drácula 1 - a casa do mago das letras

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drácula 1 - a casa do mago das letras
DRÁCULA
O Príncipe das Trevas
L P Baçan
Copyright © 2014 L P Baçan
Todos os direitos reservados.
Proibidas a divulgação e reprodução
sem a expressa autorização do autor.
Londrina – PR
2014
ÍNDICE
Livro Um - As Virgens do Drácula
Livro Dois - Gargantas Dilaceradas
Livro Três - A Noite do Vampiro
Livro Quatro - Orgia de Sangue
Livro Cinco - Sepulcro Maldito
Livro Seis - Flor de Sangue
Livro Sete - Cemitério Sem Cruzes
Livro Oito - Naiara, a Mulher Vampiro
Livro Nove - Discípulos do Mal
Livro Dez - Batismo das Feiticeiras
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO UM
AS VIRGENS DO DRÁCULA
CAPÍTULO 1
A terrível seca que se abatera sobre o vale de Tisza
trouxera desolação e desespero aos seus habitantes. O rio,
antes a esperança de fertilidade daquelas terras, assemelhava-se, agora, à sua própria destruição.
A poluição o matava pouco a pouco. Era como um animal em decomposição, cujas carnes antes exuberantes e
musculosas, agora murchavam, revelando os contornos do
esqueleto, secando gradativamente, comido pelos vermes.
Do verde que antes cobria o vale, estendendo-se para
oeste, na direção das regiões montanhosas, restava agora
um amarelo caminhando rapidamente para o branco, à medida que o sol inclemente sugava, dia após dia, o que restava de vida naquela vegetação.
O vento subterrâneo, que aumentara de intensidade no
princípio de agosto, atingia, em meados de setembro, a
proporção de um hálito infernal que soprasse constantemente sobre as terras do vale, quando o filho do demônio
caminhava livremente pelas veredas do vale, em busca de
suas vítimas.
Nas tavernas, à noite, o assunto predileto deixara de
ser a política. As malhas da superstição começavam a se estender lentamente, prendendo almas e tolhendo-as, como
uma espécie de sufocação que viesse daquele vento maldito
que se abatia sobre todos.
Velhas histórias lembrando semelhanças entre os tempos começaram a ser desencadeadas e o medo uniu-se a
fervor místico. O pavor parecia ocultar-se na menor sombra
da noite, no piar de um pássaro caído de seu ninho, no cobrir da luta por uma nuvem mais extensa.
Em algumas casas os mais antigos ressuscitavam antigas práticas e juravam já haver vivido aquele tempo. Suas
vozes roucas, embarcadas por um medo que transformavam
seus corpos em caniços ao vento, mencionavam o filho do
Diabo, o Príncipe das Trevas, cuja forma onipresente fizera
cair sobre o vale uma maldição indestrutível, bíblica, que o
passar do tempo jamais afastaria.
Ela estaria ali, sempre presente, adormecida, à espera
de ressuscitar e reviver o antigo medo.
Os jovens, no entanto, livres do cansaço do trabalho,
viam em tudo aquilo apenas um tempo de transição.
O verão intenso se tornava ótimo para as diversões, os
jogos, os namoros. Havia sempre um local aprazível ainda
no rio; havia sempre a promessa de uma lua enorme no céu,
convidando seus corpos a se encontrarem nas veredas, nos
bosques, nos celeiros, contagiados por aquele frenesi voluptuoso que o vento mediterrâneo punha em seus corpos.
Alguns, mas ousados, aventuravam-se nas proximidades do castelo abandonado, desprezando conselhos já gastos, dando de ombros às recomendações que saiam trêmulas
das bocas dos velhos.
Era apenas uma construção semidestruída pelo fogo.
A ponte levadiça, parcialmente queimada, cobria o fosso
agora seco, já que as nascentes que o enchiam de água haviam sido desviadas para banhar os campos mais próximos.
O fogo destruirá algumas estruturas. Parte das torres
havia tombado, mas as altas e íngremes paredes de pedra,
com suas pequenas janelas, ainda permaneciam incólumes,
desafiando o tempo e impondo-se com a mesma força e o
temor que sugeriam.
Recortando contra o céu, o esboço do castelo assemelhava-se à arcada dentária de um estranho e terrível animal,
de presas pontiagudas e dentes desiguais, mordendo constantemente o infinito.
Grossas e velhas correntes ainda prendiam os travessões da ponta levadiça às paredes do castelo. Caminhar por
aqueles travessões era uma temeridade que alguns ousavam
enfrentar, apenas para gozar a tranquilidade e o isolamento
do enorme pátio de pedras quadradas.
Ali um casal podia permanecer por muito tempo longe
dos olhos curiosos de qualquer um, ouvindo o vento assobiar pelas janelas quebradas, deliciando-se com estranhos
ruídos que o sol forte provocava sobre a madeira ressequida e antiga.
Alguns ainda ousavam ir mais longe, atravessando o
pórtico de pedra, encimado por um brasão já coberto pela
ferrugem. Entravam, assim, numa ampla e velha sala. Restos das cortinas ainda pendiam nas janelas e davam a impressão de que apenas um vento mais forte seria o bastante
para desfazê-las em pó.
Os móveis quebrados e velhos lembravam um tempo
de luxo e requinte. Braseiros de cobre jaziam intocados.
Velhos castiçais incrustados nas paredes de pedra estavam
gastos pelo tempo.
A poeira cobria tudo isso com um manto. Ratazanas
enormes circulavam apresadas, assustando as garotas e fazendo-as se agarrarem aos namorados. Teias enormes penduravam-se por toda parte. Em seus centros, preguiçosas se
imóveis, descansavam aranhas peludas e negras à espera de
insetos.
A parte superior do castelo era impraticável. O fogo
destruíra as escadarias e deixara manchas negras nas pedras
outrora polidas.
Nos calabouços escuros que avançavam para o interior
da terra ninguém se aventurava a entrar, embora muitos
houvessem planejado isso.
Era uma aventura horripilante demais descer sequer
alguns degraus da escada que levava ao interior, congelando a mais ardente das coragens.
Parecia haver, na voz do vento, um alerta, um lamento,
um grito de pavor. Muitos ainda circulavam por ali, excitando-se no gosto da aventura, mas unânimes naquela sensação que invadia seus corpos e que nem os momentos de
idílio conseguiam superar.
O castelo assustava, mas atraía os mais corajosos, os
mais apaixonados, que desprezavam aquela ameaça vezes
sem conta e buscavam nele o local onde ocultar seus amores apressados e impacientes.
***
Kizna era uma cidade pequena, no centro privilegiado
daquele vale.
A agricultura era a única fonte de rendas e a seca parecia mergulhar a cidade num desânimo total, num desespero uníssono que despertava aquele pavor que crescia gradativamente, como se no fundo de cada uma das almas dali
houvesse, ainda que furtiva e ocultar, uma premonição a
respeito do que poderia vir em seguida.
Os homens não iam agora para as lavouras. Ficavam
na cidade, às portas das tavernas, bebendo e conversando,
olhando o céu com desalento.
Nas cavernas veladas, quando alguém ia um pouco
mais fundo naquele temor íntimo e comum, os olhares se
voltavam na direção do castelo, como se ali estivesse toda a
explicação de que precisavam.
Uma sensação de impotência, então, invadia a todos e
apenas podiam temer e esperar. Era apenas uma velha história, talvez uma lenda criada há muito tempo para assustar
as crianças mais peraltas.
A verdade, porém, era que aquilo fazia parte de suas
vidas agora. Muito tempo se passara, mas aquilo que se abatera sobre o vale era tido como certo e ainda despertava o
mais mortal dos temores.
Os velhos lembravam as desgraças, as mortes estranhas, e sanha assassina que vagava como uma sombra pelo
vale, sugando vítimas incautas, até que fosse silenciada, aprisionada para a eternidade e consumida pelo fogo que
havia sido ateado ao castelo.
A ameaça não fora extinta, nunca estivera extinta e todos sentiam isso. Permanecia ali, inatacável, nas muralhas
irregulares e semidestruídas do castelo.
Muita coisa acontecera depois daquilo. Vieram a guerra e a invasão nazista. A maioria das casas que ostentaram
um dia em suas fachadas as marcas daqueles tempos havi-
am sido reformadas. Poucas ainda guardavam as lembranças de balas e estilhaços que haviam ferido um dia suas estruturas.
Todos, porém, pareciam ter, guardada no fundo de suas mentes, aquela maldição que para sempre pairava sobre
o vale, outrora abençoado pela fertilidade trazida pelo rio.
A desgraça pairava sobre as lavouras verdejantes.
O mês de setembro avançava lentamente dentro daquele mormaço, à espera das chuvas. O temor acentuava-se
dia após dia, quando aquelas carroças coloridas entraram na
cidade, os cascos dos cavalos executando uma rítmica melodia que ecoava pelas casas e trazia o povo às portas e janelas.
Diante das tavernas, ainda com seus copos de bebidas
nas mãos, os homens olhavam. Ciganos coloridos, belas
mulheres, homens viris, imponentes animais com guizos
que acompanhavam o bater dos cascos no calçamento, pequenos pandeiros com fitas multicores que se harmonizavam com violinos tocados aos solavancos.
Uma repentina metamorfose operou-se na cidade, tirando-a daquele desânimo, daquele desespero. O espírito
festivo despertou dentro de cada um. A alegria pareceu voltar aos rostos de todos e as preocupações com a seca se foram, na festa trazida pelos ciganos.
Estes, em suas carroças, procuravam cativar a população, ganhando-lhes a simpatia, preparando terreno para
seus negócios futuros.
Os condutores exibiam largos sorrisos e acenavam. As
mulheres cantavam, agitando-se sensualmente, os corpos
ondulando com uma graça cheia de fascínio e veneno.
Na última das carroças, no entanto, havia um homem
cujos olhos não se moviam inquietos de um lado para outro
e cujos lábios não se abriam em sorrisos.
Fechando o cortejo, nem era notado por sua imobilidade. Seus olhos, pálidos e inexpressivos, olhavam para além dos telhados das casas, na direção do castelo. Seus lábios se apertavam num ricto de impaciência. Seu corpo disforme era uma aberração da natureza.
Uma corcunda deformava-lhe as costas projetando sua
cabeça para frente e para o lado. Sentado na boleia, manobrando as rédeas, seu corpo dava a impressão de que tombaria para frente a qualquer momento.
Uma de suas pernas apoiava-se contra o travessão do
freio e isso parecia dar-lhe o equilíbrio necessário. Seu rosto impassível não apresentava o menor traço de vida. Parecia talhado em pedra, com um dos olhos semicerrado que o
forçava a olhar tombando de lado a cabeça.
Ninguém viajava em sua carroça fechada. Sua passagem não foi notada, já que as belas mulheres, de roupas
soltas e cabelos esvoaçantes chamavam a atenção dos ho-
mens, enquanto os jovens viris, de coletes abertos nos peitos cabeludos e másculos, tentavam as garotas e mulheres,
levando-as sonhos de inquietação e volúpia.
Todo o clima da cidade alterou-se os comentários a
respeito dos ciganos contagiaram a cidade. Alguns seguiram a caravana até onde acamparam, num dos poucos pontos onde o rio Duna ainda oferecia alguma beleza.
As crianças quedaram-se à distância, observando a
montagem das barracas, temerosas de se aproximarem, mas
curiosas a respeito a respeito daquela gente cuja vida era
sinônimo de aventura e emoções.
Quando a noite chegou, fogueiras foram acesas para
que todas as barracas fossem montadas. Depois, uma alegre
festa teve início, com o som de violinos e pandeiros varando a noite e atraindo os moradores da cidade, contagiandoos em sua alegria, afastando seus temores da noite.
Em bandos, deixavam as casas e tavernas e iam para o
acampamento dos ciganos, observá-los, aceitar os convites
para dançar e beber do mesmo vinho que eles bebiam.
Alguns negócios foram iniciados. Os cavalos ciganos
chamavam a atenção, impunham-se pela força e pelo vigor.
***
Um bando de garotas inquietas dirigia-se para o acampamento dos ciganos. Conversavam alegremente e todas revelavam uma excitação incomum.
— Nadji! — chamou um rapaz, deixando a taverna e
correndo no encalço delas.
Uma bela morena voltou-se para ele, os olhos grandes
e expressivos brilhando, os lábios sensuais e carnudos sorrindo alegremente ao ver quem se aproximava.
— Olá, Baja! Por onde tem andando? — indagou ela e
sua voz era deliciosamente modulada, revelando que entre
ela e o rapaz existia algo especial e carinhoso.
Ele se aproximou e parou diante dela, ofegante, devorando-a com os olhos. Por algum tempo observou as linhas
bonitas de seu rosto, a curva sensual do pescoço que avançava para os ombros quase nus, o vale perfumado dos seios
anunciado no decote generoso da blusa que ela vestia.
— Estive em Karcag... Fui vender alguns cereais da
última colheita...
— Quando voltou?
— Ao anoitecer — respondeu ele, com certa impaciência, já que seus olhos revelavam o desejo de que falassem e agissem de outra forma.
As garotas que haviam parado olhavam, agora, o casal
com sorrisos cúmplices nos lábios. Alguns comentários fizeram-nas rir.
— Vai ficar, Nadji? — indagou uma, com voz maliciosa e brincalhona.
Nadji olhou para Baja. Fazia algum tempo que não se
viam. A noite estava agradável, o som daqueles violinos
pareciam provocar uma estranha e deliciosa comichão em
seus nervos, sensibilizando todo o seu corpo.
— Por que não vamos ao nosso local predileto? —
propôs ele, estendendo a mão e tomando a dela.
Apertou-a com uma ligeira febrilidade, sentindo as
formas finas e deliciosas daqueles dedos, como que ensaiando uma carícia sugestiva que ela entendeu. Seus olhos
brilharam mais forte, tentadores.
— Podem ir... Eu vou em seguida — gritou ela para as
amigas, que se afastaram em comentários e risos.
— Sim, Baja! — sorriu ela, submissa, afastando-se dele rapidamente.
Por algum tempo Baja ficou vendo-a afastar-se, depois, tomando fôlego, correu para sua casa. Apanhou, em
seu quarto, uma felpuda e confortável manta de lã de carneiro e dobrou-a, jogando-a sobre os ombros. Depois desceu para a rua e caminhou rapidamente para fora da cidade.
Não longe dali, Nadji apoiava o corpo sensualmente
ao tronco de uma árvore, enquanto olhava o castelo. A lua
brilhava no céu limpo e o som daquela música cigana provocava intensa volúpia em seu corpo jovem.
Subitamente ouviu um ruído e se voltou. Um sorriso
estampou-se em seu rosto e ela abriu os braços para receber
Baja. Ao invés disso, uma sombra grotesca deslizou, atravessando a estrada, fazendo com que seu sangue gelasse
nas veias e uma vertigem abalasse todo seu corpo.
Tentou gritar, mas apenas um grunhido assustado escapou de seus lábios, chamando a atenção do estranho vulto, que estacou e olhou na direção da garota.
Nadji levou a mão aos lábios e encolheu-se toda, enquanto aquela sombra na margem da estrada a olhava indefinidamente, estática, o clarão da luta revelando as formas
medonhas de seu corpo retorcido.
A garota cobriu os olhos e recuou, resvalando no tronco e tropeçando numa das raízes, desequilibrando-se.
Ouviu o som de passos apressados se aproximando e
tentou se por em pé.
— Não! — disse ela, firmando-se à arvore e tentando
correr.
Duas mãos fortes enlaçaram seu corpo e dedos firmes
comprimiram seus seios. Um hálito quente pousou sobre
seu pescoço, fazendo-a arrepiar-se e debater-se, presa de
incontrolável pavor.
— Nadji, sou eu! — disse Baja, soltando-a.
A garota avançou tropegamente alguns passos, depois
estacou, reconhecendo a voz e se voltou, olhando o namo-
rado como se duvidasse da presença dele naquele momento.
— Baja — murmurou, num fio de voz.
— O que houve? — indagou ele, surpreso pela reação
da jovem.
— Baja! — exclamou ela, correndo lançar-se nos braços dele e apertar-se contra o corpo do rapaz como se desejasse fundir nele aquele medo incontrolável que ainda a fazia tremer.
— Você está tremendo, Nadji! — observou ele. — Eu
a assustei? Não foi minha intenção — disse o rapaz, segurando-a pelos ombros e afastando-a para olhá-la.
Nadji soltou-se dele e olhou na direção da estrada onde vira aquele vulto assustador. A estrada estava vazia e a
presença da lua fazia tudo parecer poético.
— Não viu nada quando se aproximou? — indagou
ela, voltando-se para ele.
— Não... Alguma coisa a assustou? — O que foi?
— Não sei — gaguejou ela. — Ali, naquele ponto da
estrada... A coisa mais estranha que já vi... Um homem todo
disforme... Um monstro, Baja!
Baja começou a rir do espanto da garota e isso a ofendeu. Nadji olhou-o com severidade.
— Falo sério, ouviu?
— Sim, claro... Não teria sido isso o que a assustou?
— indagou ele, apanhando a manta e jogando-a às costas.
Em seguida correu até o centro da estrada. O vento agitou a manta, criando um estranho efeito que fez Nadji arrepiar-se. Teria sido aquilo o que vira?
— Eu sinto muito, querida — disse ele, retornando para junto dela.
Tirou a manta dos ombros e jogou-a sobre a relva ressequida. Em seguida ajoelhou-se sobre ela e estendeu as
mãos, tocando as mãos da garota.
Nadji olhou mais uma vez na direção da estrada. Depois, as mãos de Baja pousaram sobre suas coxas, iniciando
uma carícia que desceu até os tornozelos da garota.
— Venha! — pediu ele, as mãos voltando a subir pelas pernas dela, agora em contato com sua pele.
Lentamente subiram até os joelhos torneados. A pele
de Nadji era aveludada e quente, convidativa, sensual, voluptuosa.
Dos joelhos para cima a cautela tomou conta dos movimentos das mãos dele. Nadji fechou os olhos, ainda em
pé, e concentrou-se naquela carícia que avançava na direção de seu ventre.
Os dedos de Baja enroscaram-se na finíssima calcinha
usada pela garota. Lentamente puxaram-na para baixo, até
que ela repousasse sobre os pés femininos e delicados da
garota.
— Venha! — suplicou ele, a voz rouca pela paixão, as
mãos se estendendo num convite irrecusável.
Nadji moveu os pés com graça, deixando para trás a
peça intima e subindo para a manta. Lentamente ela se ajoelhou diante dele.
As mãos de Baja estenderam-se, tocando os cabelos
dela, escorregando para o seu pescoço, depois para seus
ombros e, finalmente, comprimindo lentamente eriçar rapidamente os bicos apetitosos.
— Baja, alguém pode nos ver aqui — disse ela, num
sussurro, os olhos observando a estrada.
— Quer ir até o castelo? — indagou ele, imóvel por
instantes, olhando-a direto nos olhos que cintilavam, refletindo maravilhosamente o brilho da lua.
A garota levantou os olhos para a construção semidestruída. As mãos dele subiram então para o rosto dela numa
carícia cheia de ternura que roubou a vontade da garota.
Alguém poderia passar, alguém poderia vê-los e isso pareceu tornar tudo mais excitante dentro dela.
Suspirou e estremeceu, contagiada pelo toque carinhoso daquelas mãos. Os dedos dele, então, buscaram os botões da blusa dela, soltando-os um a um, livrando aqueles
seios jovens que, à luz da lua, ostentavam uma beleza pálida terrivelmente sedutora.
Eram ligeiramente arredondados, com os bicos róseos
destacados e empinados agressivamente, como que se oferecendo aos lábios dele.
Baja inclinou lentamente a cabeça. Seu hálito ardente
varreu o peito da garota, provocando estremecimentos de
paixão.
Algo, então, cresceu dentro da noite, sufocando a música cigana. Algo estranho, como um ronco que viesse das
profundezas da terra e amedrontasse toda a natureza.
Os dois jovens olharam incontinente na direção do
castelo. Um estrondo maior, como se qualquer coisa desabasse, fez Nadji agarrar-se a Baja, a excitação substituída
pelo medo.
— O que foi isso, Baja? — indagou ela, em voz baixa,
muito baixa, como se temesse ser ouvida por alguém ou alguma coisa.
— Não sei... Qualquer coisa ruiu no castelo...
Nadji olhou na direção da estrada e tentou se lembrar
daquele vulto que a atravessara. A direção tomada seria a
do castelo. Ela estremeceu.
— Vamos embora, Baja. Estou com medo...
— Ora, querida... Está bem — atendeu ele, percebendo o medo que a dominava.
CAPÍTULO 2
No acampamento cigano, a música cessou repentinamente e todos se olharam, intrigados com aquele ruído estranho e algo assustador.
Os olhares se voltaram — então, na direção do castelo,
de onde parecia vir o barulho.
Um silêncio pesado, palpável, espesso pairou entre as
fogueiras iluminando rostos apreensivos, como se todos desencavassem do mais fundo de suas almas aquelas velhas e
terríveis lembranças.
Novamente o ruído se repetiu, como um grosso arrastar de troncos sobre a terra, avolumando-se de maneira impressionante e ameaçadora, fazendo corpos se arrepiarem.
— As chuvas... — disse alguém, quebrando o silêncio.
— As chuvas estão chegando! — ajuntou outro, quando o primeiro relâmpago, ao longe, recortou contra a noite
o perfil desigual do castelo maldito.
— As chuvas! — gritavam todos, as vozes unidas num
uníssono aliviado e feliz.
A música retornou, agora mais frenética que antes. O
vinho circulou mais rápido; as vozes se alteravam, contagiadas pela euforia comum.
A existência de uma maldição foi esquecida e a cidade
de Kizna saiu às ruas para comemorar e agradecer aos ciganos, portadores de boa sorte que haviam chegado trazendo as chuvas de que as terras precisavam para ressurgir
verdes e produtivas.
A agitação aumentou à medida que os trovões aumentavam de volume, como tambores ensurdecedores ecoando
pelo céu. Uma forte tempestade se aproximava. Os raios se
sucediam numa sequencia alucinante.
Grossas nuvens avançavam pelo céu, cobrindo a lua.
Um vento com forte cheiro de chuva e terra molhada começou a soprar, a princípio fracamente, aumentando vertiginosamente em seguida até se tornar uma forte ventania que
jogava longe as fagulhas das fogueiras e fazia agitar com
força as cobertas das barracas.
O pessoal dispersou-se, retornando a suas casas. As
primeiras gotas de chuva começaram a tamborilar sobre os
telhados e sobre as pedras do calçamento. A tempestade
chegava rápido, com os raios dançando no céu, trovões se
unindo num coro assustador que ecoava pelo vale.
Trancados em suas casas, ainda ofegantes pelas manifestações de alegria, os habitantes de Kizna tinham apenas
com que se alegrar. A chegada da chuva significava o fim
da aridez da terra.
Logo o verde voltaria a se espelhar pelo vale e na euforia de novas e grandes produções todos afogariam o medo que, durante algum tempo, oprimira seus corações.
O castelo voltaria a ser desprezado e sua ameaça seria
apenas aquela sensação adormecida dentro de todos ignorada pela ocupação do trabalho duro que viria.
A relva ressequida que circulava a cidade, margeava a
estrada e subia as pequenas encostas sorvia avidamente a
água que caía.
Pequenas torrentes se formavam, unindo-se a outras
como elos de uma corrente caudalosa que rumava para o rio, onde engrossá-lo e devolver-lhe, por algum tempo a exuberância perdida.
Pelas paredes das casas, lavando a poeira acumulada e
o medo renascido nos dias de espera, a chuva batia empurrada pelo vento, forçando janelas e portas, despencando pelos beirais do telhado em pequenas cascatas barulhentas.
Todos dormiriam em paz naquela noite, com o barulho
da chuva soando como a mais promissora das melodias. No
acampamento cigano, precariamente protegidos em suas
barracas agitadas pelo vento, homens e mulheres continuavam sua diversão.
No castelo amaldiçoado, a chuva escorria pelas altas
paredes, penetrava pelas janelas abertas, molhando móveis
e restos de tecido, fazendo acentuar-se aquele cheiro desagradável de mofo.
Pelas ameias semidestruídas, a água jorrava, cortando
a noite e indo se acumular no fosso, devolvendo-lhe a aparência do que fora um dia.
Os trovões ecoavam lugubremente por entre as muralhas de pedra. Os relâmpagos iluminavam fantasmagoricamente aquele cenário de desolação.
Ratazanas se ocultavam assustadas e até as aranhas
pareciam se agitar em suas telas, incomodadas pelos respingos. Qualquer coisa viva se movia por entre os móveis.
Um relâmpago mais forte iluminou o interior da ampla
sala, o bastante para recortar contra uma das paredes o vulto grotesco que caminhava apressado, levando em suas
mãos, com dificuldades, um braseiro aceso.
O vento agitava as chamas ameaçando apagá-las e o
vulto procurava protegê-las com uma das mãos, enquanto
seu corpo caminhava em pequenos saltos.
Por instantes ele estacou no centro da sala, imóvel
como os objetos encarquilhados que o rodeavam. As chamas do braseiro atingiram uma enorme teia de aranha.
