Caio Fernando Abreu - Centro de Ensino Guroo

Transcrição

Caio Fernando Abreu - Centro de Ensino Guroo
Caio Fernando
Abreu
Além do ponto
e outros contos
Seleção e organização
Luís Augusto Fischer
ea
editora ática
Além do ponto e outros contos
<1:>
Herdeiros de Caio Fernando Abreu, 2009
Editora-chefe
Editor
Claudia Morales
Editor assistente
EIPílio Satoshi Hamaya
Luís Augusto Fischer
Luís Augusto Fischer
Seleção dos contos
Textos de apoio
Coordenadora de revisão
Revisora
a obra pela vida
Ivany Picasso Batista
Cláudia Cantarin
Editor de arte
Diagramadora
Design
Editoração
A vida pela obra,
Fabricio Waltrick
Vinicius Rossignol Felipe
Thatiana Kalaes
Negrito Produção Editorial
eletrônica
Pesquisa iconogrâfica
Foto do autor
Estúdio Gráfico Design
Sílvio Kligin (coord.)
Marcos Santilli
Imagem de capa
Fotografia de Vania Toledo
A Editora Attca agradece à Agir Editora LIda.
pela cessão dos contos para publicação
CIP-BKASIL.
SINDICATO
nesta antologia.
CATALOGAÇÃO
NACIONAL
DOS
NA
EDITORES
FONTE
DE LIVROS,
RJ
AI45a
Abreu, Caio Femando.
1948-1996
Além do ponto e outros contos I Caio Fcmando Abreu. Ática, 2010.
I 28p. - (Boa Prosa)
1.00. -
São Paulo:
Inclui bibliografia
ISBN
978-85-08- t4000-8
I. Conto bmsileiro.L
Fischer, Lufs Augusto,
1958-.11. Título. li!. Série
10-4183.
CDU:
coo: 869.93
821.134.3(8t)-3
ISBN 9788508 14000 8
2010
I' edição I I' impressão
Impressão e Acabamento EGB - Editora Gráfica Bernardi - lida.
Todos os direitos reservados
pela Editora
Ática
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Se o seu negócio, leitor, é passar alguns momentos lendo
uns textos inofensivos, que não mudem nada em sua vida e
passem sem deixar rastros, pode parar por aqui: feche agora mesmo as páginas desta coletânea de contos e se dirija a
outro livro. Procure literatura de autoajuda, mistificação da
vida, um desses passatempos. Com Caio Fernando Abreu, o
buraco é mais embaixo.
O caso é que os textos de Caio nunca passam batidos pelo
leitor. Seja pelo tema ou pela linguagem, seja, mais ainda,
pelo astral do conjunto do relato, não tem como o leitor simplesmente passar pelas palavras frases parágrafos textos que
ele escreveu, de vez em quando assim mesmo, sem aquela
pontuação que ameniza e deixa o leitor no conforto. Não,
senhor: aqui se trata de literatura levada a sério, como uma
das grandes artes que a humanidade inventou.
Para Caio, a literatura deve ter a mesma força da vida.
Pois a vida não tem o poder de derrubar as melhores intenções, traindo esperanças ou fazendo-as brotar onde menos se
espera? É, ela é bem assim; e bem assim Caio concebeu seu
exercício de escrita - como uma espécie de vida intensificada, vida concentrada em palavras. Escrevia com um amplo
domínio do repertório das emoções humanas, que em sua
literatura comparecem no palco do texto, expondo suas di
ticuldades e virtudes bem ali, diante do leitor, que por isso .
mesmo empresta sua solidariedade ao que vai lendo.
Falamos em palco, e vem ao caso, porque Caio foi um homem de teatro, também. Estudou um tempo na universidade,
escreveu para teatro, adaptou textos para a cena, tudo isso
mostrando que tinha noções muito fortes de uma das coisas
mais importantes da linguagem teatral - a representação.
E quem diz representação diz re-presentificação: o teatro,
tanto quanto a literatura de Caio Femando Abreu (toda ela,
conto, novela, poesia, crônica), faz acontecer de novo, diante
do espectador, um drama, uma comédia, uma tragédia, alguma coisa. Bem ali, na cara do público, e contando com sua
participação.
Esta coletânea abrange os vários anos em que Caio atuou,
para formar um quadro representativo de sua trajetória como
contista, e é dedicada especialmente à plateia que principia a
tomar contato com a sua obra e com a mais alta literatura.
Com você, prezado leitor, respeitável público, alguns
contos de Caio Femando Abreu, teatrólogo mesmo quando
foi contista. Uma das melhores vozes de um tempo duro, o
tempo da ditadura no Brasil e da Guerra Fria no mundo todo.
Uma testemunha vibrante da força do rock'n 'roll e um homem solidário com as dores que só o bolero pode expressar.
Um escritor que não pediu desculpas para ser triste quando
podia ter apelado para isso, nem pediu aplauso para expressar solidariedade quando descobriu o melhor da humanidade
no meio do lodo. Um grande escritor.
Luís Augusto Fischer
Sumário
Fuga
.
9
Os cavalos brancos de Napoleão
.
15
Além do ponto
.
23
O coração de Alzira
.
27
O príncipe sapo
.
31
Triângulo amoroso: variação sobre o tema
.
41
Para uma avenca partindo
.
45
Linda, uma história horrível
.
50
O destino desfolhou
.
61
Holocausto
.
74
Recuerdos de Ypacaraí
.
79
.
88
Sob o céu de Saigon
.
97
Aniversário
. 103
Aqueles dois
. 107
Retratos
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Caio Fernando Abreu com todas as letras
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121
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IIlhlj()gf"(~fia
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Fuga
Para Cecília Nisemblat
Eles
tinham seisanos de idadee iam fugirjun-
tos. Lento, o menino enfiou o pião no bolso, sua única
posse, e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a
voz da mãe num prenúncio de reclamação está quase na
hora do jantar, onde é que você vai? Não respondeu. Em
silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída
em imaginação durante horas de quietude emprestava a
seus passos uma precisão até então inédita, permitindo-lhe a audácia de não responder, ignorando eventuais palmadas. O trinco quase machucou a mão no ato de fechar
a porta, mas ele já começava a se distanciar das coisas que
formavam "o que ficava", E o que ficava era tanto que praticamente não tinha nada além de: um pião no bolso e
uma ideia na cabeça.
•
O morrer do sol colocava uma cor também de fuga
nas casas, nas coisas, nas pessoas que cruzavam numa melancolia de anoitecer. Em breve as sombras se afirmariam
em escuro e ele não estaria mais ali. A ideia poderia quebrá-lo por dentro, porque era duro de repente não estar
mais num lugar. Mas ele nem se machucava, há tanto já
9
adivinhara os movimentos interiores prevenindo os receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices
que se amontoariam bruscas sobre seu coração de seis anos
de vida. Portanto, estava preparado. Dentro do tempo
que vivera, dois dias era uma longa preparação de esquecimento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné antes de dormir. Estava todo
delineado. E fugia.
Caminhava devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que era insípida,
quase estalava a língua de puro prazer. Mãos nos bolsos,
cabeça baixa, ah nunca se sentira tão definitivo. Era seu
primeiro crime, e tão longamente premeditado que não
havia espanto nem temor. Como um profissional da fuga,
ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra para trás, vezenquando ele se voltava
para ver se ela ainda o acompanhava. Ainda. Expressava
seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se
apenas esse medo, o de estar sozinho. Mas aquela sombra
imensa e achatada contra o cimento não deixava de ser
uma segurança, embora disforme.
Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o
calçamento. Depois enfiou-a no bolso, numa sabedoria
de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risco fino,
irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma senhora com a bolsa grávida de compras. A
mulher encarou-o com desconfiança. Ele parou, o medo
se transformando em desafio nos olhos que meio furavam
a natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, mediam-se expectantes. Pensou em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão - ela não sabia
de seu crime. Então esperou. Até que a mulher abriu a
bolsa e estendeu-lhe dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência humana e en-
10
Ihlllçl)\ nu bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta
li! mulher morria na esquina quando ele se interrogou,
1\11111:1 primeira incompreensão.
Saíra de casa apenas com
li Ili.!o, .lgora já tinha dois biscoitos,
uma sombra, uma
pedi inhu branca e um acontecimento. Fugir não era então
I 'I, despojando
de coisas? Não entendeu, mas o poste
'1"1' m.rrcava longe o lugar do encontro suspendeu a dúvid.l, Preocupado, encaminhou-se para lá.
Não via a menina. Correu para o poste, investigou as
11I\\O.lSque passavam mas nenhuma tinha jeito-de-meni11.1 que-ia-fugir,
Coçou a cabeça. Num desânimo, esperar.
\lol11odou a irritação no meio-fio, tirou as posses do bol11. Começava por um biscoito, depois brincava com o
pi.iu, depois o outro biscoito, depois desenhava no chão
10111
a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecid.1. Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco
.rlulado com a ausência da menina e teve que planejar
.I~oes em que não havia pensado. Começava
a desconfiar
\l','iamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou
lima série de queixas que abalaram o prestígio da menina,
(' preparava-se para pensá-Ias quando o biscoito sobre a
c.ilça fez um jeito fascinante, assim meio pedindo para ser
cornido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois
dias que guardava mesmo um pouco de fome formando
11m espaço branco no estômago. Rompendo
com o planejamento, devorou voraz os dois biscoitos, depois misturou
pedaços de unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um menino que passava
olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade
da
menina e perguntou objetivo:
- Quer fugir comigo?
Inexperiente dessas coisas, o outro arregalou os
lhos:
-Quê?
11
-
Quer fugir comigo?
Pra onde?
- Daí que eu quero o pião agora.
Desacostumado a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro já ia longe,
risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa
não cumprida. Todo magoado com a desonestidade alheia,
voltou a pensar na menina. Encaminhou-se para a casa
dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou
pela janela.
- A Lucinha está?
- Não. Foi no aniversário da menina aqui do lado.
Meio que tropeçou no inesperado da coisa. Devia
ler ficado pálido, porque a mãe-da-menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo
alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela
onda verde bem claro que se quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar.
Disse não não tenho nada, e foi saindo de cabeça
baixa. Já não só duvidava da menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele
amontoado de desencontros. De dez minutos para cá
aconteciam coisas tão incompreensíveis que estava quase
desistindo. Por uma questão de dignidade, bateu na
porta da casa de menina-que-estava-de-aniversário,
que
apareceu de vestido cor-de-rosa perguntando se ele tinha
trazido presente. Ele desentendeu um pouco mais, ainda
assim fez voz firme e pediu para falar com a menina-que-ia-fugir. Com o maior cinismo do mundo, ela brotou de repente duma nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita - ela, a falsa, que
vivia com os fios na boca. Mais grave: um copo de guaraná e uma cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha
em roda a sua vida.
Teve vontade de dar um tiro nela. Mas estava tão
desarmado que só conseguiu perguntar com voz meio irregular:
- Você não ia fugir comigo?
- Ia - disse a menina mordendo a cocada. E ai! o
espaço branco da fome cintilou dentro dele.
12
13
- Não sei ainda. Qualquer lugar.
- Pode ser Vênus?
-Pode.
- E Gotham City?
-Pode.
você?
E ... e... (a geografia falhava).
Quer ou não quer?
Não sei, o que é que você me dá se eu fugir com
o menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu
o brilho de cobiça nos olhos do outro:
- O pião. Quer?
O outro fez cara de dúvida:
- Sei não. Isso presta?
- Quer ou não quer? ("É pegar ou largar", dizia o
gângster na televisão).
-Quero.
Estendeu a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.
- Agora não. Só depois que a gente chegar lá.
-Lá
onde?
- No lugar, ora.
- Que lugar?
-
O lugar para onde a gente vai fugir.
Mas você não disse que não sabe onde é?
Disse.
Então pode levar anos.
E daí?
Esperei você até agora. Por que que você não foi?
Por causa do aniversário, ué.
E o que que tem isso?
Tem que fugir a gente pode todos os dias, mas
univcrsário é só de vezenquando.
Tinha selecionado uma porção de adjetivos pejorativos para jogar em cima dela, mas o pretexto era de uma
lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de
tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois lon~os dias de meditação ir-se desfazendo como a cocada na
boca da menina.
Ela olhava para ele, ele pensava na frase, pensava,
pensava, ai, o espaço branco aumentando por dentro,
uma baita raiva da menina, da mulher que dera os biscoitos, do moleque que fugira com o pião, vontade de bater
neles todos ou, na impossibilidade, sapatear até ficar roxo
e a mãe chamar o médico num susto. Mas os barulhos da
festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda
mais o guaraná, o espaço em branco aumentava até o não-suportar-mais.
Indeciso ainda, virou o pé leve no chão. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:
- Será que ela deixa eu entrar sem presente?
14
Os cavalos brancos de
Napoleão
Para Graça Nunes
A
princípio os cavalos eram mansos. Inofensi-
vos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de
domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando
da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando
isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez
estivesse desde sempre, pois, convenhamos, ver cavalos, e
ainda por cima brancos - não é muito normal. E quem
sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de
imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente
eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde
eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro
alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que
não teriam sido propriamente um mal: Napoleâo os teria
trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de
repente vieram à tona. Como se agúardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E
prudentes, também.
Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional.
1S
Sli.l vid.l se arrastava juridicamente,
como se estivesse des-
Deu-se nas férias, n~ praia, quando olhou para as
nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos - ainda
mais exatamente, brancos - talvez tivesse mesmo a ver
com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria
visto camelos? ou touros, se seu nome fosse juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância.
Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no
primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que
u tucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só,
Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto
nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea
de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.
Como ele insistisse, afastou os raybans e deu uma
espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito
de cavalos. Tranquilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que
os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre
elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grandes - equinidade absoluta nos
movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E
começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já
é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de
coisas outras, até o momento em que não se pode mais
prescindir do que foi simples constatação. Em breve os
cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha
Christie.
Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem
mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta
vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa
a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém.
Afundou neles, corpo despregado da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos,
relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para
tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram.
De volta. à areia, Napoleão olhou com certa superioridade
para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza
tão oposta à brancura dos cavalos.
Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr do sol para seus
furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afa-
16
17
I ln.ulo
à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refei-
~tw«, lodos dias sempre se desentolavam movimentadíssimos julgamentos. Dos quais ele era o réu. Acusado de não
dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca
para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha.
Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes
laboravam criados mais íntimos, sempre concordando
m a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse
jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse
advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome
nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava
perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou
quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal
maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele
não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo
lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava
derrotado. Um derrotado em potencial, pois, ele viu pela
primeira vez.
g.II, «)cinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam
em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito,
jamais o encontravam sozinhos, embora, irnaculadamente
brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-lhes o sexo. E que
importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia
dormir com eleslas), portanto era indiferente sua sexualidade. Magava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em
jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama,
na tranquilidade de nada exigir em troca. Tranquilo, então,
ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas
próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos
surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e
força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava
agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-lhe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou - um pouco por ser demasiado católica,
medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.
Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os
cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois
dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração.
Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos.
Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.
Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do
tribunal num dia em que ele estava especialmente infla-
18
mado na defesa de um matricida. A princípio ainda ten
tou prosseguir, fingiu não vê-los, traição, opção terrível
entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua
mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados.
De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleâo começou a falar cada vez mais baixo, mais lento,
até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em
choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que
não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam. O quê? foi a pergunta que ele se
fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados? Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo
assim acompanharam-no
até a porta de casa instalados no
banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou
devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas mãos. Nesse instante,
a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou
acompanhado de Marta.
AMIGO (carinhoso e complacente) Não há de ser
nada, Napoleâo. Isso acontece até com os melhores. Você
não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.
MARTA (pousando a mão no ombro de Napoleão)Afinal, foi a primeira vez, meu bem.
NAPOLEÁO (encarando-os, agradecido) -Vocês
viram,
então?' Viram? Ah, eu não sei como "explicar. Parecia tudo
tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.
AMIGO Isso acontece, Napoleão.
MARTA Não se desespere, querido.
AMIGO - Você não teve culpa.
MARTA - Você estava nervoso.
19
NAPOLEÃO (obsessivo) - Mas vocês repararam na
irude deles? Repararam mesmo?
AMIGO (conciliador) - Natural que ficassem revoliados, Napoleão, Afinal, são parentes, clientes, pagaram
s tubos. Queriam um serviço benfeito.
MARTA- Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete
anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de
habeas corpus ...
NAPOLEÃO(erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas corpus? Mas eu estou falando
é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se
fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em
desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou
perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o
coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!
Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no
dia seguinte. Ainda indiferentes, remotos. A ira cresceu de
novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio.
Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão
se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o
corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em
dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em
caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou
mulher? Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra - toda
a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.
Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de
Ésquilo, Sófocles e Eurípides para descobrir quando devia
ou não ofender-se. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranoico, comunista, ateu, bippie,
narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.
Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar
compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele. Consistia em
permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos
reais. Exclusivamente pretos, e o mais cavalares possível,
isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada
conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada.
Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais
agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra
ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus
antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos,
os criados, os colegas - todos cresciam em exigências,
magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele,
recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.
Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais .tarde, os enfermeiros
comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo, mesmo, ninguém
ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico
entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele
rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inaniçâo, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou cha-
20
21
.11
mar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inúteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em
tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência.
Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada,
a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e
prudentemente
feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer
coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos
maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos
depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um
homem estranho, nu em pelo, cabelos ao vento, galopando em direção ao crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.
Além do ponto
Para Lívio Amaral
C
hovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro
da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu
sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de
.onhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito
desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma
garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um
táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse o táxi não
poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com
força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio,
mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina
.sburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele
sax gemido e o olho dele posto emcima de mim, ducha
morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda,
meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu
limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endure.ia logo sobre os pelos, eu enfiava as mãos avermelhadas no
fll ndo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças
d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os
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braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um
gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui
pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse
que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que
ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase
certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o
dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir
ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e
sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois
de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo,
por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma
coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer
que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva
toda que caia, caia, caia, e tive vontade de voltar para algum
lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum,
ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta
que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas
não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como
se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao
encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com
cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois
tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando
das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa
que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu
apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido
querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável
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dele me esperando quente e pronto. Um carro passou mais
perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas
vc conseguisse torcê-Ias, então decidi na minha cabeça que
depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas
~orno você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele
me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me
l hamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar
parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua
interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter
estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da
(idade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a
minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo,
via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva,
11<'> uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito.
Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando
o no desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva,
era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito per10 agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto,
tomo se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha
lOupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente
IIIinhas mãos entre as suas, acariciando-as
devagar para
.iquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escuIcccr, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo
que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama
l.irga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e
l;tí e tudo tão de repente, para ptoteger a garrafa apertei-a
mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água
d.l chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também
estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo,
nao beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio
inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei
nn lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele
l hamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era
para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. Chovia
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scmpre e eu custei para conseguir me levantar daquela poç:a
de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que
era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar
mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os
ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia,
não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisívelligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido
eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas
como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em
direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos
misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca
com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino:
bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati
outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis
charná-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma
vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre,
tudo ficara muito confuso, ideias misturadas, tremores, água
de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo
um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo
sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva,
pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia
muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não
conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem
tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar
batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo
batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta
porta que não abre nunca.
