yukionna: as reconstruções modernas de um mito

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yukionna: as reconstruções modernas de um mito
YUKIONNA: AS RECONSTRUÇÕES
MODERNAS DE UM MITO
Clície Santos de Araujo
Maria Luísa Vanik Pinto
Andrei dos Santos Cunha
RESUMO
Neste trabalho, pretendemos fazer uma análise comparativa entre o conto de fadas japonês Yukionna
(“A Mulher das Neves”) na versão de Lafcadio Hearn e suas adaptações modernas para o cinema em
Kwaidan: as quatro faces do medo (1964), de Masaki Kobayashi, e em Sonhos (1990), de Akira Kurosawa.
Com isso, esperamos visualizar as nuances interpretativas que os diretores têm do conto clássico e de que
maneira tais visões são representadas nos filmes. Como referencial teórico central, utilizaremos os
instrumentos de análise propostos na obra de João Batista de Brito (2006). Inicialmente, podemos concluir
que o filme de 1964 possui mais semelhanças com o conto de Hearn, enquanto o filme de 1990 mostra uma
interpretação mais livre.
PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA COMPARADA, CINEMA, LITERATURA JAPONESA.
ABSTRACT
In this work, we intend to make a comparative analysis between the Japanese fairytale Yukionna
(“The Woman of the Snow”), by Lafcadio Hearn and two modern film adaptations, Masaki Kobayashi’s
Kaidan (1964), and Akira Kurosawa’s Dreams (1990). With that, we would like to investigate how each
director envisions the classical tale, and how these interpretations are portrayed on their movies. As
theoretical reference we used the instruments of analysis proposed by João Batista de Brito (2006). As a
preliminary observation, we can conclude that the 1964 movie has more similarities with Hearn’s tale, while
the 1990 movie shows a somewhat more free interpretation of the story.
KEYWORDS: COMPARATIVE LITERATURE, CINEMA, JAPANESE LITERATURE.
1 Introdução
O conto de fadas é uma das mais representativas (e básicas) formas de contato de
um indivíduo com o imaginário de seu povo – ou de outros povos. Não sem razão, histórias
folclóricas marcam a memória de inúmeras crianças e adultos ao redor do mundo,
recebendo adaptações adequadas a interesses, faixas etárias e interpretações diversas.
*Graduanda do bacharelado em Letras – tradução japonês-português pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – [email protected]
*Graduanda do bacharelado em Letras – tradução japonês-português pela Universidade Federal do Rio
Grande do sul – [email protected]
Para este trabalho, selecionamos o conto popular japonês Yukionna, tirado do livro
Kwaidan: stories and studies of strange things, de Lafcadio Hearn, publicado em 1904.
De caráter oral, a história possui variações regionais por todo o Japão. A personagem que
dá título ao conto, um ser sobrenatural da neve, permanece fortemente arraigada ao
imaginário japonês, sendo encontrada em representações que vão desde as eras mais
antigas (sob a forma de pinturas clássicas) às mais modernas (como personagem de
animações e até de jogos como Pokémon).
As adaptações cinematográficas escolhidas para a tarefa de analisar a história e a
personagem foram Kwaidan: as quatro faces do medo (1964), de Masaki Kobayashi e
Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Ambos os filmes são divididos em segmentos
independentes; do filme de Kobayashi foi utilizado o segmento “Yukionna”, e do filme de
Kurosawa utilizamos o segmento “Blizzard”.
O objetivo deste trabalho é visualizar as nuances interpretativas que os dois
diretores japoneses têm dos elementos do conto clássico e analisar de que maneira tais
visões são representadas em seus respectivos filmes.
2 Sobre o autor Lafcadio Hearn
Lafcadio Hearn nasceu em 1850 na ilha grega de Lefkas, filho de Charles Hearn,
um cirurgião anglo-irlandês, do exército inglês, e de Rosa Cassimati, grega. Depois do
divórcio dos pais aos seis anos, foi criado por uma tia-avó em Dublin, Irlanda, onde ele se
sentia constantemente deslocado, especialmente pelas implicações de suas origens
multiculturais.
