por
lo tanto pasamos mucho calor durante todo el año, en cambio no se conocen la nieve ni el hielo (p. 2) (…) Que el calor no sea insoportable, lo
debemos a las selvas vastas, sombrías y espesas, (…) El calor tropical
también está atemperado por las lluvias fuertes y frecuentes que caen
sobre todo desde el mes de octubre hasta fines de abril, (…). Esta época
del año corresponde a nuestra primavera y verano y es tiempo de inundaciones (…). Por esto hay que elegir sitios altos en medio del monte para
las reducciones (KNOGLER, 1979, p. 4).
No relato, compara a natureza americana de chiquitos à européia. Faz calor o ano todo, por isso não ocorre “neve” nem “gelo”, ou,
mais adiante, que o tempo das chuvas “corresponde a nossa primavera e verão” não somente porque a conhece e é familiar ao seu leitor,
mas por considerá-la excêntrica e inferior àquela, pois a mata “espessa” lhe parece “sombria” e “inculta”, “um só monte”, mesmo quando
se refere ao chaco, aos pantanais, as terras do planalto chiquitano e
das planícies amazônicas. Daí a preocupação para escolherem lugares
adequados, livres de inundações, de secas extremas e da falta de terras apropriadas para o cultivo na construção de reduções.
Onde há reduções jesuíticas em colônias ibéricas nas florestas
da erva mate (Paraguai) ou do cacau (Amazônia) e do café encontramse nas matas alimentos para os humanos, mas nos “montes” chiquitanos não. Afirma:
Abundan en este país animales venenosos de toda clase (p. 9). (…) Lo
demás es tierra inculta en la cual penetramos en nuestras campañas
misioneras (p. 2). (…) En este país no crecen ni el árbol del cacao ni el del
café, tampoco la yerba mate que reemplaza al té. Los frutos que se encuentran en el monte sirven más como alimento para los animales que para
los hombres (KNOGLER, 1979, p. 5).
As terras ameaçadoras e incultas também estavam povoadas por
gentes bárbaras e bestiais. Ao elencar esta população, os principais
termos que utilizou para representar os “índios” foram expressões
como: “silvanos”, “animalia Dei”, animais selvagens, nômades, não
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
constroem casas, ganham a vida caçando e pescando, os caciques
governam só quando em guerras com outras tribos, como segue no
fragmento:
Los indios que voy a describir se podrían llamar con razón silvanos,
porque viven en un monte inmenso y de la misma manera como lo hacen
los animales salvajes. San Gregorio habla de hombres de esta índole como
animalia Dei, animales de Dios (p.1). (…) Mientras estos indios viven en
sus montes, no se puede hablar de un gobierno político de sus tribus.
Obedecen a sus caciques solamente cuando están en pie de guerra con
sus vecinos de otras tribus y otros idiomas. (…), no hacen otra cosa que
vagar por el monte y ganarse la vida con la caza y la pesca. (…) cambian
constantemente de lugar. No construyen casas y no poseen enseres domésticos, así pueden mudarse más cómodamente, (…) levantan chozas
que se hacen en pocos minutos (…) (KNOGLER, 1979, p. 11).
Sendo considerados “animais de Deus”, parece que não há dúvida de que têm alma, apesar de viverem “à maneira como o fazem os
animais selvagens”. Os temas da ausência de governo político, de autoridades, instituição estatal e leis escritas, e do nomadismo aparecem, da mesma forma que em outros cronistas anteriores, e da sua
época, como indicadores de seu ser bárbaro e selvagem. O outro tema
comum nas crônicas é o da nudez dos índios, que surge como sinal
diacrítico da selvageria dos chiquitanos.
Andan desnudos, pues no hace frío en su país. Pero llevan, una seña que
indica su nacionalidad y su idioma. Algunos usan; con tal fin un pedazo
de piel de presa, con el cual se cubren, o bien componen un tejido de
fibra o de algodón silvestre. Otros se ungen con tierra rodena, embadurnándose especialmente la cabeza, de modo que parecen llevar puesto un
casco de punta. Otros se pintan el cuerpo haciendo rayas con materias
colorantes extraídas de raíces y plantas. (…) Las mujeres se tatúan sirviéndose de espinas puntiagudas con las cuales se pintan en el rostro
una estrella, una flor, un pájaro o un animal; (…) imborrable, pues nada
logra borrar las manchitas negras (KNOGLER, 1979, p. 11).
A nudez, que tanto impressionou outros cronistas, em Knogler
aparece como decorrência do clima quente, e não de maldade. A nudez foi afirmada, mas logo desmentida na seqüência do relato quando
diz que alguns usam peles de animais, tecidos de algodão, capacetes
de barro, pinturas com tintas vegetais, tatuagens, lábios e orelhas perfuradas e preenchidos com pedaços de madeira, etc. Todos estes elementos marcam nos corpos diferenças étnicas, políticas, de gênero e
de tecnologias. Todos eram símbolos que veiculavam significados so162
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
ciais, incompreensíveis para o missionário, mas certamente não para
os seus portadores. Corpos nus, em clima tropical, são corpos incivilizados para o relator, mas para os chiquitos e outras etnias que convivem e disputam o mesmo espaço assinalavam fronteiras, signos de
poder, distinções sociais, status político, econômico ou religioso e até
a distribuição sexual de papéis de gênero. O missionário arrematou:
(…) Como se puede ver, ya su aspecto indica su bajo grado de civilización,
además tienen ciertas costumbres de las cuales se puede deducir su
naturaleza bárbara (…) (KNOGLER, 1979, p. 12).
O missionário concluiu que eram bárbaros a partir da observação,
descrição e análise dos seus aspectos físicos, costumes como andarem
nus, não terem leis escritas, governo e estado, viverem perambulando
atrás da caça e da pesca, morarem em choças precárias, estarem submetidos ao demônio e aos feiticeiros, consumirem muita bebida alcoólica
em forma de chicha, realizarem festas e danças em círculos ao som de
flautas e tambores, etc.
En resumen, esta gente conoce bastante recursos y los sabe emplear para
mantenerse por la pesca y la caza, y como esta es la única preocupación
que tienen, se los puede considerar más animales salvajes que hombres.
Cuesta, por lo tanto mucho trabajo, celo y paciencia convertir a semejantes criaturas primero en auténticos hombres y luego en cristianos, y se
logia sólo por la infinita gracia de Dios (KNOGLER, 1979, p. 15).
Assim, pelo fato de viverem na selva, o missionário os considerava “silvanos”, selvagens e bárbaros, mais próximos dos animais ferozes do que de homens. Mas concluiu: sendo animais de Deus, têm
alma e são cristianizáveis desde que sejam transformados, primeiro
em “verdadeiros homens”, depois em cristãos. Apesar dos muitos
defeitos, podem chegar a autênticos cristãos pelo esforço intenso, cotidiano e perseverante dos missionários e a graça de Deus.
No imaginário dos missionários e dos índios, foi bastante significativo o número de sentidos que a expressão “monte” veiculava.
Destacamos que, num primeiro significado, representava o espaço
natural ou hábitat dos nativos em sua condição de vida em liberdade
originária de nômades caçadores, coletores e pescadores, como apareceu na escrita dos missionários. Em outro, eram os lugares altos, procurados pelos nativos e missionários para construir aldeias ou reduções, para fugirem das inundações nestas terras baixas do oriente boliviano em solos agricultáveis, nas florestas tropicais.
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
Num terceiro significado, “montes” eram lugares sagrados de
memória e de culto aos espíritos, deuses e antepassados indígenas,
expressões do seu modo de ser e viver tradicional. Neste sentido, fugir para os montes não significava somente sair do convívio reducional, mas voltar ao antigo modo de ser e viver na liberdade originária
em estado selvático. Os jesuítas consideram o “monte” o lugar da apostasia, da anti-redução, da oposição religiosa e da resistência cultural
ao cristianismo e à civilização.
Antídoto da conquista, colonização e redução, o “monte” foi refúgio dos índios que se sentiam perseguidos. Hoje também é terra da
promissão, quando representado como a “loma santa” na tradição contemporânea do movimento messiânico indígena em Mojos.
2 Conversão e vida em redução
Em oposição à vida nos montes e nas selvas, se produziram vários significados para a vida na redução que foram distintos para colonos europeus na América, missionários jesuítas e índios reduzidos
(catecúmenos e batizados cristãos), gentios e apóstatas ou infiéis. Apresentaremos, a partir do relato do Pe. Knogler (1979), alguns dos significados atribuídos pelos jesuítas, e quiçá, pelos indígenas, à vida reducional.
2.1 “As caçadas espirituais”
Constituídas as primeiras comunidades reducionais através das
missões itinerantes às múltiplas aldeias e nações indígenas das terras
baixas do atual território do oriente boliviano, a missão se consolidava com a participação dos neófitos na conquista e conversão de novas
tribos, parcialidades ou parentes. Começamos analisando o processo
que Pe. Knogler denominou de “caçadas espirituais”.
Realizamos una especie de caza espiritual cuando seguimos las huellas
de esta gente y la perseguimos, usando múltiples recursos que Dios nos
encomienda, hasta que se rinde y puede ser domesticada y convertida en
buenos cristianos (KNOGLER, 1979, p. 1).
Os termos usados denunciam a sua compreensão da tarefa de
trazer novos gentios aos povoados reducionais já constituídos. Afirmando que “seguimos as pegadas desta gente e a perseguimos”, traça
semelhança com o caçador que segue sua presa e a persegue “até que
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
se renda”. Aquela gente deveria abandonar sua vida selvagem para
“ser domesticada” e transformada em “autênticos homens” e “bons
cristãos”, ou seja, convertida à fé cristã como membros estáveis de
uma comunidade reducional.
Ao lembrar, nesta literatura edificante, os belos exemplos de
neófitos, sentia-se consolado, edificado e animado a continuar a missão. Estimular, animar e edificar constituíam objetivos pedagógicos
dos escritos edificantes impostos pelas Constituições, aos membros
da Companhia de Jesus.
Debo decir que es un verdadero consuelo para un buen cristiano ver en
medio de esta jungla india a una distancia de cuatro o cinco horas de
camino en un trayecto de aproximadamente cincuenta o cien millas el
saludable signo de nuestra redención. Nos inspira valor y ánimo de seguir valientemente, desafiando todas las penas y peligros para llegar a la
meta (KNOGLER, 1979, p. 23).
Assim, fortalecido e animado pelo exemplo dos neófitos, o missionário guiava a expedição a bom termo. Relatou como procediam
quando a expedição encontrava índios pagãos:
(…) Ya a una distancia de dos jornadas del presumible paradero de los
bárbaros formamos un círculo para cercar a los infieles y evitar que escapen, pero [163] de ningún modo para llevarlos a la fuerza sino solamente
con el fin de poder hablarles y explicarles por qué hemos ido a verlos.
Cuando se trata de esta última tarea, le toca al misionero tomar la iniciativa, demostrando a la comitiva cómo hay que proceder en esta obra sublime y sagrada.
Los infieles se mantienen quietos siempre que comprendan que no pueden huir y que su número no es suficiente para resistir. El misionero
debe probar toda clase de idiomas indios hasta que se da cuenta de que
los bárbaros entienden uno de ellos. Entonces les manifiesta de inmediato que ha venido para invitarlos que lo sigan a su pueblo donde gozarán
de una vida feliz y tranquila, no tendrán que temer más a sus enemigos y
dispondrán de los medios de subsistencia sin tener que esforzarse excesivamente para obtenerlos, corriendo de un lado a otro con riesgo de su
vida. Todo lo que el misionero les podría decir de Dios y del alma les
parecería extraño, pero las promesas materiales los impresionan. A veces
se entregan y van con nosotros, pero muchas veces no quiere hacerlo por
amor a la libertad y por apego al modo de vivir habitual. En este caso
volvemos a hacer un año más tarde la misma expedición para ganar finalmente sus corazones (KNOGLER, 1979, p. 24).
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
Conduzir a caçada espiritual não era tarefa fácil e sem riscos.
Exigia habilidades do missionário em estratégias de guerra, como cercar os gentios para que não tivessem condições de reagir e fugir. Feito
o cerco, entraria em ação o jesuíta com sua arte retórica e o conhecimento lingüístico. Precisava convencê-los de que tinham vindo em
paz, para visitá-los e convidá-los a fazerem parte da redução. Reduzidos, “gozariam de uma vida feliz e tranqüila”, não necessitando mais
“temer aos seus inimigos”, e podendo subsistir sem os muitos esforços e riscos que havia nas florestas.
Este fragmento indica que considera a vida civilizada na redução superior à vida livre e despreocupada de caçadores e pescadores
nômades nas florestas. Sabia que “promessas materiais os impressionam”, enquanto que a pregação teológica abstrata sobre “Deus e a alma
lhes pareceria estranha”. Desconheceria o missionário a força da religião nestes povos? Antes, desconsiderou que tinham religião, bem
diferente do Pe. Juan Patrício Hernandes (1726), que em seu relato
representou os índios, visitados pelo Pe. Lucas Caballero, como praticantes de cultos demoníacos, que tinham seus feiticeiros e lugares de
culto bem identificados.
Achava que eram mais interessados em bens materiais, úteis e
palpáveis do que numa teologia abstrata da salvação da alma. As vezes
que, nos relatos dos cronistas, os índios buscaram as reduções não
parece que foram com a intenção de se converter, mas de se apropriar
de novos recursos e poderes, por terem “amor à liberdade” e forte “apego ao modo de viver habitual”.
Percebe-se que há uma oposição e resistência entre o “modo de
viver habitual” em liberdade nos montes e a liberdade, felicidade, segurança, proteção e facilidade que o missionário lhes promete, caso
sigam à redução. “Às vezes se entregam e vão conosco”, outras vezes
não aceitavam o convite, daí a necessidade de retornos futuros.
Quase sempre convenciam alguns representantes do grupo para
visitarem a redução e experimentarem o novo modo de vida para depois se transformarem em mensageiros e porta-vozes para convencer
os demais a aderirem. Isto aparece no fragmento que segue:
El siguiente método dio buen resultado les proponemos que, por lo menos, permitan que algunos integrantes de su tribu nos acompañen para
que visiten nuestro pueblo y conozcan la vida en una comunidad bien
organizada. Nosotros tratamos a estos huéspedes con cariño tanto duran-
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
te el viaje como en la reducción, los alimentamos bien y les regalamos
camisas como las que llevan los indios, un hacha, un cuchillo y anzuelos; finalmente vuelven contentos a su tribu y después los otros se trasladan con ellos a nuestra reducción por su propia iniciativa y nos siguen
en nuestra próxima expedición (…) (KNOGLER, 1979, p. 24).
No esforço de atraírem novos catecúmenos, a mediação indígena foi importante e não podia ser exercida somente pelo missionário.
O método de inserção na redução de alguns índios visava fazê-los
experimentar o modo de “vida em uma comunidade bem organizada”.
Nestas comunidades, eram vestidos e presenteados com instrumentos de metal desconhecidos nas suas tribos. Tratados com carinho, os
hóspedes depois de um tempo voltavam aos seus parentes e se encarregavam de trazê-los ao convívio reducional.
Interessante observar que, novamente, ressalta que os atrativos
que funcionam como elementos de sedução são materiais e símbolos
da cultura, e não os elementos que o missionário considera religiosos.
Tratava-se de um processo de negociação entre índios cristãos e missionários de um lado na expedição e na redução e, do outro, índios
dos montes com seus interesses, que aceitavam visitar a redução onde
experimentavam a hospedagem e recebiam presentes prestigiosos, que
serviam para conduzi-los à redução.
Os indígenas intermediários, negociadores de acordos, assumiam posições de relevo na nova comunidade, e Knogler os considerava membros das próximas expedições. A missão neste sentido não
foi somente obra dos missionários jesuítas, mas deve-se imputar expressiva importância aos próprios índios cristãos que assumiam funções diversas na conversão como guias, seguranças, carregadores, negociadores e “linguarás”1.
2.2 Índios na conversão de índios
Nas reduções, os neófitos acolhiam os iniciantes, ensinandolhes a língua e os novos costumes, repetindo-lhes sermões, dandolhes o exemplo de como comportar-se nas novas casas, nas ruas, na
praça, na igreja, mostrando-se satisfeitos nos trabalhos, nas festas, nas
liturgias, assumindo funções de governo com sinais de distinção, exer-
1
Trata-se de índios que atuavam como tradutores ou intérpretes entre o missionário e as
autoridades indígenas.
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
cendo novos ofícios que os distinguiam e serviam para reforçar seu
prestígio, os acordos e os elos entre os já convertidos e os “índios
pagãos”.
Já anotamos que, antes da conversão, Knogler considerava necessário transformá-los em “autênticos homens” que não eram enquanto
viviam nos montes. Havia, porém, outras necessidades para converterem os pagãos:
Para humanizar a estas criaturas y para acostumbrarlas a una vida civilizada en común y a una conducta disciplinada, hay que construir casas
donde vivan constantemente, en una zona que les ofrezca lo necesario
para el sustento de la vida, y hay que enseñarles los trabajos necesarios
para mantenerse; de este modo se les quita la costumbre de andar vagando (KNOGLER, 1979, p. 16).
Fundamentalmente, “humanizar” e acostumar os índios a “uma
vida civilizada” consistiria em acabar com o “costume de andar vagando”, e isto se fazia ao “construir casas” como residências permanentes
para a vida comunitária e disciplinada nas reduções em lugares que
possibilitassem, com a educação para o trabalho, o necessário ao “sustento da vida” de todos os membros da comunidade. Não era tarefa
fácil para os missionários, considerando as características culturais,
políticas e sociais dos nativos.
Es sumamente difícil acostumbrar a esta gente de lenguas diferentes, de
mal genio, que no tiene casa, vestimenta o domicilio estable, que no conoce subordinación, disciplina o la costumbre de trabajar, sino que vive
libremente y a su gusto, al orden de nuestras misiones, a una vida en
común y a una organización comunal; pues en una reducción viven dos,
tres y hasta cuatro mil indios juntos y esta convivencia es algo completamente nuevo para ellos y parece contraria a su naturaleza, así que se puede
establecer únicamente con la ayuda de Dios (KNOGLER, 1979, p. 15).
Em Chiquitos, os jesuítas reuniam nas reduções povos culturalmente muito diferentes, porém em Knogler aparecem como se todos
tivessem os mesmos costumes e as mesmas práticas de vida em aldeias
provisórias de caçadores e pescadores de poucas famílias aparentadas sob a liderança de um cacique ao qual não se achavam subordinados, vivendo livres e despreocupados. Outras fontes contemporâneas
indicam que nem todos eram apenas caçadores, pescadores e coletores, mas já havia os que praticavam uma agricultura de coivara a qual
ele não fez nenhuma referência, generalizando no relato.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
O missionário reconhecia que reduzi-los era uma intervenção
profunda no modo de viver na selva, para chegarem a viver juntos
uma experiência radicalmente nova, de forma organizada (política)
em comunidades (urbanas) de 2, 3 ou 4 mil, e que parecia a ele, contrária à natureza destes índios. Achava que isto só se conseguia com o
constante e perseverante trabalho do missionário e da “ajuda de Deus”.
Na perspectiva deste jesuíta, tratava-se também de ensiná-los a
ganharem seus alimentos pelo trabalho duro e cotidiano do cultivo de
roças de milho, mandioca, bananas e outras plantas exóticas introduzidas pelo gênio missionário. A natureza que foi generosa lhe pareceu
uma adaptação de Deus que favoreceu a natureza preguiçosa dos índios, dando-lhes em abundância e sem sacrifícios para a coleta. Foram poupados do sofrimento causado pelo trabalho, em conseqüência
do pecado de Adão? O missionário concluiu que os índios tinham
natural aversão ao trabalho e eram imediatistas.
No es fácil alimentarlos, pues no están acostumbrados a trabajar
regularmente en el campo, (…) Para que se hagan sedentarios y aprendan
con el tiempo la doctrina cristiana, el trabajo en el campo o un oficio,
conviene ante todo hacerlos sembrar maíz. (…), se cultiva también la yuca
o mandioca que es una raíz muy nutritiva (…). El maíz y la mandioca son
los principales alimentos de los indios en las misiones; no hay pan de
centeno o trigo y tampoco vino, cerveza o aguardiente. (…) Se plantan
también plátanos, (…) En estas y en otras plantas parecidas la bondad
divina parece adaptarse a la naturaleza de los indios quienes tienen una
aversión al trabajo fatigoso y prefieren recolectar los frutos que necesitan
sin ningún esfuerzo y en poco tiempo. A veces se planta también la caña de
azúcar, pero (…) no la usan para producir azúcar (KNOGLER, 1979, p. 16).
Assim, humanizar, cristianizar e civilizar significava para ele
intervir em profundidade para mudar a lógica da vida dos nativos,
criando estruturas urbanas, produzindo uma disciplina do trabalho
voltado à produção do necessário para o sustento e a manutenção dos
membros das comunidades como seres humanos autênticos.
Organizando os índios na perspectiva de autoridade e de poder
hierárquico, criaram normas disciplinares nas reduções para ordenar
as relações entre as pessoas. Sendo os missionários os mediadores
nesta transição, se opõem aos poderes tradicionais ou disputam com
eles o reconhecimento, dando o exemplo em tudo e ensinando, pela
demonstração, as novas habilidades necessárias à “ordem de nossas
missões”.
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
2.3 A mediação jesuítica
O “missionário faz tudo” e de tudo na redução para converter os
índios bárbaros e selvagens em homens civilizados e cristãos.
No nos valemos de la fuerza, no necesitamos soldados o alguaciles, todo
lo hace el misionero: él es el arquitecto, el maestro de todos los oficios y
artes mecánicas, instruye al herrero, al carpintero, al tejedor, al sastre, al
zapatero y a su propio cocinero que es [147] muchas veces un inválido que
no sirve para el trabajo en el campo o el monte (KNOGLER, 1979, p. 15).
O missionário, não podendo contar com a proteção militar na
sua relação com os índios que pretendia retirar dos montes e introduzir na vida reducional, tornou-se “pau para toda obra”. Tudo era novo
para os neófitos reunidos nos povoados, e precisava ser ensinado, por
isso o jesuíta era “mestre em todos os ofícios e artes mecânicas” para o
que acreditava poder contar com “a ajuda daquele que nos manda pregar o evangelho a esta gente” para vencer os obstáculos.
Os ofícios citados eram conhecidos pelos seus leitores europeus,
mas alguns deles eram estranhos para os índios reduzidos. Indicava
aos leitores e futuros missionários que converter os índios demandava muitos conhecimentos e diversas habilidades. Na pregação, ressaltou o respeito à pessoa e à sua “alma imortal”, assim como à alma dos
outros nativos, mesmo que fossem seus inimigos. Deveriam, pois,
contribuir para “a salvação” de todos, de acordo com a noção de que o
“homem é a criatura mais perfeita”. Assim, os índios batizados, tidos
como convertidos, assumiam paulatinamente funções nas comunidades reducionais e se tornavam auxiliares das funções missionárias.
Los primeros que se convierten a la fe católica son instruidos con ahinco
acerca del valor inestimable que el hombre tiene a causa de su alma inmortal. Deben saber que el hombre es la criatura más perfecta, muy por
encima de todas las otras, para que tengan mucho aprecio por ellos mismos y por los otros y se sientan estimulados a contribuir a la salvación de
aquellos que viven todavía en las selvas (KNOGLER, 1979, p. 23).
Os primeiros índios convertidos tornavam-se, assim, responsáveis pela conquista espiritual dos que continuam nas selvas e integravam as expedições organizadas e conduzidas pelos jesuítas em suas
incursões pelas matas e pelos montes. Consideravam a expedição bemsucedida quando encontravam “índios pagãos”, como os denominou
no trecho a seguir.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Si en nuestros viajes encontramos lo que buscamos, es decir, indios paganos, nos sentimos pagados con creces por todos los trabajos y penas y
volvemos contentos con ellos a nuestra reducción. En el camino deben
ser provistos de los alimentos necesarios y tratados amistosa y cariñosamente, pero, al mismo tiempo, custodiados cuidadosamente para que no
vuelvan a su paradero anterior o provoquen un tumulto entre la escolta.
Cuando nos acercamos al pueblo nuestros indios les traen la vestimenta
necesaria para cubrir su desnudez. Entonces toda la población, cristianos e infieles recién llegados, hace su entrada triunfal a la iglesia donde
se canta el Te Deum en agradecimiento por el éxito de la expedición misionera (KNOGLER, 1979, p. 26).
Os jesuítas foram hábeis na construção de imagens e cenários
impactantes para seus hóspedes, visitantes ou membros iniciantes
das comunidades. Os cuidados no caminho de volta à redução com os
índios “caçados”, verdadeiros troféus que compensavam riscos e canseiras, precisavam de alimentos, carinho e amizade, mas também de
controle para que não fugissem ou se rebelassem.
O relato do retorno da expedição remete à semelhança entre as
crônicas de prisioneiros de guerra, entre índios diversos, em que o
valor do prisioneiro dependia da sua valentia e resistência, aumentando o prestígio de quem o capturou. Chegando nas proximidades
da redução, os índios capturados começavam a ser despojados de
suas identidades, sendo transformados. O processo iniciava com a
imposição das “vestes”, signo da civilização e da redução, para “cobrir sua nudez” natural e cultural. Assim igualados, “cristãos” e “infiéis” entravam triunfalmente na Igreja para agradecer o sucesso da
“expedição missionária”.
Este espetáculo marcante fazia parte da estratégia pedagógica
da conversão, reforçando compromissos entre os neófitos e tornando sensíveis ao ensino os novos catecúmenos. Subjaz a esta prática
missionária uma teoria do conhecimento e da aprendizagem que considerava o aprendizado indígena um processo de abstração racional
que inicia pelo contato sensitivo e emocional com as realidades materiais dos novos signos culturais (roupas, instrumentos de metal,
alimentos, remédios, adereços, oratória, etc.) e religiosos (procissões,
festas, missas, e outros sacramentos, curas mágicas) que experimentadas remeteriam a um processo de construção abstrata dos sentidos
intencionados pelos missionários para a transformação e conversão
dos índios.
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
Apesar de relativamente incapazes, reconheceu a capacidade
universal dos povos de acesso ao “Deus verdadeiro”, afirmada para os
chiquitanos no fragmento que segue.
Así se puede explicarles paulatinamente y en la medida de sus facultades
intelectuales la esencia del único Dios verdadero de cuyo apoyo tenemos
tanta necesidad. (…) Dios se dirige al hombre de distinto modo y se da a
conocer también por el trueno (…) (p. 26). A pesar de que estos indios no
tienen un conocimiento verdadero de Dios, no se puede negar lo que los
teólogos dicen: que también la gente salvaje y brutal conoce pudor y tiene
vergüenza de cometer públicamente o sin testigos una mala acción, porque la conciencia les reprocha la iniquidad del hecho (…) (KNOGLER,
1979, p. 27).
Retomando uma perspectiva da patrística cristã dos primeiros
séculos do cristianismo, considerava que os índios, mesmo selvagens
e brutos, dispunham de um conhecimento difuso de Deus observável
em atitudes moralmente consideradas más ou reprováveis, já que
“Deus se dirige ao homem de distintos modos, dando-se a conhecer”
até através dos fenômenos naturais e cósmicos.
Considerava que entre os índios existiam muitas diferenças no
conhecimento de Deus e da prática moral, sendo umas nações mais
disponíveis e outras mais resistentes à conversão por estarem mais
entranhadas nos vícios:
Hay entre los indios ciertas naciones que faltan más a menudo y de manera más malignas que otras a las inspiraciones de la conciencia propia e
infringen los principios que la naturaleza nos inculcó, cometiendo por
ejemplo asesinatos y otros crímenes graves que también a la luz de la
razón resultan delitos atroces. Y estas naciones oponen también mayor
resistencia a las tentativas de convertirlas por medio de la enseñanza
religiosa y se abren más tarde a la luz de la fe que otros pueblos menos
deslumbrados por sus vicios (KNOGLER, 1979, p. 27).