O peludo animal debateu-se, solto no ar, indo despencar sobre o braço do corcunda. Por momentos ele olhou-a,
depois estendeu a mão e os dedos em pinça tomaram a aranha e levaram-na para cima do braseiro.
As pernas peludas se debateram assanhadas pelo fogo.
Um riso sinistro desenhou-se nos lábios do homem. Ele
soltou a aranha sobre as brasas. O animal debateu-se deses-
peradamente, os pelos de seu corpo brilhando e se encolhendo, espalhando um odor desagradável.
No momento, seguinte, a aranha estava imóvel e seu
corpo se enchia até ser confundido com as brasas. O homem olhou, então, ao seu redor. Parecia ansioso e confuso,
como se procurasse algo.
Seus olhos, então, se dirigiram para a porta do calabouço, iluminada momentaneamente por um relâmpago.
Saltitando, como se uma de suas pernas não pudesse sustentar o peso de seu corpo disforme, ele rumou até a porta.
Ergueu o braseiro, tentando encontrar alguma coisa na
parede. Havia apenas uma mancha antiga, outrora vermelha, possivelmente.
O corcunda olhou ao seu redor. Viu a cortina em pedaços numa das janelas. Foi até lá e puxou-a. A água acumulada respigou-o, enquanto a cortina despencava.
Ele rasgou um pedaço do tecido envelhecido e retornou até a entrada do calabouço. Ergueu precariamente um
dos braços e esfregou o pano molhado naquela mancha.
O tecido esfiapava-se em suas mãos, num trabalho inútil. Voltou a levantar o braseiro, tentando ler a inscrição
que ali havia, mas o fogo e o longo tempo que se seguiu a
haviam tornado ilegível para sempre.
Ele olhou ao seu redor, como se certificando de que
não havia outro lugar a ir. Depois, hesitante, introduziu o
braço na abertura.
As chamas se agitaram mais forte e um ruído sinistro
pareceu erguer-se de algum ponto da construção. O corcunda hesitou por instantes ainda, depois desceu a escada
lentamente, até um corredor úmido, por onde começou a
caminhar.
Enormes ratazanas fugiam a sua aproximação. Velhas
tochas presas às paredes chamaram a sua atenção. Aproximou o braseiro de uma delas e viu-se acender-se sem muita
dificuldade. Foi repetindo a operação, enquanto caminhava
cautelosamente pelo corredor, fazendo arder as sucessivas
teias de aranhas que fechavam a sua passagem.
Logo à frente do caminho se bifurcava. Ele estacou,
olhando com indecisão as duas passagens.
— Satã sempre esteve à esquerda de Deus! — grunhiu
ele, tomando o caminho da esquerda.
A umidade que ao longo dos tempos escorrera por aquelas paredes frias parecia agora, quase febril, como se reconhecesse aquele caminho e estivesse próximo do que
procurava.
Chegou diante de uma porta. Havia nela pedaços de
madeira que outrora poderiam ter sido uma cruz. Ele olhou
a fechadura arrombada violentamente um dia, há muito
tempo. Empurrou a porta e entrou.
Por algum tempo ficou parado, os olhos inexpressivos
olhando direto para o centro daquele aposento. Depois, lentamente, ele olhou ao seu redor.
Havia tochas por todo aquele aposento sinistro. Ele
acendeu uma a uma, como se precisasse de toda a luz para
encontrar o que desejava.
Quando terminou, repousou o braseiro perto da porta,
olhando para o centro do aposento, onde havia, em pedra,
uma espécie de jazido elevado. A pesada pedra que o cobria havia sido afastada para o lado.
O corcunda se aproximou lentamente, solenemente e
se debruçou. Sua sombra se projetou no interior do túmulo.
Ratazanas, aos saltos, abandonaram o local, assustado-o.
Ele retomou o fôlego e voltou para junto do jazido,
olhando o que restava do antigo colchão de cetim e do travesseiro pequeno.
Sorriu e suas mãos afastaram pequenas crias de ratazanas que guincharam revolvendo-se como vermes num
cadáver. Eram muitas e tentavam se equilibrar sobre as fracas patinhas.
Impaciente, ele agarrou uma porção delas e jogou-as
para longe, contra a parede. Voltou a apanhar outro tanto e
a repetir o mesmo gesto, com visível satisfação.
Na terceira vez, no entanto, pareceu sentir algo ante
seus dedos. Correu para junto do braseiro e abriu lentamente a mão. Os ratinhos se debateram e foram caindo um a um
sobre as brasas.
Um odor enjoativo espalhou-se pelo ambiente, mas isso pareceu não incomodar o corcunda. O que pareceu im-
portar para ele era apenas o anel que restara em sua mão,
com um rubi enorme que parecia conter todo o fogo que
ardia ao seu redor.
Por um longo tempo ele ficou ali olhando a joia, seu
curioso desenho em forma de cabeça de morcego de um olho só, onde se engastava aquele rubi enorme e impressionante.
Depois ele apertou o anel em sua mão, levantando os
olhos para o teto descorado e manchado até o túmulo de
pedra e se inclinou sobre ele, examinando o pequeno travesseiro.
Ao toque de sua mão, o que restava do tecido se desfazia em poeira. O travesseiro estava todo desfeito, comido
pelos ratos. A terra que havia em seu interior espalhava-se,
misturada aos excrementos daqueles animais.
O corcunda retirou um pequeno saco de couro de um
de seus bolsos, depois, com certa dificuldade, entrou no
túmulo e cuidadosamente começou a recolher toda a terra,
guardando-a no saco de couro.
Quando terminou, ergueu-se e olhou as duas coisas
que tinha agora em suas mãos.
— O anel do Mestre! — murmurou ele, a voz gutural
como o último rouquejou de um moribundo. — A terra dos
Drácula, símbolo do que lhes pertence...
Em seguida deixou o túmulo de pedra e ganhou o corredor, movendo-se com pressa, como se o trabalho daquela
noite ainda estivesse apenas começando.
***
Na taverna Rio Duna os homens conversavam em voz
alta, uns comentando a respeito dos benefícios da chuva,
outros lembrando a beleza das jovens ciganas, seus corpos
ondulados e cheios de sensualidade que pareciam convidar
cada homem ao pecado.
Por algum tempo calaram-se, como que ouvindo um
ruído que se sobrepunha ao da chuva. Um motor roncava lá
fora. Um carro havia parado à porta.
Um deles se afastou do balcão e foi até a janela embaçada. Esfregou o braço no vidro e olhou lá fora. Um velho
táxi estava parado bem rente à pequena cobertura que avançava à saída da taverna.
— É um táxi... Quem se aventuraria a viajar com um
temporal desses? — indagou, olhando os outros.
Ninguém parecia ter a resposta, mas a curiosidade era
unânime em seu rosto.
Enquanto isso, lá fora, no táxi, um homem magro e alto, de rosto anguloso e olhos afundados, consultava sua
carteira, escolhendo as notas que passaria ao motorista.
— Tem certeza de que eles estão aqui?
— Tenho sim. Se quiser, posso esperar que entre na
taverna e se certifique — disse o motorista, revelando impaciência.
— Está bem, não vejo em que lhe interessara mentir,
já que estamos aqui — disse o passageiro, pagando-o. —
Vai retornar ainda está noite?
— Sim, mas um pouco e o temporal tornará impraticável a estrada. A última coisa que me agradaria seria ficar
nesta cidade — disse ele, olhando para frente, na direção
do castelo.
— Está bem, se pensa assim — disse o passageiro,
vestindo sua capa de chuva e segurando firme a alça de sua
mala.
Abriu a porta do carro e saltou rapidamente para ganhar o abrigo da taverna.
Saudou o motorista e entrou, empurrando a pesada
porta. Um calor sufocante recebeu-o, mas a lufada de vento
que penetrou em sua companhia fez com que todos os rostos se voltassem para olhá-lo.
As chamas da lanterna parcialmente acesa num dos
cantos do salão se agitaram.
— Feche a porta depressa, homem — pediu o proprietário.
O homem magro teve de fazer um pequeno esforço para vencer o vento e encostar a porta em seus batentes. Em
seguida, tirou sua capa e agitou-a, indo dependura-la perto
da lareira.
Todos os olhos o acompanharam com interesse e curiosidade. Ele retornou até perto da porta apanhou sua mala e
se aproximou do balcão.
— O motorista que me trouxe aqui me disse que o senhor sempre tem um quarto para alugar...
— Sim, tenho — respondeu o proprietário, agora com
voz mais branda.
— Ótimo! Gostaria de ficar com ele e de ter uma refeição agora mesmo. Nada pesado, apenas alguma coisa leve que não incomode meu sono...
— Carne assada com batatas e vinho, pode ser?
— Sim, parece-me ótimo... A propósito, chegou aqui
recentemente um bando de ciganos?
— Sim, esta tarde mesmo. Estão acampados fora da
cidade, perto do rio...
— Excelente! — disse o homem, esfregando as mãos.
De uma das mesas próximas da lareira levantou-se o
oficial de polícia. Após ter examinando detidamente o recém-chegado, aproximou-se e tocou-lhe o ombro.
— Meu nome é Klauss, sou o oficial de polícia desta
cidade. Permita-me perguntar quem é?
O homem se voltou educadamente e sorriu, estendendo a mão ao outro.
— Sou o Professor Hilgenstiller — apresentou-se.
— Professor de quê?
— Em costumes, tradições, folclore, lendas, tudo que
se relacione com os hábitos do povo — sorriu o professor,
provocando certo ar de suspeita do policial.
— Estou certo que deve ter um diploma...
— Tenho muitos diplomas oficiais. Frequentei algumas escolas pelo mundo, aprendi algumas coisas e, no momento, estou interessado em pesquisar e estudar profundamente a vida, costumes e tradições do povo cigano. Foi por
isso que vim para cá...
O oficial pareceu se sentir mais à vontade agora. Por
momentos, talvez, temera que a curiosidade do professor
estivesse voltada para um assunto que agora, com a chegada das chuvas, se tornaria incômodo e indesejável.
— Espero, então que sua estada em Kizna seja produtiva, professor.
—Kizna? — indagou o outro, ligeiramente confuso,
abrindo uma caderneta que tirara do bolso. — Não estamos
em Drazna?
— Drazna fica ao norte, deve ter passado pelo desviou
a alguns quilômetros atrás...
— Kizna... Muito interessante — murmurou o professor, indo até a janela e esfregando um lenço contra os vidros embaçados.
Olhou lá fora, como que procurando algo. Os clarões
dos raios confundiram sua visão. Ele se voltou, enquanto tirava os óculos do bolso e voltava a consultar sua caderneta.
Caminhou até junto do balcão. Procurava qualquer
coisa naquelas anotações.
— Aqui está! — exclamou. — O Castelo de Kizna...
Onde fica?
O oficial de polícia olhou-o com severidade, como que
o repreendendo. O professor, no entanto, pareceu não perceber a reação dele. Olhou também para o proprietário do
local.
— Fica naquela direção — apontou.
— É possível visitá-lo?
— Se quiser se arriscar...
— Alguém por aqui ainda se lembra da velha lenda?
Gostaria de falar sobre...
— Professor — chamou Klauss.
— Sim?
— Professor, somos uma gente pacifica, mas vítima
fácil da superstição e do medo. Relembrar certas coisas pode ser doloroso à memória de alguns... Assim, deve compreender que certas coisas devem permanecer intocáveis...
— Refere-se ao castelo, à lenda ou aos velhos da cidade, senhor? — indagou o professor.
— Refiro-me a tudo isso, professor.
— Não creio que haja mal algum em investigar, apenas. Talvez muitos queiram, afinal, saber se, na verdade,
houve certo Conde...
— Não pronuncie esse nome, professor — pediu o
homem ao fundo do salão, benzendo-se.
— E por que não? — retrucou o professor.
O homem se levantou, olhou ao seu redor, depois foi
apanhar e vestir apressadamente sua capa de chuva. No
momento seguinte deixava o local.
— É como eu disse, professor — falou Klauss.
— A mesa está servida, professor — disse o taverneiro.
CAPÍTULO 3
Por momentos sobreveio uma calmaria.
A tempestade cessou e um silêncio opressor pairou
sobre o vale, quebrado apenas pelo escorrer das bicas nos
beirais das casas e pelas pequenas correntes que se juntavam e engrossavam, rumando para o rio.
O vento, então, soprou alto, lúgubre, vergastando
troncos ressequidos de árvores, penetrando pelas frinchas
das casas.
Depois, novamente a tempestade voltou a se abater
com a intensidade inicial, cobrindo todo o vale.
O corcunda aproveitara o momento de calmaria para
atravessar o fosso e agora caminhava na direção da cidade,
o corpo em constante desafio às leis do equilíbrio, uma capa esvoaçando atrás de si, tornando ainda mais macabra sua
triste figura.
Naquele momento, seu vulto, iluminado pelos clarões
dos raios, lembrava uma sombra saída dos pesadelos mais
horríveis dos habitantes da cidade de Kizna.
Ao se aproximar das primeiras construções, no entanto, ele estacou, imóvel por momentos. Seus olhos se voltaram para o alto campanário da igreja, visto à distância.
O corcunda sorriu, como se estivesse planejado algo
que agradaria sobremaneira alguém a quem ele desejava
servir da melhor maneira.
Não tomou, portanto, o rumo do acampamento cigano.
Ao invés disso, esgueirou-se pela cidade na direção da igreja. Sabia que ali, ao lado, havia o cemitério, onde conviviam numa silenciosa harmonia covas rasas e simples com
mausoléus imponentes.
Um deles fora construído para receber o corpo de um
oficial nazista que morrera na cidade durante a ocupação.
Seus amigos possivelmente tencionavam levar seu corpo
para a Alemanha após a guerra, mas a derrota daquele país
permitiu que os habitantes da cidade descarregassem sua
ira contra o morto.
Seus ossos foram arrancados do mausoléu e atirados
ao rio. Toda a construção fora apedrejada. Mais tarde, porém, voltaram a reconstruir o que havia sido destruído e
preservado o local como um monumento aos mortos da ocupação nazista.
Em seu interior havia, ainda, o luxuoso ataúde do nazista, cuidadosamente recuperado e mantido incólume ao
longo dos anos.
Talvez fosse isso o que estava na mente do corcunda,
enquanto chegava ao portão de ferro do cemitério e olhava
o local com seus olhos inexpressivos.
O vento, naquele local, parecia assobiar uma estranha
e apavorante melodia, deslizando célere por entre galhos
retorcidos, penetrando pelas sepulturas, dançando ao redor
das cruzes iluminadas pelos relâmpagos.
Calafrios percorreriam o corpo do mortal mais corajoso diante daquela visão apavorante. Coxeando como um estranho animal ferido, o corcunda empurrou o portão e avançou.
Os clarões constantes jogavam sua sombra sobre sepulturas e poças de água que refletiam aquela imagem que
feria a natureza.
Ele se aproximou do mausoléu do nazista e, por instante ficou parado diante dele, olhando o esquife através do
vidro. Sorriu, mostrando dentes desiguais. Parecia satisfeito, pois caminhou rapidamente para fora do cemitério, atravessou a cidade e tomou a direção do acampamento cigano.
Havia silêncio nas barracas agitadas pelo vento e gotejantes. Apenas os cavalos, assustados pela chuva, debatiam-se presos a uma mesma corda, estendida entre duas arvores.
O corcunda se aproximou de um dos animais que, assustado empinou, relinchando. Alguém saiu de uma das
barracas próximas e, por instantes, fitou o vulto disforme
que tentava reter o animal.
— Torg, seu ente amaldiçoado! — berrou a voz grossa
soando acima do barulho dos trovões.
O corcunda pareceu não ouvi-lo. Suas mãos seguraram
firme a corda que prendia o cavalo, puxando-a com força.
O animal debateu-se. O corcunda improvisou um chicote
com a ponta da corda e chicoteou o rosto do animal, berrando qualquer coisa num dialeto húngaro.
— Torg, sua alma penada! — voltou a repetir o cigano, avançando no meio da chuva. — O que pretende fazer?
— Ora, vá entregar sua maldita alma a Satanás e não
me amole — gritou o corcunda, arrastando seu animal para
perto de sua carroça.
O outro cigano ficou alguns instantes no meio da chuva, depois deu de ombros.
— Dane-se, corcunda imundo! — balbuciou, retornando a sua barraca.
Torg não lhe deu atenção e tratou de atrelar o cavalo à
carroça. Quando terminou, saltou para a boleia e chicoteou
o animal.
Momentos mais tarde, atravessava a cidade. Os cacos
do cavalo batiam contra as pedras do calçamento como
numa estranha e macabra canção. O barulho da chuva encobria aquele som, no entanto, e ninguém percebeu a passagem da carroça.
Torg levou-a até o cemitério. Saltou diante do patrão e
apanhou uma ferramenta qualquer na carroça. Depois avançou por entre as sepulturas, pisando covas, os pés afundando-se na lama formada e dificultando sua caminhada.
Diante do mausoléu do nazista ele estacou por instantes, novamente sorrindo daquela forma estranha. Levantou
a ferramenta, um pesado martelo, e bateu contra o cadeado
que fechava a porta.
Ao golpe violento o metal partiu e a corrente escorregou solta pelo vidro. Os trovões pareceram estrondar com
mais força. O vento pareceu clamar contra aquela profanação.
Alheio ao protesto da natureza, Torg avançou pelo
mausoléu, a chuva penetrando com ele. Olhou por instantes
e esquife sobre uma plataforma de cimento. Verificou se
estava fechado, depois agarrou uma das calças.
Lentamente trouxe para o chão o ataúde. Olhou a distância que o separava do portão, depois o esquife. Parecia
uma pena sujar de lama tão bela madeira, tão polidos metais. Além disso, o esforço teria de ser muito grande para
arrastá-lo pela lama até o portão.
Deixou o local e foi até a carroça. Manobrou as rédeas
encaminhando o cavalo na direção do portão. O animal
empinou, assustado pela chuva, assustado pelo local, assustado por algum instinto secreto.
O chicote do corcunda estalou implacável sobre o dorso do animal, enquanto a outra mão firmava-se nas rédeas,
impondo-se sobre a vontade e o medo.
A carroça avançou, então, passando pelo portão, esbarrando em mausoléus, derrubando cruzes, afundando co-
vas rasas. O cavalo fazia um esforço desesperado para que
as rodas não ficassem presas aos obstáculos.
Diante do mausoléu, finalmente, Torg saltou da boleia
e abriu a porta traseira da carroça fechada. Apanhou o ataúde e levantou uma de suas pontas, depositando-a sobre a
carroça.
Depois, sem muita dificuldade, fez com que ele deslizasse para dentro. Findo o trabalho, entrou junto do ataúde
e, apanhando um de seus trapos, enxugou cuidadosamente
a madeira, detendo-se nos metais que refletiam os relâmpagos que ainda iluminavam todo o vale de Tisza.
Levantou, então, a pesada tampa e observou o interior
do esquife. O cetim branco e imaculado parecia o ideal para
o que ele tinha em mente.
Apanhou o saco de couro onde recolhera a terra encontrada no castelo e depositou-o dentro do ataúde, voltando a fechá-lo.
Fechou a porta da carroça e foi tomar seu lugar na boleia. Chicoteou o cavalo, deixando o local. Como se cada
passo a seguir estivesse definido em sua mente, rumou na
direção do castelo.
***
O dia amanheceu nublado sobre o vale. As nuvens escuras permaneciam no céu, ameaçadoras. Poças de lama
espalhavam-se pelas encostas. Na cidade, gotas ainda escorregavam dos telhados e iam se espatifar no calçamento
úmido.
Quem primeiro notou o fato o sacristão, que comunicou ao padre. Este, intrigado com aquela profanação, foi
até o oficial de polícia avisá-lo sobre o que acontecera. Logo toda a cidade se reunia no cemitério. Os comentários a
respeito do assunto fervilhavam.
O professor Hilgenstiller acordou com o barulho lá fora. Saiu à janela e percebeu a curiosa multidão que caminhava apresada na direção da igreja.
Vestiu-se apressadamente e desceu para a rua, acompanhando as pessoas. Quando chegou ao cemitério, alguns
policiais impediam a entrada dos curiosos.
—Desculpe-me, posso falar com o oficial Klauss? —
indagou a um deles.
— Quem é o senhor?
— Sou o Professor Hilgenstiller, ele deve estar ansioso para falar comigo a respeito do que houve — mentiu ele.
O policial examinou por instantes o rosto franco e
bondoso do homem a sua frente, depois concordou. O professor passou por ele e caminhou na direção onde estava
Klauss com outros policiais.
Enquanto caminhava, o professor observava os sinais
da passagem de uma carroça que penetrara no cemitério.
Cantos lascados, covas afundadas e pisoteadas, cruzes semi-enterradas na lama.
— Desculpe-me a intromissão, oficial, mas sou terrivelmente curioso — disse o professor, enquanto o oficial o
olhava com certo ar de aborrecimento. — O que houve aqui, afinal? — O que havia neste mausoléu?
O oficial talvez não conversasse com o professor naquele momento se o caso não tivesse intrigado tanto. Simplesmente não encontrava explicação para um ato tão impensado como aquele.
Olhou o professor. Havia qualquer coisa no rosto daquele homem que parecia habilitá-lo a compartilhar de um
problema como aquele...
— Este era o mausoléu de...
— Oh, sim, eu já ouvi falar sobre isso — cortou-o o
professor, o rosto iluminando-se. — O que levaram dai?
— O esquife...
— Como disse?
— O esquife do nazista. Um ataúde de ébano puro,
como os metais de aço cromado... Não vejo em que isso interessaria alguém... É apenas valor histórico...
— Alguém entrou aí? — indagou o professor, apontando para a lama que se juntara dentro do mausoléu.
— Não, não permiti a entrada de nenhum dos meus
policiais. Vou esperar que a lama seque para tentar um
molde daquelas pegadas...
— Interessante — comentou o professor, tentando refazer a trilha seguida pela carroça.
Não foi difícil. Alguém entrara com uma carroça no
cemitério, parando-a diante do mausoléu. Empurrara o ataúde para dentro e partira. Por que fizera isso era uma pergunta interessante, realmente intrigante.
O professor olhou, então, ao seu redor. Viu, então, pela primeira vez, o castelo. Qualquer coisa girou em sua cabeça, como um pressentimento, como uma dedução sem lógica, mas realmente fascinante.
Klauss pareceu acompanhar o olhar do professor, olhando também o castelo. Um calafrio percorreu seu corpo.
— Em que está pensando, professor?
— Em absolutamente nada... Tudo isso é muito intrigante. Por que alguém desejaria um ataúde tão luxuoso? —
indagou, voltando novamente a olhar na direção do castelo.
— Acho que posso imaginar o que está tentando supor, professor, mas não há lógica, absolutamente...
— E o que estou tentando supor, oficial? — retrucou o
professor, encarando-o. — Algo que também não esteja em
sua mente e na mente de todos?
— É absurdo... É fantasiar demais. Estamos diante de
um fato, algo concreto, com uma explicação plausível.
— Estou certo que sim — admitiu o professor, afastando-se e deixando o oficial de polícia às voltas com aquele estranho acontecimento.
***
A notícia chegara ao acampamento cigano, interrompendo por instantes o trabalho de todos. Logo todos voltaram a seus afazeres, preparando o acampamento para receber os habitantes da cidade para os negócios que fatalmente
seriam realizados.
A lama dificultava os trabalhos, mas todos se empenhavam alegremente no que faziam. Assim que o ajuntamento se desfez, um dos ciganos, Sanderv, ficara algum
tempo observando a carroça de Torg, parada diante da tenda do corcunda.
As rodas cheias de lama intrigavam-no, como o havia
intrigado aquela saída de Torg na noite anterior. Ninguém
sabia nada da vida daquele corcunda.
Dizia-se cigano e juntara-se à caravana há algum tempo, mas seu físico horripilante o afastava do contato com os
outros. Torg era um ilhado entre eles. Fazia seu trabalho,
lia mãos, conhecia os segredos das linhas das mãos e era
um mestre em hipnotismo.
Mas nunca se integrara aos outros. Sempre dera a impressão de um passageiro entre eles, alguém que buscava
outra coisa.
Sanderv pensou em tudo isso, enquanto caminhava até
a carroça do corcunda. Abriu a porta traseira e olhou em
seu interior estava vazia.
Fechou-a e olhou as rodas, cobertas de lama. Foi até
onde estavam os animais. O cavalo de Torg estava todo enlameado e em seu flanco havia sinais de chicotadas recentes, como se o corcunda o houvesse fustigado furiosamente.
Parou ali, por instantes, intrigado. Depois caminhou
resolutamente até a barraca de Torg. O corcunda estava
sentado num velho colchão, observando atentamente qualquer coisa em sua mão. Ao perceber a chegada de Sanderv,
guardou apressadamente o objeto num dos bolsos.
— Por onde andou ontem à noite? — indagou Sanderv.
— Problema meu — respondeu o corcunda, secamente.
— Sou o chefe aqui, Torg. Nada deve acontecer sem o
meu consentimento...
— Nada aconteceu...
— E onde foi com sua carroça?
— Colher ervas... O tempo úmido afeta-me os ossos...
— E para curar seus ossos molhou-se todo na chuva
— ironizou Sanderv, apontando para as roupas ainda molhadas do corcunda, num canto da barraca.
