Olhares performáticos do balé: proposições contemporâneas de

Transcrição

Olhares performáticos do balé: proposições contemporâneas de
 Olhares performáticos do balé: proposições contemporâneas de
William Forsythe
Rousejanny da Silva Ferreira1
Resumo
O estudo em questão pretende discutir como o coreografo norte americano William Forsythe apresenta
pontos de rompimento na história e estética do universo do balé. O estudo parte da analise do CD-ROM
produzido por Forsythe Improvisacion Technologies: a tool for the analitycal eye (1999) onde ele explana
em demonstrações de movimento, explanações e jogos tecnológicos no espaço, os princípios de sua
investigação, inaugurando outras formas de compreender as tessituras da construção teórico-prática do
balé. As discussões levantadas por este coreógrafo reconfiguram estruturas já solidificadas em relação ao
conceito, produção artística e técnica corporal no balé. Estas transformações e tensões ocorridas ao longo
de seu percurso artístico-histórico geraram, e ainda geram novos entendimentos para uma dança que
muitas vezes, ainda é vista como pertencente ao passado e imutável.
Palavras-chave: Balé; William Forsythe; método.
Abstract
This study aims to discuss how the North American choreographer William Forsythe has break points in
the history and aesthetics of the universe ballet. The study starts from the analysis of the CD-ROM
produced by Forsythe Technologies improvisation: a tool for the analitycal eye (1999) where he explains
in motion demonstrations, explanations and games in space technology, the principles of their research,
inaugurating other ways of understanding tessitura of the theoretical-practical ballet. The discussions
raised by this choreographer reconfigure structures already solidified in relation to the concept, artistic
and technical body in ballet. These tensions and transformations that occurred throughout his artistic
career History-generated, and even generate new understandings for a dance that many times, is still seen
as belonging to the past and unchangeable.
Keywords: Ballet, William Forsythe; method.
A dança cênica da década de 80 trouxe novas perspectivas de organização e
compreensão artística. Após a eclosão da dança pós-moderna2 norte americana na
1
Professora do curso de Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Goiás – Campus Aparecida.
Mestranda vinculada ao Programa de Mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais UFG/EMAC
na linha de pesquisa Espáços, Materialidades e Teatralidades sob a orientação da Doutora Rosangela
Patriota Ramos – UFU.
2
Uma iniciativa importante para o inicio da pós-modernidade na dança foram os encontros na Judson
Memorial Church, no Greenwich Village-Nova York - EUA entre os anos de 1962 e 1964. Lá ocorriam
encontros entre vários segmentos artísticos, alimentados pela cooperação, reflexão e pela busca de novos
apontamentos para as artes. O movimento ligado à dança, o Judson Dance Theater reunia artistas da
98 década de 60 e as perspectivas contemporâneas que emergiram na principalmente na
Europa e Estados Unidos, a dança se delineou por vários estilos, técnicas corporais (não
necessariamente oriundas da dança), corpos cada vez mais potentes e principalmente,
provocativos. Companhias importantes como o LaLaLa Human Steps3 (Canadá),
Cullberg Ballet4 (Suécia), e bailarinos importantes como Anna Thereza de Keesmaeker5
(Bélgica) e William Forsythe formaram a estrutura do que seria uma nova dança por
vias contemporâneas: descentralização da figura do coreografo, corpos extremamente
plurais e o lançamento de proposições estéticas da dança que, pra além da beleza visual
e primor técnico, também pudesse provocar o sentidos e questões ainda não
investigadas na dança.
Outro ponto que se acrescenta a este período é a influencia dos recursos
tecnológicos, assim como da cultura urbana. Isso passa a fazer parte das obras
coreográficas, portanto, o uso de artefatos como a gravação de vários filmes de dança,
coreografias filmadas para a câmera e não mais para o palco, e a expansão do espaço da
dança para além das paredes do teatro, contribuíram para o seu crescimento e
fortalecimento deste período.