Apesar de reconhecer diferenças de comportamentos e de disposição entre os índios para a conversão, pareceu generalizar as incapacidades práticas para compreenderem os ensinamentos filosóficoteológicos expostos nos sermões ou nas catequeses missionárias:
A causa de su modo desordenado y bárbaro de vivir y del estado salvaje
que acabamos de describir, esta gente no es capaz, por lo menos al comienzo de una enseñanza religiosa, de comprender un razonamiento. Debemos buscar otro método de implantarles el conocimiento, la adoración y
el temor de Dios, (...) hacer uso de cosas exteriores que salten a la vista,
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
que halaguen su oído y que se puedan tocar con las manos, hasta que su
mente se desarrolle en este sentido. Por esto tratamos de que tengan, en
su remoto país de naturaleza salvaje, lo mismo que hay en el mundo más
civilizado: ante todo esta casa prodigiosa en la cual nos reunimos y donde podemos conseguir todo lo que necesitamos si lo pedimos al dueño de
la casa, es decir, a Dios. Hemos logrado este objetivo y las iglesias que
construimos en los pueblos de nuestros indios son tan hermosas que
quedarían bien en cualquier país europeo. El culto divino en estas iglesias
decentemente adornadas se celebra dignamente en cuanto a su aspecto
externo e interno, (…) (KNOGLER, 1979, p. 28).
A introdução do pensamento “cristão” e “civilizado” passava pela
exposição sistemática dos índios à convivência e manejo cotidiano e
onipresente dos seus signos.
(…) hacemos cuanto esté a nuestro alcance para que la casa de Dios sea
vistosa y respetable, no en razón de su suntuosidad extraordinaria, sino
gracias a estatuas bien trabajadas y bonitas, la pintura de las paredes y
otros elementos [172] que podemos reunir en nuestro ambiente y que
surten efecto en la gente (KNOGLER, 1979, p. 29).
Considerados incapazes de compreenderem, no começo, os raciocínios da lógica e da teologia cristã por seu “estado selvagem”, aprenderiam quando se implantasse “o conhecimento, a adoração e o temor de
Deus” por “coisas exteriores” que impressionassem a vista, os ouvidos e
as mãos até que sua “mente se desenvolva”. O missionário se defrontava
com os problemas da tradução dos sentidos e dos significados culturais,
mas julgava estar diante de gente incapaz de compreender.
O edifício da igreja e o culto, no conjunto dos signos da cristandade, assumiam, então, um lugar central na pedagogia jesuítica para
conquistar os índios nas reduções, e, ao final, foram os aspectos que
as tornavam parecidas ao mundo civilizado europeu.
Inúmeros outros recursos eram utilizados para construir e representar o referencial cristão no imaginário dos índios reduzidos.
Entre estes meios estavam as festas e os espetáculos teatrais que,
ensaiados, eram apresentados, em certos momentos, para a edificação dos neófitos, uma vez que se entendia que isto causava boa impressão. Os jesuítas foram mestres nestas técnicas, como indica o
relato:
Además de estos medios de sustentar la moral cristiana entre los indios y
de incitarlos a perfeccionarse, tenemos otros, por ejemplo representaciones teatrales en días de fiestas mayores, las cuales ofrecen una historia
173
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
edificante, interpretada por alumnos de la escuela, a los que preparamos
especialmente para estos espectáculos (KNOGLER, 1979, p. 34).
Ao incluírem os índios nas atividades, nos ensaios e nas encenações, formavam-nos para a vida comunitária e missionária, mostrando exemplos do que na nova lógica significava estar errado e em
pecado e o que era considerado permitido e certo para ser seguido.
Afinal não bastava conhecer as verdades da fé ou decorar o catecismo se não se transformassem em atitudes e testemunhos de vida
cristã exemplar, como afirmava:
Saber el catecismo de memoria no basta, hay que practicarlo en la vida
pues las costumbres deben ser acordes con él; ningún verdadero cristiano debe vacilar en hacerlo. Nuestra fe católica necesita hombres enteros,
sin miedo o vergüenza de ostentar costumbres cristianas delante de fieles
e infieles (...) (KNOGLER, 1979, p. 35).
Ensinados pelos missionários, estes índios convertidos eram
exemplos de vida e foram auxiliares importantes para a manutenção da
ordem cristã e a conversão de novos índios ainda gentios ou infiéis.
Porém, este discurso também se dirige aos leitores cristãos europeus
que se pretendiam missionários e exemplos de vida cristã, mas muitas vezes vacilavam. Assim, o objetivo das cartas edificantes se explicita mais como um diálogo espiritual com seus leitores do que uma
descrição e análise fiel de uma realidade observada e dissecada.
A missão entre os índios das Américas seria uma vocação para a
solidão do sacerdócio, ao sacrifício do martírio como testemunho extremo de vida de quem na Europa fosse capaz de suportá-lo no exílio,
distante da família e dos amigos.
Quien opina que un sacerdote no puede vivir solo, lejos de su familia y
sus amigos no se atreverá por supuesto a partir para estas regiones salvajes, tan apartadas de su tierra natal, y no se acomodará a esta vida. Y si
viniera acá volvería pronto. Hace, por lo tanto, bien en quedarse en su
casa, donde está bien mantenido y alimentado y tiene todas las comodidades (KNOGLER, 1979, p. 15).
Pe. Knogler concluiu seu relato com uma afirmação que resume
os significados que atribuía à atitude de deixar a terra natal e buscar a
conversão dos infiéis.
No hay manera más útil y fructífera de convertir a los infieles que ir a su
país, confiando en Dios y el Evangelio, sin interés personal y sin miedo
de molestias y peligros, dispuesto a aprender su idioma, a conocer su
174
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
carácter y sus costumbres de acuerdo con todo esto, a predicarles el Verbo Divino con mucho trabajo, amor y paciencia; así hemos llegado con la
ayuda de Dios a convertir a los chiquitos. Los misioneros que trabajan en
estos países tan apartados deben hablar como los indios. Pero esto no es,
en el fondo, nada nuevo; el mundo cristiano ha tenido siempre esta costumbre: los apóstoles han predicado (KNOGLER, 1979, p. 31).
Considera que, com muito amor, paciência e ajuda de Deus, os
jesuítas conseguiram converter aos chiquitos. Mesmo não sendo novidade o que os jesuítas fizeram, achava que os missionários deviam
viver entre os que queriam converter, aprender sua língua para falar
como eles, conhecer seu caráter e costumes para lhes “pregar o Verbo
Divino”, como agiram os apóstolos no começo e os jesuítas nas reduções.
2.4 Índios: negociando a conversão
A adesão dos índios à vida reducional não significou o total abandono de seu modo de vida anterior e o esquecimento de todos os seus
conhecimentos e práticas tradicionais. Nas negociações que estabeleciam com os missionários, barganhavam e preservavam inúmeros elementos de sua vida tradicional. No relato de Knogler e de inúmeros
outros jesuítas do Paraguai, a questão da bebida fermentada e alcoólica torna-se recorrente como um costume arraigado que não foi erradicado.
A propósito de esta costumbre no voy a dejar de referirme a su extraña
bebida llamada chicha.(…) La consideran su mejor vino y, al mismo tiempo, una comida fuerte que mata el hambre junto con la sed porque contiene harina y agua. Es también su chocolate, su té y su café. Todo es
tratado, arreglado y pagado con esta bebida, pues no hay otro dinero. Si
una persona le hace un favor a otra y la ayuda en un trabajo en casa o en
el campo, después de prestar el servicio se la recompensa con chicha, en
vista de que no es posible remunerarla en efectivo por falta de moneda
que no he visto nunca en este país (p. 16) (…) Esta bebida miserable nos
ha tenido siempre preocupados y nos ha causado serios disgustos, puesto que enloquece a la gente, si se la deja fermentar ocho o más días. De
este modo estallan querellas violentas, ya que la chicha les gusta a nuestros
indios justamente si se ha hecho tan agria como vinagre. Los que la toman
tienen entonces el cuerpo hinchado desde la cabeza hasta los pies. Ahora se
les permite solamente hacerla fermentar tres días, en este caso no pierden el
juicio, sino que se sienten únicamente alegres (KNOGLER, 1979, p. 17).
175
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
“O agora se lhes permite somente fazê-la fermentar por três dias”
é o reconhecimento da continuidade do costume, negociado com os
missionários. Tomichá (2002) refere-se ao caso em que índios procuraram o missionário pedindo-lhe a redução para se protegerem dos
seus inimigos índios e mamelucos portugueses. Em troca, exigiram
que o padre cura lhes permitisse continuarem consumindo a chicha.
Esta bebida apreciada (miserável para o jesuíta) era alimento ritual,
moeda de troca de serviços na minga (mutirão) e animava as muitas e
longas festas tradicionais nas quais se embebedavam.
Bebida bendita e abençoada dos chiquitanos nos montes, no
relato do missionário tornou-se uma preocupação. “Esta bebida miserável” que enlouquece seus consumidores desencadeava disputas
violentas e deixava seus corpos inchados da cabeça aos pés. Foi admitida nas reduções com uso e fermentação controlada de três dias,
diminuindo o teor de álcool que apenas os deixasse alegres e não
embriagados.
O mesmo se poderia dizer da continuidade dos costumes de
caçar, pescar e coletar, que não foram supressos na redução. A despeito da introdução dos cultivos agrícolas e o incentivo à criação de gado
de diversos tipos, não os abandonaram.
Para que no sean exterminados los animales en el monte y los peces en
los arroyos de los alrededores de las reducciones hemos introducido la
ganadería. Al principio importamos trescientas cabezas de ganado vacuno del Perú y las repartimos entre los pueblos, para que se reprodujeran
en provecho de los indios. Nos costó no poco trabajo encontrar pastos
para nuestro ganado, pues en este país no hay otra cosa que monte y
poquísimos campos de pastoreo y no se conoce la cría del ganado vacuno. Después de largas búsquedas encontramos acá y allá algunos campos
que podían servir de pastura o nosotros mismos los limpiamos con grandes dificultades, talando el monte y represando el agua, para que formara
un estanque donde el agua se mantuviera también en la estación seca. En
algunas reducciones el ganado aumentó considerablemente en pocos años,
de acuerdo con la naturaleza del terreno y la calidad de los campos de
pastoreo (KNOGLER, 1979, p. 17).
Criado extensivamente, afirma que o gado cresce por obra da
natureza, e não dos cuidados dos índios. Mais do que simplesmente
introduzir uma nova atividade econômica, o que relata é uma transfiguração dos alimentos básicos cotidianos e principalmente das festas
tradicionais em que se consumiam grandes quantidades de carne de
176
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
caça e pescados diversos, que, na sua obtenção e no preparo, exigiam
a mobilização intensa e demorada de todos os membros do grupo.
(…) entonces se eligen algunos animales que se llevan al pueblo para ser
sacrificados en vísperas de una fiesta. La carne se distribuye entre los
habitantes de modo que cada familia tenga un buen pedazo de regalo para
el día de fiesta, en lugar de la caza y de los pescados que antes constituían
su único alimento (KNOGLER, 1979, p. 17).
A introdução do gado para substituir a carne que tradicionalmente procedia da caça, constituiu-se em um acréscimo no rol dos
trabalhos cotidianos dos índios. Também transferiu o controle dos
festejos, transsignificando práticas, uma vez que a carne não era só
para o consumo do corpo, mas era também símbolo carregado de forças que alimentavam a tradição. Isto é, a novidade nas formas de criação do gado, abate e distribuição da carne obtida nas estâncias, implicava um novo modo de vida, fazendo desaparecer ou relativizando
práticas e rituais antigos.
As tradicionais contendas entre grupos e tribos de línguas diferentes, na disputa por recursos e territórios, causaram muitos conflitos nas reduções ao juntarem, às vezes, de forma imprudente, grupos
ou parcialidades rivais e inimigas, sem levar em conta suas rixas e
incompatibilidades tradicionais. No menos contrastantes [que la diversidad de lenguas] son los sentimientos de los unos hacia los otros,
lo más frecuente es que se odian mutuamente, ninguna nación se fía
de las otras (KNOGLER, 1979, p. 13).
Estes sentimentos de inimizade que reinavam entre zamucos e
ugaroños, que conviveram na redução de San Ignácio por mais de
vinte anos, não se apagaram. Permaneceram latentes sob as cinzas de
uma aparente paz e convivência amistosa, enquanto a correlação de
forças lhes parecia equilibrada. No momento em que os zamucos
sentiram-se ameaçados em 1745, instigaram a rebelião e retirada de
um dos grupos ugaroños da redução, e eles mesmos fugiram com
medo. Convidaram o Pe. Ignácio Chomé, cura da redução, a acompanhá-los, acusando seus inimigos de tramarem contra a vida do missionário e dos zamucos, como o próprio missionário relatou em carta daquele ano.
A inconstância nas relações matrimoniais em sua vida nos “montes” foi outra observação anotada por Knogler. O padre percebeu certa
continuidade deste costume em muitos casamentos que se desfaziam
177
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
nas reduções, entendendo-o como outro dos signos de inconversão e
incivilidade dos índios.
[144] En sus matrimonios no son constantes, mientras que son paganos;
sus uniones conyugales no tienen siquiera la validez de convenios civiles. A pesar de que viven en pareja sucede a menudo que una parte
abandona a la otra por razones fútiles, asociándose con otra persona
(KNOGLER, 1979, p. 13).
O missionário afirmava ser necessário conhecer os costumes e o
modo de viver dos índios, saber falar sua língua, ter muito amor e
paciência no trabalho de convertê-los. Não obstante, percebeu como
fúteis os motivos que levavam ao fim de certas uniões conjugais, e
como errados os novos casamentos que eram constituídos. Isto indica
que enxergava e avaliava etnocentricamente a conduta do outro e lhe
atribuiu um valor moral, que não tinha na cultura do chiquitano.
Caso semelhante pode-se constatar quando falou do costume,
mantido na redução, dos longos bailes com danças, que considerou
cansativas ao som monótono de instrumentos musicais tradicionais,
que eram muito apreciados pelos índios, e disse que os toleravam
porque não viam neles inconvenientes. Os estudos mais detalhados
destas práticas indicam que o olhar etnocêntrico do missionário certamente não compreendeu todos os significados veiculados pelos indígenas através desta prática festiva.
Parece fatigoso bailar así, a gritos y con movimientos constantes del cuerpo, al ritmo de esta música monótona, sobre todo cuando hace mucho
calor; (…) es una diversión para nuestros indios y nosotros la toleramos
en vista de que no hay nada de perjudicial o reprobable en este pasatiempo. Pues si hubiera algún elemento de esta índole en aquella costumbre,
no podría ser un verdadero y permanente placer, según los principios de
un juicio recto (KNOGLER, 1979, p. 22-23).
Passatempo ou diversão, que expressava “verdadeiro e permanente prazer”, não poderia conter “nada de prejudicial ou reprovável”,
mas para os índios poderia veicular muitos outros sentidos tradicionais que o missionário não compreendia e não reconhecia.
3 Apropriação da redução pelos índios
Na abertura do seu relato, Knogler sintetizou o que o leitor podia encontrar em outros relatos e nas reduções das quais ele falava
como testemunha ocular. Constatam-se os progressos que a compa178
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
nhia fez ao longo de mais de setenta anos de atuação entre os chiquitos, ressaltando os últimos vinte que ele viveu nas missões em diversos povoados e funções:
Quien haya leído al Señor Muratorio o al “Welt-Bott” mismo, [122] donde
se habla de estos indios, se dará cuenta seguramente que mucho ha cambiado con el correr del tiempo Pues en el curso de los últimos veinte años
el número de cristianos en nuestras misiones aumentó constantemente,
gracias a la conversión de varias pequeñas tribus de infieles. En el año
1768 vivían en nuestras reducciones no menos de treinta y siete mil
indios, veintidós mil bautizados y quince mil a punto de convertirse
(KNOGLER, 1979, p. 1).
O número de convertidos cresceu continuamente. Ele afirmou
que em 1768 viviam 37 000 índios nas dez reduções de Chiquitos, e,
destes, 15 000 ainda eram catecúmenos que estavam se preparando
para receber o batismo. Estes números variavam muito por diversos
fatores que desestabilizavam a população nas reduções. Os dados quantitativos, no entanto, somente falam da grandeza do fenômeno missional, mas dizem pouco da sua qualidade. O mais importante seria mostrar a forma como os índios viviam o seu cristianismo.
La parte más importante de mi relato es, sin duda, la que se refiere al
cristianismo de nuestros indios. Pues la meta y el fin de nuestros viajes a
países tan remotos y tan poco hospitalarios es la promulgación de la
doctrina cristiana a estos salvajes, para que encuentren el camino que
lleva a la eterna salvación. Todo lo otro sirve solamente para facilitar esta
tarea (KNOGLER, 1979, p. 23).
Importava mostrar o segredo de tanto sucesso na promoção da
doutrina cristã entre índios tão selvagens, brutos e pouco capazes para
aprender, a não ser através da mediação de muitos elementos materiais
e simbólicos que falassem intensamente aos sentidos e às emoções.
Ou seja, era mais importante apelar a estas do que à razão.
A agricultura já era praticada por algumas das tribos Aruak e outras incluídas nas reduções de chiquitos, pois cronistas como Schmidel (1538), Cabeza de Vaca (1546), Pe. Francisco Burgés (1703) e Pe.
Juan Patricio Fernandes (1726) mencionaram ricos banquetes em que
ofereciam aos espanhóis diversos produtos cultivados e carnes de caça
e pesca. Porém, a agricultura e a criação de gado bovino prosperaram
com dificuldades em outros grupos nas reduções. Só conseguiram, ao
longo das décadas, garantir alimento suficiente para sustentar a vida
179
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
de populações numerosas sedentarizadas, sempre complementado nas
reduções com a caça e a pesca.
Sin embargo, aprendieron a cultivar la tierra, que es poco fértil, pero
produce, al menos, una clase de cereales en cantidad suficiente para alimentarlos. Como sabemos por experiencia, sólo el maíz se da bien en esta
tierra pues el suelo no es apropiado para el cultivo de otros cereales
europeos (KNOGLER, 1979, p. 5).
Nas reduções, parece que os índios e missionários alcançaram
algum sucesso nos cultivos nativos, mas fracassaram nas tentativas
de introduzirem cereais e frutíferas européias por causa do tipo de
solos e do clima. Assim, o limite alimentar estava sempre bem próximo do desequilíbrio, e teria sido crônico se os missionários não tivessem introduzidos o sistema de armazenamento de parte da produção,
tida como comunitária, que era redistribuída em períodos de carestia,
em festas ou quando recebiam muitos hóspedes abrigados nas casas
das famílias dos neófitos.
Nas reduções, avançou o aprendizado dos ofícios, mas o jesuíta
achava que não eram muito artísticos e originais nos seus artefatos, e
os faziam fora das normas dos grêmios europeus. Foram artefatos úteis,
na falta de outros. O ferro que vinha de Potosi era transformado em
inúmeros instrumentos: El herrero indio educado en nuestra escuela
de artes y oficios fabrica con este hierro sus hachas (…) formones,
cepillos de carpintero, sierras y anzuelos, (…) (KNOGLER, 1979, p.
18). Algo semelhante ocorria com os carpinteiros, marceneiros, alfaiates, escultores, pintores, açougueiros, etc., que se qualificaram e se
tornaram mestres de ofícios que inicialmente os próprios padres haviam ensinado aos aprendizes que com eles trabalhavam.
O amplo conjunto de transformações que a catequese e a missão
produziram nos índios, considerados tábula rasa, inscreveu-os na
humanidade e criou uma cristandade civilizada que, na afirmação do
Pe. Knogler, rivalizava, em muitos aspectos, com a européia. Na opinião dele, o modo reducional de vida dos índios seria o inverso do
que fora viver no monte. Não havia abundância de alimentos e riquezas materiais, pois apenas dispunham o necessário para o sustento
em ambas as situações, mas nas reduções modificou-se o modo de
vestir, morar, trabalhar e conviver com outros em paz.
Así viven ahora los indios, en condiciones muy diferentes de las que
reinaban antes. Disponen de todo lo necesario para el sustento de la vida,
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
no andan más desnudos sino que tienen vestimentas diferentes, viven en
casas, bajo un gobierno que los obliga a trabajar, no corren más de acá
para allá a través del [153] Monte; el país se pacifica paulatinamente, lo
que parece un milagro divino en vista de la mezcla de tantas naciones de
diferente mentalidad y distintos idiomas (KNOGLER, 1979, p. 19).
Tornaram-se humanos! Relata o inverso do ocorrido na torre de
Babel com o milagre da pacificação de povos de culturas e idiomas tão
diferentes no espaço reducional. Knogler considera o entendimento
de línguas e a pacificação de povos diferentes como o novo pentecostes. As mudanças na conversão dos indígenas só se podiam fazer de
modo muito simples e escasso. Alertamos, no entanto, que não se pode
desconsiderar a força de sedução que as novas tecnologias, instrumentos de metal, tecidos novos, etc., exerceram no imaginário indígena, pelo seu valor simbólico.
Motivos terrenales no los pueden estimular a una convivencia pacífica,
pues ningún pueblo puede esperar algo de otro, ni prestigio mayor ni
más riqueza, sino que todos son iguales, naciones e individuos, el cacique más noble no aventaja al indio más humilde en vestido, vivienda y
enseres domésticos. Ninguno tiene cosas que lo diferencien de los demás, todos poseen arcos y flechas, ahora también hachas, cuchillos, eslabones, anzuelos, agujas y palas de madera para el trabajo, pero nadie
tiene un centavo en todo el país.
Estos pocos objetos son toda su riqueza y todo lo que un joven necesita
para casarse. Las jóvenes no necesitan otro ajuar que los collares arriba
mencionados. Una tijera de mediana calidad es ahora tal vez la pieza más
preciosa y más rara de sus enseres domésticos. La necesitan para sus
trabajos de sastrería y para cortarles el cabello a los chicos; con tal fin
antes usaban dos conchas rotas que juntaban y que servían tan bien como
dos pedazos de vidrio para cortar el pelo puesto en el medio (KNOGLER,
1979, p. 19).
O desejo de ter acesso a estes novos objetos, produtores de distinções e novos símbolos de poder em comunidades multiétnicas, não
pode ser minimizado como o missionário fez no seu relato. Trata-se
de literatura edificante que aplainava o caminho eliminando tensões,
expurgava conflitos do texto, para estímulo dos leitores, mas certamente não conseguiu apagá-los da realidade.
As rixas, advindas da mistura de grupos, nações e línguas diferentes na mesma redução, não se apagaram. Novas hierarquias se afirmavam entre beneficiários de cargos nos cabildos, ou entre aqueles
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
que ascendiam a outras funções e ofícios, originais para os índios, e
importantes para o funcionamento da redução.
Em termos econômicos, a situação de todos os reduzidos era
remediada, tendo acesso aos instrumentos de ferro muito cobiçados,
e a vida certamente fruía na simplicidade sem esbanjamentos e sobras, a não ser no culto divino.
Uma fonte de poder e de tensão que os jesuítas enfrentaram desde o começo, e que ao longo do período não parece ter sido superada
em sua totalidade, foram as práticas xamânicas tradicionais. Falou do
ofício dos curandeiros como se estes tentassem enganar índios ingênuos que desconheciam as causas das doenças. Colocariam na boca
pedrinhas, pedaços de madeira ou outros objetos antes de chuparem
feridas dos enfermos, das quais diziam extraí-las:
Entre los indígenas gozaban de gran autoridad pues estos bárbaros tontos
[155] creían que una persona que fuera capaz de sacar tales objetos del cuerpo del enfermo también podía hacerlos entrar por medio de su arte, enfermando de este modo a un hombre sano. Por eso respetaban profundamente
a tales embusteros y los incitaban así a realizar muchos otros disparates aún
más groseros que estos. Nos ha costado varios años suprimir del todo estas
malas costumbres y cuando la gente no se dejaba convencer por exhortaciones, teníamos que castigar a los desobedientes. En su afán de hacerse curar,
se valían de cualquier subterfugio especialmente porque desconocían las
verdaderas razones de sus enfermedades (KNOGLER, 1979, p. 19).
Temidos pela sua magia poderosa para curar ou para produzir a
doença no homem sadio, eram muito procurados pelos nativos mesmo nas reduções, apesar do combate que os missionários faziam com
exortações e castigos que infligiam por causa destas “práticas demoníacas”. Chama aos índios de “tontos” que apelavam aos curandeiros,
que denominou “embusteiros”, porque exploravam seu povo que desconhecia as verdadeiras razões das suas enfermidades.
No momento em que os missionários assumiam com sucesso os
poderes de curandeiros, o combate se tornava mais eficiente e fácil.
Na redução, as funções propriamente religiosas exercidas pelo jesuíta, como a “cura das almas”, se complementava com outras, por exemplo, no cuidado dos doentes e até mesmo empregando ex-curandeiros
batizados como enfermeiros.
Knogler falou de dois auxiliares fundamentais, na mediação exercida pelos jesuítas nas reduções, que tornaram as resistências e opo-
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
sições menos eficientes e ativas ou visíveis nas comunidades multiétnicas das reduções.
O primeiro ator que ele lembrou foram os jovens eleitos entre os
mais capazes para aprenderem a ler e escrever para exercerem funções
de leitores nas liturgias, nas leituras espirituais, no ensino da catequese, na escrituração da contabilidade, nos registros das oficinas, na
elaboração das correspondências e atas dos cabildos, etc.
Estes aprendizes ficavam aos cuidados de um professor índio
capaz de lhes ensinar a escrita e leitura das línguas chiquitana e espanhola e a leitura ou recitação de orações em latim. Assumiam importantes funções que ele descreveu assim: Los que cumplen con esta
condición, tienen la importante función de reemplazar a los tipógrafos, copiando libros que necesitamos con urgencia, como catecismos,
misales, calendarios y piezas de música (KNOGLER, 1979, p. 21).
O segundo ator que ele ressaltou em termos de importância para
manter a disciplina e a boa ordem nas reduções complementando a
mediação dos missionários eram os caciques. Assim relatou a prática
da manutenção ou promoção do poder e prestígio deles em benefício
da convivência cristã e civilizada:
En las misiones les damos todavía mayor prestigio otorgándoles un traje
de ceremonia que guardamos en la sacristía para que se lo pongan en las
fiestas mayores; tienen además un asiento más alto en la iglesia y, en
todas las reuniones, llevan en la mano un bastón al que aprecian mucho.
Como ellos no pueden contar con un pago u otra remuneración material
hubo que pensar en otros medios que pudieran incitarlos a ejercer un
cargo. Las distinciones que reciben de nosotros parecen bagatelas similares a los premios que los alumnos reciben en una escuela por su buena
conducta; pero han servido siempre muy bien para fomentar las buenas
costumbres en los pueblos de nuestros indios. Pues cuando los mayores
y los que gozan de mucho prestigio se portan bien, arrastran también a su
gente, en parte por su ejemplo, en parte por sus órdenes expresas y reiteradas exhortaciones.
En una palabra, [los caciques] ayudan al misionero eficazmente a mantener la disciplina y fomentar las costumbres cristianas, de modo tal que la
gente de su tribu se somete incluso a un castigo cuando incurrió en una
falta. Es evidente que sin disciplina no se puede vivir en una comunidad, pero hemos tenido que proceder con suma cautela para introducirla
en nuestros pueblos, en vista de que nuestros indios, durante toda su
vida, han hecho lo que se les daba la gana, no han tomado en consideración ninguna exhortación y no se han dejado reprimir o intimidar por
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Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
castigos, cuanto menos por penas corporales. Mas todo es posible con la
ayuda de Dios (KNOGLER, 1979, p. 33).
O tratamento respeitoso dispensado pelos jesuítas aos caciques e
às lideranças indígenas não era uma concessão gratuita, mas fruto de
negociações intensas que interessavam às lideranças indígenas empenhadas. A nova situação não só manteve o seu prestígio, como o ampliava na
mediação em relação aos membros de suas parcialidades, os missionários, espanhóis e até frente aos índios seus inimigos históricos.