— Não havia outra maneira. Você sairia para colher
ervas para mim? — indagou o corcunda, sorrindo zombeteiramente.
— Soube o que aconteceu na cidade?
— Como vou saber?
— Alguém entrou no cemitério e roubou um esquife...
— Eu não faria isso. A não ser que o esquife fosse especial para conter a minha deformação — zombou.
— Qualquer coisa não me agrada em você. Qualquer
coisa até me assusta... Às vezes penso que, para minha
tranquilidade e dos outros, devemos expulsá-lo...
— Não se preocupe quanto a isso. Está próximo o dia
em que os deixarei...
— Está aí uma notícia que vai agradar a todos — afirmou Sanderv, deixando a barraca.
— Quando eu os deixar, vão se arrepender disso, amaldiçoados — grunhiu o corcunda, indo até a porta e se
certificando de que o outro se afastara realmente.
Depois retornou para o interior da barraca e retirou o
objeto que guardara no bolso. Era o anel que encontrara no
castelo. Ficou olhando para ele, enquanto o rubi parecia
cintilar, rubro como o sangue fresco.
Os dedos nodosos do corcunda se fecharam sobre o
anel e ele voltou a guarda-lo num de seus bolsos. Em seguida, foi até uma arca e abriu-a, revirando-a cuidadosamente, até encontrar uma pequena caixa.
Levantou-se e depositou-a sobre o colchão. Debruçouse sobre ele, observando a prata escurecida pelo tempo,
com manchas esverdeadas nas dobras dos enfeites trabalhados com perfeição.
Seus dedos tocaram o fecho, soltando-o lentamente.
Com reverencia e um ar solene e respeitoso no rosto, levantou a tampa e observou por instantes aquelas cinzas humanas.
CAPÍTULO 4
O professor caminhou pela cidade, apenas observando
a reação das pessoas.
Nos ajuntamentos, as palavras eram pronunciadas em
voz baixa, como se a opinião manifestada pudesse escandalizar ou, possivelmente, assustar.
De um dos armazéns ele observou uma dona de casa
sair. Em sua sacola de compras sobressaía réstia de alho.
Talvez uma coincidência apenas, mas aquela impressão inicial ainda estava em seu espírito e a visão do castelo ao
longe parecia desafia-lo.
Pensou nos ciganos, pensou no trabalho que realizava
e concluiu que poderia deixar tudo aquilo mais tarde. Um
passeio até o castelo talvez o livrasse daquela sensação incomoda e afastasse definitivamente aquela suspeita um tanto apressada.
Foi até a taverna, subiu ao quarto e vestiu suas botas
de cano alto, próprias para enfrentar a lama. Em seguida,
deixou a cidade e tomou o rumo do castelo.
Após toda a chuva que se derramara sobre o vale na
noite anterior a terra voltara a adquirir aquela coloração
promissora.
Uma corrente de água ainda escorria numa das margens da estrada. Poças de água refletiam o céu cinzento e
ameaçador. Os olhos do professor se fixaram, então, no sinistro traçado daquele castelo semidestruído.
Procurou se recordar, então de todos os detalhes a respeito dos acontecimentos que, um dia, há mais de um século haviam aterrorizado o vale de Tisza, gerando uma inquietação que culminará com a invasão do castelo e a destruição de seu único morador.
O importante em tudo isso foi que, após a destruição
do castelo, os crimes cessaram repentinamente, comprovando a culpa daquele que lá morava.
Lera a respeito do assunto em velhas crônicas da época, onde tudo fora um tanto fantasiado e a imaginação dos
autores comprometeram a compreensão dos fatos, já que
detalhes importantes deixaram de ser mencionados para
que divagações fantasmagóricas tivessem lugar.
O professor Hilgenstiller era um homem de ciência,
um estudioso dos costumes dos povos. Estava certo de que
sempre havia uma explicação concreta para fatos tidos como sobrenaturais.
Deduzira isso quando estudara as lendas os lobisomens, sobre os zumbis. Reconhecia-se, porém, fascinado
pelo vampirismo e aquela era a sua primeira oportunidade
de desmistificar o assunto.
O nome de Tisza estava ligado ao vampirismo. Aquele
castelo representava, talvez, o centro de tudo aquilo que se
falara a respeito do assunto nos últimos tempos.
Talvez encontrasse algo substancial na biblioteca da
cidade. Talvez alguns dos velhos ainda tivessem na lembrança o relato daqueles dias fatídicos.
Aproximava-se do castelo e reconhecia-se impressionado com aquelas muralhas ainda preservadas. Era um local interessante. Talvez a sua recuperação pudesse ser feita
e o local transformado numa espécie de museu ou atração
turística. Afinal, construções como aquelas já não eram vistas com frequência.
Durante todo o tempo em que caminhara, preso em
suas divagações, esquecera-se de observar mais atentamente a estrada. Quando deu por si, estacou, observando aquelas marcas na lama.
Uma carroça pesada passara por ali. As marcas dos
cascos do cavalo estavam perfeitas ainda, como minúsculas
poças de água se repetindo numa sequencia reveladora.
Apressou-se, então, rumando para a entrada do castelo. Ao se aproximar, notou a entrada e o que restara da ponte levadiça arriada.
Deteve-se diante do fosso, olhando o interior do pátio.
Havia marcas de lama, denunciando a passagem de uma
carroça. A um canto, algumas pranchas empilhadas.
Olhou os travessões eretos contra a muralha de pedra e
concluiu que a carroça passara, quando as pranchas foram
colocadas. Fosse quem fosse que tivesse visitado o castelo,
após haver removido as pranchas. O fosso cheio de água,
agora, impedia qualquer tentativa de se entrar no castelo.
— Muito interessante! — comentou o professor consigo mesmo.
Por que alguém teria feito aquilo? Por que alguém
precisara levar um ataúde para o castelo? Por que alguém
julgava importante que ninguém entrasse agora?
Essas perguntas intrigaram-no tanto como tentar imaginar como alguém poderia ter feito aquilo e retornar, após
arriar a ponte levadiça. A menos que estivesse preparado
para aquilo. Talvez o oficial Klauss tivesse uma boa resposta para tudo.
***
— O que está achando de tudo isso, Baja? — indagou
Nadji, enquanto caminhavam de volta do cemitério.
— Sei lá, para mim foram os ciganos. Nunca confiei
nessa gente...
— E por que desejariam um ataúde?
— Sei lá... Lembra-se de ontem à noite?
— Refere-se ao barulho que ouvimos no castelo? Nem
quero lembrar aquilo...
— Não me refiro àquilo. Foi tudo um engano nosso. O
barulho que ouvimos foi a chuva se aproximando... Refirome à festa entre os ciganos. Todo mundo da cidade foi para
lá. Seria fácil para um deles ir até o cemitério e roubar o
esquife.
— Mas entrar com uma carroça lá dentro, atravessar a
cidade com ela? Ninguém viu nada...
— Bem, talvez ele tenha dado a volta — descartou
Baja, já que o assunto não tinha muito interesse no momento.
Na verdade, estava apenas interessado em recuperar o
tempo e a oportunidade perdidos na noite anterior. Enquanto o céu permanecesse encoberto daquela forma, ninguém
iria para os campos. Assim, ainda havia tempo para que ele
e Nadji aproveitassem as últimas delicias daquelas ferias
breves.
No momento ele tinha em mente um celeiro abandonado nos arredores da cidade. Alguns dos jovens haviam
secretamente preparado o local para seus encontros amorosos. Naquela noite, com todos aqueles comentários que circulavam, possivelmente ninguém se aventurasse a ir até lá.
Ia propor a ideia a Nadji, quando um bando de garotas
se aproximou.
— Nadji, é fantástico o que acabamos de presenciar —
afirmou uma delas.
— O que foi?
— Um cartomante, o melhor que já vi. Falou coisas
incríveis de meu passado e do meu futuro. Disse-me que o
destino me reservava um belo homem, o mais poderoso que
jamais alguém teria o privilegio de conhecer... Isso me deixou eufórica.
— Realmente? Isso me deixa curiosa. O que mais você se lembra...
— Não sei, foi uma sensação estranha de paz... Ele inicia falando mansamente. Sua voz é assustadora a princípio, mas à medida que ele gira aquele anel fantástico...
— Anel?
— Sim, um anel... O melhor a fazer é ir até lá. Eu jamais poderia me lembrar de todos os detalhes... — disse a
outra, realmente excitada.
— Vamos até lá, Baja. Estou curiosa! — pediu ela ao
namorado.
— Ora, Nadji. É uma bobagem...
— Bobagem coisa nenhuma — cortou-o uma das garotas. — Nós seis estivemos com ele e podemos jurar que
ele é surpreendente.
— Vamos, Baja. Talvez ele me diga que me casarei
com você...
— É charlatanice, você verá, mas vamos lá — concordou o rapaz.
Assim que o casal se afastou, uma das garotas encarou
a outra.
— Engraçado, mas ele me disse quase a mesma coisa
que disse a você — comentou ela.
— Como assim?
— Bem, ele me disse que eu me uniria a um homem
poderoso, talvez um príncipe e que o amaria a ponto de entregar-lhe minha própria vida...
— Será que ele nos enganou? Realmente me disse
mais ou menos a mesma coisa! — ajuntou outra.
— Sendo assim, talvez apareça um sultão em Kizna,
disposto a nos levar para o seu harém — disse outra, provocando risos de suas amigas.
— Não vamos falar nada a Nadji ou ela ficará uma fera conosco — propôs uma delas e juntas se afastaram.
***
No acampamento dos ciganos a vida continuava como
se nada houvesse acontecido. Os problemas com a cidade
não lhes diziam respeito. O importante era que os negócios
corressem bem. Muitos homens da cidade encontravam-se
ali, interessados num bom cavalo, enquanto que as mulheres observavam com interesse e atenção os famosos utensílios ciganos de cofre.
Quando se aproximavam, Baja tentava ainda convencer Nadji de que tudo aquilo não passava de uma bela trapaça. A garota, no entanto, cedendo a sua curiosidade fe-
minina, estava decidida a visitar o cartomante de que seus
amigos haviam falado.
Baja, então, percebeu que não conseguiria demovê-la
de seu intento e julgou, portanto, que o momento talvez
fosse propicio para o que tinha em mente.
— Está bem, não me oponho a que vá, mas vai me
prometer uma coisa — propôs ele.
— De que se trata?
— Vai se encontrar comigo, hoje à noite, no celeiro
abandonado.
Nadji estacou e levantou os olhos brilhantes e sedutores para ele. A proposta tentava-a, como uma compensação
para o que não acontecera na noite anterior.
— Ontem à noite eu estava disposta a ser sua, Baja...
— Nadji...
— Sim, não queria apenas a carícia de nossos corpos
nus, mas queria que você me fizesse mulher realmente.
Queria senti-lo meu... Queria experimentar aquela sensação
de que as mulheres mais velhas e experientes tanto falam...
— Nadji, eu prometo que...
— Não prometa nada, Baja. Talvez eu esteja nervosa
demais esta noite, sabendo que... Por que não deixamos ao
sabor do momento?
— Vai se encontrar comigo, então?
— Vou — confirmou ela, com decisão.
Baja sorriu e sua mão se ergueu para acariciar o rosto
de sua amada. A ideia de que deixariam para trás aquelas
brincadeiras excitantes e passariam a um relacionamento
mais maduro fazia-o se sentir másculo, viril, crescido.
— Aquela deve ser a barraca do cartomante... Eu vou
até lá ver aqueles cavalos. Talvez encontre um bom para o
arado — disse ele, inclinando-se lentamente e mordiscando
de leve os lábios da garota.
— Irei ter com você assim que terminar — afirmou ela, afastando-se.
Baja ficou observando aqueles quadris bem conformados, aquele andar cheio de provocação e aqueles cabelos
soltos e excitantes depois sorriu.
Nadji foi até a barraca. Arriscou olhar em seu interior.
Não havia ninguém. Observou a mesa com suas duas cadeiras, um baralho Tarô. O espaço era pequeno e uma cortina
enorme, escarlate, dividia a barraca.
— Há alguém aqui? Eu gostaria de... — interrompeuse ela, quando um rosto assomou num dos cantos da cortina.
— Gostaria de conhecer seu futuro, não? — disse o
homem cujos olhos eram inexpressivos, quase cinzentos, e
a cabeça oscilava numa estranha posição.
— Sim, gostaria — afirmou ela.
— Sente-se, irei num minuto.
Aquela voz gutural, arrastada, provocou-lhe calafrios.
Pela barraca, presos aos tecidos, havia uma porção de símbolos cabalísticos, criando o clima exato para o momento.
Nadji sorriu excitada, impaciente pela experiência.
Como toda garota, ela tinha uma porção de perguntas a respeito de seu futuro.
— Torg vai surpreendê-la com suas respostas — disse
o homem, afastando a cortina para passar.
Vestia uma longa capa, mas caminhava de um modo
estranho, um tanto assustador, que fez com que Nadji se recordasse daquele vulto que vira na noite anterior.
Torg se sentou diante dela e, por instantes, seus olhos
inexpressivos se fixaram nos olhos da garota. Lentamente
ele estendeu sua mão sobre a mesa e abriu dedo após dedo
até descobrir aquele misterioso anel.
Segurou-o com cuidado e levantou-o diante dos olhos,
como se olhasse Nadji através dele.
Sorriu satisfeito.
— Olhe para o anel — pediu ele. — Olhe para o anel e
verá seu futuro — sugeriu ele, a voz abrandando-se num
tom quase inaudível.
— Pensei que... Que fosse usar as cartas — disse ela,
ligeiramente incomodada por uma sensação estranha de estar sendo tomada por alguma coisa indefinida.
— Veremos isso mais tarde. Agora olhe para o anel.
Nele está o seu futuro. Não é isso que a interessa?
— Sim, claro — concordou ela, fixando seu olhar naquela pedra cor de sangue que, gradativamente, ganhou
uma cintilação forte, como se tivesse luz própria.
Nadji forçou um sorriso. O truque era muito bem feito,
impressionava realmente, mas aquela sensação de ser invadida se acentuou, gerando um inesperado mal-estar.
— Logo estará bem, garota... Seu futuro é promissor...
Veja no anel... Sinta-o... Ele chama... Ele chamará na hora
certa e então deixará tudo para segui-lo e dar sua vida por
ele... Terá compensações maravilhosas... A eternidade será
sua... Sua beleza será indestrutível... A hora de servir ao
mestre das trevas, ao príncipe do mal é reservada a poucos.
Você é uma das escolhidas... Deixe que a essência se aposse de você, de seu sangue... Deixe-a circular em suas veias
e ganhar forças... Deixe-o devassar seu corpo como homem
nenhum até hoje o fez... Entregue-lhe sua pureza... Ele a
chamará em breve, esteja pronta...
O corcunda quedou-se em silêncio, os olhos fixos nos
olhos de Nadji, que refletiam com intensidade o brilho sanguinolento da pedra do anel.
Lentamente baixou o anel, depositou-o sobre a mesa.
Os olhos de Nadji acompanharam aquele movimento. O
corcunda deixou o anel repousando sobre a madeira, depois
se levantou lentamente e foi até a porta da barraca.
Olhou o céu, ainda por grossas e escuras nuvens. Naquela noite a lua cheia atingiria a intensidade propícia para
que tudo fosse realizado. As nuvens precisavam ir embora.
O céu precisava limpar-se para que as forças da lua exercessem toda a sua influência mágica sobre o que tinha de
ser feito.
Retornou ao seu lugar e tomou as cartas do baralho.
Depositou a mão sobre o anel e imediatamente os olhos de
Nadji se moveram curiosos e surpresos de um lado para outro.
— O que houve? — indagou ela.
— Creio que apenas um mal-estar súbito — disse o
corcunda — Sente-se bem agora?
— Sim, estou bem...
— Vamos ao seu futuro ao seu passado em primeiro
lugar? — indagou ele, o sorriso alargando-se disforme em
sua boca animal.
***
O professor Hilgenstiller havia passeado pelas estantes da biblioteca municipal, sem encontrar nada que pudesse interessá-lo e que se relacionasse com o assunto que tinha em mente.
A velha senhora que atendia como bibliotecária pareceu perceber sua decepção no rosto dele.
— Nossa biblioteca já teve dias melhores, senhor, mas
os nazistas destruíram muita coisa durante a ocupação...
Procurava alguma coisa em particular?
— Sim, alguma coisa a respeito da cidade, de sua história...
— Algum período em especial? — indagou ela, os olhos cintilando de curiosidade.
— Os mais antigos possíveis... Sou o Professor Hilgenstiller, meu interesse é tudo que se relacione ao folclore...
— Temos alguns livros muito velhos no depósito... Há
muito estamos pedindo verbas para a restauração deles. Estão se desfazendo... Talvez encontre alguma coisa interessante por lá, professor. A propósito, sou a senhora Kossuth.
Quer me acompanhar, por favor?
A velha senhora rumou para uma porta aos fundos da
biblioteca. Abriu-a. Um cheiro forte de mofo e bolor chegou às narinas do professor. Uma lâmpada foi acesa, iluminando algumas caixas. O local era um tanto úmido, impróprio para se guardar livros tão antigos.
— Creio que encontrará alguma coisa interessante
nesses livros, professor. Não sei como poderia manuseálos...
— Sra. Kossuth, por acaso também sou especialista
em restauração de antigos papéis. Assim, se me deixar levar
tudo isso para o meu quarto, na Taverna Rio Duna, talvez
eu possa retribuir sua gentileza tentando recuperar alguns
desses livros. O que me diz da proposta.
— Eu poderia consultar o prefeito. Este pediria uma
autorização aos... Pensando bem, talvez possamos passar
por cima de toda essa burocracia, professo4r. Quando tenciona levar os livros?
— Eu poderia começar agora mesmo, levando uma
dessas caixas — propôs ele.
— Sim, por que não? — concordou ela.
O professor escolheu a menos pesada delas, firmou-a
em seus braços, agradeceu a Sr. Kossuth e deixou a biblioteca, rumando para a taverna. Quando ia para lá, percebeu o
oficial Klauss encaminhando-se ao seu gabinete.
Apressou-se, então, em deixar a caixa com os livros
em seu quarto e retornou, em seguida, até o gabinete do policial.
— Alguma coisa concreta, oficial Klauss? — indagou.
O policial levantou os olhos com desalento. Parecia
ainda confuso com tudo o que acontecera naquele cemitério. O professor se sentou diante da mesa dele, depois o encarou.
— Estive no castelo. Há sinais de que uma carroça esteve lá na noite passada.
— Fala sério? Observou de perto?
— Não pude entrar no castelo...
— Compreendo. É realmente arriscado equilibrar-se
naqueles travessões...
— Os travessões estavam recolhidos, o que comprova,
então, que alguém foi até lá na noite passada.
— Está falando sério, professor?
— Eu não mentiria a respeito de um assunto tão importante, oficial — afirmou o professor.
— Nesse caso, acho bom dar uma olhada por lá agora
mesmo. Quer vir comigo? — indagou com certa camaradagem.
— Não, tenho algumas coisas para ver agora — disse
o professor, recusando o convite.
Naquela tarde, um carro entrou na cidade, as correntes
em suas rodas batendo contra o calçamento num ruído incômodo. A carroça de Torg barrou-lhe o caminho, quase
próximo da Taverna Rio Duna. O motorista buzinou com
impaciência, pondo a cabeça para fora do carro.
— Vamos tirar essa coisa da frente, homem. Preciso
passar! — gritou.
O corcunda chicoteou o cavalo, dando passagem ao
veículo. Seus olhos, então, se fixaram na passageira, uma
jovem linda, talvez a mais linda que seus olhos inexpressivos jamais viram.
Era clara, loura como uma espiga de milho madura,
olhos vivazes, pele incomum, lembrando aquelas moças
que vira na Alemanha.
A garota olhou para ele, talvez movida apenas pela curiosidade, o que despertou certa inquietação no corcunda.
Ele ficou observando a passagem do carro, depois estendeu
as duas mãos diante de si.
Lentamente foi dobrando dedo após dedo, até a contagem de sete. A decepção parecia estampada em seu rosto.
Ele fechou as duas mãos e deixou-se cair ao lado do corpo.
O carro avançou pela rua até diante da taverna, parando talvez no mesmo ponto onde estacionara na noite anterior. Dentro dele, a passageira inclinou-se para olhar a construção.
— Tem certeza que foi aqui mesmo que o deixou? —
indagou ela.
— A senhorita se parece muito com seu pai. Acha que
eu poderia estar enganado? — descartou ele, levemente aborrecido.
— Está bem, aqui está o dinheiro. Eu mesma cuido da
mala.
Ela desceu e, por instantes, olhou ao seu redor, observando todos aqueles olhos que se fixaram nela, olhando-a
com curiosidade.
Firmou a alça da mala em sua mão e entrou na taverna.
Sua entrada foi acompanhada com interesse e admiração
pelos homens ali presente.
Aproximou-se do balcão e o taverneiro, mais que solícito, correu para atendê-la.
— Sou Larah Hilgenstiller e procuro meu pai.
— Refere-se ao professor Hilgenstiller?
— Sim, ele mesmo. Está hospedado aqui?
— Sim, está lá em cima, no quarto. Por aquela escada,
não poderá errar. É a primeira porta, à direita.
— Obrigada! Sabe se ele tenciona ficar aqui por muito
tempo?
O oficial Klauss que bebia com alguns amigos no outro lado do balcão, aproximou-se, deslumbrado pela beleza
da jovem.
— Pretende ficar com ele, senhorita? — indagou ele.
— Sim, se houver acomodações...
— Nesse caso espero que seu pai jamais nos deixe.
Estou certo que o taverneiro vai lhe providenciar o melhor
quarto que possui. A propósito, meu nome é Klauss, sou oficial de polícia.
— Larah Hilgenstiller, oficial. Eu agradeço a sua gentileza — sorriu ela, rumando para a escada indicada pelo
taverneiro.
Rostos inclinaram, acompanhando sua subida. A garota ganhou o corredor e parou diante da porta. Respirou fundo, depositando a mala no assoalho. Estendeu a mão e bateu na madeira da porta.
— Quem é? — indagou a voz do professor lá dentro.
Larah preferiu não responder para não estragar a surpresa e bateu novamente.
Ouviu o barulho de passos se aproximando da porta.
Ao abrir, o rosto do professor se alterou completamente,
olhando incrédulo a filha.
— Larah! Mas... O que faz aqui? Como me achou?
Quando chegou da Inglaterra?
— Calma, pai! Por que não começa me abraçando e
me beijando? — propôs ela, estendendo os braços para o
pai.
— Oh, filha! — exclamou o professor, enternecido,
estreitando-a contra o peito e beijando seu rosto.
Respirou fundo, como se aquela saudade morresse dolorosamente dentro dele. Reteve a filha nos braços, sentindo-se bem em tê-la junto de si.
Quando se afastaram, finalmente, olharam-se nos olhos. Larah sorriu, acariciando os cabelos brancos do pai
com uma ternura comovente.
— É o mesmo de sempre, pai. Você não muda nunca?
— E você está muito bem... Deve estar cansada...
— Faminta!
— Venha, venha comigo. O taverneiro tem uma ótima
cozinheira você verá.
A garota arriscou, então, uma olhada sobre o quarto
ocupado pelo pai. Sua atenção foi atraída pelos livros velhos sobre a mesa.
— Que trabalho está fazendo agora?
— Algo diferente fascinante, mas discutiremos isso
mais tarde. Agora venha, vamos comer alguma coisa —
disse ele, rodeando-a pelos ombros e levando-a pelo corredor.
Desceram para o salão. O professor ordenou que o taverneiro servisse uma boa refeição, depois foi acomodar a
filha numa das mesas.
Quando se sentou, seus olhos pousaram sobre a figura
sorridente de Klauss, bebendo com alguns amigos. O professor julgou aquilo algo realmente estranho, já que o oficial de polícia estava às voltas com um caso realmente fantástico.
— Espere-me só um momento, filha — pediu ele, levantando-se e indo até Klauss.
— Parece-me feliz, professor...
— Sim, não revia minha filha há muito tempo... É uma
garota fantástica, mas... Estou estranhando seu comportamento, oficial. Esteve no castelo?
— Sim — respondeu Klauss simplesmente, batendo
no balcão e ordenando que lhe enchesse o copo.
O professor não conseguia entender aquela calma e
aquela indiferença.
— E o que descobriu lá?
— Não pude entrar, como o senhor...
— Mas viu as marcas, não?
— Sim, mas tudo muito indefinido, professor. A seca
foi intensa, a ventania levantou muita poeira. Essa poeira
foi lavada pela chuva, acumulando-se às margens das correntes que se formam naturalmente... Não creio que uma
carroça poderia ter entrado lá...
O professor olhou-o estupefato.
— Crê realmente nisso?
— Sim, por que não?
— E a que atribui o que houve no cemitério?
— Alguma brincadeira dos jovens, nada mais. Descobriremos—
CAPÍTULO 5
Ao fim da tarde, pouco antes do escurecer, o vento
mediterrâneo voltou a soprar, gerando um mormaço desagradável. Das margens do rio uma neblina densa começou a
se formar, sendo levada pelo vento na direção da cidade.