EiS
que de era uma pessoa e ela outra, descobriu
dl' repente, afastando as cortinas. E eu que quis fazer de
mim algo tão claro como um rio sem profundidade, disse
p.\la si mesma, em distração colocando em movimento os
.uornos de poeira. Curvou-se até o chão para apanhar um
1',I.lmpo. Quando se curvava assim, o cabelo caindo no ros111, .issumia um ar humilde de coisa grande que se curva.
Ela era toda grande, de mãos e pés e olhos e busto, mas
11111 grande que não se impunha,
não feria. Um grande que
1111\ rsava como quem já vai embora. Ela parecia levantar voo,
1111 ,~lIrpreendente de que ao elevar-se não deslocasse o ar em
1111110
nem provocasse ventania. Até mesmo seu coração era
1',I.\ll<.le.Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde
Iit .1 guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas
,I." quais se gosta? Devia ser. Para tornar mais fácil o desenlúl.lr do pensamento, ela concordava': E argumentava de si
11.11.1 si, lembrando músicas e poemas vagamente vulgares
'1111" /:llavam em coração: pois se alguém fazia uma música
1111 11m poema forçosamente devia ser mais inteligente do
11' li' da, que nunca fizera nada. Alguém mais inteligente cerr.uucntc saberia o lugar exato onde ficam guardadas essas
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o coração de Alzira
Espiou o marido nu, as cobertas afastadas por causa
do calor. Ai, era tão moço ainda, tão não-sei-como que
dava uma vontade meio bruta de machucá-lo só porque
era assim daquele jeito. Sentou na poltrona à beira da
cama, espiando o dia. Mas ele é uma pessoa, eu sou outra,
repetiu, repetiu, recusando a claridade que entrava pela
janela para se encolher dentro dela, toda sem problemas
nem angústias. De manhã bem cedo.
- Jorge - chamou, a voz ressoando estranha no
silêncio. E desejou que ele abrisse os olhos e sorrisse dizendo: Alzira.
Mas ele não abriu os olhos, não sorriu nem disse. Enrâo ela pensou e esta empregada que não chega. Era de
manhã-bem-cedo e a empregada só chegava de manhãbem-tarde. A dor que sentia de ser assim tão como era.
Sorriu devagar, prosseguindo na doçura que sempre fora o
seu caminho. O marido tinha cabelos no peito, pernas
rossas, braços fortes. Ela era gorda, mole, grande. O rnari10 tinha olhos azuis. Ela, pretos. Pretos como a noite, ele
.screvera num poema antes de casarem. O marido tinha
mãos quadradas, dedos compridos. Ela grandes, redondas,
gordas, acolchoadas. Leves como as de uma fada - o poema era o mesmo, mas as mãos também seriam? Precisava
.ncerar o chão, mandar as cortinas para a lavanderia, fazer
'afé. Ah, era domingo. Só agora ela lembrava. A empregada
nâo viria. Era dia do marido dormir até tarde. Era dia dela
mesma ficar na cama até as dez. Era dia de tantas coisas
diferentes dos outros dias que ela conteve a respiração, abalada no que estivera construindo e preparando para um dia
que não seria mais.
Vagou inquieta pelo quarto. Era domingo. Se fumasII~, acenderia agora um cigarro para ficar com ar de pessoa
distraída. Mas assim tão sem vícios e portanto sem ter sobre
li que derramar a distração que desejava, ai assim ficava
1,\0 solta. Perdi até o sono, suspirou, como se o sono fosse a
'lia última reserva de segurança. Nem de ler eu gosto, acresc cntou. E estou com preguiça de trabalhar e tenho vontade
d<.'ralar um palavrão, que merda também. Sem sentir, con\l'guira a distração que procurava. Mas agora que chegava a
(,1.\, consciente de que chegara, a distração se esgotava. FaLI se necessário ir adiante. Mas o que vinha depois de uma
distração? Não tinha em que nem como se concentrar.
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coisas. Coração, então, repetiu para si, consumando a descoberta. E acrescentou: mas ele está tão longe. Podia dar um
tom de desalento ao que pensava, mas podia também solicitar, agredir, exigir. Qualquer coisa que doesse.
Ai, a necessidade que tinha de doer em alguém, como
se já estivesse exausta de tanto ser grande e boa. Por um
instante conteve um movimento, toda concentrada no desejo de ser pequena e má e vil e mesquinha. Até mesmo um
pouco corcunda ou meio vesga de tanta ruindade. Ou
continuar a ser grande, mas sem aquela bondade que pesava, para tornar-se lasciva. Obscena. Mas o máximo de obscenidade que conseguia era entrar de repente no banheiro
quando o marido tomava banho, afastando as cortinas
para entregar a ele um sabonete ou perguntar qualquer
coisa sem importância. O importante era que o motivo
não fosse importante. Justamente aí estava o obsceno. Depois saía toda corada, pisando na ponta dos pés e rindo um
risinho de virgem. Virgem. Ai, estava tudo tão mudado
que as meninas não davam mais importância à virgindade,
andavam de calça comprida, cortavam os cabelos curtinho,
fumavam, até fumavam, meu deus. E os rapazes, então,
cabelos imensos, colares, roupas coloridas. Meu deus, ela
repetia para si e para os outros que não sabia mais distinguir um jovem de uma jovem, e que isso a perturbava
como se tivesse um filho ou uma filha e não soubesse dizer
se era mesmo filho ou filha. Ai, era terrível.
Nunca tivera instrumentos para forçar a atenção num determinado ponto. Era tão pobre. Tão.
Ai.
Caminhou até o banheiro, afogou a agitação abrindo três torneiras ao mesmo tempo. A água escorrendo gerava uma espécie de paz dentro dela. Molhou as pontas
dos dedos, passou-as devagar pelo rosto. O espelho refletia um rosto amassado de pessoa em estado de desordem
interna e externa. Começou a escovar os cabelos, fechou a
gola do robe amarelo, deu dois beliscões nas faces para
torná-Ias mais coradas. Voltou ao quarto. O marido mudara de posição: encolhido feito feto, mãos cruzadas sobre
o peito. Alzira sentou na beira da cama. Espreitou o dia
avançando, o medo avançando. Estendeu a mão num experimento de ternura. Retraiu-se. A lembrança da discussão do dia anterior barrava qualquer gesto. Que fazer, que
fazer, que fazer, perguntou-se lenta, sem entonação, Não
havia resposta. Engoliu algo parecido com um soluço. A
cabeça encostada no travesseiro, espiava o dia crescendo.
De repente deu com o olhar do marido fixo nela. Aprumou-se inteira, preocupada em afetar uma naturalidade
de pessoa surpreendida em meio à higiene íntima.
- Hoje é domingo - disse.
- Pois é - concordou o marido.
E ela queria tanto mas tanto tanto que ele dissesse o
nome dela assim bem devagarinho Al-zi-ra como se as sílabas fossem uma casquinha de sorvete quebrada entre os
dentes e quase perguntava como é mesmo o meu nome?
você lembra do meu nome? mas não adiantaria ele apenas
a olharia surpreendido e se dissesse seria um dizer mecânico não aquele dizer denso lindo fundo e ela não queria
isso não queria. Então falou:
- Dia de dormir até tarde.
E dormiu.
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o príncipe
sapo
À memória de Carmen da Silva
Bonita
mesmoela nunca foi, sobreissotodos
sempre estiveram de acordo. Ainda mais agora, já quarentona, os cabelos muito finos e lisos eternamente presos
num coque sem graça, os olhos parados numa expressão
estranha, misto de ironia e tristeza. Mas não se pode negar
que tinha algo diferente - alguma coisa assim que transendia o corpo e ficava pairando ao seu redor como ...
'orno uma névoa vaga de manhã de outono. (Ia dizer auréola, mas essa palavra lembra santa e isso eu garanto que
.la nunca foí.) O fato é que ela possuía uma graça espeial, talvez o modo como se debruçava à janela, ou mesmo
o jeito oblíquo de sorrir apertando os lábios, como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior.
Teresa era seu nome. Nome comum que não lembra nada nem ninguém - a não ser as duas santas, a
'l cresinha de Jesus na música infantil e a Teresa Cristina
imperatriz, com as quais aliás nem um pouco ela se parccia. Pois Teresa vinha de uma família muito numerosa.
Onze irmãs. Todas com T de inicial no nome também.
'Icrcsa, sorte dela, foi das mais velhas, pois a décima segunda, esgotado o reservatório de nomes, foi batizada
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como Telêmaca. Mesmo essa conseguiu casar. Todas as
outras conseguiram, menos Teresa. Foram-se indo aos
poucos todos aqueles rês, como a água numa banheira vai
sumindo, sumindo, de repente a gente depara com a banheira vazia e pergunta: "Ué, cadê a água?" Foi isso que
aconteceu com Teresa. Madrinha, testemunha ou aia de
todos os casamentos. Sempre sorridente, feliz com a felicidade das outras, escondendo uma ponta, só uma pontinha, de inveja boa. Os parentes já se olhando de esguelha,
trocando sorrisos maliciosos, fazendo apostas ferinas:
"Será que esta encalha?" As irmãs casando e Teresa sobrando, o corpo fanando, a carteira e as luvas puindo de
tanto casamento. E um misto de amargura e expectativa
se acumulando num fundo de alma.
"Minha vez também há de chegar", pensava, comparando-se às dez irmãs. E tirava, honestamente, um saldo a seu favor: era mais inteligente, mais desembaraçada,
mais elegante. Mas ia sobrando. E a esperança - a esperança ameaçando tornar-se real no primo Gonçalo, de
olhos verdes, verdes, tocador exímio de violão, seresteiro
incorrigível, partido visado pelas moçoilas românticas e
temido pelos papais, aquela esperança apequenando
mais e mais no coração de Teresa. Foi-se de vez no nono
casamento: Tanira e Gonçalo confirmam. Teresa, madrinha mais uma vez. Sorriso desta vez como pintado no
rosto onde os olhos mostraram, pela primeira vez, aquele misto de ironia e tristeza. Depois a festa, os doces, as
danças, os pares rodopiando, o violão, os olhos - meu
Deus, tão doidamente verdes! - de Gonçalo postos nos
olhos sem graça da irmã. Teresa enfiada num canto, falando de pontos de crochê para dona Anaurelina, buço
cerrado, seios fartos, mãe de Gonçalo rodopiando na
valsa e olhos (ainda, Deus meu!) postos nos olhos de
Tanira.
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À noite, sozinha na cama, amargura, culpa, choro
envergonhado, desejos inconfessáveis, pensamento em
(:onçalo. Olhos nos olhos de Tanira, tão desvairadamente
verdes. Os noivos na cama longe dali decerto abraçados,
c olados, fundidos. Olhos nos olhos mesmo no escuto. A
ror dos olhos dele devia brilhar no escuro, como os dos
gatos, dos tigres. Um gato no cio miou lá fora, e ela revii.mdo-se, mãos buscando água na mesinha de cabeceira,
MlI10 pesado, pesadelo verde, cheio de olhos e gatos, valsas
(' tigres. Na manhã seguinte, a vergonha de si mesma, das
coisas que pensara durante a noite - seria doida? O medo
de retratar-se em cada gesto, em cada palavra, a fazia cerrnr-se áspera à menor tentativa de aproximação dos pais e
das irmãs restantes. E à noite, outra vez, o corpo ardia no
desejo impossível do corpo do primo. Os dias atordoados,
.1S noites longas, suores, frustração. O tempo, remédio pra
tudo, diziam, passando. As irmãs casando sem parar. Teresa ressecando. Os pais morrendo.
Quando eles morreram, o pai menos de ano depois
da mãe, ela não chorou. Já havia esgotado, pensava, sua
.apacidade de sofrer. Mas pensando na relativamente boa
situaçâo financeira em que ficara após a morte deles, a
única solteira e desamparada, não podia deixar de lembrálos com gratidão.
*
Teresa de luto fechado, sozinha em casa com o gato.
Às segundas, visita de Têmis; às terças, visita de Tânia; às
quartas, de Telma; às quintas, de Tatiana; às sextas, de Tília, que as outras moravam em outras·cidades. Os sábados
livres para igreja, cemitério. Domingos: banho, vestido
hcm passado, talco, perfume, coque, janela. Olhos gulosos nos homens que passavam. Olhos úmidos ao ouvir as
crianças de mãos dadas cantando "Se eu roubei, se eu rouhei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também".
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Novelas no rádio e leituras para matar o tempo. No começo, desde almanaques de farmácia até livros de colégio,
depois dedicou-se somente às histórias infantis. Domingo
à tarde, debruçada na moldura verde da janela, em segredo punha nos vizinhos apelidos tirados dos livros. Branca
de Neve era a moça branca e anêmica, diziam que tuberculosa, filha de seu Libório açougueiro que, por sua vez,
era o gigante de João e o Pé de Feijão. As irmãs Rosa Branca e Rosa Vermelha, as duas metidas filhas do médico, e a
Moura Torta, a portuguesa da venda, coitada, tão boazinha apesar do narigão e da corcunda.
E foi assim que apareceu o príncipe Sapo.
Teresa adorava aquela história, já lera mais de dez
vezes. "A:
.lU como
sou besta e sem fu n d amento " , pensava,
"tamanha mulher lendo e ainda por cima gostando dessas
bobagens para crianças." Pensava vagamente em procurar
um médico para curar a mania, ouvira falar de psicólogos,
médicos de cabeça, que curam coisas assim. Mas não fazia
nada. Fugia a toda hora para aquele mundo feito de casas
de doce, castelos, fadas, maçãs mágicas. Sonhava com o
príncipe Sapo. Negava o real, enojava-se da lembrança de
Gonçalo, braços cabeludos, peito cabeludo, suado, cheiro
de homem, cigarro e cerveja, banhas incipientes com o
casamento. Tinha nojo, sim. Comparava-o ao príncipe
Sapo - louro, delicado, perfumado, olhos azuis - não
verdes, verdes não! -, tocando piano com aquelas mãos
tão alvas. Gonçalo tocava violão. Teresa odiava violão,
amava violão. Odiava Gonçalo, amava Gonçalo. De manhã, no espelho, chamava-se em voz alta de besta, besta,
besta. Estava ficando louca e velha e feia e quase quarentona e ressecada e cínica, até cínica, meu Deus. Chorava.
Recompunha Gonçalo na memória traço por traço, depois apagava tudo com as imagens dos príncipes das histórias infantis.
34
*
Resolveu então encontrar o príncipe Sapo. Durante
111'" domingos procurou-o inutilmente em todos os homens
1\111' passaram sob a janela. No quarto, debruçada na janela
\IHk, cabelos presos no coque, talco, banho recente, corpo
'1I,I'/,iguado- pois no quarto domingo achou. Não, não era
11111I"0 nem delicado, nem tinha os olhos azuis. Resumindo:
111\ nada se parecia à gravura do livro. Em compensação,
hmbrava tanto um sapo que ela nâo pôde deixar de olhá-lo
ucnta.
E lá vinha ele descendo a rua, baixinho, cheio de tiques, os olhos saltados saltando para os lados. Um terno
.•urrado dançando no corpo franzino, uma pasta embaixo
do braço, caminhando como se fosse aos saltos. Um sapo
perfeito.
Ela riu alto e ele quase parou, espantado com aquele
riso tão claro na garganta da solteirona da janela verde.
Depois se foi, baixinho, nervoso. Teresa ficou olhando até
que desaparecesse na curva da rua. À noite sonhou com
ele. Não mais com a figura do livro, mas com ele mesmo,
sapo. Sonhou coisas que a fizeram corar no dia seguinte,
olhando-se ao espelho e chamando-se baixinho de cínica,
cínica, cínica.
Indagou pela vizinhança, até descobrir. Era professor
de piano, pobre, solteiro, morava na pensão da esquina. O
nome: Francisco, todos chamavam de Chico. Nada lembrava príncipe, nem sapo. Professor de piano, isso gostava.
Resolveu comprar um piano. Comprou. Tomásia, Tônia,
Tatiana, demais tês e respectivos maridos censuraram-na
por jogar fora assim a herança dos pais, coitados, tão bons,
falecidos há tão pouco tempo, e ela já querendo gastar
dinheiro, assanhada, ingrata, e num piano, logo num piano, coisa preta, grande e quase sem utilidade, a não ser
tocar, coisa que aliás ela não sabia, profanadora do luto,
3S
arriscando-se a levar castigo divino, nem parecia que r~speitava a memória deles, nem parecia que era católica
apostólica rom ...
- Chega! - berrou Teresa, replicando que já tinha
quase quarenta anos, o dinheiro era seu, fazia o que bem
entendesse dele, não seria por isso que deixaria de amar os
pais, coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo.
- E além disso - continuou frenética -, vocês têm seus
maridos e filhos para se distrair, e eu, que que eu tenho?
Me digam, o que que eu tenho nesta casa vazia?
Escândalo. As irmãs saindo uma a uma, trombudas,
chamando-a de cínica, cínica, cínica. Relações cortadas.
*
Mas o piano veio. Grande, rabudo, pretíssimo. Dedos cansados acariciando teclas à toa. Sons difusos, dissonantes, espalhando-se pela casa grande e deserta, entrando
no coração amargurado de Teresa, ferindo-o de leve. Leve
como o toque de seus dedos nas teclas frias, frias como as
lágrimas pingando no assoalho escuro, escuro como a madeira envernizada do piano na qual ela passava a mão
como se fosse uma pele de gente.
No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais
desprezível. Mas ao cair de uma tarde Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois com compreensão, depois
com simpatia, depois ... Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele
trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas encabuladas. No
dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como
que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde
olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha,
quase sem ilusões.
O piano cantava cada vez com mais alegria, os rumores na rua cresciam, todo mundo comentando a pouca-vergonha. Mas Teresa feliz, feliz, feliz. Uma página inteira
feliz. Um livro inteiro feliz. Um mundo inteiro, Teresa
feliz.
*
Não perdeu tempo. Em seguida, as aulas. O príncipe
Sapo batendo tímido na porta. Olhos baixos, pés esfregados no capacho. E escalas, escalas e mais escalas. Notas,
sustenidos, bemóis, cachorro vai, dó-ré-rni, claves, rni-dó-ré, pauta, compasso, cachorro vem, ré-rui-dó. Teresa deslumbrada, como se tivesse em suas mãos a chave do cofre
onde o mundo esconde seus tesouros. Quase esqueceu-se
do verdadeiro motivo pelo qual comprara o piano, tanto
gostava de música. A solidão nem mais pesava. Havia agora um amanhã, um ontem, um hoje. Havia o piano, as
lições, os exercícios. Esqueceu o gato, a janela no domingo, os livros infantis, as novelas. Havia o piano. E havia
também o príncipe, o Sapo.
Até que Gonçalo, sempre o cunhado mais decidido,
veio falar com ela. Tranquila, Teresa ouviu.