Desprestigiá-los seria um equívoco perigoso. Aconteceu em San
Ignácio de Zamucos quando o cura Pe. Ignácio Chomé estava fora da
redução em expedição ao Chaco. Seu auxiliar, o Pe. Bandiera, querendo tratar a todos os índios como iguais, presenteou-os de forma que
deixou de distinguir a um dos principais, conforme era tradição na
cultura indígena. Este fato inclusive levou o cacique a se rebelar, e
Bandiera só não foi assassinado porque o Pe. Chomé retornou em tempo
para contornar a situação.
4 Considerações finais
Apresentamos algumas imagens representativas sobre os índios,
os missionários e a redução em vista da constituição de uma sociedade
cristã e civilizada na América do Sul colonial, a partir do escrito de
um missionário jesuíta que atuou no século XVIII na conversão de
índios em reduções na “Chiquitania”.
Os jesuítas consideravam as reduções como espaço de domínio
de Deus sobre as forças do pecado, do inferno e os representantes do
demônio, inserindo-o no território da cristandade com a defesa da
liberdade dos índios diante dos colonos espanhóis e mamelucos portugueses que os queriam como seus escravos. As reduções eram territórios cristãos e da civilização nas fronteiras dos impérios espanhol e
português nas Américas.
Os índios representavam a redução diversamente, muito de acordo com sua relação de inserção, exclusão ou oposição ao sistema. Os
ameaçados pela escravidão a reconheciam como espaço de proteção,
de liberdade e de salvação, a defendiam e buscavam trazer outros parentes a ela; para os que dela fugiam instigados pelos xamãs (feiticeiros ou curandeiros), tratava-se do lugar da perda da liberdade, da subjugação cultural e motivo de castigos e desgraças por abandonarem o
modo de viver de seus antepassados.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
O relato do Pe. Knogler, de 1769, em parte reproduz outros relatos anteriores de companheiros da companhia que estiveram relacionados com as reduções e os índios chiquitos, mas também apresenta
algumas diferenças que se podem atribuir ao gênero literário edificante, a longa experiência missionária entre os chiquitos e ao tempo conjuntural de seu relato. A maioria dos relatos parece ter uma fonte de
referência comum que combinada com outras informações e experiências produz as diferenças nos acentos e detalhes ressaltados.
O memorial do Pe. Francisco Burgés, de 1703, foi escrito na Europa quando ele era o Procurador das missões jesuíticas da Província
do Paraguai, assim como fizera Antônio Ruiz de Montoya em 1639.
Naquela ocasião, Montoya estivera encarregado de defender, diante
do Conselho das Índias e diante do Geral da Companhia, os interesses das reduções contra o avanço dos mamelucos portugueses.
Burgés defende a isenção por vinte anos dos tributos exigidos
pela coroa aos Chiquitanos, recém-reduzidos e convertidos, como forma de incentivo à sua consolidação e ao seu desenvolvimento para
garantia da defesa da fronteira espanhola frente aos constantes ataques e avanços dos portugueses na direção de Santa Cruz de la Sierra
e das minas de Potosi. O relato ressaltou os serviços militares prestados pelos índios guaranis e chiquitanos ao longo do século XVII e
início do XVIII, exagerando a utilidade dos serviços dos neófitos à
coroa e às autoridades metropolitanas na colônia.
O Pe. Juan Patrício Fernandez, como visitador do Provincial nas
missões, escreveu uma “relação historial” (1723) que foi publicada na
Espanha em 1726, como uma narrativa de um superior a outro. Entretanto, esta iniciativa queria, também, contribuir para a exaltação do
sucesso da empresa missionária diante dos reis e da sociedade espanhola e européia. Pretendia-se, assim, contribuir para que se mantivessem o apoio às aspirações e ao projeto da Companhia.
Seu relato se torna um cântico de louvação aos heróicos companheiros da Companhia que lutaram com todas as energias contra as
forças do demônio, e que com a graça milagrosa de Deus alcançaram a
conversão e redução de milhares de gentios que se transformavam em
autênticos homens, cristãos fiéis, súditos espanhóis e partes da civilização.
Pe. Ignácio Chomé nasceu em Flandres em 1696, ingressou na
Companhia de Jesus na Província Galo-Belga em 1716, ordenando-se
185
Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl
padre aos 29 anos, em 1725. Em 1728, partiu da Europa para as missões
na Província do Paraguai chegando naquele ano em Buenos Aires.
Trabalhou um tempo em diversas reduções desde 1730, quando
em 1737 foi chamado para atuar em Chiquitos onde permaneceu até o
fim de seus dias. Teve atuação destacada nos anos finais da redução
de San Ignácio de Zamucos (1737-1745), depois trabalhou entre os
chiquitos em San Miguel, Concepción e San Javier até 1767 donde
saiu por causa da expulsão dos jesuítas, mas no caminho para o Peru,
no regresso à Europa, morreu em Oruro, no começo de 1768.
Pe. Chomé deixou inúmeros escritos, frutos do seu trabalho de
missionário preocupado em comunicar-se na língua dos homens a ele
confiados. Escreveu várias cartas edificantes (Corrientes: 1730; Buenos Aires: 1732; Tarija: 1735; San Ignácio de Zamucos: 1738; San Miguel de Chiquitos: 1746) e trabalhos lingüísticos como: Vocabulário e
arte da língua Chiquita; Vocabulário zamuco; uma história das missões de chiquitos, para formar futuros missionários. Mas também escreveu para os seus neófitos e índios cristãos uma coleção de sermões
em chiquito e fez várias traduções à língua chiquita.
“A relação do que sucedeu no povoado de São Inácio de Zamucos, de 15 de outubro de 1745” é um manuscrito de treze folhas, transcrito e publicado em cinco páginas impressas em espanhol2. Nela,
Chomé relatou e tentou explicar os acontecimentos conflitivos e contraditórios que culminaram com o fechamento definitivo da redução
onde atuava como cura. Trata-se da leitura e interpretação de um cura
de redução que viveu as dificuldades e os conflitos cotidianos numa
redução de população multiétnica, que precisa explicar os fatos aos
seus superiores para a tomada de decisões e novos encaminhamentos
baseados no seu relato.
Todos estes relatos são fontes para o estudo da ação missionária
e a conversão dos índios, que oferecem ao analista farto material para
compreender os processos de negociação, de mediação interétnica, da
pedagogia missionária e da participação dos indígenas no processo de
redução e conversão de inúmeras parcialidades, tribos e nações de
índios.
2
Maiores informações o leitor interessado pode encontrar em TOMICHÁ CHARUPÁ, Roberto.
Carta inédita del Pe. Ignácio Chomé desde San Ignácio de los Zamucos (15 de octubre de 1745)
p. 159-175. In: Anuario de la Academia Boliviana de Historia Eclesiástica, 9. Sucre, 2003.
186
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Referências
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Chiquitos. Un análisis comparativo. Madrid: Tesis doctoral presentada en la
Universidad Complutense de Madrid, 1990.
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para un amigo. In: HOFFMANN Werner. Las misiones jesuíticas entre los chiquitanos. Buenos Aires: CONICET, 1979, p. 121-185.
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RIESTER, Jurgen. En busca de la Loma Santa. La Paz/Cochabamba, 1976.
TOMICHÁ CHARUPÁ, Roberto. La primera evangelización de las reducciones
de Chiquitos. Bolívia (1691-1767). Cochabamba: Verbo Divino, Universidad
Católica Boliviana, Ordo Fratrum Minorum Conv., 2002.
______. Carta inédita del Pe. Ignácio Chomé desde San Ignácio de los Zamucos
(15 de octubre de 1745) p. 159-175. In: Anuario de la Academia Boliviana de
Historia Eclesiástica, 9. Sucre, 2003.
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documentos complementários. Cochabamba: Verbo Divino, 2008.
TONELLI JUSITINIANO, Oscar. Reseña Histórica social y econômica de la Chiquitania. Santa Cuz de la Sierra: El País, 2004, 405 p.
______. Santa Ana La Cenicienta Chiquitana. Santa Cruz de la Sierra: El País,
2006, 336 p.
187
As paixões e o campo platino: a barbárie
e a sensibilidade dos excessos
Luís Alexandre Cerveira
As discussões apresentadas aqui são, como sempre nas análises
historiográficas, fruto de questões surgidas no tempo presente. Através
da observação do grande interesse demonstrado pelas pessoas e pela
atenção dedicada pela mídia no que diz respeito à paixão, nossa investigação se voltou para a necessidade de compreender como, em outro
espaço e outra temporalidade, as populações viviam e percebiam a paixão.
O recorte espacial e temporal, assim como as pessoas e instituições envolvidas que foram alvo de nossa investigação historiográfica,
foram orientados pela própria documentação que nos foi disponibilizada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. Um conjunto de mais de
duas mil páginas de Cartas Ânuas da Companhia de Jesus relativas às
suas atividades no espaço platino, referentes à primeira metade do
século XVIII.
Nosso interesse recaiu, especificamente, em identificar e analisar as estratégias usadas pela Companhia de Jesus para o combate e a
supressão das paixões no ambiente rural, já que logo percebemos o
fato que, ao contrário do que ocorre no tempo presente, no Prata do
século XVIII, as paixões não eram vistas com bons olhos e, mais que
isso, eram objeto de preocupação e mal a ser eliminado ou convertido
em bem. São objetos de investigação, também, a verificação da ocorrência das denominadas “artes de fazer” – as táticas –, porventura empregadas por essa população rural platina a fim de manter suas práticas
pautadas nas paixões, e o esforço de constatação de semelhanças e diferenças entre a vivência das paixões nas áreas rurais e nas áreas urbanas.
Luís Alexandre Cerveira é Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
professor do Colégio Batista, em Porto Alegre, e Santa Terezinha, em Campo Bom – RS.
E-mail: [email protected]
188
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
A vivência das paixões no campo traz em si uma característica
que a singulariza. O ambiente rural – o campo, o pampa ou sertão –
parece ter sido o espaço por excelência do viver sem amarras, de um
viver espontâneo e sem grandes contenções, facilitado por uma ocupação humana esparsa e pelas longas distâncias dos centros urbanos.
É em razão disso que a discussão que proponho contempla a reflexão
sobre esta pretensa licenciosidade, ao questionar se ela ocorreu de
fato, ou foi, antes, uma construção daqueles que pretendiam implementar aí outro modelo de sensibilidade.
Esse modo de vida tem sido identificado, já de longa data, como
antinômico em relação ao experimentado no espaço citadino, pois desde
os “tempos da Renascença, a cidade fora sinônimo de civilidade, o
campo de rudeza e rusticidade” (THOMAS, 1988, p. 290). Os ares civilizados da pólis grega haviam seduzido os homens do início da Idade Moderna, convencidos de que o isolamento, a solidão e a falta dos
mecanismos de controle e coerção das cidades produziam, no campo,
uma sociedade “bárbara”. O antagonismo entre barbárie/campo e civilização/cidade não mais saiu da pauta daqueles que se propuseram a
pensar a formação do Estado, da sociedade e, por conseqüência, do
agir destes grupos humanos.
É clássica a relação feita por Hobbes em sua obra o “Leviatã”
(1999, p. 113) em que o estado de “natureza” é uma situação de barbárie,
no qual os homens estão sob o controle de suas paixões sem nenhum
limitador externo. Logo, sua proposta de implantação de um Estado
passa pela supressão das paixões através da mão forte do Leviatã.
A concepção de um binômio entre “Barbárie x Civilização”, entretanto, não foi uma exclusividade dos pensadores europeus. A América espanhola não ficou imune a esta categorização das populações e
dos comportamentos humanos. No período pós-independência argentina, na década de trinta do século XIX, momento em que o país vivia
a experiência política singular da disputa entre federalistas e unitários,
Domingo F. Sarmiento escreveu o seu “Facundo: civilização e barbárie” (1938), procurando, de um lado, explicar o que era a Argentina de
meados do século XIX sob o comando de Rosas – a quem considerava
um caudilho oriundo de uma região bárbara/rural – e, de outro, propor um caminho pautado na idéia de civilização que levaria seu país a
patamares europeus. A obra parece ter marcado profundamente a sociedade platina, a ponto de interferir na forma como esta se percebe
ou se enxerga no tempo.
189
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
José Carlos Barran, em sua obra “Historia de la sensibilidade en
el Uruguay”, retoma os conceitos de Sarmiento, discutindo-os em dois
tomos. O Tomo I é intitulado “La cultura barbara”, e o Tomo II, chamado “El disciplinamiento”, trata dos mecanismos de disciplinamento e
da busca pela produção de uma sensibilidade “civilizada”:
A este tipo de sensibilidad, dominante, sin dudas, hasta la década que se
inicia en 1860, muchos integrantes de las clases dirigentes le dieron en
nombre de “bárbara”. En 1845, Domingos Faustino Sarmiento tomó su
antinomia barbarie y civilización de este medio social al que pertencia,
asignándole tanto un contenido geográfico – vinculando la barbarie con
el medio rural e identificando la civilización con las ciudades – como
otro valorativo (…) (BARRAN,1991, p. 14).
Barran, entretanto, não aceita a relação direta entre campo/barbárie e cidade/civilização, sustentando sua escolha menos no determinismo geográfico e mais em uma “funcionalidad que existió entre
la economía de la abundancia con las ‘plétoras’ de ganado vacuno de
1800 a 1860 y la sensibilidad valoradora del placer y el juego”. Ou
seja, uma relação entre economia “ganadera” e uma sensibilidad “frouxa” pautada pelo prazer e pelo jogo e, de outro lado, uma sensibilidade “civilizada” em um “Uruguay casi burgués de 1890 y la represión
del ocio y la sexualidad” (1991, p. 16).
Julgo importante desvendar a compreensão dos conceitos de
“barbárie” e “civilização” empregados por Barran, na medida em que
seus estudos sobre o Uruguai “bárbaro” do século XIX servem, em
termos de aproximação, para a análise da vivência das paixões próprias
do ambiente rural platino da primeira metade do século XVIII que
pretendo aqui desenvolver.
Ainda que o referido autor não estabeleça uma relação objetiva
entre o ambiente rural e a “barbárie”, Montevidéu é descrita como uma
cidade com alma campesina. Suas bem documentadas descrições da
vida da cidade no Oitocentos a aproximam, em função dos aspectos
econômicos já mencionados, com o modo de vida frouxo e intenso
dos campos orientais. No segundo tomo de sua obra (1990), Barran
trata quase que de um processo de civilização da própria cidade, propondo-se a fazer “una historia de las emociones; de la rotundidad o la
brevedad culposa de la risa y el goce; de la pásion que lo invade todo,
asta la vida pública”. O processo que o autor uruguaio persegue, portanto, é aquele que quer fazer das paixões algo “encogido y reducido a
190
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
la intimidad; del cuerpo desenvuelto o del encorsetado por la vestimenta y la coacción social que juzga impúdica toda soltura” (1991,
p. 15).
O conceito de sensibilidade “bárbara” de Barran me parece perfeitamente adequado para o estudo aqui proposto, já que esta sensibilidade dos excessos não foi outra coisa senão uma sensibilidade apaixonada. Para ele, “la historia de la sensibilidad en ese Uruguay del
siglo XIX es la de la lenta desaparición del pathos y la también lenta
aparición del freno de las ‘pasiones interiores’.”(1991, p. 11) Acredito,
portanto, que uma aproximação com o trabalho deste autor seja bastante produtiva, na medida em que ele se deteve no estudo das estratégias adotadas pelo estado uruguaio para o estabelecimento de uma
nova subjetividade “burguesa”, que implicava pôr freios nas paixões
interiores. De minha parte, esta nova subjetividade será analisada a
partir das estratégias empregadas pelos jesuítas para o estabelecimento de uma reforma dos costumes que compreendeu a supressão ou o
controle das paixões.
Deve-se considerar que os inacianos, freqüentemente, se referem,
em suas correspondências, ao processo de “reforma dos costumes”,
apresentando-o como um dos principais objetivos do trabalho missionário, aproximando-se da idéia de sensibilidade “civilizada” que expusemos acima. É claro que, no caso dos jesuítas, o modelo a ser seguido
era aquele definido pela Igreja, o comportamento cristão exemplar, enquanto que no caso do Uruguai do século XIX havia uma sensibilidade
civilizada que atendia aos padrões e interesses burgueses.
No que diz respeito à sensibilidade “bárbara”, me parece que os
conceitos são ainda mais próximos. Ainda que a documentação não se
refira – de forma recorrente – ao termo “barbárie”, a descrição que ela
traz da vida camponesa em muito se aproxima da idéia de um modo
de vida bárbaro, não civilizado. Sobre este modo de vida, Barran afirma que, para compreendê-lo, era preciso “analizar la violencia, el juego, la sexualidad y la muerte [que] nos acercará a la médula de esa
época, a los rasgos colectivos y seguramente intransferibles de una
forma de sentir” (1991, p. 13).
A documentação consultada assim descreve o modo de viver nas
regiões rurais do Prata: “Hay muchos incentivos al pecado, y los males
ocasionales son tan abundantes y provocativas, pierdem ellos muy facilmente la gracia de Dios, y se precipitan a los vícios.” (Cartas Ânuas,
191
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
1730-1735, p. 5) Estes vícios incluem uma entrega desenfreada às paixões do corpo, à luxúria, aos jogos de azar, que incluíam a avareza e a
compulsão, além de atos de violência como brigas e assassinatos, aí
presentes a ira e a inveja.
O modo de vida das populações rurais – a partir da análise de
uma documentação que não tem origem clerical – é o foco do trabalho
Elite, Pulpería y Disciplina Social. San Juan de la Frontera, 1750-1770,
de Mário A. Solar Mancilla (2005), que adverte que “la fuente que nos
permite, en parte, reconstruir sus modalidades de vida es la judicial”
(MANCILLA, 2005, p. 112). Cabe ressaltar, entretanto, que San Juan
de la Frontera não está localizada na região compreendida como platina. Estando ao norte da Província de Mendoza, a sudoeste de La Rioja
e a leste dos Andes e do Chile, San Juan possuía uma economia baseada na produção de vinhos e criação de gado, ou seja, fortemente rural. Portanto, creio que há mais semelhanças do que diferenças entre a
população de San Juan e as que aqui analisamos, o que permite algumas aproximações para efeito de análise.
As descrições presentes nas fontes judiciais utilizadas, portanto, assemelham-se muito às descrições feitas pelos missionários das
população campesina, como pode ser constatado nesta transcrição:
Las pendencias, heridas y muertes, lógicamente no tenían lugar en aquellas, que estaban más cerca de ser tiendas o almacenes que tabernas, sino
en los ranchos improvisados donde se daban cita los hombres para dar
rienda suelta a los placeres de la vida (…) Los pucheros calientes, los
matahambres, y las empanadas iban acompañados por el aguardiente, los
juegos de azar y por el infaltable cantor popular que amenizaba el fandango, haciendo olvidar por algunas horas el rigor de la vida. Pero también en
medio de esa algarabía una palabra mal dicha, una bufonada, no responder
un saludo, creaba las condiciones para que la festividad terminara en una
pelea campal, con un herido o un muerto (MANCILLA, 2005, p. 134).
Nos registros civis, judiciais e da imprensa sobre o Uruguai do
século XIX – utilizados por Barran –, nas Cartas Jesuítas que se referem à população platina do século XVIII, ou, ainda, na documentação
judicial relativa à população rural de San Juan de la Frontera, há uma
adjetivação constantemente referida na descrição destas populações
que se poderia denominar de “bárbara”, tomando a expressão de empréstimo a Barran. Esta sensibilidade “bárbara” – como Barran a denominou – tem como característica a predominância de um comportamento pautado por “excessos”, um comportamento que, no geral,
192
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
não se dobra às ordenanças clericais, estatais ou judiciais. No Brasil
português, especialmente no que hoje é o estado de Minas Gerais, a
antinomia entre civilização e barbárie também esteve presente. Ainda
que a região mineradora brasileira apresente características geográficas – é, no geral, montanhosa – e econômicas diferentes do espaço
platino, já que possuía grandes riquezas minerais, creio que sejam
possíveis aproximações no sentido de nos ajudar a compreender de
forma mais ampla a questão. Lá, no chamado sertão, eram os “paulistas”, em vez de gaúchos ou campesinos platinos, os que recebiam a pecha de incivilizados ou bárbaros. Em seu recente estudo sobre a violência e o crime nas Minas Setecentistas, Carla Maria Junho Anastasia refere que sobre os paulistas se dizia que “não possuíam civilização, eram
selvagens”, pois “ficam sem cultura, ou nas suas povoações, ou metidos no mato, onde andam anos sem mais provimento para sua subsistência que pólvora, munição e machados” (ANASTASIA, 2005, p. 53).
Nas Cartas Ânuas, por sua vez, o excesso se expressava, sobretudo, na ignorância em relação às coisas espirituais, uma “ignorancia
religiosa (que) entre ellos es excessiva” (C.A. 1750-1756, p. 7), indicando que seus comportamentos estavam longe daqueles desejados
pela igreja, por serem “inclinados a toda classe de vicios, a robos, perjurios, deshonestidades, adultérios, al juego y a la holgazanería” (C.A.
1756-1762, p. 95). Considerando que o excesso e o descontrole são
características fundamentais da paixão, é possível afirmar que a sensibilidade bárbara predominante no campo é uma sensibilidade em
que a paixão é a protagonista.
Para os missionários jesuítas, tornou-se imperativo compreender as razões que levavam as populações campesinas a viverem “como
infieles, y peor aún” (C.A. 1756-1762, p. 95) e “no tienen [de] cristianos si no el nombre”. Diante desta constatação, e considerando que os
jesuítas possuíam forte visão estratégica para o cumprimento de sua
missão, eles acabaram por “estudiar este asunto a fondo” (C.A. 17501756, p. 7), de modo a modificar a situação.
Em suas descrições deste modo de vida “bárbaro”– regido, sobretudo, pela paixão – os missionários se valem de uma qualificação
usual, a de que eram “brutos” (C.A. 1750-1756, p. 7). É interessante
notar que o adjetivo pode significar rudeza, algo de conduta imprópria, o que certamente caracterizava os comportamentos excessivos
daquelas populações. Entretanto, “bruto” também pode ser tomado
como algo não lapidado, que se mantém em seu estado original.
193
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
A idéia que fica é que estas populações estariam em um estado
de “barbárie”, de selvageria, já que “se retiran ellos a lugares apartados
y a la espesa selva, como si fuesen fieras” (C.A. 1750-1756, p. 8). Interessante notar que um padre chega a nos informar que, devido à chegada da missão nas regiões rurais da Província Jesuítica do Paraguai,
os campesinos saíam dos seus “encondrijos” (C.A. 1750-1756, p. 7),
termo muito usado para caracterizar não só os lugares onde animais
se escondem, mas também onde se refugiam indivíduos que vivem
fora do controle do Estado.
Acredito, portanto, que se pode inferir aqui a presença do conceito de paixão – como algo constitutivo do ser –, como pensado por
Aristóteles e Tomás de Aquino, já que, segundo suas concepções, a
paixão se relaciona diretamente com o que há de mais primitivo no
ser. Um comportamento “bruto”, “bárbaro”, de alguma forma os aproximava dos animais, de um estado de primitivismo próprio daqueles
que ainda não haviam sido lapidados pelo cristianismo ou pela reforma dos costumes. Outra avaliação recorrente na documentação é a de
que estas populações eram infiéis, o que de alguma forma os isentava
de culpa, já que “los más de ellos son malos más bien por ignorância
que por malicia” (C.A. 1750-1756, p. 7).
A idéia presente nesta descrição pressupõe uma identificação
entre as populações campestres e os infiéis, nesse caso, especificamente os indígenas que não aceitavam ser reduzidos pelas missões
jesuítas, e que, vivendo a seu modo, não raras vezes atacavam as populações nas cidades, pueblos e fazendas, já que estas áreas antes eram
parte de seu território. Essa aproximação, portanto, brutaliza os habitantes do campo, os torna selvagens, e, por conseqüência, reféns de
seus instintos mais primitivos, suas pulsões ou suas paixões.
A razão para o estado de “barbárie” em que se encontravam estas
populações, segundo a Carta Ânua, é que “si descubre qui (...) los seglares que los debían bautizar (obligando a eso la necessidad, por estar lejos los párocos), no se han servido de la debida fórmula” (C.A.
1750-1756, p. 7). Além disso, o clero secular não estava cumprindo
seu papel, já que “por su péssima vida eran antes el escándalo de toda
la comarca” (C.A. 1730-1735, p. 107).
Além do mau exemplo do clero secular, que, ao que parece, acaba por se “barbarizar” dando vazão às suas paixões, outro fator que
contribuía para as más condutas era o isolamento em que viviam as
194
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
populações. Por se encontrarem espalhados pela extensa zona rural,
era “indescriptible la necesidad espiritual de aquellos campesinos,
diseminados por alli, viviendo ellos muy distantes los unos de los
otro” (C.A. 1756-1762, p. 95). Em razão disso, “raras veces vienen ellos
a misa, y más raras veces reciben ellos los sacramentos. Los más de
ellos no conocen a su cura-pároco ni siquiera de vista” (C.A. 17501756, p. 7). O isolamento e a falta de assistência espiritual levavam,
na percepção dos religiosos da Companhia de Jesus, esta gente a viver
“más bien, como brutos” (C.A. 1756-1762, p. 95).
A opinião de que os ambientes rurais, marcados pelo isolamento e pelo afastamento da comunidade cristã, acabavam por brutalizar e
“barbarizar” as populações campesinas não era expressa apenas pelos
padres jesuítas. Em 1785, o governador de Córdoba escreve ao vice-rei
exprimindo opinião muito semelhante:
En la jurisdicción de esta se hallan más que en otra, dispersas varias
familias de mestizos e indios por aquellas dilatadas llanuras y quebradas,
que de tiempo inmemorial viven de ésta forma, sin que los jueces sean
bastantes a vigilar sus operaciones, ni pueda alcanzarle el pasto espiritual
y es de presumir que al quererlos sacar de éste genero de vida para
reducirlos a población, se profugen lo más porque aborrecen la sociedad
(TORRE apud MANCILLA, 2005, p. 109).
Alguns anos antes, quando a região de San Juan de la Frontera
estava ainda submetida à Audiência do Chile, outra reclamação referia que o “bajo pueblo... sólo vive ocioso e inútilmente en sus ranchos
infelises, robando ganado de las estancias inmediatas...” (MANCILLA,
2005, p. 110).
Ao que parece, a visão que tinham as pessoas que moravam nas
cidades, ou mesmo nas estâncias “urbanizadas”, nas quais as instituições como a Igreja e o Estado possuíam suas sedes, era de que o campo
era o espaço da violência, da sexualidade desenfreada, do ócio, do
jogo, enfim, do espaço da barbárie e, porque não dizer, da paixão. A
questão proposta por Silveira ao estudar as Minas dos Setecentos, e
que nos serve em termos de aproximação, é de que “a manutenção de
hábitos considerados bruscos e violentos e da excessiva licenciosidade de outrora fazia com que as pessoas que permaneciam ligadas a
essas posturas antigas tendiam a ser associadas ao oposto dessa regrada ‘civilização’, isto é, à ‘barbárie’” (SILVEIRA, 1997, p. 35).
195
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
Ainda que, no campo, as pessoas tenham tido algumas vivências
bastante específicas – em função do ambiente em que moravam –, como
veremos mais adiante, não creio que, no geral, elas tenham sido tão
diferentes daquelas experimentadas pelos moradores das cidades. Isso
porque, ao estudarmos os comportamentos citadinos (CERVEIRA,
2008), observamos que estes incluíam a luxúria, a violência, a mentira, a dissimulação e outras tantas práticas considerados não virtuosas
pela ótica cristã.