As nuvens do céu começaram a correr, apresentando
claros que deixavam ver as estrelas cintilantes, mas logo a
neblina tornou tudo apenas um véu, dominando a paisagem, cobrindo os telhados, dando às árvores desfolhadas
contornos assustadores.
Baja estava à porta da taverna. Mas conseguia enxergar o outro lado da rua e isso o aborrecia. Talvez Nadji,
com aquela noite tão tenebrosa, desistisse de comparecer ao
encontro.
Uma secreta esperança ainda o animava, no entanto. A
neblina era, também, muito conveniente. Ambos poderiam
atravessar a cidade juntos até. Talvez isso animasse Nadji,
ao invés de assustá-la.
Acendeu um cigarro, deixando-o no canto dos lábios.
Levantou a gola de sua jaqueta contra a umidade e avançou
pela noite. Conhecia o caminho, conhecia toda a região
muito bem. Não foi difícil chegar ao celeiro abandonado e
instalar-se.
Havia um lampião providencial a um canto. Baja acendeu-o em chama baixa, depois foi se estender sobre o
colchão de palha improvisado pelos rapazes. Pensou em
Nadji, pensou em sua adorada com toda a sua paixão, desejando-a, antecipando fantasias, deixando crescer dentro de
si o desejo de tê-la, de cobrar a promessa feita, de amá-la
inteiramente, fazendo-a mulher e sentindo-se homem.
Seus ouvidos estavam atentos aos ruídos do caminho e
seu corpo sobressaltou-se numa esperança cheia de excitação. Ele se pôs em pé num salto e correu para a porta. O
rosto assustado e belo de Nadji surgiu diante dele.
— Nadji! — murmurou ele. — Pensei que não viesse...
— Estou aqui... Úmida, assustada, mas estou aqui —
disse ela, empurrando para trás a capa que trazia nos ombros.
— Nadji! — exclamou ele, tomando-a em seus braços
e beijando-a ardentemente.
O tremor do corpo dela a fazia ainda mais desejável.
Seu perfume jovem e insinuante, seu corpo macio e tentador, sua presença sedutora, tudo isso o fez vibrar intensamente.
Movidas pela paixão, suas mãos avançaram sofregamente pelo corpo dela, reconhecendo as curvas macias, subindo e descendo avidamente aclives rijos e tentadores.
Nadji entregou-se aos abraços e carícias do namorado,
deixando-se contagiar pelo desejo dele, fazendo explodir
dentro de si a firme intenção de entregar-se a ele. Sua respiração acelerou-se e suas mãos buscaram o corpo de Baja
para retribuir atabalhoadamente as carícias que a incendiavam.
Lentamente ele a conduziu até o colchão de palha e a
fez deitar-se. Seu corpo cobriu o dela e a sensação experimentada por ambos foi do mais puro prazer.
A volúpia contagiou-os definitivamente. Ofegante e
sôfrego, Baja a beijou nos lábios, no rosto, nos olhos, nos
ombros, excitando-a, provocando-a ao extremo.
Todo tempero ardente e voluptuoso explodiu em Nadji, manifestando-se em murmúrios entrecortados que escapavam de seus lábios sensuais.
Baja desejou-a nua e suas mãos caminharam apressadamente pelo corpo dela, surpresas e deliciadas por não encontrarem barreiras nas peças íntimas.
Nadji desejou-o igualmente e suas mãos procuraram
despi-lo. Seus lábios se encontravam a todo momento nos
beijos mais eloquentes. O contato de suas peles, finalmente,
levou-os à vertigem irreversível da paixão A sensualidade
libertou-se toda em febrilidade.
Rolaram apaixonadamente sobre a palha, as mãos tecendo as carícias mais íntimas os dedos roçando as peles,
tocando, apertando, pressionando.
Baja sugou-lhe o pescoço demoradamente, depois os
ombros e, finalmente, os seios jovens e empinados. Nadji
arqueou o corpo, deliciada pela carícia que provocava um
verdadeiro turbilhão de sensações dentro de si.
Agarrou-se a ele possessivamente, pedindo a continuidade daquele toque estonteante. Suspiros escapavam de
seus lábios. Suas mãos se moviam apressadamente pelo
corpo de Baja, sentindo-o apertando-o contra si, sufocada
pelas carícias coordenadas que lhe roubavam a vontade e a
alucinavam.
O desejo sugeria a pressa, mas a paixão lembrava um
longo e delicioso caminho, palmilhado pouco a pouco e assim, dentro da noite, entregaram-se àquela descoberta maravilhosa que os faria unidos num só sentimento, numa só
explosão de prazer.
***
Torg tivera muito trabalho naquela noite. Comprar
madeira na cidade e reconstruíra precariamente a escadaria
que levava aos pavimentos superiores do castelo.
Um dos aposentos, um enorme quarto sem janelas, fechado por uma enorme e pesada porta, merecera sua espe-
cial atenção. Ali ele instalara o ataúde roubado e acendera
algumas tochas. Quando terminou, subiu a uma das torres e
ficou observando o céu.
A neblina tornara-se mais espessa ainda, mas Torg estava certo de que veria, tão logo ela surgisse no céu. Esperou pacientemente, com a calma de quem esperara havia
anos pelo momento certo.
Em sua mão trazia o misterioso anel e fitava-o, como
magnetizado pela pedra enorme e cor de sangue. Estremeceu, subitamente, quando a pedra cintilou palidamente. Levantou o rosto para o céu, fitando o ponto onde a lua deveria surgir.
Gradativamente, compondo-se sobre a neblina, seu
disco prateado delineou-se no céu. O corcunda gargalhou,
saltitando de felicidade, o corpo retorcido numa dança macabra e imprudente.
Estacou, finalmente, ofegante e levantou o anel para o
alto. A pedra brilhava agora mais intensamente. O corpo
todo do corcunda começou a tremer de impaciência.
— Venha, ele chama... Tragam sua pureza... A vida
que corre em suas veias e correrá nas veias do mestre... Venham... Venham... — continuou repetindo, a voz gutural
parecendo rasgar o véu de neblina e rumar decididamente
para a cidade.
***
Nadji havia se vestido rapidamente, como se um súbito pudor tomasse seu corpo, agora que se fizera mulher. Parecia envergonhada, mas Baja procurou demonstrar toda a
sua compreensão e sua ternura.
Enlaçou-a em seus braços, olhando-a nos olhos. À luz
pálida e bruxuleante do lampião o rosto da garota ganhava
uma beleza excitante, tentadora, quase misteriosa.
— Nadji, amor, nada mudar agora. Eu a quero ainda
mais entende? Quero-a para mim, para sempre... Meu pai
me prometeu um pedaço de terra... Vou cultivá-la, construir
uma casa... Quando... — interrompeu-se ele, fitando-a demoradamente.
Nadji parecia não ouvi-lo. Seus olhos estavam diferentes, fitando um ponto qualquer do celeiro.
— Nadji, você ouviu... — não chegou a terminar.
As mãos da garota se levantaram, firmando-se contra
o peito do rapaz e empurrou-o definitivamente para trás.
Baja ainda tentou retê-la em seus braços, mas havia uma
força estranha nos braços que o repeliam.
— Nadji! — chamou ele, mas a garota voltou-lhe as
costas e caminhou na direção da porta. — Aonde vai, Nadji? Precisamos conversar...
A garota abriu a porta do celeiro. A neblina penetrou,
envolvendo-a e uma corrente de ar fez tremular a luz do
lampião.
— Nadji! — insistiu ele, correndo até ela e enlaçandoa.
— Ele me chama! — disse ela e sua voz era estranha,
rouca, forte, quase uivo.
— Quem a chama? — indagou ele, tentando mantê-la
em seus braços, mas dominada por uma forma indescritível,
Nadji ameaçava arrastá-lo.
Baja se adiantou, postando-se diante dela, olhando seu
rosto desfigurado. O vento batia nos cabelos da jovem,
desgrenhando os e agitando suas roupas.
— Nadji, sou eu Baja! — disse ele, recuando.
A garota parecia não vê-lo. Olhava um ponto qualquer
adiante e continuava caminhando, Baja segurou-se, então,
pelos ombros, balançando-a, tentando livrá-la daquele transe.
— Deixe-me ir! — ordenou ela e sua mão bateu contra
o rosto do rapaz.
Suas unhas traçaram sulcos que se cobriram de sangue
e fizeram Baja cambalear, horrorizado, quase cego pela dor.
— Nadji! — gritou ele, mas ela continuava caminhando pela estrada.
Baja levantou os olhos, então, tentando ver o rumo
que ela tomaria. Dentro da neblina, o contorno macabro do
castelo maldito se destacava como um lúgubre pressentimento.
O rapaz ficou ali, indeciso, trêmulo, confuso, à beira
da loucura. Olhou as luzes da cidade, brilhando palidamente dentro da neblina.
Alguma coisa sinistra estava acontecendo. Algo que
ele não conseguia adivinhar, mas que o assustava terrivelmente. Correu, então, na direção da cidade.
Estacou alguns passos depois, olhando o estranho cortejo que caminhava na sua direção. Conhecia cada uma daquelas garotas, muitas em trajes de dormir, as camisolas,
esvoaçando, os cabelos acompanhando os caprichos do
vento.
Chamou-as uma a uma. Tentou detê-las, mas todas pareciam possuídas daquela forma que se manifestara em
Nadji. Baja permaneceu atônito, repetindo seus nomes, até
que todas se perdessem no silêncio da neblina.
O rapaz caiu de joelhos e cobriu o rosto com as mãos,
preso de um desespero que beirava as raias do horror. Subitamente, tomado de decisão, levantou-se e correu como um
louco na direção da cidade.
***
Torg havia arriado a ponte e recolocado as pranchas.
Estava ali, parado, esperando. Sabia que elas viriam.
Um sorriso satisfeito desenhou-se em sua boca disforme
quando a primeira delas surgiu de dentro da neblina.
Logo atrás vieram as outras, uma após outra, algumas
lado a lado, todas olhando firme para frente, como se enxergassem e caminhassem para o seu futuro.
Torg esperou que todas elas passassem, depois retirou
as pranchas e levantou os travessões da ponte levadiça. Em
seguida correu pelo pátio, coxeando.
Entrou no castelo. As jovens estavam todas na ampla
sala, iluminada apenas por uma tocha num canto discreto.
— Venham, garotas. Ele as espera — disse o corcunda, rumando para a entrada do calabouço.
Uma a uma delas o seguiram pelo corredor úmido até
aquele aposento onde se encontrava o jazido de pedra. Como se cada uma delas conhecesse sua posição naquele estranho ritual, traçaram um círculo ao redor do túmulo.
Torg, então, retirou de um nicho na parede a caixa de
prata e se aproximou, solene e compenetrado do jazido.
Abriu lentamente a caixa e olhou as cinzas humanas lá dentro.
Um odor fétido, enjoativo, tomou conta do ambiente,
mas os rostos das jovens continuavam impassíveis, olhando
todas na direção do jazido.
Torg, então, esparramou as cinzas no interior do túmulo, depois se afastou alguns passos.
— Aproximem-se para adorá-lo, virgens — ordenou.
As jovens se adiantaram, ajoelhando-se diante do túmulo, as cabeças pendendo sobre as cinzas. Torg desembainhou, então, uma afiada faca de prata.
A lâmina polida faiscou, refletindo desvairadamente o
brilho do fogo das tochas. Torg se aproximou de uma das
garotas. A faca roçou o pescoço delicado, sobre a veia jugular.
— Sua pureza o salvará... Sua beleza será eterna... Ele
saberá recompensa-las — disse, enquanto o fio da lamina
deslizava sobre a pele e o sangue esguichava sobre as cinzas do túmulo.,
O corpo da garota pendeu para frente, estremecendo,
agonizando. Torg repetiu a operação com a segunda garota,
repetindo as mesmas palavras, como se tudo fosse parte de
um ritual.
Pouco a pouco o sangue das virgens foi cobrindo as
cinzas dentro do túmulo. A última delas agonizava agora,
seu sangue esguichando quente, pulsando vida.
Torg, então apanhou o anel e o depositou ao lado do
túmulo depois recuou. Só então olhou a lâmina da faca, antes polida agora enegrecida. Os olhos do corcunda esbugalharam-se e, pela primeira vez, um brilho de vida pareceu
cintilar em seus olhos.
— Não, uma delas era impura... Uma delas não merecia... Mestre! — berrou ele, e suas palavras ecoaram pelas
paredes sombrias do castelo.
Mas o eco de suas palavras desapareceu, abatido por
alguma muralha de pedra, um ruído se ergueu daquele túmulo cheio de sangue.
Parecia uma voz queixosa, entrecortada, gorgolejante,
sufocada, lembrando os últimos suspiros de um animal agonizante.
Depois, cresceu ainda mais num grito prolongado de
animal como um uivo cheio de horror, como se uma fenda
se abrisse na terra e deixasse escapar o uníssono das lamentações do inferno.
Aquele ronco animal tornou-se estridente, exuberante,
como as vozes de mil demônios na vitória do mal, no louvor das trevas.
Repentinamente, porém, transformou-se num lamento
rouco e dolorido. Uma mão se levantou e tateou as pedras,
até encontrar o anel, recolhendo-o trêmula e fraca.
Torg olhou cada uma das garotas. Uma delas era impura, uma delas traíra sua virgindade e seu mestre. Ele se
aproximou hesitante do túmulo e olhou em seu interior.
Um ser disforme, a pele macilenta, ligeiramente esverdeada, olhos chamejantes, mas cansados, dentes pontiagudos onde se destacavam duas presas alongadas que cobriam os lábios inferiores pálidos e descorados.
— Mestre... Perdão! — suplicou o corcunda, caindo
de joelhos.
— Torg, seu aborto da natureza, seu imprestável filho
de um súcubo! O que foi que fez? Onde estão minhas forças? Onde está minha juventude? Percebe o que fez? Percebe o que fez, maldito! — lamentou o estranho ser, as
mãos se unindo num esforço supremo diante dos olhos.
— Uma delas era impura, mestre. Seu sangue não o
ajudou...
— O que está esperando? Encontre outra... Rápido ou
será tarde demais... Encontre outra virgem ou sugarei seu
sangue até a última gota — rugiu o vampiro, as presas arreganhadas, a boca pastosa, a voz como o guinchar de um rato moribundo.
— Sim, mestre! Eu encontrarei outra... Eu juro... Sairei agora mesmo...
— Onde está meu ataúde?
— Lá em cima... No antigo quarto...
— Ajude-me a chegar até lá... A terra me ajudará a suportar a espera...
O corcunda se inclinou, estendendo suas mãos. O
vampiro agarrou-se a elas com uma força que espetava. Suas unhas cravavam nas carnes do Torg, mas ele, num esforço sobre-humano, ergueu o ser do seu túmulo.
— Tem de ser rápido, Torg... Não esperei tanto tempo
para reviver por nada... O mundo será meu novamente...
Ninguém ousará me destruir...
Lentamente Torg o levou pelo corredor, depois pela
escadaria, até o aposento onde estava o ataúde. Enquanto o
ajudava, Torg tentava descobrir onde encontraria a virgem
que devolveria toda a força e o vigor de seu mestre. Lembrou-se, então, daquela garota que vira no carro, diante da
taverna.
CAPÍTULO 6
Larah debruçou-se sobre o ombro do pai, olhando os
livros espalhados sobre a mesa. Ele tentava agora restaurar
uma folha de papel que teimava em desmanchar-se entre
seus dedos.
— O que há de importante nesses livros? — indagou a
garota.
— Ainda não sei... E vai levar um bom tempo até que
saiba — ponderou ele.
Nesse instante, bateram na porta do quarto.
— Eu atendo — disse ela, caminhando até lá e abrindo
a porta.
Um policial encarou-a, surpreso por instantes. Ao ver
o professor se levantar, ao fundo do aposento, olhou-o com
interesse.
— Professor Hilgenstiller, eu suponho...
— Sim, o que deseja?
— O oficial Klauss quer vê-lo na chefatura. Disse que
o assunto talvez possa interessá-lo...
— Está bem, irei em seguida. É o tempo de apanhar
um casaco — respondeu o professor.
O oficial se retirou. Larah foi ajudar o pai se vestir.
— Voltarei assim que possível... Ainda se lembra de
suas lições de restauração de papéis antigos?
— Não fiz outra coisa nos últimos seis meses na Inglaterra. Estava apenas esperando que me convidasse...
— Pois então, sirva-se. Escolha um dos livros e mão à
obra — disse ele, inclinando-se para beijá-la.
Larah acompanhou-o até a porta. Em seguida, retornou para junto da mesa de trabalho e examinou os livros ali. Nenhum deles parecia conter alguma coisa interessante.
Olhou, então, a caixa onde o professor trouxera todo
aquele material da biblioteca. Havia ali alguns livros ainda,
em péssimo estado.
Larah debruçou-se sobre a caixa e manuseou cuidadosamente cada um dos livros. Sua curiosidade foi despertada
por um dele, encadernado em couro vermelho, roído em alguns pontos descorado em outros.
Havia uma inscrição sobre a grossa crosta de sujeira e
bolor que se acumulara sobre o couro. A garota levou o livro para perto da luz e apanhou uma espátula. Cuidadosamente procurou descobrir a inscrição.
— Genealogia dos Drácula — leu ela, finalmente.
Pensou por instantes. Já ouvira aquele nome antes.
Com certa curiosidade foi passando cuidadosamente as páginas, até parar numa delas onde havia uma gravura.
O artista talvez houvesse exagerado nos detalhes macabros daquela figura e isso avivou totalmente a memória
da garota.
— Drácula... — O vampiro do vale de Tisza... —
murmurou ela, agora interessada no assunto.
O livro estava todo ele escrito em latim da idade média, uma língua que Larah dominava com perfeição. Começou a ler, reconhecendo a importância do que tinha diante
de si. À medida que avançava pelas páginas quase desfeitas
pelo tempo, uma sensação incomoda de entrar em contato
com algo tão fantástico dominou-a, inquietando-a.
Um pressentimento de que qualquer coisa a rodeava
naquele instante a fez arrepiar-se. Um ruído num local indefinido sobressaltou-a.
Levantou os olhos, examinando o aposento. Pela janela que dava a uma sacada, nos fundos da taverna, pôde ver
a neblina num céu compacto, encobrindo a noite.
Continuo a leitura, apesar disso, já que a narrativa sobre o último dos Drácula se tornava interessante e reveladora. Era fantástico, assustador. Como cientista que era, atribuiria tudo aquilo à fantasia e à superstição dos moradores
do vale.
Os depoimentos, os testemunhos, as revelações, um
estudo completo e minucioso de algum historiador desconhecido, no entanto, faziam-na quase acreditar que um dia
vagara por aquelas terras um ente fantástico, um parasita
infernal que vivia do sangue alheio e impusera um reinado
de terror.
Novamente outro ruído sobressaltou-a. Algo afastado,
surdo, distante, como o tropel de cascos e o girar de rodas
sobre pedras.
Levantou os olhos para a janela, incomodada. Pensou
por instantes no que ouvira sobre Drácula. Fora algo recente, ali mesmo em Tisza, há cerca de um século. Houvera um
Drácula ali naquele tempo, mas o livro mencionava com
uma convicção indubitável o último Drácula.
Um ruído inquietante, agora, a fez levantar novamente
os olhos para a janela. Incomodada, levantou-se e foi até
ela. Pode observar da sacada que se ligava às outras dos
aposentos contíguos, mas era difícil distinguir, na neblina,
se havia uma escada ou não conduzindo ao solo.
Voltou as costas para retornar ao livro, mas o som nítido de passos desiguais a fez se voltar para a janela. Reprimiu o espanto ao ver aqueles olhos grudados ao vidro,
olhando-a fixamente.
Um grito subiu-lhe aos lábios, mas foi travado no último instante por uma vontade superior à da garota. Um
medo extremo invadiu-a, fitando aquele rosto disforme e
aqueles olhos dominadores.
***
O professor se inclinou e segurou o queixo de Baja,
fazendo-o levantar a cabeça. Os olhos do rapaz o fitaram
com espanto. Havia neles algo que impressionava, que
convencia.
— Marcas de unhas... Profundas... Onde está o médico?
— A caminho — respondeu Klauss, traindo em seu
tom de voz a confusão que o assaltara.
Realmente não sabia o que fazer no momento. As declarações confusas de Baja não tinham sentido, não havia
lógica alguma no que ele dizia.
O professor se voltou para ele.
— O que pretende fazer, oficial? — indagou.
— Esperar o dia amanhecer... Não creio que devamos
incomodar as famílias todas... Nem ir ao castelo... Afinal, o
que pode estar acontecendo lá?
O professor Hilgenstiller, como homem de ciências,
desejava acreditar na decisão de Klaus. Parecia ser a medida mais acertada Baja estava fora de si.
Era, no entanto, justamente esse ponto que despertava
a curiosidade do professor e o fazia pensar a respeito. Estivera no castelo, vira as marcas daquela carroça. Klaus nada
comprovara. O oficial parecia procurar não acreditar em algo que estava dentro dele. Essa contradição era gritante, intrigante.
— Não acha que deveria, por uma questão de consciência, ir até a casa de uma dessas garotas? — ponderou o
professor.
— De qual delas?
— O rapaz disse alguns nomes...
— Professor, temos três, quatro, cinco, dez, inúmeras
pessoas com nomes idênticos nesta cidade. Pode imaginar o
tipo de amolação a que sujeitaria as famílias? Depois ainda
há algo... — interrompeu-se ele, olhando Baja, depois o
professor.
— Sim?
— Por que alarmá-los? Se alguma das garotas, como o
rapaz disse, tivesse saído de casa numa noite dessa, não acha que as famílias dariam pela falta e já teriam me comunicado isso?
— Bem, acho que tem razão... Mas o rapaz...
— Rapazes bebem, professor. Rapazes andam por aí,
assustam-se com facilidade...
— E unham-se a si mesmos — completou o professor,
olhando o rosto de Baja, agora mudo, estático, como se tivesse caído num estado de letargia e alheamento.
— Investigaremos isso quando amanhecer. Estou certo
que encontrarei uma boa resposta...
— Avise-me quando isso acontecer — disse o professor, despedindo-se.
Deixou a chefatura. A neblina tornava-se mais densa e
úmida. O professor levantou a gola de seu casaco e caminhou pelas pedras lisas do calçamento.
Um ruído chamou sua atenção, quando se aproximou
da taverna. Parecia o som de uma carroça, mas quem se aventuraria a sair numa noite daquelas?
Apressou o passo, como se quisesse deixar para trás
uma resposta incomoda que girava em sua mente. Lembrou-se do temporal da noite passada. Que carroça arriscaria circular com um tempo daqueles?
A sensação de que havia qualquer coisa acima de sua
compreensão foi se estabelecendo dentro dele. Havia, realmente, algumas perguntas sem respostas. O ataúde roubado
do túmulo, o que Baja contara, o horror no rosto do rapaz,
aqueles arranhões...
— Que tal um pouco de vinho, professor? — indagou
o taverneiro assim que ele entrou.
O professor se sentiu tentado a aceitar, mas aquela
sensação incomoda dentro dele o fez olhar na direção da
escada. Pensou nos livros, pensou em Larah, pensou na carroça e algo o fez subir as escadas apressadamente.
Empurrou a porta, ao mesmo tempo em que chamava:
— Larah!
Um estremecimento percorreu seu corpo ao ver a janela aberta e a neblina dançar diante de seus olhos.
— Larah! — chamou novamente, correndo até a janela.
Nitidamente dentro da noite, ouviu o som da carroça,
agora se afastando. Os cascos pisando as pedras pareciam
gritar uma canção fúnebre, angustiante, monótona.
— Larah! — insistiu, deixando seu quarto e indo bater
na porta do quarto que fora destinado a ela.
Sem obter resposta, girou o trinco e empurrou-a. O
quarto estava vazio. O professor retornou ao seu próprio
quarto, parando à porta, confuso, indeciso, incapaz de pensar com clareza e serenidade.
Viu, então, aquele curioso volume de trabalho. Correu
até lá e debruçou-se sobre ele. Observou a capa. Aquele
nome estalou em sua mente como a pior das deduções, como a pior das ameaças ao seu coração de pai.
— Larah! — gritou ele, sentindo que seu espírito científico cedia à superstição, ao medo. — Larah! — gritou novamente, precipitando-se pelo corredor, na direção da escada.
***
A carroça subiu a ligeira encosta aos solavancos.
Torg manobrou-a com perícia sobre a ponte levadiça,
freando-a junto à porta da entrada. Pensou em erguer a ponte levadiça, mas não havia tempo. A eternidade de seu mes-
tre dependia daquele belo fardo humano que ele tomou nos
braços.
Rapidamente atravessou a ampla sala, subindo as escadas improvisadas e chegando diante do quarto onde Drácula repousava, à espera de sangue fresco que lhe restituísse a vida totalmente.
O corcunda empurrou a porta e se aproximou lentamente do ataúde. Próximo dele, depositou o corpo de Larah
sobre as pedras frias.
— Mestre, ela está aqui — murmurou ele.
As mãos macilentas, quase descarnadas do vampiro se
apoiaram às bordas do ataúde. Um gemido lento, prolongado, cavernoso ecoou pelas paredes, enquanto ele se erguia
lentamente.
