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Cad. Pesq. Grad. Letr., vol. 2, n. 1, jan-jun 2012.
QUANDO AS ANIMAÇÕES IMITAM O REAL:
MERMAID, DE OSAMU TEZUKA, E A REPRESSÃO À
PRODUÇÃO CULTURAL DURANTE O REGIME MILITAR
BRASILEIRO
Paloma Silva da Costa (UEPA)
Rafael Alexandrino Malafaia (UFPA)
RESUMO: É sabido que, durante a Guerra Fria, ditaduras “pipocaram” pela América
Latina. No Brasil, este período se deu de 1964 a 1985, após o golpe militar, quando
houve uma repressão aberta e até mesmo velada ao que era aqui produzido em nível
cultural contrário ao regime imposto, fazendo com que muitos artistas fossem
perseguidos, provocando o exílio voluntário ou não. Nesse ínterim, houve uma
produção cultural que ia do alto nível até o caráter realmente duvidoso em todos os
meios e mídias, com o intuito de denunciar a situação do país. No outro lado do mundo,
no Japão, estava acontecendo uma renovação cultural a partir dos primeiros animês
(desenhos animados de origem japonesa) e mangás (histórias em quadrinhos feitas no
Japão e seu estilo próprio de desenho), sendo que um dos principais nomes destas
mídias é Osamu Tezuka (1928-1989), responsável por algumas das obras mais
memoráveis destes meios, como Astro Boy (1952-68), A Princesa e o Cavaleiro (195356), Kimba, o Leão Branco (1950-54), Buda (1974-84) e Adolf (1983-85). O objetivo
deste artigo é demonstrar, por meio de uma análise sucinta, porém com embasamento
teórico de autores como Todorov (1970), Sato (2005) e Luyten (2012), como o curtametragem de animação Mermaid, escrito e dirigido por Tezuka em 1964, ano zero do
regime militar brasileiro, ilustra de forma exemplar o contexto sócio-histórico-cultural
do Brasil durante esta época sombria.
PALAVRAS-CHAVE: Osamu Tezuka. Intertextualidade. Produção cultural. História.
1. INTRODUÇÃO
As animações, após muitos anos, felizmente – junto às histórias em quadrinhos e
jogos eletrônicos – não são mais somente “coisa de criança”, como há muito
disseminado por meios de comunicação e especialistas em educação. Tais produções
artísticas estão longe de ser vistas como próprias para infantes; elas passaram enfim a
ser vistas sob uma ótica mais “adulta” e formativa em nível de caráter cultural, quando
diversos autores fizeram leituras mais humanas e menos caricatas de tais obras e as
apresentaram ao mundo.
Este artigo objetiva demonstrar que, mediante observações e análises, podem
existir, sim, paralelos entre as animações – neste caso, Mermaid1, de Osamu Tezuka, de
1
Segundo informações da internet, o título original desta obra é Ningyo (em português, “sereia”).
Todavia, optamos por manter o título pelo qual tivemos conhecimento da mesma, Mermaid. Fontes:
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1964 – e determinados acontecimentos dentro de períodos históricos em específico –
aqui, a repressão à produção cultural durante o regime militar brasileiro. Tratar-se-á de
como tal leitura é realizada, tanto com os embasamentos teóricos de autores como
Todorov (1970), Sato (2005) e Luyten (2012), quanto considerando o panorama
histórico no qual Brasil e Japão – este, ao contrário de tantos outros países do mesmo
período, atravessava uma fase de notável recuperação econômica – estão inseridos.
Estes paralelos servem para comprovar o quanto as visões e conhecimento dos
autores permeiam suas obras a partir de outras, fazendo as primeiras serem uma rede de
referências textuais diversas, de obras originando outras obras de diferentes gêneros e
modalidades artísticas, inter-relacionando-se ad infinitum, possibilitando estabelecer
diversos pontos de origem para estudo, desde que saiba de onde se queira partir e aonde
se queira chegar.
2. O REGIME MILITAR BRASILEIRO (1964-1985)
Em 31 de março de 1964, os militares deram o golpe de estado que depôs o
então presidente João Goulart (1919-1976) e iniciou uma ditadura militar que durou 21
anos, passando a governar o país através de decretos conhecidos como Atos
Institucionais, determinados segundo as necessidades que se seguiam. O mais
conhecido destes, o AI-5, segundo Couto (1998), oficializou o regime ao fechar o
Congresso Nacional e dar plenos poderes aos militares, substituindo o discurso da
defesa da democracia pelo da Segurança Nacional e cerceamento total da ditadura.