- Olha, não temos nada com a sua vida, nem eu
nem sua irmã, mas achamos que devemos ... - pigarreou,
tossiu, meio engasgado com as palavras difíceis ensaiadas
antes - ... devemos zelar pelo bom nome da família, tão
representativa na sociedade local. Afinal de contas, seus
pais ...
- ... coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo - interrompeu Teresa distraída.
Gonçalo parou, surpreso. Ela sorriu com o canto da
boca. Ironia, ele desconfiou. Mas prosseguiu:
- Pois é, isso. Eles não haviam de gostar.
- Mas gostar de quê?
- Desses rumores.
- Quais rumores, Gonçalo?
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Ele começou a perder a paciência. Os olhos - antig.\lnence tão incrivelmente verdes! ela pensou com pena
ganharam um brilho frio e mau e opaco de vidro sujo,
fundo de garrafa.
- Ora, Teresa, não se faça de inocente. Você já não
mais nenhuma criança, já tem trinta e cinco anos e...
- Trinta e oito.
-
Pois é, isso. Não é mais idade de andar namoricando com esse tal de professor que não tem nem onde
cair morto, e deve estar de olho mesmo é no seu dinheiro,
esse ...
- Príncipe Sapo.
-Hein?
- Príncipe Sapo, ora.
Gonçalo olhou melhor para ela. E adoçou a voz
como quem fala com uma criança - ou uma louca -, os
olhos retomando por segundos aquele verde bom de antigamente.
,- Que príncipe, Teresa?
- Sapo, já disse. Que coisa, parece surdo. Aquele
que pegou a bola de ouro da princesa e pediu para ir com
ela, comerem juntos, dormirem juntos, você sabe.
Gonçalo desviou os olhos e deslizou-os pela sala, o
piano enorme e o retrato de Chico Francisco príncipe
Sapo sobre ele. Teresa acompanhou seus olhos pensando
- "Gonçalo, eu amei você. Seus olhos verdes, seu violão.
Amei a serenata que você nunca me fez". Depois foi falando devagar, sílaba por sílaba, como se o que dissesse fosse
algo muito frágil:
prfncipe
x.indo-se
:Itc ver o
tl'
Eu vou me casar com o Chico - "Francisco
Sapo", completou mentalmente. E mentiu, deiembalar pelas próprias palavras: - Já mandei
vestido, branco, comprido, com uma cauda desr.unanho. Vou casar de noiva, dos pés à cabeça.
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Gonçalo suspirou. Já ouvira falar de muitos casos assim, essas moças passado nas, solitárias. Podia ficar ainda
mais grave com o passar do tempo. Não tinha cura. Pediu
licença, levantou e se foi, levando para sempre seu olhar já
nem tão verde e a serenata frustrada.
*
Pausa de uma lição. Sobre o guardanapo branco do
piano, chá e bolinhos. Zumbido de mosca voando, entontecida pelo calor. Teresa com os dedos que há pouco
ensaiaram no teclado, sem erro, a primeira parte de "Pour
Élise" descansados no regaço. Feliz, feliz, feliz.
- Chico - disse de repente -, nós vamos nos casar.
Silêncio. Teresa envolveu com olhar terno aquele homem pequenino demais, humilde demais - mas tão seu,
o único que a vida lhe dera. A mosca zumbia mais, o calor
aumentava, cinco da tarde de janeiro. Então ele olhou
bem fundo nos olhos dela. Tinha uns olhos pardos, salientes, caídos, infinitamente tristes.
- Eu não posso, Teresa. Não posso casar com você.
Nem com ninguém.
E foi explicando aos trancos, a voz ainda mais baixa,
mais cansada.
- Foi no quartel, há muitos anos. Uma granada,
você sabe, explosão, um acidente, estilhaços. Não sou homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa? Não me
obrigue a falar nisso!
Teresa endureceu o rosto, imóvel na cadeira. Antes
que ela falasse, o príncipe Sapo foi saindo exatamente
como entrara: cabeça baixa, meio tropeçando no capacho.
Na porta ainda parou e olhou para trás. E achou-a tão
bonita ali sentada na sala clara, ao lado do piano, aquele
olhar triste e irônico, os cabelos finos e lisos presos no
eterno coque, as mãos cruzadas no regaço, tão bonita que
não pôde deixar de sorrir.
39
Foi esse sorriso que doeu em Teresa. Doeu pelo resto
d., vida.
Ah, pobre Teresa, irmã de mil outras teresas do mundo inteiro. Piano vendido num leilão. Domingo à tarde,
abclos num coque, banho recém-tomado lavando mágoas e suores. Teresa na janela verde. Teresa olhar irônico
. triste. Teresa olhar guloso em todos os homens que passam. Teresa de olhos úmidos ouvindo as crianças a esganíar "Rua da solidão". Fogueira no corpo ainda virgem de
quase quarenta anos, fogueira no fundo do pátio incendiando livros e sonhos, bruxas e príncipes. Vontade de
gritar, gritar bem alto e bem forte, sozinha à beira do fogo.
O vento bate e salva do fogo uma página colorida e sopra-a pela rua afora. Ah, outra vez essa vontade de gritar
um grito alto e triste que dobre lá longe, junto com a folha colorida em chamas, na mesma esquina onde dobrou
para sempre Francisco Chico príncipe Sapo última esperança.
40
Triângulo amoroso:
variação sobre o tema
Para Maria da Graça Magliani
E
ra uma menina. Embora nâo quisesse, quase
desvairada na negação indireta, recusando atitudes e palavras que, justamente por afastadas, sublinhavam a sua
ondição. Aos olhos dos parentes, alheios a seu profundo
- mais profundo ainda talvez porque inconsciente, resultante quem sabe de alguma remota frustração, como ia
dizendo, seu profundo ressentimento tomava forma como
em todas as meninas: algo meio vago, quase informe,
acentuado vezenquando por lacinhos e babadinhos, como
se as frescuras no vestir pudessem compensar o que lhe
faltava: a forma. Ah como recusavam a sua densidade,
como supunham ultrapassá-Ia quando, na verdade, sequer
chegavam à sua periferia. Principalmente: como erravam
ao tentar acertar, suas atitudes de curva até o centrozinho
dela (que eles ignoravam todo áspero e espinhento) fazendo-se queda lenta, desequilibrada, mesmo grotesca - irremediável queda.
Ela era, pois, o ser mais só daquela casa. Isso equivale a dizer que era também o mais só do mundo, já que seu
ambiente limitava-se àqueles dois pais e àqueles quatro
irmãos equilibrados precários em pares de longuíssimas
41
pl'l'Il:IS, que serviam para lançar no rosto da menina a sua
pequenez. Ah como eles eram herméticos, Mesmo amigos
.om quem trocasse desditas, amigos miúdo-gigantescos
.orno ela, não os tinha. Vivia num apartamento desses
.nganchados em edifícios cinzentos, tão vazio de cores
quanto de crianças. Além disso, ainda não havia apreendido o grande desencontro das palavras - portanto não
poderia comunicar-se de maneira adulta, posto que a maneira-adulta-de-comunicar-se
trata-se de um constante
dizer o que não se quer, pedir o que se tem e dar o que não
se possui. Também nos gestos, ela ainda não conseguira
precisar-se, adquirindo aquela dureza que não assusta aos
outros, Toda inexperiente de membros, ela enrolava-se em
braços e pernas, enredada em movimentos que absolutamente descontrolava. Subjetiva e objetivamente, a menina era tremendamente solitária.
Os olhos castanhos dela encontraram os olhos verdes
dele numa manhã de chuva. Todo sujo de lama, ele fora
encolher-se exatamente em frente à porta onde havia uma
espera em branco. Comunicaram-se,
Ela não tinha palavras. Ele tinha unhas afiadas. Ela tinha dentes nascendo,
sua arma em gestação contra o mundo. Ah como se amaram violentos e ternos em unhadas de paixão, dentadas de
lascívia, mão sobre o pelo amarelo, cabeças unidas - ele
estacionado em evolução no ponto onde ela estava, mas
ultrapassaria. Desde o início, ela fora em potencial maior
do que ele. Tinha perspectivas, ao passo que ele estava
para sempre confinado às quatro patas, ao rabo, às duas
orelhas, aos seis ou oito fios de bigode. Mas inconscientes
desse desencontro, doavam-se inteiros, ignorados, ignorantes - brutais e absolutos em sua posse calada.
Foi quando apareceu o gato. A natureza dos gatos é
parecida com a das meninas: também eles possuem aquela ferocidade mansa, toda contida e dissimulada ao pedir
leite roçando as costas contra as pernas das pessoas. A menina só era amorosa quando faminta, fazendo-se lânguida, quase erótica. Saciada, tanto se lhe dava estar com
aquela família alta e magra ou outra, baixa e gorda. Como
ponto de contato, havia ainda aquela lucidez desesperada,
portal de loucura, nas noites de lua cheia. Ela chorava, ele
miava. Incompreensão da própria angústia, uniam-se no
ultrapassar de seus limites, iam além, muito além, completamente sós dentro do apartamento - quem sabe do
universo -, ela gritava, luzes acendiam, gestos precisos
acariciavam lugares imprecisos; ele miava carente de carí
ias, de tentativas de compreensão, incornpreendido,
in
mpreensível. O berro uníssono fazia as paredes incha
rem, prenhes.
Até que chegou a gata. Os pais tiveram o raciocínio
lógico de que um gato, mais que qualquer coisa no mundo, precisa de uma gata. E a trouxeram. Ela insinuou-se
f~mea, gata de loja de animais, guizos, laçarotes, miando
esquiva roçava o corpo contra as paredes, delicadíssima no
.lIquear do dorso, formando uma curva tão sutilmente
promeredora que a menina se espantava toda de tanto ciuisrno caramelado. E começou a disputa. Desde o início,
.1 menina estava derrotada
- ah como os parentes não a
Illlllpreendiam. Ela - indefinida, meio tosca - insabia
qUl' para conquistar era necessário ser dissimulada como a
/'.,11.1. Ela era completamente
objetiva nos seus desejos: se
,!lll'ria agarrar o gato, não se perdia em tramas e atitudes
i.1 lá e agarrava a meta. Que se esquivava, agora, mais
!,Iopcnso às ternuras menos ostensivas da gata.
Findo o período de namoro, o cio chegou e a gata e
IJ g,ilO possuíam-se
despudorados pelos cantos, a menina
illl umpreendendo que ela mesma não era uma gata, e que
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43
só poderia, assim mesmo futuramente, e talvez, possuir
naturezas como a sua. O problema é que ela nunca tinha
visto um menino. Sua única oportunidade de amar fora o
gato. Que se tornara absoluto como jamais pirulito ou
boneca haviam sido.
Mais só ainda - ela chegou então à atitude extrema.
Talvez por influência da gata, aprendeu a dissimular, e
aproximou-se toda meiga do gato que tomava leite. Foi
tudo premeditado, ou tão espontâneo que a preparação
estava implícita. E apertou. De uma só vez. Mais com a
força que teria, propriamente, do que com a que dispunha no momento. Ele não miou nem estrebuchou.
Apenas morreu. Sem adjetivos.
Ela ficou olhando o corpo mole, desafiando-se com
a gata que farejava o companheiro. Havia uma réstia de
sol sobre o tapete. A menina encaminhou-se para lá e começou a brincar com uns cubos coloridos. Não descobriram o autor do crime. Ela não chorou. No mesmo dia,
disse a primeira palavra: ato. Depois começou a crescer
crescer crescer. Até que casou, teve três filhos, comprou
um automóvel, um apartamento de cobertura no Guarujá
e uma casa em Poços de Caldas.
44
Para uma avenca partindo
-O
lha, antes do ônibus partir eu tenho uma
porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não
se dizem costumeiramente,
sabe, dessas coisas tão difíceis
de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nuna se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas,
ompreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não
te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto
.u como você sentiremos uma falta enorme de todas essas
oisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você
nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente,
entende,
porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é
permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não
existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem
tanto medo de penetrar naquilo quenão sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando o meu raciocínio? falava do
mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos
esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não,
não sei por que todo mundo compra maçãs antes de via-
45
jar, nunca tinha pensando nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por
exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer
além de tudo o que já foi dito, ou melhor, pensei sim, não,
pensar propriamente não, mas eu sabia, é verdade que eu
sabia, que havia uma outra coisa atrás e além de nossas
mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e
mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados,
quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão
no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que
eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não
falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, de não sentir
medo desse mais fundo, você riu porque eu dizia que não
era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia
conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas
sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até
ficar rouco, o que quero dizer é que nós dois cantamos
desvairadamente até agora sem nos darmos conta, é por
isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa da
garganta que falo, é de uma outra, de. dentro, entende?
por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o
relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o 'ônibus parta que você cresceu em mim dum
jeito completamente
insuspeitado, assim como se você
fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando
ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma
avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não
46
rvtou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas
issirn, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhurn momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir
rodas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derI "bar todas as paredes e arrancar
o telhado para que você
I rescesse livremente,
você não cresceria se eu a mantivesse
presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que
vocô precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viaI',t'm, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pen..uido coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer
.1 você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser
uuiito tarde, daqui a pouco não vai ser mais possível, e se
111 não disser tudo não poderei nem dizer nem fazer mais
n.ula, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o
'Illl' estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa,
filha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre
p(',de tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você con"j\IIC, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualIjll{'r atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta:
111 queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de
unires, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor,
11 Ivmpo é só uma questão de cor, não é? pois isso não
uuporta, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te
,li ixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coi1\ II1ICeu ia te dizer depois, pensando
também nas coisas
'1t1V eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que
1"1'1 isam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são
n",dll\cnte terríveis, eu me perguntavã se você era capaz de
IIIIVil, se você teria, não sei, disponibilidade
suficiente
11.11,1 ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-Ias,
.Ihl'unfvel em relação a quê? não sei, não me interrompa
11',111,. que estou quase conseguindo,
disponível só, não é
11111,1 palavra bonita? sabe, eu me perguntava até que pon-
47
lO você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo
que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto
você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia,
e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais
conseguir ver, entende? dolorido-colorido,
estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam
uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é, eu
sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse
intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável?
eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo?
ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser
ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por
exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que
você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes
escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só
querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente
marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e
andava de lá pra cá sem pensar definidamente em nada,
mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto
daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse,
acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir
tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas
essas coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista,
por favor, olha, se você não prestar muita atenção você
não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as
palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos
cultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheç
que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo
falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois,
você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer
apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui
do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as
maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo
numa só frase, você vai.
.
48
49
.................................
sim, sei, eu vou escrever, não, eu
não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está
esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus
partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai
dar tempo? escuta, não fecha a janela, está tudo definido
aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as bolsas, fica tranquila, esse
velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse
tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você
fica sempre me interrompendo
e me fazendo suspeitar
que você não passa mesmo duma simples avenca? eu pre.iso de muito silêncio e de muita concentração para dizer
todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de
você ir embora eu quero te dizer quê.
Ó depois de apertar muitas vezes a campainha
foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E
reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas
vermelho, mais tarde rosa cada vez mais daro - agora,
que cor? - e ouviu o latido desafinado de um cão, uma
tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do
interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de
barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os
olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assimde fora, de dentro da casa -, até ela afastar o rosto, sem
nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E
mais amarga, percebeu depois.
- Tu não avisou que vinha - ela resmungou no
seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduir como que-saudade, seja-bem-vindo,
que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora
inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido - cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas
duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.
- A senhora não tem telefone - explicou. - Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez
mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a
cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.
- Sai, Linda - ela gritou, ameaçando um pontapé.
A cadela pulou de lado, ela riu. - Só ameaço, ela respeita.
Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir,
comer e cagar, esperando a morte.
- Que idade ela tem? - ele perguntou. Que esse
era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos
transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.
- Sei lá, uns quinze. - A voz tão rouca. - Dizque
idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
- Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da
sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em
volta, como se acabasse de acordar:
quê?
- A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e
inco anos.
Ela riu:
- Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo.
- Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as
mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas {ce-
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51
Linda, uma história horrível
Para Sergio Keuchguerian
Você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus.
(Cazuza: "Só as mães são felizes")
S
-o
." to-se, repetiu mentalmente),
pintura alguma nas unhas
IC:IHCS dos dedos amarelos de cigarros. Quer um cafi?
- Se não der trabalho - ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana
pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta,
ncostado na porta.
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora
guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da
cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado.
No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País
mergulha no caos, na doença e na miséria - ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.
- Tá fresquinho - ela serviu o café. - Agora só
consigo dormir depois de tomar café.
- A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
- Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo,
bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis
fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas,
apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada,
ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum
táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da
uanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima,
sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais.
Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.
- Vá dormir - pediu. - É muito tarde. Eu não devia
ler vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as
flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de
seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele
enquanto tomava um gole de café.
- Que que foi? - perguntou, lenta. E esse era o tom
que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu,
baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha.
Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
- Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso.
De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
- Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque
áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito
brancas dele. Carícia torta:
- Bonito, o isqueiro.
- É francês.
- Que é isso que tem dentro?
- Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só
que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro,
() líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da
mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantad,l com o por trás do verde, líquido dourado.
- Parece o mar - sorriu. Bateu o cigarro na borda
11.. xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. - Então
quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.
Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da
111.10 manchada
dela.
•
52
53
- Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
- Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui
1.1/, mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro.
Sozinha.
I h'us me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo
jornal. Se desse no jornal.
caco velho?
Quem
se importa
com um
.
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
- Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia
ficar sabendo. E não ia dar no jornal.
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas
não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava
uma lasca da borda da xícara.
- É sina - disse. - Tua avó morreu só. Teu avô
morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de
semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar.
Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia.
- Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. - E
nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que
mais ele queria.
- Já faz tempo, mãe. Esquece - ele endireitou as
costas, doíamo Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro,
uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos
dedos pelos losangos desbotados da toalha. - Não sei
como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que
não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado
de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de
manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
- E aguentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que
me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a
louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. - Bateu o cigarro. - E como se
não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda
junto?
54
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela
ganiu mais forte.
_ Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem
a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de
hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
- Deixa eu te ver melhor - pediu.
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio,
ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata
miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.
-Tu
está mais magro - ela observou. Parecia preocupada. -
Muito mais magro.
ele disse. Passou a mão pela cabeça
_ É o cabelo -
quase raspada. - E a barba, três dias.
- Perdeu cabelo, meu filho.
_ É a idade. Quase quarenta anos. -
Apagou o
cigarro. Tossiu.
- E essa tosse de cachorro?
- Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto
nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele.
Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. * Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os
olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela
sarnenta e a trouxe até o colo.
- Mas vai tudo bem?
-Tudo,
mãe.
-Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou aS orelhas sem pelo da
adela. Depois olhou outra vez direto para ele:
• Ana Cristina César: A teus pés.
55
- Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na
tevê. Umas pestes.
- Graças a Deus - ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. - E a dona Alzira,
firme?
A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos,
ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se
visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela
apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:
- Coitada. Mais esclerosada do que eu.
- A senhora não está esclerosada.
- Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando
sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o
dia inteiro? - Esperou um pouco, ele não disse nada. A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro.
Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí
me dei conta.
- A Cândida morreu, mãe.
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela.
Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas
dormissem.