O horror estampou-se nos olhos de Torg. Drácula era
um homem de um século, envelhecido extremamente, como
se seus tecidos já estivessem em decomposição.
— Onde está ela? — indagou Drácula, a voz por um
fio, num lamento rouco, lento, aterrador.
— Aqui, mestre — disse o corcunda, debruçando-se
sobre Larah por instantes.
Lentamente, então, a garota se levantou. Seus olhos
estavam fixos na figura horripilante do vampiro, mas não
havia medo no seu olhar.
Os olhos do vampiro, então chamejaram, injetados.
Sua boca arreganhou-se como a de uma fera enlouquecida e
as presas pontiagudas cintilaram, refletindo as chamas das
tochas.
Lentamente seu corpo enfraquecido desceu do ataúde
e se ergueu diante de Larah. Vestia roupas antigas. Uma
capa preta enorme cobria seus ombros e se arrastava no piso, escarlate em seu forro interior.
— Eu a recompensarei, Torg. Ela será minha rainha,
minha esposa, minha vida — disse o vampiro, abrindo os
braços.
Seu corpo esquelético, semicurvado, contrastou contra
o escarlate do forro da capa. Sua boca se abriu ainda mais.
As presas pareceram crescer, roçando seu lábio inferior.
Um som rouco escapou da garganta do vampiro,
quando parou diante de Larah, olhando sua beleza, sua juventude, sua vida. Seu olhar se concentrou no pescoço sensual, torneado, delicado.
Torg pressentiu o que aconteceria e recuou até tocar a
parede. Não conseguiu, no entanto, afastar seus olhos da
cena, como se aquilo o maravilhasse e excitasse.
— Torg, meu fiel escravo... Você se superou... Ela é
linda... — rouquejou o vampiro, as mãos resvalando pelos
seios da garota. — Carnes rijas... Tentadoras... Sinto meus
apetites voltando, Torg... Devo saborear isto até o extremo... — Esperei muito...
Suas mãos flácidas, ósseas, de unhas pontiagudas tocaram a cintura de Larah, escorregaram para suas nádegas,
apertando suas carnes.
Mais e mais cintilavam os olhos do vampiro, como se
o prazer daquele momento ultrapassasse sua expectativa.
Seu corpo se aproximou mais e mais de Larah, roçando o
dela, esfregando-se com volúpia.
Suas mãos pareciam encontrar vida, sentindo a maciez
daquelas carnes jovens, pressionando-as, cravando-lhes as
unhas, massageando-as.
Sua cabeça pendeu. Seu hálito fétido varreu o rosto
belo e impassível da garota. Seus lábios roçaram os dela
num beijo desumano, antes de escorregarem num beijo desumano, antes de escorregarem para o seu queixo e depois
para o seu pescoço.
A vida se oferecia aos dentes do vampiro, mas ele parecia retardar o momento de sorvê-lo gole a gole, como se
houvesse um prazer maior, compensador.
Seus braços se fecharam ao redor do corpo da garota.
Drácula ofegou, a respiração acelerando, um gemido brotando de sua garganta, crescendo, ecoando pelas paredes,
provocando calafrios no corpo de Torg, como se um animal
ferido reunisse todas suas forças num último urro, num último arranco.
A sua boca abriu-se ainda mais e suas presas pareceram conhecer o caminho exato, tocando a pele do pescoço
de Larah sobre a veia jugular.
Espasmos percorreram o corpo disforme e monstruoso. Aquele urro se transformou num uivo. Larah estremeceu. As presas pontiagudas vararam sua pele e o sangue
brotou. Resfolegando, o vampiro procurou não desperdiçar
nem uma gota sequer.
CAPÍTULO 7
A neblina que o rodeava parecia confundi-lo ainda
mais, desorientando-o. Seu desespero interior explodia numa impaciência agressiva, como se pudesse defender a filha esmurrando o ar.
Todas aquelas superstições malucas gravitavam ao seu
redor, encontrando um eco profundo em seu coração de pai.
O professor Hilgenstiller hesitou, sem saber que atitude
tomar.
O taverneiro jurara não ter visto Larah sair. Aquela janela aberta, o livro sobre a mesa, o barulho de uma carroça,
ideias alucinadas, tudo isso gerou um medo que abalou toda a sua confiança interior.
Pensou em ir até a chefatura e narrar o acontecido a
Klauss, mas aquele não era o tipo de ajuda de que precisava. Vira o que acontecera a Baja. Por mais que jurasse a
respeito do que vira, Klauss preferiu ignorar.
Concluiu, então, que só havia uma coisa a fazer. Deveria ir até o castelo e verificar o que se passava lá. Talvez
precisasse de alguma arma, mas haveria um tipo especial de
arma para o que iria ter que enfrentar?
Mal chegou a essa conclusão e já avançava pela noite,
envolto pela neblina, na direção, torcendo para não perder a
direção.
Havia, seguramente, qualquer coisa perigosa no ar.
Poderia ser apenas um louco, um fanático ladrão de relíquias, um maníaco sexual. Suposições como essas, mais
concretas e mais aceitáveis lutavam para se impor sobre outra, irreal, fantástica demais, terrível demais.
As luzes da cidade ficaram para trás. A neblina estava
densa, mas possivelmente a luz no céu produzia uma claridade que impregnava a neblina.
O professor reconhecia a estrada, as valas à beira do
caminho, a trilha que percorrera naquele mesmo dia. Dentro em pouco os contornos do castelo foram se definindo
dentro da noite.
Aquele silêncio aterrador parecia infiltrar-se pela pele
dele, fazendo-o apressar o passo, temeroso pela filha, ansioso para pôr um fim a tudo aquilo.
Avançou na direção da ponte levadiça, tentando imaginar como faria para atravessá-la. Estacou, surpreso, as
deduções tomando forma. Baja estava certo, talvez. A ponte levadiça fora preparada para dar passagem.
Grossas pranchas atravessaram os suportes. O professor hesitou, temeroso pelo que teria de enfrentar lá dentro.
Depois, lentamente, foi avançando.
Percebeu as formas de uma carroça ao fundo, ainda atrelada a um cavalo. A neblina não o permitia ver detalhes.
Pensou em se aproximar, mas viu a fraca claridade que teimava em se derramar pela porta.
Caminhou para lá, entrando cautelosamente. Uma tocha iluminava a ampla sala em ruínas. A escada recémconstruída aos fundos chamou-lhe a atenção, assim como a
claridade que vinha das tochas acesas no calabouço.
Por instantes ficou imóvel, atento, procurando ouvir
algum ruído. Depois avançou na direção do calabouço. Viu
um traseiro antigo, enferrujado, caído perto da porta. Apanhou-o. Era pesado e lhe pareceu uma boa arma.
Desceu lentamente a escada, até o corredor úmido. O
silêncio sepulcral do castelo era aterrador. As tochas pareciam indicar o caminho e o professor caminhou, seguindoas até a porta daquele aposento.
Notou que estava trêmulo. Suas mãos se firmaram ao
redor do metal, seus músculos se retesaram, prontos para
desferir um golpe, enquanto avançava lentamente.
A princípio não entendeu o que via. Num círculo macabro, sete jovens, algumas em trajes de dormir ainda, estavam estendidas à beira do que lhe pareceu um túmulo. Suas
cabeças pendiam para o interior e todas estavam imóveis.
O professor se lembrou das palavras de Baja. Ele estava certo, ele vira aquele cortejo na neblina. Avançou um
pouco mais, até tocar uma das garotas.
Estavam todas imóveis, pálidas, frias, mortas. Um arrepio percorreu a espinha do professor ao se debruçar sobre
uma delas. Segurando-a pelo rosto, girando-a para si. Aquele corte horrível em seu pescoço fez o professor estremecer e soltar o braseiro.
O metal ecoou sobre as pedras, enquanto o professor
recuava até a parede. Entendia o que houvera ali. Aquelas
jovens haviam sido mortas horrivelmente. Os cabelos de
algumas estavam empapados de sangue.
Dominando o pavor, o professor avançou novamente.
Era incrível, assustador, animalesco o que via. Não pôde
entender, no entanto, aquela serenidade inacreditável nos
rostos de cada uma.
Haviam sangrado até morrer e isso pareceu não intimidá-las, não provocar reações que seriam naturais. Teriam
sido drogadas? Teriam sido dominadas por alguma forma
violenta?
Avançou um pouco mais e debruçou a cabeça sobre
túmulo. Esperou ver ali, talvez um lago de sangue, mas o
túmulo estava seco.
Apenas umas e outras gotas tardias de sangue manchavam as pedras do fundo.
— Que morte horrível! — murmurou ele, tentando entender o motivo daquilo.
Repentinamente, como um alerta de perigo, como um
grito desesperado de seu coração, ele pensou na filha. Olhou ao seu redor.
— Larah! — chamou baixinho, sentindo fugir-lhe a
razão e o domínio de suas ações. — Larah! — gritou mais
alto, deixando aquele aposento e avançando pelo corredor.
— Larah! — voltou a gritar, quando chegava à sala.
Suas palavras ecoaram pelas paredes e o silêncio reinou por instantes. Repentinamente, porém, o ruído de uma
velha porta se abrindo chegou a seus ouvidos.
Levantou os olhos para a escadaria precária, em madeira, como se algo importante houvesse lá em cima. Passos desiguais soaram. Um vulto disforme e desengonçado
se desenhou no alto da escadaria, fitando-o irritado.
— Quem é você? — gritou Torg. — Vá embora daqui!
Vá!
— Minha filha... Onde está minha filha? — indagou o
professor, agora certo de que algo acontecera à jovem.
Avançou pela escada. O corcunda agiu como se estivesse fora de si, descendo ao encontro dele, ameaçador,
cheio de uma fúria que espantou o professor.
Por momentos os dois se encararam, frente a frente. A
mão do corcunda se ergueu e seu punho fechado foi uma
ameaça que o professor não pôde ignorar.
— Onde está minha filha? — gritou ainda, antes que o
pesado punho do corcunda o atingisse na cabeça, desequilibrando-o, fazendo-o cair, rolando pela escada.
O corcunda desceu em sua perseguição. O professor,
em desespero, percebeu que não poderia enfrentá-lo. Havia
uma força descomunal naquele homem disforme.
Ele tentou se levantar, então, o corpo dolorido pela
queda, a cabeça girando numa infernal confusão. Sua mão
tocou algo. Seus dedos se fecharam ao redor do cabo de um
pesado martelo.
Quando Torg se inclinou sobre ele, o professor vibrou
o martelo, atingindo a cabeça do corcunda, que urrou de
dor e cambaleou.
O professor se levantou. Olhou o corcunda cair de joelhos correu para a escadaria, subindo-a apressadamente.
Chegou a um corredor escuro, mas havia claridade logo à
frente, saindo de uma porta.
Apressou-se até lá. O que viu beirava as raias do delírio, do pesadelo mais animalesco e fantástico, do horror
mais extremo.
Aquela figura se voltou para ele, os dentes arreganhados, as presas brilhantes cobertas de sangue, os lábios vermelhos, os olhos injetados como se refletissem o fogo do
inferno.
O corpo de Larah deslizou para o chão. A garota estava mortalmente pálida. Uma mancha arroxeada cobria seu
pescoço.
— Quem é você? — indagou ele, como se a resposta
fosse desnecessária, pois todos os seus temores se confirmavam.
A resposta foi um uivo bestial daquele ser, que abriu
os braços e avançou para o professor, a capa esvoaçando.
Por instantes o professor ficou estático, mas no último momento vibrou o martelo, atingindo a cabeça do vampiro.
Este apenas se desequilibrou ligeiramente, fitando o
professor com um ódio mortal. Seus dentes rebrilharam e
suas mãos se ergueram, ameaçadoras, como garras de um
morcego, as unhas afiadas se curvando.
O professor olhou a filha, vítima da sanha implacável
do monstro e um ódio supremo encheu seu coração. Ele atirou o martelo com todas as forças contra o vampiro, que
pareceu nem sentir a pancada.
O professor recuou, percebendo, horrorizado, a inutilidade de suas ações. Ganhou o corredor. O vulto negro e
esvoaçante a perseguiu. Hilgenstiller se precipitou pela escada, tropeçando nos últimos degraus, caindo ao lado de
alguns pedaços de madeira.
Um deles cruzava sobre o outro e a imagem ativou no
professor um instinto de defesa que jamais, em sã consciência, ousaria admitir.
Ele apanhou os dois pedaços e uniu-os em forma de
cruz diante do corpo. O vampiro chegava ao meio da escadaria e, ao ver aquilo, parou, cobrindo os olhos com um dos
braços.
Um uivo rouco e prolongado escapou de sua garganta
e ele recuou, voltando a subir os degraus, como se fugisse
daquela imagem diante dele.
O professor foi em seu encalço, pensando desesperadamente na filha. O vampiro entrou naquele aposento. O
professor o seguiu. O vampiro encolheu-se contra uma parede, puxando a capa sobre o corpo.
— Maldito filho das trevas! — gritou o professor, com
lágrimas nos olhos, olhando a filha caída e imóvel.
Precisava fazer algo e tirá-la dali o mais depressa possível. Movido pelo desespero, retirou de um de seus bolsos
um lenço, abrindo-o.
Com ele firmou os dois pedaços de madeira em forma
de cruz diante do vampiro. Depois tomou a filha nos braços, tirando-a dali. Olhou a pesada porta. Deixou o corpo
da filha no corredor e apanhou o martelo. Depois desceu
febrilmente as escadas e apanhou madeira e pregos, espalhados por ali ainda.
O corcunda estava caído, imóvel, mas em sua cabeça
não havia o menor sinal do ferimento. Onde deveria haver
um hematoma pela hemorragia interna havia apenas um leve sinal esbranquiçado.
O professor retornou ao aposento e puxou a porta, fechando-a. Depois procurou fechá-la da melhor maneira
possível, entrelaçando os pedaços de madeira de um batente ao outro, cravando prego e mais prego sobre a porta.
Estacou, finalmente, contemplando seu trabalho. Estava ofegante, o coração aos saltos, a cabeça girando. Foi se
debruçar sobre a filha. Ela respirava fracamente e estava
muito pálida.
O sangue escorria do ferimento em seu pescoço e o
professor rasgou um pedaço do vestido dela, improvisando
um curativo. Tomou-a nos braços e desceu a escadaria, como se o desespero duplicasse suas forças.
Olhou o corcunda ainda imóvel, depois deixou o castelo. Atravessou a ponte levadiça. Larah estava inconsciente ainda. Precisava de cuidados e apenas isso ocupou a
mente dele.
CAPÍTULO 8
A cidade estava atônita. O professor estava perplexo
naquele amanhecer, quando a neblina pouco a pouco ia
dando passagem ao sol. Tudo parecia agora um terrível pesadelo, mas as provas de sua existência real estavam ao alcance dos olhos de quem desejasse ver. Na noite anterior,
fugindo àquele inferno, Hilgenstiller, levara a filha para o
precário hospital da cidade. Avisara Klauss. Apenas o notificara de que algo terrível acontecera no castelo e que ele
deveria tomar precauções com aquele quarto no alto da escadaria.
Vendo agora, os homens retornarem, o professor mal
podia conter sua expectativa. Fora uma longa e terrível noite, como se por algumas horas tivesse vivido uma lenda.
Klauss entrou na sala de visitas do hospital e encarou
o professor.
— Como está ela? — indagou.
— Ainda não sei ao certo... Esteve no castelo? — indagou em seguida, temeroso, cúmplice.
— Sim, estive... — suspirou Klauss deixando-se cair
pesadamente uma cadeira. — Foi horrível... Deve ter pas-
sado maus bocados, professor. Felizmente sua filha foi
poupada...
— Sim, as outras tiveram suas gargantas cortadas e estão mortas...
— Esteve naquele aposento? — indagou o professor,
com uma ansiedade que Klauss não pôde entender.
— Sim, estive... Deve ter presenciado um quadro não
muito agradável... Compreendo sua ânsia em tentar lacrar o
aposento definitivamente... Tivemos muito trabalho em desobstruir a porta...
— E então?
— Vimos o ataúde... Não entendo o que Baja pretendia, afinal...
— Baja? — surpreendeu o professor.
— Sim, Baja. Tudo está muito claro, o rapaz perdeu o
juízo completo...
— Espere um pouco, oficial. Não consigo entender o
que está tentando me dizer...
— É compreensível, professor. Passou por uma experiência traumatizante... Espero que sua filha melhore...
Conversaremos quando estiver mais calmo e menos preocupado...
— Não, por favor, tem que ser agora — pediu o professor, agarrando o braço de Klauss, surpreendendo-o.
O oficial suspirou, entendendo toda a apreensão e o
horror enfrentados por aquele homem.
— Baja será julgado e pagará por seus crimes... Não
sei que satânica intenção o movia, mas estou certo que pagará por tudo.
— Será que não pode, apenas por um momento, admitir a verdade?
— Que verdade? — indagou Klauss, surpreso, alheio,
cansado.
O professor esfregou as mãos sobre o rosto, tentando
pensar com clareza.
— A carroça... Viu a carroça? E o corcunda? Ele estava lá, eu o golpeei...
Klauss olhou-o com profunda piedade.
— Acho que deveria repousar um pouco, professor.
Estou certo que nossos médicos saberão cuidar da garota...
— Não, eu não posso. Diga-me que os viu... Que não
está mentindo... Que havia algo além daquele ataúde no aposento... Eu o vi, Klauss. Eu o vi, como vejo você agora...
— Quem, professor?
— O vampiro... O último dos Drácula... Sei lá que denominação devo dar àquele ente infernal — desabafou o
professor, aquela imagem agitando-se em sua mente, aquelas presas brilhantes, aqueles lábios ensanguentados, aqueles olhos avermelhados, tudo como um pesadelo real.
Klauss passou as mãos pelos cabelos úmidos e tentou
dizer algo, mas calou-se. A piedade se acentuou. Fora, re-
almente, imenso o golpe sofrido por aquele homem diante
de si.
— Está bem, professor. Falaremos sobre isso mais tarde. Verá que o convencerei de que Baja matou aquelas garotas e quase matou sua filha, também. O rapaz está louco,
isso é fato. Roubou o ataúde... Não sei ainda o que ele pretendia, mas quando ele voltar à razão talvez possamos saber desse mistério — disse Klauss, olhando-o por mais alguns instantes, depois se retirando.
O professor reclinou-se na cadeira, perplexo diante
daquelas palavras e diante de suas próprias deduções. A
dúvida instalou-se em seu espírito. O que houvera, realmente, naquele castelo?
Teria visto aquilo ou fora uma alucinação? Estava
cansado, muito cansado, mas a preocupação com a filha o
mantinha acordado. Além disso, havia muitas perguntas
sem respostas convincentes, da mesma forma como havia
respostas aterradoras, fantásticas, para cada uma daquelas
perguntas. Lentamente, porém, como um sinistro temor que
se instalou dentro dele, uma pergunta, talvez a mais importante de todas naquele momento, tomou corpo em seu celebro.
A resposta teria de estar em alguma parte. Deveria haver alguma explicação lógica, cientifica, convincente. Estavam no século vinte, coisas como aquelas já haviam passado há muito para a categoria de lenda. Mas a pergunta mar-
telou seus sentidos, como uma ameaça a sua filha agonizante, como um sinistro manto que cobrisse agora a cidade de
Kizna e estendesse suas fraldas sobre todo o vale de Tisza:
onde estaria Drácula, o vampiro daquele castelo maldito.
FIM DO LIVRO UM
DRÁCULA,O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO DOIS
GARGANTAS DILACERADAS
CAPÍTULO 1
A lua minguante brilhava palidamente no céu.
Nos campos, esparsas poças de água ainda marcavam
a passagem daquelas chuvas pesadas que haviam lavado
repentinamente o vale de Tisza. O céu limpo nem de longe
lembrava a terrível tragédia que se abatera sobre a cidade.
A loucura inesperada do jovem Baja surpreenderá a todos.
Alguns ainda encontravam argumentos para amenizar
sua culpa; outros, porém estavam empenhados numa cruzada por sua condenação. De um modo ou de outro, todos eram unânimes em afirmar que, em seu estado atual, Baja
expiava suas culpas.
Aqueles que o visitaram na cadeira falavam de uma
expressão marcada e de um olhar alheio, como se nada
mais visse, nada mais sentisse. Baja era uma espécie de
morto-vivo, jogado inerte numa cela, sem palavras para
contar o que acontecera naquela noite.
Os velhos voltaram a falar. Toda a culpa estava no
castelo maldito. A força maléfica ainda morava lá e disso,
com toda certeza, o vale jamais se veria livre.
A volta das primeiras folhas verdes trouxera alegria
aos moradores. A seca estava terminada. Os campos seriam
preparados para a semeadura. As encostas verdejariam e seriam pontilhadas por brancas ovelhas, pastando tranquilas.
Sentado no alpendre de sua casa, Mikael Voznik baforava seu cachimbo favorito, olhando o céu e as pastagens.
Seu fiel cão pastor deitara-se a seus pés e repousava a cabeça sobre as patas estendidas.
— Logo você terá trabalho novamente, Nik — murmurou ele, abaixando a mão para alisar o pelo comprido e
macio do animal.
O cão levantou a cabeça e, por instantes, manteve-se
naquela posição.
— O que foi, meu fiel amigo? — indagou o pastor.
O animal ergue-se pesadamente e caminhou até uma
das extremidades do alpendre, a cabeça erguida, como se
farejasse algo. Do galpão onde estavam as ovelhas veio um
barulho de madeira quebrando-se.
As orelhas do cachorro ergueram-se e ele ganiu, voltando para junto do pastor.
— Sim, eu também ouvi — disse o homem. — Os lobos devem andar famintos.
Levantou-se e foi para dentro da casa, de onde retornou com sua espingarda. Estava preste a descer a escada,
quando um alvoroço, vindo do galpão, o alertou. Ele saltou
os degraus. Nik passou por ele, latindo ameaçadoramente.
— Mikael, o que está havendo? — indagou sua esposa, surgindo à porta.
— Acho que é um lobo. Traga uma lanterna — pediu
ele, caminhando na direção do local.
Os latidos graves e curtos de Nik tornaram-se furiosos, vindos de um ponto que Mikael não podia ver. Sua esposa correu para junto dele, levando a lanterna. O pastor
engatilhou sua arma e se aproximou.
Repentinamente, Nik ganiu alto, como se estivesse ferido. Aquele som estridente fez gelar o sangue nas veias de
Mikael. Sua esposa apertou-se a ele, os braços se enroscando por sobre a arma.
— Nik! — chamou-o a mulher.
— Nik! — repetiu o homem.
O barulho cessara, mas as ovelhas se moviam inquietas lá dentro ainda. Mikael ergueu a tranca da porta e puxou-a. Introduziu a lanterna. As ovelhas estavam como que
acuadas num canto.
Ele vasculhou o local com a luz. Viu, numa das paredes o buraco por onde, provavelmente, o lobo entrara.
— Nik! — insistiu.
Um ganido doloroso lhe respondeu, vindo de qualquer
parte por ali.
— Nik, meu amigo! — chamou novamente, entrando
devagar, a arma pronta, a lanterna numa das mãos, a esposa
grudada a suas costas.
O ganido doloroso se repetiu, vindo do alto. Mikael
levantou o facho da lanterna. O gemido parecia ter vindo da
plataforma elevada do galpão, onde armazenavam a lã tosquiada.
Avançou até a escada, mas estacou ao tropeçar em algo macio, iluminou. Era uma de suas ovelhas com a garganta aberta. O animal ainda agonizava, o corpo abalado
por espasmos.
— Maldito lobo! — murmurou, chegando até a escada.
— Aonde vai? — quis saber a mulher.
— Acho que ouvi Nik ganindo lá em cima.
— Eu também acho que ouvi, mas como teria ele ido
para lá?
Esse detalhe ganhou importância na mente do pastor.
Havia apenas aquela escada, era o único meio de chegar até
lá. A plataforma ficava a uns três metros do chão. Nik não
poderia ter subido pela escada. Mas, se estava lá, como o
teria feito? A menos que tivesse sido jogado...
— Segure a lanterna, vou subir — disse ele, intrigado,
qualquer coisa estranha brincando com seus nervos.
Levou a espingarda numa das mãos, à frente, galgando
um após outro os degraus.
O facho de luz apontava para a madeira acima.
— Agora dê-me a lanterna — pediu ele, estendendo o
braço.
A mulher teve de subir alguns degraus para atendê-lo.
O pastor iluminou a plataforma. Num canto, como se tivesse sido jogado, estava o corpo ensanguentado de Nik, seu
fiel cão.
— Diabos! — murmurou ele, subindo apressadamente
e correndo até lá.
Debruçou-se sobre o animal, tomando-lhe a cabeça entre as mãos. O cão estava morto e sua garganta estava dilacerada, como se um sádico houvesse golpeado ali com um
alfanje.
— Mikael, ele está aí? — indagou a esposa.
— Sim — respondeu o pastor, sentindo um calafrio
percorrer sua espinha.
Ergueu o facho de luz para a parede. Havia manchas
de sangue até quase junto às telhas, como se o corpo do animal, já estraçalhado, tivesse batido ali.
Ficou pasmado, assustado, intrigado. Nik era um cão
enorme pesado. Teria sido necessária uma grande força para tê-lo jogado daquela forma.