Se aceitarmos a argumentação de que o ambiente rural permite
uma forma de vida sem tantos limitadores como os encontrados na
cidade – em que o aparato estatal e clerical está presente e vigilante –,
teremos de admitir que, no campo, o ambiente rural permite uma vida
de maiores excessos, uma vida em que muitas das paixões vividas
pelos citadinos se exacerbam e outras, específicas, têm lugar. Este argumento pode, portanto, partir da premissa conceitual de que o espaço natural é “(...) uma área indeterminada que existe previamente na
materialidade física” (BARROS apud SANTOS, 2004, p. 15), que ao
ser trabalhado pela ação humana se transformaria em espaço produzido:
É um resultado da ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações sociais que deram origem. Nesse sentido, a paisagem manifesta a historicidade do desenvolvimento humano,
associando objetos fixados ao solo e geneticamente datados. Tais objetos exprimem a espacialidade de organizações sócio-políticas específicas e se articulam sempre numa funcionalidade do presente (MORAES
apud ARRUDA, 2000, p. 26).
O ambiente rural se encontraria, nesta perspectiva, em um estágio intermediário entre o espaço natural e o espaço produzido. A historiografia tem destacado que as autoridades espanholas, desde o aumento das tensões no campo ocorrido em princípios do século XVIII, tentaram, através de uma “política de fundación de pueblos y villas (...),
intervenir el espacio, racionalizarlo y controlar a sus ocupantes” (MANCILLA, 2005, p. 110), o que acabou, contudo, não dando resultado.
A Companhia de Jesus, apesar de reconhecer as dificuldades
que o ambiente rural apresentava, não se furtou de cumprir aquilo
que acreditava ser seu papel. Se os cura-párocos locais tinham falhado porque “no se han servido de la debida fórmula” (C.A. 1750-1756,
p. 7), os jesuítas haviam, desde o início do século XVII, chamado para
196
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
si a responsabilidade de evangelizar e civilizar estas populações campesinas.
Em 1609, o Provincial Diego de Torres havia recebido a incumbência do Padre Geral Cláudio Acquaviva de que os jesuítas deveriam
sair, sempre que possível, a pregar missões. Logo depois, em 1627, o
Prepósito Geral da Companhia de Jesus reafirmava a ordem de que
fossem realizadas missões “por los pueblos de los indios, y por las
estancias de los espanholes, adonde, según me informan, hay gente
muy necessitada” (ZEN,1995, p. 55-56).
Estas missões consistiram numa variação das missões populares surgidas na Europa, ainda no século XVI, e que na América receberam a denominação de missões campestres. As condições adversas
impostas pelo relevo e pelo clima, as ameaças de indígenas “infiéis”, e
mesmo a falta de pessoal, são bastante enfatizadas pelos missionários
empenhados na realização dessas missões:
Impulsados sólo por tales sentimientos, salen nuestros Padres cada año
dos o tres veces de sus respectivos colegios, a estos las más de las veces
muy difíciles por tupidas selvas, empinadas montarías, escarpas rocas
sirviéndose ahora de una carreta agreste, o de un jumento, o andando a
pie, cada vez por unas 200 leguas... Dura dos o tres meses cada una de
estas misiones rurales... Hay que añadir a todo esto inminente asalto de
los indios infieles, los cuales infestan hoy día con sus invasiones, toda la
Provincia del Tucumán (C.A. 1730-1735, p. 4).
Cabe lembrar que as estratégias se valem de “cálculos objetivos”
e de “sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar
próprio ou pela instituição” (CERTEAU, 2004, p. 47). Ou seja, sua eficácia se dá a partir de ações estruturadas racionalmente e que necessitam do domínio exercido através de mecanismos de controle, que, no
geral, são devedoras de um domínio significativo sobre o espaço.
Se considerarmos as descrições do campo que aqui apresentamos – tais como a de um espaço de difícil controle, no qual as populações viviam de forma “bárbara” e “selvagem” –, acredito que se deva
relativizar a eficiência das estratégias jesuíticas. Prova disso é que,
ao contrário de todo aparato de que dispunha a Companhia de Jesus
nas cidades – como as residências, as confrarias, os colégios ou as
universidades, além das igrejas e da própria presença física dos membros da Companhia –, no campo, a situação que encontramos é bastante diversa.
197
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
Do ponto de vista da estrutura física propriamente dita, nas regiões mais distantes, não havia mais que “capillas, levantadas a grandes intervalos”. Quando os padres chegavam para fazer a missão, a
população, que normalmente era avisada com antecedência, não se
reúne em “una aldeia determinada, si no distan sus casas tres cuartos
y mas leguas una de la otra” (C.A. 1750-1756, p. 7). Agrupando-se em
torno de uma povoação, que normalmente comportava a capela, ali
assistiam à pregação da missão.
Segundo a documentação, a audiência era muito boa, já que, na
zona rural de Tarija, em uma única missão se “confessaron a muchíssima gente: en una sola de estas missiones más de 4.000”. Entre estes,
inclusive “los eclesiásticos los quales por su péssima vida eran antes
el escándalo de toda la comarca” (C.A. 1730-1735, p. 107). Isto reforça
o que foi dito anteriormente, de que não era somente o ambiente inóspito e a falta de padres que motivavam a vida desregrada dos camponeses. O fator mais prejudicial era, sem dúvida, o trabalho relapso e a
vida “pecaminosa” levada pelos poucos cura-párocos que vivam nas
áreas rurais.
Apesar dos poucos recursos e da falta de estrutura, os padres
que pregavam nas missões campestres procuravam manter o mesmo
modus operandi das missões populares urbanas. Ainda que muitas
das vilas e muitos dos povoados que recebiam a missão não possuíssem largas e bem traçadas ruas, nem praças espaçosas em frente às
igrejas, acredito que, de algum modo, a Companhia de Jesus manteve
sua estratégia de conversão.
Entretanto, se as “peças” mais importantes da “máquina” jesuítica de conversão/evangelização e civilização, sua universidade, seus
colégios e suas residências, estão a léguas de distância, o que percebo
é que seus missionários – empenhados nas missões campestres – ganham importância, a ponto de priorizar sua função como atores do
teatro da fé. Se, por um lado, não é possível pensar numa “cidade
teatro”, dada a ausência concreta da cidade, por outro, creio que seja
possível pensar em um grande espetáculo teatral a céu aberto.
A chegada do padre que realizaria a missão era normalmente
preparada por algum clérigo secular ou liderança do lugarejo. Dependendo da distância, seu deslocamento se dava a cavalo ou de barco.
Recebido fora do vilarejo, o padre se paramentava e, seguido por um
bom grupo de fiéis, liderava uma procissão, adentrando o povoado e
198
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
percorrendo as poucas ruas e espaços que as condições do lugar permitissem.
Creio ser oportuna a reflexão sobre o que representava a chegada
desses missionários jesuítas em termos de acontecimento mesmo. A
documentação informa que a maioria das pessoas que se reunia nos
vilarejos para assistir à pregação da missão vinha de muito longe, de
lugares bastante isolados. As opções de lazer dessas pessoas, como
veremos mais adiante, eram essencialmente dirigidas aos homens e
tinham como lugar os ranchos onde havia bebidas alcoólicas, jogos,
músicas e mulheres. As pessoas dessas localidades “muy raras veces
vienen a misa, ni en las fiestas mayores” (C.A. 1756-1762, p. 95), logo,
a simples chegada do padre missionário, com todo seu aparato litúrgico e sua entrada triunfal e teatral na cidade, seguida da movimentação de contingentes consideráveis de população, era um importante
acontecimento.
Para um grande espetáculo, espera-se uma grande platéia. Os
missionários da Companhia, no geral, a tiveram. Em função do número, por vezes elevado, de pessoas que vinha de longe para assistir à
pregação da missão, muitos povoados, desprovidos de estrutura, não
conseguiam acomodar todas essas pessoas. A solução encontrada por
muitos era a de permanecerem “morando (durante a missão) em suas
carretas ou levantavam tendas e barracas com galhos de árvores”. Desta
forma, a própria platéia dava brilho e interagia com o espetáculo, pois
“o lugarejo, antes quase solitário, aparecia, então, como por encanto e,
por poucos dias, uma povoação bastante numerosa (ZEN, 1995, p. 73).
Se já havia uma platéia que, por vezes, se tornava elenco – quando fazia sua parte das procissões e dos demais ritos litúrgicos – e o
palco era a céu aberto, na praça ou nas poucas ruas dos vilarejos, é
certo que os atores principais eram os missionários.
O roteiro desse “teatro da fé” rural era muito semelhante ao seu
correlato citadino. Cada ato da peça deveria ser aproveitado da melhor forma possível. O tempo destinado para a missão era curto, no
geral uma semana, e, além disso, o padre nem sempre sabia quando
retornaria ao vilarejo. A dimensão do trabalho a ser feito fica evidenciada na informação de que em “sus almas en otros tiempos por los
padres, a la par que crece y medra la mala yerba de tal modo, que casi
siempre tienen los Padres que comenzar de nuevo con trabajosa roza
de la cizaña y con la siembra de la sementera” (C.A. 1730-1735, p. 5).
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As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
As missas e as confissões diárias se mantinham tal qual nas
missões urbanas, sendo que as últimas ganhavam enorme importância, na medida em que o padre ao “perguntarlos cuanto tiempo hace que
ya no se han confessado”, obtinha a resposta de que “desde que han
pasado por aquí los santos Padres. Por lo tanto, sucede que esta pobre
gente queda tres o cuatro años sin confesarse” (C.A. 1750-1756, p. 9).
As confissões – e as conseqüentes absolvições – eram fundamentais para a missão, pois reinseriam os habitantes das áreas não
urbanas numa vida cristã piedosa. Segundo Zen, as confissões eram,
no entanto, tarefa “dificultosa e desgastante para os missionários. Isso
porque os penitentes, talvez em sua maioria, até desconheciam os primeiros elementos da doutrina cristã ou pelo menos não sabiam como
confessar-se (sic)” (1995, p. 101).
A missão campestre proporcionava a confissão dos pecados e
oportunizava a recepção de sacramentos – como o batismo – e a regularização das uniões através dos casamentos. Estes momentos serviam,
sobretudo, para alcançar os rebanhos desgarrados de cristãos apenas
nominais. Além de serem momentos festivos desfrutados entre familiares e amigos – como os do batismo ou do casamento – eram, também, momentos ritualizados que acabavam por ser uma “encenação”
muito proveitosa ao reunirem uma platéia que talvez de outro modo
não estivesse ali.
Os batismos eram importantes momentos da missão campestre
na medida em que, através desse sacramento, as crianças eram não só
inseridas na comunidade cristã, como também afastadas do limbo,
em caso de morte. Sua importância aumentava em decorrência do precário atendimento espiritual nas áreas rurais, o que levava os padres
jesuítas a realizarem muitos batizados. A documentação informa que,
após a missa, o missionário “bautiza el primeo todos los ninõs nascidos durante el año pasado” (C. A. 1735-1743, p. 159). Além das crianças, não era raro o batismo de adultos que nunca haviam recebido o
sacramento.
A realização de matrimônios era outra tarefa fundamental dos
missionários durante as missões campestres. Os casamentos – como
era de se esperar – não se limitavam aos solteiros. A situação de isolamento e carência de assistência espiritual motivava muitos amancebamentos e mesmo separações, que se buscavam reverter através das
missões:
200
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Un buen número de solteros se casó, y todavía se están casando, otros,
para vivir en gracia de Dios, después de haber vivido sin casarse, para
vivir más libremente de una manera disoluta. Una buena porción de matrimonios aparentes hubo que revalidar. Otros matrimonios, deshechos
por la discordia, se volvieran a la paz y concordia (C. A. 1735-1743, p.
159-160).
Práticas bastante peculiares das missões campestres eram as
procissões, o assalto espiritual ou rondas religiosas, a procissão geral
de penitência, o perdão dos inimigos, as comunhões e o período de
flagelações. Numa comparação com as práticas adotadas nas missões
populares urbanas, talvez a mais prejudicada nas missões campestres
tenha sido a dos Exercícios Espirituais. Em geral, para que pudessem
ser feitos de forma mais eficiente nas cidades, os exercícios eram realizados numa casa que pertencesse à Companhia, ou tivesse sido cedida por algum morador importante. No caso dos vilarejos, muitas
vezes não havia casas à disposição ou que comportassem o grande
número de fiéis que buscavam participar dos exercícios.
A alternativa encontrada foi empregar os ensinamentos de Santo Inácio como um roteiro nas pregações públicas, especialmente os
exercícios da “primeira semana”, nos quais os exercitantes eram levados a meditar sobre o pecado e a buscar uma vida nova. De acordo
com Zen, “poderíamos afirmar que elas eram Exercícios Espirituais
abertos segundo o precioso livrinho dos Exercícios Espirituais de
Santo Inácio” (1995, p. 54).
Se faltavam condições mais adequadas – como nas cidades, especialmente em termos de estrutura física – para a montagem das estratégias de conversão dos camponeses “bárbaros” e reféns de suas
paixões, por que não fazer uso daqueles recursos empregados nas
missões urbanas? Se havia excessos nos comportamentos, por que
não redirecioná-los para o “teatro da fé”?
Parece-me que podemos aproximar esta sensibilidade – carregada de excessos e que caracterizava também as populações campesinas
– daquela de que nos fala Barran, ao referir-se ao Uruguai do século
XIX: “¿Qué sensibilidad era esta que hacía derramar el llanto en público a las mujeres de la cazuela ante la representación de ‘La Traviata’
(...)?” (BARRAN, 1991, p. 12). Uma sensibilidade marcada pelo excesso
– e por que não dizer, apaixonada – que será eficientemente direcionada para o comportamento adequado e almejado, através dos recursos teatrais e retóricos empregados pelos jesuítas. O emprego e o êxito
201
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
dessa estratégia jesuítica foram registrados pelos missionários que nos
informam que as populações campesinas ficavam dias “no haciendo
caso ya de sus casas y habitaciones (...) Y no se pierde ninguna palabra de los padres, se arrepienten con grandes señales de dolor, y vuelven a juicio” (C.A. 1750-1756, p. 7). Isso ocorria, segundo o jesuíta, de
forma constante e generalizada, nos muitos pueblos que serviam de
base para a realização das missões campestres. Ou seja, talvez se possa dizer, que a mesma sensibilidade apaixonada – que caracterizou os
espetáculos profanos de Montevidéo – esteve presente nas missões
campestres da região platina.
Os missionários jesuítas logo compreenderam que todo este excesso – esta paixão à flor da pele – poderia ser reorientado, operandose a transição do profano para o sagrado. A mesma pulsão, a mesma
força motora que havia servido ao pecado, poderia estar a serviço da
virtude, pois “habíendo aprendido ellas despreciar al cuerpo tanto
más implacavelente, cuanto más indebidamente ántes le habían regalado” (C.A. 1730-1735, p. 62). O caso descrito pelo jesuíta refere-se a
um grupo de mulheres de Buenos Aires que, fazendo o uso de seus
direitos, pleiteou que lhe fosse facultada a prática dos Exercícios Espirituais. Após terem conseguido a aprovação, estas mulheres teriam
chegado a extremos durante a autoflagelação. Tais excessos, conforme
a documentação, eram resultado de uma relação direta de inversão.
Aquelas que mais pecavam antes dos Exercícios e da conversão, eram
as que mais se martirizavam.
Nessa mesma linha de raciocínio, Barran sustenta que “lo que
sucedió fue que esta cultura no diferenció claramente el trabajo del
juego, lo ‘sagrado’ de lo ‘profano’ (...) En el sentir de la sensibilidad
“bárbara” (BARRAN, 1991, p. 99). Para ele, portanto, diferentemente
do que pensava Durkheim, há na sensibilidade “bárbara” uma outra
lógica que não aquela baseada em uma divisão estanque entre as esferas religiosa e não-religiosa. Ainda que haja claros indícios dessa lógica nas extensas e intensas práticas de autoflagelação, esta discussão
não será alvo de maior atenção neste trabalho. Acredito, no entanto,
que havia muito mais do que fervor religioso nos excessos cometidos
durante os períodos de penitência.
Apesar de todo o esforço estratégico da Companhia de Jesus, ao
que parece, o campo continuou sendo o espaço privilegiado da paixão. Um dos padres – envolvido nas missóes campestres – reconhece
que os vícios e as ocasiões para pecar eram tantas que isto acabava por
202
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
sufocar a boa semente “esparcida en sus almas en otros tiempos por los
padres, a la par que crece y medra la mala yerba de tal modo, que casi
siempre tienen los Padres que comenzar de nuevo con trabajosa roza de
la cizaña y con la siembra de la sementera” (C.A. 1730-1735, p. 5).
Este registro nos revela, ainda, que apesar das missões anuais
realizadas nas áreas rurais e das realizadas nas áreas urbanas, as populações agiam como se antes não tivesse havido qualquer trabalho
de evangelização .
No caso das missões campestres, a descrição das dificuldades
encontradas dá fortes evidências de que os resultados, não poucas
vezes, haviam sido intensos, mas fugazes como a paixão. Muitas vezes, talvez em sua maioria, os campesinos – terminada a missão –
voltavam ao seu dia-a-dia e o sermão emocionado e persuasivo ficava
na lembrança. A paixão, sem o direcionamento para o sagrado, acabava sendo canalizada novamente para o profano.
As paixões a que se entregava a “chusma mal entretenida” –
designação recorrente na documentação judicial ao se referir à população rural de San Juan de la Frontera – tais como “el ocio, el vagabundaje,
el alcoholismo, la violencia, el robo, el amancebamiento” (MANCILLA,
2005, p. 110), em parte se assemelhavam às vividas pelos habitantes
das cidades, apesar de apresentarem suas especificidades. Neste espaço – marcado pela solidão rural, pela distância do controle da Igreja
e das pressões da civilização –, essas paixões ganhavam matizes muito
próprios.
As expressões da paixão-luxúria – que encontramos nas cidades – estiveram também muito presentes no campo. Nele, entretanto,
essa paixão foi potencializada devido a uma série de fatores.
Para Carlos A. Mayo, uma das principais razões para uma vivência intensa da paixão-luxúria era a existência de “un mercado de mujeres matrimoniables como aquel, estrecho y oligopólico”, fazendo com
que “ la vida sexual y amorosa de la plebe rural (...) estaba signada por
la ilegitimidad, las uniones informales y la precariedad” (MAYO, 1996,
p. 139).
A situação, segundo Mayo, se tornava ainda mais complicada,
porque os setores altos e médios “de la sociedad rural ejercían un
virtual monopolio del mercado femenino (...). Hacia 1815 el 84% de
los hacendados y el 80% de los agricultores eran casados mientras
casi el 94% de los trabajadores asalariados carecían de esposa” (1996,
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As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
p. 180). Aqui cabe ressaltar que muitos estancieiros preferiam peões
solteiros, o que – de alguma forma – parece ter contribuído para “el
amancebamiento (...) haber estado bastante extendido.” (MAYO, 1996,
p. 182)
Por outro lado, como já demonstramos, uma das principais atividades da missão campestre era a de regularizar casamentos, ou mesmo de batizar filhos de uniões nem sempre legítimas ou legitimáveis,
pois “os missionários também necessitavam evitar certas artes enganosas dos que se apresentavam, pedindo casamento religioso (...) Para
conseguirem seu intento matrimonial, muitos não vacilavam em ocultar qualquer impedimento” (ZEN, 1995, p. 107).
Aqui, ao que parece, se encontra uma sofisticada tática de preservação de determinadas paixões, que nos sugere que o grande teatro
da fé, armado no pequeno pueblo, era vivido por atores que não se
contentavam em desempenhar seus papéis de acordo com o roteiro.
Antes, utilizavam-se de “artes enganosas” ou artifícios para darem a
elas outro sentido. A interpretação dos atores, em razão disso, extrapolava aquilo que os mentores do espetáculo haviam proposto, já que
através dela pretendiam legitimar um comportamento distinto daquele previsto no enredo original.
Além disso, as poucas mulheres solteiras, costumeiramente, não
estabeleciam relações formais ou informais duradouras “con peones y
malentretenidos”, sendo que “Las ‘amistades ilícitas’, como se calificaba a las uniones de ese tipo, eran frecuentes” (MAYO, 1996, p. 182).
A documentação que consultamos apresenta um caso bastante ilustrativo desta situação ao referir a “una mujer escandalosa [que] hacía
un año, se había escapado de su pueblo, para vivir escondida en unas
cuevas de la selva, para encontrarse allí mas facilmente con los individuos con los cuales vivía mal” (C.A. 1735-1743, p. 254).
Interessante notar que a decisão de manter uma “má vida” passou por um abandono do pouco de civilidade que lhe restava – ao
viver no pueblo – mediante a fuga para a “selva”. Esta, ao que parece,
não era tida somente como um lugar afastado dos olhares acusadores
dos vizinhos, mas, também, como o mais adequado para o tipo de
vida que ela havia escolhido, pautada pelos desejos da carne.
A selva – o espaço por excelência da barbárie – torna-se, assim,
o lugar onde a estratégia jesuítica de combate e supressão das paixões não consegue se impor. O lugar onde não é necessário dissimu-
204
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
lar, onde não é necessário interpretar ou reinterpretar as pautas comportamentais traçadas pela Companhia de Jesus ou pelas autoridades civis.
Em sua obra, Barran faz referência a uma carta enviada ao Conselho de Índias, em 1794, na qual o emissário manifesta seu desejo de dar
“noticia sobre el estado de los campos de la Banda Oriental”. Ao fazê-lo,
acaba por levantar – horrorizado – um questionamento em relação ao
comportamento dos campesinos: “Qué escessos (...) no cometerían en
el uso de la Venus, unos hombres que en nada lo parecen sino en la
figura? Unos hombres que no están ligados a sus semejantes por religión (...)? Qué pecado habrá que les perezca enorme, si lo piede la sensualidad?” (apud BARRAN, 1991, p. 146). Aqui, novamente, a documentação – nesse caso, referindo-se ao Uruguai rural do final do século
XVIII – desumaniza os homens em função de sua entrega às paixões,
nesse caso de Vênus, da luxúria. É interessante notar a relação entre o
“uso de la Venus” e a perda da humanidade, pois a vivência das paixões
da carne – sem limites – faz do homem um selvagem, mesmo fora da
selva.
Casos de adultério na zona rural são fartos na documentação
jesuítica, como o de certa mulher que após ter “pasado muitíssimos
años en los vícios”, em função da missão, “se le ocurrió arregalar su
conciência”. A confissão e o arrependimento da adúltera, entretanto,
não suportaram a uma nova investida; pois, ao ser “provocada otra
vez por una mala amistad con un individuo perverso, fue vencida por
la tentación, y volvió a lo que había lanzado de sí” (C.A. 1730-1735, p.
71). Como vimos anteriormente, os arrependimentos não duradouros, ao que parece, também foram uma constante na zona rural platina, assim como nas cidades da região. Difícil não pensar que esta tenha sido uma forma de manter – ao mesmo tempo – um modo de vida
pautado pela paixão, e outro, aceitável, nas escassas ocasiões em que
se esperava destes campesinos um comportamento cristão.
Retomando a análise que fizemos sobre a constatação feita por
um padre jesuíta, de que a erva daninha acabava por sufocar o bom
trabalho de semeadura da Companhia, acredito que muitas dessas
“ações pecaminosas” devam ser consideradas como formas de resistência, sejam elas conscientes ou inconscientes.
Duas formas de satisfação da paixão da luxúria bastante específica da zona rural eram o incesto e o chamado bestialismo:
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As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
Los amancebamientos de 10, 15, 20 y 30 anõs de duración...los incestos
y ...el bestialismo sobre todo con yeguas, se alimentaban de ciertas características de la vida rural, tales como el rancho de una sola habitación, la
gran distancia en que se encontraban los pobladores de los escasos
curas...sobre todo, de la escasez de mujeres en una campaña con índices
de masculinidad elevadísimos (...) (BARRAN, 1991, p. 147).
Apesar de considerar que a barbárie resulta de fatores sócio-histórico-econômicos e de investir numa oposição campo-cidade, Barran
reconhece que há determinadas práticas que, não sendo exclusivas do
campo, são por ele potencializadas.
Ainda que este não seja um assunto sobre o qual Mayo se demore ao enfocar a vida das mulheres “de los sectores bajos”, o autor afirma que “es francamente impactante” constatar que a documentação
judicial “hace referencia al incesto en presencia de los restantes
miembros de la familia” (MAYO, 1996, p. 171). A natureza da documentação por ele utilizada – bastante distinta daquela de caráter religioso – permite que se tenha uma idéia das práticas condenadas, tais
como a “persistencia de costumbres selvajes y indecorosas como la de
dormir padres e hijos en un mismo dormitorio” (apud MAYO, 1996,
p. 171). Mais uma vez, o termo utilizado na documentação se reporta
à idéia de um comportamento selvagem. Ao viverem todos sob o mesmo teto, sem qualquer respeito à privacidade – tanto de parte dos pais
quanto dos filhos –, mantendo a prática da satisfação imediata dos
desejos carnais sem quaisquer pudores, estas pessoas estavam adotando uma conduta anti-humana, selvagem, fora dos roteiros possíveis do teatro da civilização .
As Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai, por sua vez,
não se furtam em trazer estes problemas à tona. Como exemplo, destacamos o “caso de cierto matrimonio inválido, por un impedimento
dirimente de ambos esposos supuestos, el cual los hizo vivir incestuosamente, ya por cuarentas años continuos”. (C.A. 1735-1743, p. 237)
Como era de se esperar, um caso de tamanha gravidade não seria considerado normal ou relevado pela Companhia diante de razões próprias da sociedade rural. Por outro lado, acreditamos, as populações
camponesas do Prata tinham consciência de que sua situação estava
em desacordo com as normas cristãs.
Ainda que, em muitas regiões da Província Jesuítica do Paraguai, não houvesse missões campestres anuais, elas não era totalmente desassistidas. Um caso ocorrido na área rural de Corrientes, em
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
1739, ilustra bem isto: uma moça que havia se entregue a sua “desenfrenada lujuria, tanto que después de haber cometido ya imemerables
pecados de toda clase, al fin comenzó a vivir en unión ilícita con su
propio Padre” (C.A. 1735-1743, p. 168). Interessante notar que ainda
que os estudos até aqui feitos não registrem missão campestre específica na região de Corrientes, a documentação indica, na chamada “grande carta” de 1735-1743, que ela era assistida de alguma forma pelos
padres regulares, que teriam, inclusive, alertado o padre missioneiro
que nessa região as missões não lograriam êxito.
A moça, segundo a documentação, arrependida dos pecados que
a haviam levado à “cloaca de males (...) poco tiempo después se enfermó gravemente, acabando sus días con el firme esperanza de alcanzar
la eterna buena venturanza del ciel”. (C.A. 1735-1743, p. 168) Parece
que encontramos aqui o que denominamos de “tática da boa morte”,
empregada por indivíduos que, depois de anos em determinado pecado, após se conscientizarem de seu estado de saúde, alegavam arrepender-se, e, logo em seguida, vinham a falecer. Desta forma, acabavam por se beneficiar do melhor dos dois mundos. No mundo terreno,
vivendo suas paixões, e no outro, o celestial, já livres dos seus pecados,
teriam assegurada “su eterna salvación” (C.A. 1735-1743, p. 168).
Ainda que essa seja só uma das interpretações possíveis destes
acontecimentos, acredito que a ocorrência constante na documentação indique uma tática de “negociação” entre a vivência de suas paixões e o desejo de uma boa vida pós-morte. Ainda que a documentação da Companhia de Jesus, referente à região platina, não reconheça
as especificidades da zona rural como atenuantes, encontramos algo
que parece apontar nesta direção num relato sobre um caso acontecido na região de La Rioja em 1741. Neste registro, há uma referência à
prática do “pecar por bestialidade”: “Al viajar, montado sobre una mula,
por un lugar desierto, había consentido a una grave tentación del demonio pecando con la misma bestia con la cual andaba” (C.A. 17351743, p. 285).