Aos 19 anos, mudou-se para os Estados Unidos, onde então começou a trabalhar
como jornalista, ganhando notoriedade por suas habilidades de observação e registro.
Finalmente, em 1890, chegou ao Japão, e com indicações do professor Basil Hall
Chamberlain, da Universidade de Tóquio, acabou indo para a cidade de Matsue para atuar
como professor de inglês em uma escola de ensino intermediário.
Hearn chegou ao país em um período bastante propício da história japonesa: em
1868 se iniciara a dita era Meiji, na qual o Japão abrira seus portos após cerca de dois
séculos no isolamento quase completo do restante do mundo e de um regime feudal de
governo. A nação estava se modernizando, entrando em contato com tecnologias,
conhecimentos e estéticas ocidentais, de modo que a presença estrangeira em terras
nipônicas era grande. No entanto, diferente de muitos dos seus convivas britânicos, Hearn
entrou no país sem a visão de que pertencia a uma cultura avançada. Pelo contrário, ele
tomou pela cultura tradicional, que muitos japoneses estavam abandonando em detrimento
dos costumes ocidentais, grande interesse, analisando de maneira positiva – e muitas vezes
idealizando – tudo o que havia de mais particular do povo japonês.
Ainda em Matsue, casou-se com Setsu Koizumi, a filha de um samurai local, com
quem teve quatro filhos. Em 1891, mudou-se para Kumamoto e passou a lecionar em um
colégio de ensino médio por três anos, completando seu livro Glimpses of Unfamiliar
Japan (1894).
Em 1896, enquanto vivia em Kobe trabalhando como jornalista, recebeu a
cidadania japonesa e adotou o nome pelo qual seria reconhecido posteriormente pelos
japoneses: Yakumo Koizumi. Nesse mesmo ano, mudou-se para Tóquio e começou a
lecionar sobre literatura inglesa na Universidade Imperial de Tóquio, onde conquistou o
respeito de muitos alunos. Em 1903 saiu da Universidade Imperial de Tóquio e começou a
lecionar na Universidade de Waseda. Morreu em setembro de 1904 aos 54 anos, vítima de
um enfarte.
Durante sua vida no Japão, escreveu vários artigos sobre a cultura e o cotidiano no
país, além dos relatos de histórias populares e de poesia. Além dos já citados, entre seus
principais trabalhos estão Kokoro: hints and echoes of Japanese inner life (1896), In
Ghostly Japan (1899), e Japan: An Attempt at Interpretation (1904, em publicação
póstuma).
3 Yukionna: a mulher das neves
O conto conforme registrado por Hearn narra a história de dois lenhadores, Mosaku,
já idoso, e Minokichi, um rapaz de 18 anos. Em uma noite, depois de passarem o dia na
montanha cortando lenha, os dois se deparam com uma nevasca ao voltarem pra casa. Ao
chegarem ao rio que normalmente atravessavam de barco para voltar ao vilarejo, eles
percebem que perderam o último barco para o outro lado e são obrigados a pernoitar na
cabana vazia do barqueiro.
Durante a noite, Minokichi desperta sentindo muito frio e enxerga dentro do abrigo
a Yukionna1, uma mulher muito pálida e bela, de cabelos negros e quimono branco, que,
debruçada sobre o velho Mosaku, o congela com seu sopro. Ao perceber que estava sendo
observada, ela se volta a Minokichi, mas decide poupá-lo devido a sua juventude e beleza.
Contudo, ela estabelece a condição de que ele nunca revele aquele episódio a ninguém, sob
pena de morte.
Um ano depois, Minokichi encontra uma moça órfã, muito bela e gentil, chamada
Yuki (ou O-Yuki, conforme Hearn). Os dois logo se apaixonam e decidem se casar. A
beleza de Yuki é tanta que mesmo anos depois, já com 10 filhos, ela permanece com a
mesma aparência e vitalidade de quando jovem.