A política econômica de tal período, sustentada diretamente pelo Estado na
economia e também por seu aparato repressivo, teve a intenção de formar, num
ambiente sem resistência, as condições necessárias para o prosseguimento das
transformações iniciadas antes dela, através do chamado milagre econômico, que,
todavia, foi de vida curta (ocorreu entre 1968 e 1973), pois aconteceu às custas do
endividamento excessivo do país (VELOSO; VILLELA; GIAMBIAGI, 2008).
A abertura do regime aconteceu em 1974, durante o mandato de Ernesto Geisel
(1970-1996), cujo projeto era “distensão lenta, segura e gradual”. Os ideais de Castelo
Branco (1897-1967) foram novamente citados, uma vez que este almejava
institucionalizar a “revolução” feita para salvar a democracia e a imagem dos militares
já era questionada após as torturas e desaparecimentos praticados nos anos de chumbo
(OLIVEIRA, 1976).
A administração de João Batista Figueiredo (1918-1999), entre 1979 e 1985,
promoveu uma frouxa transição para os civis. Prometeu, em seu discurso de vitória, “a
mão estendida em conciliação, jurando fazer deste País uma democracia” (COUTO,
1998). No plano político concedeu anistia ampla geral e irrestrita aos políticos cassados
pelos atos institucionais, e permitiu o retorno ao Brasil dos exilados pelo regime militar.
Também extinguiu o bipartidarismo. A reforma política é aprovada, fazendo com que os
dois partidos então existentes – MBD2 e ARENA3 – fossem abolidos, passando a existir
o pluripartidarismo no país (COUTO, 1998).
<http://www.animationblog.org/2009/05/osamu-tezuka-mermaid-1964.html>,
<http://www.animenewsnetwork.com/encyclopedia/anime.php?id=3386>
e
<http://tezukaosamu.net/en/anime/67.html>. Acessados em 06 de agosto de 2012.
2
Movimento Democrático Nacional (MDB) – partido político brasileiro organizado em fins de 1965 e
fundado no ano seguinte, que abrigou os opositores do Regime Militar de 1964 ante o poderio governista
da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) (COUTO, 1998).
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O aumento da pressão popular fez o presidente João Figueiredo sancionar a Lei
da Anistia, em 1979, que, por um lado, perdoava os crimes de quase todos os
perseguidos políticos (com exceção dos guerrilheiros) e, por outro, estabelecia o perdão
para os militares agentes dos órgãos repressivos.
Segundo Couto (1998), a partir de 1983, as forças oposicionistas, com forte
apoio popular, desenvolveram o movimento das “Diretas Já!”, exigindo, por meio de
uma emenda à Constituição, o restabelecimento das eleições diretas para a presidência
da República. Numa manobra política, os militares conseguiram revogar a emenda. No
entanto, um acordo entre o PMDB4 e o PSD5 conseguiu eleger Tancredo Neves (19101985) à presidência (KUCINSKI, 2001).
A emenda constitucional que acabava com os alguns vestígios da ditadura foi
aprovada pelo Congresso Nacional em 8 de maio de 1985. Alguns dos itens votados
foram a eleição direta para presidente (mas em dois turnos) e o fim da fidelidade
partidária.
Finalmente, em 28 de junho, José Sarney enviou a emenda constitucional que
convocava a Assembleia Nacional constituinte, aprovada em 22 de novembro (COUTO,
1998). Eleita em 15 de novembro de 1986 e empossada em 1º de fevereiro de 1987, a
constituinte funcionou até 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.
3. REPRESSÃO A PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL
O AI-5 foi um dos principais decretos estabelecidos durante o regime militar.
Dentre suas determinações destacamos a proibição de ações ou manifestações sobre
assunto de natureza política, liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados
lugares e também fortalecimento da censura que se estendia à imprensa, à música, ao
teatro, cujas ideologias fossem contrárias ao regime, contribuindo, dessa forma, para o
desenvolvimento de um capitalismo sustentado pela formação dos monopólios, em que
a maior expressão foi, ironicamente, o incentivo através de instituições como o
Conselho Federal de Cultura, o Instituto Nacional do Cinema (INC), o IPHAN (Instituto
do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional), a Funarte (Fundação Nacional de Arte,
criada em 1975) e a EMBRAFILME, sendo que a televisão, segundo França (2009),
transformou-se na principal arma ideológica do governo. Mensagens sobre o
desenvolvimentismo brasileiro e a necessidade de manter a “segurança nacional” foram
repassadas à população através de sua programação e, principalmente, das campanhas
publicitárias (propagandas), elementos sine qua non do controle ideológico do Estado.