- Pois é; esfaqueada. Que nem um porco, lembra?
- Abriu os olhos. - Quer comer alguma coisa, meu filho?
- Comi no avião.
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
- Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre.
Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? - Ele
sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a
fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de
umidade, de mofo, de tempo, de solidão. - Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame.
Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. - Mo-
56
lliou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca
quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. S.lbe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa
de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente,
I
orno é que tu aguenta?
- A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
_ E o Beto? - ela perguntou de repente. E foi bai-
xando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos
dele.
Se eu me debruçasse? - ele pensou. Se, então, assi m. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A
barata tinha desaparecido.
- Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
_ Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu
a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a
adeira do restaurante pra mim sentar. Nunca ninguém
tinha feito isso. - Apertou os olhos. - Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
_ Casserole, mãe. Ia Casserole. - Quase sorriu, ele
tinha uns olhos de menino, lembrou. - Foi boa aquela
noite, não foi?
_ Foi - ela concordou. - Tão boa, parecia filme.
_ Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão
dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade.
Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da
cadela.
_ O Beto gostou da senhora. Gostou tanto - ele
fechou os dedos. Assim fechados, passou-os pelos pelos do
próprio braço. Umas memórias, distância. - Ele disse
que a senhora era muito chique.
_ Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada.
Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspi
rou. - Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é qu" /.
57
moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro.
Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto,
bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara.
Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela
calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim
tão fino, de tênis? - Voltou a olhar dentro dos olhos dele.
- Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura,
mesmo jeito, mesmo.
- A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados.
Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se
olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias - os
três, ele, a mãe e Linda.
-E
por quê?
- Mãe - ele começou. A voz tremia. - Mãe, é tão
difícilrepetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a
cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher
xícaras, colheres, cinzeiros, jogando rudo dentro da pia.
Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e
abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva,
um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e - como quem quer mudar
de assunto, e esse também era um sinal para um outro
jeito que, desta vez sim, seria o certo - disse:
- Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. S..
gurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas
nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro - cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais
qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver.
Ou amor. Uma espécie de amor.
- Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo,
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59
dorme bem.
Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada
até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto
bater, levantou e saiu da cozinha. Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram
os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio
do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina.
Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de
uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até
o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos,
língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem,
percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da
sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa
antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de
um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos
assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na
guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa
manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do
abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor an-
tiga do tapete na escada - agora, que cor? -, espalhadas
embaixo dos pelos do peito. Na ponta dos dedos, tocoú o
pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se
apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando
os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a
outra mão para tocar no pelo da cadela quase cega, cheio
de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada,
iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pelos. Crespos,
escuros, macios.
Linda.
Linda -
sussurrou. -
Linda, você é tão linda,
o destino
desfolhou
Em memória de Tânia Beatriz Pacheco Pinto.
E para Fanny Abramouich, que me fez lembrar.
Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?
(Adélia Prado: O coração disparado)
Vênus
Há
seis anos, ele estava apaixonado por ela.
Perdidamente. O problema - um dos problemas, porque
havia outros, bem mais graves -, o problema inicial, pelo
menos, é que era cedo demais. Quando se tem vinte ou
trinta anos, seis anos de paixão pode ser muito (ou pouco,
vai saber) tempo. Mas acontece que ele só tinha doze anos.
Ela, um a mais. Estavam ambos naquela faixa intermediária em que ficou cedo demais para algumas coisas, e demasiado tarde para a maioria das outras.
Ela chamava-se Beatriz. Ele chamava-se - não vem
ao caso. Mas não era Dante, ainda não. Anos mais tarde,
tentaria lembrar-se de Como Tudo Começou. E não conseguia. Não conseguiria, claramente. Voltavam sempre
cenas confusas na memória. Misturavam-se, sem cronologia, sem que ele conseguisse determinar o que teria vindo
antes ou depois daquele momento em que, tão perdidamente, apaixonou-se por Beatriz.
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61
Voltavam principalmente
duas cenas. A primeira,
num aniversário, não saberia dizer de quem. Dessas fest-as
de verão, janelas da casa todas abertas, deixando entrar
uma luz bem clara que depois empalideceria aos poucos,
tingindo o céu de vermelho, porque entardecia. Ele lembrava de um copo de guaraná, da saia de veludo da mãe
- sempre ficava enroscado na mãe, nas festas, espiando
de longe os outros, os da idade dele. Lembrava do copo de
guaraná, da saia de veludo (seria verde-musgo?) e d~ balão
de gás que segurava. Então a mãe perguntou, de repente,
qual a menina da festa que ele achava mais bonita. Sem
precisar pensar, respondeu:
- Beatriz.
Cenas
Estrelete estrelete estrelete estrelete - repetiu e repetiu até que a palavra perdesse o sentido e, reduzida a faíscas,
saísse voando junto com o balão que ele soltou, escondido
atrás do taquareiro. Bem na hora em que o sol sumia e uma
primeira estrela apareceu. Estrela-d'Alva, Vésper, Vênus, diiam. Diziam muitas coisas que ele ainda não entendia.
A outra cena acontecia num dos festivais de fim de
ano do Grupo Escolar, no Cine Cruzeiro do Sul.
Ele estava na pia teia, porque não sabia cantar nem
dançar nem declamar, nem nada que os outros pudessem
sentar e aplaudir - como ele sentava e aplaudia agora.
Então Beatriz entrava no palco com um vestido branco
repolhudo, sentava numa cadeira e a professora-apresentadora colocava um acordeom nos braços dela. Embora
alta demais para a idade, Beatriz quase desaparecia no palco do cinema, atrás daquele enorme acordeom. Dava só
para ver o rosto pálido, sério, a franja lisa acima do instrumento, as pernas compridas abaixo, tão finas que os carpins de renda desabavam sobre os sapatos de verniz preto
e presilha. As duas mãos de unhas roídas, nas teclas.
Então, acontecia. Na memória, anos depois, tinha a
impressão de que havia um silêncio pouco antes dela começar. Um silêncio precedendo o brilho. Talvez não, só
Ianrasias.
De repente, logo após esse silêncio incerto, os dedos
de unhas roídas de Beatriz começavam a mover-se sobre as
teclas. Do acordeom e da voz dela, uma voz fina de vidro,
agulha, espinho, brotava aos poucos uma valsinha chamada "O destino desfolhou". O-nosso-amor-traduzia-felicidade-e-afeição,
ele lembraria, suprema-glória-que-umdia-tive-ao-alcance-da-mão.
O coração bateu mais forte.
omo quando soltara o balão, de tardezinha, atrás do taquaral, E alguma coisa brilhou no ar entre vermelho e
roxo do entardecer, no meio das paredes descascadas do
'ine Cruzeiro do Sul. Era tudo: cenas.
Depois dessa, havia outras.
Cenas mais comuns, com ele sentado quase sempre
.•trás ou ao lado dela, na primeira, segunda, terceira, quar-
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63
A mãe riu, jogou para trás os cabelos - uns cabelos
dourados, que nem o guaraná e a luz de verão - e disse
assim:
-
Credo, aquele estrelete?
Anos mais tarde, não encontraria no dicionário o
significado da palavra estrelete. Mas naquele momento, ali
com o balão numa das mãos, o guaraná na outra, cotovelos fincados no veludo (seria azul-marinho?) da saia da
mãe, pensou primeiro em estrela. Talvez por causa do movimento dos cabelos da mãe, quando tudo brilhou, ele
pensou em estrela. Uma pequena estrela. Uma estrela magrinha, meio nervosa. Beatriz tinha um pescoço longo de
bailarina que a fazia mais alta que as outras meninas, e um
jeito lindo de brilhar quando movia as costas muito retas,
olhando adulta em volta.
ta c quinta séries primárias. Colava de Beatriz, em Aritmérica. Ela colava dele, em Linguagem. Tiravam notas boas.
Mas em Comportamento, todo mês ganhavam o mínimo,
porque não paravam de conversar. Todas as manhãs, menos sábado e domingo.
Sábado não tinha Beatriz. Mas domingo, vezenquando, na missa das dez, novamente ela aparecia, ao lado
da mãe. Dona Lucy não usava saias de veludo nem tinha
cabelos dourados: era viúva, vestia preto, cabelos presos
num coque, rosário na mão. Ao lado dela, o brilho de
Beatriz desaparecia, ofuscado por uma dor que ela ou ele
só seriam capazes de compreender mais tarde, se houvesse
tempo. E não havia.
A separação
De repente - ou não de-repente, mas tão aos pouquinhos, e tão igual todo dia que era como se fosse assim,
num piscar de olhos, num virar de página - passou-se
muito tempo. E quando começaram o ginásio houve: A
Separação. Ele foi para o colégio Estadual, ela para o colégio das Freiras. Depois das férias grandes, pelas manhãs,
num fim de verão, não havia mais Beatriz.
Aos domingos, sim, tinha Beatriz na matinê das
quatro. Sem dona Lucy. Havia agora Betinha, Aureluce,
Tanara e outras amigas barulhentas em volta, uma fila
inteira delas no Cine Cruzeiro do Sul. Com blusinhas de
banlon e risadinhas, pipocas e barulho de papel de bala
amassado justo na hora em que Johnny Weissmuller ia
cair nas mãos dos pigmeus canibais. Areias movediças,
caçadores de cabeça, dardos fatais. Odiava todas as gurias: gasguitas gasguitas. Menos ela. Quando retardava
ou apressava o passo para cruzá-Ia na saída, ruborizava
um pouco, dizia ó-h! cumprimentando - e apressava o
64
passo de novo, para afastar-se logo e levá-Ia por dentro,
perdoando tudo.
Ela crescia. Crescia não como as outras, para os lados, para a frente e para trás. Beatriz crescia principalmenie para cima. Pescoço cada vez mais longo, rabo de cavalo
preto liso escorrido batendo nas costas, abaixo dos ombros. Ele, não. Ele não crescia para lado nenhum. Só para
dentro, parecia. Tinha horror de uma coisa densa, meio
suja, entupindo ele por dentro. Descoordenava os movimentos, descontrolava a voz. Umas espinhas, uns pelos
apareciam em lugares imprevistos. Sentia-se pesado, lerdo, desconfortável como se não coubesse dentro do próprio corpo, suspenso entre ter perdido um jeito antigo de
cornandá-lo e ainda não ter encontrado o jeito novo. Que
devia haver um.
Nessa época, começaram os boatos. A filha da Lucy,
diziam, mas mudavam logo de assunto quando ele se
aproximava. Que horror, ainda conseguia ouvir, que tragédia. Primeiro o marido, agora a filha. Coitadinha, nem
quinze anos. Aprendeu a maneira de ouvir sem ser visto.
Na sombra, atrás da porta.
Até surpreender, um dia, a palavra nova: leucemia.
No dicionário, encontrou. Mas não conseguiu entender
direito. Glóbulos, era bonito, redondo. Parecia pétala,
sânscrito, dádiva: gló-bu-Ios. Brancos, excesso. Mata?
perguntou no colégio. Disseram que sim. Em pouco
tempo.
A urgência :
Então baixou a pressa.
Não tinha mais um dia a perder, pois embora fosse
muito cedo, começou a suspeitar que era também desesperadamente tarde demais. Procurou Betinha, bilhete
6S
P I o 1110, cscri to com Parker 51 em folha de arquivo. Quero
·tI"r contigo amanhã sem falta, na praça, depois da aula ..
a se contorcer feito quisesse sair para fora. Cobra
.11 mando o bote, vômito armado na garganta. Ainda ten-
-Tu sabes? - perguntou Betinha, olho no olho.
Ele disse que sim.
De tardezinha, veio a resposta: Beatriz concordava.
Amanhã na praça, sem falta.
- Mas tu sabes mesmo? - Betinha perguntou novamente.
Outra vez, disse que sim. Perguntou se era verdade.
Betinha sacudiu a cabeça, que era. Antes de ir embora, ainda falou:
- Olha bem para o pescoço dela. Tem uns caroços
aqui, assim, inchados. Aquilo é a doença.
Ele olhou bem, quase meio-dia da manhã seguinte,
sentados num banco do centro da praça. Enquanto pedia,
trêmulo de amor:
- Beatriz, quero namorar contigo.
Ela apertou contra o peito um livro de História do
Brasil:
- Tu é muito criança - disse.
Quase não conseguia olhar para ela. Olhava o chão
de pastilhas coloridas no centro da praça. Formavam círculos, quadrados, estrelas grandes e pequenas. Menores
ainda, estreletes.
- Mas se eu sou criança - foi dizendo devagar,
convincente -, se eu sou criança tu também é, porque só
tens doze anos.
- Treze - ela corrigiu. E ergueu o rosto para o sol
no meio do céu. Os gânglios inchados quase desapareciam assim. Gân-gli-os, repetiu mentalmente, essa palavra
que quase não conhecia.
Espantado, percebeu que Beatriz usava batom. Batom clarinho, mal se notava. Parecia tão divertida e distante que aquela coisa densa, meio suja, dentro dele co-
r.iva controlá-Ia,
66
11ICÇOU
_
quando insistiu:
Eu gosto de ti, Beatriz. Eu gosto muito de ti. Eu
gosto tanto de ti.
_ Pois eu não - ela abaixou os olhos, procurando
os dele. Quando encontrou, falou quase sorrindo, como
quem dá uma coisa doce, não como quem enfia uma faca
.tfiada: - Gosto só como amigo.
_ Como amigo, não me interessa - gemeu.
Devia ser março, porque o sol era tão quente que fazia
gotas de suor escorrerem entre as espinhas da cara dele até
lábio superior, onde aqueles pelos escuros começavam a se
adensar. Sua cara de macho em preparação devia estar nojenta como a de um bicho. Mais tarde, bem mais tarde, se
lhe perguntassem, mas ninguém saberia, poderia explicar
que não tinha tido culpa. Foi aquela coisa suja de dentro
que subiu descontrolada garganta acima, para atravessar a
língua e os dentes até arredondar-se de repente na pergunta
cruel que jogou no ar morno de meio-dia (e Sol na X, era o
destino):
- Beatriz, tu sabe que vai morrer?
Ela levantou. Nem pálida, nem lágrimas nos olhos.
Remota, fatídica. Ele levantou também. Só então percebeu que, além do batom, ela usava sapatos de saltinho que a faziam quase dois palmos mais alta que ele.
Por trás dela, podia ver a torre da igreja. Talvez uma ou
duas palmeiras. A caixa-d' água ao longe, muito alta. O
sino começou a bater. Beatriz virou as costas e saiu caminhando, pescoço erguido, o livro de História apertado contra os seios tão empinados que, num último golpe, percebeu: além do batom e dos sal tinhas, Beatriz
também usava sutiã.
Beatriz era uma mulher. E ia morrer.
67
A partida
Volta, quis dizer, parado no meio da praça.
Mas agora, tantos anos depois, não saberia se teve
mesmo vontade de chamar ali, ao meio-dia de uma tarde
de Peixes, ou se repetiria depois baixinho, à noite, sozinho
na cama, no mesmo quarto com o irmão mais velho, nessa noite ou em todas as outras depois dessa, à medida que
o verão fosse indo embora e as noites todas se tornassem
mais e mais frias, junho, julho, agosto adentro, enrolado
em cobertores, vida afora repetindo volta, Beatriz, volta
que eu cuido de ti e dou um jeito qualquer de tu ficares
boa e então nós podemos ir embora para a África ou Oceania ou Eurásia ou qualquer outro lugar onde tu possas ficar completamente boa do meu lado e para sempre, volta
que eu te cuido e não te deixo morrer nunca.
Não disse nada. Pisando lenta, olhando o sol, Beatriz
foi embora para sempre dos doze anos de vida dele.
Ah, Dindi. ..
o tempo passou, depois disso, mais um pouco. Um,
dois anos em que, além de para dentro, ele começou a crescer igual aos outros: em todas as direções. Aqueles pelos finos engrossaram sobre o lábio superior, outros surgiram,
escureceram curvas, reentrâncias. As espinhas desapareceram, a voz definiu-se. Aquela coisa densa de dentro transformou-se numa espécie de leite espesso que descobriu o
jeito de puxar para fora, com movimentos da mão e estremecimentos do corpo. Na cama ao lado, Toninho repetia:
- Vai criar cabelo na palma da mão. Vai ficar tuberculoso desse jeito. Se quiser, um dia me fala, te levo na
zona. Ou vai sozinho, chega na Morocha e diz que é meu
irmão, ela já sabe.
68
Foram esses os anos em que Beatriz foi embora. Para
a capital, para se tratar, diziam.
Isso depois de uma fase em que ela trocou aquele
batom rosa clarinho por outro vermelho, muito forte,
aqueles saltos baixos por outros altíssimos, e decotes fundos, costas de fora, saias curtas, pernas cruzadas no clube,
risadas estridentes na rua, cigarros e rosas de ruge nas faces cada vez mais brancas. De mão em mão, Beatriz passou. Pelas mãos de Cacá, que na aula de Educação Física
abaixava o calção para mostrar o pau, o maior do colégio,
quem quisesse ver. Ou pegar, alguns pegavam. Pelas mãos
de Mauro, que tinha cabelo no peito e encestava bola no
basquete como ninguém. E Luizão e Pancho e Caramujo
c Bira e tantos outros que nem lembrava direito o nome,
a cara, divulgando pelas esquinas, pela sinuca, pela praça
ou matinê: ela faz de tudo, só chegar e meter a mão, dá
pra qualquer um - uma percanha.
Com ele, quase nada aconteceu, além de uma tentativa desastrada de namorar Betinha, depois que Beatriz se
foi. Mas só perguntava por ela, até que um dia Betinha
encheu, foi namorar Luizão, que tinha uma lambreta.
Quase nada além daquele corpo crescendo em direções
imprevistas, de um B gótico desenhado em segredo e carinho nas folhas finais dos cadernos, principalmente os de
eografia, quando tentava decorar as capitais - Suíça,
apital Berna; Polônia, capital Varsóvia; Honduras, capital Te-gu-ci-gal-pa - e a cada nome estranho repetia e
repetia, morto de saudade: para lá, então, para lá, Beatriz,
quem sabe - vamos?
•
Aprendeu a dirigir o Simca Chambord branco forrado de vermelho do pai. Mas Passo da Guanxuma acabava
logo: só restavam quatro estradas de terra vermelha poeirenta batida, perdidas até o horizonte. Precisou professor
particular de Matemática. Ficou para segunda época em
69
=».
I.atirn, não conseguia passar da primeira declinação,
terrae, terram. Escreveu sonetos de pé quebrado, sem parar ouviu Silvinha Telles num compacto cantando ahindi -se-soubesses-o-bem -q ue-eu -te-q uero-o- mundo-scria- Dindi-lindo- Dindi. ..
Até aquele dia.
Marte
Era sempre verão quando alguma coisa acontecia.
Talvez porque no verão as pessoas tiravam cadeiras para
fora de casa e, pelas calçadas, olhando estrelas, falavam de
tudo que não costumavam falar durante o dia. Ele tinha
aprendido o jeito de se confundir com as sombras, sem
que o notassem. Tinha-se tornado uma sombra à espreita
do que nunca era dito claramente, à beira do momento
em que não haveria mais nenhum segredo a descobrir e a
vida, então, se tornasse crua e visível, por tê-Ia tocado ele
mesmo, não por ouvir dizer.