A crítica e historiadora da dança Laurance Louppe em seu artigo Corpos
Híbridos (2000) discutiu justamente a condição do corpo de dança da década de 80. Ela
afirma que o que caracteriza a dança deste momento é justamente a perda de linhagens,
ou seja, bailarinos e coreógrafos, não são mais formados, como nas escolas tradicionais
de dança, por uma única pessoa ou método que o legitima como apto para determinada
técnica. Os estados corporais gerados pelas instituições de formação muitas vezes
pregavam a ideia do discípulo, e a continuidade de formatos e regras construídos por um
principio pré-estabelecido de estética e filosofia corporal que identificava de onde tal
bailarino viria.
A autora afirma que este é um momento de hibridação dos corpos de dança, que
dissolve suas linhagens de formação em dança, e cria uma nova cultura coreográfica: o
dança importantes como Yvone Rainer, Steve Paxton e Trisha Brown, que tinham o intuito de provocar a
plateia, e explorar corporeidades ainda não visitadas.
3
Companhia de dança canadense criada em 1980 sob a direção de Edouard Lock. A Companhia é
reconhecida pela fisicalidade e agiliadade de seus bailarinos.
4
Companhia sueca fundada por Birgit Cullberg em 1967. Na década de 80, seu filho, Mats Ek assume a
direção da companhia e se tornam internacionalmente reconhecidos.
5
Bailarina belga que fundou em 1983 a companhia Rosas danst Rosas, grupo de grande repercussão e que
até hoje matem ativo os seus trabalhos.
99 corpo eclético (2000, p. 30). O corpo eclético é o corpo afetado pelas tecnologias e por
toda a gama de conhecimentos que lhe esta disponível. A cada dia se dissolve mais a
ideia de dança pura que habitava o universo das grandes companhias e instituições de
dança, e os novos bailarinos creem que tudo pode ser movimento, instrumento ou
estranhamento para ser investigado pela dança. Segundo Louppe, o corpo eclético não
escolhe nada, ele é escolhido. Um sistema de desnudamento de seus próprios elementos
constitutivos, de confisco das praticas e dos saberes (sobretudo em relação à
modernidade), parece estar bem instruído. (pg. 34).
Neste contexto de desnudamento, o movimento de dança desta década, assim
como na seguinte, estabelecia a ideia de uma dança que não necessariamente tivesse
origens, ou alguma matriz no qual tivesse que se basear. Eles questionam o peso da
história oficial da dança, que ate certo ponto, determinava o quê, como e quando era
dança e com isso, impunha um futuro pré-determinado. Bailarinos e coreógrafos
começam a sair de uma condição inocente e aceitável dos estigmas históricos da dança
para construir, a partir de seus corpos e o que o constitui naquele momento, outros
entendimentos de dança, técnica e estética. Nesta proposta, alguns coreógrafos ligados
ao balé como Mats Ek6 e William Forsythe, assumiram uma dança a-histórica e
descompromissada com estigmas corporais e estéticos pautados nas instituições
conservadoras de dança.
A rejeição, no inicio dos anos 80, tanto das conquistas da modernidade ao
longo do século XX, como de seus modos de transmissão, parece ter
sustentado o sonho de uma dança sem nenhuma relação com as lentas e
profundas conquistas do corpo moderno sobre a ideologia e a história, o
sonho de uma dança sem origens. (LOUPPE, 2000, p. 35)
Para isso, outra condição de bailarino é chamada: dançar ultrapassa a
aprendizagem do passo de dança ou o estilo do coreógrafo. Exigem-se aqui outras
valências de compreensão do corpo e do movimento, que extrapolam a ideia de
repetição e cópia, onde muitas vezes, os bailarinos apresentam uma condição passiva e
somente interpretativa das obras. De acordo com Louppe (2000), as práticas fundadoras
6
O coreografo sueco Mats Ek, dirigiu o Cullberg Ballet na década de 80 e 90. É um dos grandes nomes que
transformam o balé por revisitar as historias dos balés de repertorio saudados durante o período romântico e clássico
do balé, construindo a estética do absurdo, da neurose, do feio para obras que primavam prioritariamente pela beleza
imagética. Ele refaz obras como Giselle (1982), O Lago dos Cisnes (1987), Carmem (1992) e A Bela adormecida
(1996).