(FRANÇA, 2009, p. 4)
Através de investimentos significativos e da censura, o Estado burocráticomilitar soube atrair para si o controle das principais vias de comunicação do país, além
disso, proibindo a veiculação de peças teatrais, filmes, livros, novelas – não o teatro, o
cinema, a TV, o mercado editorial (FRANÇA, 2009).
3
Aliança Renovadora Nacional (ARENA) - partido político brasileiro criado em 1965 com a finalidade de
dar sustentação política ao governo militar instituído a partir do Golpe Militar de 1964 (COUTO, 1998).
4
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – partido político brasileiro Fundado em 1980
(COUTO, 1998).
5
Partido Social Democrático (PSD) – partido político brasileiro, fundado em 17 de julho de 1945 e
extinto pela ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965
(COUTO, 1998).
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O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) também tiveram papel crucial nestas ações repressivas
Brasil afora, atuando de forma efetiva em eliminar direitos políticos e individuais
(COUTO, 1998). Somente com a autorização desses meios é que escritores, jornalistas e
artistas podiam realizar suas publicações, seus textos, suas peças, músicas, exposições
etc.
Na contramão da censura, jornais como O Pasquim6 e O Cruzeiro7 se tornaram
meios que mostravam de forma irônica e humorística os absurdos cometidos dos
militares contra a sociedade (MANGOLIN, 2012). O cinema – Cinema Novo – se
reinventou com Glauber Rocha (1939-1981) e sua consciência em representar o Brasil e
sua realidade. Os movimentos culturais conhecidos como a Jovem Guarda8 e a
Tropicália9 são desta época, modificando o cenário musical brasileiro, apresentando, nos
festivais musicais, composições que se tornaram significativas durante as lutas e
protestos contra o regime (ESSINGER, 2002).
4. PANORAMA
HISTÓRICO DO JAPÃO
O Japão, com fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), adotou a monarquia
parlamentarista, baseado no modelo inglês de supremacia do parlamento a partir da
promulgação da Constituição de 1947 (LUYTEN, 2012), no qual o Poder Executivo é
exercido por um primeiro-ministro, líder do partido vencedor das eleições legislativas.
Na prática, o imperador exerce papel simbólico, mesmo sendo o chefe de Estado de
fato, representando o “símbolo do Estado e a unidade do povo”, segundo preceitua a
própria constituição.
A constituição japonesa do pós-guerra, imposta pelos norte-americanos, foi
promulgada pela Dieta em 1947, mantendo-se intacta até hoje, face à ausência de
emendas. Dentre seus artigos, o mais polêmico é, estreme de dúvidas, o nono, que
proíbe a manutenção, no país, de forças armadas – em resumo, o Japão renunciou, aqui,
ao direito de beligerância.
Durante a ocupação estadunidense do país, entre 1945 e 1952, o país passou a
ser visto como um aliado importante de Washington. Neste ínterim, políticas
econômicas e sociais foram implantadas para fazer do Japão uma vitrine de sucesso do
mundo capitalista na Ásia.
6
Semanário brasileiro editado entre 1969 e 1991, reconhecido por seu papel de oposição ao regime
militar (COUTO, 1998).
7
Revista brasileira fundada por Carlos Malheiro Dias (1875-1941), cuja publicação começou em 1928 e
foi cancelada em 1975 (COUTO, 1998).
8
A Jovem Guarda foi um movimento cultural brasileiro surgido em meados da década de 1960, a partir de
um programa exibido pela TV Record, em São Paulo, apresentado pelo cantor e compositor Roberto
Carlos, conjuntamente com o também cantor e compositor Erasmo Carlos e da cantora Wanderléa,
originando toda uma nova linguagem musical e comportamental no Brasil. Sua principal influência era o
rock and roll do final da década de 1950 e início dos 1960, tendo grande parte de suas letras com
temáticas amorosas, adolescentes e açucaradas, algumas sendo versões de hits do rock britânico e norteamericanos da época. Além de Roberto, Erasmo e Wanderléa, destacaram-se no movimento artistas como
Ronnie Von, Sérgio Reis, Jerry Adriani, Vanusa, e bandas como Golden Boys, Renato e Seus Blue Caps,
Os Incríveis, Os Vips e The Fevers (ESSINGER, 2002).
