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O “NOVO MUNDO” DE WESLEY:
relação entre obras, crise e o viver santo na missão para a
Geórgia entre 1735-1738
Nathalie Drumond Alves do Amaral*
Resumo
John Wesley viveu num cenário peculiar. A Revolução Industrial não trouxera
melhorias aos mais carentes. Os desdobramentos das Revoluções Civis de 1640,
com seu discurso escatológico, revelavam a frustração social e espiritual vivida
pelos mais pobres no início do século XVIII. A dedicação comunitária e acadêmica
de Wesley parecia tentar responder como a santidade poderia ser um fator de
transformação. Ao partir como missionário para a Geórgia, Wesley viu nesta ida ao
“Novo Mundo” não apenas o cumprimento de metas institucionais, mas também
uma oportunidade de sanar suas inquietações. Sua função era simples: promover a
evangelização através de grupos de estudos bíblicos entre os colonos. Mesmo sendo
considerada por muitos como uma viagem missionária fracassada, esta experiência
colocou o acadêmico de Oxford em contato com inúmeras culturas e, ao mesmo
tempo, revelou o quanto sua sociedade “civilizada” estava comprometida pela falta
de fé. As pressões culturais sofridas por Wesley proporcionaram-lhe um processo de
percepção de suas fraquezas, o que gerou uma busca diferenciada por esta
santidade que tanto o inquietava. Agora Wesley se encontrava preparado para
vivenciar esta experiência de santificação tão almejada, pois compreendera que
mesmo com toda sua capacidade intelectual, este, enquanto homem, precisava
depender de Deus.
Palavras-Chave: John Wesley; Santidade; Missões; Crise; Cultura.
Abstract:
John Wesley lived in a peculiar scenario. The Industrial Revolution brought not to
improvements for more needy. The developments of the Civil Revolutions of 1640,
with his eschatological discourse, revealed a social and spiritual frustration lived for
poorest of early eighteenth century. The community and academic dedication of
Wesley seemed to try to answer as Holiness could be a transformation factor. When
starting a mission to Georgia, Wesley saw this going to "New World" not only the
fulfillment of institutional goals, but also an opportunity to remedy their concerns.
His role was simple: promote evangelization through the Bible Study groups among
the settlers. Even being considered by many as a missionary journey failed, this
experience placed the Oxford Academic in contact with numerous cultures and, at
the same time, revealed that your "civilized" society was committed for
faithlessness. The cultural pressures suffered by Wesley provided him a process
perception of his weaknesses, which created a differentiated search by holiness that
so worried. Now Wesley was in ready to live this sanctification experience as
desired, because understood that, even with all your intellectual ability, this, as a
man, had to depend on God.
Keywords: Wesley; Holiness; Missions; Crisis; Culture.
*
Mestranda em História pela Universidade Federal Rural do
http://lattes.cnpq.br/2513818570344485. E-mail: [email protected].
Rio
de
Janeiro.
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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INTRODUÇÃO
Ao analisarmos as temáticas dos estudos sobre a Teologia Wesleyana, um
tema por excelência se apresenta: a santidade. Contudo, observada geralmente
como um elemento essencialmente espiritual, pouco se trata sobre as contribuições
que as relações culturais podem oferecer neste sentido. Trazendo para o campo da
responsabilização do homem, o tema demonstra sua relevância quanto à crise ética
e moral da atualidade. Sendo o homem tratado como agente, cabe a este se
posicionar como um provocador de mudanças, tanto culturais quanto espirituais.
Portanto, de caráter missiológico, o presente estudo possui como corte
temático a ação missionária de Wesley na Geórgia durante os anos de 1735 e 1738.
Assim, a relação entre as obras, crise e viver santo de Wesley serão confrontadas
em meio às diversas culturas que se apresentam, contribuindo ou não para o
processo de desenvolvimento do conceito de santidade.
Neste sentido, a problemática desta pesquisa se apresenta na análise de
como as culturas (ou choques culturais) observadas por Wesley durante sua missão
na Geórgia colaboraram para o entendimento e construção do conceito de perfeição
cristã. Na tentativa de buscar solucionar tal questão, teóricos na área de
missiologia, como David J. Bosch (2006), Luiz Longuini Neto (2002) e Myron Loss
(2005), serão utilizados para a compreensão de conceitos fundamentais como
missão, cultura e choque cultural. Através destes autores poderemos debater sobre
a ligação da missão à Geórgia como um fracasso ministerial. Sendo também
necessário observar tanto a formação intelectual quanto as culturas presentes no
cotidiano de Wesley, obras sobre a história do movimento wesleyano como as dos
autores Mateo Lelièvre (2005) e Richard P. Heitzenrater (2006) se fazem
necessárias.
Porém, é fundamental destacar as análises teóricas de Jan Assmann e Aleida
Assmann neste processo. Trabalhando o conceito de uma dinâmica cultural de via
de mão dupla, ambos destacam a ação do indivíduo no processo de construção de
uma cultura. Assim poderemos observar quais foram as contribuições de John
Wesley, enquanto agente neste processo de formação de uma cultura de santidade.
1.
Missão e relações culturais
A viagem missionária de John Wesley à Geórgia entre os anos de 1735-1738
tem sido analisada pela Teologia, principalmente quanto ao despertamento
provocado em sua visão acerca da salvação vinculada ao medo da morte.