100 do corpo contemporâneo passam não somente pelo “texto” coreográfico, mas também
pelos pré-requisitos sensíveis e corporais dos quais os textos se originam. Portanto, a
figura centralizadora do coreógrafo se desfaz e todos são chamados a colaborar nos
processos criativos e na formação da estética do grupo, que também é móvel e eclética.
Outro historiador da dança que se atenta às mudanças ocorridas no cenário da
dança deste período é o pesquisador português Antonio Pinto Ribeiro em seu livro
Dança Temporariamente Contemporânea (1994). Ele afirma que as transformações
surgidas no cenário da dança fizeram surgir performances de Corpos Hi-Fi, que
segundo ele, são corpos de alta fidelidade na execução de movimentos, onde só
instrumentos de alta tecnologia e fidelidade são capazes de medir e registrar as suas
qualidades de execução. O que caracteriza estes corpos é justamente a inteligência
muscular, que cruza várias técnicas corporais constituídas historicamente, com as
tecnologias de mídia que despontam neste momento. Corpos de alta fidelidade, que
sabem jogar com as estruturas formalizadas e apropriar-se da gama de informações do
mundo à sua volta.
Ribeiro (1994) afirma que o coreógrafo norte americano William Forsythe é um
grande exemplo de corpo Hi-Fi. Ele aponta esta qualidade ao coreógrafo pelo manejo
que este deu ao balé, desconstruindo formalidades estéticas e estruturais, manuseando
qualidades de movimento como aceleração, desaceleração, cortes bruscos e mudanças
de direção improváveis para as regras já estabelecidas. Forsythe pensa como o balé pode
ser formado a partir do agora, e não prioritariamente do que já foi feito. Este é o ponto
crucial da busca deste coreógrafo que parte de parâmetros contemporâneos para
modificar a estrutura de uma dança regida pela sua tradição histórica.
A importância de William Forsythe advém do facto de, atrás de uma aparente
ligeireza, se encontrar um coreografo que, situado num tempo e num lugar
que soube entender (o nosso) resolveu reconstruir a historia de alguns
acontecimentos da Historia da dança em particular. A partir de um
determinado ponto de vista: o seu, naturalmente. (RIBEIRO, 1994, p. 50)
Estas problemáticas nos levam a apontar o coreógrafo William Forsythe como
um ponto de ruptura na constituição estética e histórica do balé. Este coreógrafo, que
desponta justamente na década de 80 em meio a todas estas transformações da dança,
desconstrói a ideia de vocabulário estabelecido do balé, utiliza mídias, softwares e
101 artefatos tecnológicos para compor suas peças, e afronta alguns princípios hierárquicos
e culturais estabelecidos ao longo da construção desta dança.
William Forsythe e seu fazer contemporâneo de balé
William Forsythe nasceu em Manhasset, Long Island - New York no ano de
1949. Desde a infância, interessou-se por dança, principalmente por Fred Astaire, rock
‘n roll, dança popular e musicais. Quando entrou na Jacksonville University, iniciou
seus estudos formais em dança, com aulas de balé e dança moderna. Particularmente,
um professor influenciará bastante seus caminhos no balé: Leon Danelion, professor
formado pela escola de George Balanchine, coreógrafo que se interessava pela relação
espaço-temporal na dança e a experimentação a partir dos códigos do balé. De acordo
com Ann Nugent (2000), esta gama de experiências, contribuiu para a formação de seu
entendimento de dança, e estas como outras influencias foram ontologicamente
integradas à sua dança.
Para aprimorar seus estudos, foi para a Joffrey School e em 1971 ingressou no
Joffrey Ballet7 em New York. Neste mesmo ano, Forsythe teve uma lesão no joelho,
deu uma pausa na carreira de bailarino e se aproximou das leituras do teórico do
movimento Rudolf Von Laban8, que escreve um livro chamado Choreutics (1966). Este
livro aborda as pesquisas labanianas sobre o centro do corpo (cinesfera), o espaço e seus
direcionamentos e uma sistematização dos estudos do movimento. Nesta teoria, corpo
tem um eixo central e a partir disso se explora movimentos em planos e níveis
diferenciados, modificando suas qualidades e tensões de movimento, com jogos,
improvisações e ações coreográficas. Dessa forma, Forsythe utiliza destes pressupostos
de movimento para experimentar tais possibilidades com o vocabulário que lhe é
familiar: o balé.