Uma noite, Minokichi, ao comentar sobre a beleza da mulher, acaba por relatar o
episódio da cabana, dizendo ser aquela a única vez em que ele vira uma beleza tão grande
quanto a dela, embora os olhos da mulher das neves o aterrorizassem. Yuki então revela
ser a Yukionna e declara que, como ele traiu sua promessa, deveria matá-lo. Decide, no
entanto, poupar mais uma vez sua vida por causa dos filhos. Mas jura, antes de desaparecer
na neve, que se algum dia eles tivessem reclamações sobre ele, ela saberia e voltaria para
matá-lo.
Na introdução do livro Kwaidan: stories and studies of strange things, Lafcadio
Hearn explica que essa história lhe foi relatada por um agricultor da antiga província de
Musashi (região que hoje abrange Tóquio, Saitama e Kanagawa) como uma lenda de seu
vilarejo natal. É importante observar que mais importante do que a história em si – que tem
uma estrutura muito semelhante a inúmeros outros contos de fada japoneses – é a
personagem da Yukionna.
A personagem é considerada um yôkai, um ser sobrenatural, fantástico, ligado à
natureza - neste caso, à neve -, e os relatos da aparição, como é comum à oralidade, variam
de região a região. Mais antigo do que o registro de Hearn, há, por exemplo, o de Sôgi
Shokoku Monogatari, de 1690, em que o autor relata ter visto a Yukionna. Não há,
entretanto, uma estrutura narrativa que se desenvolva ao redor da personagem como no
conto de Hearn.
Com relação à estruturação e à temática, o psicanalista junguiano japonês Hayao
Kawai, em sua análise de contos de fadas locais, aponta para um padrão nas histórias
japonesas em que há um casamento entre um homem humano e uma mulher não humana:
1
A palavra yuki (雪) significa “neve” em japonês; onna (女) significa “mulher”.
(...) homem e mulher se casam sob a condição de a mulher “esconder a sua
verdadeira natureza”. Depois de um tempo (embora alguns tenham filhos), eles
se divorciam porque a identidade da mulher é revelada. (KAWAI, 2007, p. 146)
Kawai ainda compara esse tipo de união com as que ocorrem nos contos ocidentais,
observando a diferença de foco: nos contos ocidentais, o casamento entre um ser humano e
outro não humano se dá como uma maneira de recuperar a forma original humana
(normalmente transformada após uma maldição), ou após essa recuperação; o casamento é
o acontecimento final do conto; há uma separação clara entre o bem e o mal, e de alguma
forma o bem triunfa. Já nos contos japoneses, a forma original da mulher não é humana; o
casamento ocorre quando uma condição é estabelecida para que a mulher não mostre a sua
“verdadeira natureza”; a frágil condição é quebrada (ou pelo homem, ou pela mulher); e
ocorre o divórcio e o retorno da mulher à sua verdadeira natureza.
A quebra de uma proibição é tema comum a histórias ocidentais e orientais. Em
Yukionna, a condição é a de não mencionar o dia em que o lenhador Mosaku foi morto. O
assunto é um tabu, pois revela a verdadeira natureza de Yuki – e, com isso, a própria
impossibilidade do relacionamento entre ela e Minokichi.
A personagem da Yukionna é emblemática por sua complexidade; não
completamente boa ou má, ela é ao mesmo tempo encantadora e assustadora – como a
própria natureza que representa.
4 Sobre o diretor Akira Kurosawa
Akira Kurosawa nasceu em 23 de março de 1910, em Tóquio, o mais jovem entre
quatro irmãos e quatro irmãs. O pai, Isamu, era diretor de um colégio e a mãe, Shima, veio
de uma família de mercadores em Osaka.