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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Considerada por muitos teólogos como um fracasso, a missão ao “Novo Mundo”
desperta uma série de inquietações. Seu desembarque na Geórgia em 1736 e sua
vontade de compartilhar com os índios as boas novas do Evangelho, traziam
consigo uma série de expectativas também de ordem cultural.
Sendo a missão uma expressão, segundo Luiz Longuini Neto (2002, p.67) do
“testemunho do amor e da presença de Deus na história pelos cristãos”, assume dois
aspectos: o interior e o exterior. O primeiro, de caráter espiritual, testifica no
coração do ser humano acerca do amor de Deus, o Pai, representado pelo sacrifício
de seu Filho Jesus, o Cristo e, portanto, torna compreensível a primeira grande
missão, a missio Dei. Desenvolvido por David J. Bosch (2002, p.28), este conceito
salienta a importância de:
distinguir entre missão (no singular) e missões (no plural). O
primeiro conceito designa primordialmente a missio Dei (missão de
Deus), isto é, a auto-revelação de Deus no e com o mundo, a
natureza e atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto
o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar. Missio
Dei enuncia a boa nova de que Deus é um Deus para as / pelas
pessoas. Missões (as missiones ecclesiae [missões da igreja]: os
empreendimentos
missionários
da
igreja)
designa
formas
particulares, relacionadas com tempos, lugares ou necessidades
específicos, de participação na missio Dei (BOSCH, 2002, p.28).
Quanto ao caráter exterior da missão, esta seria mais do que as missiones
ecclesiae apontadas por Bosch. Sendo desenvolvidas através da organização
eclesiástica, visavam formar frentes de trabalho para o alcance de almas através da
pregação do Evangelho. Contudo, tal percepção poderia esbarrar num ativismo
eclesial. O caráter exterior vai além, testemunhando à humanidade um processo de
santificação iniciado no homem interior, o qual deseja não só compartilhar a graça
recebida, mas ser um testemunho vivo desta graça testificada pela ação do Espírito
Santo. Tais pontuações são necessárias para a compreensão da relação entre a
missão e a cultura.
Considerando a ordenança de Jesus presente em Mateus 28.18-20,
observamos uma ação contínua sendo designada aos discípulos:
Foi dada a mim toda autoridade em (o) céu e sobre [a] terra. Indo
pois discipulai todas as nações, batizando a eles em o nome do Pai e
do Filho e do Santo [2] Espírito [1], ensinando a eles guardar todas
as coisas as quais ordenei a vós; e eis eu convosco estou todos os
dias até o fim do século (NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR
GREGO-PORTUGUÊS. Mateus 28.18-20. 2004, p.127).
Esta relação de continuidade desperta não só o contato entre culturas
diferentes, mas a necessidade de perceber os usos e costumes que rodeiam o
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para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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indivíduo, desafiando-o a mantê-la ao não. Nesta percepção da cultura como uma
via de mão dupla, tanto o indivíduo quanto o grupo interagem, mudando e sendo
modificados. Num debate sobre o judaísmo e o caráter coercitivo e cruel atribuído
por Nietzsche à religião, Jan Assman afirma:
What remained completely obscure in this process was the enabling
aspect of culture, which does not just mutilate people and knock the
min to shape [...], but which also (and we would like to say above all)
develops forms of life, open ups possibilities in which the individual
can invest and fulfill himself. Thus Nietzsche simply ignores the fact
that society's interest in subjecting the individual to its purposes is
counter balanced on the side of the individual by the natural (and its
Nietzsche's eyes, banal) desire to belong and to develop, in his nature
as a zoon politic on. This desire is not necessarily feebler than the
corresponding normative and formative acts of coercion that
"culture" imposes on the individual (ASSMANN, 2006, p.6).
Perceber as questões sobre a responsabilidade do indivíduo num processo
missionário é fundamental. Ao observarmos a Inglaterra de John Wesley, vemos um
cenário nada animador. Vinda do que Christopher Hill (1987) chamou de
“Revoluções Civis de 1640”, com seu discurso escatológico e suas massas
combativas, o cenário mudara quanto à esperança, não quanto à pobreza. Se no
século anterior as massas eram contagiadas pelo discurso da volta de Cristo como
uma solução para a dura realidade, no século XVIII a falta de esperança somada
aos não benefícios da Revolução Industrial, pelo menos para a grande parte da
população, tornavam a situação mais preocupante.
Neste cenário a figura de John Wesley aparece. Filho do presbítero anglicano
Samuel e sua esposa Suzana, nasceu em 17 de junho de 1703, sendo um entre os
dezesseis filhos do casal. Alfabetizado pela mãe com o auxílio da Bíblia, passou sete
anos na Escola Chaterhouse, em um programa de estudos clássicos que visavam
prepará-lo para a universidade. Iniciou os estudos em Oxford no ano de 1720.
Tornou-se fellow no college de Christ Church em 17261. Ele possui em sua trajetória
teológica três influências distintas, conforme salientou Richard P. Heitzenrater na
obra “Wesley e o povo chamado metodista”:
Primeiro, em Epworth e em Chaterhouse, ele havia sido criado na
tradição teológica da Igreja da Inglaterra. A ênfase indireta da via
media pode ser notada em seu comentário de que ele foi “cedo
advertido contra a colocação, como os papistas fazem, de muita
ênfase... em obras exteriores ou (como os protestantes radicais
fazem) na fé sem obras, que, não estando incluídas, nunca levarão à
verdadeira esperança e à caridade” (J[ournal] & D[iares], 18:212) (...).