7
É uma companhia pioneira e bastante popular nos Estados Unidos e trabalha com uma formação ampla. Têm em seu
repertório desde balés tradicionais até trabalhos da vanguarda contemporânea: http://www.joffrey.com/
8
Bailarino e coreografo, é considerado um dos maiores estudiosos do movimento do século XX. Nasceu na atual
Eslováquia e durante sua vida passou por vários países da Europa, incluindo a Alemanha durante o regime nazista.
Dedicou-se ao estudo e sistematização do movimento, criando um sistema de analise e escrita de movimentos
próprios. Sua Teoria sobre o movimento baseia-se na composição dos elementos do movimento no espaço e suas
combinações, a qual deu o nome de Coreutica, que se desdobra na criação dos ritmos e dinâmicas coreográficas de
nome Eukinética, estudo dos aspectos qualitativos do movimento.
102 Prosseguindo na sua careira, Forsythe é convidado por John Cranko, diretor do
Stuttgart Ballet-Alemanha, para ingressar na companhia como coreografo convidado.
Seu primeiro balé foi um pas de deux9 criado em 1976 com o titulo de Urlich e
continuou como free-lance por companhias da Europa e Estados Unidos até 1981. No
Stuttgart Ballet coreografou várias obras que misturavam elementos da dança moderna,
teatro, cultura pop e expressionismo alemão. Coreografias complexas em movimentação
e estruturas de cenário, palco e som, rompendo com as convenções de uma companhia
de dança que se mantinha nos repertórios dos balés clássicos e modernos. Uma das
obras de maior repercussão foi Gange em 1982. O publico acostumado com as
estruturas formais da dança, ficou espantado com as rupturas coreográficas propostas
pelo coreografo e forma que o balé se apresentava como coreografia. Era um feito
comum as plateias saírem durante o espetáculo e opiniões distintas sobre seus trabalhos.
O espetáculo Gange despertou a curiosidade do ministro da Cultura de
Frankfurt/ Alemanha, pois estavam interessados em mudar o perfil da companhia da
cidade, o Ballet de Frankfurt. No ano de 1984, William Forsythe recebe o convite para
dirigir a companhia, reformular trabalho de balé desenvolvido e lançar novas bases para
a companhia no cenário internacional da dança. Ele modifica a forma de composição da
companhia, o perfil dos bailarinos e a estética dos trabalhos criados, se projetando como
grande reformulador do balé e tornando-se um dos principais nomes da dança
contemporânea mundial.
Em 1999, ainda na direção do Ballet de Frankfurt, publica o CD-ROM
Improvisation Technologies onde detalha o método de criação e improvisação que vinha
desenvolvendo com a companhia.
As Improvisation Technologies, desenvolvidas como um tutorial, um recurso
de aproximação de novos bailarinos ao contexto criativo do agora extinto
Frankfurt Ballet, companhia dirigida por Forsythe de 1984 a 2004, reúne
mais de cem operações. Sua consistência decorre exatamente do fato de tratar
se de um inventario que é duplamente incompleto: porque elenca apenas
parcialmente os materiais acumulados e, sobretudo, porque é – por principio
– virtualmente infinito. Mais fundamentalmente trata-se de uma maquina de
alteridade. (CALDAS, 2012, p.114)
Ele permanece na direção da companhia até 2004. Dentre seus principais
trabalhos à frente desta companhia estão Artifact (1984), Enemy in the Figure (1989),
Limb’s Theorem (1990), The Loss of Small Detail (1991), Self meant to govern (1994),
9
Coreografia executada por um casal.
103 Eidos: Telos e Solo (1995). Logo em 2005 cria a The Forsythe Company com o apoio
de pequenos financiadores em Dresden e Frankfurt. A companhia continua suas
atividades ate o momento, fazendo trabalhos coreográficos, performances e instalações.