Embora o padre aponte o demônio como o promotor do pecado,
não deixa de referir que o mesmo foi cometido em um lugar deserto, o
que, além de favorecer a prática face à ausência de prováveis testemunhas, teria levado – pela solidão e pela distância de tudo e de todos –
a uma situação de fragilidade diante da tentação. Cabe lembrar que o
termo “deserto” reporta à idéia de um espaço geográfico específico.
Vai além de um lugar temporariamente sem pessoas por perto, mas,
207
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
sim, refere-se uma espacialidade não ocupada, mesmo por pequenas
vilas, ou estâncias, um lugar carente de civilização e, portanto, incapaz de proporcionar a sociabilidade.
Em outro relato – que informa sobre o ocorrido na zona rural de
Assunción, em 1738 –, o jesuíta se refere a um homem que possuía o
mau “costumbre de pecar por bestialidade”, e que”muchas veces había hecho propósito de procurar la salud de su alma”, mostrando ter
consciência de seu pecado. Estas demonstrações de arrependimento,
no entanto, não o impediam de manter a prática condenada pela Igreja, pois, mesmo fazendo confissões e propósitos de mudar seu comportamento, sempre acabava por praticar “nuevos crimenes”. O relato
informa que, ao ser descoberto, “no se atrevió a acercarse más al tribunal de la penitencia” (C.A. 1735-1743, p. 242), uma vez que sua “atuação dentro da atuação” do teatro da fé havia sido desmascarada e não
seria mais permitida.
Além dos pecados de ordem sexual – a paixão da luxúria –, a
documentação consultada parece indicar que as paixões relacionadas
ao jogo, aos excessos com a bebida e à violência foram também potencializadas pelas características do espaço rural.
Dentre os trabalhos desenvolvidos no campo, especialmente a
pecuária proporcionou uma fartura que, com certeza, possibilitou que
o ócio se fizesse presente. Este aspecto da cultura campestre foi destacado pelo viajante inglês James Weddel, que, ao visitar o Uruguai no
início do século XIX, ressaltou que a população não “se distingue por
su laboriosidad siendo bastante adicta a la holgazanería y a la embriaguez (...) con tres días de trabajo por semana, dada la baratura de las
provisiones, les basta para mantener-se” (BARRAN, 1991, p. 33).
Além da bebida, também o jogo, segundo Barrán, tinha importância na vida dos camponeses, sendo o “ocio, condición no necesaria
pero sí ambientadora del juego” (BARRAN, 1991, p. 131). O estudo de
Mayo reforça as conclusões de Barran, pois ao analisar a documentação judicial referente à população pampeana, pôde constatar que “el
juego era una de las actividades favoritas de los vagabundos. Sobre un
total de 55 processados por vagabundaje, 27, prácticamente la mitad,
fue acusada de jugar asíduamente” (MAYO, 1996, p. 160).
Também nas Cartas Ânuas encontramos relatos que revelam que
os padres tinham consciência de que o ambiente rural favorecia o ócio
– especialmente para os que se dedicavam à criação de gado – permi-
208
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tindo a vivência exacerbada de certas paixões que encontravam terreno ainda mais fértil no campo. Nelas, os campesinos são descritos
como aqueles que “tienen ocio de sobra” e as dificuldades enfrentadas
são ressaltadas, pois “hay una cosa que cuesta mucho remediar, y es
quitar a esta gente el vicio del juego” (C.A. 1750-1756, p. 8). O jogo,
ainda que muitas vezes tolerado – especialmente pelos padres regulares –, já que, segundo Barran, se “vinculaba sobre todo a las fiestas
religiosas” (1991, p. 131), era motivo de grande preocupação dos padres da Companhia de Jesus.
Na Carta Ânua de 1735-1743, há uma referência explícita dos
efeitos desastrosos do vício, ao relatar o caso de certo homem que,
após ter “perdido en juego toda su fortuna”, ficou transtornado e, tentando aplacar sua raiva, “traspaso con su puñal las imagenes del Santo Cristo crucificado, y de la virgen”. A desgraça que recaiu sobre o
jogador abandonado pela sorte, levou-o a cometer o grave pecado da
blasfêmia – “tal grado de insensatez” – que, segundo o jesuíta, tivera
como causa a “pasión del juego” (C.A. 1735-1743, p. 173).
Conforme o conceito de paixão por nós utilizado, ela é percebida de formas distintas e complementares pelos jesuítas em missão. A
primeira percebe a paixão como sofrimento, a segunda, herdeira da
tradição aristotélica e tomista, define a paixão como pulsão, força motriz
que reage em conseqüência de estímulos externos, e daí a esperança
de conversão colocada nos sermões emocionados, tão característicos
das missões que buscavam redirecionar a força da paixão do pecado
para a virtude.
A terceira, herdeira dos neoplatônicos, dos escritos neotestamentários e de Santo Agostinho, define a paixão como essencialmente má e pecaminosa, além de ser geradora de outros pecados, uma
força intensa, excessiva e fugaz que só tem como resultado o sofrimento, a desgraça e o distanciamento de Deus.
Ao definir o jogo como uma paixão, como um pecado a ser combatido – como sugere a passagem de que “estos jugadores persiguen
los padres con gran energía” (C.A. 1750-1756, p. 8) –, a documentação
jesuítica dá respaldo para que se sustente a proposta de que a paixão
foi, em muitos casos, percebida e combatida como sinônimo de pecado.
Ao tomarmos a paixão como pecado e, também, como o que
promove o pecado, não podemos desconhecer a existência de outros
pecados/paixões que normalmente acompanhavam o jogo: a luxúria,
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As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
a “borrachera” e a violência física. Segundo Mancilla, nas áreas rurais, os espaços onde essas paixões atuaram como atrizes principais
teriam sido
(...) las pulperías (que) se convertieron en un espacio de sociabilidad
popular. Ellas albergaron el ocio, el juego, la violencia, pero también los
fandangos y chinganas que eran animados por los infaltables vinos y
aguardientes cuyanos. Las pulperías fueron...ese pequeño almacén de
menestras que expendían las vitullas más indispensables para el consumo popular, pero donde también, al abrigo del mostrador o en la trastienda del regente, se desarrolló una tertulia popular, germen de una sociabilidad popular (MANCILLA, 2005, p. 110).
As pulperias ocuparam lugar de destaque na vida campesina
por sua importância econômica. Nelas, a população rural se abastecia
de gêneros de primeira necessidade que, no geral, não produzia. Ao
seu objetivo original, no entanto, foi acrescido, segundo Mancilla, um
outro, que talvez não estivesse nos planos iniciais das autoridades
que idealizaram estes estabelecimentos, pois “las pulperías no fueron
ese idílico comercio colonial que aprovisionaban a la población y concedidas por los cabildos a mujeres viudas” (MANCILLA, 2005, p. 123).
Ou seja, aquilo que foi pensado para ser um posto de comércio avançado, mediante concessão dada pelos cabildos às mulheres desassistidas, muito cedo passou a ter – pela criatividade e necessidade das
populações campestres – outro uso, distinto daquele idealizado pelas
elites políticas e civis. As pulperias acabariam, assim, se transformando em espaço de vivência das paixões.
Na verdade, as pulperias, “mas bien fueron improvisados ranchos de paja y barro que albergaba el juego, la embriaguez y la prostituición, escenario de fandangos, pero también de las más violentas
pendencias.” (MANCILLA, 2005, p. 123) A importância que adquiriram as pulperias não se limitou à região de San Juan de la Frontera. A
descrição típica de uma pulperia do interior da região de Buenos Aires era a de um lugar “donde los gauchos bebían aguardiente hasta
embriagarse, mataban el tiempo jugando al truco y entregaban la vida
en duelos a cuchillo, podía ser también y para sumarle mayor sordidez un prostíbulo” (MAYO, 1996, p. 139). Também o pampa uruguaio
teria sido, durante os séculos XVIII e XIX, palco de “la danza lasciva,
la bebida y el desorden en el porte, financiadas e promovidas “por los
pulperos y demás personas del comercio” (BARRAN, 1991, p. 139).
210
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Não quero, no entanto, propor que, ao concederem ou autorizarem o funcionamento das pulperias, as autoridades o fizessem inocentemente e desprovidas de interesses. Pelo contrário, é possível dizer que “existió un doble discurso de la elite local, aquel que intentó
condenar las pendencias y las borracheras en el interior de las pulperías, y la que favoreció y estilmuló, en alguna medida, el consumo de
alcohol entre la peonada rural” (MANCILLA, 2005, p. 126). Acredito
que mesmo aquele grupo que se beneficiava economicamente do consumo de bebidas alcoólicas logo perdeu o controle da tênue relação
entre seu interesse econômico e as conseqüências desta prática, pois
“los rústicos ranchos que servían de pulperías y que no estaban bajo
el control del cabildo se multiplicaron en el mundo rural, dando lugar a una forma de sociabilidad popular que nada tenía que ver con el
nuevo espíritu reformador de los sectores dominantes, ni con sus intereses” (MANCILLA, 2005, p. 137).
As pulperias se fizeram presentes numa vasta área geográfica e
por um longo tempo. Referências a sua existência e importância como
espaço de sociabilidade e de suas muitas funções como bolicho, casa
de jogos, casa de bailes, ponto de encontro, casa de prostituição e,
mesmo, local de ocorrências de peleias são encontradas do pampa ao
sul de Buenos Aires no século XVIII (MAYO, 1996, p. 153), passando
pelos campos ao pé dos Andes de San Juan de la Frontera (MANCILLA, 2005, p. 109), até o Uruguai do início do século XIX (BARRAN,
1991, p. 139).
Como era de se esperar, as pulperias, como lugar de vivência
das paixões que eram, extrapolaram sua condição de espaço de sociabilidade popular, transformando-se em símbolo de um modo de viver, de se divertir, de amar e de odiar que não mais podia ser tolerado
pelas autoridades. Já sob a jurisdição de Córdoba, as pulperias acabaram sendo alvo de uma série de bandos de Buen Gobierno, tanto das
autoridades de San Juan de la Frontera quanto de Buenos Aires, que
pretendiam “condenar y contener aquellos desórdenes”, referindo-se
ao que acontecia nas pulperias e procurando conter os abusos, assim
como disciplinar seu funcionamento. Em mais uma tentativa,
(...) la autoridad ordenó a los jueces que cumplieran la política de control
sobre aquellos hombres. En mayo de 1776 las autoridades insistían en
reglamentar el funcionamiento de las pulperías, sobre todo porque ellas se
mantenían abiertas hasta los días consagrados: ‘Por tal razón se ordena y
manda que, estén cerradas las pulperías todos los días y noches excepto
211
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
las dos horas que van desde las diez de la mañana hasta las doce de la
misma o medio día’. Las autoridades de San Juan de la Frontera reglamentaron hasta los más mínimos detalles del funcionamiento de las pulperías, llegaron a pensar incluso que al reducir el número de horas de
atención se evitarían las pendencias y muertes. Dispusieron los días que
debían abrir, los horarios en que debían atender, y los productos que
podían comercializar; prohibieron taxativamente la venta y el consumo
de alcohol, tanto dentro como fuera de las pulperías y la permanencia de
personas de extraña condición en ellas (MANCILLA, 2005, p. 136).
Os problemas que as autoridades da América espanhola encontravam com as muitas horas de ócio que tinham os homens ligados ao
trabalho com gado, que se dedicavam à “vadiagem”, às bebedeiras e
aos divertimentos “mundanos”, provocaram várias tentativas de regulação, contenção e até mesmo proibição, aproximando-se das medidas
adotadas pelas autoridades da América portuguesa. O ambiente de
relativa “liberdade” desfrutada por negros, mulatos e brancos pobres
envolvidos no trabalho da extração do ouro promoveu uma série de
confusões, brigas e mortes na região das Minas Gerais no século XVIII,
sobretudo nas vendas que abasteciam os arraiais. Diante disso, as autoridades também procuraram, de alguma forma, instituir regras que
garantissem mais segurança e tranqüilidade, como através da medida
que “procurou controlar o consumo de aguardente pelos negros e mestiços nos engenhos próximos aos caminhos e buscou restringir o comércio de pólvora” (ANASTASIA, 2005, p. 15).
Apesar de as pulperias não serem referidas explicitamente nas
Cartas Ânuas consultadas, há indicações de que elas preocupavam os
padres da Companhia de Jesus: “se retiran ellos (os jugadores) a lugares apartados y a la espesa selva, como si fuesen fieras y pierden allí
por el juego semanas y meses enteros. Cuantos robos de allí se saltan,
esto se puede conjeturar fácilmente” (C.A. 1750-1756, p. 8).
As descrições feitas do lugar e das atividades nele realizadas
nos levaram a inferir que o que preocupava os jesuítas, provavelmente, eram as atividades ilegais e as conseqüências imorais e pecaminosas, principalmente de alguns tipos de jogos proibidos, como a taba,
muito apreciado nas pulperias clandestinas.
Cabe retomar aqui tema discutido anteriormente, o da referência à selva como o lugar próprio das paixões. Os jogadores compulsivos, segundo informações dadas pelos padres, jogavam por semanas e
meses, se embrenhavam na selva espessa como se fossem feras. A li212
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
gação entre a paixão e a barbárie é retomada, a mata fechada e o comportamento animal são, respectivamente, o lugar e a práxis da paixão.
A pulperia, provavelmente um rancho improvisado em algum campo
longínquo ou alguma mata fechada, não aparece como uma ilha de
civilidade no mar verde do pampa ou da selva. Pelo contrário, é associada ao espaço rural, que provê as condições para a reunião dos homens-feras entregues a seu comportamento apaixonado e bárbaro.
Outra menção – não explícita – feita às pulperias e ao perigo que
representavam é encontrada nas Cartas Ânuas de 1735-1743, que referem o caso de certo “borracho” da região rural de La Rioja, que, em
1742, teria sofrido um acidente por intervenção divina enquanto se
dirigia “hacía cierta casa, donde sabía que se divertían mundanamente” (C.A. 1735-1743, p. 290). Interessante notar a relação estabelecida
entre paixão-pecado, punição e a casa de divertimento mundano mencionada pelo padre.
Por outro, se entendermos o espaço campestre platino como aquele que permitiu a encenação de uma elaborada peça profana e violenta,
a pulperia pode ser vista – mais do que qualquer outro espaço – como
o palco que deu visibilidade às atuações dos múltiplos atores que ali
viveram e interpretaram suas paixões. Pensamos que também seja plausível imaginar que neste espaço diferentes tipos de peças tenham sido
encenados. Desde os alegres fandangos e as galhofas entre amigos até
as corridas a cavalo e jogos, nem sempre com finais felizes, dos possíveis enredos românticos que possam ter surgido entre homens simples e mulheres da baixa sociedade, até as relações muito mais eróticas do que emocionais entre peões e mulheres de “má vida”. As pulperias foram, nesta perspectiva, o espaço em que as paixões foram
vividas em toda sua plenitude.
E, se as paixões são sinônimo de intensidade e excesso, também
o foram quando se tratou de violência. Nas pulperias “la violencia se
percibía por doquier, solo faltaba un roce, una mala palabra para que
las cuchillas salieran a relucir” (MANCILLA, 2005, p. 123). Barran
confirma esta percepção ao afirmar que a sensibilidade – por ele chamada de “bárbara” – estava calcada em um tripé composto pela sexualidade, pela violência e pela “actitud ante la muerte” (BARRAN, 1991,
p. 12). Dados judiciais referentes a San Juan de la Frontera enumeram
pelo menos 18 crimes, entre 1770 e 1775, todos ocorridos em pulperias, sendo que alguns dos agredidos acabaram mortos.
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As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
Importante dizer, ainda, que “en los procesos judiciales analizados los acusados se encontraban alcoholizados al momento de la agresión” (MANCILLA, 2005, p. 121. Por outro lado, acreditamos que se
possa pensar as ações violentas como uma “necessidade de afirmar-se
ou defender-se integralmente como pessoa”, que surge conjugada à
valorização de determinadas condutas “como a bravura e a ousadia”,
tornando, nesses casos, “realmente, a ação violenta não apenas legítima, mas imperativa” (FRANCO, 1983, p. 36). Silveira, por sua vez,
corrobora esta opinião quando refere que, ainda que “parecessem ilógicos, os atos violentos participavam de uma racionalidade global que
lhes conferia sentido. Matar era, muitas vezes, um gesto público de
vingança capaz de sublinhar a grandeza; era, portanto, um modo particular de ser virtuoso” (SILVEIRA, 1997, p. 148).
Em um mesmo palco, a luxúria, o jogo, a borracheira e a violência própria do corpo “escasamente encorsertado por la ropa, las reglas
de urbanidad, las convenciones emanadas de la tradición y las jerarquias sociales” (BARRAN, 1991, p. 100), atuavam na composição de
um enredo intenso, excessivo, na maioria das vezes violento e, por
vezes, mortal.
Nas Cartas Ânuas, o ódio gerador da violência é tratado como
paixão. O caso de um homem que precisou da intervenção divina para
dar-se “cuenta de su ciega pasión” (C.A. 1735-1743, p. 117) e abandonar seu plano de assassinar um inimigo exemplifica a gravidade atribuída pelos inacianos aos pecados decorrentes da ira. Sabiam os padres que homens rudes, por vezes sob o efeito do álcool, eram fortes
candidatos a se deixarem dominar por esta paixão e, assim, cometerem crimes graves.
É certo que as pulperias também foram palco de inúmeros duelos que resultaram em muitas mortes ou determinaram ódios mortais.
Entretanto, a documentação indica que a paixão do ódio não foi exclusividade dos “bárbaros” freqüentadores das pulperias. Segundo Zen,
em “todos os lugares em que os missionários pregavam missões encontravam pessoas que viviam uma relação de inimizade” (ZEN, 1995,
p. 125). O problema era de tal ordem que “outra função que nunca
faltava nas missões era o que se chamava de perdão dos inimigos”
(ZEN, 1995, p. 119).
Portanto, se o ódio não foi exclusividade dos campesinos, assim
como outras paixões aqui já descritas, acreditamos que seja possível
214
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
afirmar que os homens e as mulheres do Prata – dos núcleos urbanos
ou rurais – viveram intensamente suas paixões sempre que puderam.
Por vezes, de forma frouxa e despreocupada; em outras ocasiões, de
forma escondida e velada.
Tanto os inacianos quanto as elites civis quiseram, através da
antinomia “civilização x barbárie”, atribuir aos moradores do campo
um comportamento passional predeterminado que não foi, como procuramos demonstrar, exclusivo dos campesinos. Por outro lado, as
fontes consultadas revelam que algumas dessas paixões assumiram
feições muito próprias, em decorrência das características do ambiente rural. A ausência de vigilância e de controle próprios do espaço
urbano e civilizado permitiram que as populações campesinas vivenciassem suas (próprias) paixões com uma relativa liberdade. Não cremos, entretanto, que isso os caracterizasse como “bárbaros”, uma vez
que simplesmente fizeram “uso” de um ambiente que, por facultar um
pouco de “invisibilidade”, permitia que desfrutassem de certa licenciosidade. Seus pares urbanos, por outro lado, também viveram suas
paixões intensamente, tendo que, no entanto, imprimir muito mais
energia e criatividade para alcançá-las.
Referências
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Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1735-1743. Tradución
de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,1994.
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1750-1756. Tradución
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Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1756-1762. Tradución
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215
As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira
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216
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
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217
Registros de experiências jesuíticas nas reduções
da Província do Paraguai (século XVII)
Fabiana Pinto Pires
Na Carta Apostólica Regimini militantis Ecclesiae emitida pelo
papa Paulo III em 27 de setembro de 1540, a Companhia de Jesus é
reconhecida oficialmente como ordem religiosa. Nesta mesma bula
papal, algumas Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus são aprovadas. Entre elas, lê-se:
E porque a experiência nos ensinou que esta vida traz consigo muitas e
grandes dificuldades, julgamos ainda conveniente determinar que ninguém seja recebido nesta Companhia se não for provado durante muito
tempo e com toda a diligência; e quando se mostrar prudente em Cristo
e eminente, quer na doutrina, quer na pureza da vida cristã, então, finalmente, seja admitido na milícia de Jesus Cristo1 ([1540] LOYOLA, 2004,
p. 35-36).
Pode-se perceber que, desde a oficialização desta ordem, o experimento ocupa um espaço importante para a confirmação e a reescrita
dos preceitos da instituição. Um outro exemplo do que afirmamos é a
Carta Apostólica Exposcit debitum do papa Júlio III, datada de 21 de
julho de 1550, que ratifica as fórmulas anteriores “mais exata e claramente, como fruto das lições da experiência e do uso das coisas” ([1550]
LOYOLA, 2004, p. 29). Neste documento, quanto à admissão é dito:
E porque a experiência nos ensinou que esta vida traz consigo muitas e
grandes dificuldades, julgamos ainda conveniente determinar que ninguém seja admitido a fazer profissão nesta Companhia sem primeiro
ser conhecida a sua vida e doutrina, com demoradas e diligentíssimas
provas (...) Com efeito, este Instituto exige homens inteiramente humil-
Fabiana Pinto Pires é Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
E-mail: [email protected]
1
A não ser nos casos expressamente identificados, os grifos são da autora do capítulo.
218
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
des e prudentes em Cristo, e notáveis na pureza da vida cristã e nas letras
([1550] LOYOLA, 2004, p. 35-36).
Desde o início da formação dos inacianos, o espaço da experiência é prescrito pela Companhia. A partir dela, almeja-se atingir como
“deve ser” o jesuíta. Na parte nomeada “Três tempos em que se faz boa
e sadia eleição”, dos Exercícios Espirituais, Inácio de Loyola destina o
primeiro tempo à atração e à mobilidade da vontade da pessoa espiritual por Deus, de modo que “a pessoa segue o que lhe foi mostrado,
sem duvidar nem poder duvidar”. Sendo assim, no segundo tempo, “a
pessoa chega à bastante clareza e conhecimento pela experiência de
consolações e desolações, e pela experiência do discernimento de vários espíritos” ([1548] LOYOLA, 2006, Exercícios Espirituais2 175-176,
p. 73-74). Se antes Deus manifestava-se diretamente ao exercitante,
nesta segunda etapa, Sua presença é compreendida indiretamente em
diferentes momentos. A experiência produz a reflexão sobre o vivido,
o discernimento ([1548] LOYOLA, 2006, EE 336, p. 127-128). Portanto, a partir do que foi experimentado e conhecido, seria possível guardar-se “doravante, de seus costumeiros enganos” ([1548] LOYOLA,
2006, EE 334, p. 127). A experiência parece ser o caminho para a reflexão, o discernimento e, conseqüentemente, o conhecimento.
Segundo as normas complementares das Constituições da Companhia de Jesus, “o processo da formação apostólica deve favorecer a
assimilação pessoal da experiência cristã: uma experiência espiritual,
pessoal, vital, radicada na fé”, que torne os religiosos aptos a cooperar
com o progresso espiritual dos fiéis e a comunicar a fé aos não-crentes
(65, [1558]3 LOYOLA, 2004, p. 259). Os exercícios espirituais comporiam, por exemplo, uma experiência profunda para reavivar a fé, a
esperança apostólica de perseverar na missão (246, parágrafo 6, [1558]
LOYOLA, 2004, p. 317). Conforme Paulo Roberto Pacheco:
Aprende-se a ser jesuíta “experimentando” o que seja ser um jesuíta. E o
que é ser um jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação, trabalhar a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma
2
3
Exercícios Espirituais, doravante EE.
É interessante observar que o texto da Constituição foi apresentado em 1550 a quase todos os
padres professos por Inácio de Loyola. Após realizar modificações indicadas pelas observações de
todos e pelas sugestões extraídas de experiências cotidianas, as Constituições foram apresentadas para promulgação na Espanha em 1553. Em 1558, a Congregação Geral em Roma realizou a
última revisão antes da aprovação unânime (RIBADENEIRA. In: LOYOLA, 2004, p. 20).
219
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
experiência-modelo que, aqui, deixa de ser a descrição de uma experiência espiritual, para se tornar à prescrição explícita de um modelo de imitação (2004).
Desta maneira, o discernimento constrói-se, também, pela experiência exemplar. Implícito no exemplo está o fato de os Exercícios
Espirituais “terem sido escritos somente um ano após o acidente de
batalha que levou Loyola a abandonar sua carreira militar”, sendo,
portanto, uma reprodução da “mentalidade medieval das ordens militares, particularmente no tocante à obediência à Igreja” (EISENBERG,
2000, p. 35). Logo, a experiência alheia é, igualmente, importante para
a confirmação da vocação religiosa. De acordo com as normas, a experiência de outros inacianos ajuda a aprofundar a avaliação e a reflexão
durante a formação permanente do missionário (242, parágrafo 1, [1558]
LOYOLA, 2004, p. 311-312). Os idosos e doentes auxiliariam nesta
reflexão ao compartilhar “a sabedoria acumulada pela experiência do serviço à nossa missão” e animar pelo exemplo de entrega filial e confiante a
Deus (norma 244, parágrafo 1, [1558] LOYOLA, 2004, p. 312-313).
As normas recomendam que os missionários compartilhem experiências também com membros de outras religiões, “a fim de ajudálos a experimentar o amor compassivo de Deus em suas vidas” (270
parágrafo 3, [1558] LOYOLA, 2004, p. 326). Segundo a norma complementar 99, parágrafo 2, “a formação deve favorecer a sintonia do jesuíta com o povo ao qual é enviado, de modo que seja capaz de partilhar seus sentimentos e valores, sua história, experiência e aspirações”, permanecendo aberto aos sentimentos e valores de outras culturas ([1558] LOYOLA, 2004, p. 267). Assim, a norma 107 indica que
o Superior procure que os jovens tenham uma formação com diversas
experiências, conforme os dotes de cada um, considerando as obras
apostólicas da Província e da Companhia ([1558] LOYOLA, 2004 p.
269). Para os inacianos, a vocação é promovida de forma ampla a partir da reflexão sobre “a experiência e cultura daqueles aos quais [buscam] servir, inclusive as culturas minoritárias, os migrantes e os povos indígenas” (norma 412, parágrafo 3, [1558] LOYOLA, 2004, p. 379).
Logo, a reflexão sobre as experiências e a cultura dos indígenas faz
parte dos ordenamentos institucionais.
Após compreender o espaço que a experiência ocupa nos documentos institucionais fundantes e normativos, é impróprio continuar
a análise sem clarificar o emprego dado ao termo “experiência” pelos
220
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
jesuítas. Para tanto, a análise de Paulo Roberto Pacheco parece ser a
mais adequada:
O termo experiência deve ser entendido a partir de um complexo feixe de
influências: além da assumida posição filosófica aristotélico-tomista, é
preciso dizer que parece existir também uma influência agostiniana. E,
para além do aspecto puramente filosófico, quando se fala de experiência
na Companhia de Jesus, se está tratando com uma categoria que também
pertence ao universo da regulação tanto espiritual e corporal quanto jurídica e institucional (PACHECO, 2004).
Nesta perspectiva, ao provocar inquietações e possível reflexão,
a experiência produz um conhecimento moral a partir do que foi vivido. Entretanto, é importante lembrar a ressalva de Charlotte de Castelnau-L’Etoile quanto ao “nosso modo de proceder” dos jesuítas. Este
não pressupunha que todos os inacianos necessitassem ser idênticos
ou fazer a mesma coisa. Ao contrário, o que as Constituições prescreviam era que agissem da mesma maneira. Conforme Castelnau-L’Etoile,
“as Constituições não são regras estáticas, mas dinâmicas, descrevendo a aquisição de uma identidade e não a identidade em si mesma”,
por isso, “definindo um estilo, uma maneira de proceder, as Constituições designam uma liberdade de agir a cada um, liberdade que
idealmente todo o jesuíta incorporado à identidade da Companhia
saberá delimitar em fronteiras aceitáveis pela instituição”. Deste modo,
as experiências locais constituem a práxis do princípio de adaptabilidade da Companhia: “cada regra remete o jesuíta à sua capacidade de
discernimento e à sua liberdade de agir e está enunciada: ‘pode ser
assim, salvo se for outra situação’” (2006, p. 69)4.