— Mikael! — berrou a mulher lá embaixo como se o
Juízo Final a tivesse posto diante do demônio.
O pastor correu até a borda da plataforma, ainda a
tempo de ver aquele vulto indefinido escapar pela porta veloz como o vento.
Escorregou pela escada e correu para fora, a arma ao
ombro, pronta para o tiro. Tudo era silêncio, no entanto.
Nenhuma alma viva estava à vista.
— Você o viu? Diga-me que o viu — suplicou a mulher, indo abraçar-se a ele.
— Era o lobo?
— Não sei... Passou por mim, um cheiro de coisa morta. Pareceu roçar meu corpo... — gaguejou ela, apertandose contra o marido.
Mikael segurou-a em seus braços, tentando definir o
que vira, mas tudo fora tão rápido.
— Ele poderia ter me mordido...
O pastor forçou um sorriso.
— Com esse cheiro de alho? Eu duvido. O que estava
fazendo?
— Temperando seu prato preferido... Oh, Mikael! Você está mofando de mim — choramingou ela, empurrandoo.
Mikael recuou alguns passos e lentamente o sorriso foi
morrendo em seus lábios, ao se lembrar de seu cão no alto
da plataforma.
***
O professor Hilgenstiller terminou de comer o guisado servido pelo hospedeiro, depois vagou os olhos pelo salão.
As pessoas o olhavam com certa reserva, temendo encará-lo. Reconhecia que aquela noite no castelo o transtornara, modificando seu pensamento a respeito de muitas coisas, mas estava certo de que não enlouquecera.
Sua lucidez era a mesma com que, naquele castelo, enfrentara aquele ser infernal, fruto de um pesadelo, talvez,
mas real demais para não ser levado em conta.
Klauss não o permitira falar. Para o oficial de polícia
as explicações eram fáceis. Baja levara aquelas garotas para
o castelo e, numa cerimônia negra e macabra, matara cada
uma delas.
O rapaz estava louco, ainda segundo Klauss. A prova
disso era seu estado atual, agindo como se já não mais pertencesse ao mundo dos vivos.
Para o Prof. Hilgenstiller as explicações não eram tão
fáceis. Havia muita coisa sem resposta. Como Baja conseguiria tirar aquelas garotas, algumas delas vestidas precariamente, de suas casas?
Não, a resposta era mais profunda e estava naquele velho livro que ele agora, cuidadosamente, restaurara. Folha
por folha uma história sangrenta e inacreditável ia se esboçando. Para seu espírito, mas cientifico, muita coisa não fazia sentido, mas a lembrança daquela noite o fazia crer em
coisas que jamais sonhara acreditar.
Havia um fascínio naquelas páginas que se desmanchavam ao toque de suas mãos e, ao mesmo tempo, uma
remota e desesperada esperança.
No hospital, Larah ainda definhava, perdendo a beleza
irretocável de seu corpo puro, descarnando-se, fazendo-se
pele e osso apenas.
Aquela marca em seu pescoço, transformada agora em
uma fétida ferida, como se os tecidos apodrecessem e exalassem o fedor da morte, não era explicada por nenhum dos
médicos.
Klauss, no entanto, tinha a resposta. Na certa Baja tentara degolar também a filha do professor, mas esta fugira ao
seu domínio e ele apenas conseguira espetar-lhe o pescoço
com alguma faca contaminada.
Calafrios ainda percorriam a espinha do professor ao
lembrar-se da cena. Larah fora mordida por aquele ser
monstruoso, filho do demônio, fruto de um ventre amaldiçoado, para toda a eternidade.
Por isso precisava voltar àquele livro. Queria salvar a
filha daquele destino terrível que se anunciava. Não podia
mais visitá-la no hospital. Vê-la daquela forma era apunhalar seu coração de pai.
Um tumulto se formou à entrada da estalagem. O oficial de polícia entrou resolutamente, seguido de Mikael e
de alguns homens.
— Muito bem, pessoal. Há um lobo enorme e faminto
rondando o vale. Precisamos caçá-lo. Acaba de matar duas
ovelhas e o cão de Mikael. Preciso de todas as armadilhas
possíveis.
Os homens presentes prometeram prontamente atender
ao pedido, deixando o local. Klauss confabulou por instantes com Mikael, mas interrompeu a conversa ao ver o professor no fundo do salão.
Caminhou até ele. Sorriu.
— Foi bom encontrá-lo, professor. Passei pelo hospital ainda há pouco. Um dos médicos me disse que sua filha
dorme tranquilamente. Aqueles sobressaltos passaram. Ela
parece entrar em recuperação agora.
O professor pôs-se em pé, um sorriso apalermado pairando em seus lábios, lágrimas marejando seus olhos.
— Tem certeza do que está me dizendo?
— Absoluta. Se não acredita em mim, vá até lá. Estou
certo de que o deixarão vê-la.
— Sim, é o que farei — murmurou o professor, rumando para a porta.
***
Niita olhou o reservatório de água ao lado da pia e notou-o quase vazio. Na manhã seguinte teria de ir até a fonte
apanhar água para o café. Por momentos, lamentou a ausência de comodidades como é a água encanada.
Algumas das casas da cidade já a possuíam. Ali, no
entanto, ainda levaria séculos até que seu pai se convencesse de que coisas modernas podiam ser úteis.
Espreguiçou-se, estendendo os braços torneados e jogando a negra cabeleira para trás. Por momentos uma careta engraçada desenhou-se em seu rosto, até que voltasse à
beleza natural.
Niita era jovem, pouco mais de dezesseis anos, mas
seu corpo, como o da maioria das garotas do vale, já apresentava aquela definição de forma que diferenciava a menina da mulher.
Foi até a janela. Uma brisa agradável soprava. Após
aquele hálito infernal que varrera o vale durante a seca, aquilo era uma carícia.
Segurou os cabelos e ergue-os, deixando que a brisa
lambesse sua nuca e seus ombros. A lua minguante definhava no céu, mas havia claridade se refletindo na relva
úmida ainda das últimas chuvas.
Uma ideia tentadora assaltou-a. Voltou o rosto para
olhar na direção do quarto dos pais. Estavam dormindo. Ela
se moveu silenciosamente, então, indo apanhar o cântaro e
o suporte para equilibra-lo em sua cabeça.
Ouvira dizer que, nas cidades grandes, as mulheres faziam qualquer coisa parecida para parecerem elegantes. Se
assim fosse, Niita estava certa de que faria muito sucesso
entre elas.
Equilibrar aquele cântaro na subida da encosta era um
exercício diário que dera ao seu corpo uma graça e uma elasticidade que, por certo, seriam realmente invejadas.
Uma estreita trilha a levava pela encosta, na direção
do rio, apenas um filete durante a seca, mas um alegre riacho após as chuvas.
Cantarolava baixinho, saltitando, sem perder o equilíbrio em pontos perigosos. Havia, um trecho do caminho,
uma queda abrupta, de rochas pontiagudas. Despencar por
ali era a morte certa. Com a chegada das chuvas e do verde,
por certo seu pai reformaria as cercas para evitar que as ovelhas desgarradas acabassem encontrando a morte num
salto sem destino.
Chegou ao rio. A brisa ali parecia ser mais fresca. Deitou o cântaro contra a corrente e enfiou os pés na água para
refrescá-los.
Puxou para cima a barra de sua saía, descobrindo as
coxas morenas e torneadas, sedutoras e elásticas. A descida
a cansara ligeiramente.
Soltou alguns botões de sua blusa e, molhando as
mãos, borrifou água sobre os seios jovens e empinados. A
solidão e a beleza do ambiente trouxeram pensamentos.
Por momentos, uma tarde passada, cheia de emoção,
voltou-lhe à mente. Inclinou a cabeça e segurou um dos
seios com delicadeza, olhando-o.
Recebera a visita do namorado. Seus pais estavam na
cidade, visitando a feira dos ciganos. Ela e ele acabaram no
celeiro. A maneira com que o jovem havia acariciado e apertado seus seios a fazia crer na beleza daquelas formas.
Ergueu a cabeça, de repente. Teria sido o ruído do
cântaro enchendo ou ouvira qualquer coisa. Olhou ao seu
redor. Havia alguns arbustos ressequidos, troncos tombados
e nada mais.
Levantou o cântaro. Qualquer coisa como o resfolegar
pesado e ofegante de um animal a fez voltar a cabeça na direção de uma velha árvore, tombada pelas chuvas que haviam minado as raízes.
Firmou na cabeça o suporte do cântaro e se levantou,
fazendo sua saía escorrer pelos seus joelhos. Começou a
abotoar apressadamente sua blusa, quando um ruído leve,
de asas roçando, a fez arrepiar-se.
Alguém ou alguma coisa saía de trás da árvore. Era
um homem. Sua capa colava-se ao corpo, negra como a
noite mais escura.
— Quem... Quem é você? — indagou a garota, desconhecendo totalmente aquele vulto.
— Alguém que precisa de você — respondeu uma voz
suave e masculina, levemente rouca e entrecortada por uma
excitação que Niita não entendeu.
Ela tentou recuar, enquanto o homem avançava contra
ela. Queria divisar-lhe o rosto, mas as sombras o impediam.
A brisa soprou mais forte, como num presságio, assobiando
nos galhos secos dos arbustos, fazendo esvoaçar a capa, escarlate em seu interior.
— Venha! — murmurou o homem. — Venha! — repetiu, avançando para a garota, que viu, de repente, toda
sua vontade de fuga e seu medo se desvanecerem numa atração inexplicável que a levou até os braços dele.
CAPÍTULO 2
O professor atravessou a rua com passos largos e apressados.
Uma neblina tardia avançava pelo rio, galgando lentamente as encosta e pairando como véu protetor, tornando
baço o brilho da lua minguante.
Homens passaram apressados, arrastando armadilhas e
correntes. Alguns portavam armas. Todos pareciam excitados com a perspectiva de uma diversão incomum. A presença de um lobo mais abusado espalhava animação e temor entre os pastores, principalmente.
Como que em resposta àquele pensamento, de algum
ponto, perdido naquela neblina, um lobo uivou. O som prolongado arrastou-se pelo vale lugubremente.
Viu o hospital, com sua pálida lâmpada à porta de entrada e apressou ainda mais o passo, saltando pontos onde o
barro cobria o calçamento.
Avançou pela porta. A sonolenta enfermeira levantou
a cabeça e, ao vê-lo, sorriu animadoramente.
— Ela dorme, professor. Parece-nos bem melhor que
esta tarde, o doutor não soube explicar.
— Ela deve estar reagindo ao tratamento, então. Graças a Deus! — exclamou o homem, indo para o corredor.
Parou diante de uma porta, abrindo-a lentamente a seguir. Larah dormia placidamente, após tantos dias de agitação. Seu semblante revelava profunda calma e, não fossem
as olheiras pesadas que marcavam seus olhos e aquele curativo que lhe cobria parte do pescoço, o professor juraria
que a filha estava muito bem.
Aproximou-se do leito, olhando os cabelos desfeitos
que cobriam parcialmente uma das faces da garota. Estendeu a mão e afastou-os.
— Larah! — murmurou, acomodando-se numa cadeira
ao lado.
Ficou olhando aquele rosto adormecido, indagando-se
se tudo aquilo não fora mesmo um pesadelo. Bateram levemente na porta. A enfermeira entrou em seguida, com
uma bandeja em suas mãos.
— Acho que vou aproveitar para renovar o curativo
— disse.
— Não quero que a acorde. É a primeira vez em tantos
dias que a vejo repousar assim.
— Serei cuidadosa, prometo, mas isso é preciso realmente.
A enfermeira começou, então, a remover cuidadosamente o curativo. O professor hesitou ante a ideia de permanecer e ver novamente aquela ferida.
Seria doloroso para seu coração de pai. Ergueu-se e
caminhou sorrateiramente para a porta.
— Professor, veja isso! — pediu a enfermeira.
Ele estacou e se voltou rapidamente. Havia qualquer
coisa de surpresa e alento na voz da mulher.
— O que foi? — indagou, aproximando-se.
— Veja, está sarando — apontou ela.
Incrédulo, ele debruçou sobre a filha, observando o ferimento. No dia anterior vira ali uma ferida pútrida, arroxeada como uma gangrena.
Agora, no entanto, o tecido se recompusera inexplicavelmente e apresentava, ao redor dos dois orifícios, uma
coloração rosado-forte.
Inclinou-se um pouco mais, observando atentamente.
Havia pus no local, mas em fraco processo de recuperação.
Ergue os olhos para a enfermeira.
— O que você usou no curativo de ontem?
— O mesmo de sempre. Estou surpresa!
— Onde está o médico?
— Foi para casa. Quer que o chame?
— Não... Acho que não é necessário, mas peça-lhe para dar uma olhada amanhã cedo.
— Pode estar certo que o farei, professor — afirmou
ela.
***
Torg avançou, coxeando, pela passagem secreta. Empurrou o painel e se viu no quarto sem janelas. Olhou o ataúde. Estava vazio. Levantou a cabeça, como se esperasse
captar qualquer coisa no ar, um ruído, um sinal.
Apalpou cuidadosamente a testa. O ferimento cicatrizara, mas fora uma pancada violenta que recebera daquele
professor.
Seus olhos chamejaram, ao lembrar-se dele. Por um
triz seu mestre não era destruído definitivamente por aquele
homem desesperado. Não fosse ele, Torg, haver seguido
pela passagem secreta e afastado aquela cruz que minava as
forças de Drácula, na certa o vampiro da noite teria sido reduzido a cinzas.
Ia retornar pela passagem secreta, quando pressentiu
alguma coisa. Recuou de encontro à parede. Sem ruído, silencioso como um deus, aquele vulto negro avançou lentamente através da porta, estacando ao lado do ataúde.
Voltou-se e encarou o corcunda Torg. Sorriu e suas
gengivas avermelhadas revelaram o que fizera naquela noite. Lentamente o aleijado ousou fixar seus olhos nos olhos
do mestre.
Era como fitar, através de uma estreita passagem, laivos de fogo do próprio inferno.
— Meu fiel Torg! — murmurou ele. — Esta foi uma
noite agradável... Andei pelos campos... As encostas conti-
nuam as mesmas, mas muita coisa mudou no vale. Meu
castelo, Torg... O que fizeram ao meu castelo?
— Foi destruído, mestre. Vaguei como um morto-vivo
pelo mundo, até que chegasse de novo o momento de voltar
e trazê-lo de volta à vida.
— E o que fez, demonstrando ser grato pela imortalidade que lhe dei...
O corcunda abaixou os olhos, como se olhasse dentro
de si mesmo, de seu físico horripilante e repulsivo.
— Eu sei o que sente, Torg. Quando chegar o momento, vou livrá-lo dessa carcaça apodrecida e estropiada para
lhe dar um novo corpo, belo como o meu, eterno como eu
sou. Isso lhe agrada?
— Sim, mestre, muito! — murmurou o aleijado, caindo de joelhos aos pés do monstro e beijando-lhe as pontas
da capa escarlate.
O vampiro olhou-o com profunda piedade, depois estendeu suas mãos e pousou-as sobre a cabeça do corcunda.
Suas unhas pontiagudas acariciaram os cabelos ralos e enovelados.
— Precisamos ressuscitar agora a antiga nobreza da
família dos Drácula. É preciso reconstruir o castelo, encontrar o nosso tesouro...
— Não mestre. Isso seria perigoso. Aqui, não. Muita
coisa aconteceu durante esse tempo. O nome dos Drácula é
odiado e evitado. Terá que ser de outra forma, mestre. Longe daqui.
O vampiro olhou-o sem compreender.
— Sei que muita coisa pode ter mudado em um século. Torg. Eu preciso saber de tudo, então?
— Como?
— Livros. Traga-me livros, meu fiel amigo, todos os
livros que puder. E o tesouro? Sabe onde encontra-lo?
— O mapa foi destruído quando atearam fogo ao castelo, mestre.
— Isso quer dizer que não foi encontrado ainda... Deve estar na antiga caverna, mas nem eu mesmo consigo me
lembrar...
Esta noite encontrei uma garota. Suguei-lhe o sangue
e cravei uma estaca no coração. Quando a joguei numa encosta escarpada, lembrei-me de nossa caverna. Deve estar
por aí, sei que me lembrarei.
— Claro que sim, mestre.
— Agora quero repousar, Torg. Recolha-se — ordenou o vampiro, subindo para o ataúde, onde se deitou lentamente, como se repetisse uma espécie de ritual macabro.
O corcunda coxeou até a porta. Estacou olhando o ataúde.
— Mais alguma coisa, Torg?
— Mestre... Aquela garota ainda vive... Aquele homem o viu. O que devo fazer a respeito?
— Nada, Torg. Eu cuidarei de tudo. É minguante, ela
vai se recuperar e ser normal até que venha nova lua cheia.
Então eu a procurarei. Se encontrar nela qualidades para
reinar comigo, deixarei que viva. Quanto ao homem...
O corcunda aguardou por instantes, mas o vampiro
não terminou a frase. Cruzou os braços sobre o peito e cerrou lentamente os olhos. Iluminado pelas tochas espalhadas
nas paredes, aquele vulto negro dentro do ataúde chegava a
aterrorizar o próprio Torg.
Entrou pela passagem secreta. Precisava trazer livros,
muitos livros para o seu mestre. Já não era uma tarefa muito fácil. Não podia circular pelas ruas. Aquele professor
poderia estar em alguma parte e o reconheceria.
***
O professor, após deixar o hospital, retornava à estalagem. Havia um ajuntamento diante dela. Klauss distribuía
ordens, separando grupos que se dirigiriam a pontos distintos do vale, espalhando armadilhas.
— E não se esqueceram de deixar marcas visíveis, de
preferência as marcas convencionais. Não quero encontrar
um garoto qualquer preso numa dessas armadilhas...
O professor passou por ele e entrou. Respirou fundo.
Estava fatigado. Toda aquela preocupação com a filha e o
trabalho sobre aquele livro o desgastavam rapidamente.
Ia subir pela escada, quando alguém lhe tocou o ombro. Voltou-se. Era um velho, de longa barba branca e pele
enrugada pela passagem dos anos.
— Ouvi sobre sua filha, professor...
— Sim, ela está melhor, obrigada!
— É a lua minguante, professor. Não tenha esperanças. Eu sei...
— E o que sabe? — indagou o professor, intrigado.
— Sei o que meu o pai contou... E foi o pai dele quem
contou a ele...
— E o que afinal, foi contado?
— Há algo sinistro pairando sobre este vale... Eu sinto. Não sei explicar... Estou certo que é ele... Só pode ser
ele.
— E de quem está falando?
— Não, não me arrisco a dizer aquele nome. Diriam
que sou louco... Mas sua filha vai sarar, professor. Aparentemente. A doença é cíclica. A lua cheia trará grandes dissabores...
— Espere... — pediu o professor, mas o homem recuou para a porta, quando alguns outros entraram. Klauss vinha entre eles e se dirigiu ao professor.
— Como está ela? — indagou, respeitosamente.
— Bem, aparentemente — respondeu o cientista, observando o velho desaparecer na rua, entre os homens que
saiam à procura do lobo.
— Estou certo que vai se recuperar...
— Deus o ouça, oficial — murmurou o professor, começando a subir as escadas.
Foi para seu quarto e se sentou diante da escrivaninha.
Acendeu a luz sobre as páginas espedaçadas. A história que
se contava ali fascinava, apesar de fantástica, quase absurda.
Dentro do professor, ocorria um conflito. Seu espírito
científico debatia-se agora, envolvo pelas fantasias e pelo
mistério.
Não deveria acreditar em nada daquilo que lia, mas fazer isso seria agir como Klauss, recusando-se, talvez, a aceitar a evidencia.
Inclinou-se sobre a folha e continuou o trabalho. Gradativamente, mais um capítulo daquela fantástica história
foi se formando diante de seus olhos.
Juntou-o ao que já havia recuperado antes. Falava-se
agora num tesouro. Os Drácula eram ricos, muito ricos e
havia alusões a um sitio no vale onde costumavam se reunir
para cultuar seus mortos ou guardar a fortuna.
Testemunhas afirmavam que haviam visto uma estranha carroça retornar de lá com seus molejos arriados pelo
peso de muito ouro. Alguns juravam ter visto as portas de
uma misteriosa caverna cujo interior resplandecia pelo tesouro oculto.
Havia menções de alguns nomes, indicações vagas, afinal, mas pistas interessantes que aguçaram seu espírito.
Precisava encontrar um mapa do vale, não um mapa atual,
mas um antigo, de cem anos atrás.
Como conseguir isso era um problema, mas contava
com a boa vontade da bibliotecária da cidade. No dia seguinte iria até lá.
Olhou as horas. Era tarde. Precisava repousar. Ergueu
os olhos cansados e fitou a janela. A neblina avançara sobre a cidade, envolvendo-a. Ele pensou naqueles homens
que espalhavam as armadilhas. Um lobo uivou ao longe,
muito distante. O professor foi para a cama. Começou a se
despir, quando ouviu gritos lá em baixo.
Precipitou-se para a porta e no instante seguinte estava
no alto da escada, observando o que se passava. Um casal
de camponeses estava diante de Klauss. Aos gritos a mulher tentava conta o que o ocorrera. O professor foi até lá.
Klauss pediu que afastassem a mulher e a levassem
para o hospital. Um calmante era a única coisa sensata para
ela naquele momento.
Virou-se, em seguida, para o estalajadeiro e pediu um
copo de vinho. Estendeu-o ao camponês pálido, expressão
neutra, olhos fixos além das pessoas, demonstrando seu estado de choque.
— Muito bem, Vadji. Conte-me o que houve...
— Ela está embaixo, oficial. Lá embaixo...
— Quem está lá embaixo?
— Ela era tão meiga... Quando se cassasse pensava em
dar a ela e ao marido as terras do outro lado da encosta. Há
muitas árvores lá, podiam construir uma casa e...
— Vadji — insistiu Klauss, fazendo-o beber o resto
do copo. — Vamos com calma, homem. Está falando de
sua filha?
— Niita! Preciso tirá-la de lá... Está morta! Como pôde acontecer?
— Oficial, esse homem não está em condições de... —
ia dizendo o professor, mas Klauss o fez calar-se com um
gesto.
Pensou por instantes, depois segurou Vadji pelos ombros e balançou-o. O homem arregalou os olhos, como se
despertasse de um transe.
— O que houve com Niita? — insistiu Klauss.
— Ela rolou a encosta... Está lá embaixo...
Por momentos Klauss procurou se lembrar da localização da fazenda de Vadji. Havia, realmente, uma encosta
perigosa e escarpada.
— Vamos até lá. Vou apanhar o jipe, é o meio mais
rápido — disse.
— Posso ir junto? — pediu o professor, movido por
um estranho pressentimento.
Klauss olhou os rostos impassíveis dos outros homens. A noite ia alta. À neblina tornava tudo tétrico. Já ha-
viam se recusado a participar das equipes que saíram espalhando armadilhas. Nenhum o acompanharia.
— Está bem — concordou Klauss.
Algum tempo depois, ele, o professor e o infeliz camponês partiram na direção da fazenda. Klauss precisou guiar com cuidado. Havia barro nas estradas ainda e a neblina
tornava mais difícil a viagem.
Num dos pontos do caminho, os olhos do professor se
alongaram, pousando sobre a silhueta macabra daquele castelo. Um arrepio instintivo percorreu sua espinha, fazendoo lembrar-se das palavras daquele velho.
As cenas daquela noite fatídica ressurgiram em sua
mente. Estava ali, diante dele, aquele ser infernal, mescla
de homem e demônio, besta enfurecida, fera enlouquecida
pelo cheiro de sangue.
Benzeu-se, inconscientemente. Ao seu lado, Klauss
percebeu o gesto olhando-o entre surpreso e enraivecido.
— Por que fez isso? — indagou.
— Aquele maldito castelo...
— Jamais me convencerá, professor.
— Acho que está convencido, Klauss.
Apenas não pode admitir. Eu vi tudo aquilo. Eu tenho
perguntas para as quais você não tem respostas. Nada é tão
simples. Há alguma coisa lá. Já ouviu falar no nome de
Drácula?
Klauss fuzilou-o com seu olhar mais glacial, depois se
concentrou na estrada a sua frente. Seu silêncio fazia o professor assegurar-se de que o oficial sabia e temia, assim
como ele.
Aproximavam-se da fazenda.
CAPÍTULO 3
Era madrugada, quando o jipe retornou da fazenda.
Klauss e o professor estavam exaustos. Havia sido
trabalhoso descer a escarpa e resgatar o corpo da jovem.
— Que transtorno, Deus meu! — murmurou Klauss,
enquanto manobrava o veículo na direção do posto de gasolina. — É só o tempo de reabastecer, professor.
Hilgenstiller endireitou o corpo dolorido, pensando no
desespero de Vadji ao ver sua filha naquele estado. O corpo
lanhara-se durante a queda, suas carnes se dilaceraram nas
pedras pontiagudas e ela acabara sobre um espinheiro, o
que tornou tudo mais horrível.
Farpas haviam se cravado em seu corpo jovem. O professor a examinara. Ao se lembrar de alguns detalhes do
exame, um arrepio percorria seu corpo.