1 Nos colleges, que poderíamos compreender de forma aproximada como as atuais faculdades,
havia jovens solteiros ligados ao clero – os fellows - que colaboravam com a instituição, podendo
ministrar aulas ou pregações junto aos estudantes.
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Então, algum tempo antes de 1725, Wesley “caiu entre alguns
autores luteranos e calvinistas cujos relatos confusos e indigestos
aumentavam o valor da fé a uma tal amplitude que quase escondiam
todo o resto dos mandamentos” (...) (J[ournal] & D[iares], 18:212.
Wesley entraria no seu terceiro estágio de influência de seu
desenvolvimento teológico. Seus estudos de 1725 começaram a
focalizar os pietistas da tradição do viver santo (...).
Jeremy Taylor forneceu uma das mais cruciais sugestões que
Wesley adotou: a primeira regra de um viver santo é o cuidado com o
seu tempo. A consequência mais visível do conselho de Taylor foi
Wesley ter começado a fazer um diário, como um registro e medida
de seu progresso num viver santo. A consequência teológica mais
significativa da influência pietista foi a descoberta de Wesley de que
a santidade era uma realidade interior (...) (HEITZENRATER, 2006,
p.35-36, grifo do autor).
Buscando vivenciar esta santidade, Wesley canaliza suas atividades para a
ajuda aos pobres e o compartilhar da Palavra junto aos seus colegas de Oxford.
Sendo todas as suas realizações feitas debaixo de uma rígida disciplina e
organização, seu grupo de Oxford passa a ser taxado ironicamente como “Clube
Santo” e “Metodistas”, tendo a sua piedade meditativa2 tratada pelos colegas como
uma “legalista justificação pelas obras” (HEITZENRATER, 2006, p.43). Cada vez
mais Wesley se preocupa em buscar estabelecer usos e costumes e, porque não
dizer, parâmetros culturais que expressem o seu empenho em buscar pela vida
santa, a qual seria um marco em sua teologia, através do seu conceito de perfeição
cristã.
Ao receber o grau de mestre em 14 de fevereiro de 1727, Wesley, atendendo
um pedido de seu pai, passa um tempo trabalhando como cura em Epworth e
Wroot, voltando a Oxford somente em 22 de setembro de 1728 para ser ordenado
presbítero. Contudo, um conjunto de fatores o leva a confrontar (ou tentar
esconder?) suas inquietações sobre a vida de santidade. Com o falecimento de seu
pai em 25 de abril de 1935 e a não possibilidade de sucedê-lo, Wesley recebe um
desafio de John Burton para ir à colônia da Geórgia, o qual “iria fornecer uma
oportunidade única para se afastar “do mundo”, em sua tentativa de implementar
seu específico projeto pessoal da busca da perfeição cristã” (HEITZENRATER, 2006,
p.56).
2.
As culturas do “Novo Mundo”
Ao embarcar de Gravesend para a Geórgia em 14 de outubro de 1735, John
Wesley buscava, não apenas sanar suas expectativas quanto à pregação do
2 Termo presente na obra “Wesley e o povo chamado metodista” p.43, de Richard P.
Heitzenrater, define a relação de Wesley entre a influência do pietista, disciplina e estudo.
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Evangelho aos índios, mas também, por respostas pessoais. A cultura de santidade
que ele ansiava viver e promover, ainda calcada fortemente na disciplina e obras,
não afastara os seus medos sobre a vida e eternidade.
Viver a perfeição cristã
ainda estaria vinculado à influência puritana de fazer o melhor que puder pela
causa de Cristo.
Durante os preparativos para o embarque, em carta escrita por Wesley em 10
de outubro de 1735, este compartilha da sua expectativa quanto à experiência
rumo à colônia:
O que mais me anima para dar esse passo é a esperança de salvar a
minha alma. Ao pregar aos pagãos, espero aprender o verdadeiro
significado do Evangelho de Cristo. Eles não possuem explicações
arbitrárias através das quais possam iludir-se a respeito das
declarações terminantes das Sagradas Escrituras, nem filosofias vãs
para corrompê-los, nem comentaristas carnais ambiciosos que
adotam as verdades amargas. Não têm partidos nem interesses para
servir e, portanto, podem receber o Evangelho em toda a sua
singeleza. São humildes como crianças e estão desejosos de aprender
e fazer a vontade de Deus (WESLEY. Works, tomo XII, p.38. IN.:
LELIÈVRE, 2005, p.52).
Analisando este trecho, uma série de questões devem ser observadas.
Primeiramente vemos a crise interior presente em Wesley. Sua busca pelo viver
santo ainda focado no estudo e realizações, ou seja, de seu esforço em ser um
exemplo, não lhe trouxe a convicção de sua salvação. Porém, o choque cultural
provado nesta missão faria da crise um momento de contrição, arrependimento e,
portanto, de novas experiências que renovariam a sua visão.
Considerando que Wesley estaria fazendo parte de uma missão vinculada ao
processo de colonização da América do Norte, mostra-se interessante a visão sobre
o que o esperava por aquelas terras. Inicialmente, o discurso é até um tanto
romântico, onde os índios, talvez numa comparação com as crianças pobres
ajudadas pelos metodistas de Oxford, estariam ali, esperando para receber a divina
palavra.