O presente estudo almeja analisar de que forma o exórdio5 traduz experiências inacianas nos registros referentes à Província Jesuítica do Paraguai, no século XVII. Como fontes de análise, serão utilizadas a obra Conquista Espiritual de Antônio Ruiz de Montoya S. J. e
a Coleção De Angelis, que é composta por correspondências oficiais e
internas de jesuítas missionários. Entretanto, apresenta-se como premissa que constitui esse objeto o que Eliane Fleck nomeou de “a conversão como enredo”. Para melhor compreensão:
4
5
A autora refere-se à fórmula citada na introdução das Constituições da Companhia de Jesus.
Oportunamente será definido o emprego do termo aplicado aqui.
221
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
Ao serem contadas, as experiências são transpostas para o registro da
narrativa, transformando-se em textos que são regulados por regras e convenções que regem esse domínio e que são próprias do ambiente sóciohistórico que as criou (FLECK, 2007, p. 66).
A análise do processo de produção desses registros de experiência é, por conseguinte, o próximo passo.
A experiência do registro jesuítico
Em “Espelho de Heródoto”, François Hartog afirma que “a retórica de alteridade constitui o operador da tradução”. Conforme o autor, “é ela que faz o destinatário crer que a tradução é fiel”, pois produz
“um efeito de crença” (1999, p. 273). Sendo assim, o processo de fazer
crer fundamenta-se na tradução da diferença a partir da retórica da
alteridade6. Desta forma, é estabelecido um canal de comunicação entre o narrador e o destinatário. A experiência da aproximação ou da
estranheza é traduzida pela operação semântica7. Em relação aos jesuítas, a tradução se dá pela linguagem religiosa. Conforme Cristina Pompa, “a linguagem religiosa parece tornar-se o terreno de mediação onde
cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade
pode encontrar seu sentido e, portanto, sua ‘tradução’ em termos culturalmente compreensíveis” (POMPA, 2003, p. 56). “No caso das Anuas,
ainda que esta alteridade permaneça abominável e condenável para o
missionário, passa a fazer sentido para ele, dando início àquilo que
denominamos de exegese, de interpretação da experiência” (FLECK,
2007, p. 76). Essa interpretação das experiências é registrada a partir da
arte de escrever cartas: ars dictaminis. Porém, esta não é uma ação livre
de regramentos institucionais. Cumprindo as prescrições estabelecidas, os missionários necessitam traduzir-se – e às suas experiências –
para a própria Ordem. Conforme as Constituições da Companhia:
Conforme Hartog (1999), traduzir, nomear, classificar e descrever compõem a retórica da
alteridade.
7
Em “Psicologia dos jesuítas: uma contribuição à história das idéias psicológicas”, Marina
Massimi analisa a medicina de ânimo como componente da dimensão da “psicologia” jesuítica.
Neste aspecto, a autora refere-se à importância dada por Loyola ao conhecimento do temperamento do destinatário pelo remetente das correspondências (2001, p. 5). Assim, o jesuíta
busca a experiência da aproximação. Quanto à estranheza, João Adolfo Hansen afirma: “toda
diferença da experiência é traduzida como um análogo distante, por isso mesmo reconhecível
e identificável, quando sua estranheza é interpretada pela Palavra que se espelha na proporção
da retórica do discurso” (1995, p. 94).
6
222
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
As cartas enviem-se fechadas, de modo a ninguém saber o que o outro
escreve. Quando o Superior Geral ou o Provincial quiserem informações
mais completas, hão de escrever, não só o colateral, o síndico e o conselho a respeito do Reitor e de todos os outros, mas cada um dos professores e dos escolásticos aprovados, assim como os coadjutores formados,
manifestando o que sentem de todos, e entre eles do Reitor. E para que
isso não pareça inovação, dar-se-ão essas informações como coisa normal, pelo menos de três em três anos (507, LOYOLA, 2004, p. 150).
As análises de Charlotte de Castelnau-L’Etoile e Cristina Pompa
são lembradas, aqui, como exemplos complementares de sistematização do papel das correspondências no governo da Companhia de Jesus. Castelnau-L’Etoile afirma:
A correspondência tinha assim um papel estrutural na organização da Companhia de Jesus: ela reforçava a identidade do grupo disperso, permitia
adaptar as regras às circunstâncias locais e dava ao centro [Roma] o meio de
exercer uma forma de controle (CASTELNAU-L’ETOILE, 2006, p. 76).
Assim, os princípios institucionais de corpo místico8, obediência e adaptabilidade, são plenamente atendidos pela obrigatoriedade
da escrita. Para Cristina Pompa,
a atividade epistolar dos jesuítas foi verdadeira chave de todo seu sistema missionário. Sua importância justifica o fato de que, diferentemente
de outras atividades deixadas à iniciativa individual, esta era regulada
por prescrições rígidas, que distinguiam gêneros epistolares conforme o
conteúdo e os destinatários. A obrigatoriedade institucional de escrever
respondia a várias exigências: a difusão e ‘propaganda’ dos resultados da
catequese para o mundo externo (incentivando também as vocações), a de
controle do governo central da ordem sobre os membros dispersos e,
finalmente, a de reconfirmação permanente da identidade desses membros (POMPA, 2003, p. 81).
Instrumentos necessários para estabelecer contato diante da complexa mobilidade que os missionários da Companhia de Jesus se dispunham a viver, as cartas atendem a intencionalidades diferentes,
conseqüentemente o estilo se adapta a estas distinções. Em “Cartas à
8
Em relação ao principio do corpo místico, este é “unificado na vontade de integração de seus
membros, aristotelicamente todos amigos uns dos outros porque, pelo autocontrole, abrem
mão de toda veleidade pessoal e atingem o domínio das paixões, a concórdia e a paz necessárias
para o perfeito funcionamento da Ordem” (HANSEN, 1995, p. 111).
223
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
Segunda Escolástica”, Alcir Pécora analisa a arte de escrever cartas
dos jesuítas. Segundo este autor, Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, determinou que os padres fizessem uma carta principal que “guardasse ordem” e “desse edificação a quem lesse” (PÉCORA, 1999, p. 382) As cartas deveriam conter um estilo conciso e trabalhado com eloqüência madura. Para Pécora:
As cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos
padres em regiões desconhecidas dos europeus. A preceptiva epistolar
inaciana, amparada na longa e profícua reflexão medieval e renascentista
do gênero, de alguma forma previa ou esboçava retoricamente os contornos básicos de personagens, ações e caracteres que jamais haviam visto
antes (1999, p. 410).
Deste modo, a escrita principal passaria por correções para atingir os objetivos de “mostrar e edificar”. Os detalhes sobre fatos mais
particulares seriam deixados para os anexos ou para outras cartas internas (também conhecidas como hijuelas)9. Em “Escrevendo cartas.
Jesuítas, escrita e missão no século XVI”, Fernando Londoño analisa
o papel estratégico da escrita jesuítica, que não se limitava apenas ao
ato de edificação. Conforme este autor, as cartas compunham “um sistema de informações que atuava como suporte para um sistema de
decisões inaciano: hierárquico e vertical” (2002, p. 2-3). Sendo assim,
a estratégia política da Companhia permanecia unificada, conforme
determinação de seu fundador. Ratifica-se o corpo místico, referido
anteriormente, composto por todos os inacianos:
Ao escrever sobre sua missão, os jesuítas o faziam utilizando um registro
ou tom inspirado na subjetividade de sua vivência do carisma inaciano.
Como historiador, acredito que não consigo ouvir esse registro subjetivo
considerando referências e maneiras de escrever só como edificantes. Da
mesma forma, as informações presentes nas cartas não se deviam unicamente ao espírito de controle ou ao desejo de matar curiosidades (Assunção, 2000, pp. 81-89). Elas seriam recolhidas e enviadas à Europa constituindo textos diferenciados, produzidos como parte de um projeto missionário que estava sendo construído e para o qual o poder sempre foi
uma referência fundamental. E nessa construção da missão, a escrita cumpriu um papel estratégico (LONDOÑO, 2002, p. 2).
9
Nas Constituições da Companhia de Jesus foram estabelecidas as normas para estes registros.
Ver LOYOLA, 2004, pp. 490, 504, 507, 673, 674, 675, 790.
224
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
O corpo místico interliga-se a partir da cabeça, do centro, de
Roma. Entre as estratégias está o principio da eficiência na comunicação, como descreve Castelnau-L’Etoile:
Essa comunicação tão importante para o funcionamento da ordem passa
antes de tudo pela comunicação epistolar. De fato, segundo o princípio
de eficiência caro aos jesuítas, uma carta viaja mais facilmente e a menor
custo que um homem. Procura-se evitar os deslocamentos inúteis e apenas por meio de cartas trocadas o preposto geral “está em comunicação
com toda a Companhia” (CASTELNAU-L’ETOILE, 2006, p. 72).
Para tanto, vale lembrar o alerta feito por Pécora: “não se pode
ler literatura convenientemente como documentação conteudística da
realidade, quanto que apenas convém tomá-la como histórica”, pois
“aquilo que ela tem de convenção e artifício é exatamente o mesmo
que tem de produto histórico: enquanto ato de criação é também efeito
criado, de tal modo que seu aspecto mais ‘formal’ e ‘interno’ é também
o mais ‘público’ e o mais ‘datado’” (PÉCORA, 2001, p. 16).
Após a análise das prescrições dos registros permanentes e compreensão dos alertas, almeja-se compreender de que forma o exórdio
traduz experiências inacianas nos registros referentes à Província Jesuítica do Paraguai no século XVII. Passamos, então, das experiências
de registros para os registros de experiências.
As narrativas de experiências a partir do exórdio
nas reduções inacianas do Paraguai do século XVII
No início do século XVII, o Superior Geral da Companhia de
Jesus fundou a Província do Paraguai, reunindo as regiões de Tucumã,
Chile e Rio da Prata. Em 1603, ocorreu, em Assunção, o 1º Concílio do
Rio da Prata, que objetivava reforçar os métodos de ensino da doutrina aos indígenas e as reformas de costumes dos espanhóis. O padre
provincial do Paraguai, Diego de Torres Bollo, escreveu, por conseqüência do Concílio, duas Instruções (1609 e 1610).
Os registros produzidos pelos missionários que estiveram na
América Colonial, no século XVII, tinham os mesmos preceitos de
todos os registros da Companhia de Jesus. Os jesuítas adquiriram a
licença para atuar na América hispânica em 1588, após a aprovação
pelo Conselho das Índias (trinta e nove anos depois da chegada dos
primeiros missionários ao Brasil). Com a licença, pretendiam aproximar-se da cultura indígena local e realizar a “conquista espiritual”.
225
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
Conforme ratifica Cristina Pompa, apresenta-se como elemento da
“pedagogia jesuítica clássica: a utilização de elementos da cultura nativa como ‘linguagem’ para veicular conteúdos da fé católica” (POMPA, 2003, p. 53).
Em “Máquinas de gênero”, Alcir Pécora analisa cartas de Nóbrega a partir da divisão do modelo histórico da ars dictaminis, em salutatio, captatio benevolential, narratio, petitio e conclusio (2001, PÉCORA, p. 33). Cada uma destas partes possui objetivos específicos em
relação ao leitor. A salutatio é o início do exórdio, uma saudação piedosa de pouca variação. A segunda parte, a captatio benevolentiae,
busca predispor o leitor para o que está por vir. Em muitas cartas,
apresenta-se, nesta etapa, o sentido da escrita. A narratio constitui
um relato do “estado das coisas” (2001, PÉCORA, p. 39). A petitio é “o
pedido ou solicitação de providências ou medidas à autoridade competente” (PÉCORA, 2001, p. 61). Na conclusio, é comum “uma nova
aplicação de petitio”, orações, devoção, bênção, um “remate da narratio” e “protestos de obediência” (PÉCORA, 2001, p. 62-65). A experiência aparece como filtro dessas diferentes etapas. Contudo, apesar de
em determinados momentos serem manifestas as dificuldades, “as
cartas não apresentam nenhuma evidência de desistência ou fracasso da ação”. Ao contrário, intensificam a obra sistematizada pela experiência (HANSEN, 1995, p. 106)10. Tal divisão é possível perceber,
também, nos documentos da Província Jesuítica do Paraguai. Entretanto, os documentos apresentados aqui serão analisados apenas quanto ao uso do exórdio na narrativa de experiências, o que Hansen define como “pequenas referências ao pecado do ‘eu’ da enunciação”, ou,
ainda, a composição do “éthos da humildade”, que “se heroiciza no
ato de persistência” (HANSEN, 1995, p. 38).
Um documento de Diego de Boroa apresenta um exemplo dos
riscos que os inacianos enfrentavam. Na narrativa, o religioso afirma
estar ciente de que os missionários poderiam morrer entre “filos de
espada o ruedas de navajas por amor de Dios nro Sor” porque o objetivo final da missão era “conservar y dilatar la Sta fe, y los trabajos
que se padeçen muchos y la falta de cossas necessárias en partes tan
remotas muy grande” (BOROA [1614], In: Jesuítas e bandeirantes no
Itatim, 1952, p. 12). Nota-se que, num contexto de instalação da mis10
Hansen analisa, também, as cartas de Nóbrega. Entretanto, a afirmativa pode ser direcionada
as cartas referentes a Província Jesuítica do Paraguai.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
são e, portanto, de expectativa, o amor a Deus justifica o risco. A
experiência é um investimento projetado no futuro da missão.
Deste modo, as dificuldades enfrentadas pelos inacianos possibilitam a construção de uma imagem positiva sobre si: “Todos los quales
religiosos son buenas lenguas y experimentados en el ministério de los
indios, personas doctas y toda satisfaccion” (TRUXILO [1633], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 20). Desta forma, os religiosos
exaltam nos relatos suas habilidades, seus feitos e a humildade como
enfrentam esse processo.
Nos exórdios das cartas, os perigos da missão mesclam-se com
a valorização dos trabalhos dos religiosos. Deste modo, apresentamse os dois elementos definidores de exórdio: a humildade e a heroicização. Segundo o padre Pedro Romero, em 1634, “dieron muy bien
que merecer a los P.es Joseph Domenech y Antonio Pablo Palermo,
sus curas; todos los dias daban el viatico a mas de treinta y quarenta
personas, gastando todo el dia con los enfermos, dejando muy de
ordinario el sueño y comida por acudirles con tiempo” (ROMERO
[1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 42). Ao descrever a mudança de local das Reduções de Acarai e Iguaçu, o missionário refere-se aos religiosos como “verdaderos pastores trabajan sin
cesar por guardar sus ovejas de los lobos visibles e invisibles que
procuram quitarselas” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes
no Tape, 1969, p. 46). Todos os trabalhos são exaltados pela documentação, pois os jesuítas são descritos pela coragem de enfrentar
os perigos da missão. Sendo assim, expressões como “a costa del
sudor y sangre de los hijos desta apostolica Prov.a” traduzem o esforço dirigido à missão.
A noção de humildade indica, em alguns casos, um prenúncio
de solicitação, pedido (na divisão de Pécora: petitio). Assim, os jesuítas expunham suas dificuldades aos Provinciais na tentativa de obterem uma melhor estrutura para os povoados. Em outro documento,
padre Romero também escreve sobre este tema: “a todos acudindo el
P.e Fran.co Clavijo que tubo esta reduccion a su cargo, comp.° del P.e
Claudio Ruyer (...) repartiales todos los dias limosna de carne y muchas veces de maíz a hombres, mujeres y ninõs, que venian cada dia a
nuestra puerta como a casa de sus verdaderos P.es” (ROMERO [1634],
In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 56). Contrapondo-se ao
esforço missionário na narrativa, os padres descreviam sua discordância quanto ao desinteresse indígena em produzirem alimentos para
227
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
o ano todo. Relatam um certo espanto com a falta de preocupação que
os nativos apresentavam em relação ao futuro.
Parece relevante indicar aqui a presença do binômio falsa/verdadeira religião, que permite a comunicação para conversão (POMPA,
2003, p. 49). Neste caso, aplica-se aos níveis de ordenamento cotidiano.
De forma complementar, observa o relato do padre Pedro Mola, os religiosos “en este tiempo se les a acudido con mucho cuidado sin perdonar a ningún trabajo por grande que fuesse andando con el rigor del sol
a bisitarlos por todas partes” (MOLA [1635], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 117).
O cotidiano da missão exigia esforços físicos, descritos pelos
religiosos como empenho espiritual. A missão exigia dedicação, pois,
segundo o padre Antonio Ruiz de Montoya, tinha suas recompensas:
“Cheguei à redução de Nª Sª de Loreto com desejos de ver aqueles
dois insignes homens, que eram o Pe. José e o Pe. Simão. Encontrei-os
em extrema pobreza, mas ricos assim mesmo de contentes” ([1639]
MONTOYA, 1997, p. 50). A tradução da própria cultura indica ao leitor um estado de expectativa.
Os religiosos eram mediadores que construíram uma realidade
registrada, privilegiando a sua linguagem religiosa na tradução de experiências. Conforme descrição do padre Montoya: “enviou o Pe. Diogo de Torres à cidade de Guairá, que apenas constava de trinta homens, ao Pe. José Cataldino e ao Pe. Simão Masseta, sendo ambos eles
italianos, valorosos missionários e filhos fiéis da Companhia, bem
como apóstolos daquela gentilidade”. Os padres são referidos como
tutores dos indígenas, “verdadeiros pastores” ([1639] MONTOYA,
1997, p. 37).
As cartas jesuíticas fazem “uma triagem entre o que pode ser
‘compreendido’ e o que pode ser esquecido para obter uma inteligibilidade presente” (CERTEAU, 1982, p. 16). No entanto, é importante lembrar que, apesar de construírem um modelo de discurso com relação à
cristianização dos indígenas, nos registros dos jesuítas é possível perceber as “operações heterogêneas que compõem os patchtworks do cotidiano” (CERTEAU, 1994, p. 46), principalmente quando o texto diz muito
mais de quem escreve. Para exemplificar, lê-se o relato de um religioso
sobre o padre Roque Gonzalez de Santa Cruz: “començó la Red.on de S.
Nicolas, meramente con las armas de evangelio en las manos y en la
boca” ([1635], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 130-131).
228
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Em um documento, o padre Romero descreve as dificuldades de
manutenção do que chama de glorioso trabalho: “Muy consolados
quedaron todos los Pes desta visita y de aver hablado y comunicado su
consciencia con su Superior y Pe y muy animados en estos desiertos y
soledades a llebar adelante una obra tan gloriosa y a procurar con todas veras la conversión destos pobres naturales, cada uno en el puesto que su Rª les señalo”. Numa narrativa de experiências coletivas, o
padre relata que existem dificuldades, mas que os religiosos tratam
mais de trabalhar do que exaltar seus feitos: “Y aunque es verdad que
mas cuydan los Pes en ellos de obrar y trabajar que de escrebir ni apuntar sus gloriosos trabajos” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 40). O inaciano refere-se aos religiosos da missão
como “verdaderos obreros Apostólicos que los [aos indígenas] amen y
quieran mas en Jesus Xpo y se compadescan dellos com verdaderas
entrañas de Padres” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no
Tape, 1969, p. 34).
O ápice do exórdio é percebido nas cartas que descrevem os
martírios de integrantes da ordem. Para os religiosos, a empresa definia-se como prioridade, inclusive em relação à vida. O padre Montoya afirma que o martírio não é vergonha: “(...) na Província do Uruguai, onde o Evangelho entrou sem armas, derramaram o seu sangue
cinco sacerdotes da Companhia com insignes martírios, isto não é
fraqueza do Evangelho, mas fortaleza sua e risco eficaz para seu crescimento” ([1639] MONTOYA, 1982, p. 49). Os inacianos deveriam estar dispostos a todos os riscos. Conforme Diego de Boroa: “por la missericordia del Sr hemos tenido tanta estima de padecer por esta caussa, que lo tenemos por un gênero de martirio gloriossiss.o padeçer por
ella y dichosso el que diera su vida por defender a la gente mas perseguida y dessamparada del mundo como son estos pobres yndios los
quales padeçen siempre” (BOROA [1614], In: Jesuítas e bandeirantes
no Itatim, 1952, p. 13).
Considerações finais
O presente estudo dispôs-se a analisar o espaço das experiências para a Companhia de Jesus a partir de amostras de documentos
fundantes do Instituto e de Cartas Ânuas referentes à Província Jesuítica do Paraguai. Desde as primeiras leituras foi possível discernir
que esta ordem religiosa possui uma das mais longas formações. Na
229
Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires
medida em que experiências, reflexões e discernimentos produzem
alterações desde os documentos normativos, novos conhecimentos
permitem novas experiências, novas reflexões. Entretanto, há preceitos definidos na Companhia, há a constituição de um corpo místico
reforçado pela comunicação por cartas, que deve ser considerado. E,
apesar do caráter edificante das correspondências, os princípios de
adaptabilidade, obediência e prudência mesclam-se na composição
das narrativas de experiência a partir de exórdios. Assim, informam
muito sobre a expectativa e a experiência de quem escreve. Conforme
Eliane Fleck:
As experiências se superpõem, impregnando-se umas das outras, exatamente porque as novas esperanças ou as frustrações
abrem brechas e repercutem sobre elas. A estrutura temporal da
expectativa pressupõe necessariamente a experiência. Quando,
entretanto, sucede aquilo que não se esperava, isto é, quando se
estabelece uma ruptura do horizonte de expectativa, apresentase, então, uma nova experiência (FLECK, 2007, p. 67).
Sendo assim, parece ser um lapso deixar de cotejar os elementos discursivos não silenciados para compreender a tradução jesuítica da própria.
Referências
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de Angelis, v. 1)
Jesuítas e bandeirantes no Itatim: 1596-1760. Introdução e notas de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1952, 367 p. (Manuscritos da Coleção
de Angelis, v. 2)
Jesuítas e bandeirantes no Tape: 1615-1641. Introdução e notas de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1969, 438 p. (Manuscritos da Coleção
De Angelis, v. 3)
Jesuítas e bandeirantes no Uruguai (1611-1758). Introdução e notas de Hélio
Vianna. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1970, (Manuscritos da Coleção De
Angelis, v. 4) 554 p.
LOYOLA, Ignácio. S. J. ([1558], Constituições da Companhia de Jesus e normas
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
______ ([1548]. Exercícios espirituais. Tradução de R. Paiva SJ. 3. ed. revista e
ampliada. São Paulo: Loyola, 2006.
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brasileira. Tradução de Arnaldo Bruxel. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997.
b) Bibliográficas
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MASSIMI, Marina. A psicologia dos jesuítas: uma contribuição à história das
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PÉCORA. Alcir. Cartas à Segunda Escolástica In: NOVAES, Adauto (Org). A
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Livros
CASTELNAU-L’ETOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas
e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Tradução de Ilka Stern Cohen.
Bauru: EDUSC, 2006.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes
Menezes. Rio de Janeiro: Forense-Universitária (Vanguarda Teórica), 1982.
EISENBERG, José. As missões Jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do
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PÉCORA, Alcir. Máquinas de gênero. São Paulo: EDUSP, 2001.
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003.
231
Itinerários de viagem pelos confins do
território americano: os missionários jesuítas e
a expansão para a área ao sul de Buenos Aires
Yesica Amaya
Desde princípios do século XVIII, uma nova conjuntura começou a se definir nos territórios da América colonial. Este novo
momento estará, em parte, definido pela chegada ao trono da dinastia dos Bourbon, situação que irá impulsionar uma decidida política de controle político, econômico, territorial e fiscal da monarquia, ao lado de uma crescente centralização administrativa e do
início do que se tem chamado de “regalismo bourbônico”. Este conjunto de medidas teve, sem dúvida, um impacto decisivo nas colônias americanas, em diferentes níveis, de acordo com os territórios
e atores envolvidos.
Neste novo contexto, nos interessa indagar qual foi a importância estratégica que adquiriram os territórios localizados ao sul de Buenos Aires, bem como o papel dos jesuítas no processo de exploração e
ocupação destas áreas. A partir das crônicas e dos diários de viagem
dos missionários que percorreram estas terras em meados do século
XVIII, analisaremos os diferentes interesses que entraram em jogo no
momento de definição e ocupação deste espaço. Para isso abordamos
aqui as estratégias ensaiadas e postas em prática pela coroa espanhola
e pelos jesuítas, buscando perceber os conflitos e interesses contradi-
Yesica Amaya é Pesquisadora do Centro de Estudos sobre a América Latina (Cesal) da Faculdade
de Ciências Humanas na Universidade do Centro da Província de Buenos Aires, UNCPBA.
Graduada em História é doutoranda da UNCPBA. Este texto faz parte de um trabalho mais
amplo que investiga a ação da Companhia de Jesus na cidade de Buenos Aires durante o século
XVIII. É bolsista do CONICET.
E-mail: [email protected]
Tradução de Maria Cristina Bohn Martins, e-mail: [email protected].
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
tórios dos atores envolvidos na expansão e exploração dos “confins do
território americano”. Isto sem deixar de mencionar os interesses de
Buenos Aires em tornar efetivo o controle dos referidos territórios.
Em segundo lugar, nos concentraremos nas diferentes expectativas de cada um dos jesuítas protagonistas de tais viagens, para assim
analisar, a partir da experiência individual de cada um, os interesses
da Companhia de Jesus e as práticas concretas dos viajantes. Neste
nível, é possível ver a distância existente entre as “instruções” emanadas pela Ordem, e as estratégias dos missionários, guiados, em muitos
casos por interesses particulares que ultrapassavam os da própria
Companhia e, inclusive, os da monarquia espanhola. Também podemos perceber que uma grande dose de adaptabilidade e improvisação
acompanhava a empresa dos seguidores de Santo Inácio de Loyola na
exploração e ocupação destas terras ao sul.
Interesses e objetivos da expansão para o sul
A partir de finais do século XVII e princípios do XVIII, um considerável número de viagens e expedições partiram de um ponto a
outro do Novo Mundo. Muitas destas viagens de exploração foram
lideradas por jesuítas, os quais, para Guillermo Furlong, eram “hombres que parecían nacidos para todo lo arduo y arriesgado” (1994, p.
24). À presença ativa no território americano de distintos atores, em
particular dos representantes das Ordens Regulares da Igreja, somavase, naquela oportunidade, a não menos importante ação do governo
colonial nestes territórios, com o objetivo de colocá-los mais efetivamente sob controle da metrópole.
Desde então, é notável o crescente interesse da Companhia e da
coroa por áreas que, até esta oportunidade, eram tidas como pertencendo aos “confins do território americano”. O objetivo destas viagens
de exploração assinala uma confluência de interesses da ordem e da
coroa. A importância estratégica dos territórios localizados ao sul de
Buenos Aires, e o papel dos jesuítas na ocupação destas terras permitirão, de fato, elucidar os papéis da Companhia de Jesus e de seus
missionários neste processo e como parte importante do mesmo.
Desde os primeiros tempos da colônia, as particulares características econômicas e sociais da parte mais austral do continente americano – nos marcos de uma economia baseada no descobrimento de
minas de ouro e prata e na exploração da população nativa – determi-
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Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
naram, em parte, o caráter da ocupação e da colonização da atual área
buenairense. A ínfima proporção de população branca, relativamente
à grande extensão do território e à possibilidade de abastecer-se comodamente, favoreceram uma relação nem sempre conflituosa com os
indígenas da região. Mesmo assim, contribuiu para que o estabelecimento de missões jesuítas aí não se fizesse efetivo até meados do século XVIII.
A fim de que possamos responder ao questionamento estabelecido sobre o papel da Companhia na Buenos Aires colonial, acreditamos ser necessário considerar que a cidade, desde sua fundação, centrou seu interesse na participação da rota comercial que se dirigia até
Potosi, motivo pelo qual o sul não fez parte de seus objetivos até o
século XVIII, coincidentemente com o interesse da Ordem. Até este
momento, Buenos Aires desenvolvera uma política principalmente
defensiva, realizando apenas esparsos movimentos em direção ao sul.