Nada dissera a Klauss. Por certo o oficial o julgaria
um louco, mas havia duas marcas no pescoço da garota,
semelhantes às que vira no pescoço de Larah. Além disso, o
que horrorizava acima de tudo, era aquela farpa que se cravara sobre o coração da jovem.
Não conseguira entender aquilo. O galho não se quebrara, se fosse o caso. A extremidade visível da madeira
dava a entender que alguém batera sobre ele, possivelmente
com uma pedra, fazendo-a penetrar na carne da jovem.
Klauss parou o veículo diante da bomba de gasolina e
pressionou o botão da buzina. No momento seguinte, um
velhote deixou uma porta e caminhou ao encontro deles.
— Você quer gasolina, Klauss? — indagou.
— Sim.
— Teve sorte, meu estoque está no fim. Estou esperando o caminhão-tanque, mas as chuvas andaram derrubando algumas barreiras ao longo da rodovia principal...
— Está bem, velho. Encha o tanque, se for possível —
ordenou o oficial, voltando-se em seguida para o professor.
— É lamentável, professor. Vadji vai se sentir culpado
por não ter reforçado aquelas cercas antes...
— É essa a sua teoria a respeito do que aconteceu?
— Por que, professor? Há alguma outra? — retrucou o
policial, com certa ironia. — Tudo é muito lógico, as evidencias estão lá. Ela escorregou, quando passava naquele
ponto perigoso. Tentou se apoiar à cerca, essa cedeu e a garota despencou.
O professor guardou suas dúvidas para si mesmo. Estava cansado demais para discutir com Klauss. Já percebera
que o oficial era um homem prático e direito.
Em outros tempos, Hilgenstiller estava certo de que
concordaria com ele. Naquele momento, porém, julgava e-
xistir muito mais mistério em cada mínima coisa que jamais
pudera imaginar.
Aquelas marcas no pescoço o perseguiam. Poderia ser
uma fixação, uma projeção do que vira acontecer à sua filha. Aquela estaca sobre o coração também o intrigava. Decidira retornar ao local no dia seguinte e observar com atenção. Não sabia o que procurar, mas precisava retornar lá.
O veículo estava na estalagem, professor. Tenho que
tomar algumas providências sobre a morte da garota. Depois, acho que dormirei um dia inteiro...
O professor se sentia da mesma forma. Quando chegou à estalagem foi direto para a cama. Já tivera muita excitação por um dia.
Enquanto isso, Klauss tomou as providencias necessárias, passou pelo hospital para ver o estado da mãe da garota, depois foi para a cadeia pública.
O carcereiro dormia, apoiado à escrivaninha. Klauss
procurou não fazer barulho. Só ia guardar sua arma e as
chaves do veículo.
Olhou a porta que conduzia às celas. Um pressentimento o assaltou, não soube explicar, mas aquele silêncio
parecia segredar qualquer coisa.
Abriu-a e entrou lentamente. Pensou em Baja, o jovem
que era acusado do mais trágico acontecimento que havia
abalado a cidade nos últimos tempos.
Foi direto à cela dele. Parou diante da grade, olhando
o catre. Lentamente levantou os olhos até a janela gradeada. Ali, numa posição grotesca, a cabeça quase na horizontal em relação ao corpo estava Baja.
Enforcara-se. No chão, o cobertor rasgado. O rapaz tirara dali seu instrumento de morte. Klauss apoiou-se à grade e suspirou. Era demais por uma noite.
Voltou a olhar o cadáver. A língua pendia da boca aberta. Os olhos esbugalhados pareciam fitar seu próprio
destino. A coloração azulada do rosto provocou náuseas. O
policial virou o rosto, fitando a parede descorada a seu lado.
— Foi melhor assim — murmurou. — Deus tenha piedade de sua alma atormentada——
A neblina tardia dava um aspecto assustador às ruas
de Kizna. Pessoas se agrupavam diante das casas de comércio, comentando os últimos acontecimentos.
Estavam ocorrendo muitas mortes na cidade. Além
disso, havia aquele lobo fantástico, capaz de atirar um cão
pastor ao alto de uma plataforma de celeiro.
Olhos e atenções começaram sorrateiramente a se voltar na direção do castelo de Drácula. As indagações sem
resposta começavam a se acumular nos espíritos dos moradores. A alegria das chuvas via-se diminuída pela apreensão.
Todos sabiam da maldição. Todos sabiam do destino
funesto que pairava sobre a cidade, até o fim dos tempos.
Era uma realidade incutida em cada coração, mas uma verdade de que todos fugiam.
Era preciso não acreditar naquilo. Era preciso não se
deixar levar pelo medo, mas a superstição falava mais alto
e a existência de uma força maligna novamente a solta no
vale provocava estremecimentos.
As conversas eram veladas, subentendidas. A uma
pergunta sobre todas aquelas desgraças bastava um olhar na
direção do castelo para que tudo fosse explicado.
Alguém estivera no hospital e vira a filha do professor. Klauss guardara esse segredo, assim como obrigara o
professor a guardá-lo.
Após os acontecimentos da noite anterior, porém, aquela era uma notícia que não podia permanecer desconhecida. Um detalhe, uma palavra e o medo espalhou-se em
proporções incríveis.
Quando o professor passou, a caminho do hospital, olhares sorrateiros e assustados o seguiram.
O professor estava esperançoso. A recuperação da filha era sua maior alegria, após tanta tragédia. Além disso,
ela era a única a poder confirmar tudo o que dissera a
Klauss.
Mal podia esperar pelo momento de vê-la narrando ao
oficial tudo o que acontecera. Klauss teria de admitir que
havia qualquer coisa naquele castelo. Alguma força maléfica e terrível, destruidora como a pior das pestes, assustadora como a maior dos demônios.
E onde estaria aquele símbolo do mal? Poderia aquela
cruz reduzi-lo a cinzas? Era sua esperança.
No hospital ele rumou direto ao quarto da filha. Surpreendeu-se ao encontrar ali um pequeno ajuntamento. Aproximou-se com o coração aos saltos. Alguns médicos debruçavam-se sobre o ferimento no pescoço de Larah.
— Algo errado com minha filha? — indagou.
O médico que a assistia se voltou para olhá-lo. Havia
um sorriso incrédulo em seus lábios.
— Estou surpreso, professor. Surpreso e feliz. Sua filha nos surpreendeu a todos. Veja isso — disse ele, apontando para o pescoço da garota.
Hilgenstiller debruçou-se, tão espantado quanto os outros. Vira a ferida na noite anterior, o que já fora uma surpresa. O que via agora, no entanto, era um verdadeiro milagre. O tecido se recompusera de modo incrível.
Havia apenas duas pequenas manchas no local da
mordida. A cicatrização parecera se operar num ritmo alucinado.
Encarou o médico, como que indagando a respeito daquilo. O médico retribuiu com uma expressão de quem não
sabia a resposta.
— E como está ela?
— Ótima. Dorme tranquilamente, o pulso está normal, a febre passou e até a vejo mais corada, mais viva que
ontem.
O professor voltou a olhar a jovem no leito. As olheiras profundas que marcavam os olhos da filha haviam desaparecido. A palidez cadavérica cedia lugar ao rosado vivo das pessoas sadias. Todo o seu físico voltava ao normal.
— Por que ela não acorda?
— Porque seu corpo precisa de repouso. Ela está bem,
professor. Está inexplicavelmente bem. Vamos colher material para exames. Nenhum de nós encontra uma explicação plausível para o que estamos presenciando.
Pouco depois, quando as pessoas saíram do quarto, o
professor puxou uma cadeira para perto do leito e se sentou, olhando a filha.
O que via era sobrenatural e irreal como o que presenciara naquele maldito castelo. Sua filha se recuperava, isso
era importante, mas a que força devia ela aquela recuperação milagrosa?
Sua religiosidade o fazia acreditar que Deus ouvira
suas preces desesperadas, mas uma certeza que gradativamente se apossava dele o empurrava numa outra direção.
Hilgenstiller não queria aquela hipótese. Era incrível
demais, era cruel demais. Lembrou-se do livro. Precisava
continuar a restaurá-lo. Talvez conseguisse ali uma explicação.
Algum tempo depois, quando deixou o hospital, pensou em retornar imediatamente ao trabalho de restauração.
Lembrou-se do que lera na noite anterior e resolveu passar
pela biblioteca e procurar um mapa antigo da cidade.
Quando chegou lá, encontrou-se com Klauss, o que o
surpreendeu.
— Não pensei que fosse um homem de cultura, oficial
— ironizou o professor.
— Trabalho, apenas trabalho — resmungou Klauss,
observando uma prateleira.
Só então o professor observou aquilo. Havia falhas
nas prateleiras e o assunto parecia interessar Klauss.
— O que houve por aqui? — indagou.
— Acho que o demônio anda a solta pelo vale, professor — respondeu Klauss, retraindo-se em seguida como se
estivesse arrependido da infeliz observação.
— Por que diz isso?
— Por que alguém roubaria livros?
— Livros? Que tipo de livros?
— Tenho aqui uma relação... Está incompleta, mas...
— disse Klauss, enquanto desdobrava um papel e passavao ao professor.
— Interessante... Seja quem for, está ansioso para saber o que se passa no mundo atual. Enciclopédias, informativos, teorias novas... Boa literatura estrangeira...
— Diabos! A quem isso iria interessar? E por que
roubar? Poderiam simplesmente vir aqui e consultar os livros que quisesse.
— A menos que isso não fosse permitido — observou
o professor, compenetrado em sua própria afirmação.
O que pensava não fazia sentido, mas o que, naquela
cidade, nos últimos tempos, fazia sentido?
Klaus desviou seus olhos para o cientista, olhando-o
quase com raiva.
— O que quis dizer com isso, professor?
— Que as bibliotecas não abrem à noite, apenas isso
— afirmou o professor, deixando o para ir falar com a bibliotecária.
Indagou-lhe a respeito de um velho mapa da cidade.
— Acho que poderá encontrar qualquer coisa assim
nos livros que levou, professor — informou ela.
— Ou em alguns que deixei aqui...
— Se estiver disposto a procurar...
— Acho que começarei pelos que tenho comigo. Tenho um bom-dia, senhora — despediu-se ele.
Ao sair, olhou o rosto intrigado e confuso de Klauss.
Talvez ele, naquele momento, pensasse algo semelhante
àquela teoria absurda que se instalava no espírito do professor.
Por que alguém desejaria livros sobre a atualidade? E
porque preferia roubá-los a vir consultá-los numa biblioteca?
De alguma forma, sentia que encontraria a resposta no
livro que restaurava.
Atravessou a rua, rumando para a estalagem. No caminho cruzou com o velho que lhe falara na noite anterior.
Por momentos trocaram um olhar.
— Espere — pediu Hilgenstiller. — O que quis dizer
com tudo aquilo, ontem à noite?
— Que a verdade não está diante dos olhos, professor.
A lua vem e vai, ela muda e influi, isso é velho, isso é conhecido...
— Mas que relação tem isso com minha filha?
— Pense, professor — disse o velho, afastando-se.
***
A noite pesada voltara a cair sobre o vale. As sombras
se alongavam à medida que o sol se punha. A neblina cresceu sobre o rio e, lentamente, começou a se espalhar como
uma massa líquida e perturbadora.
No alpendre de sua casa, Mikael se deixava envolver
por pressentimentos e medos. Ao longe, a neblina cercava o
castelo maldito, mas o pastor evitava olhar naquela direção.
Pensava nos acontecimentos da noite anterior, no que
acontecera ao chão e às ovelhas. Estava aturdido. Talvez tivesse sido um lobo, mas teria de ser o maior de todos os lobos para jogar um cão como Nik ao alto da plataforma.
Ouviu barulho na cozinha. A esposa preparava o jantar. Aquela fazenda era a mais próxima do castelo e isso,
agora, assustava Mikael.
— Mikael, vou até o depósito apanhar lenha — disselhe a esposa.
— O que está preparando para o jantar?
— Lebre com batatas... Pelo menos para alguma coisa
aquelas armadilhas serviram. Temos carne para uma semana...
— Não se esqueça de pôr muito alho, sabe que eu gosto...
— Já preparei o tempero... Está como gosta — resmungou ela, saindo da casa pela porta dos fundos.
Deixara uma lanterna na janela, clareando o trecho
que separava do deposito a lenha. Enquanto caminhava, levou as mãos ao rosto e aspirou o cheiro forte de alho. Fez
uma careta e esfregou-as, em seguida, no avental.
— Mikael gosta de alho, mas Mikael não vai descascá-lo e picá-lo... Esse cheiro... —resmungou, abrindo a porta e aguardando alguns instantes até que seus olhos se habituassem à escuridão.
Entrou com cuidado. Mikael tinha o péssimo costume
de deixar suas ferramentas espalhadas. Ela avançou até o
canto oposto da cabana, onde estava a lenha.
Abaixou-se e apanhou algumas lenhas sobre os joelhos. Abraçou a pilha em seguida, erguendo-se. Repentinamente, viu a luz diminuir. Voltou-se. A porta se fechava,
após a passagem de alguém.
— Mikael? — indagou ela.
Nenhuma resposta. Seus ouvidos se aguçaram. Ela
ouviu nitidamente aquela respiração pesada aproximar-se
dela. O pavor dominou-a, pensou em gritar e correr, mas
estava grudada ao chão por uma força acima de sua vontade.
Algo esvoaçou diante da fresta da porta mal fechada.
Aquela respiração pesada avançou, mas não ouviu ruídos
de passos.
Qualquer coisa fria pousou em seus ombros, puxandoa lentamente. Ela soltou a lenha que trazia nos braços e levou a mão ao rosto, tentando arrancar aquele grito que a sufocava.
Sentiu um hálito nauseabundo varrer seu rosto e, depois, se concentrar em seu pescoço. Esfregou as mãos pelas
faces. Qualquer coisa aconteceu, então, acima daquele cheiro forte de alho que feria suas narinas.
Um grunhido raivoso, animalesco, depois ela foi empurrada violentamente contra a parede, caindo sem um gemido sobre as lascas de lenha empilhadas.
CAPÍTULO 4
O professor Hilgenstiller levantou a cabeça ao ouvir as
batidas na porta. Só então reparou que já era noite e que
passara todo o dia debruçado sobre aquele livro.
Levantou-se, dolorido, e foi abrir a porta. Era uma das
enfermeiras. Ele se lembrou da filha, então.
— Larah voltou a si, professor, e deseja vê-lo...
— Minha filha? Eu... — balbuciou ele, esfregando as
mãos nos olhos, tentando despertar daquele torpor que agora dominava seu corpo, ocupando o lugar da febrilidade
que o fizera permanecer sobre o velho texto.
— Sente-se bem? — indagou a enfermeira, solicita.
— Sim... Que horas são?
— Passa das nove...
— Nove horas... Sim, vamos. O médico a examinou?
— Ela está bem, otimamente bem.
O homem deixou a estalagem e caminhou apressadamente rumo ao hospital. A neblina voltara a cair sobre a cidade. Tudo o que lera naquelas páginas provocava um turbilhão nos seus pensamentos.
Ousou olhar na direção do castelo, parcialmente oculto pela neblina, mas cujo perfil sinistro se destacava como
uma ameaça constante.
Muita coisa se explicava agora, se aqueles absurdos
que lera podiam ser levados em conta. Não localizara o
mapa antigo da cidade, mas obtivera mais algumas boas referencias ao suposto local do tesouro.
Entrara, agora, num novo capitulo. O trabalho já não
tinha a perfeição inicial. Em sua pressa, o professor desejava apenas o suficiente para ler o que vinha pela frente. O
conteúdo daquele livro o fascinava e prendia, provocando,
ao mesmo tempo, certa apreensão.
Chegou ao hospital, no exato momento que algumas
enfermeiras ajudavam um camponês a retirar uma mulher
de sua carroça.
O professor julgou reconhecê-lo. Era o mesmo que vira falando com Klauss na noite anterior. Olhou a mulher,
pálida e inerte, um hematoma arroxeado em sua testa.
— O que houve? — indagou o professor a Mikael.
— Não sei... Ela caiu quando apanhava lenha no depósito. Por certo ela tropeçou...
Hilgenstiller ajudou as enfermeiras a levarem a mulher
para dentro. Chamou-lhe a atenção aquele cheiro forte de
alho. Pobre mulher!
Rumou, em seguida, para o quarto da filha. Ao empurrar a porta, mal pôde acreditar em seus olhos. Ali estava
Larah, bela e radiante, sorrindo feliz para ele.
— Papai! — murmurou ela, abrindo os braços.
Hilgenstiller jogou-se de encontro à filha, apertando-a
contra si e beijando carinhosamente seus cabelos.
— Graças a Deus esse pesadelo terminou! — murmurou ele, afastando-se para olhá-la melhor.
A ferida desaparecera completamente e apenas duas
manchas indicavam o local da mordida. Não via uma explicação lógica para aquilo. Era, simplesmente, um milagre.
— Papai, o que estou fazendo aqui? — indagou ela,
sinceramente surpresa.
— Como assim, filha? — retrucou ele, sem entender a
pergunta.
— Por que fui hospitalizada? Eu nem me lembro de
ter adoecido.
Hilgenstiller estremeceu, segurando-a pelos ombros e
olhando-a nos olhos.
— Não se lembra de nada?
— A última coisa de que me lembro era estar em meu
quarto... Não em seu quarto na estalagem. Sim, isso mesmo. Eu estava lá, quando qualquer coisa aconteceu...
— Sim, mas o que aconteceu?
A garota fez um esforço, mas realmente não podia se
lembrar de nada posterior àquele momento.
O professor suspirou, baixando a cabeça. Larah era
sua última esperança de convencer Klauss do que acontecera. Sem ela, jamais se faria ouvido.
Larah estendeu uma das mãos e acariciou os cabelos
do pai. Dois médicos entraram, cumprimentando a ambos.
Larah seria examinada mais uma vez. Sua recuperação deixara-os completamente aturdidos.
Hilgenstiller deixou-os a sós e foi para o corredor, aguardar. Viu o camponês, na sala de espera, torcendo nervosamente as mãos.
Klauss chegou naquele momento, caminhou direto para Mikael. O professor se aproximou para ouvi-los.
Mikael repetiu sua teoria a respeito do acidente.
Klauss consolou-o depois se voltou para o professor.
— E sua filha?
— Incrivelmente bem. Está sendo examinada agora.
— Fico feliz com isso, professor — afirmou Klauss,
olhando o outro com certa apreensão. — Acha que ela tem
alguma coisa a me dizer? — acrescentou, com reserva.
— Ela não se lembra de nada do que aconteceu...
— Não? Talvez seja melhor assim, professor — disse,
após uma pausa.
— Isso talvez apenas adie a verdade Klauss.
— Que verdade, professor? Que verdade? — insistiu o
policial, olhando-o nos olhos.
Hilgenstiller teve a nítida sensação de ver medo no olhar do policial. Um medo enraizado como aquele que vivia
nos corações de todos os moradores do vale.
— Eu tencionava voltar à fazenda onde morreu a garota ontem à noite, mas...
— Estive lá, foi um acidente. A garota esteve no rio,
encheu o cântaro e retornou para casa. Escorregou, a cerca
cedeu e ela despencou... Foi trágico.
— É uma boa reconstituição, oficial. Espero que não
seja apenas teoria.
— Deve imaginar que nós, polícias do interior, não
sabemos nosso trabalho, não?
— Longe de mim tal pensamento — descartou o professor com fina ironia.
— Sei o que quer dizer. A garota esteve no rio, encheu
o cântaro. Encontrei, no local, o suporte que, normalmente,
as mulheres usam a cabeça para equilibrar...
— Onde encontrou o suporte?
— Junto ao rio, por quê?
— Não lhe parece estranho que ela o tenha levado e
não o tenha usado? Considerando que levava o cântaro
cheio, por que não usou o suporte?
— Como vou saber? Talvez ela o tenha perdido na escuridão, sei lá — gaguejou o policial, diante da pergunta
sutil.
Hilgenstiller afastou-se na direção da janela. Olhou
para fora. Os contornos do castelo maldito ainda eram nítidos entre a neblina. Klauss se aproximou e, por instantes,
olhou naquela mesma direção.
— Em que está pensando, Hilgenstiller?
— Você jamais acreditaria... Ou admitiria, Klauss, apesar de eu saber que você sabe e que tem medo.
A expressão do policial endureceu-se. Ele fuzilou o
professor com um olhar glacial e se preparava para dizer
qualquer coisa, quando um homem entrou pelo corredor e
lhe fez um sinal.
Klauss foi até ele.
— O que se passa, Nivzoz?
— O lobo, Klauss, o lobo atacou uma de minhas ovelhas, dilacerou sua garganta e deixou-a...
— Quando foi isso.
— Há menos de uma hora. Meu cão ladrou, alertandome. Eu me armei e fui verificar. Encontrei a ovelha. O lobo
cortou-lhe a garganta em alguma parte do curral depois deve tê-la arrastado. Ela sangrou até morrer em algum ponto
dali. O que me revolta, Klauss, foi que ele fez isso por maldade, pura maldade. Eu lhe digo que esse lobo é um ser infernal. Mata apenas pelo prazer de matar...
Klauss se voltou instintivamente, olhando na direção
do professor. Movido por um pressentimento, este também
se voltou. Mais do que nunca, certificou-se de que havia
medo e dúvida no olhar do policial.
***
Torg se esgueirou pela sala em ruínas e foi direto à
porta do calabouço. Coxeou pelos degraus, depois avançou
pelo corredor iluminado por tochas.
Parou diante da última sala, com um suspiro de alivio.
Tivera muito trabalho durante o dia, montando ali uma espécie biblioteca. Na escrivaninha escurecida pela fumaça e
pelo tempo estavam os livros que roubara na noite anterior.
Drácula levantou o rosto e encarou seu servo.
— Onde esteve, Torg? Tenho uma missão para você.
— Eu estava descansando, mestre — explicou o corcunda, avançando até se postar diante da escrivaninha.
Havia alguns livros no chão. Torg se debruçou sobre
os títulos. Estava certo de que escolhera livros úteis, mas
trouxera, por engano, algumas obras em alemão, inglês,
francês e outras línguas.
— Devo destruir esses livros? — indagou.
— Não, guarde-os. Vou lê-los mais tarde.
— Mas são livros estrangeiros...
Drácula esboçou um sorriso, encarando-o.
— Posso ter me perdido no tempo, Torg, mas meus
conhecimentos continuam intactos. Venho de uma família
nobre, estudei na França, na Inglaterra, na Alemanha. Visitei mais países do que pode nomear. Conheço tantas línguas como a própria Torre de Babel.
Torg evitou ao máximo olhá-lo nos olhos, mas havia
como que uma atração neles. Ousou encará-lo. Viu aqueles
olhos avermelhados brilharem. Drácula pareceu entender a
curiosidade do criado e sorriu, mostrando os dentes brancos, onde as presas se destacavam um pouco maiores que o
normal.
— O mestre saiu esta noite?
— Sim, há uma fazenda aqui perto. Fui à procura de
ovelhas, mas desisti. Encontrei outro sítio favorável...
— Por que ovelhas, mestre?
— Acordo de um sono de cem anos, Torg. Preciso de
forças, um tipo de força que só obtendo no sangue das ovelhas. Quando eu me recuperar, meu apetite será outro —
murmurou o vampiro, lembrando-se da missão que tinha a
delegar.
Ficou em silêncio, porém, lembrando-se daquela garota. Era jovem, muito jovem e bonita. Seu sangue não era
necessário, mas houve um desejo maior em seu corpo, ao
vê-la. Um desejo de volúpia incrustado em sua carcaça recém-regenerada. O contato de suas mão com aquela pele
macia, o cheiro perfumado daqueles cabelos e a vitalidade
jovem e provocante da garota haviam suprido um tipo de
necessidade que Torg jamais entenderia.
— Ontem à noite ataquei uma garota...
— Sim, eu sei...
— Cravei-lhe uma estaca no coração, mas é possível
que a tenham removido. Quero que se certifique disso. Vá
ao cemitério. Não creio que dificuldade para localizar o
túmulo recém-fechado.
— Está bem, mestre... — acedeu Torg, inclinando-se
para retirar.
— Torg!
— Sim, mestre!
— Meu ataúde é confortável. A quem pertencia?
— A um nazista, mestre.
— Nazista? Estou lendo alguma coisa a respeito... Este século tem sido conturbado... Duas grandes guerras... O
mundo não mudou, afinal — sorriu o vampiro, de um modo
que Torg não entendeu. — Vá faça o que lhe disse.
***
Hilgenstiller levantou-se tropegamente de sua cadeira
e caminhou abobalhado pelo quarto. Não podia dar crédito
ao que lera. Não tinha sentido, era um absurdo. Coisas como aquela eram lendas, eram superstições.
Olhou a janela e a neblina provocou-lhe um calafrio
instintivo. Era difícil definir agora em que devia ou não acreditar. Passara por uma experiência incrível e obtinha,
agora, em um livro, respostas para perguntas que, até então,
haviam permanecido sem respostas.
Pensou na filha, no resultado dos exames que os médicos comentaram. Havia qualquer coisa no sangue de Larah, um poderoso agente regenerador que desconheciam. O
fato era que Larah estava curada.