Contudo, conforme salientou Chevitarese e Cornelli (2007), nenhum encontro
entre diferentes grupos se dá no marco zero de uma cultura. Assim, se faz
necessário compreender as interpenetrações culturais 3 , que se dão nas relações,
promovendo assim a troca, ou segundo Jan Assmann, um processo de mão dupla
entre indivíduo e grupo.
Termo de Roger Bastide utilizado por André Leonardo Chevitarese e Gabrielli Cornelli em sua
obra“Judaísmo, Cristianismo e Helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo
Antigo”. Visa demonstrar as interações culturais, respeitando o campo em que ocorrem, pois não se
dão em meio a ausências culturais que permitam assimilações totais.
3
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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É importante compreender que no processo missionário de Wesley este não
compartilhou apenas da sua cultura de santidade desenvolvida até o momento,
mas também recebeu da cultura local e teve sua visão modificada com esta
experiência. Tal afirmativa pode trazer alguma estranheza, contudo, uma coisa é
certa: Wesley entendia que precisava viver uma experiência diferente do que até
então vivera para sentir o que era o viver santo.
Assim, antes de desbravar as terras da Geórgia, se faz necessário
compreender o conceito de cultura para visualizarmos os choques que Wesley
estava prestes a viver. Aleida Assmann, ao desenvolver sua pesquisa sobre “Canon
and Archive”, demonstra uma relação entre cultura, memória e identidade, onde
Through culture, humans create a temporal framework that
transcends the individual life span relating past, present, and future.
Cultures create a contract between the living, the dead, and the not
yet living. In recalling, iterating, reading, commenting, criticizing,
discussing what was deposited in the remote or recent past, humans
participate in extended horizons of meaning - production. They do
not have to start a new in every generation because they are
standing on the shoulders of giants whose knowledge they can reuse
and reinterpret (ASSMANN, 2008, p. 97).
Considerando a dinâmica presente nas culturas e as relações que vão se
desenhando neste processo vivo, o estranhamento com o diferente é algo esperado.
Ao tratar sobre o “Choque Cultural” experimentado por pessoas em missão
transcultural, Myron Loss traz o conceito de cultura desenvolvido por Philip Bock:
A cultura, no seu sentido mais amplo, é o que faz de você um
estranho quando está longe de casa. Ela inclui todas aquelas crenças
e expectativas sobre como as pessoas agem, que se tornou uma
espécie de segunda natureza para você como resultado do
aprendizado social. Quando você está com membros de um grupo
que compartilha a sua cultura, você não tem que pensar sobre estas
questões, pois vocês vêem o mundo exatamente da mesma maneira,
e todos sabem, em termos gerais, o que esperar um do outro.
Entretanto, a exposição direta a uma sociedade estrangeira costuma
produzir um incômodo sentimento de desorientação e desamparo,
chamado de choque transcultural (BOCK. IN.: LOSS, 2005, p.61-62).
Myron Loss trabalha sobre as relações de estresse no meio do campo
missionário. Este demonstra como até um missionário devidamente instruído pode,
ao sofrer um choque de usos e costumes, ter um processo de crise em meio ao
campo. Neste sentido é possível que tanto a sua saúde psíquica quanto física seja
comprometida. Porém, será que esse choque entre diferentes realidades ocorre
somente numa missão transcultural?
Voltando à carta escrita por Wesley em 10 de outubro de 1735, vemos que
estes incômodos já se faziam presentes em sua própria terra, Inglaterra, onde
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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haviam “comentaristas carnais ambiciosos que adotam as verdades amargas”,
“partidos”, “interesses” (LELIÈVRE, 2005, p.52). Assim, podemos afirmar que a
cultura wesleyana de santidade em construção já entrava em choque com a cultura
inglesa. Neste sentido, o embarque para a Geórgia era uma forma de buscar
respostas que poderiam preencher as lacunas sobre as suas indagações quanto à
perfeição cristã:
Com a graça de Deus, espero levar uma vida à altura das minhas
crenças elevadas, tão logo me veja livre das muitas tentações que
aqui me rodeiam. Sem temor de ofender a alguém, poderei então
contentar-me me viver dos frutos da terra e da água. Uma choça
índia não apresenta a tentação da luxúria nem da moleza. Desde o
momento em que me despeço da minha pátria como pregador
enviado por Deus, espero não falar uma única palavra que esteja de
conformidade com esse caráter. Desde a minha juventude tenho sido
um grande pecador, e meu coração está, portanto, cheio de maus
desejos; tenho, porém, a certeza de que, se eu chegar a me converter
de fato, Deus me usará para fortalecer meus irmãos e pregar o seu
nome aos gentios (WESLEY. Works, tomo XII, p.38. IN.: LELIÈVRE,
2005, p.52).
Ao embarcar no Simmonds, suas inquietações o acompanham. Além de seu
irmão Charles Wesley, embarcaram com ele os jovens Benjamin Ingham, metodista
de Oxford, e Carlos Delamotte, que o seguiu na qualidade de funcionário. Em meio
à tripulação também encontravam-se vinte e seis moravianos, sendo um deles o
bispo David Nitshcmann. Considerando os demais colonos e os barris de rum
presentes, este era o cenário com o qual os missionários ingleses iriam se deparar
nos próximos meses. Mais do que os tripulantes e barris, o que também
acompanhava Wesley em sua jornada era uma série de culturas, todas à bordo do
Simmonds e, depois, presentes na Geórgia.