9
A Tropicália foi um movimento cultural brasileiro surgido a partir da influência das correntes artísticas
de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, mesclando manifestações tradicionais da cultura
brasileira a inovações estéticas radicais. O movimento manifestou-se principalmente na música (p. ex.,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé) e em manifestações artísticas
diversas, como as artes plásticas, cinema e teatro brasileiro (ESSINGER, 2002).
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Ainda em 1952, o país recuperou sua soberania, não somente com uma notável
recuperação econômica que acontece entre as décadas de 1950 e 1980, mas inclusive
pela consolidação democrática constitucional, o investimento e intervenção estatal na
economia, e a transferência de tecnologia de países ocidentais, principalmente dos EUA,
Inglaterra e Alemanha Ocidental10 (LUYTEN, 2012).
5. ANIMÊS: CONSIDERAÇÕES
Com o estrangeirismo estadunidense do pós-II Guerra Mundial, que começou a
tomar conta de terras nipônicas, influenciando dos costumes até o idioma, os japoneses
que utilizavam a mesma palavra, douga (“imagens em movimento”), para filmes e
desenhos animados, passaram a se valer desde então da expressão animê – oriunda da
palavra inglesa animation (animação) – para designar desenhos animados japoneses
(glifo nosso) na década de 1950, donos de um estilo próprio (SATO, 2005).
Faria (2008) afirma que a animação japonesa tem uma história tão longa quanto
a ocidental. Segundo Moliné (2004), ela descende diretamente do mangá – cujo marco
inicial foram os choujugiga, criados pelo sacerdote xintoísta Toba (1053-1140), que
eram caricaturas gráficas de animais desenhadas em rolos, nas quais histórias eram
contadas. Ainda com os ukiyo-e (“imagens do mundo flutuante”), em 1814, a palavra
manga foi utilizada pela primeira vez, sendo que o pintor Katsushita Hokusai (17601849) foi o pioneiro em desenvolver sucessões de desenhos e encaderná-los, batizandoos de Hokusai Manga.
Os japoneses começaram a produzir quadrinhos influenciados pelas strips – tiras
– estadunidenses, trazidas durante o fim do isolamento nipônico do resto do mundo na
era Meiji (1868-1912). Segundo Moliné (2004), a primeira história japonesa com
personagens fixos foi Tagosaku to Morukubei no Tokyo Kenbutsu (A viagem a Tokyo
de Tagosaku e Morukubei)11, criada em 1901 por Rakuten Kitazawa.
Segundo Faria (2008),
Essa abertura teve grande influência no desenvolvimento do desenho humorístico japonês,
principalmente pelo trabalho do inglês Charles Wirgman e do francês Georges Bigot, ambos
estabelecidos no Japão e casados com mulheres nipônicas, que fizeram publicações de revistas
satíricas em 1862 e 1887, respectivamente. (FARIA, 2008, p. 159)
No primeiro ano da primeira década do século XX, os japoneses conheceram os
desenhos animados (SATO, 2005) e, em 1913, os desenhistas japoneses, como Seitaro
Kitayama, que, neste mesmo ano, produziu um curta-metragem a partir de desenhos
com papel e nanquim chamado Saru Kani Kassen (“A luta entre o Caranguejo e o
Macaco”). Já a década de 1920 foi marcada por uma grande evolução técnica na
animação, sendo que o ano de 1927 foi marcado duas vezes: Noburo Ofuji produziu
Osekisho (“O inspetor de estação”), o primeiro desenho animado sonoro japonês12; e
10
O pa ís hoje conhecido como República Federal da Alemanha foi dividido em dois durante a
Conferência de Potsdam (que aconteceu entre 17 de julho e 6 de agosto de 1945 na cidade alemã
homônima): a República Federal da Alemanha, ou Alemanha Ocidental, sob jugo de estadunidenses,
britânicos e franceses, e República Democrática da Alemanha, ou Alemanha Oriental, sob controle da
extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Federação da Rússia (ARBEX
JUNIOR, 1997).