Frase após frase, ficou ouvindo:
- E a filha da Lucy, tu já soube?
- Quem, a Beatriz?
- E a Lucy tinha outra filha, criatura?
- Perguntei por perguntar. Que aconteceu?
- Pois dizque morreu, em Porto Alegre.
- Mas não me conta, criatura. Quando?
- Ontem, tresantontem. Não sei direito. Vão enterrar lá mesmo.
- Que barbaridade. Tão novinha.
- Pois é. Mas uma perdida. Não tinha nem dezesseis anos.
-
Um guria bonitinha.
Meio espevitada, mas jeito-
-
Diz que morreu grávida.
sinha.
70
- Pelo amor de Deus, não me conta.
- Que sabia que ia morrer. Aí deu um desgosto,
emputeceu de repente.
- Mas quem era o pai?
- Deus é que sabe. Só aqui no Paço, retoçou com
todos. O Cacá da Zulma, o Luizâo da Lia, o Bira do Oraviano. Fora os de lá, que ninguém sabe.
- Que coisa de louco.
- Dizque a cabeça rachou toda antes de morrer.
- Como, rachou?
- Pois rachou, ué. Que nem porongo no sol. A tal
da doença.
- Mas a pobre da Lucy. Primeiro o marido, depois
a filha.
- Cada vivente com a sua sina.
- A pobre da Beatriz.
- Que Deus a tenha.
- Escuta, teu filho não tinha um rabicho por ela?
Tinha? (Tanto tempo hoje, a garrafa de vinho quase
vazia e a voz travada de Marianne Faithfull cantando ''As
tears go by", tantas dores novas, e tão inesperadas, tivesse
visto de lá, naquele tempo, com aqueles olhos que nunca
mais teria.) Tinha tido mesmo - tão grosseiro, como se
diz? - um rabicbo por Beatriz? Não sabia responder direito.
Deve ter olhado para cima e visto a estrela vermelha
(seria Marte?) que naquele verão costumava brilhar justamente sobre a casa da Morocha. Teve um impulso, coice no
peito, suor na testa. Mas esperou quê o assunto mudasse,
virando página após página de O Cruzeiro, jogado no sofá-cama da sala. David Nasser, disco voador, Márcia e Maristela, candangos, Odete Lara, coisas assim. Só depois de ter
remanchado horas pela casa - outra vez então aquela coisa
grossa, aquela coisa porca, aquela coisa furiosa dando voltas
71
dentro dele - resolveu emergir devagarinho das sombras
para a luz do poste sobre as pessoas sentadas na calçada ..
E visto assim, à luz do poste, dos cigarros, vaga-lumes
e estrelas, camisa aberta ao peito, as duas mãos enfiadas
undo nos bolsos, parecia tão seguro e decidido que ninguém teria coragem de negar absolutamente nada quando
pediu:
- Pai, me empresta o auto?
r
Poeira
Deu a partida e enveredou pelos barrancos em direção à casa da Morocha. Alto do chão.
- EI hermano de Tonico? - ela perguntou, oferecendo a cuia de mate novo, dente de ouro na frente. Entonces, eres tu? Bién que él me tenía hablado, muy
guapo.
Os anéis cintilaram quando ela abriu a porta para
que ele penetrasse no interior enfumaçado. Já estavam lá,
ou chegariam depois, não lembrava, o Caramujo, o Pan
cho, o Bira e talvez um ou outro daqueles bagaceiras todos
que tinham tocado em Beatriz. Não falou com ninguém.
Sentou sozinho numa mesa, pediu um maço de Hudson
com ponta, uma cerveja. Antes que pedisse a segunda,
uma loira meio velha, olhos verdes e falha num dente,
pediu licença para sentar com ele. Usava saia justa de V('
ludo de cor viva, de que nunca mais conseguiu lembrar ,I
cor exata, embora tivesse certeza de que não era verde
-musgo nem azul-marinho.
Na manhã seguinte, quando Toninho aos berros 11
nalmente conseguiu acordá-lo, lembrava apenas de 1('1
pedido para ouvir "O destino desfolhou", depois de UIll.1
vomitada espetacular bem no meio da sala. Mais que tudo,
das pernas escancaradas de uma loira meio velha nu 11".
72
cama de lençóis com cheiro estranho. O resto, névoa opaca, gosto de palha na boca.
Hoje - tantos anos depois, neurônios arrebentados
de álcool, drogas, insônia, rejeições, e a memória trapaceia, mesmo com a atenção voltada inteira para o centro
seco daquilo que era denso e foi-se dispersando aos poucos, como se perdem o tempo e as emoções, poeira varrida, por mais esforços que faça, plena madrugada, sede
familiar, telefone mudo - não consegue lembrar de quase mais nada além disto tudo que tentou ser dito sobre
Beatriz ou ele mesmo ou aquilo que agora chama, com
arinho e amargura, de: Aquele tempo.
Tempo, faz tanto tempo, repetem - esquece. Continuam a dizer coisas que ele não entende.
73
Holocausto
Havia
sol naqueletempo e apenasum dente
doía. No começo, apenas um. Eu conseguia localizar a
dor e orientava três de meus dedos, indicador, médio, polegar, as extremidades unidas, até aquele ponto latejante.
Eu inspirava fundo. E quando expirava, alguns raios saíam das extremidades dos dedos e atravessavam a pele dos
maxilares e a carne das gengivas para ir ao encontro do
ponto exato. Depois de alguns minutos eu suspirava, os
músculos se soltavam, as pernas e os braços se distendiam
e minha cabeça afundava na grama, o rosto voltado para o
sol. Agora ficou escuro e todos os dentes doem ao mesmo
tempo. Como se um enorme animal ferido passeasse, sangrando e gemendo, dentro de minha boca. Levo as duas
mãos ao rosto, continuamente. Inspiro, expiro. Mas nada
mais acontece.
Antes, antes ainda, foram os piolhos. Eu sentia alguns
movimentos estranhos entre meus cabelos. Mas naquele
tempo eram tantos pensamentos novos e incontroláveis
dentro da minha cabeça que eu não sabia mais distingui-los
daqueles outros movimentos, externos, escuros. Até o dia
em que alguém tocou nos meus cabelos eu julguei que ape-
74
nas dentro havia aquelas súbitas corridas, aquele fervilhar.
Ainda havia sol, então, e esse alguém puxou para fora, entre
as pontas unidas de três dedos, aquela pequena coisa branca, mole, redonda, que ficou se contorcendo ao sol. Desde
então, alertado, passei a separar a sua ebulição daquela outra, a de dentro. E por vezes eles desciam por meu pescoço,
procurando os pelos do peito, dos braços, do sexo. Quando
não me doíam os dentes e quando havia sol, às vezes eu os
comprimia devagar entre as unhas para depois jogá-los pela
janela, sobre a rua, a grama. Alguns eram levados pelo vento. Os outros se reproduziam ferozmente, sem que eu nada
pudesse fazer para detê-los.
Um pouco antes, não sei, ou mesmo durante ou depois, não importa - o certo é que um dia houve também
as bolhas. Apareciam primeiro entre os dedos das mãos,
pequenas, rosadas. Comichavam um pouco e, quando eu
as apertava entre as unhas, libertavam um líquido grosso
que escorria abundante entre os dedos, até pingar no chão.
Daqueles vales no meio das falanges, elas escalaram os
braços e atingiram o pescoço, onde se bifurcaram em dois
caminhos: algumas subiram pelo rosto, outras desceram
pelas pernas, alcançaram os joelhos e os pés, onde se detiveram, na impossibilidade de furar a terra. À medida que
avançavam, tornavam-se maiores e comichavam ainda
com mais intensidade. Minhas unhas crescidas dilaceravam a frágil pele rosada que escamava, transformando-se
em feridas úmidas e lilases. A princípio o sol fazia com
que secassem e cicatrizassem. Mas depois ele se foi. E agora nada mais as detém.
•
É preciso falar também nos outros. E na casa. Eu
estava tão absorvido pelo que acontecia em meu próprio
corpo que nada em volta me parecia suficientemente real.
A casa, os outros. Quando percebi que eles existiam - e
eram muitos, doze, treze comigo -, já meu corpo estava
7S
'ompleramenre
tomado. E temi que me expulsassem. Não
rínharnos luz elétrica, o sol tinha-se ido havia algum tempo, os dias eram curtos e escuros, dormíamos muito e,
quando acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar das igrejas, a chama não era suficiente para
que pudéssemos ver uns aos outros. E também havia muito tempo não nos olhávamos nos olhos.
Somente há uma semana - como fazia muito frio
c precisássemos de lenha para a lareira - fomos obrigados a queimar os móveis do andar de cima. As chamas
enormes duraram algumas horas. Creio que movido pela
esperança de que a luz e o calor pudessem amenizar a
dor e secar as feridas, aproximei-me lentamente do fogo.
Estendi as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos estendidas ao lado das minhas. Os doze
pares de mãos estavam cheios de feridas úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém gritou. Eu gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos
olhos, de ter visto neles qualquer coisa como compaixão,
paciência, tolerância, ou mesmo amizade, quem sabe
amor. Não tenho certeza de ter conseguido. Na verdade
não sei se não estarei cego. Há feridas em torno de meus
olhos, as sobrancelhas e os cílios fervilham de piolhos.
Os dentes fizeram meu rosto inchar tanto que os olhos
se estreitaram e recuaram até se tornarem quase invisíveis. Suponho que os olhos de todos eles também estejam assim. Suponho também que seus pensamentos
tenham sido iguais aos meus, porque quando a última
madeira estalou no fogo e se consumiu aos poucos,
fazendo voltar o frio e a escuridão, aproximamo-nos lenlamente uns dos outros e dormimos todos assim, aconhegados, confundidos.
Pela noite julguei ter escutado
alguns gemidos. E fiquei pensando se era mesmo verdaIc que ainda sofríamos.
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Na noite seguinte queimamos todos os móveis do
andar de baixo. Nas noites posteriores queimamos os móveis deste único andar que resta. Como o frio não terminou, queimamos depois as paredes, as escadas, os tapetes,
os objetos do banheiro, da cozinha, os quadros, as portas
e as janelas. Chegou um momento em que precisamos
queimar também os livros e as nossas roupas. Consegui
localizar um movimento interno em mim no momento
em que queimei aquela fita azul. Eu a guardava fazia muito tempo. Foi uma menina de cabelos vermelhos que a
jogou para mim, um dia, no parque, como quem joga um
osso a um cão faminto. A minha mão estremeceu quando
a lancei ao fogo. Tive vontade de gritar e tentei segurar a
mão mais próxima. Mas ela recuou como se tivesse nojo,
então segurei minha própria mão e fiquei sentindo entre
os dedos a umidade das feridas.
Hoje é o dia em que não temos mais nada para queimar. Havia ainda algumas cartas antigas, e são elas que estão queimando agora. Estamos olhando as chamas e pensando que cada uma pode ser a última. Há bem pouco um
pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta última chama apagar um de
nós terá de jogar-se ao fogo. Quando pensei nisso, minha
primeira reação foi o medo. Depois achei que seria bom.
Os piolhos morreriam queimados, as bolhas rebentariam
com o calor, o fogo cicatrizaria todas as feridas. Os dentes
não doeriam mais. Não nos falaremos, não nos olharemos
dentro dos olhos. Apenas um de nós treze fará o primeiro
movimento, se jogará ao fogo, aquecerá os outros por alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois mais
um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra dentro dessa roda, diz um
verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas já não
somos crianças e desaprendemos a cantar. As cartas conti-
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nuarn queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus
morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o
sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus
pudessem voltar de repente, no momento exato em que a
última chama se desfizer e alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão. Seria bonito, e as coisas bonitas
já não acontecem mais.
Apertei minhas fontes com aqueles três dedos unidos. Então tentei pensar que não estava mais aqui. E disse
para mim mesmo: estive lá, faz algum tempo. Como se já
tivesse passado. Mas não passou. Ainda estou aqui. Talve
daqui a pouco eu chore, ou grite, ou saia correndo no escuro. Nossos corpos estão muito próximos. Trocamos
nossos piolhos, nossas bolhas. Se nos beijássemos trocariamos também os grandes animais sangrentos das nossas
bocas. Talvez eu não chore nem saia correndo. Talvez apenas afaste esses braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o primeiro gesto em direção ao fogo. Daqui
a pouco.
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Recuerdos de Ypacaraí
Para Lucienne Samôr
Eu
tava atormentandoas formigascom uma
varinha embaixo da goiabeira quando a Malu veio me dizer que o Bituca ia fugir com o circo. Eu fingi que não
acreditei. Disse que o Bituca só falava aquilo pra incomodar ela, que ela vivia andando atrás dele que nem carrapato e ele não via um jeito de se ver livre. E menti que o
Bituca tinha me dito que se ela contasse aquilo pra qualquer pessoa ele ficava de mal com ela pra toda a vida. O
Bituca era meu amigo, eu sabia tudo o que ele pensava e
fazia. A Malu saiu correndo meio chorando, e de repente
me deu cansaço de estar ali, a tarde toda, atormentando
aquelas formigas rontas com a varinha. Eu tinha que falar
om o Bituca.
A tarde tava muito quente, eu acho que era janeiro,
, eu fui caminhando pela sombra até a casa dele. Só que
quase não tinha sombra, era pouco depois do meio-dia e
o chão tava tão quente que eu precisava caminhar me
.quilibrando no garrão. Quando cheguei na casa do Bitu'a a mãe dele me disse que ele não tava. Eu perguntei se ela
não sabia onde ele andava e ela disse que não, mas se eu
encontrasse com ele era para dizer pra ele ir já para casa
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banho e que se a calça nova tivesse esbragalada ele
ia levar uma tunda de laço. Eu disse que tava bem, e fui
saindo, quando eu já tava quase no portão me deu vonrade de perguntar se ela sabia que ele ia fugir com o Grande Circo Robatini, cheguei a ficar de boca aberta, daí eu
pensei bem depressa e achei que não devia perguntar aquilo, seria como se eu traísse o Bituca. E ele era meu amigo.
Aí eu disse que era sede, que o sol tava muito quente, e a
dona Laurita foi muito boazinha, falou que ia buscar um
copo de água gelada. Eu tava mesmo com muita sede, mas
quando ela voltou com o copo eu já tinha corrido até a
esquina. É que eu não aguentaria não dizer nada enquanto ela ficava ali, encostada na porta, me olhando de dentro
daquele vestido de florzinha azul. Eu sabia que a dona
Laurita não ia gostar de saber que o filho dela ia fugir, mas
ela tava sendo tão boazinha comigo que eu até ficava com
vontade de ser bom também. Só que se eu fosse bonzinho
com ela eu estaria traindo o Bituca, e essas coisas todas
faziam uma baita bagunça na minha cabeça, então eu saí
correndo pra ir até o circo. Fazia tanto calor que eu tive
vontade de dizer Kimota!, me transformar no Jack Marvel
Jr. e ir voando até lá. Eu sabia que não adiantava, mas
disse assim mesmo - Kimota! Shazam!-, não aconteceu
nada e eu tive que ir caminhando naquele baita sol.
Eles tavam desmontando tudo quando cheguei lá,
eles iam embora aquela noite. Tinha uma porção de cordas e caixotes e ferros e umas coisas que eu não me lembro. Uns homens sem camisa já tinham baixado a lona e
bem no meio tinha ficado um círculo sem capim, tava
cheio de garrafa, ponta de cigarro, papel de chocolate, pacotinho de pipoca vazio, um monte de porcaria. Tinha
heiro de bosta de cavalo e só fazia sombra do outro lado
das carrocinhas onde moravam os borlantins. Aquele solaço tava me doendo na cabeça e aquele cheiro de bosta
quente e suor de cavalo, catinga de macaco, de leão e de
gente grande me dava vontade de vomitar. Tinha uma
porção de homens mexendo naqueles troços todos e uns
piás espiando e fui me chegando sem coragem de perguntar pelo Bituca. Aí de repente eu vi ele na sombra duma
carrocinha, ao lado da palmeira, conversando com Rúbia,
a trapezista. O Bituca já era grande, mas a tal de Rúbia
tava dando sorvete na boca dele, que nem um bebezinho.
Eu cheguei e disse sem respirar:
- Bituca, a tua mãe disse pra tu ir já pra casa tomar
banho e que se tu esbragalar a calça nova ela te dá uma
tunda de laço.
Acho que ele não ficou muito contente de me ver,
porque me olhou daquele jeito enviesado que ele só olhava quando não tava gostando de alguma coisa, vezenquando ficava até meio vesgo. Aí a Rúbia foi e perguntou se eu
não queria um pedacinho de sorvete e falou que eu não
devia andar descalço e sem chapéu naquela mormaceira.
Eu olhei bem pra ela e disse que não, que muito obrigado,
que não carecia. Foi difícil olhar bem pra ela porque ela
era muito bonita, toda loirosa e perfumada, e eu ficava
sempre pensando como ela conseguia fazer aquele rebuceteio com as mãos quando estava lá em cima, antes de se
jogar no ar, com o maiô de lantejoulas brilhantes. As mãos
dela eram muito brancas e tinham umas unhonas vermelhas, as mais compridas que eu já tinha visto. Ela falou
que eu era muito educado, e foi amassando o copinho de
sorvete com aquelas unhonas vermelhas, e fez um barulhinho assim: crrráááác! - e nessa hora" eu senti ainda mais
sede e mais calor e fiquei com um ódio da Malu ter me
dito aquele troço, e até pareceu que tava bom lá, na sombra, embaixo da goiabeira, mexendo com as formigas. Aí
a Rúbia pegou uma Cinelândia com a Ava Gardner na
capa e começou a folhear, fazendo aquele rebuceteio com
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tornar
as mãos antes de virar cada página. Ela era ainda mais
bonita que a Ava, mesmo sem o furinho no queixo. Eu
fiquei por ali, estralando as juntas dos dedos como o Bituca tinha me ensinado, e a Rúbia foi e pegou um maço
de Hudson com ponta do bolso e deu um pro Bituca,
pegou outro e me ofereceu, eu disse que não, obrigado, e
ela perguntou se eu tinha fogo, e eu disse que não, e quase ia dizendo obrigado de novo quando o Bituca falou que
ia buscar uma coisa e já voltava e me pegou com força
pelo braço e foi me puxando pra perto da jaula do leão.
- Bituca - eu disse -, a Malu me contou que tu
vai fugir com o circo.
Ele disse que ia mesmo e pediu o fogo pra um homem sem camisa que vinha passando. Eu nunca tinha visto o Bituca fumar antes. Vinha uma catinga forte da jaula
do leão e eu ainda tava sentindo aquele perfume forte qu"
a Rúbia usava, a catinga era nojenta, o perfume até que era
gostoso, mas os dois juntos mais a fumaça do cigarro qm'
o Bituca jogava na minha cara tavam me enjoando ainda
mais o estômago.
- Bituca, a dona Laurita vai sentir a tua falta.
- Que me importa - ele falou, e jogou mais fuma
ça na minha cara. - Agora vou ser borlantim e ninguém
tem nada com a minha vida.
- Não joga fumaça na minha cara - eu pedi. Eu também vou sentir a tua falta.