Durante o século XVIII, algumas crônicas isoladas trazem informações sobre a geografia do lugar, sendo que, na sua primeira metade,
ocorreu um investimento significativo para fins do melhor conhecimento deste espaço, processo que contou com importante participação dos missionários jesuítas.
Diferentemente do que se observa no caso de outras capitais,
Buenos Aires tardou a manifestar interesse em desenvolver políticas
de evangelização e atração dos nativos para a fé (CRUZ, 1999), questão
que não pode ser desconsiderada ao tratarmos do papel desempenhado pelos jesuítas no tardio processo de catequese ao sul da região.
Efetivamente, até 1617 as iniciativas de exploração partiam das governações de Tucumán e Paraguai, respectivamente. Neste ano, com criação de uma sede de governo em Buenos Aires, a ocupação e exploração
dos territórios mais austrais passaram a ser responsabilidade da capital. Embora, desde 1684, os jesuítas tivessem permissão para evangelizar nos territórios ao sul das regiões buenairense e patagônica, as iniciativas neste sentido somente se concretizaram a partir de 1740.
Os territórios situados ao sul de Buenos Aires começaram a se
revestir, a partir de finais do século XVII e princípios do XVIII, de um
caráter importante para a coroa espanhola, diante da crescente rivalidade entre portugueses e ingleses. Se os jesuítas participaram ativamente nas viagens de exploração e conquista que passarem a ser organizadas, é importante recordar que tais iniciativas não se reduzem ao
espaço pampeano e patagônico. Tal como afirma Artur Barcelos (2006),
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
o século XVIII iniciou e culminou com uma série de viagens de missionários da Ordem por todo o continente1. De acordo com sua análise,
amplamente documentada, ao longo deste século os jesuítas avançaram em direção à região amazônica, pela Baixa Califórnia, pela Patagônia, pelo Chile e pela Cordilheira dos Andes, Rio Paraguai e Orenoco,
entre outros lugares. As motivações para estas viagens sinalizam a possibilidade de realizar incursões em áreas ainda não evangelizadas, bem
como a oportunidade de ampliar o raio de ação da Companhia de Jesus
em diferentes regiões da América, questões estas que se achavam intimamente imbuídas de intenções políticas e religiosas (BARCELOS,
2006, p. 174).
Este decidido avanço para a área do “pampa buenairense” desenvolveu-se no âmbito de uma política de expansão das fronteiras coloniais. Até este momento, ainda no transcurso do século XVIII, as relações com os grupos indígenas da zona se apresentavam como “não
necessariamente conflitivas”, situação que foi alterada quando os “malones”2 deixaram de constituir-se em fenômeno isolado. Nesta oportunidade, surgiu e se fortaleceu uma noção de espaço fronteiriço como
uma área sobre a qual era preciso avançar.
As fontes consultadas demonstram uma ativa presença dos jesuítas no território a partir de 1740. Este é o caso das viagens de Thomas
Falkner, que percorreu a zona central da pampa buenairense entre 17461749, do Padre Strobel, que viajou pela região que compreende atualmente a cidade de Mar del Plata, entre 1746-1747, do jesuíta José Cardiel, que viajou pelos territórios da atual Bahía Blanca, e do Padre
Quiroga que, junto a Strobel e Cardiel, empreendeu, em 1745, a primeira “expedição científica” pela Patagônia.
Estão compreendidas aí, no século XVIII, um conjunto de viagens como as de Samuel Fritz pelo
“Marañón” e Amazonas entre 1689-1692, iniciando a centúria, e as de Eusebio Kino, que
percorre a Baixa Califórnia em 1683 e, em busca de uma comunicação terrestre entre a península
e o continente, explora, junto a Isidoro de Atondo, a região nordeste de Nova Espanha entre
1697-1702. O século finaliza com as viagens de Sánchez Labrador, que realiza o caminho entre
o Paraguai e as reduções de Chiquitos, e Wenceslau Link, que protagoniza quatro expedições para
a costa ocidental da Baixa Califórnia em 1765-1767.
2
“Malón”: nome pelo qual eram conhecidas as incursões guerreiras dos índios mapuches contra
parcialidades indígenas inimigas ou contra povoados e fortificações brancas. Tal tática militar
consistia em ataques rápidos e surpreendentes contra o inimigo, a fim de obter provisões, gado
e, eventualmente, prisioneiros para cativeiro. N. da T.
1
235
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Sem dúvida, e tal como aponta Mary-Louise Pratt, estas viagens
e seus relatos respondem a uma nova mirada sobre o mundo não europeu, para a qual os jesuítas não estiveram alheios:
La sistematización de la naturaleza es un proyecto europeo nuevo, una
nueva forma de lo que podríamos llamar conciencia planetaria entre los
europeos. Durante tres siglos los aparatos europeos para la construcción
del conocimiento habían estado interpretando el planeta sobre todo en
términos de navegación – ahora, a mediados del siglo XVIII, los sistemas
clasificatorios generaron la tarea de ubicar a todas las especies en el planeta, sacándolo de su entorno arbitrario (el caos) y colocándolo en su sitio
adecuado dentro del sistema (el orden: libro, colección o jardín) con un
nuevo nombre europeo, secular y escrito (PRATT, 1997, p. 61-64).
Neste sentido, devem ser tomados em conta os variados propósitos que motivaram as viagens dos missionários jesuítas, como também importa destacar quem eram os destinatários de seus diários ou
de suas crônicas de viagem. Muitos destes sacerdotes percorrem e exploram o território desde meados do século XVIII, no contexto de uma
Europa que se lançava para as primeiras “expedições científicas” e em
direção a uma nova “consciência planetária”. Tal como afirma Pratt,
“[…] las ideologías dominantes establecían una clara distinción entre
la (interesada) búsqueda de riquezas y la (desinteresada) búsqueda de
conocimiento; y por la otra, la competencia entre naciones seguía siendo el motor de la expansión europea de ultramar” (1997, p. 43). Sem
dúvida, estes componentes estavam presentes nas viagens de nossos
protagonistas, envolvidos como poucos no espírito do século. Estavam eles interessados tanto nas possibilidades econômicas das áreas
exploradas ou ainda por ocupar, quanto no “conhecimento correto” do
espaço, sempre atentos aos requerimentos emanados desde a coroa
diante da competição de outras nações.
As experiências e os informes destas viagens foram forjadas em
crônicas e diários que informam sobre os objetivos e interesses que
motivaram algumas delas. As fontes disponíveis colocam de relevo os
interesses da Ordem na cidade portuária e na expansão territorial iniciada nas primeiras décadas de 1700.
As crônicas de viagem que aqui analisamos constituem, em princípio, expedições com diferentes objetivos. De acordo com tais desígnios, elas podem ser definidas como viagens de exploração e investigação, e viagens de conquista.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Entre as temáticas que retiveram a atenção dos jesuítas viajantes,
se encontram, em primeiro lugar, as descrições geográficas, de forma
que seus detalhados informes, escritos e gravuras têm ajudado a ajustar a cartografia existente sobre o continente3. Em tais descrições é
possível encontrar características geológicas, medidas de latitudes e
longitudes, condições climáticas, observações da paisagem, meio ambiente, flora, fauna, etc. Em segundo lugar, aparecem as referências
específicas sobre os aborígines que habitavam as regiões que visitavam. Além disto, encontram-se aí importantes apreciações sobre a forma de vida, não apenas dos aborígenes, mas também dos colonos que
habitavam nas cidades e nas áreas rurais. Ali aparecem, em alguns
casos, importantes estimativas e descrições demográficas e sociais. As
crônicas jesuíticas se caracterizam, neste período, pela especial ênfase
posta nas descrições geográficas, com pretendido caráter “científico”.
No que diz respeito aos diários de missionários jesuítas, além
das considerações antes realizadas, se deve ter em conta o propósito
principal, expressado pelos padres, de evangelizar e estabelecer missões, assim como de informar os Superiores da Ordem sobre o desenvolvimento e o funcionamento das missões, dos colégios e das fazendas jesuítas. Em muitos casos, as viagens podiam ser impulsionadas
pelo instituto, pela sociedade local ou pela coroa espanhola. Em cada
um destes casos, se entrecruzavam claramente os interesses dos diversos setores envolvidos.
A presença dos missionários jesuítas na exploração ao sul do
território de Buenos Aires se fez efetiva a partir de 1740 aproximadamente, quando se iniciou a “conquista espiritual” do centro e do sul
do âmbito de Buenos Aires. A partir de meados do século XVIII, é
notável o crescente interesse da Companhia e da coroa naquilo que,
até o momento, se consideravam como os confins do território americano. A finalidade destas viagens de exploração evidencia a confluência de interesses entre a Ordem e a coroa que, no século XVI haviam
estado vinculados ao “descobrimento” e à conquista de América e, no
século XVIII, à pratica mais “moderna” de estudo e investigação dos
territórios conquistados.
3
Assim o evidenciam os numerosos mapas do território americano – e do Rio da Prata em
particular – que os jesuítas elaboraram, muitos deles compilados por FURLONG CARDIFF, 1936.
237
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Dentro do que é possível definir como “viagens de exploração e
investigação do território”, podemos mencionar a empresa desenvolvida pelo jesuíta Cardiel ao sul da atual Bahía Blanca e a de Thomas
Falkner e do padre Quiroga pelo mar, esta última conhecida como a
primeira viagem “científica” para a Patagônia. Por outra parte, devemos mencionar as “viagens de fundação de missões”, empreendidas
por Cardiel, Falkner e Strobel.
O itinerário dos viajantes jesuítas
A viagem em que concentraremos nossa atenção foi protagonizada pelo Padre Quiroga, que, junto com Strobel e Cardiel, empreendeu,
em 1745, a primeira “expedição científica” pela Patagônia. Ela foi a
empresa que mais claramente suscitou o interesse da coroa, que inclusive financiou parte do seu percurso; curiosamente é, por outro lado, a
expedição que de menos mérito pareceu se revestir para a Ordem. Talvez seja possível ver nos seus resultados uma perda de interesse por
parte dos jesuítas, ou de Quiroga, em particular, pelo espaço patagônico. O objetivo dos jesuítas estava posto mais na demarcação do território do que no estabelecimento de missões. Na expedição, depois de
algumas entradas terra adentro, os padres parecem convencer-se rapidamente da ausência de índios para evangelizar.
(…) saltamos en tierra y subimos todos a lo alto de un cerro, solamente
quedaron los marineros para guardar la lancha; desde esta altura registramos todo el contorno con Largomira; pero no descubrimos sino tierras
estériles, muchas quebradas y peñasquerías, sin arboles ni humanidad
alguna; no hallamos señal alguna de que al presente habiten indios en esta
costa (…) (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 22).
Ainda que um dos escopos da iniciativa fosse o reconhecimento
do território, também se avaliaram as possibilidades da área para o estabelecimento de povoações. Acreditava-se que a “Bahía de San Julián”
poderia ser um lugar apropriado, inclusive para estabelecer o porto. Sem
dúvida, as apreciações realizadas pelos missionários foram muito diferentes:
Los puertos son muy pocos; solamente en el Puerto Deseado, en San Julián
y en la bahía de San Gregorio se halla abrigo para los navíos. En el Puerto
Deseado hay una fuente, de la cual en caso de necesidad pueden hacer
aguada los navíos. Todo lo restante de la costa está seco y árido, que no se
ve un árbol, ni hay donde se pueda hacer leña gruesa; de algunos matorra-
238
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
les se puede hacer algún poco en la bahía de San Julián, en donde se hallará
también mucha pesca y abundancia de sal (LOZANO, 1836, p. 28).
O Padre Quiroga, protagonista desta travessia, parece ser o paradigma do “jesuíta cientista” do século XVIII. Em seu diário de viagem,
ele relata:
(…) al anochecer nos hallamos cerca de la isla de los Reyes, y no habiendo
hallado desde los 49 grados a los 48 la entrada del Puerto de San Julián,
determinamos conservar esta altura para volver al día siguiente, recorriendo la costa en demanda de dicho puerto, por ser este el principal objeto de
la demarcación, que se me había encomendado (FURLONG CARDIFF,
1930b, p. 23).
Este espírito científico é ressaltado na hora de mencionar a bagagem de instrumentos científicos que Quiroga trouxe consigo para a
América, entre os quais se mencionam: “dos relojes de faltriquera para
la mensura del tiempo, dos telescopios, una lámina de cobre para cuadrante, y dos compases, entre otras cosas” (FURLONG CARDIFF,
1930b, p. 19).
A expedição para a Patagônia reúne claramente os interesses da
coroa espanhola e da Ordem, expressos na necessidade de dar uma
resposta à monarquia, preocupada com o controle de seus territórios
coloniais. Ainda que a estratégia da Companhia fosse sempre responder aos requerimentos do rei, seu estrito voto de obediência ao papa e
ao Geral da Companhia não era de menor importância. Motivo de conflitos em mais de uma ocasião para os inacianos, esta foi, para alguns,
a razão da sua expulsão de 1767. Ao mesmo tempo, este princípio de
obediência se achava mediado pelas situações concretas que os missionários deviam enfrentar em suas viagens e expedições. Neste sentido, a
viagem de Quiroga permite entrecruzar os interesses antes mencionados, isto é, da Companhia e da coroa, com as motivações particulares
do missionário. O que buscava Quiroga depois da viagem? Seria receber o reconhecimento pela travessia realizada e pelo matiz “científico”
de sua viagem? Estaria envolvida aí a oportunidade de obter melhores
posições dentro da Ordem? Foram alcançadas suas expectativas? Se
seguirmos sua trajetória, poderemos nos acercar mais adequadamente
de alguns dos resultados alcançados pelo sacerdote, questão que abordaremos mais adiante.
O próprio Cardiel alude, em seu “Diario de viaje y Misión al Rio
del Sauce”, à ocasião em que eles percorreram as costas em direção ao
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Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
sul: “emprendimos al fin del año 17464, el viage por mar a las Costas
de Magallanes para combertir a nuestra santa fe los infieles comarcanos al Estrecho, y por otros fines del bien público que también el Rey
pretendía” (CARDIEL, 1930, p. 250-251). Como já mencionamos, a expressão que utiliza nos permite ver como os interesses da coroa se
achavam absolutamente presentes nesta expedição, que não parece receber a mesma valoração por parte dos missionários.
Depois de concluída a viagem pela Patagônia, o Padre Cardiel
não descansou em seu desejo de avançar, desta vez por terra, até o
estreito de Magalhães. Este seu anseio esteve claramente expresso em
uma carta ao Governador de Buenos Aires, datada de agosto de 17465,
em que demonstra profundo interesse pelo conhecimento do referido
espaço, ao mesmo tempo em que destaca a relevância da expedição.
Fazendo referência à existência de numerosas populações e importantes recursos, solicita autorização para a viagem nas seguintes palavras:
Habría de durar seis a ocho meses, si se registrara bien todo: y para tantos
meses eran menester cinco reses para cada uno, y con cabos que fuesen de
empeño (que si no son escogidos, luego se cansarían), todo se conseguiría, y Vuestra Señoría, además del premio que se le guardaría para la otra
vida, lo tendría grande del Rey nuestro señor. Nosotros acá no buscamos
sino la honra y servicio de Dios, de aquel gran Señor, a quien no correspondemos, sino haciendo mucho por Su Majestad, y con solo su honra y
gloria estamos contentos. Si a Vuestra Señoría no le agrada este proyecto,
o si no tuviere efecto el juntar la gente de este modo, puede Vuestra Señoría discurrir otro con gastos reales, o costa de particulares, que quieran
entrar en la empresa. En todo estoy a las órdenes de Vuestra Señoría, que
Dios guarde los años de mi deseo (DE ANGELIS, 1836, p. 17-18).
Contudo, nesta oportunidade, ele não conseguiu autorização para
embarcar na referida empresa. Porque a viagem não foi autorizada? Por
um lado, a resposta pode estar na necessidade de avançar com a fundação de novas reduções mais próximas de Buenos Aires. Por outro,
pode estar no intento de conter as ações “demasiado autônomas” da
Companhia em um contexto em que não eram necessariamente harmoniosas as relações entre a coroa espanhola e a Ordem.
4
5
Há aqui um equívoco na data que é destacado pelo editor do texto.
DE ANGELIS, 1836, p. 11-18.
240
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
O Padre Cardiel acaba sendo destinado às missões de Pampas y
Serranos. Sobre isto informa ele: “vínome orden de que fuese a las
Sierras del Volcán, para desde allí proseguir con el tiempo hasta el
estrecho. Están estas Sierras 70 leguas de Buenos Aires con corta diferencia al sudeste de esta ciudad. Llegue allí con mi compañero a fines
de agosto de 1746” (CARDIEL, 1930, p. 26).
Em 1747, o religioso fundou, junto com Falkner, a redução de
“Nuestra Señora del Pilar del Volcán”, de onde, de quando em quando,
permaneceu perseguindo a possibilidade de concretizar sua expedição para o sul. Cardiel logrou finalmente empreender sua viagem “hacia la desembocadura del Rio de los Sauces al Mar”, em março de 17486.
A expedição partiu de Buenos Aires e, desde ali, avançou em
etapas até a redução da “Inmaculada Concepción de Nuestra Señora de
las Pampas”, passando, depois, para “Nuestra Señora del Pilar del Volcán” e concluindo-se quatro léguas adiante do chamado “Arroyo de la
Ascensión”. A partir dali, os índios que o acompanhavam recusaramse a continuar a viagem.
El día 21 estando ya cargadas las cabalgaduras, salieron el baqueano o
guía, y el intérprete, diciendo que se querían volver, que hacia mucho frio
y que estaba lexos. Ya las noches antecedentes habían hablado mucho de
esto, a que añadían que los infieles que buscábamos eran mui barbaros y
sangrientos, que nos havían de matar (…) Volvieronse a galope dejándonos solos, viéndome sin guía ni lengua imposibilitado no tanto a caminar
adelante, quanto a hablar y declarar a los indios mi venida, me fue preciso
volver atrás con el pesar que se deja entender, y para sacar algún provecho
de mi vuelta, determine hacerla por la Playa del mar hasta el pueblo de los
Pampas (CARDIEL, 1930, p. 261).
A viagem de Cardiel nos demonstra um profundo interesse no
espaço por conquistar. Neste sentido, diferentemente daquela realizada por mar junto com Quiroga, parece-nos haver aqui uma decisão
mais firme do missionário em avançar, apesar das dificuldades e de
não contar com os recursos necessários. Ao mesmo tempo, ele se ocupou de ressaltar as vantagens desta zona para o estabelecimento de
povoações.
6
DE ANGELIS, 1837.
241
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Quédese pues savido para todos, que este camino desde las sierras del
volcán hasta 4 leguas mas allá del arroyo de la ascensión de donde nos
volvimos, que por tierra adentro es de cosa de 70 leguas, es camino no
solo de cavalgaduras sino también de carretas, sin pantano alguno, con
pasos por los ríos, aun por los dos grandes de las barrancas, con leña para
pasar, porque aunque en algunas partes ay mui poca, se puede cargar en
las que ay, con abundancia de agua, de manera que quasi siempre se puede hacer medio día en un arroyo, y noche en otro, camino de tierra adentro, y de la orilla de los arenales. Para llegar al Rio Colorado, que dicen ser
grande y con mucha abundancia de sauces altos y gruesos, no faltan según lo que pude averiguar cosa de 30 leguas: este trecho será de las mismas calidades, que el de 70 andado (CARDIEL, 1930, p. 272).
A motivação de Cardiel parece estar mais vinculada à possibilidade e à oportunidade que, para o missionário, significava o avanço
sobre territórios quase inexplorados, somando-se a isto a possibilidade de ali fundar reduções.
De alguma maneira, a experiência com os guaranis estava sempre presente no ideário do religioso, reforçando o princípio de “autoimposição do êxito na missão”7. A viagem representava, então, a possibilidade de ter êxito em sua travessia, um resultado que não era obtido facilmente, já que a competição entre os jesuítas por posições de
destaque era parte constitutiva da estrutura hierárquica da Companhia, que não se encontrava, por isto mesmo, alheia aos conflitos. Uma
vez mais nos perguntamos: quais foram seus resultados?
Recordemos que a importância estratégica de tais territórios para
a coroa não se reduziu apenas ao interesse científico. De fato, as viagens de meados do século XVIII representavam, principalmente, a necessidade de controlar territórios antes considerados “marginais”.
Como também já afirmamos, elas coincidem com as transformações
operadas no seio da Monarquia Bourbônica, e marcam os anos prévios
à criação do Vice Reinado do Rio da Prata (1776).
Assume características diferentes a viagem empreendida por Thomas Falkner para a Patagônia. Falkner realizou sucessivas entradas em
direção ao sul, entre 1746 e 1749. Personagem muito ativo, ele participou da fundação de “Nuestra Señora del Pilar” e, em 1749, da criação
7
Com esta expressão, queremos fazer referência à importância do êxito nas atividades empreendidas pelos jesuítas, que consideravam-no obtido quando alcançavam a evangelização de grande
número de aborígines.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
da missão de “Nuestra Señora de los Desamparados”. Seu dinamismo
e conhecimento da área ficaram registrados em sua “Descripción de la
Patagonia y de las partes adyacentes de la América Meridional”, cujo
original publicou-se em inglês.
De suma importância para compreender a trajetória deste missionário é saber que, devido às restrições emanadas das autoridades metropolitanas em 1743, os jesuítas estrangeiros – isto é, de origem não
espanhola – que estivessem em território colonial, deveriam sofrer
maior controle. Por este motivo, cremos que Falkner não pode ter acesso, nem em nível de reconhecimento do terreno, às experiências missionárias desenvolvidas em outras áreas. O ponto extremo ao norte, ao
qual chegou em suas viagens, foram as instalações da Companhia em
“Santiago del Estero”; ao sul, suas incursões encontram limites nas
serras buenairenses, na costa ao sul de Buenos Aires e nas povoações
ao sul do “Pago de la Magdalena”. Suas descrições – que sugerem um
grande conhecimento do espaço – realizaram-se sobre a base do que
viu e, ainda, dos relatos dos índios. Como ele mesmo conta, “he seguido la relación que me hicieron los indios, y los españoles cautivos que
han vivido muchos años entre ellos” (FALKNER, 1835, p. 3).
Em certas ocasiões, o padre deixou entrever seu interesse por
áreas que poderiam ser atrativas desde o ponto de vista de suas potencialidades econômicas, e nos quais havia possibilidade de estabelecerem-se povoações permanentes.
Estos valles son muy fértiles, con el terreno negro y profundo, sin mezcla
de arcilla: están siempre cubiertos de tan buena yerba, que el ganado engorda en poco tiempo. Estos pastos por lo común están bien cerrados por
un lado con las montañas, pero muy abiertos al norte y noroeste. No he
visto en el distrito de Buenos Aires paraje alguno tan capaz de ser beneficiado como éste: el único inconveniente a que está sujeto, es la falta de
maderas para la fábrica de casas; lo que en pocos años, y con no mucho
trabajo se podría remediar, mayormente cuando hay materiales bastantes
para fabricar casas, que podrían durar y servir, cubriéndolas de cañas, hasta
que tuviesen lo necesario para hacerlas mejor (FALKNER, 1835, p. 20).
Da mesma maneira, suas descrições sobre a geografia e sobre os
sistemas de rios permitem ter a dimensão de um conhecimento, geralmente muito preciso, que o jesuíta adquire, diferentemente de outros
missionários, que percorrem as regiões ao sul de Buenos Aires e a
Patagônia:
243
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Más adelante al poniente hay un río con muy altas y perpendiculares
orillas, llamado por los españoles el río de las Barrancas. Los indios le
llaman Hueyque-leubu, o río de mimbres, que nacen en sus orillas. Este
río es muy grande, aunque no tanto, comparado con el Río Colorado, y el
Negro. En general se puede vadear, pero también tiene a veces algunas
avenidas de las lluvias y nieve derretida que recibe. Fórmase en un país
llano, entre las montañas de Achala y Acanto, y el primer desaguadero, o
Río Colorado, de un gran número de arroyos que salen de estas montañas;
y toma su curso hacia el sur y sudeste, hasta que para a 12 ó 14 leguas al
este de Casuhati, y entra en el Océano, después de haber recibido otro
pequeño río que nace de aquellas montañas. Pero tengo algunas dudas,
por relación de los indios, que este río se vacíe inmediatamente en el
Océano, y no en el Río Colorado, poco más arriba de su boca. Todo este país
abunda de caballos silvestres, sobre todo la parte del este, que está más
cerca del Tuyú y las montañas (FALKNER, 1835, p. 23).
Tanto o diário quanto o mapa de Falkner demonstram seu conhecimento sobre este espaço, motivo das posteriores dificuldades enfrentadas para obter-se a sua publicação, havendo o temor das autoridades metropolitanas de que as informações aí contidas favorecessem possíveis países competidores da Espanha. Efetivamente, na apresentação
para a edição em castelhano, Pedro de Angelis adverte sobre o receio
existente na Espanha acerca da publicação de uma obra que deixaria a
descoberto pontos vulneráveis do Império Espanhol8. O próprio Falkner diz:
Si alguna nación intentara poblar este país, podría ocasionar un perpetuo
sobresalto a los españoles, por razón de que desde aquí se enviarían navíos
a la mar del sur, para destruir en él todos sus puertos, antes que tal cosa o
intención se supiera en España, ni aun en Buenos Aires. Fuera de que se
podría descubrir un camino más corto para navegar este río, con barcos
hasta Valdivia: podríanse reunir también tropas de indios moradores de
sus orillas, y los más valientes de estas tribus, que se alistarían con la
esperanza del pillaje; de manera que sería muy fácil el rendir la guarnición
importante de Valdivia, y allanar el paso a la ocupación de Valparaíso, por
las que se aseguraría la conquista del reino de Chile (1835, p. 2).
Algumas questões particulares surgem ao analisarmos a viagem
e a trajetória deste personagem. Em primeiro lugar está a de ele não
haver avançado para além das missões dos pampas. O fato de existi8
É importante assinalar que a publicação de sua obra se realizou logo depois da expulsão do autor,
durante o período do seu exílio.
244
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
rem limites concretos para sua ação dentro da Companhia determinou
que sua estratégia tivesse sido diferente. Isto é, ante a impossibilidade
de ocupar posições de maior hierarquia nas missões do Chaco ou do
Paraguai, o religioso buscou incansavelmente as oportunidades que
podiam ser abertas a ele nesse novo espaço. Quais terão sido, então, as
expectativas e os resultados da travessia empreendida por Falkner?
Interesses e estratégias em jogo na expansão
A expansão em direção ao sul da área buenairense encontra, desde meados do século XVIII, os padres da Ordem, a coroa espanhola e a
sociedade portenha como os principais atores sociais envolvidos no
referido processo. Devemos, todavia, indagar se estes interesses eram
compartidos ou entravam em disputa, ou ainda se geravam solidariedades entre os setores envolvidos. A partir daí, podemos, então, tentar
definir qual o papel dos membros da Companhia no processo de expansão que estamos analisando.
O recente interesse pelas áreas em questão decorreu da necessidade, por parte da Coroa e da sociedade portenha, de desenhar políticas que abordassem a nova realidade social e econômica da campanha
buenairense. A ausência do estado colonial, até então observada, não
significava necessariamente a falta de relações de intercâmbio de todo
tipo, entre indivíduos e grupos, relações que nem sempre foram homogêneas ou responderam a um interesse comum de definição geral.
Neste contexto se compreende a criação aí de um conjunto de três reduções jesuíticas9, e dos sucessivos avanços para o sul, protagonizados pela Companhia. Estes fatos remetem à vinculação entre os interesses locais, os interesses da coroa espanhola, e os objetivos de expansão dos territórios de ação missionária por parte da Ordem, nem
sempre claramente expressados por seus membros, protagonistas de
muitas destas viagens.