11
As traduções dos títulos desta obra e das próximas são todas de Faria (2008).
12
Dez anos depois, criaria também o primeiro desenho animado japonês colorido, Katsura Hime
(“Princesa Katsura”).
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Yasuji Murata produziu pela primeira vez no Japão uma animação nos mesmos métodos
das animações estadunidenses – desenhos sobre celulóide e full animation, fotografando
24 imagens por segundo – a obra foi Tako no Hone (“Os ossos do polvo”).
Durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), militares passam a
controlar os estúdios de cinema e animação para que estes produzissem propaganda
militar, e esta influência estende-se até a Segunda Guerra. Todavia, apesar da censura e
falta de liberdade de expressão, foi em tal período que a animação japonesa mais
evoluiu tecnicamente, graças ao incentivo financeiro do governo para a produção de seu
material (SATO, 2005).
Tal como os mangás, animês também são divididos em tipos e segmentados por
sexo, faixa etária e gênero, existindo, portanto, diversas produções com características
diferenciadas quanto ao conteúdo das histórias, dependendo de seu público-alvo. A
serialização é outra idiossincrasia marcante dos animês, sendo que a história é contínua
e possui um final, ao contrário das animações ocidentais. Além disso, o tempo é
incessante e os protagonistas sofrem os efeitos da idade.
5.1 OSAMU TEZUKA
Na década de 1950, Osamu Tezuka, influenciado pela produção ocidental do
pós-guerra e pelos já mundialmente conhecidos Walt Disney (1901-1966) e Max
Fleischer (1883-1972), revolucionou o mangá e o animê, juntando aos já conhecidos
olhos grandes das animações japonesas, brilhantes técnicas de enquadramento
cinematográfico e animação (que acabaram caracterizando o animê). Tezuka foi um
marco na história do mangá e do animê, chegando a receber o título de Manga no
Namekusei (“deus do Mangá”), sendo que, em seu trabalho, estabeleceu um recorde de
150 mil páginas de mangás, divididas entre 600 títulos e 60 trabalhos de animação
(FARIA, 2007).
A partir de suas contribuições, a maioria dos mangás e animês começaram a ser
desenhados com personagens de olhos grandes que se tornaram características das
animações orientais, e um dos motivos para isso, segundo Moliné (2004), seria pela
maior facilidade de os autores transmitirem emoções sinceras e psicologicamente
profundas. Segundo Faria (2008), Tezuka acreditava que o mangá e o animê eram parte
integrante da cultura japonesa, e conseguiu torná-los tal. Segundo Gravett (2006):
Ele foi o principal agente da transformação do mangá, graças à abrangência de gêneros e temas
que abordou, às nuances de suas caracterizações, aos seus planos ricos em movimento e, acima
de tudo, à sua ênfase na necessidade de uma história envolvente, sem medo de confrontar as
questões humanas mais básicas: identidade, perda, morte e injustiça. (GRAVETT, 2006, p. 28)
Tetsuwan Atom (no Brasil, Astro Boy), de 1951; Jungle Taitei (Kimba, o leão
branco), de 1950; e Ribbon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro), de 1953, são alguns de
seus trabalhos mais memoráveis, sendo que Shin Takarajima (A nova ilha do tesouro),
sua primeira obra em mangá, data de 1947. Porém, somente depois de consagrado como
mangaka13, Tezuka teve sua chance na animação, sendo contratado pela Toei Douga
para co-dirigir e fazer o roteiro de Saiyuki (Alakazam, O Grande), longa-metragem
baseado em um conto chinês. Tal experiência o levou a fundar seu próprio estúdio em
1961, chamado Mushi Production (LUYTEN, 2012).
Em 1963, um ano após a Otogi Production produzir Manga Calendar, a primeira
série de animê na TV japonesa, com poucos capítulos produzidos e exibição irregular,
13
Em português, “desenhista de mangá”.
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abriu-se o caminho para que a série Tetsuwan Atom, baseada na série de mangá
homônima, de Tezuka, fosse exibida (LUYTEN, 2012). Ao contrário de Manga
Calendar, Tetsuwan Atom teve episódios regulares semanais durante três anos,
conseguindo patrocínio e altos índices de audiência e, devido a sua regularidade, é
muitas vezes considerada a primeira série de animê (SATO, 2005), abrindo portas para
várias outras lançadas ainda no mesmo ano, dando início ao sólido mercado dos animês
para televisão.