Em 1928 se formou no segundo grau, e aspirando a ser pintor, tentou o exame de
admissão para a Escola de Artes, onde foi recusado. Sua pintura Seibutsu foi aceita na
exibição Nika. Em 1929 enviou suas pinturas à Segunda Grande Exibição de Arte
Proletária.
No ano de 1933, com o advento dos filmes com som, seu irmão Heigo, que
trabalhava como benshi (“narrador de filmes”), fica desempregado, e se suicida aos 27
anos. Akira, cuja paixão pela arte e literatura havia sido forte influência para Heigo, ficou
profundamente abalado com o suicídio e demorou a se recuperar.
Três anos depois, Kurosawa vê um anúncio no jornal e se candidata à vaga de
diretor-assistente, e em 1943, ele lança o primeiro filme de sua direção, Sugata Sanshiro2.
Em maio de 1945, o diretor se casou com a atriz Kayo Kato, com quem teve seu
primeiro filho, Hisao. No mesmo ano, o seu filme Os homens que pisaram na cauda do
tigre3 é proibido pelas forças de ocupação aliadas por representar valores feudais.
Em 1950 foi lançado Rashomon4, filme que deu a Kurosawa o Leão de Ouro em
Veneza no ano seguinte e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1952, além de
apresentá-lo a audiências ocidentais. Até hoje, Rashomon é considerado uma de suas
obras-primas.
Em 1952 começou a produzir o filme Os Sete Samurais 5 (1954), sucesso de
público e crítica que continua a figurar até hoje como um dos filmes mais importantes do
diretor. Com o sucesso, em 1959, pôde abrir sua produtora, Kurosawa Productions.
Após tentar uma co-produção cheia de problemas com os estúdios 20th Century
Fox, o diretor se desgastou e começou a ter problemas financeiros. Para apoiá-lo, outros
três diretores de renome, Keisuke Kinoshita, Kon Ichikawa e Masaki Kobayashi, criaram
com ele a companhia Yonki no Kai (“Os Quatro Cavaleiros”), pela qual o diretor lançou
seu primeiro filme totalmente colorido, Dodeskaden 6 no início da década de 1970.
Infelizmente, o filme teve uma recepção ruim, e um ano depois, devido à fadiga mental e
aos problemas financeiros por não conseguir dinheiro para rodar seus filmes, Kurosawa
tentou o suicídio, sem sucesso, e acabou se voltando por um tempo à vida doméstica.
Seu primeiro filme após o hiato, Dersu Uzala, uma co-produção com o estúdio
soviético Mosfilm, ganhou em 1976 o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Os anos
seguintes também foram prolíferos em premiações: em 1982, Rashômon lhe rendeu o
Leão dos Leões em Veneza; em 1986, Ran7 foi indicado para quatro categorias do Oscar, e
Emi Wada ganhou por ele o Oscar de Melhor Figurino; em 1990, Kurosawa foi agraciado
com o prêmio especial da Academia de Ciências Cinematográficas de Hollywood. Em
meio a isso, em 1983 o Kurosawa Film Studio foi inaugurado.
2
Em japonês: 姿三四郎 (Sugata Sanshirô).
Em japonês: 虎の尾を踏む男達 (Tora wo fumu otokotachi).
4
Em japonês: 羅生門 (Rashômon). O filme foi baseado em dois contos do escritor Ryûnosuke Akutagawa:
Rashômon e Dentro do Bosque.
5
Em japonês: 七人の侍 (Shichinin no samurai).
6
Em japonês: どですかでん (Dodesukaden).
7
Em japonês: 乱 (Ran).
3
Com o roteiro inteiramente escrito por Kurosawa, baseado em seus próprios sonhos,
o filme Sonhos de Akira Kurosawa 8 foi lançado no Japão em 1990, com o apoio de
Steven Spielberg, fã de longa data do diretor japonês. O filme se divide em oito segmentos
independentes. A participação internacional no filme não se restringiu a Spielberg; em um
dos segmentos o diretor Martin Scorsese apareceu atuando como o pintor Van Gogh,
enquanto George Lucas contribuiu com os efeitos especiais do mesmo.