- Por que tu não vem junto?
- Tu tá falando sério?
- Claro que tôo
Eu não sei se era aquele monte de cheiros misturados
na minha barriga ou o convite do Bituca - mas naqucl.i
hora eu cheguei a ter uma tonturinha e quase me encosn-i
na jaula catinguenta.
- Eu não posso.
Como não pode? Tu não é diferente de mim. A
gente tem a mesma idade, tá na mesma aula. Como é qu"
eu posso e tu não? Tu tem medo?
- Eu não tenho medo de nada. Mas eu não poss
- Pode sim. Eu falo com a Rúbia, ela deixa tu ir no
carrinho dela. Já falei com ela. Vamos nós três.
- Nós três quem?
- Eu, a Rúbia e o Saul. Naquele carrinho rosa lá.
Eu olhei pro lado do carrinho. A Rúbia tinha acendido o Hudson e tava de prosa com um sujeito musculoso, de barriga cabeluda e cabeça raspada, meio parecido
com o Lothar, encostado na palmeira. Ela usava um shon
vermelho bem curtinho, que nem o da Nyoka, a Rainha
das Selvas, e de longe parecia ainda mais bonita que na
parte onde a mocinha morre, em O céu uniu dois corações,
que a dona Laurita chorou e disse que ela podia ser uma
desfrutável e andar retoçando com todo o regimento, mas
que era tão boa atriz quanto a Loretta Young. E a dona
Laurita entendia de artistas. A Rúbia se abanava com a
Cinelândia e apontava pra nós, eu e o Bituca.
- Me dá o cigarro - pedi.
Dei uma tragada forte e fiquei olhando pro Bituca,
soltando fumaça pelas ventas. A calça nova dele tava toda
esbragalada e xexelenta. Puxa, ele era meu amigo e eu acreditava nele. O Bituca era bacana, nunca tinha me dito uma
mentira. Eu tive vontade de ficar ali com ele, de ir embora
no carrinho rosa, com Rúbia, Biruca e o domador parecido
om o Lothar, Mas a tragada que dei no cigarro terminou d
me esculhambar o estômago. Eu disse pra ele que tinha de ir
embora. Ele segurou de novo no meu braço.
- Mas tu jura que não vai contar nada pra ninruérn?
Eu pensei na dona Laurita, com aquele vestido ti..
[lorzinha azul, depois pensei na Malu, com a perna fi na c ()
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-
Só fui vomitar lá adiante, quase no portão da minha
casa, embaixo das unhas-de-gato. Aí quando eu entrei na
cozinha a minha mãe viu que eu tava muito branco e perguntou o que eu tinha. Eu disse que não era nada, mas ela
viu que a minha camisa tava toda respingada de vômito c
a minha boca fedendo que nem a jaula do leão. E quando
eu pensava nisso mais me dava vontade de vomitar, e eu
vomitei, me lembrando do perfume da Rúbia, da cabeça
do Lothar, do Hudson com ponta, do cheiro de bosta
quente de cavalo. A mãe me botou na cama, chamou o
médico e o meu pai e ficaram os três fazendo uma porção
de perguntas. Mas eu não traí o Bituca. Menti que tinha
comido pitanga verde e ficado no sol quente, eles podiam
me matar que eu não ia dizer nada nunca. Não consegui
dormir direito, e no dia seguinte eles não me deixaram
sair da cama e eu fiquei o dia inteiro lendo gibi, tomando
guaraná com bolachinha champanhe e pensando num jeito de perguntar pelo Bituca sem que eles desconfiassem.
Mas de tardezinha bateram na porta do quarto e o Bituca
entrou com uma porção de gibis embaixo do braço.
- Me disseram que tu tava doente e eu trouxe isso
daí pra tu ler - ele disse, jogando os gibis em cima da
cama.
- Ué, tu não ia fugir com o circo?
Ele não respondeu, perguntou se podia beber um
pouco de guaraná e comer bolachinha champanhe. Eu
disse que podia, vi que ele não queria falar e não insisti,
fiquei fingindo que tava muito interessado nos gibis que
ele tinha trazido, mas eu já tinha lido quase todos, menos um Mandrake e um Durango Kid, que eu nem gostava muito, só correria e tiroteio. Aí de repente ele disse
furioso:
- Aquela vaca!
- Quem? A Malu? Ela falou alguma coisa?
- A Malu não falou nada. Vaca é a Rúbia, que ficou
o tempo todo dizendo que ia me levar junto, passando a
mão na minha cabeça, me dando cigarro e sorvete, falando que ia me ensinar a pular do trapézio, a andar com um
pé só naqueles cavalinhos. Depois, na hora agá, tirou o
rpo fora, falou que o Saul não queria que eu fosse, que
'U era menor.
- Menor do que ele?
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c.rrpirn sempre escorregando,
e pensei também em mim
mesmo, atormentando as formigas. Eu só fazia essas besteiras - cravava espinho de bergamoteira no bumbum delas,
matava passarinho com bodoque, jogava sal em lesma, fazia círculo de fogo em volta de escorpião e lacraia - quando
o Bituca não tava comigo. Quando a gente andava junto
ele inventava teatrinho de caixa de sapato, subia em árvore,
fugia pra brincar no rio, me emprestava gibi, me dava figurinha do Ídolos da tela e tudo. Eu ia sentir uma baita falta
dele. Mas eu disse que não, eu disse depressa que não, porque a minha barriga tava toda remexida e eu não queria
vomitar ali mesmo, na frente de todos os borlantins, da
Nyoka e do Lothar, lá na sombra da palmeira, olhando pra
gente, eles iam me achar nojento. Ele me fez jurar que não
ia contar nada pra ninguém e eu jurei três vezes, por esta luz
que me alumia. Daí ele me estendeu a mão e falou que quando o Grande Circo Robatini voltasse de novo à cidade eu
fosse falar com ele, que me arrumava entrada de graça e eu ia
poder sentar lá na frente, nas cadeiras acolchoadas e não
nos poleiros onde a gente sempre ficava com a dona Laurita e a Malu. Quando ele falou isso tive certeza de que o
Bituca era mesmo meu amigo e tive vontade de abraçar ele,
mas precisei sair correndo pra não vomitar ali mesmo, na
frente do domador com a cabeça raspada e da Rúbia com
aquela Cinelândia e aquele Hudson nas mãos de unhonas
vermelhas.
- Não, bocó. Menor de idade. - Tirou um Hudson do bolso e acendeu com raiva.
.
- Cuidado - eu avisei. - Se a minha mãe entrar
de repente não vai gostar de te ver fumando.
- Que me importa - ele falou. E ficou fumando e
tomando guaraná. - Agora é muito tarde. Eu já tô viciado pra sempre. E tô desiludido da vida, posso fumar
quanto quiser.
Ele parecia muito triste, dum jeito que eu nunca tinha visto. O tempo todo me olhava com aquele olho enviesado, meio vesgo. Eu deixei ele ir bebendo o guaraná e
comer mais da metade do pacote de bolachinha. Depois
mostrei pra ele o almanaque novo do Superman que o
meu pai tinha trazido, perguntei se ele já tinha lido e ele
falou que não gostava do Superman. Eu falei que no dia
seguinte, quando eu melhorasse, a gente podia ir tomar
banho no Uruguai. Ele disse que achava que amanhã ia
chover. Eu disse que não fazia mal, que se chovesse mesmo, e não tava com jeito, a gente podia chamar a Malu e
brincar de teatro no porão a tarde inteira, ela sabia A ré
misteriosa de cor e salteado. Ele disse que já tava cheio de
teatro, que tinha rato no porão, que a Malu era uma chata de perna fina, que A ré misteriosa era muito besta. Eu
suspirei e disse que tinha conseguido a June Allyson, a
Debbie Reynolds e a Fada Santoro pro álbum de Ídolos da
tela dele. Ele disse que não tava mais colecionando figurinha e daí a gente ficou calado uma porção de tempo. Era
quase de noitezinha, e a essa hora a radiola do circo começava a tocar "Recuerdos de Ypacaraí", que era sempre a
primeira música e vezenquando a Rúbia cantava no Big
Show de domingo. Mas agora o circo tinha ido embora c
o silêncio era muito grande. Ele devia estar pensando o
mesmo que eu, porque de repente apagou o cigarro, jogou
a ponta pela janela, acendeu outro e ficou abanando a
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fumaça com o almanaque do Superman. Eu pensei que se
ele não gostava mais mesmo daqueles brinquedos todos
eu ia ter que passar o resto da minha vida atormentando
formigas embaixo da goiabeira. E quase fiquei doente de
novo, só de pensar. O Bituca era bacana, era meu amigo
_ e eu precisava consolar ele de qualquer jeito. Então eu
disse:
_ Não fica assim, Bituca. O Robatini não é o único
circo do mundo. Ano que vem chega outro e daí tu foge
com ele. Pode ser até que dessa vez eu tome coragem e vá
junto contigo.
- O ano que vem - ele resmungou, olhando
enviesado e soltando a maldita fumaça do maldito
Hudson bem na minha cara -, o ano que vem. Falta
muito pro ano que vem. Eu devia era ter fugido com o
Robatini mesmo. Mas agora é muito tarde.
_ Mas vem outro - eu insisti. - E aí eu vou junto
contigo.
_ Não. É muito tarde. E não é só o circo. Aquela
vaca da Rúbia. Mulher nefasta, me apunhalando cobardemente pelas espáduas (ele vezenquando falava que nem
nas peças - acho que era influência da Rúbia e do Saul).
Tu é muito jovem pra entender minha desdita.
Ele tomou o último gole de guaraná. Depois apagou
e jogou o outro Hudson pela janela e disse que ia dar uma
volta. Antes que ele fosse embora eu ainda tentei dizer
mais alguma coisa.
Acho que ia falar na Rúbia. Mas ele me olhou torto
e antes de bater a porta repetiu que era muito tarde, que
agora era tarde demais. Eu abri o alinanaque do Superman, tentei ler mas não consegui. Naquela tarde eu tava
achando a Míriam Lane, o Perry White e o Jimmy Olsen
bestas demais por não descobrirem nunca que o Clark
Kent é o Super-Homem.
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Não entendo nada de retratos, mas acho que está bom.
Vou mandar colocar uma moldura e pregar no corredor
de entrada.
Retratos
Sábado:
N
unca havia reparado nele anres. Na verdade
não tem nada que o diferencie dos demais. k mesmas
roupas coloridas, os mesmos cabelos enormes, o mesmo
ar sujo e drogado. Nunca os vira de perto como hoje. Da
janela do apartamento eles pareciam formar uma única
massa ao mesmo tempo colorida e incolor. Isso não me
interessava. Nem me irritava. Mesmo assim cheguei a assinar uma circular dos moradores do prédio pedindo que
eles se retirassem dali. Mas não aconteceu nada. Falaram-me no elevador que alguém muito importante deve protegê-los. Achei engraçado: parecem tão desprotegidos.
Creio que foi isso que me levou a descer até à praça
hoje à tarde. Sim, deve ter sido. Não achei nada de estranho neles, nada daquilo que a circular dizia. Só estavam
ali, de um jeito que não me ofendia. Um deles sorriu e
me fez o retrato. Era como os outros, exatamente como
os outros, a única coisa um pouco diferente era aquele
colar com uma caveira. Todos usam colares, mas nenhum
tem caveira. Uma pequena caveira. O retrato está bom.
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Domingo:
Saí para comprar o jornal e encontrei com ele. Perguntou se eu queria fazer outro retrato. Eu disse: já tenho
um, para que outro? Ele sorriu com uns dentes claros:
faça um por dia, assim o senhor saberá como é seu rosto
durante toda a semana. Achei engraçado. Vocêfará sete,
então - eu disse. Ele disse: sete é um número mágico,
farei sete. Pediu que eu sentasse no banco de cimento e
começou a riscar. Observei-o enquanto desenhava. Na
verdade, ele não se parece com os outros: está sempre
sozinho e tem uma expressão concentrada. De vez em
quando erguia os olhos e sorria para mim. Achei estranho porque nunca ninguém sorriu para mim - nunca
ninguém sorriu para mim daquele jeito, quero dizer. A
mão dele é muito fina, meio azulada. Quando desenha,
tem uns movimentos rápidos. Quando não desenha fica
parada. Às vezes chega a ficar parada no ar. É tão estranho. Nunca vi ninguém ficar durante tanto tempo com
a mão parada no ar.
Enquanto ele desenhava, eu sentia vergonha - estava
de terno, aquele terno velho que uso aos domingos, e gravata. Também não tinha feito a barba. A garrafa de leite
pesava na minha mão, o jornal começava a manchar as calças de tinta. Por um momento senti vontade de sentar no
chão, como eles. Creio que achariam ridículo. Me contive
até que terminasse. Quando estendeu a folha eu não pude
me conter e disse que tinha gostado mais do de ontem. Ele
riu: sinal que no sábado seu rosto é melhor que no domingo.
Paguei e vim embora. O de hoje está ao lado do de ontem.
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Pareço mais velho, mais preocupado, embora os traços sejam os mesmos. Amanhã perguntarei seu nome.
Segunda-feira:
Tinha me esquecido dele até a hora de voltar para
casa. Trabalhei muito o dia inteiro. Voltei cansado, com
vontade de tomar banho e dormir. Ele me enconttou na
porta do edifício. O nosso trato, disse. Eu disse ah, sim, e
acompanhei-o até a praça. Ele caminha devagar, não parece perigoso como os outros. Não sei exatamente o que,
mas existe nele qualquer coisa muito diferente. À.5 vezes
penso que vai ter uma tontura e cair. É quando fecha os
olhos comprimindo uma das mãos contra a cabeça. Acho
que sente fome. Pensei em convidá-lo para comer comigo,
mas desisti. Os vizinhos não gostariam. Nem o porteiro.
Além disso o apartamento é muito pequeno e está sempre
desarrumado porque a empregada só vem uma vez por
semana. Anda sempre descalço, tem os pés finos como as
mãos. Parece pisar sobre folhas, não sei explicar, não existem folhas na praça. Não agora, só no outono. As unhas
são transparentes. E limpas.
Quando estava terminando de desenhar, perguntei o
seu nome. O meu nome não são letras nem sons - ele disse
-, o meu nome é tudo o que eu sou. Quis perguntar que
nome era, mas não houve tempo, ele já me estendia a
folha de papel. Paguei e não olhei. Só vim olhar aqui em
cima. Fiquei perturbado: não estou mais moço como ontem
e anteontem. A cara que ele desenhou é a mesma que vejo
naquele espelho da portaria que sempre achei que deforma as pessoas. Coloquei o papel em cima da mesa, ao lado
dos outros. Depois achei melhor pregar na parede do
quarto, em frente à cama. Espiei pela janela, mas não COl1st'l!ui discingui-lo no meio dos outros.
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Terça-feira:
Quando saí, pela manhã, procurei por ele. Queria
convidá-lo para tomar a média comigo no bar da esquina. Mas não o vi. Ontem à noite fez frio. Ouvi dizer que
eles dormem na praia. De madrugada fiquei pensando
nele, estendido na areia sobre aquele casaco militar puído que ele tem. Senti muita pena e não consegui dormir.
Foi difícil trabalhar hoje. Percebi que a secretária tem as
pernas peludas e o chefe está muito gordo. Sei que isso
não tem importância, mas não consegui esquecer o tempo todo. De tardezinha, ele me esperou na esquina. Disse: hoje é o quarto. Faltam três, eu respondi. E senti um
aperto por dentro. Tem uns olhos escuros que ficam fixos, parados num ponto, do mesmo jeito que as mãos
no ar. A calça está rasgada no joelho. Nunca o vi falar
com ninguém. Os outros ficam sempre em grupo, falando baixinho, olhando com desprezo para os de terno e
gravata como eu. Ele está sempre sozinho. E não me olha
com desprezo.
Terminou de desenhar e me ofereceu uma margarida
junto com o papel. Eu nem tinha reparado que havia margaridas na praça. Para falar a verdade, acho que nunca tinha visto uma margarida bem de perto. Ela é redonda.
Não exatamente redonda, quero dizer, o centro é redondo
e as pétalas são compridas. O centro é amarelo, cheio de
grãos. As pétalas são brancas. Coloquei num copo com
água e um comprimido dissolvido dentro, disseram que
faz a flor durar mais. O retrato é muito" feio. Não que seja
malfeito, mas é muito velho, tem uma expressão triste,
cinzenta. Fiquei surpreso. Cheguei a sentir medo de me
olhar no espelho. Depois olhei. Vi que é a minha cara
mesmo. Acho que ele caprichou mais no primeiro porque
não me conhecia: agora que sou freguês pode me retratar
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'orno realmente sou. Percebi que as vizinhas me observavam quando eu falava com ele.
Quarta-feira:
o dia custou a passar. São todos tão pesados no escritório que o tempo parece custar mais a passar. Logo que
os ponteiros alcançaram as seis horas, apanhei o casaco e
desci correndo as escadas. Esbarrei com o chefe no caminho. Percebi que ele caminha mal por causa dos pés inchados. Fiquei olhando para os pés dele: não parece pisar
folhas. Na rua, vi uma vitrine cheia de colares, pensei que
ele gostaria de um. Achei que seria bobagem, o mês está
no fim, o dinheiro anda curto. Mas não me contive. Voltei
e entrei na loja. A moça me olhou com uma cara estranha.
É para minha filha, menti. Trouxe o embrulho pesando
no bolso, com medo de que ele não estivesse na esquina.
Estava. De longe o vi, muito magro e alto. Baixei a cabeça
fingindo preocupação. Ia passando por ele, mas me segurou pelo braço. Segurou devagar. Mesmo assim senti a
pressão de seus dedos. Fazia frio. Perguntei a ele se não
sentia frio. Disse: nâo esse mesmo frio que o senhor sente.
Não entendi.
O desenho ficou muito feio. Coloquei-o na parede,
ao lado dos outros. Pareço cada dia mais velho. Acho
que é porque não tenho dormido direito. Tenho olheiras
escuras, a pele amarelada, as entradas afundam o cabelo.
Apertei a mão dele. É muito fria. Faltam só dois. Descobri hoje que seus olhos não são completamente escuros.
Têm pequenos pontos dourados nas pupilas. Como se
fossem verdes. As vizinhas me observavam pelas janelas
e falavam baixinho entre si. Pela primeira vez deixei de
cumprimentá-Ias.
92
Quinta-feira:
Novamente não consegui dormir. Fiquei olhando os
retratos na parede branca. É horrível a diferença entre eles,
envelheço cada vez mais. Senti muito medo quando pensei no sétimo retrato. E fechei os olhos. Quando fechei os
olhos julguei sentir na testa o mesmo contato frio de sua
mão na minha, ontem à tarde. Um toque frio e ao mesmo
tempo quente, ao mesmo tempo forte e ao mesmo tempo
leve. De repente lembrei do que ele disse no dia em que
me deu a margarida. Flor e abismo. Ou seria: flor é abismo?
Não lembro. Sei que era isso. Não sei como tinha esquecido. Levantei para olhar a margarida. Continuava amarela
e branca, redonda e longa.