Ao longo de vários anos de pesquisa, William Forsythe tocou em pontos
importantes referentes à condução artística e os princípios que norteiam a historia e a
estética do balé. Por assumir esta posição questionadora e construir coreografias que
colocavam em duvida certezas legitimadas, ele recebeu e ainda recebe muitas criticas,
pelo caráter de experimentalismo e deslocamento das matrizes técnicas do vocabulário
clássico. Neste sentido, Forsythe entende o balé como algo mais amplo que técnica
instituída, tratando o balé como um corpo de conhecimento, e não uma ideologia.
Quando você fala sobre o vocabulário de dança clássica, você esta falando de
ideias. Você diz, isto é um lugar que o corpo humano pode ocupar. Eu uso o
balé por que eu uso bailarinos de balé, e o conhecimento de seus corpos. [...]
eu vejo o ballet como um ponto de partida – isto é um corpo de
conhecimento, e não uma ideologia (FORSYTHE, 1990 apud SPIER, 1998,
p.136, tradução livre) 10.
As problemáticas levantadas por este coreógrafo acontecem não só pela sua
aproximação com os estudos do movimento de Rudolf Laban, mas também pelo
interesse às discussões filosóficas levantadas por autores como Jacques Derrida e
Michael Foucault. Além da filosofia, uma grande referencia foram as formas
arquitetônicas desenvolvidas pelo arquiteto desconstrutivista Daniel Libeskind. O
interesse pela desconstrução, desestabilização e descentralização norteiam os trabalhos
tanto do Forsythe quanto de Libeskind. Por este pensamento, o conceito de verdade,
purismo e centralidade devem ser deslocados, questionados, ou mesmo, derrubados.
Isso abre espaço para repensar as condições em que os conceitos de corpo, arte e dança
foram formalizados na sociedade e por esta via, buscar a descentralização – inclusive no
corpo em movimento - de algumas verdades tidas como absolutas.
O historiador da dança Mark Franko (2011) afirma que esta injeção de teoria
crítica no universo do balé conduziu a técnica e a coreografia a uma notável e complexa
conjunção, que provoca pontos fundamentais no pensamento do que seja esta dança, e a
direciona para os anseios da arte na contemporaneidade. Ele pensa que os tanto artistas
10
When you speak about vocabulary of classical dance, you’re talking about ideas. You say, this is a place the
human body can accupy. I use ballet, because I use ballet dancers, and I use the knowledge in their bodies. [...] I see
ballet as a point of departure – it’s a body of knowledge, not a ideology.
104 quanto a crítica especializada em dança devem se ater aos novos anseios do mundo e
consequentemente, da arte. A permanência na dança em certezas do passado corrobora
com o engessamento do balé e o entendimento equivocado de proposições artísticas que
escapam ao padrão canônico.
A questão, no entanto, não é a intelectualização da dança, mas o papel dos
intelectuais na criação coreográfica e o papel do intelectual na discussão e
crítica das obras de balé. Essa foi precisamente a função dos críticos
americanos que negavam a criticidade no balé: não pense, dance! Essa foi a
mensagem. Forsythe, contudo, endereçou e continuou endereçando seus
bailarinos para a ideia e a instrumentalização do pensamento de dança.
(FRANKO, 2011, p.41, 1tradução livre). 11
Buscar inquietações, estimular reflexão, desunificar verdades, inclusive de si
mesmo e sua produção. Tudo isso traz a visão de obra e conceito abertos que
desconstroem certezas formalizadas historicamente e nos possibilita revê-las a partir de
outras percepções e leituras que não resultam numa única possível de verdade. Por esta
via, o balé apresenta-se de como um campo de provocações que se propõe a ir além do
entretenimento ou beleza coreográfica apresentada em outros períodos. Tais
provocações vão de encontro com a proposição de dança contemporânea como poética,
desenvolvida pela pesquisadora francesa da dança Lourance Louppe em seu livro
Poética da Dança Contemporânea lançado em 1997. Louppe propõe um entendimento
da dança pela poética e os pontos que a delineiam na contemporaneidade.