Kurosawa continuou a dirigir filmes até 1993. Em 1995, o diretor sofreu um
acidente que o impossibilitou de continuar trabalhando; em 6 de setembro de 1998, morreu
aos 88 anos devido a uma hemorragia cerebral.
5 Sobre o diretor Masaki Kobayashi
Kobayashi nasceu em 14 de janeiro de 1916, em Otaru, Hokkaido, Japão. Pouco há
sobre sua vida pessoal, mas sabe-se que em 1933 ingressou na Universidade de Waseda,
em Tóquio, onde começou a estudar filosofia e arte. Tinha interesse em história da arte,
mas decidiu que com o cinema poderia fazer uma contribuição maior.
Em 1941, próximo à sua graduação, foi trabalhar na companhia de filmes Shochiku.
Seu trabalho foi interrompido pela Segunda Guerra Mundial, quando Kobayashi foi
convocado pelo Exército Imperial Japonês em 1942. Conhecido por ser um pacifista, como
forma de protesto, recusou cada promoção que lhe foi oferecida. Foi enviado para servir
inicialmente na Manchúria e depois nas ilhas Ryûkyû, ao sul do Japão, onde foi capturado
e permaneceu como prisioneiro de guerra em Okinawa até o final da guerra.
Com o fim da guerra, recomeçou seu trabalho nos estúdios Shochiku, e em
novembro de 1946 e se tornou diretor-assistente de Keisuke Kinoshita, seu mentor.
Seu primeiro trabalho como diretor foi em novembro de 1952, com o filme
Musuko no Seishun 9 (“A juventude do meu filho”). No mesmo ano rodou de forma
independente o polêmico filme Kabe Atsuki Heya10 (“A sala de paredes grossas”), com
roteiro do escritor Kôbô Abe, baseado em diários de prisioneiros de guerra. Seguindo a
linha de filmes controversos e polêmicos, filmou Ningen no Jôken 11 (“A condição
8
Em inglês, Akira Kurosawa’s Dreams, ou, em japonês, 夢 (Yume).
Em japonês: 息子の青春 (Musuko no seishun).
10
Em japonês: 壁あつき部屋 (Kabe atsuki heya).
11
Em japonês: 人間の條件 (Ningen no jôken).
9
humana”), em forma de trilogia, baseado em suas próprias experiências dos tempos de
guerra com a crueldade dos militares japoneses na região da Manchúria.
Como uma exceção temática na carreira de Kobayashi está o filme composto por
quatro histórias fantásticas do folclore japonês registradas por Lafcadio Hearn, Kwaidan:
as quatro faces do medo12 (1964). Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em
1965 e vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes em 1965, o filme se
destaca pelas suas primorosas qualidades estéticas. Normalmente caracterizado como
pertencendo ao gênero terror, ele foi bastante criticado pela ausência do comentário social
que Kobayashi estava acostumado a fazer em seus trabalhos. O próprio diretor afirmou que
“Kwaidan não era primariamente um filme de terror, mas um filme sobre a importância
espiritual da vida” (KOBAYASHI apud SHIMIZU, 2010, p. 192). Este também foi o
primeiro filme em cores do diretor.
Masaki Kobayashi morreu em 4 de outubro de 1996, aos 80 anos, de ataque
cardíaco, em Tóquio, Japão.
Kobayashi era conhecido por ser perfeccionista, chegando ao extremo de pintar ele
mesmo os sets de filmagem. Sua obra é baseada em suas experiências de guerra e refletem
a luta contra o abuso do poder. Durante toda sua carreira, o diretor fez 22 filmes, o que é
considerado uma produção pequena; tal fato é atribuído, em parte, à falta de apoio dos
estúdios de cinema (RICHIE, 2005, p. 163), que se esquivavam dos temas tratados pelo
diretor.