O dia no escritório foi desesperador. Errei várias
vezes nos cálculos. Fui grosseiro com a secretária quando ela me chamou a atenção. Ela ficou ofendida, foi
fazer queixa ao chefe. Temi que ele me chamasse em
sua sala, mas isso não aconteceu. Pretextei uma dor de
cabeça para sair mais cedo. Sentei num bar e tomei
duas cervejas. Quando botei a mão no bolso senti o
peso do colar que não tive coragem de dar a ele. A cidade estava toda cinzenta, embora houvesse sol. As
pessoas tinham medo no rosto. Dez para as seis, me
levantei. Ele estava no mesmo lugar. Precisei me conter
para não correr até ele. Tratei-o com frieza. Mas quando ele disse que o dia estava bonito hoje, não pude me
segurar mais e sorri. Estava realmente um bonito dia,
as pessoas todas alegres. Não olhei para ele, não quero
que pense que sinto inveja ou qualquer coisa assim.
Trouxe o retrato embrulhado. Pela primeira vez, o
ascensorista não me cumprimentou nem abriu a porta do
elevador. Pareço um cadáver no retrato. Não, é exagero.
Estou mesmo muito abatido. Mas não tenho aquela pele
93
.svcrdinhada. Continua fazendo frio. Amanhã comprarei
lima cama, quero convidá-I o para dormir aqui nestas noitcs frias. Direi que a cama é de minha irmã que está viajando. Não tive coragem de dar a ele o colar, poderia pensar coisas, não sei. Amanhã não comprarei cigarros para
poder pagar o último retrato.
Sexta-feira:
Trabalhei só pela manhã, hoje. Ao meio-dia senti
que não suportava mais aquele ambiente, aquelas pessoas
pesadas como elefantes esmagando os tapetes, aquelas
máquinas batendo. Disse ao chefe que me sentia mal. Ele
foi compreensivo. Disse que notou que ando meio abatido. Tirei um vale, menti que era para comprar remédio.
Entrei num cinema, assisti a duas sessões seguidas esperando as seis horas. No filme tinha um moço de motocicleta parecido com ele, só parecido, descobri que não existe ninguém igual a ele. Lembrei da minha infância, não
sei por que, e chorei. Fazia muito tempo que eu não chorava. Às seis horas, fui até a praça. Mas ele não estava. Subi
para tomar banho. Daqui a pouco vou descer de novo.
Não sei por que, mas estou chorando outra vez.
Mais tarde:
o colar, convidá-lo para dormir aqui, para comer comigo.
Acabei de tomar três comprimidos para dormir, estou me
sentindo amortecido. Amanhã talvez ele venha.
Sábado:
Acordei muito cedo e fui para a praça. Mas não consegui encontrá-lo, Tomei coragem, aproximei-me dos outros e perguntei onde ele andava. Alguns nem responderam. Outros ficaram irritados, perguntaram o nome? mas
o senhor não sabe nem o nome dele? Eu fiquei com vergonha de repetir o que ele tinha dito. Não fica bem para um
homem da minha idade dizer essas coisas. Ninguém sabia. Descrevi seu jeito, seu rosto, sua calça azul furada no
joelho, suas mãos, aos poucos fui perdendo a vergonha e
falei no seu caminhar sobre folhas, das suas mãos paradas
no ar, seus olhos fixos. Ninguém sabia. Perguntei às vizinhas. Três delas me bateram com a porta na cara, resmungando coisas que não entendi. Outras duas disseram
que tinham quartos para alugar, o que também não entendi. Saí a caminhar pela cidade, gastei o resto do dinheiro em cerveja, não consegui encontrá-lo. Telefonei
para todas as delegacias e hospitais, fui ao necrotério.
Não estava. Voltei para casa todo molhado de chuva, tossindo e espirrando. Caí na cama e dormi.
Domingo:
Aconteceu uma coisa horrível. É muito tarde e ele
não veio. Não consigo compreender. Talvez tenha ficado
doente, talvez tenha sofrido um acidente ou qualquer coisa assim. É insuportável pensar que esteja sozinho, com
suas mãos paradas no ar, ferido, talvez morto. Chorei
muitas vezes olhando a margarida que ele me deu. Logo
hoje que ia desenhar o último retrato, que eu ia dar a ele
Passei o dia na praça. Ele não apareceu. Levei os retratos comigo. Olhei-os, atentamente. São seis. O último
parece um cadáver. Eles me olhavam com desprezo, os
retratos. Levei a margarida. Fez calor o dia inteiro. Suei.
Esqueci de fazer a barba. À tarde, a secretária passou com
94
9S
namorado e me viu deitado na grama. Não me cumprimentou e cochichou qualquer coisa com o namorado:
uando já era muito tarde percebi que ele não viria. Nuna mais. Voltei devagar para casa, mas o porteiro não me
deixou entrar. Mostrou-me uma circular feita pelas vizinhas dizendo coisas que não li. Vim para o bar onde estou
escrevendo. Chove. Talvez ele tenha ido embora, talvez
volte, talvez tenha morrido. Não sei. A minha cabeça estala. Eu não suporto mais. Espalhei os retratos em cima da
mesa. Fiquei olhando. Despetalei devagar a margarida até
não restar mais que o miolo granuloso. O sexto retrato é
um cadáver. Acho que sei por que ele não veio. O barulho
da chuva é o mesmo de seus passos esmagando folhas que
não existiam.
Flor é abismo, repeti.
Flor e abismo. E de repente descobri que estou morto.
96
Sob
O
céu de Saigon
Para Regina Valladares
Ele
era um dessesrapazesque, aos sábados,
com a barba por fazer, sobem ou descem a rua Augusta.
Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos
muito escuros e o rosto um tanto amassado por baixo da
barba crescida, quem olhasse para um deles mais detidamente, mas poucos o fazem, perceberia que dormiu mal
ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou
qualquer coisa assim. Costumam usar jeans desbotados,
esses rapazes, tênis gastos, camisetas e, quando mais frio,
alguma jaqueta ou suéter geralmente puídos nos cotovelos. Quase sempre levam as mãos nos bolsos, o que torna
impossível a qualquer um que passa ver melhor suas
unhas roídas, seus dedos indicador e médio da mão direita, ou da esquerda, se forem canhotos, amarelados pelo
excesso de fumo. Eles olham para baixo, não como se tivessem medo de tropeçar nos solavancos frequentes das
alçadas da Augusta, pois raramente usam sapatos, e as
solas de borracha dos tênis amoldam-se com certa suavidade às irregularidades do cimento; olham para baixo, e
isso seria visível se se pudesse localizar o brilho nos seus
olhos de pupilas um tanto dilatadas por trás das lentes
97
Ela era uma dessas moças que, aos sábados, com uma
bolsa pendurada no ombro, sobem ou descem a rua Ali
gusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos óculos
muito escuros e o rosto um tanto amassado que a ausênci.i
total de maquiagem nem pensou em disfarçar, quem olhm
para uma delas mais detidamente, e alguns até o fazem,
pedindo telefone ou dizendo gracinhas sem graça, às vezes
grossas, porque elas caminham devagar, olhando as coisas,
não as pessoas, mas quem olhar com atenção perceberá
que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim, sem muita importância. Costumam, elas também, usar jeans desbotados,
sapatos de salto baixo, às vezes tênis gastos, camisetas ou
alguma blusa de musselina, seda, crepe ou outro tecido
assim fino, que um rápido olhar mais arguto perceberia de
imediato não se tratar de uma prostituta ou empregada
doméstica. Pois têm certa nobreza, essas moças, não se sabe
se pela maneira altiva como fingem não ouvir as gracinhas
que alguns dizem, se pelo jeito firme de segurar a alça da
bolsa com seus dedos de unhas sem pintura, conscientes
de que são fêmeas e estão na selva. Num súbito encontrâo,
que não seria impossível, menos aos sábados, é verdade,
do que nas sextas-feiras ao meio-dia ou de tardezinha, se
alguém arrebatasse a bolsa a uma dessas moças para depois
rasgá-Ia num terreno baldio, ficaria decepcionado com o
dinheiro escasso, o talão de cheques sem saldo, uma agenda
de poucos compromissos, tickets de metrô, algum livro de
poesia, esoterismo ou psicologia, uma foto de criança, raramente de homem, quem sabe um cartão de crédito vencido e entradas para teatro ou show, já usadas. Essas moças
não olham para baixo nem para cima: com passo decidido,
olham direto para a frente, como se visualizassem além do
horizonte um ponto escondido para esses outros que passam quase sempre sem vê-Ias, para onde se dirigem com
seus jeans gastos, suas bolsas velhas, suas peles de nenhum
artifício. Dessa nitidez no passo, dessa atrevida falta de artifícios no rosto é que brota quem sabe aquela impressão
de nobreza transmitida tão fortemente quando passam,
mesmo aos que não as olham nem mexem com elas. Po-
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escuríssimas dos óculos, como se procurassem tesouros
perdidos, bilhetes secretos, alguma joia ou objeto que,
mais que valor, guardasse também uma história imaginária ou real, que importa? Mas às vezes olham também
para cima, e quando o céu está claro, o que é raro na cidade, pode-se imaginar que suas peles brancas procuram
desesperadas e quase automaticamente
pela luz do sol. E
quando o céu está escuro, o que é bem mais comum, sobretudo nesses sábados em que rapazes assim costumam
subir ou descer a rua Augusta, pode-se imaginar que procurem balões juninos, objetos voadores não identificados, paraquedistas, helicópteros camuflados, zepelins ou
qualquer outra dessas coisas pouco prováveis de serem
encontradas sobrevoando ruas como a Augusta num sábado à tarde. Ou horizontes, talvez busquem horizontes
entre o emaranhado de edifícios refletidos nas lentes negras dos óculos que escondem o brilho ou a intenção do
fundo dos olhos no momento em que um desses rapazes
para na esquina, como se tanto fizesse dobrar à esquerda
ou à direita, seguir em frente ou voltar atrás. Por serem
como são, seguem sempre em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. E por serem tão iguais, quem prestar
atenção em algum deles, mas poucas vezes ou nunca alguém o faz, jamais saberá se se trata de muitos ou apenas
um. Um único rapaz: este, com a barba por fazer e mãos
enfiadas no fundo dos bolsos, que agora, logo depois de
cruzar o topo da avenida Paulista, começa a descer a rua
Augusta em direção aos Jardins no sábado à tarde.
*
dcrn parar para folhear revistas estrangeiras em alguma
E porque o mundo, apesar de redondo, tem muitas
esquinas, encontram-se esses dois, esses vários, em frente
ao mesmo cinema e olham o mesmo cartaz. Love kills, love
kills, ele repete baixinho, sem perceber a moça a seu lado.
And this is my way, ela cantarola em pensamento, na versão de Frank Sinatra, não de Sid Vicious, sem perceber o
rapaz a seu lado. Outros entram e saem, sem vê-los nem
ver-se, remanescentes punks, pregos nas jaquetas, botas
pretas,' intelectuais de óculos, aros coloridos, paletós xadrezes, adolescentes japonesas, casais apertadinhos, elas
comendo pipocas, senhoras de saia justa, gente assim, de
todo tipo.
E talvez porque rapazes e moças como ele e ela aos
sábados à tarde raramente ou nunca se enfiam pelos cinemas, preferindo subir ou descer a rua Augusta olhando as
coisas, não as pessoas, os dois se encaminham para as entradas em arco do cinema. Então param e olham para
cima, suspirando em suave desespero, um céu tão cinza,
como se fosse chover, oh céu tão triste de Sampa.
E então como se um anjo de asas de ouro filigranado
rompesse de repente as nuvens chumbo e com seu saxofo-
ne de jade cravejado de ametistas anunciasse aos homens
daquela rua e daquele sábado à tarde naquela cidade a irreversibilidade e a fatalidade da redondeza das esquinas do
mundo - ele olhou para ela e ela olhou para ele.
Ele sorriu para ela, sem ter o que dizer. Ela também
sorriu para ele. Mas disse, a moça disse:
- Parece Saigon, não?
- O quê? - ele perguntou sem entender.
Ela apontou para cima:
- O céu. O céu parece Saigon.
Surpreso, e meio bobo, ele perguntou:
- E você já esteve em Saigon?
- Nunca - ela sorriu outra vez. - Mas não é preciso. Deve ser bem assim, você não acha?
- O quê? - ele, que era meio lento, tornou a perguntar.
- O céu - ela suspirou. - Parece o céu de Saigon.
Ele sorriu também outra vez. E concordou:
- Sim, é verdade. Parece o céu de Saigon.
Nesse momento - dizem que cabe aos homens esse
gesto, e eles eram mesmo meio antigos - talvez ele tenha
pensado em oferecer um cigarro a ela, em perguntar se já
tinha visto aquele filme, se queria tomar um café no Ritz,
até mesmo como ela se chamava ou alguma outra dessas
coisas meio bestas, meio inocentes ou terrivelmente urgentes que se costuma dizer quando um desses rapazes e
uma dessas moças ou qualquer outro tipo de pessoa, e são
tantos quantas pessoas existem no mundo, encontram-se
de repente e por alguma razão, sexual ou não, pouco importa se por alguns minutos ou para sempre, tanto faz,
por alguma razão essas pessoas não querem se separar.
Mas como ele era mesmo sempre um tanto lento, não
perguntou coisa alguma, não fez convite nenhum. Nem
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banca, sem jamais comprar nada, deter-se para conferir os'
preços estampados nas portas dos restaurantes, olhar maãs ou morangos, tocar rosas ou antúrios, mas geralmente
apenas seguem em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. Talvez sejam tantas e, se realmente o são, tão parecidas que, se alguém do alto de uma janela no Conjunto
Nacional olhasse para baixo e as visse agora, poderia pensar
mesmo que são uma só. Uma única moça: esta, com a
bolsa velha pendurada no ombro, que depois de cruzar o
topo da avenida Paulista começa a descer a rua Augusta em
direção aos Jardins no sábado à tarde.
*
ela. Que lenta não era, mas apenas distraída. Ela então
sorriu pela terceira vez, e já de costas abanou de leve a mão
abrindo os dedos, como Sally Bowles em Cabaret, e continuou a descer a rua Augusta. Ele também sorriu pela
terceira vez meio sem jeito como era seu jeito, enfiou as
mãos ainda mais fundo nos bolsos, como Tony Perkins
em vários filmes, coçou a barba por fazer e resolveu subir
novamente a rua Augusta.
Uns cem metros além, ela pela alameda Tietê, ele
pela Santos, esse rapaz e essa moça, ou talvez os dois, ou
quem sabe até mesmo nenhum, mas de qualquer forma
ao mesmo tempo, pensam vagos e sem rancor mas estes
sábados sempre tão chatos, porra, nunca acontece nada.
Por associação de ideias nem tão estranha assim, ele ou
ela, ou nenhum dos dois, talvez olhem ou não para trás
procurando quem sabe algum vestígio, um resto qualquer
um do outro pela rua Augusta deserta do sábado à tarde.
Mas rapazes e moças assim não costumam deixar
rastros, e ambos já tinham sumido em suas esquinas de
ladeiras súbitas e calçadas maltratadas. Acima deles, nuvens cada vez mais densas escondem súbitas o anjo. O céu
de chumbo, onde não seria surpresa se no próximo segundo explodisse um cogumelo atômico, caísse uma chuva
radioativa ou desabasse uma rajada de napalm, parecia
mesmo o céu de Saigon, quem sabe pensaram. Embora,
de certa forma, eles nunca tivessem estado lá.
102
Aniversário
Havia
esperadodurante todo o dia. O quê?
nem ele próprio saberia dizer. Acordara já com a fatalidade da espera colocando um brilho triste nos olhos. E o
projetara sobre a mãe, primeira pessoa a abraçá-lo, que
recuou um pouco ofendida. O mesmo recuo sentira estender-se às outras pessoas, à medida em que o abraçavam
e felicitavam. Examinara-se ansioso ao espelho, tentando
descobrir se o ano a mais também lhe colocara uma ferocidade a mais ou um novo espanto no rosto. Mas não.
Nada. Lá estavam as mesmas feições um pouco vagas, o ar
exato de quem espera alguma coisa. E contudo, nesse dia,
ele esperava mesmo. A espera abstrata cedera lugar à outra
- concreta. Ajeitara o rosto da melhor maneira possível,
como se o sentimento novo (e no entanto tão antigo) fosse algo a esconder. Porque ele não queria surpreender nem
chocar nem ferir. Pertencia àquela estranha espécie de pessoas que flutuam pelo mundo, sutis, evitando esbarrar em
qualquer coisa. Não se sabia se procedia assim por simples
delicadeza ou para defender-se. O fato é que era assim. E,
portanto, desagradava-lhe aquele jeito de espera gritando
alto no corpo inteiro.
103
Com alguma sofreguidão libertou-se dos abraços,
beijos e presentes de pai, mãe, irmãos e empregados - e
partiu para a aula. Tomou o ônibus mais tranquilizado. As
pessoas, ali, não sabiam que estava de aniversário. Examinavam-no rápidas, reunindo no olhar as características
para definir um estudante e passavam adiante, aliviadas
por não precisarem deter-se. O alívio delas fundia-se com
o alívio dele - e o ônibus arfava, num suspiro uníssono.
Na aula cantaram o parabéns pra você nesta data
querida etc. e ele agradeceu com um esbarrão na cadeira
da frente e uma pisada no pé do colega ao lado. Para cúmulo da desgraça, era dia de aula de Inglês, e ele teve que
suportar o "happy birthday to you" etc. Novo esbarrâo,
nova pisada. Esquivou-se a manhã toda, adivinhando um
abraço em cada braço que se aproximava, felicitações em
cada boca entreaberta. E não era pudor, não era timidez,
não era sequer o seu antigo receio de chamar a atenção
- era o desejo de não esperar porque ele sabia que não
viria, fosse lá o que fosse. Então, amargo, ele preferia cortar de início qualquer possibilidade de concretizaçâo da
espera - porque ele sabia, com a lucidez insone dos que
apenas pressentem, a possibilidade jamais se concretizaria.
Mesmo assim, sucediam-se braços e abraços, bocas e palavras. Mas os corpos que os proferiam, os mais inteligentes, logo esbarravam com aquela frieza e se afastavam com
a dignidade tardia dos recusados. Os mais burros insistiam, fazendo perguntas, protestos de amizade que somente conseguiam aumentar o espaço em branco que se
instalara dentro dele.
E nesse espaço em branco ele colocara uma praça,
um pôr do sol no Guaíba, uma rosa amarela, um canteiro
de margaridas e uma fuga de Bach. Mas nem ele sabia.
Colocara lentamente, nos dezenove anos em que fora vivendo, sem ligar muita importância a isso. Eram todas
coisas leves, mas agora pesavam e o faziam transpirar,
acendendo um cigarro e pensando que precisava abandonar o vício de fumar. Mas é provável que ele soubesse não
estar o desconforto ligado ao fumo, e apenas dissimulado
afastasse a perspectiva de sofrimento. Porque se ele pensasse, sofreria. E como qualquer ser humano que não é
masoquista, ele não queria sofrer.
Voltou para casa e suportou o quadragésimo nono
parabéns pra você, à hora do almoço. Se houvesse um
quinquagésimo ele daria um grito, talvez solucionando
tudo, então. Mas não houve. Os vagos parentes e os inexistentes amigos que apareceram à tarde mantiveram-se
discretos no aperto de mão.