De acordo com esta teoria, a obra de arte é um dialogo que se dá pela
intervenção de um ponto de vista artístico, relacionado diretamente à sensibilidade do
interlocutor e isso resulta em estesias, ou seja, reações estéticas. Os sujeitos envolvidos
nessa analise são convidados a passear pelos discursos e as praticas e observar as
produções em ação dentro da obra num esquema de repartição de tarefas.
A poética procura circunscrever o que, numa obra de arte, nos pode tocar,
estimular a nossa sensibilidade e ressoar no imaginário, ou seja, o conjunto
das condutas criadoras que dão vida e sentido à obra. O seu objecto não é
somente a observação do campo onde o sentir domina o conjunto das
experiências, mas as próprias transformações desse campo. O seu objecto,
como o da própria arte, engloba simultaneamente o saber, o afectivo e a ação.
Contudo, a poética tem uma missão ainda mais singular: ela não diz somente
o que a obra de arte faz, ela ensina-nos como o faz. (LOUPPE, 2012, pg. 27).
11
The subject, then, is not the intellectualizing of dance but the role of intellect in the creation of choreography and
the role of intellect in the discussion and critique of ballet performance. It was precisely the intellectual function that
American criticism would deny to ballet. Don’t think: dance! Was the message. Forsythe, however, addressed and
continues to address how dancers do think, and the instrumentality of thinking to dancing.
105 Observando aproximações, percebemos em Forsythe a capacidade de transpor
algumas delimitações impositivas que a dança formulou ao longo de suas trajetórias.
Este coreógrafo provoca outros sentidos que não necessariamente acionam o conforto
do que já se entende por balé. No olhar forsytheano, a estética ou o vocabulário dessa
dança aparecem reconfigurados pelas problemáticas que o afetam e isso, de fato,
implica num novo modo de praticá-la, portanto, os corpos precisam estar disponíveis a
redescoberta de outras formas e caminhos que subvertem a lógica já dada. Como ele
afirma numa entrevista a Brown (2009), a estética do balé está lá por razões muito
complexas, não apenas para entreter ou agradar 12.
Estas razões complexas aproximam-se do que Louppe chama de valores. Ela
afirma que a dança disposta na contemporaneidade, ao contrario das técnicas
homogêneas que se dedicaram a forma comum a todos os praticantes, compromete-se
com o questionamento de valores atrelado a ela. Tais valores podem tanto manter a
dança em sua zona de conforto e saberes construídos, quanto abrir campos de
pensamento
e
julgamento
ainda
não
realizados.
A
dança
produzida
na
contemporaneidade, por mais múltipla que seja, apresenta um ponto em comum, que é a
preocupação com os valores – inclusive morais – produzidos por ela. Neste caso, alguns
apontamentos para reconhecer essa dança são segundo Louppe (2012): a autenticidade
pessoal, o respeito pelo corpo do outro, o principio da não arrogância, a exigência de
uma solução justa e não somente espetacular, a transparência, o respeito por diligencias
e processos empreendidos.
Estas proposições evocam um entendimento de dança que escapa à busca de
qualquer padronização de pensamento e/ou movimento de dança. Forsythe (2011)
afirma que fala sobre o balé e isso não implica necessariamente em recitar seu
vocabulário. Tal liberdade, tão comum à dança contemporânea como estética, é vista
ainda com muitas duvidas pelo receio à perca da legitimidade e canonização que o balé
manteve por todos estes séculos. No entanto, as problemáticas da dança atual nos guiam
para uma visão polimórfica que escapa justamente a estas certezas e assumem um
compromisso com o contexto político, social e artístico da dança. De acordo com
Louppe:
12
The aesthetics of ballet are there for very complex reasons, not just to entertain or please. (tradução livre) 106 Muitas coisas mudaram nos corpos e, neste momento, é tempo de criar
lugares de observação associados à sensibilidade actual. É tempo de explorar
exaustivamente novos modos de percepção e novas vias de analise.
Infelizmente, tal projecto só será realizável quando os conhecimentos
teóricos e práticos da dança forem ele próprios, identificados e
compreendidos. (2012, pg. 48)
Neste contexto, o vocabulário do balé pode ser potencialmente transformado, já
que responde ao fazer contemporâneo de arte.