6 Referencial teórico
Tomamos como referencial teórico o conceito de intertextualidade desenvolvido
por Julia Kristeva (1974, p. 72): “O autor pode se servir da palavra de outrem, para nela
inserir um sentido novo, conservando sempre o sentido que a palavra já possui”. Este
conceito nos permite inferir que as adaptações de Kurosawa e Kobayashi não têm a
obrigação de ser uma cópia exata da obra literária; pelo contrário, as modificações e novos
sentidos são fatores que enriquecem ainda mais a obra retratada.
Para efetuar a comparação entre os filmes e o conto, baseamo-nos nos instrumentos
de análise propostos por João Batista de Brito em seu texto “Literatura no Cinema”:
12
No original: 怪談 (Kaidan).
redução, adição, deslocamento, transformação propriamente dita, simplificação e
ampliação.
7 Discussão
Segundo os critérios utilizados (BRITO, 2006) as primeiras modificações que
ocorrem durante a adaptação de uma obra literária são a redução e a adição. A redução
consistiria na subtração de elementos que estão presentes na obra literária, mas não no
filme. A adição seria a incorporação de elementos ao filme que não constavam
originalmente no texto literário.
Em relação ao conto, percebem-se dois momentos de redução nas adaptações para o
cinema. Quanto ao filme Kwaidan, houve uma redução no número de filhos do casal
Minokichi e Yuki: enquanto no conto são mencionados dez filhos, no filme esse número é
reduzido para três. Julgamos que esta redução não foi acidental. O número três é recorrente
em histórias de contos de fada, como por exemplo, três irmãs, três porquinhos, três tarefas,
dentre outros. Além disso, no conto, a menção ao grande número de filhos, no caso dez, dá
ao leitor a dimensão da passagem do tempo e do quanto a preservação da beleza e da
juventude da personagem Yuki era um fato incrível, improvável. O grande número de
filhos também contribui para atrair a atenção do leitor, deixando-o admirado. Por outro
lado, no caso do cinema, mostrar na tela um número excessivo de filhos teria o efeito
oposto, deixando o espectador confuso e dispersando sua atenção para elementos mais
importantes.
Já no filme Sonhos, podemos dizer que há um processo de redução muito maior, já
que a segunda parte do conto em que o protagonista se casa é totalmente suprimida.
Podemos inferir disso que a intenção principal de Kurosawa era a de se focar na questão da
luta pela sobrevivência, na brutalidade dos elementos naturais, no caso, a neve,
representada pela Yukionna. O foco do diretor foi posicionado mais sobre as personagens
do que sobre a história.
No sentido contrário, podemos citar como exemplo de adição no filme Sonhos a
adição de personagens; em vez dos dois lenhadores que caminham pela neve no conto, são
mostrados quatro homens peregrinando pela neve, unidos por uma corrente.
Quanto a Kwaidan, duas cenas que não aparecem no conto foram adicionadas. A
primeira delas é a cena das mulheres do vilarejo lavando roupa e conversando enquanto
Yuki passa com os filhos (Figura 1). No conto, a informação de que Yuki permanece
jovem e bela, mesmo tendo se passado tantos anos, é fornecida pelo narrador. No filme,
Kobayashi opta por colocar essa informação na voz do grupo de lavadeiras, a exemplo do
coro nas dramatizações gregas. Isso também contribui para maior dinamização e fluidez da
história.
Figura 1 – Mulheres do vilarejo lavando roupa. Fonte: Kwaidan (1964) DVD.
A segunda cena adicionada é aquela em que Yuki prova as sandálias feitas pelo seu
marido (Figura 2, topo). Podemos associar essa cena a uma outra passagem: quando Yuki,
convidada pela primeira vez a passar a noite na casa de Minokichi com ele e sua mãe, lava
os pés antes de entrar (Figura 2, embaixo). Mesmo que esta cena não configure
tecnicamente uma adição - já que no conto é mencionado que Yuki passa a noite na casa de
Minokichi – o elemento enfatizado pelo diretor, os pés da jovem, mostra ao espectador
uma visão do lado mais humano e sensual da personagem da Yukionna.