Tratar sobre a ida de Wesley rumo ao “Novo Mundo”, sem dúvidas, é ser
lembrado do seu contato com o grupo de moravianos. Pietistas alemães, tinham
uma união cálida e devota com Cristo. Conceitos como
arrependimento, conversão, renascimento e santificação receberam
significados novos. Uma vida disciplinada, e não a doutrina correta,
a experiência subjetiva do indivíduo, e não a autoridade eclesiástica,
a prática e não a teoria (BOSCH, 2007, p.309).
Dentro das expectativas descritas por Wesley em sua carta de 10 de outubro
de 1735 sobre a viagem à Geórgia, a visão moraviana teria muito com o que
contribuir para trazer respostas às inquietações existentes. Geralmente relacionada
com o medo da morte nutrido por Wesley em meio à tempestade e sua dúvida sobre
sua salvação, a questão ia muito além. Uma proposta experiencial de santidade se
apresentava sem desqualificar a disciplina. Assim, o foco passa a ser a
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
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compreensão do “perfeito amor”:
Em isto tem sido aperfeiçoado o amor conosco, para que confiança
tenhamos em o dia do juízo, porque como aquele é também nós
somos em mundo [2] este [1]. Medo não existe em o amor, mas o
perfeito amor fora [2] lança [1] o medo, porque o medo punição [2]
tem[1] o[2] e[1] que teme não tem sido aperfeiçoado em o amor. (NOVO
TESTAMENTO INTERLINEAR GREGO-PORTUGUÊS. 1 João 4.17-18,
p. 890, grifo nosso).
Somada às culturas puritanas e pietistas presentes em meio a um palco
iluminista, temos os desajustes dos colonos. Em sua primeira noite após aportarem
em Savannah, capital da colônia, Wesley encontra todos bêbados no navio, o que
era ilegal, pois não poderiam trazer bebidas alcoólicas para a colônia. Assim, é
observado, de um lado, o grupo moraviano como uma possibilidade de aprendizado
e de segurança que o ajudaria a fugir do pecado e, por outro lado, os colonos já sem
o espírito puritano de manifestar a glória de Deus em seus empreendimentos.
Restava-lhe evangelizar os índios.
Considerando os nativos como crianças abertas para ouvirem o Evangelho,
Wesley se depara com uma cultura indígena, ou melhor, várias interpenetrações
culturais em meio aos nativos. Sua primeira oportunidade de contato, ainda no
Simmonds, foi com o chefe Tomochichi dos Creeks. Mesmo aberto a ouvir a “Grande
Palavra”, o líder indígena avisou-lhe sobre como o processo de colonização e
incursão de comerciantes ingleses, franceses e espanhóis havia influenciado
negativamente os nativos. Sendo batizados antes mesmo de ouvirem a Palavra,
estilo também adotado pelos colonizadores portugueses com os negros africanos
trazidos como escravos para o Brasil, tal atitude, além do uso da violência,
demonstrava o desdém tanto com sua cultura, quanto com a sobrevivência de sua
comunidade.
Sobre o assunto é interessante observar que o romantismo inicial de Wesley
é substituído por uma visão pessimista. Ao vislumbrar os nativos como puros
receptáculos, crianças sedentas, este compreende de forma homogênea as várias
nações indígenas da América do Norte e, portanto culturas distintas. Assim, maior
do que o choque das práticas indígenas, conflituosas aos parâmetros cristãos, eram
os cristãos agindo de forma tão violenta quanto estes, uma vez que já conheciam,
em tese, o Evangelho. Em seu sermão sobre a “Advertência contra o sectarismo”,
John Wesley afirma que:
A religião natural dos Creeks, Cherokees, Chicksaws e todos os
outros índios que vagueiam pelos nossos territórios do sul, (não uns
poucos homens, mas nações inteiras), é esta: torturam todos os seus
prisioneiros, da manhã à noite, queimando-os afinal até que
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morram; e à mais leve ofensa involuntária, vêm pelas costas e atiram
no próprio companheiro! Sim, é comum entre eles fazer o filho saltar
os miolos do próprio pai, se julga que este vive demasiadamente; e,
quanto às mães, se estão enfadadas com os filhos, atam-lhes pedras
ao pescoço e lançam-nos, três ou quatro deles, ao rio, um após o
outro. Seria desejável que ninguém, exceto os pagãos, praticasse tais
obras grosseiras, palpáveis, do diabo. Mas não ousamos dizê-la.
Mesmo em crueldade e derramamento de sangue, quão pouco estão
os cristãos aquém daqueles! (WESLEY, Sermão 38: Advertência
contra o sectarismo 1.9-10).
Provavelmente, o mesmo medo da morte que o afligira durante a tempestade
a bordo do Simmonds, continuava impedindo-lhe de compreender, na aparente
violência dos nativos, além de um mecanismo de defesa e resistência, os ritos e
costumes tribais, cheios de símbolos e significados próprios. Considerando o tempo
histórico do fato em questão, é necessário reiterar que John Wesley era um homem
do século XVIII e pensava como tal. Mas o importante é perceber que o assombro se
dava não tanto pela postura indígena, mas pelos cristãos que agiam de forma
parecida àqueles que não conheciam as Escrituras.