Isso, ao contrario do que a linha
hegemônica do balé pensa, não nega ou desmerece as produções artísticas construídas
historicamente. O fato de confrontar os dogmas estabelecidos e propor modificações na
sua estrutura, não significa a destruição dos gêneros de dança. Isso parte da
compreensão de que a dança está posta à discussão e transformação e provoca novos
estímulos que alteram a forma que os corpos se movem e o pensamento construído
sobre ela.
Com a criação do método de pesquisa de movimento Improvisacion
Thecnologies e as declarações como de que não vê atualmente, razoes para uma
fidelidade ao vocabulário clássico e por isso não segue esta dança como ideologia
cegamente reproduzida, Forsythe nos convida a repensar os rumos, por muitas vezes,
engessados que o balé tomou.
Ele acredita que "o vocabulário clássico nunca será
velho, a sua escrita que é datada" (1990 apud Spier, 1998, p.136), e por isso há espaço
para mudanças e discussões neste campo, que superam o conservadorismo praticado nas
escritas de balé. Rearranjar a técnica e os seus conceitos surge como um grande desafio
que engloba a maneira de lidar com os corpos, as técnicas formalizadas e as hierarquias
produzidas nos discurso de quem produz e escreve sobre esta dança.
Com certeza, o trabalho de William Forsythe trai uma parte das tradições de
balé. No entanto, Forsythe também está imerso em um esforço atual para
interromper a mecânica da sintaxe de balé clássico. Em última análise, a
questão da representação está em jogo: Podem as camadas obscuras que o
movimento gera ser representados na cena? Podemos apreender e realizar as
camadas invisíveis de movimento que nós tomamos como gestos mais
comuns? Que coordenações formais não vão resistir ao desequilíbrio? O
trabalho de Forsythe oferece formas e deslocamentos residuais gerados pelas
operações de movimentos. Ele representa o intervalo das formas que são
inscritas e multiplicadas no corpo. Os elementos esquecidos de sequências de
movimento aparentemente uniformes e coerentes são remontados
espacialmente. O artista se torna um agente, que anota e transcreve o
movimento. O bailarino executa operações que desmantelam uma estrutura,
107 uma lógica assumida (BAUDOIN; GILPIN, 2012, p. 08, livre tradução) 13.
Franko (2011) acredita que Forsythe encabeça um desejo de mudanças, mas que
infelizmente grande parte das pessoas envolvidas com balé não compreenderam a
importância e o significado que tais provocações desembocaram nessa dança. Segundo
Franko, o balé em Forsythe mostra-se como uma arte que pode ser abusada, brutalizada
e humilhada. Tais fatores vão em sentido contrário a toda a narrativa histórica produzida
sobre o balé e ao lugar social e cultural que tal dança ocupa. Esfacelam-se os arquétipos
de beleza, poder e verdade, afirmados e reafirmados pelas instituições, companhias,
críticos e escritores.
Por isso, não cabe mais falar de uma arte intocável que se fecha em gavetas de
códigos e conceitos já formatados, o que se traz agora é o lugar da pergunta, e da troca e
não da resposta. Pela poética contemporânea, a dança é um espaço de experiências
partilhadas que não tem a pretensão de limitar os campos de investigação e menos
ainda, dizer o que é ou deixa de ser balé e as experiências e provocações aparecem
como pontos de partida que desencadeiam trabalhos de balé ímpares, seja a partir de
Forsythe, ou outro coreografo que se proponha nessa empreitada. Para finalizar tais
questionamentos, concordamos com a pesquisadora Thereza Rocha (2009, p.5) que
aponta que A dança não se sabe. A dança não se sabe nunca. Voltemos sempre aí. E é a
partir desse não saber – proposital ou não - que partimos para a análise, discussão e
cruzamentos do método de pesquisa de movimento desenvolvido por William Forsythe.