Figura 2 – Os pés de Yuki. Fonte: Kwaidan (1964) DVD.
A cena das sandálias também nos remete a outra ferramenta de análise, a
transformação propriamente dita. A transformação propriamente, segundo Brito, consiste
de elementos que, na literatura e no filme, possuem significados equivalentes, mas
configurações diferentes.
Em relação ao filme Kwaidan pudemos notar apenas uma transformação
propriamente dita se comparado ao conto de Hearn: o personagem Minokichi, que no conto
é mostrado apenas como lenhador até o final, na segunda metade do filme passa a ser
mostrado também como um artesão de sandálias.
Já no filme Sonhos, as transformações são maiores, já que toda a ambientação do
filme adquire um caráter mais contemporâneo. Os lenhadores são então alpinistas, e
quando a Yukionna aparece, seu sopro congelante é substituído por uma espécie de manto
(Figura 3).
Figura 3 - Yukionna estende seu manto sobre o homem. Fonte: Sonhos (1990) DVD.
Ainda quanto à transformação, esta pode ser subdividida em simplificação e
ampliação, definidas por Brito respectivamente como a diminuição da dimensão de um
elemento que era maior em contexto literário, e o aumento da dimensão de um ou mais
elementos do romance. Temos como exemplo de simplificação a cena do ataque da
Yukionna no filme Sonhos, em que o protagonista não vê a personagem agir sobre outra
pessoa, e acorda quando ela já está sobre ele.
Quanto à ampliação, tanto em Kwaidan quanto em Sonhos, a cena inicial da
jornada em meio à nevasca em busca de abrigo é temporalmente estendida, dando ênfase à
luta dos personagens pela sobrevivência frente à adversidade, frente à força implacável da
natureza.
Fora das ferramentas de análise propostas por Brito, também analisamos aspectos
referentes à fotografia dos dois filmes, especialmente no que diz respeito ao uso de cores.
Ambos fazem uso da mesma tonalidade branco-azulada, em uma referência evidente ao
frio, à neve, à tonalidade cianótica adquirida por um corpo em estado de hipotermia. Esses
tons azulados são predominantes nas cenas da caminhada na neve em Kwaidan e Sonhos,
e nas cenas de Kwaidan em que a Yukionna aparece. No filme de Kobayashi, o diretor
opta por estabelecer um contraste com a tonalidade laranja-avermelhada das cenas em que
Yuki é humana. Com esse detalhe, Kobayashi traça um limite bem definido entre a face
(sobre)natural e a face humana da Yukionna: a personagem não é apenas definida pelas
suas roupas ou penteados; ela é definida pelo próprio cenário que a cerca.
Figura 4 – Uso de cores em Kwaidan. Fonte: Kwaidan (1964) DVD.
Ainda em relação ao contraste das cores frias e quentes usadas nos dois filmes,
podemos notar em especial o contraste entre as cores branco e vermelho. Os japoneses têm
a concepção de que o vermelho é uma cor que se opõe ao branco, sendo basicamente
ligada à vida. Em Kwaidan, temos essa cor nas tiras do chinelo de palha que Minokichi faz
para a esposa; também podemos notar uma bandeira vermelha que tremula perto da cabana
do barqueiro enquanto os lenhadores procuram abrigo. Em Sonhos, uma bandeira vermelha
muito semelhante tremula ao vento para marcar o local das barracas do acampamento – e
ela só é avistada quando o protagonista vence a sua luta pela sua sobrevivência contra a
persuasão da Yukionna.
Figura 5 – À esquerda, bandeira em Kwaidan, e à direita, a bandeira em Sonhos. Fontes:
Kwaidan (1964) DVD e Sonhos (1990) DVD.