Retirando seu olhar missionário dos índios devido à resistência destas
comunidade aos seus rígidos padrões de estudo e disciplina, John Wesley volta-se
para os negros, conseguindo montar um pequeno grupo de estudo. Assim, o modelo
metodista começou a ganhar vida na Geórgia, mas ainda de maneira tímida.
Considerando ainda as acusações feitas a Wesley, relacionadas tanto à sua rigidez
(seleção de participantes para a Santa Ceia, excomunhões, etc), quanto ao seu
comportamento as vezes duvidoso (em manter conversas com uma mulher casada
sem a autorização de seu marido) resultaram ainda em representações contra o
presbítero. Assim, Wesley decide voltar para a Inglaterra, ficando na colônia até o
dia 2 de dezembro de 1737 e desembarcando em Deal dia 01 de fevereiro de 1738.
3.
Wesley e a crise (?)
O cenário não era animador. Um sentimento de fracasso pairava pelo ar. A
série de acusações impetradas contra Wesley só reiteravam a sua falta de sucesso,
tanto no processo de evangelização dos nativos quanto ao seu processo de fuga dos
hábitos ingleses tão condenáveis por este. Buscando nesta missão se afastar das
tentações que o cercavam em sua terra natal, aos poucos foi compreendendo que o
problema não estaria na cultura que o cerca. O que comprometeria sua busca pela
santidade seria a cultura carregada em seu coração. Sendo uma vez fortalecido em
Deus, poderia mais do que apenas aplicar estudos sistemáticos, elaborar sermões
eloquentes ou fazer caridade. Faltava-lhe convicção acerca da sua própria salvação.
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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Em seus Works este afirma:
Fui até a América do Norte (...) a fim de converter os índios, mas
quem me converterá a mim? Quem me livrará desse coração perverso
e incrédulo? Tenho uma religião dos bons tempos; posso falar nela,
enquanto estou longe do perigo; porém, logo que a morte está diante
do meu rosto, minha alma se abate. Não posso exclamar: ‘Para mim,
a morte é lucro’. Oh, quem me livrará desse medo da morte? O que
farei? Aonde irei para escapar dela? (WESLEY, Works, tomo I, p.74.
IN.: LELIÉVRE, 2005, p.61).
Contudo, uma pergunta se apresenta: “A missão na Geórgia foi um
fracasso?”. Ao ser convidado por John Burton para seguir rumo à colônia, fundada
em 1732 graças a James Oglethorpe, sua intenção era que o modelo disciplinar
desenvolvido em Oxford pudesse ser implementado na América do Norte.
Considerando que a missão estava ligada a um processo de expansão territorial
colonizador, estabelecer uma forte disciplina religiosa, tanto aos colonos quanto aos
nativos não seria um mal negócio. A “manifestação da glória de Deus” na América
do Norte estaria à serviço da coroa britânica.
Ao se deparar com o tamanho e inesperado banquete cultural da Geórgia,
Wesley foi desafiado a perceber que a cultura que tanto o confrontava na Inglaterra,
também se manifestava em sua colônia. Fora de seu ambiente acadêmico e
incursões paroquiais, não teria as mesmas facilidades para implementar seus
métodos. Em Oxford, Wesley tinha o controle para desenvolver usos e costumes que
foram sendo, aos poucos, transformados em mecanismos identitários de um grupo
e transmitidos às novas gerações de estudantes. Assim, a cultura de santidade
metodista se manifestara, mas estava ainda em desenvolvimento.
A cultura é um processo vivo e de participação do indivíduo como seu agente
promotor. Por isso, a nova realidade da Geórgia retirou o cenário estável em que
John Wesley se encontrava, desafiando-o a repensar, não a sua disciplina
característica, mas as motivações para exercê-la. O que foi considerado por parte da
Teologia como uma missão fracassada, foi o início de uma crise necessária que
despertaria em Wesley o repensar de seus parâmetros sobre o viver santo.
A preocupação com a busca por uma vida santa é amplamente observada em
seus escritos. Sua trajetória enquanto parte de uma família pastoral de rígida
educação sempre estiveram marcadas em suas ações. Wesley cresceu sendo
ensinado a ser um exemplo para a sua comunidade, tanto pela família, quanto pela
igreja.
Lançado ainda cedo no preparo para o ministério junto à Igreja Anglicana,
buscou primeiramente nas leituras puritanas e depois pietistas para procurar
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respostas. Em seus estudos em 1725, fazia a leitura da obra “A imitação de Cristo”
do pietista Thomas Kempis e outras obras desta mesma linha como Rule and
Exercises of Holy Living and Holy Dying de Jeremy Taylor (1650), The Practice of
True Devotion de Robert Nelson (1708) e Private Thoughts Upon Religion de Willian
Beveridge (1709?).
Em 1730 John começa a leitura de Serious Call to a Devoutand Holy Life de
William Law, autor que traria grande influência sobre o conceito de “Perfeição
Cristã”. Porém, focado ainda mais no fazer do que no sentir, em 1733 Wesley faz
sua primeira publicação: Collection of Forms of Prayers for Every Day in the Week.