Considerações Parciais
Ainda há muito a ser discutido sobre os processos históricos e artísticos do balé,
esse lugar ainda tão engessado e que para muitos, parece ter ficado no passado e não
traz contribuições significativas para discussão atual da dança. Os discursos produzidos
13
To be sure, William Forsythe's work betrays a measure of indebtedness to balletic traditions. Yet Forsythe is also
immersed in a current effort to interrupt the mechanics of classical balletic syntax. Ultimately, the question of
representation is at stake: Can the obscured layers that engender movement be represented in performance? Can we
apprehend and perform the invisible strata that we take for granted in even our most prosaic gestures? What formal
coordinations will not resist vertigo? Forsythe's work offers forms and residual displacements generated by
operations on movements. He represents the interstices of forms that are multiply inscribed by and in the body. The
forgotten elements of deceptively unified and coherent sequences are reassembled spatially. The performer becomes
an agent; at once an inscriber and a transcriber, the dancer performs operations that dismantle an assumed, logical
structure. Performances fail where they forget their own histories of discontinuity and disappearance. In this way
choreography - the memorized, fixed, fetishized object – disappears. 108 sobre esta dança, tanto por alguns coreógrafos e/ou artistas como pesquisadores dessa
área, continuam firmando resistências ao novo e à criticidade, na ilusão de que, por se
tratar de uma dança que estabeleceu historicamente algumas tradições, esta não seja
capaz de ser revista e influenciada pela política, cultura, tecnologia e arte de cada tempo
e lugar.
Proposições como as de William Forsythe, carregadas de enfrentamentos em
vários sentidos do balé, provocam inquietações tanto em quem compõe balés como na
platéia de dança, e nos tiram de um estado de conforto do que seja técnica, composição
e sua história. Por isso, para não finalizar jamais, continuamos cruzando conhecimentos
artísticos e filosóficos que traduzem os anseios atuais das pesquisas em dança, deixando
sempre o caminho aberto para o novo, o imprevisível, e o que mais o balé quiser ser.
Referencias Bibliográficas
BAUDOIN, Patrícia; GILPIN, Heidi. Proliferation and Perfect Disorder: William
Forsythe and the Architecture of Disappearance. Disponível em:
<http://www.hawickert.de/ARTIC1.html>. Acesso em: 05 jan. 2012.
BROWN, Ismene. The radical american choreographer speaks ballet - Q&A
Special: Choreographer William Forsythe Over Time 2009. Disponivel em:
www.theartsdesk.com/dance/qa-special-choreographer-william-forsythe-over-time.
CALDAS, Paulo. William Forsythe: dispor, indospor. In: Seminario Dança Teatro:
Educação– Docencia – Artista do Artista. Docente. Orgs: GONÇALVES, Thaís e
outros. Fortaleza: Expressao Grafica, 2012.
FORSYTHE, William. CD Room Improvisacion Technologies: a tool for the
analitycal eye. Alemanha: ZKM Didital Arts Editions, 1999.
FRANKO, Mark. Splintered Encounters: the critical reception to William
Forsythe.United States, 1979-1989. In: _____ (Org.). Choreography and dance:
William Forsythe. New York: Routledge, 2011. p.38-50.
LOUPPE, Laurence. Corpos Híbridos. In: Lições de Dança 2. Org: PEREIRA, Roberto
e SOTER, Silvia. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2000.
________________. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
NUGENT, Ann. The Architexts of Eidos: Telos: a critical study through
intertextuality of the dance text conceived by William Forsythe. University of
Survey – School of Performing Arts. (tese de doutorado), 2000.
RIBEIRO, Antonio Pinto. Dança Temporariamente Contemporanea. Lisboa: Vega,
1994.
SPIER, Steven. Engendering and composing movement: William Forsythe and the
Ballet Frankfurt. The journal of architecture, 1998. p. 135-146. Disponível em:
<dx.doi.org/10.1080/136023698374251>. Acesso em: 07 out. 2011.
___________. Inside the knot that two bodies make. In: SPIER, Steve (Org.).
109 William Forsythe and practice of choreography. New York: Routledge, 2011.
XAVIER, Jussara Janning. Acontecimentos de dança: corporeidades e teatralidades
contemporâneas. Udesc, Florianópolis, 2012. Tese de doutorado
110 

Documentos relacionados