5.2 MERMAID
Mermaid é um curta-metragem de oito minutos produzido pela Mushi
Production em 1964, tendo roteiro e direção do próprio Tezuka, produção de Atsushi
Tomioka e desenhos de Shigeru Yamamoto e Kiyomi Nunamoto, com a trilha sonora de
Isao Tomita, sobre a peça Prélude à l’après-midi d’un Faune14, de 1894, do músico e
compositor francês Claude-Achille Debussy (1862-1918).
A história se passa em um lugar sem nome, começando com um rapaz que,
sozinho em uma praia, encontra uma sereia e, após um dia junto a ela, convence-a a ir à
sua casa, na cidade. Chegando lá, o rapaz coloca o ser mitológico em um grande
aquário. Ao mostrá-la para os pais, eles veem somente um peixe e logo começam a
duvidar da sanidade do rapaz, entregando-o para as autoridades. Estas, mantendo-o
preso, passam a torturá-lo, perguntando sobre a origem de tal ser e, como não obtêm
uma resposta satisfatória, torturam-no continuamente para que volte a ter uma
mentalidade padronizada e simplista, e, com o tempo, torne-se incapaz de ver ou
lembrar o que vira na praia.
No fim, o jovem escapa do confinamento, voltando primeiro a sua casa, onde
não vê mais uma sereia e sim somente um peixe (resultado do recondicionamento
psicológico). Ele o leva em mãos para a praia, para soltá-lo na poça d’água onde
encontrara a sereia.
Na praia, o rapaz, já encurralado pelas forças da lei, leva o peixe para o mar e
então é novamente surpreendido pela criatura mítica. Por fim, sendo observados pelas
autoridades e por transeuntes sem tipo algum de emoção, vão-se embora oceano adentro
– ele já transmutado em tritão, a forma masculina da sereia.
6. ANIMÊ X PERÍODO HISTÓRICO
Existem quatro pontos de convergência entre a obra de Tezuka e o objetivo
estipulado neste artigo – demonstrar como o supracitado curta-metragem ilustra o
contexto sócio-histórico-cultural brasileiro durante o regime militar.
A primeira consideração parte das prerrogativas de Walty (1985, p.14), quando
afirma que “a ficção é o estilo de narrativa que contém personagens e estória
verossímeis ou não, ambientada em um tempo e espaço diferenciados do nosso”.
Podemos imediatamente compreender que a ambientação da animação aqui estudada
não possui um período histórico definido, podendo ser em qualquer lugar e tempo, logo
podendo ser situada na época dos regimes militares na América Latina, uma vez que
estes também se valeram de exílio e torturas para pessoas que não se enquadrassem no
padrão de não-contestação ao regime vigente.
14
Peça baseada no poema “L’Après-midi d’un faune”, de Stéphane Mallarmé (1842-1898), escrito em
1865 e publicado em 1876, com ilustrações do pintor francês Édouard Manet (1832-1883).
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Partindo daí, já podemos contextualizar a obra dentro do panorama da ditadura
militar brasileira a partir do norte estabelecido no resumo deste trabalho, considerando o
rapaz como um dos pensadores livres das amarras definidas pelo status quo vigente, o
de não ir contra as regras determinas pelo estado opressor do povo. Sua atitude em ver a
sereia e conviver com ela já é uma leitura dos artistas que produziam cultura contra o
padrão, sendo perseguidos e reprimidos por tais ações. Seus pais (o do protagonista da
obra), ao contrário, estão tão adequados a tal padrão que entregam o filho às autoridades
competentes. Estas, como podemos perceber, ao contrário do protagonista (o rapaz) e
seus pais, e da sereia, não possuem rosto, representando o poder do estado totalitário e
como este atua na sociedade em questão.
O encontro com a sereia, no começo da película, é o segundo ponto, sustentado
por Todorov (2008, p.92), ao dizer que (o) “universo sobrenatural não deve suscitar
dúvidas. O fantástico nos põe ante um dilema: acreditar ou não acreditar? O
maravilhoso leva a cabo esta união impossível, propondo ao leitor acreditar sem
acreditar verdadeiramente”. A sereia é um ser que não está presente em nosso cotidiano,
mas que, inserida em um plano narrativo, é perfeitamente aceita pelo público. Porém,
entrando em acordo com o ponto levantado anteriormente, ela pode ser vista como a
inspiração do artista para criar arte, e, como visto no tópico anterior, tal percepção do
mundo e comportamento são proibidos.