Como toda a complexidade que cerca a visão japonesa sobre seres sobrenaturais, a
Yukionna não pode ser considerada nem completamente boa nem completamente má. Ela
mata o lenhador Mosaku no início do conto, mas ela é uma força da natureza – e como
força da natureza, segue um curso natural ao tirar a vida de alguém que está naturalmente à
beira da morte, como um homem velho em condições extremas, por exemplo. Quando se
trata de Minokichi (um jovem belo, em um dos pontos altos da vida), a personagem
assume outra postura. Através da relação com o rapaz, é mostrado o seu lado humano, de
um ser capaz de amar, e mesmo de ter sentimentos maternais.
Da mesma forma, em Sonhos, a Yukionna representa a natureza implacável, que irá
fazer perecer os menos aptos, frágeis ou doentes. Os alpinistas conseguem sobreviver à
Yukionna (nevasca) devido a sua persistência e resistência próprias. Diferentemente do que
acontece em Kwaidan, em que ela poupa Minokichi inicialmente por sua juventude e
beleza, e no final por causa de seus filhos, em Sonhos a personagem não é complacente;
ela tenta matar todos eles, sem distinções, e quando não consegue, vai embora. Há, sim,
uma transfiguração da personagem multifacetada (Figura 6): a sua representação inicial é
quase maternal, com palavras confortantes ela tenta fazer com que ele se entregue ao sono
da morte; quando o homem resiste, sua fisionomia se altera, seus gestos ficam mais
agressivos; por fim, ela se transfigura em um monstro, que, falhando em atingir seu
objetivo, simplesmente desaparece.
Figura 6 - A transfiguração da Yukionna de Kurosawa. Fonte: Sonhos (1990) DVD.
8 Considerações finais
Se colocarmos lado a lado o conto e os filmes, podemos concluir que o filme de
Kobayashi possui muito mais semelhanças com a versão literária, enquanto o filme de
Kurosawa mostra uma visão mais desprendida da história. Ainda assim, consideramos
importante lembrar que a versão de Hearn não é a única; e que as interpretações dos
diretores da personagem são fundamentais para as suas escolhas cinematográficas.
Embora ambos os filmes tragam como proposta segmentos independentes, a
proposta do todo de cada filme difere. Em Kwaidan, tal proposta é a de histórias
assustadoras, insólitas e fantásticas (“que podem ter acontecido ou não”) que fazem parte
de uma memória coletiva. Em Sonhos, a proposta é a de representação de sonhos, da
extensão do pensamento em níveis subconscientes; a implicação disso é uma
personalização das ideias.
Ao que nos parece, a Yukionna de Kobayashi é aquele ser sobrenatural que há
quem acredite, há quem não acredite. Ela é a personagem ampla que vem sendo usada a
séculos para alertar, divertir, assustar e intrigar, como a antropomorfização de um elemento
da natureza. O diretor de Kwaidan se manteve próximo ao registro mais conhecido da
personagem, mas nem assim evitou inserir elementos tirados de uma interpretação mais
pessoal e elementos que pudessem enriquecer esteticamente o filme – como a questão dos
contrastes, da sensualidade da personagem, da dinâmica da narrativa.
A Yukionna de Kurosawa é uma espécie de alegoria a um demônio pessoal. O
diretor a entende como um delírio – e, portanto, algo que não é concreto. Nem por isso ele
nega a sua presença ou a sua influência; a Yukionna de Sonhos é uma força que, ao mesmo
tempo em que o encoraja a morrer, também o impele a resistir e sobreviver.
De maneira geral, concluímos que o que mais diferencia as duas adaptações é que
no filme de Kobayashi o natural e o sobrenatural aparecem como elementos externos ao
homem, enquanto na versão de Kurosawa tais elementos aparecem como experiências
humanas (em sonho).
REFERÊNCIAS
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Brief
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TRUSSEL,
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<http://www.trussel.com/f_hearn.htm>. Acesso em: 23 jul. 2012.
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