A política desenvolvida pelos jesuítas permitiu, por um tempo,
manter a tranqüilidade na região, possibilitando ao governo de Buenos Aires ocupar-se de outras frentes de conflito dentro de sua jurisdição, enquanto a política portenha não interferisse nos interesses dos
9
Em 1740 é fundada a Missão de “Nuestra Señora de la Concepción de las Pampas”; em seguida
se criam “Nuestra Señora del Pilar” (1746-1747) e “Madre de los Desamparados” (1749).
245
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
índios que “ya entraran en esta ciudad hechos amigos”, porque “estos
indios son volubles y tan indómitos que no conocen mas sumisión
que su propia voluntad” (apud CRUZ, 2000, p. 76). A pressão exercida
pela presença de grupos indígenas em busca de gado, e a valorização
da região como espaço produtivo, criaram uma “imagem do outro” até
então desconhecida. Assim, começa a ser construída a idéia dos índios
como perigosos, enquanto o sul se constitui em um campo propício
para o desenvolvimento de políticas já postas em prática em outros
espaços do mundo colonial (CRUZ, 2000, p. 65-66).
A presença dos nativos na cidade de Buenos Aires foi alterada
pela nova realidade política e econômica da cidade que, por estas razões, voltou sua atenção para o sul, ao mesmo tempo em que os jesuítas pareciam dispostos a uma nova empresa missionária. De toda forma, é possível pensar que, no marco das relações cada vez mais tensas
entre a coroa e a Ordem, esta soube encontrar, nas novas missões, uma
estratégia de sobrevivência e uma possibilidade de atenuar os conflitos políticos já perceptíveis em meados do século XVIII, isto é, às vésperas da expulsão. A Companhia encontrou, assim, uma resposta para
estas tensões, resposta esta que era política e estratégica a um só tempo, já que os religiosos percebiam nestas viagens, na maior parte dos
casos, uma oportunidade de desenvolver ou afiançar sua posição em
espaços pouco explorados, pretendendo, ainda, com sua ação, responder às solicitações da monarquia. Deste ponto de vista, os objetivos
dos missionários e os do governo colonial podiam confluir neste processo de expansão e evangelização.
Sem abandonar a idéia de que os jesuítas se interessaram pelo
sul e de que estabeleceram ali missões como estratégia de sobrevivência para a Ordem, existem dados sobre o interesse jesuítico, para além
da conjuntura política, pelo futuro econômico próspero da região, tal
como deixam entrever Thomas Falkner e José Cardiel. Este último diz
a respeito: “los caballos alzados no tienen dueños, y andan disparando en grandes manadas por aquellas vastas llanuras”. Adverte ainda
que “la tierra es negra y profunda, sin arcilla, y siempre esta cubierta
de tan buen pasto y en tan abundancia, que las haciendas que por allí
pastan engordan en muy poco tiempo” (1930, p. 225).
Esta visão é recorrente entre os viajantes do século XVIII, e ainda entre os do XIX, os quais ressaltavam as potencialidades econômicas da pampa buenairense, ao tempo em que destacavam a situação de
seu vazio territorial e estado primitivo. Também um misto de perple246
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
xidade e otimismo está presente nas descrições e nos diagnósticos dos
funcionários bourbônicos (ALIATA, 2006, p. 46). Os jesuítas, que não
eram de todo alheios ao espírito ilustrado da época, ressaltavam a mesma situação na hora de definir seus pareceres sobre a área pampeana.
Além das transformadas conjunturas políticas – às quais os jesuítas tentavam uma vez mais responder –, os membros da Ordem se
viram envolvidos, desde meados do século XVIII, em um intenso processo de expansão. Se bem que seus interesses nem sempre foram claros, este feito posicionou os jesuítas em uma condição destacada em
relação às políticas locais de defesa, da cidade, e às mais gerais da
metrópole espanhola.
Como parte deste processo, o Colégio da Companhia em Buenos
Aires se transformou mais decididamente em um local estratégico e
ponto de passagem de todas as expedições lideradas pelos jesuítas.
Sem pretender reduzir a esta questão a importância deste colégio, acreditamos que, durante a primeira metade do século XVIII, a Companhia de Jesus, em Buenos Aires, cumpriu um papel estratégico no avanço em direção ao sul. Prova disto são as numerosas viagens que partem do colégio, constituindo-se este em passagem obrigatória para todos os jesuítas que embarcavam nas referidas empresas.
Desde o processo de expansão iniciado em meados do século
XVIII, e inclusive antes, o colégio, ao localizar-se em uma cidade portuária, constitui-se em lugar de chegada dos jesuítas enviados para
as Províncias Jesuíticas do Paraguai. A maioria deles passava ali uma
temporada para recuperar-se da fadiga da viagem. É o que informa,
por exemplo, o Padre Antonio Sepp, que chega a Buenos Aires em
abril de 1691: “después de descansar un mes en Buenos Aires, un
grupo se dirige a Córdoba, para que pudiesen proseguir sus estudios
(…) el resto se embarcó siguiendo el curso del Rio Paraná y Uruguay
hacia las Misiones” (1980, p. 109). Também o faz Manuel Querín,
tendo chegado a Buenos Aires em 1717, quando se celebrava uma
Congregação Provincial,
(…) fuimos grandemente agasajados por los jesuitas bonaerenses, en la
Congregación Provincial que se celebró ese año, bajo la égida del entonces
Provincial, Padre Luis de la Roca, dos meses pasamos en Buenos Aires
reponiéndonos de las fatigas del viaje, al cabo de las cuales marché hacia
Córdoba (FURLONG CARDIFF, 1967, p. 21).
247
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Diferentes são os casos de Quiroga e Cardiel, tendo ambos se
dirigido ao colégio da Companhia em Buenos Aires com o objetivo de
partir em expedições. O primeiro chegou em junho de 1745, como chefe
da campanha para a Patagônia, e permaneceu ali durante seis meses
preparando a viagem e participando, durante esse tempo, das atividades do colégio (FURLONG CARDIFF, 1930, p. 17-21). O segundo, depois de percorrer, por mais de dez anos, diferentes colégios e missões
na Província do Paraguai, participou, em 1745, da expedição à Patagônia, junto com os padres Quiroga e Matías Strobel. Partiu para esta
expedição saindo de Buenos Aires e, ao seu final, solicitou autorização para realizar novas campanhas “rumbo al sur hacia el inmenso
desierto que se abre rumbo al estrecho de Magallanes”. Esta viagem,
que concretizou em 1748, ele repetiu, depois, em três outras ocasiões.
As crônicas analisadas permitem ver uma questão, intrínseca ao
funcionamento da Ordem de Santo Inácio, referente à alta mobilidade
de seus membros. Da mesma forma, percebemos a existência de preferências, nem sempre verbalizadas entre os religiosos que chegaram à
Província Jesuítica do Paraguai por alguns lugares, em detrimento de
outros. Tal fato pode também ser compreendido como parte da política geral da Companhia, cujo principal objetivo se encontrava nas missões, ou bem como conseqüência do interesse crescente da coroa pelo
estabelecimento das mesmas.
Uma avaliação da carreira dos restantes jesuítas a partir das crônicas analisadas, com exceção daquela do Padre Manuel Querín, que
foi designado governador do Colégio de Buenos Aires entre 1743 e
1747 e permaneceu aí durante estes anos, indica que nenhum deles
permaneceu na cidade por mais de seis meses. Intentaremos também,
a partir das trajetórias de cada um deles, conhecer os resultados de
suas expedições, para nos aproximarmos de seus horizontes de expectativas e resultados obtidos.
José Quiroga chegou a Buenos Aires em junho de 1745 e, em
dezembro do mesmo ano, partiu em sua expedição pela Patagônia, de
onde regressou convencido da impossibilidade de estabelecerem-se
missões por ali. Em seguida o encontramos no Colégio de Córdoba,
ocasião em que fundou a primeira cátedra de matemática; passou por
Santa Fé por volta de 1749 e, logo depois, no momento em que era
assinado o Tratado de Limites de 1750 entre Espanha Portugal, encontrava-se novamente na cidade portenha.
248
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Nesta oportunidade, o encontramos desempenhando uma atividade intimamente vinculada às esferas de poder político e diplomático, tendo acompanhado, como capelão, aos comissários espanhóis encarregados de estabelecer os limites entre as jurisdições dos dois impérios. Quando os demarcadores chegaram a Buenos Aires, solicitaram um geógrafo ao padre provincial dos jesuítas, especialidade para a
qual foi designado José Quiroga. Em sua crônica, aparece em destaque
o comentário do Marquês de Valdelírios, que, em 1754, diz, a propósito de sua participação nos trabalhos de demarcação, que “solo los jesuitas conocían el país y eran por ende los mejores, sino los únicos
capaces de juzgar el verdadero valor del tratado”(FURLONG CARDIFF,
1930b, p. 38). Como resultado de sua participação nas disputas sobre
o tratado, dois anos depois publicou um estudo em que tentou demonstrar os “inconvenientes que resultan de la demarcación contratada” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 30) fato que lhe gerou críticas.
Entre 1755 e 1762, segundo os dados recolhidos por Furlong,
Quiroga se encontrava viajando pelo território e dedicado à composição de alguns mapas. Já no momento da expulsão, encontrava-se em
Buenos Aires “dirigiendo obras de construcción de la Iglesia y el Colegio” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 40).
O padre José Cardiel parece ser representativo do jesuíta que
chegou à Província do Paraguai sem haver concluído sua formação,
pelo que desempenhou funções em lugares diversos durante algum
tempo, ocupado com o que se podem considerar “cargos menores”.
Chegando a Buenos Aires, foi enviado para as reduções guaraníticas,
onde permaneceu por doze anos como vice-pároco, ajudante e cura,
respectivamente, de diferentes “pueblos”. Em 1742, esteve por algum
tempo no Colégio de Corrientes como hóspede. Em 1743, colaborou
com a fundação de reduções entre os índios “mocobíes” e, em 1745, foi
enviado ao Colégio de Santa Fé. Sem dúvida, “hombre de las actividades de Cardiel no podía concentrar sus energías dentro de los limites
de una ciudad, y esto explica que, poco después del citado nombramiento, le hallamos entregado en cuerpo y alma a otra empresa singular” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 20), afirma Furlong, referindo-se
à expedição para a Patagônia que ele empreendeu junto com Quiroga.
Quando regressou para Buenos Aires, solicitou permissão para empreender as já mencionadas expedições para o Rio Salado. Como já
assinalamos, desde as missões de pampas conseguiu concretizar sua
viagem para o sul, cujos resultados já conhecemos.
249
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Em fins de maio de 1748, Cardiel se dirigiu para Buenos Aires
para informar ao governador e ao provincial sobre o fracasso de sua
viagem. Ainda que seu esforço tenha sido reconhecido, encomendouse dele, esta vez, a evangelização e a fundação de missões entre os
abipones. Em 1749 ele estava no Colégio de “Asunción”, quando foi
designado como consultor, confessor da casa e missionário “de partido”10 (CARDIEL, 1930, p. 42). Desde princípios de 1750, encontravase realizando tarefas “mas ajustadas a su carácter”, em diferentes “pueblos” das reduções guaraníticas, primeiro em “San Ignacio” e, depois,
em outros, tendo aí protagonizado vários conflitos em razão de seu
desacordo com os termos do Tratado de Limites, questão que não detalharemos aqui. Em 1754, foi cura do “Pueblo de Itapúa”, um dos mais
importantes destas missões; em 1756, participou da ocupação dos povoados afetados pelo tratado; em 1757, passou por “San José” e “San
Juan” e em 1758 esteve em São Borja. Em 1761, foi destinado a reconstruir o povoado de São Miguel e, em 1762, foi designado como capelão
do exército espanhol que deveria invadir Rio Grande. Finalmente, no
momento da expulsão dos irmãos, encontrava-se no “Pueblo de la Concepción”.
Thomas Falkner, de origem inglesa, desembarcou em Buenos Aires em 1730 aproximadamente, quando uma enfermidade o impediu
de regressar para a Europa. Em tal situação, “solo, aislado, falto de
relaciones, de recursos y en una tierra extraña” (DE ANGELIS, 1836,
p. 3), entrou em contato com os padres jesuítas da cidade e, em conseqüência, em 1732, ingressou na Companhia, sendo ordenado em 1740.
Em 1744, foi designado para a denominada “Sierra del Volcán”, onde
posteriormente fundou, junto com Cardiel, a missão de “Nuestra Señora
del Pilar del Volcán”, na qual permaneceu até 1751, quando as reduções de “Pilar” e “Madre de los Desamparados” foram abandonadas. A
partir de sua experiência nas missões de pampas realizou sucessivas
entradas para o sul. Em 1752, foi designado para a estância de “San
Antonio de Areco” e, depois, até 1756, esteve trabalhando em uma propriedade da Ordem ao sul de Santa Fé. Esteve também por um tempo
no Colégio de Santa Fé, e daí partiu para o de Córdoba, onde permaneceu até que os jesuítas foram enviados ao exílio.
10
A expressão “partido” se refere a uma área que circunda uma cidade sede de um distrito.
Geralmente esta área abarca a cidade propriamente dita e os povoados menores e zonas rurais
adjcacentes.
250
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
De outra parte, Domingo Muriel chegou a Buenos Aires em dezembro de 1748, e rapidamente foi enviado para Córdoba. Ali permaneceu ministrando aulas de filosofia até 1751, ano em que foi nomeado vice-reitor da universidade em Córdoba. Em 1757 foi designado
secretário do reitor do Colégio de Montserrat, função que exerceu durante um ano. Em seguida, como secretário do padre provinicial, visitou os colégios e residências de “Córdoba”, “Santa Fe”, “Asunción” e
“Corrientes” (FURLONG CARDIFF, 1934, p. 15). Percorreu, ainda, as
Missões dos “mocobíes”, “abipones”, “lules, “ mataguayos”, “vilelas”,
“isistines”, “tobatines”, “tobas” e “chiriguanos”. Depois de desempenhar outras funções por curto espaço de tempo, em 1762 foi designado
mestre de noviços e instrutor de “tercerones”11, cargo que ocupou até o
momento da expulsão. Sem dúvida, sua trajetória nestas terras foi
muito diferente daquela dos jesuítas viajantes que até aqui analisamos, já que tanto Cardiel como Falkner tiveram seu principal âmbito
de ação nas missões. Trata-se de situação altamente significativa, se
a compararmos com as opiniões do ex-jesuíta Bernardo Ibáñez, que
afirma:
(...) los jesuitas retenían en los Colegios de las grandes ciudades a los
miembros inteligentes y enviaban a los que eran tan cortos de inteligencia
que no eran capaces de darse cuenta del reino jesuítico tan hábilmente
formado y conservado en las regiones del Paraguay (…) pongo un ejemplo
(...) para explicar mi pensamiento y ver si atino con el de los que esto
manipulan. Yo conocí durante largos años en sus estudios de Castilla a
los Padres José Quiroga, Domingo Muriel, Lorenzo Casado, José Matillo
(…) Los tres primeros eran y son muy hábiles y sobresalían en las letras;
los tres últimos eran punto menos que negados (FURLONG CARDIFF,
1930b, p. 17).
Este breve percurso pelas carreiras de alguns jesuítas nos permite ver claramente as hierarquias existentes no interior da Ordem e o
alto grau de mobilidade entre seus membros. Tanto é assim, que os
jesuítas que chegaram ao Rio da Prata encontraram, nas Missões e nos
Colégios da Ordem, possibilidades diferentes para construir uma trajetória destacada em lugares muito ou pouco explorados, nas missões
já consolidadas ou por consolidar, nas cidades, ou em áreas de fronteira. Existiu, sem dúvida, um crescente interesse, e até mesmo concor-
11
Isto é, ocupado com a formação de principiantes ou estudantes dentro dos Colégios.
251
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
rência, pelos espaços considerados de “maior hierarquia”, que permitiam uma carreira mais destacada dentro da Ordem. As Missões Guaraníticas constituíram o exemplo mais saliente disto, estando em segundo lugar aquelas da área chaquenha. Menor destaque tinham as
atividades junto ao Colégio de Córdoba e, finalmente, aquelas da área
pampeano-patagônica. Buenos Aires, por sua parte, desempenhou mais
o papel de lugar de passagem – e ponto de partida de grande parte dos
viajantes –, do que de espaço escolhido para assentar-se de maneira
permanente. Todas as viagens que se analisam partiam de Buenos Aires e finalizavam na cidade, mas os jesuítas, após uma curta estadia,
abandonavam rapidamente o colégio.
Para além da imagem que a Companhia de Jesus transmitiu de si
mesma, de uma instituição homogênea, fortemente coesa, baseada no
mútuo controle e em rígidos princípios hierárquicos, já não é possível
afirmar a ausência de conflitos no interior da Companhia, e os trabalhos de Lía Quarleri contribuem para repensar esta visão (2003, 2005).
A análise das crônicas disponíveis coloca em evidência o alto grau de
mobilidade entre os membros, acompanhada de um crescente interesse, e inclusive competição, pelos espaços de hierarquia, ou por aqueles que permitiriam uma carreira mais destacada dentro da Ordem.
Consideramos que a rigorosa estrutura da Sociedade de Jesus,
marcada pela obediência e por princípios hierárquicos, foi posta constantemente à prova, na medida em que os jesuítas se expandiam pela
América e pelo mundo. É complexo definir, portanto, quais foram os
níveis de obediência alcançados. No caso que aqui nos interessa, se
podem discernir claramente dois níveis que se superpõem e complementam. Por um lado estavam os princípios preestabelecidos pela Companhia e as ordens emanadas pelo Geral. Por outro, as respostas específicas e as práticas dos missionários, que estariam, segundo uma percepção corrente na historiografia, sempre predispostos para novos
desafios12. Isto constituirá, para alguns, parte essencial de sua formação, se recordamos as palavras de Furlong Cardiff, para quem os
jesuítas se achavam predispostos para tudo que fosse árduo e arriscado
(1994, p. 24).
12
Nos referimos aqui à constantemente referida formação dos inacianos, através da qual eles
seriam preparados para enfrentar desafios e dar respostas a situações imprevistas.
252
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Em meados do Setecentos, no contexto das pressões exercidas
pela coroa para avançar na exploração e fundação de novas reduções,
os jesuítas nem sempre atuaram segundo princípios preestabelecidos,
mas, sim, a partir de variáveis doses de improvisação e adaptabilidade. Sabemos que o cultivo sistemático dos espíritos, a educação e a
férrea formação nos princípios inacianos deveriam ser uma garantia
de segurança da Ordem. Neste sentido, os colégios teriam a obrigação
de desempenhar um papel sumamente importante na formação da obediência de seus servidores. Aqueles localizados em território americano assumem, desta forma, uma importância estratégica fundamental
para a própria subsistência da instituição.
Acreditamos também que o processo de expansão reforçou esta função do colégio no caso específico da cidade de Buenos Aires. O Colégio
Jesuíta de Buenos Aires cumpriu, ao mesmo tempo, um papel central na
formação de novos membros da Ordem. Constatamos que José Cardiel
chegou à cidade sem haver concluído sua formação, e, ainda que Falkner
tenha realizado a sua formação em Córdoba e em Buenos Aires, ambos
puderam completar parte de sua carreira no Colégio de Buenos Aires.
Contudo, a respeito da função dos jesuítas no processo de expansão iniciado em princípios do século XVIII, encontramos, neste
novo cenário, os membros da Ordem desempenhando um papel destacado. Do referido processo, participaram a Companhia de Jesus, a
coroa e a sociedade local, inclusive colocando em jogo seus interesses.
Neste contexto, o Colégio da Ordem adquiriu um maior protagonismo
e reforçou sua posição como lugar estratégico para o avanço até o sul.
Sem dúvida, a conjuntura política mudou com a chegada dos
Bourbon ao poder e, diante disto, mudaram as condições da cidade de
Buenos Aires e dos jesuítas. As fontes consultadas demonstram a existência de uma maior mobilidade e um intento crescente de ocupar e
explorar o espaço. Este período coincide com um momento de progressos econômicos para a Ordem, inclusive com a chegada de novos
jesuítas e com a crescente demanda por mais missionários.
Quais interesses se conjugavam por trás do processo de expansão e exploração territorial, concretizado na fundação de três missões
ao sul do Rio Salado? Por um lado, existia o interesse, transformado
em necessidade por parte da sociedade portenha, a qual começava a
perceber um “perigo” nas populações indígenas da área, e requeria, do
governo local e das autoridades da Espanha, uma solução a respeito.
253
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Por outro lado, encontramos o interesse, transformado em resposta
necessária, por parte do Estado Colonial e, através dele, do governo de
Buenos Aires. A coroa espanhola encontrava-se promovendo e, em certas ocasiões, financiando viagens de exploração, com o objetivo de consolidar suas posses territoriais frente a possível concorrência de outras potências européias. Da mesma maneira, ainda que apenas assinalado, existiu um interesse “científico” por explorar o território e fundamentalmente avaliar as possibilidade de estabelecer populações permanentes para prevenir as incursões de outros países.
Por último, estava a estratégia de sobrevivência, transformada
em interesse, por parte da Companhia de Jesus que, ante o crescente
controle e a pressão por parte da coroa para o estabelecimento de novas missões, respondeu às vezes de forma vacilante. A Ordem, no contexto de uma política mais ampla de expansão, transformou-se, sem
dúvida, em um dos atores principais envolvidos no dito processo, se
bem que era uma necessária resposta política, já que por trás dela se
encontrava o objetivo, sempre presente, de estabelecer novas missões
em espaços por explorar.
Os missionários, protagonistas destas viagens, constituíam a expressão concreta dos anseios, das expectativas e dos temores que a
viagem e a exploração de um novo território significavam. Em todos os
casos, esse espaço que se abria ante seus olhos poderia constituir uma
oportunidade ou um castigo. A partir das crônicas, observamos que a
viagem de Quiroga, por um lado, e as explorações de Cardiel e Falkner,
por outro, podem ser interpretadas como opostas e complementares
dentro de um mesmo processo de expansão.
O padre Quiroga encontrou em sua missão o ensejo de chegar ao
Novo Mundo e, junto disso, a possibilidade de ocupar posições destacadas dentro do âmbito da Ordem, situação que estava na dependência dos resultados de sua expedição pela Patagônia. Mesmo que a expedição tenha sido considerada um fracasso para a coroa, já que não
conseguiu concretizar nem definir um lugar para o estabelecimento de
“pueblos” e missões, contribuiu para avaliar o espaço. Não obstante,
conhecer os limites de seu império na América teria sido de vital importância para a coroa, definindo-a como uma expedição mais marítima que terrestre e com um caráter mais científico que evangelizador.
Ela constituiu-se na expedição mais organizada, naquela que deixou
menor margem para a improvisação. Ao seu êxito estavam ligadas as
possibilidades e oportunidades que, depois dela, se apresentavam para
254
Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Quiroga consolidar sua trajetória no Novo Mundo. Seu itinerário seguiu mais claramente o rumo de um “intelectual e cientista” do que o
de um missionário aventureiro. Muito além do que foi solicitado pela
Companhia, este parece ter sido o caminho aspirado por Quiroga.
Já os padres José Cardiel e Thomas Falkner constituem o exemplo de trajetórias diferentes. Ambos encontraram nas “Misiones de
Pampas” seu principal âmbito de ação. Suas viagens e explorações referem-se mais aos interesses da Ordem que aos da coroa, ainda que a
política missionária conduzida desde 1740 tenha também sido uma
resposta ao governo colonial diante dos crescentes conflitos da zona.
O objetivo destas viagens permitiu um conhecimento mais completo
da região e de seus habitantes, contribuindo para forjar imagens deste
espaço bastante ajustadas à realidade, conhecimento necessário para
que se pudesse dominá-lo. Seguramente, possuir a informação e ser os
principais intermediários entre as populações que ali habitavam e as
autoridades do governo de Buenos Aires outorgou aos missionários uma
quota de poder extra, o qual, acreditamos, lhes permitiu, inclusive, coloca-se em posições privilegiadas ou de maior visibilidade para o governo colonial. Entretanto, cedo ou tarde, o custo que teriam que pagar
por esta condição destacada será proporcional ao poder que haviam conquistado.
Diferentemente da expedição pela Patagônia, nas viagens de Falkner e Cardiel se entrecruzam o interesse científico com o evangelizador e o de avaliação das possibilidades econômicas da área. A improvisação e as estratégias postas em prática pelos missionários, foram
fundamentais para eles se adaptarem a esse universo por evangelizar.
Suas viagens dependeram em maior medida da informação e da ajuda
oferecidas pelas populações da área, obrigando os missionários a pôr
em jogo um grande número de estratégias tendentes a atrair os nativos.
Sabemos que os jesuítas não descansaram em seu desejo de avançar
até o sul, ainda que seus resultados não tenham sido os esperados
pelas autoridades coloniais.
Uma questão central diferencia as trajetórias de Cardiel e Falkner. O primeiro, depois de sua experiência nas missões dos pampas,
teve uma atuação importante nas reduções guaraníticas, podendo alcançar o que, sem dúvida, constituía o maior objetivo de um missionário e aquilo que se esperava de um missionário nestas terras, isto é,
trabalhar nas prestigiosas reduções do Paraguai. Já o segundo teve um
âmbito de ação restrito geograficamente, mas não por isso menos rele255
Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
vante, alcançando os limites máximos que um missionário poderia
atingir na área do pampa.
Paralelamente ao processo de expansão iniciado em meados do
século XVIII, a Companhia de Jesus se encontrava, então, redefinindo
suas estratégias frente à situação cada vez mais conflituosa existente
com a monarquia espanhola. Os avanços até o sul do espaço buenairense, assim como até outras áreas da América, constituíram uma estratégia de sobrevivência posta em prática pela Ordem antes da crise
que gerou sua expulsão. Mesmo que isto não invalide a hipótese da
existência de conflitos e competições internas na Companhia, acreditamos que a expansão ao sul permitiu descomprimir outros espaços
de missão que constituíam um objetivo apreciado por muitos inacianos. Os diferentes caminhos dos três missionários aqui mencionados
nos proporcionam uma clara visão do que o sul significou para a coroa
espanhola, para a Companhia de Jesus, e principalmente para os jesuítas, que encontraram nele dificuldades, mas, sobretudo, oportunidades. É por isso que, para Cardiel, o sul foi a chance de realizar uma
experiência nas missões que o conduzisse, depois, aos “pueblos” dos
guaranis. Para Falkner, o sul foi a única oportunidade de estabelecer-se
nas missões. Já para Quiroga, embora ele tenha tido também sua oportunidade para demonstrar que possuía os conhecimentos que lhe permitiriam posicionar-se no âmbito dos colégios, o estabelecimento definitivo no sul “pampeano-patagônico” constituirse-ía em um castigo.
O resultado das viagens de exploração e conquista foi, em alguns
casos, o estabelecimento de missões. Em outros, elas contribuíram para
obter um conhecimento mais acertado da geografia e de seus habitantes.
Estes itinerários empreendidos pelos missionários permitiram construir
as primeiras imagens do “sul”. Estas visões estavam repletas de idéias
fantásticas, por exemplo daqueles que buscavam e imaginavam a rota para
a “Cidade dos Césares”, mas também de conhecimentos específicos sobre
os rios, a flora e a fauna, que permitiram ajustar a cartografia da atual
Patagônia. Por outro lado, as imagens transmitidas não estavam alheias
aos interesses e preconceitos, dando lugar a uma série de construções
posteriores que permitiram consolidar a imagem do sul como um deserto. Sem dúvida, a análise realizada nos sugere que as visões que destacam
a ausência de populações nativas para evangelizar, ou a presença de populações belicosas, de terras estéreis, a escassez de água e o sinuoso das
travessias, são imagens construídas posteriormente para justificar e explicar o “fracasso” das missões estabelecidas ao sul do Rio Salado.
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos
Mapa: Furlong Cardiff, Los jesuitas y la cultura rioplatense…
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Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya
Referências
FONTES
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