Um exemplo da influência desses autores em sua prática ministerial está descrita
no Journal:
Quinta-feira, 10 de junho. Começamos a executar em Frederica o
que havíamos concordado em fazer em Savannah. Nosso plano era,
nos domingos à tarde, e todas as noites, após o culto público, passar
algum tempo com os mais religiosos entre os comungantes para
cantar, ler e conversar. Nesta tarde tivemos apenas Mark Hird. Mas,
no domingo, o Sr. Hind e mais duas pessoas quiseram ser admitidas.
Depois de um salmo e uma pequena conversação, eu li A perfeição
cristã do senhor Law, e concluí com outro salmo (WESLEY, Journal
de 10 de junho de 1736. IN.: HEITZENRATER, 2006, p.63, grifo do
autor)..
Toda esta carga teórica e disciplinar estava sobre os ombros de Wesley.
Porém, reiterando a visão de Jan Assmann (2006) sobre a vontade do indivíduo em
meio ao grupo, é observado em John exatamente este aspecto. A sua constante
preocupação com a cultura que o cercava gerou nele uma responsabilização, uma
postura enquanto agente da mudança. Em busca do estabelecimento de uma nova
visão
sobre
a
prática
do
evangelho
que
respondesse
aos
seus
diversos
questionamentos, primeiramente, implementa em sua área de segurança – Oxford estudos disciplinados e frentes de caridade; depois com a tentativa de evangelizar
os índios, decide experimentar novas possibilidades num território desconhecido.
Porém, ao lidar com tantas culturas que, em alguns casos, teriam uma base cristã,
mas não a sua prática, tal fator reiterava suas próprias lutas internas.
Em meio ao choque cultural, enquanto missionário, John Wesley sentiu
estranheza ao se deparar com tanta diversidade diante de seus olhos. Porém, já não
sentia esta inquietação antes mesmo de cruzar os mares rumo ao “Novo Mundo”?
Uma demonstração deste constante conflito interior se apresenta através de seus
próprios escritos após o seu retorno:
Há cerca de dois anos e quatro meses saí de minha pátria para
ensinar aos índios da Geórgia a religião cristã, mas nesse ínterim, o
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que eu mesmo tenho aprendido? Descobri o que eu menos
suspeitava, que, apesar dos meus esforços para converter os outros,
eu mesmo não estou salvo. Tenho aprendido que me acho ‘destituído
da glória de Deus’, o meu coração está inteiramente ‘corrupto e cheio
de abominação’ e a minha vida inteira está nas mesmas condições,
pois ‘a árvore má não pode dar bons frutos’. Tenho aprendido que
estando ‘alienado da vida de Deus’, sou ‘filho da ira’ e herdeiro do
inferno; minhas obras, meus sofrimentos, minha justiça, longe de me
reconciliar com um Deus irado, longe de servir para expiar o mais
insignificante dos meus pecados (mais numerosos do que os cabelos
da minha cabeça), não podem aguentar o olhar perscrutador da
justiça divina sem antes serem purificados. Tenho aprendido que,
levando escrita no meu coração a sentença da morte, e não tendo
alguma desculpa para alegar, não me sobra outra esperança senão a
de ser justificado gratuitamente pela redenção que há em Jesus;
nenhuma esperança existe, se eu não a buscar e achar em Cristo, e
for achado nele, não tenho minha própria justiça que é segundo a lei,
mas a que é pela fé em meu Salvador, a justiça que vem de Deus
pela fé (WESLEY, Works, tomo I, p.75. IN.: LELIÉVRE, 2005, p.6162).
Após sua incursão pelas terras da Geórgia, Wesley possui um repensar na
sua própria experiência com Deus. Neste sentido, é corrente nos estudos
wesleyanos sobre a perfeição cristã tratar a data de 24 de maio de 1738 como um
momento ímpar. Nesta data, Wesley participara de uma reunião de sociedade na
Rua Aldergate, onde descreve ter sentido um aquecer em seu coração ao ouvir, após
a leitura do prefácio de Lutero sobre a Epístola aos Romanos, uma descrição da
mudança que Deus faz no coração. Contudo, o fato atualmente conhecido como
“dia do coração aquecido”, em que John teve uma experiência diferenciada com o
Espírito Santo, não pode ser considerado como um fim em si mesmo.
É necessário compreender a vontade, primeiramente do Pai, através da
missio Dei, de que a humanidade tenha acesso ao único e vivo caminho, Jesus
Cristo. Assim, o Filho possibilita ao homem, mediante a ação de seu Santo Espírito,
os ensinamentos de como viver em plena santificação. Contudo, sendo ofertado ao
homem andar por estes caminhos retos, cabe a este responder à ação primeira de
Deus. Assim, tanto o aceitar a Cristo quanto a busca pela ação de seu Espírito nos
corações dos homens são uma resposta racional do homem ao dom vindo da parte
de Deus, a fé, conforme salienta o apóstolo Paulo em sua Epístola aos Romanos:
Exorto pois a vós, irmãos, por as misericórdias de Deus a
apresentardes os corpos [2] vossos [1] (por) sacrifício vivo, santo,
agradável a Deus, o racional [3] culto [2] vosso [1]; e não sejais
amoldados século [2] a este [1], mas sede transformados pela
renovação da mente para provardes vós qual a vontade de Deus, boa
e agradável e perfeita (NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR GREGOPORTUGUÊS. Romanos 12.1-2. 2004, p.602).
O apóstolo Paulo diz que o homem deve apresentar seus corpos a Deus
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através de uma adoração que passe pela razão, pela mudança na forma de pensar.