E notemos que a transmutação do rapaz em tritão, ao final da animação, pode ser
compreendida com uma libertação completa do meio em que vivia anteriormente, com
suas emoções e sentimentos reprimidos – descobertos e libertos pelo encontro com o ser
mítico no começo da narrativa. É aqui que se pode compreender o terceiro ponto a que
Tezuka faz referência, porém, nesta obra em particular, de modo totalmente
inconsciente, a todos os que sonham e todos os que sofrem enquanto vítimas de regimes
ditatoriais a partir de Cândido (2006, p.13), quando este diz que “nada mais importante
para chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la.”.
Sendo assim, o último ponto surge para juntar os três anteriores de modo
aceitável, inteligível e conclusivo. Tenhamos em mente que, em nível narrativo,
qualquer ambientação cujo cenário onde a sociedade é comumente dividida em classes
dominadas umas pelas outras, sob diversas características, já pode ser considerada,
segundo Figueiredo (2007), como uma distopia, quando comumente existem liberdades
vigiadas ou mesmo inexistentes, onde o autor faz uma sátira da sociedade atual ou
anterior, apontando suas mazelas de modo sutil ou mesmo as escancarando ao ponto do
ridículo. Isto é o que o Tezuka pratica em Mermaid, onde o personagem principal não é
membro da casta regente – são os militares que submetem as outras classes, uma vez
que tais distopias são descritas de acordo com as expectativas de sua época (AGNES
HELLER apud MARTINS, 2007, p. 40). Por ter um pensamento aflorado e expresso de
modo ímpar, o protagonista é severamente punido em consequência.
Para completar tal análise, a trilha sonora da obra cria uma tensão harmônica
com a narrativa, enfatizando os momentos sublimes quanto os de tensão, além do
encerramento, praticamente se tornando um dos elementos que mais contribuem para o
desenvolvimento da película.
Baptista (2007, p.22) reforça isso quando afirma que tal efeito é “um acréscimo
de informação, de emoção, de atmosfera, conduzido por um efeito sonoro (...), como se
esse efeito emanasse naturalmente”. O mesmo autor, citando Chion, diz que “a música
cria um valor agregado à cena, de ritmo e movimento, sugerindo uma sensação de
ambigüidade que é importante na leitura do filme” (idem, p.23).
Para concluir, nota-se que, mesmo considerando o fato de não haver nenhum
diálogo verbal na obra analisada, existe uma homenagem subliminar aos primórdios do
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cinema feita por Osamu Tezuka no curta-metragem, uma vez que a sétima arte nunca foi
“não-sonora”, e, sim, muda, privada de palavra. Logo, tal esta não se tornou sonora,
porém falada (SILVA, 2007), uma vez que, desde as origens do cinema, sempre existiu
a presença de intervenções sonoras, ao vivo, com o uso de quaisquer acompanhamentos
musicais.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois destas análises, podemos concluir que Osamu Tezuka fez uma crítica
sutil e – porque não dizer? – poética ao regime militar que acontecera não somente no
Brasil, mas em diversos países da América Latina, Ásia e África, durante o período da
Guerra Fria e a bipolarização do globo (ARBEX JUNIOR, 1997). A pergunta que segue
é: ele o fez de forma consciente ou não? Talvez nunca saibamos.
Assim sendo, não desconsideremos em momento algum a capacidade da arte de
fazer metáforas de sua época. A partir da afirmativa de Bakhtin (1999) ao dizer que as
relações entre linguagem e sociedade são indissociáveis, torna-se possível compreender
como Mermaid compõe essa relação, não só por considerarmos uma animação que
possui uma historicidade, mas também por ela refletir sobre a história, seja como
produção de referência oriental, seja como visão de nossa história durante a ditadura
militar.
Dessa forma, não é aconselhável tomar tal capacidade da arte como irrelevante,
com o objetivo de tornar possível aprender os erros cometidos em tais períodos e fazer
com que não sejam repetidos. Logo, o conhecimento histórico é fundamental para se
compreender tais fatos e em que contextos aconteceram, sabendo o porquê de sua reexecução não ser permitida.
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