E já dormindo, à noite, ele acordou. Por um instante
permaneceu suspenso naquele segundo, como se estivesse
tudo tão escuro que ele não pudesse distinguir a si próprio
do resto da noite. Aos poucos foi tomando consciência da
extensão do corpo, do travesseiro embaixo da cabeça, do
livro em cima da mesa, do irmão roncando na cama ao
lado. Deteve-se nele, espantando-se com sua falta de sutileza. O irmão era gordo, roncava e brigava, impondo-se
sem o menor senso de decoro. Deus havia sido drástico
em cada um deles, concluiu. Pois que ele era leve demais,
esse o seu mal. Nesse instante invadiu-o uma enorme ternura por si mesmo. Estava fazendo dezenove anos e esperara o dia inteiro por uma coisa que não sabia o que era.
Olhou pela janela e viu a lua presa dentro da noite enorme. E sentiu-se preso, também. Vontade de abandonar o
corpo ali mesmo, no meio dos lençóis desfeitos, e sair correndo para outra esfera mais ampla. Esfera - espera, tão
parecidos, pensou. E enlaçou os joelhos numa carícia, levantando meio corpo na cama. Procurou um rótulo para
pacificar o sentimento, mas não o encontrou. Solidão,
melancolia, angústia, fossa, depressão - tudo ficava infi-
104
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nitamente inferior àquela espera enorme. Inventariou a
espera, descobrindo então aquela série de coisas dentro
dela. Mas era ainda incompleta. Havia coisas mais no
tempo, no vento, na noite - nele próprio. Levantou pisando devagar o chão de parquê. Caminhou até a cozinha
e acendeu a luz. Sobre o armário, o relógio mostrava cinco
minutos para a meia-noite. Abriu o refrigerador, retirou a
torta que a mãe mandara fazer e que jazia, incompleta,
sobre um prato novo. Cortou um pedaço grande, encheu
um copo de guaraná. Mas fez isso em tão lentos gestos
que quando ia começar a comer olhou o relógio e viu que
já passara da meia-noite. Que não estava mais de aniversário. Então espiou para fora e, vendo a lua, descobriu que
era a mesma que vira da janela do quarto. Apenas um
pouco mais alta no céu.
Aqueles dois
(História de aparente
mediocridade e repressão)
Em memória de Rofran Fernandes
I announce adhesiveness, I say it shall be limitless, unloosen'd
I say you shall yet find the friend you were lookingfor.
(Walt Whitman: "50 long!")
1
A
verdade é que não havia mais ninguém em
volta. Meses depois, não no começo, quando não havia ainda intimidade para isso, um deles diria que a repartição era
como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo,
orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente então, entre
cervejas, trocaram ácidos comentários sobre as mulheres
mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto,
lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clipes no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no
fim do expediente, champanhe nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso,
quem sabe? Mas nenhum deles se perguntou.
Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer outra assim. Apesar de, sem efusões, terem
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se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto.
Acontece porém que não tinham preparo algum para dar
nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-Ias.
Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo
um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta;
Saul, um a menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um
casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de
um noivado tão interminável que terminara um dia, e um
curso frustrado de arquitetura. Talvez por isso, desenhava.
Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul
ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma,
mas não se encontraram durante os exames. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o
seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano ai,
tudo bem ou no máximo, às sextas, um cordial bom-fim-de-semana-então.
Mas desde o princípio alguma coisa
- fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra
(ou a favor, por que não?) aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias,
com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio
daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) meses depois chamaria de "um deserto de almas", para não sentirem tanto
frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos,
sem querer justificá-Ias - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhe-
Eram dois moços sozinhos. Raul viera do Norte,
Saul do Sul. Naquela cidade todos vinham do Norte, do
Sul, do Centro, do Leste - e com isso quero dizer que
esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas
no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais
- uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não
tinham ninguém naquela cidade - de certa forma, também em nenhuma outra - a não ser a si próprios. Poderia dizer também que não tinham nada, mas não seria
inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um
toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e
um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do
quarto, uma outra reprodução também de Van Gogh:
aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta,
a cama estreita, as tábuas manchadas do assoalho. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era
um espelho refletindo quase fotograficamente o próprio
quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era
nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas
quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou de
olhos arregalados uma secretária. Ao contrário dos outros
homens, alguns até mais jovens, nenhum deles tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou
datilografa papéis oito horas por dia.
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cerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Mas tão
lentamente que eles mesmos mal perceberam.
2
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um
pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão
adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um
pouco menor e mais frágil, talvez pelos cabelos claros,
cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce
de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando
juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim
dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro e vice-versa. Como se houvesse, entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
3
Cruzavam-se silenciosos, mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de
vez em quando um pedia fogo ou um cigarro ao outro, e
quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti.
Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque
serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que
traziam de longe. Do Norte, do Sul, de dentro talvez.
Até um dia em que Saul chegou atrasado e respondendo a um vago que-que-houve contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por
educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que
o outro não se sentisse mal chegando quase às onze,
apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o
teclado da máquina e perguntou: que filme? Infâmia".
* The cbildrens hour, de William Wyler. Adaptação da peça de Lilian
Ilellmann.
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Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne,
um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o
devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito, não é aquela história das duas professoras que. Abalado, convidou Saul para um café, e no
que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais do que nunca parecendo uma prisão ou
clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.
Outros filmes viriam nos dias seguintes, e tão naturalmente como se alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas
esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela
vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta,
apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana
obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua
quitinete, outro no quarto de pensão, que o sábado e o
domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da
meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira, quando outra vez se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta,
outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas
falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta um do
outro que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas
aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se
pelos cantos e sacadas para trocar suas'histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou "Tu me
acostumbraste". Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e
vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados,
Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo
incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram,
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bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências
mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram,
não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem
telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho
"Tu me acostumbraste", entre inúmeros cafés e meio maço
de cigarros a mais que o habitual.
4
Os fins de semana foram se tornando tão longos que
um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o
número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se
ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saulligou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que
a empregada deixara pronta no sábado. Foi dessa vez que,
ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas.
Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem
com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair
da noite. Mas quem cantou foi Raul: "Perfídia", "La barca", "Contigo em Ia distancia" e, a pedido de Saul, outra
vez, duas vezes, "Tu me acostumbraste".
Saul gostava
principalmente daquele pedacinho assim "sutil llegaste a
mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón", Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das
nove, Saul se foi.
Na segunda-feira não trocaram uma palavra sobre o
dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes
foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichavam sem que eles percebessem. Nessa semana, pela pri-
112
meira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis
subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas
à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de
ponto era implacável. Pouco tempo depois, com o pretexto de assistir a Vtzgas estrelas da Ursa na televisão de Saul,
Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas
apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no
filme. Não paravam de falar. Cantarolando "10 che non
vivo" Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Você não se
sente só? Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, jogavam
cartas, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava vezenquando "EI día que me quieras", vezenquando "Noche de ronda" -, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha
de Carlos Gardel pousado no seu dedo indicador. Às vezes
olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia,
Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram
juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. Nesse
dia as moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois
não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas enigmáticas. Quando faltavam dez para as seis saíram juntos, altos
e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
5
Quando começava a primavera, Saul fez aniversário.
Porque achava seu amigo muito solitário ou por outra ra-
113
âo assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No
começo do veráo, foi a vez de Raul fazer aniversário. E
porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha
nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução
de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu
alguma coisa.
No Norte, quando começava dezembro, a mãe de
Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando
um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrarse nos despachos, processos, protocolos. À noite, em seu
quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias
ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante nessa semana. E teve
um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas
de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco,
abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando estranho, ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta-feira de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse
vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa e
mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, em vez de parecer mais velho ou mais
sério, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito
nessa noite. Raul falou longamente da mãe - eu podia
ter sido mais legal com ela, coitada, disse, e não cantou.
Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem
saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão, e quando
percebeu seus dedos tinham tocado a barba crescida de
Raul. Sem tempo para compreenderem,
abraçaram-se
fortemente. E tão próximos ficaram que um podia sentir
o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada;
o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A
Depois chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram
juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul
deu a Saul uma reprodução do Nascimento de venus, de
Botticelli, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quadro de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco
chamado Os grandes sucessosde Dalila de Oliveira. A faixa
que mais ouviram foi "Nossas vidas", prestando atenção
naquele trechinho que dizia "até nossos beijos parecem
beijos de quem nunca amou".
Foi na noite de 31, aberto o champanhe na quitinctc
de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade
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115
mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos
pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam
nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou aquilo que, quando Saul
levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa
cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como
eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa
como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes - ninguém, mundo, sempre - e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos
olhos injetados de fumo e choro e álcool. Embora fosse
sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte,
Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas
desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa, acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um
pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e
bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul,
mas não tinha fichas e era muito tarde.
6
que nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora
de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado,
Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse
você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e
baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás
do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um
podia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã
Saul foi embora sem se despedir, para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem
férias - e tinham planejado juntos quem sabe Parati,
Ouro Preto, Porto Seguro -, ficaram surpresos naquela
manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do
meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto
ao assunto: tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-Ias. Pálidos, os dois ouviram expressões
como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada
aberração", "comportamento
doentio", "psicologia deformadà', sempre assinadas por Um Atento Guardião da
Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul levantou de um salto. Parecia muito alto quando, com uma das
mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se
atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, depois de coisas como a-reputação-de-nossa-firma ou tenho-que-zelar-pela-moral-dos-meus-fimcionários, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala
vazia na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol
de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul
guardou no grande envelope pardo um par de enormes
olhos sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou
no seu grande envelope pardo a letra de "Tu me acostumbraste", escrita por Raul numa tarde qualquer de agosto e
com algumas manchas de café. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica psiquiátrica ou
uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos nas
janelas, a camisa branca de um e a azul do outro, estavam
ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo
táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ail,
alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já
tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro,
quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no
azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham
a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E
foram.
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117
Caio Fernando
Abreu
com todas as letras
NAS PÁGINAS
A VIDA
E A OBRA
AUTOR
SEGUINTES,
DE CAIO
DOS CONTOS
CONHEÇA
FERNANDO
DESTE
LIVRO.
ABREU,
Em trânsito, em busca
Nome completo Caio
Fernando Loureiro de
Abreu
Data e local de
nascimento
12 de
setembro de 1948, em
Santiago (RS)
Lugares
em que
morou Santiago, Porto
Alegre, São Paulo,
Campinas,
Rio de
Janeiro, Estocolmo,
Amsterdã, Londres,
Paris
Atividades
que
exerceu Escritor,
jornalista, dramaturgo,
editor, tradutor,
ator de
teatro
Gêneros literários
que praticou Conto,
romance, novela,
poesia, teatro, crônica,
roteiro
.trlnclpals
obras
Morangos mofados
(19K2), Triângulo das
1Í1Iua,I ( 1'lK3), Onde
andará Dulc« V,'illu?
(1990)
Data e l"l'lIl de
fllll'Cimento 2:1 de
fevereiro de 19Wi, em
Porto Alegre
Nascido na cidade gaúcha de Santiago, quase na
fronteira com a Argentina, já na adolescência Caio
Fernando Abreu estava estudando como interno em
Porto Alegre. Ali, na solidão característica dos internatos, leu, leu, leu - e escreveu. Começou a desenvolver sua veia de escritor, que já nascera em sua
cidade natal, quando, por instigação de um professor
de português, escreveu um dramalhão em forma de
romance. Em 1966, último ano da escola, enviou um
conto, "O príncipe sapo", para a revista Claudia, que
para sua surpresa foi publicado.
Em 1967 ingressa na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, onde vai estudar letras e arte dramática (sem concluir nenhum dos dois cursos). O tempo
é de grande agitação, de contestação à ditadura e ao
conservadorismo nos costumes. Caio mergulha nesse mundo; muda-se para São Paulo, para trabalhar
como repórter de Veja, em 1968.
Daí por diante nunca mais deixará de trabalhar
na imprensa e na literatura, borrando os limites entre
uma e outra coisa. Começa a publicar livros em 1969
e não vai mais parar em cidade alguma: mora no Rio,
em Porto Alegre, vai à Europa (onde vive como lavador de pratos, modelo vivo numa escola de Belas
Artes e faxineiro), retoma a São Paulo, Porto Alegre
de novo, passa temporadas na casa de amigos, como
no sítio de Hilda Hilst. Mas a vida era mais interessante do que tudo, incluindo as zonas de sombra:
Caio conhece as drogas, estuda astrologia a sério,
escreve de tudo, é censurado, e toca em frente.
Segue escrevendo de tudo, bem empregado na imprensa ou amargando períodos sem grana. Vitimado
pela AIDS, morre aos 48 anos, com obra consistente,
reconhecido como um grande escritor de sua época,
traduzido para várias línguas e contando com uma
legião de fiéis leitores em toda parte.
120
BIOGRAFIA
Com a palavra, o autor
A SEGUIR,
ALGUNS
CAIO FERNANDO
VOCÊ PODERÁ
RELATOS,
ABREU.
CONHECER
NOMES DA LITERATURA
IDEIAS
E CONFIDÊNCIAS
DE
ATRAVÉS DESSES DEPOIMENTOS,
MAIS DE PERTO UM DOS GRANDES
BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA.
Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos
choros. (Carta aos pais, 1969.)
Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas as
tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta
dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela,
como um cão com seu osso. (Londres, 2/3/1974.)
"Escrever é enfiar
um dedo na garganta."
Às vezes dá vontade de desistir de tudo, não sair mais de
casa, dormir e dormir. Acabo sempre acordando cedo no dia
seguinte, continuando tudo da mesma forma, na verdade não
sei bem pra quê, se não estou fazendo a única coisa que realmente me interessa: escrever. (Carta à mãe, 15/8/1979.)
Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar
um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. (00') Como é que é? Vai
ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre
DEPOIMENTO
121
brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente. (Carta a José Márcio Penido, 22/12/1979.)
H
não sou o que escrevo ou sim, mas
de muitos jeitos. Alguns estranhos."
"Tenho 'secado' muito meu texto, risco
adjetivos, detesto obscuridades."
rU
Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que
"desse certo", caso contrário deixaria de escrever. (Idem)
o escritor
é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos,
espelhos, imagens, palavras. O não real, o não palpável.
Você me dizia "que diferença entre você e um livro seu". Eu
não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns
estranhos. (Carta a Sergio Keuchguerian, 10/8/1985.)
Continuo a pensar que quando tudo parece sem saída,
sempre se pode cantar. Por essa razão escrevo. (Prefácio de
Pequenas epifanias: crônicas 1986/1995.)
Sou muito metódico, acho que uma vírgula é fundamental, um parágrafo é fundamental. Ultimamente tenho "secado" muito meu texto, risco adjetivos, detesto obscuridades,
rimas internas. A imagem que me vem é como quando você
toma banho, enrola uma toalha no corpo e a toalha fica muito
molhada, e aí você torce a toalha. Enxugar o texto, a imagem é exatamente essa. (Depoimento na Casa Ruy Barbosa,
1990.)
Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã,
mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O
verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta
essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às
vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por
muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar,
para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de
uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando
algo assim como "estou contente outra vez". (Extraído de
"Metâmeros". In: Ovelhas negras, 1995.)
Eu sempre vivi como quem quer se matar. Agora que sei
que vou morrer ... como eu amo a vida! (Extraído do texto "Caio, amado amigo", de Lya Luft, publicado na revista
Veja, em 8/3/2006.)
DEPOIMENTO
123
A língua da verdade
Contos, novelas e
romance festejados
pelo público e
premiados pela
critica. Também na
poesia, na crônica
e no teatro, Caio
criou grandes
obras. Um escritor
completo.
Se há algo em comum entre os vários
lados da obra de Caio Fernando Abreu poesia, crônica, jornalismo, teatro, conto,
romance, novela, roteiro -, esse algo certamente tem a ver com um profundo desejo de
expressar com toda a verdade os sentimentos
que iam na sua alma, dos mais singelos aos
mais complexos, dos mais leves aos mais terríveis. Suas obras são repletas de cenas que
ou se passaram com ele mesmo ou poderiam
ter-se passado: em seus escritos, há um sentimento de levar a vida até a arte, de fazer a
arte estar a serviço da vida, nunca de modo
trivial, nunca pelas exterioridades, sempre
pelo lado de dentro do indivíduo.
Isso não foi uma qualidade exclusiva dele:
em sua geração, a dos escritores que começaram a trabalhar durante os piores anos da
ditadura militar inaugurada pelo Golpe de
64, foi bastante comum considerar a literatura como depoimento direto da experiência.
Por isso é que, na obra de Caio, há tanta gente sofrendo de amor, de incompreensão, de
tristeza, assim como tanta gente encontrando
ou ao menos tentando encontrar momentos
de felicidade, que são iguais a momentos de
profunda fraternidade, e de vez em quando
alguma dose de amor.
Dessa forma, a obra de Caio oferece um
espetáculo de intensidade forte, caracterizado, entre outros traços, pela constante ultra-
124
CARACTERÍSTICAS
DA OBRA
passagem entre a ficção e a verdade factual, entre o inventado
e o biográfico, numa fluência que correspondia, em última
análise, a um dos ideais da geração hippie, da geração 68
- fazer da vida uma arte, transformar tudo em matéria digna, fossem os ideais políticos coletivos, fossem as demandas
individuais em busca da felicidade. A tal ponto se imiscuem
vida e ficção, que muitos de seus contos parecem crônicas, e
vice-versa, assim como suas cartas reais parecem textos escritos por personagens, para representação no palco.
Curiosamente, porém, os textos de Caio não se caracterizam por muitos detalhes descritivos, por cenários claramente desenhados, e até pelo contrário: o que mais encontramos são alguns poucos traços para dar ambiente, e direto os
personagens em cena, falando, pensando, vivendo. De certa
forma, sua obra é toda marcada por um sentido teatral muito
forte: não é à toa que as falas dos personagens dos contos, as
frases das crônicas e mesmo os poemas sejam tão facilmente
transpostos para a linguagem cênica.
Em 1982, Caio lança aquele que seria o mais famoso de seus
livros: Morangos mofados. Tendo mais de 30 anos, vai ser lido
como um ícone da geração de 20 anos. Sua obra, depois desse
sucesso, começou a ter muito mais divulgação e se tomou, de
certa forma, mais fluente, mais comunicativa, sem abrir mão
de enfrentar temas difíceis, como o fato de o autor ser portador
do vírus da AIOS, matéria de textos pungentes e belos.
Quem como ele viveu para escrever, e por isso mesmo
experimentou de tudo em matéria de gêneros literários, só
podia ter deixado uma obra tão eloquente, depoimento vivo,
querendo sempre conquistar um patámar forte de comunicação com o leitor, que por sinal é tratado como um igual,
como um irmão de infortúnio, como um potencial aliado na
busca pelo sentido da vida. Caio Fernando Abreu tentou de
tudo para alcançar essa conversa, e o leitor de hoje agradece
seu empenho bem-sucedido.
CARACTERÍSTICAS
DA OBRA
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