Assim o homem poderá provar a vontade de Deus que é boa, perfeita e agradável.
Não teria sido o que Wesley fez? Apresentando sua vida a Deus num processo de
busca por uma santidade até então incompreendida, procurou, inicialmente nos
estudos avançados e na caridade, as respostas para as suas inquietações entre o
estabelecido nas Escrituras e a ação do homem em vivencia-las.
Conforme o homem se apresenta respondendo à missio Dei, Deus responde
ao exercício da fé concedida por Ele (Lc 17.5-6). Assim, a santificação é uma ação
conjunta evidenciada através do livre arbítrio humano em escolher fazer a vontade
de Deus e negar a sua carne.
Portando, a relação de mão dupla defendida por
Assmann também pode ser aplicada neste sentido. Contudo, o homem sofre
mudanças ao longo do processo de interação com Deus; porém, Deus permanece o
mesmo, mas a sua forma de ser enxergado pelo homem em plena busca de
santificação é que sofre alteração. Neste sentido, pontuamos que o acontecimento
de 24 de maio de 1738 é o resultado de um longo processo de busca e interação de
John Wesley com Deus. Processo que também não termina em si mesmo;
permanece em ação ao longo da vida do homem, manifestando a vida dinâmica
proposta pela Teologia Wesleyana através do conceito de “perfeição cristã”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na análise sobre a busca de John Wesley por uma experiência de
santificação, observamos que tanto as culturas recebidas pela família, através de
seus estudos ou em sua incursão missionária na Geórgia não devem ser alijados
deste processo. Verificando o desenvolvimento do pensamento de Wesley sobre o
viver santo, percebemos um processo de amadurecimento do conceito que vai sendo
trabalhado durante toda a sua vida.
Ao tratar a questão com ênfase numa cultura de santidade a ser
desenvolvida, valoriza-se todos os diversos usos e costumes que passaram ao longo
de sua vida. Podendo o indivíduo escolher quais ferramentas utilizar para
desenvolver seu empreendimento, Wesley seleciona tanto as análises a serem
utilizados, aqui dando um destaque para o pietismo, quanto aos elementos a serem
rechaçados. Neste sentido, há uma separação do que deve ser estabelecido, ou não,
como expressão identitária desta cultura de santidade em construção e que deve
ser compreendida como um processo de interação entre o indivíduo e o grupo.
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Outra questão importante é compreender a perfeição cristã como uma
resultante da vontade humana de se entregar ao Deus Revelado. Por outro, lado,
este Deus permanece se manifestando, fazendo a sua obra no coração do homem.
Por isso, é fundamental compreender que essa cultura de Deus pode ser
desenvolvida em qualquer relação de espaço e tempo, seja em meio aos ingleses ou
em meio aos índios. Mesmo sendo a experiência na Geórgia tratada por muitos
teóricos como uma missão fracassada, reiteramos que este foi um momento de
afunilamento de uma crise pré-existente no homem interior de Wesley, a qual foi
necessária para desenvolver as bases de contrição e arrependimento necessárias
para que este pudesse vivenciar a chamada “experiência do coração aquecido”.
Portanto, analisar como a cultura adquirida ou selecionada pelo indivíduo
pode colaborar, ou não no processo de busca pela perfeição cristã, traz como
desafio a responsabilização do homem dentro do seu relacionamento de interação
com Deus. Neste sentido, o indivíduo santificado, sim, tem a autoridade de
modificar a cultura ao seu redor e, portanto, pode responder à ação de Deus em seu
propósito de salvar o mundo.
REFERÊNCIAS
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international and interdisciplinary handbook / edited by Astrid Erll. Ansgar:
Nünning, 2008.
ASSMANN, Jan. Religion and cultural memory: ten studies. Trad. Rodney
Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006.
BOSCH, David J. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da
missão. 2ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002.
CHEVITARESE, André L. e CORNELLI, Gabrielli. Judaísmo, cristianismo e
helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo antigo. São
Paulo: Annablume; Fapesp, 2007.
HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o povo chamado metodista. 2ª. ed. São
Paulo: Editora Cedro, 2006.
LELIÉVRE, Mateo. João Wesley: sua vida e obra. São Paulo: Editora Vida, 2005
LOSS, Myron. Choque cultural: lidado com o estresse em um ambiente
transcultural. 2ª. ed. Monte Verde: Horizontes América Latina, 2005.
NETO, Luiz Longuini. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e
evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002.
NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR GREGO-PORTUGUÊS. Barueri: Sociedade
Bíblica do Brasil, 2009.
WESLEY, John. Journal de 10 de junho de 1736. In.: HEITZENRATER, 2006, p.63.
_____________. Sermão 38: Advertência contra o sectarismo. 1.9-10. In: RENDERS,
Helmut. Sermões de Wesley: texto inglês com duas traduções em português. São
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.
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Bernardo do Campo: Editeo, 2008.
_____________. Works, tomo I, p.74, p.75. In: LELIÉVRE, 2005, p. 61-62.
_____________. Works, tomo XII, p.38. In: LELIÉVRE, 2005. p.52.
AMARAL, Nathalie. O “novo mundo” de Wesley: relação entre obras, crise e o viver santo na missão
para a Geórgia entre 1735-1738. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - dez. 2015, p. 5-20.

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