Essa cura, porém, encontrava explicação nas palavras
daquele velho e eram corroboradas pelo livro. A lua cheia
provocava estranhos efeitos em certas pessoas, acometidas,
na cidade, há tempos atrás, de um mal desconhecido. A
mudança para a minguante trazia-lhes alivio. A luz nova as
encontrava em pleno vigor. À medida que evoluía pela
crescente até a cheia, todos os sintomas retornavam.
Falavam, ainda de que essas pessoas eram, principalmente, constituídas da criadagem dos Drácula. Parecia haver qualquer coisa no castelo que, com a mudança da lua,
influía física e mentalmente nas pessoas que nele circulavam.
Uma dedução o forçava crer no envolvimento de Larah naquele tipo de ocorrência. Mas ele estivera também no
castelo e nada sofrera. A filha, porém, fora mordida por aquele monstro. Não iria isso, de alguma forma, influir?
Tentou se lembrar de seus conhecimentos sobre vampirismo, mas tudo se misturava em sua mente, confundindo-o. Precisava ler a respeito, precisava elucidar aquele terrível e assustador enigma.
Mais do que isso, no entanto, sentiu necessidade de
mitigar aquele febre que assolava seu corpo. A excitação e
o trabalho o haviam posto num estado perigoso de tensão.
Pensou numa boa caneca de rum ou cerveja.
Desceu para o salão. Ao pé da escada ainda, viu aquele velho deixar a estalagem. Movido por um desejo acima
de suas forças, Hilgenstiller o seguiu, alcançando-o logo
diante.
— Espere... Por favor, espere! — pediu.
O velho levantou para ele os olhos opacos.
— Acho que nós dois sabemos o que está se passando.
Diga-me sobre o vampiro, pelo amor de Deus! — suplicou.
O outro se viu incomodado, olhando ao seu redor. Depois fez um gesto ao professor, pedindo-lhe que o seguisse.
Avançaram por ruas sem calçamento até uma velha casa.
Quando empurrou a porta, deixando o professor passar, o velho persignou-se. Hilgenstiller sentiu o cheiro forte
do alho. Havia uma réstia pendurada atrás da porta.
Imediatamente se lembrou da mulher que ajudara a introduzir no hospital. Ela cheirava alho. Uma dúvida instalou-se em seu espírito.
O velho o convidou a sentar-se. Hilgenstiller obedeceu. Olhou ao seu redor. Havia cruzes pichadas em todas as
janelas e portas. Um clima de mistério e medo parecia habitar aquela casa.
— É um homem de ciência, professor? — indagou o
velho, despindo o surrado casaco.
Uma enorme cruz de prata pendia sobre seu peito, presa ao pescoço por uma grossa corrente do mesmo metal.
— Não, sou um pai, preocupado com o que houve
com sua filha. Além disso, sou um homem assustado, temeroso e realista. Sei que há uma ameaça sobre nós...
— É o castelo... Um ser demoníaco habita aqueles
quartos vazios, vagando como um fantasma pelas ruínas...
— Também tenho essa sensação, mas há algo mais
importante para mim agora. O que quis dizer quando se referiu à lua minguante?
— Sua filha, professor. Ela está contaminada, é o que
sei, é o que vi. As marcas no pescoço são um sinal da maldição.
— Que maldição?
— A maldição do vampiro.
— Como ela se manifesta?
— Ciclicamente. As fases da lua produzirão mudanças
em sua filha, mais e mais, até torná-la um nosferato...
— Nosferato?
— Vampiro.
— E a cura?
— Não existe, professor. Não existe.
CAPÍTULO 5
Uma volúpia interior acentuava um brilho disforme no
olhar do corcunda, enquanto se esgueirava pelos arredores
da cidade, protegido pela densa neblina.
Todo seu corpo se via consumido por uma febre maligna, enquanto pensava em sua missão. Mesmo que Drácula não o tivesse ordenado. Torg sabia o que tinha de fazer.
Era sua obrigação, fora assim há muitos e muitos anos
atrás. Impedir que as vítimas do mestre se tornassem vampiros era o seu estigma. Não se lembrava mais da primeira
vez que tivera de fazer isso.
Habituara-se e, mesmo após aqueles cem anos, quando
seu corpo antes belo e ereto ganhou aquela aparência repugnante, como que encolhendo e deformando-se com o
passar dos tempos, Torg sabia o gosto daquela missão.
Precisara daquilo, precisara desesperadamente, mas tivera de esperar. Drácula lhe prometera um novo corpo,
Torg esperaria. Confiava nele, sempre confiara. Não seria
decepcionado.
Aproximava-se do cemitério. Redobrou sua cautela,
apesar de a neblina expulsar daquelas proximidades qualquer alma viva.
Transpôs o portão e avançou por entre as sepulturas.
Era preciso encontrar uma recém-fechada, onde estaria o
corpo fresco e apetitoso de uma jovem. Seus instintos entraram em abolição. Seus sentidos antegozavam um prazer
secreto jamais entendido por qualquer ser humano.
A volúpia acentuou-se. Torg precisava daquilo para
sobreviver. Cadáveres eram seu alimento. Deles retirava a
vida para vencer os anos.
Pena que Drácula tivesse de adormecer, quase destruído, há cem anos. Estivesse ele vivo, suas vítimas teriam alimentado Torg. Havia uma força estranha nas vítimas do
vampiro. Elas mantinham Torg sempre jovem, sempre belo.
Outros cadáveres apenas conservaram sua vida, mas haviam destruído definitivamente seu corpo.
Estacou, afinal diante do túmulo, olhando a cruz recém-pintada, onde se lia um nome. Inclinou-se, quase roçando o nariz na madeira.
— Niita! — rouquejou ele, num suspiro excitado.
Ajoelhou-se. Suas mãos acariciaram a terra fofa e amontoada. Arrepios percorreram sua espinha, num prenúncio do prazer. Levantou-se, olhando ao seu redor. Havia
uma construção num extremo do cemitério. Lá deveria encontrar as ferramentas necessárias.
Caminhou naquela direção, o vulto pisoteando sepulturas, esbarrando em cruzes, dominando por uma pressa alucinada e animalesca.
Seus olhos faiscavam, vencendo a neblina. Sua respiração apressava-se, suas mãos se abriam e fechavam, ensaiando carícias violentas.
Seus lábios pareciam ressequidos, famintos, sedentos,
como se descobrissem, naquele momento, o imenso deserto
onde sobrevivera ao longo daqueles anos todos.
Uma secreta esperança o animava. Poderia aquele corpo jovem e terno devolver-lhe a antiga vitalidade e beleza?
Apanhou uma enorme pá e retornou sobre suas pegadas, agora mais apressado que antes. O metal começou, enfim, a penetrar a terra macia, retirando mais e mais, alargando o buraco, afundando-o.
Torg suava, apesar da neblina fria. Sua respiração atingia um nível de superexcitação. Seus olhos destilavam
sangue e de sua boca escorria uma gosma sanguinolenta.
O som oco da pá batendo contra a madeira do caixão
provocou uma radical reação em seu corpo. Caiu de joelhos, jogando a ferramenta para o lado e, com as próprias
mãos, removeu a terra restante.
Sua força se multiplicara. Foi-lhe fácil alçar o ataúde e
arrombá-lo com a pá. A tampa foi afastada. Torg olhou demoradamente aquele rosto bonito e trágico.
Seu corpo estremeceu, como que movido por um espasmo. Seus olhos reviraram-se, sua boca se abriu descomunal, seus dentes úmidos avançaram.
Ele se debruçou sobre o ataúde, procurando os botões
da delicada blusa de rendas que a garota usava. Soltou-os,
afastando os tecidos. Contemplou aqueles seios rijos e belos, assim como a ferida produzida pela estaca. Fora removida. Depois colocaria outra.
Agora precisava satisfazer-se, precisava manter-se,
precisava sobreviver. Inclinou-se mais e mais, até que sua
boca repugnante cobrisse um dos seios da garota.
Torg antegozou o prazer do momento máximo, alisando aquela pele fria com seus dentes. Depois, num espasmo
prolongado, suas fauces se fecharam violentamente e ele
mascou, com indizível satisfação, aquela carne tenra, como
o mais vil dos carniceiros.
***
Naquela manhã, o professor acordou com uma estranha questão em sua mente. A cada momento envolvia-se
mais com o fantástico daquela história. A conversa com o
velho, na noite anterior, não o esclarecera em nada.
Ainda havia muitas respostas pendentes e o velho não
soubera solucionar nenhuma. Apenas se referia à lua e, depois, dissera coisas sem nexo, como que delirando ou extravasando todo o medo que habitava sua alma.
Intrigava o professor, ainda, o fato de o vampiro detestar alho, evitando-o. Assim as velhas casas se protegiam
daquele espírito maligno.
Hilgenstiller não deixara de relacionar o fato ao que
acontecera à esposa daquele camponês. Ela caíra numa cabana, um depósito de lenha, e permanecia muda, sem conseguir explicar o que realmente acontecera.
O cheiro de alho em suas mãos aguçava a suspeita do
cientista. Poderia haver alguma relação. A fazenda ficava
perto do castelo. Lá aparecera pela primeira vez aquele
misterioso lobo, capaz de arremessar um cão pastor ao alto
de uma plataforma de celeiro.
Havia dúvidas, muitas dúvidas, mas, naquela manhã,
sua curiosidade era maior num ponto interessante. Estivera
no cemitério e não se lembrava de haver visto nenhum túmulo com o nome dos Drácula.
Quando saiu da estalagem, naquela manhã, hesito entre se deixar vencer pela curiosidade e ir se certificar ou visitar Larah.
Resolveu passar pelo hospital em primeiro lugar. Caminhou pelas ruas ainda cobertas pela neblina que o sol lograva desfazer aos poucos.
A umidade gotejava dos beirais dos telhados, acumulava-se nas paredes das casas e tornava liso e brilhante o
calçamento das ruas.
Viu Klauss chegar com seu jipe ao escritório e foi até
lá. O oficial passara uma noite mal dormida, pela expressão
fechada do rosto.
— Algum problema, oficial?
— Fui até uma fazenda. O maldito lobo dilacerou a
garganta de algumas ovelhas...
— Algumas?
— Sim, isso é intrigante. Ele não mata pela fome. É
mau, é pura maldade. Arrasta suas vítimas...
— Arrasta?
— Sim, elas nunca estão no local onde ele as atacou...
— E como chegou a essa conclusão?
Klauss dirigiu seu olhar mais glacial ao professor,
percebendo nas palavras dele um acento de ironia. Suspirou, aborrecido.
— Simplesmente porque não encontramos sangue no
local onde as encontramos...
— E encontraram o local onde elas foram mortas?
— Não... Não conseguimos localizar, mas isso não faz
diferença alguma — resmungou o policial, virando as costas para entrar.
Estacou, porém, como se algo interessante houvesse
chamado sua atenção. Voltou-se e olhou além do professor.
Seus olhos brilharam intensamente, como se a vida voltasse
a eles, expulsando todo o seu cansaço e sua irritação.
Intrigado, o professor se voltou. Um sorriso maravilhoso esboçou-se em seus lábios. Linda como sempre fora,
Larah avançava ao seu encontro. O professor abriu os braços e lutou contra as lágrimas que teimavam em rolar.
— Oh, papai, eu queria lhe fazer uma surpresa! — exclamou a garota, lançando-se nos braços dele.
Hilgenstiller apertou com indescritível satisfação o
corpo saudável da filha. Depois a segurou pelos ombros,
olhando-a incrédulo.
Suas faces bonitas estavam coradas.
— Não devia estar hospitalizada ainda?
— Falei com o médico ainda há pouco. Ele não viu
motivo para que eu permanecesse lá. Estou curada... E ainda nem sei que mal me atacou... — sorriu ela, olhando por
sobre os ombros do pai.
O professor se voltou e notou a expressão maravilhada
de Klauss, como se estivesse diante da beleza maior que
seus jamais viram.
— Acho que conhece nosso oficial de polícia... — ia
dizendo.
— Sim, já nos conhecemos — afirmou Larah, olhando
Klauss de um modo que fez o policial estremecer.
— Fico feliz que tenha se recuperado, Srta. Hilgenstiller.
— Larah apenas, por favor — sorriu ela.
— Larah — repetiu ele, como se o pedido dela fosse
uma ordem a ser cumprida imediatamente.
O modo como ele olhava a garota perturbou Hilgenstiller. Olhou discretamente sua filha. Era, realmente, uma
bela garota.
A doença parecia, agora, não havê-la abatido, mas restaurado sua vitalidade, dando-lhe um novo fascínio.
— Ia a algum lugar, papai? — indagou ela.
— Bem... Eu tinha realmente algo a fazer, mas vou
deixar para mais tarde. Acho que temos muito a conversar...
— Não seja por isso, vamos ter muito tempo. Vá, continue o que pretendia. Estou certa que o oficial Klauss não
se importará em me acompanhar até a estalagem...
O professor se voltou para Klauss. Um sorriso embevecido nos lábios dele o convencia de que nada no mundo
daria maior satisfação ao policial.
Constrangido, concordou.
— Se não for ousadia minha, gostaria de lhe oferecer
um café. Ouvi dizer que o desjejum do hospital é péssimo.
— E está totalmente certo — confirmou ela sorrindo
sedutoramente.
O casal se afastou sob o olhar intrigado do professor.
Ficou observando até que os dois entrassem na estalagem.
Depois caminhou lentamente na direção do cemitério.
Caminhou por entre as sepulturas, enquanto o sol, finalmente, vencia a neblina e vinha livrar o local daquele
aspecto fantasmagórico.
Hilgenstiller procurou entre os túmulos e os jazidos,
mas nada havia que pudesse matar sua curiosidade. Ia se retirar, quando percebeu a chegada de um homem, possivelmente o coveiro. Foi até ele, sendo olhado com curiosidade.
— Pode me dar uma informação? — indagou.
— No que puder, senhor.
— Este é o único cemitério?
— Como assim?
— Este é o único cemitério no vale, desde que os primeiros moradores se estabeleceram aqui?
— Oh, não, senhor. Há muitos e muitos anos as pessoas habitam este vale. Houve outro cemitério, estou certo
disso. Meu pai, que também foi coveiro, falou-me dele. Fica em uma das encostas, mas não sei precisar o local...
— Então houve outro... Alguém na cidade saberia o
local certo?
— Penso que na prefeitura... Talvez nos velhos registros, não sei ao certo...
— Já me deu uma boa indicação. Sabe me dizer qual o
túmulo mais velho deste cemitério?
O homem o olhou intrigado, estranhando a pergunta,
mas parecia saber a resposta.
Apontou a direita, onde havia um jazido de família em
mármore negro.
— É aquele, suponho. Pertence à família Wasilek e o
último descendente morreu há uns vinte anos, mais ou menos.
Hilgenstiller agradeceu e caminhou na direção apontada. O austero monumento apresentava sinais da passagem
do tempo. Hilgenstiller só precisava de uma data e isso era
importante para satisfazer sua curiosidade.
Empurrou a grade de ferro e desceu alguns degraus.
Com a chegada do sol, havia luminosidade o bastante para
que observasse as datas inscritas nas gavetas.
— Mil oitocentos e noventa e cinco! — leu, finalmente, na mais antiga inscrições.
Deixou, pensativo, o local. Há mais ou menos oitenta
anos, portanto aquele cemitério fora inaugurado. Isso levava a crer que nenhum dos membros da família Drácula fora
sepultado ali, já que o último deles morrerá havia aproximadamente cem anos, segundo o que já lera naquele livro.
Precisava, então, localizar o antigo cemitério. Talvez
algumas respostas surgissem com isso.
***
Klauss levantou a xícara de café e levou-os aos lábios,
enquanto olhava fixamente para o rosto jovem e bonito da
garota diante de si.
Havia qualquer coisa de fascinante nele. Uma força
estranha que o envolvia e despertava sonhos inquietantes,
desejos arrebatados, reações físicas desconcertantes.
Larah parecia perceber a perturbação que sua presença
provocava, não apenas em Klauss, mas nos outros homens
que estavam na estalagem, naquela manhã.
Todos eles a olhavam de um modo especial, como que
a devorando e despindo-a. Havia desejo em cada olhar.
Uma atração física magnética os atraía para ela.
Sorriu e Klauss sorriu também, como se sua vontade
estivesse submissa à vontade dela.
— É muito gentil, oficial! Eu o via tão sisudo, confesso que estou surpresa...
— Ora, as pessoas que não me conhecem, a fundo têm
essa impressão. Sou um bom sujeito, esteja certa disso.
Larah lançou um olhar pelas paredes antigas do salão,
pelas vigas do teto, pelo balcão encardido e pela prateleira
rústica, onde garrafas empoeiradas atestavam a idade de
bons vinhos.
Era estranho como se sentia bem, depois daquela doença misteriosa. Não se lembrava de nada, mas isso não tinha importância alguma. Importava-lhe o que estava sen-
tindo. Aquele parecia seu ambiente e aqueles homens pareciam sua corte.
Era uma sensação nova, deliciosa, que brincava estranhamente com seus sentidos. Klauss, diante dela, era seu
mais fiel vassalo, disposto a dar sua vida por ela.
Essa ideia provocava um tipo estranho de inquietação
que não a assustava, mas convidava.
— Gosto de tudo isso aqui — murmurou.
— Há muita coisa interessante por aqui... O vale é maravilhoso, oferece muitas belezas... Nenhuma como a que...
— interrompeu-se ele, observando a reação da garota.
Ela sorriu e seu olhar parecia incentivá-lo.
— Continue, por favor! — acrescentou ela.
— Gostaria de circular pelo vale? Eu teria o maior
prazer em acompanha-la...
— Está apenas sendo gentil, oficial. Deve ser um homem ocupado...
— Tenho meus momentos de folga. Se quiser, realmente, eu posso lhe mostrar muita coisa...
— Eu adoraria — afirmou ela, num tom melodioso e
perturbador, como se deixasse escorregar palavra por palavra de seus lábios úmidos.
Klauss suspirou emocionado, definitivamente seduzido pela beleza e pelo fascínio daquela jovem.
— Vai aguardar um convite, meu?
— Com todo prazer — afirmou ela, bela e misteriosa.
CAPÍTULO 6
A saúde da filha devolveu ao professor um pouco da
tranquilidade perdida. Com calma e método, agora, dedicou-se a localizar o antigo cemitério, mas sua existência
parecia haver sido riscada da história da cidade.
Mesmo na prefeitura, os registros mais antigos, segundo lhe informaram, haviam sido destruídos num incêndio, não havendo nenhuma indicação do velho campo santo.
Isso era suspeito e intrigante. Alguém, naquele vale,
deveria algum dia ter passado pelas proximidades do local.
Ele simplesmente não podia ter desaparecido, soterrado pelo tempo, oculto definitivamente aos olhos da população.
Em alguma parte deveria haver indícios de sua existência. Antigos túmulos não se desfaziam em pó após cem
anos.
Valeu-se, então, das informações que colhera no livro
e, com afinco, pôs-se a pesquisar os livros velhos que trazia
da biblioteca.
Parecia-lhe importante localizar o local, por isso deixou de lado o livro dos Drácula para se dedicar tão somente
à nova tarefa.
Os dias passavam serenos e ensolarados e, à noite, a
neblina gradativamente foi se desfazendo, até que céus maravilhosos se exibiam aos olhos contemplativos do professor.
Aproximava-se nova lua cheia, mas em momento algum esse detalhe trouxe algum significado para o cientista,
debruçando sobre os livros.
Larah parecia mais linda a cada novo dia, sem demonstrar qualquer vestígio da tragédia que quase lhe roubara a vida.
Cultivava um amor inesperado e intenso pelo vale.
Quando falava de suas belezas, seus olhos brilhavam intensamente e a empolgação de suas palavras chegava a contagiar o professor.
A lembrança daqueles dias negros transformara-se,
agora, numa vaga recordação, assim como um pesadelo que
a chegada do dia desfaz.
Dentro de si, porém, o professor sabia. O trabalho talvez lhe tirasse todo o tempo, impedindo-o de lembrar. Havia momentos até, que se interrompia para indagar qual o
objetivo do que fazia.
Aí, então, aquela figura monstruosa surgia em sua
mente, assustando-o, impulsionando-o a ir fundo naquele
mistério que, até agora, mostrava-se insolúvel.
Nada novo fora acrescentado e tornava-se difícil elaborar um mapa do vale com as indicações antigas. Ainda
assim, pouco a pouco ia recompondo aquele quebra-cabeça,
pressentindo que em breve chegaria ao término.
Faltavam, talvez, dois dias para a lua cheia. Naquela
noite, Larah vestiu-se com esmero, como vinha fazendo todas as noites, e passou pelo quarto do pai.
— Ainda trabalhando? — indagou ela, indo beija-lo.
Hilgenstiller acariciou o rosto da jovem, enquanto recebia um beijo em sua face. Por momentos um arrepio estranho percorreu seu corpo. Sentiu a pele da garota fria como o gelo. Da mesma forma fora o toque de seus lábios.
— Não está com frio, filha?
— Não, por que pergunta?
— Por nada... Aonde vai hoje?
— Klauss prometeu me levar a uma festa de casamento. É numa fazenda aqui perto. Os noivos dançarão tradicionalmente e os convidados estarão vestidos a caráter. Por
que não vem conosco?
— Estou muito velho para esse tipo de festa, querida.
Vá e se divirta. Diga a Klauss para tomar cuidado com o
lobo...
A garota riu e girou o corpo com uma leveza surpreendente. Estava um tanto pálida. Hilgenstiller preocupouse, apesar de Larah aparentar muita vitalidade.
— Não a vi durante o dia — observou ele.
— Estive em meu quarto — respondeu ela, evasivamente. — Klauss tem me acompanhado em uma verdadeira
maratona pelos locais mais belos da cidade todas as noites,
em seus momentos de folga. Além disso, sinto-me sempre
indisposta durante o dia. A claridade parece me afetar... À
noite, porém, sinto-me bem, muito bem — respondeu ela,
num tom misterioso que o professor não entendeu. — Eu já
vou. Boa-noite, papai. Cuide-se e vá dormir cedo.
— Boa noite! — respondeu Hilgenstiller, enquanto ela
saía lépida pela porta.
Momentos mais tarde, o ronco do motor do jipe afastando-se indicava que ela e Klauss estavam saindo mais
uma vez. O professor ficou imóvel em sua cadeira, olhando
o documento que localizara no registro de imóveis.
Era a planta de uma antiga fazendo e, numa de suas
divisas, havia um nome que ele reconheceu. Precisava apenas atualizar a descrição do imóvel e obteria, assim, sua
melhor pista.
Deveria estar satisfeito, afinal, mas sentia, lá no fundo
de seu coração, uma apreensão indefinida, algo como um
alerta, um pressentimento.
Vagou os olhos pela prateleira que improvisara a sua
frente, na parede. Fixou-se na lombada do antigo livro dos
Drácula. Arrepiou-se instintivamente.
***
Klaus diminuiu a marcha do veículo e estacionou-se à
beira da estrada. Voltou-se para Larah, passando seu braço
pelos ombros dela, puxando-a para si.
Docilmente ela se deixou apertar e, quando os lábios
dele buscaram os seus, uma volúpia intensa percorreu-lhe o
corpo e ela se entregou àquele beijo com uma ardente disposição.
As mão dele se soltaram sobre seus contornos macios
e definidos, embriagadas e tontas de prazer, massageandolhe os seios, acariciando-lhe o ventre delicado, apertando as
carnes sedutoras de suas coxas.
Larah ofegou, presa naquele desejo intenso que fazia
seu corpo e a assanhava mais e mais. Os dentes de Klauss
mordiscaram seus lábios e ela retribuiu a carícia com paixão, até que um leve sabor de sangue tomasse conta de sua
boca.
Ele a soltou, então, olhando-a deslumbrado. Larah ofegava, a respiração fora de controle, o coração aos saltos,
aquele sabor de sangue ganhando um significado novo, mas
desconhecido ainda.
Era como se qualquer coisa tocasse seus instintos, espicaçando-a. Levantou lentamente uma das mãos e tocou os
lábios de Klauss. Descobrindo ali um ponto úmido.
— Não se aborreça, não doeu, juro — murmurou ele,
puxando-a para si novamente.
— Não! — rouquejou ela, voltando a tocar o lábio
cortado.
Aquele sangue morno em seus dedos a fazia estremecer. Ela percebia-lhe a viscosidade, sentia-lhe o cheiro, como se, de repente, toda ela se concentrasse naquele pequeno detalhe.
— Já lhe disse, acidentes assim são tão excitantes —
insistiu ele, atraindo-a novamente.
Os lábios de Larah se abriram, cobrindo os dele, sugando-os, misturando saliva ao sangue que fluía lentamente. Todo o seu ser se abalou, como se uma descarga de luxúria e prazer a levassem ao orgasmo pura e simplesmente.
Ela abraçou-se a ele, esfregando seus corpos e sugando-lhe avidamente os lábios. Incentivado as mãos dele se
soltaram novamente pelo seu corpo, buscando os botões da
blusa, dando liberdade aos seios redondos e apetitosos.
Massageou-os e apertou-os entre os seus dedos, enquanto se deixava beijar ardentemente pela garota. O modo
como ela o fazia alucinava Klauss, fascinando-o, excitando-o brutalmente.
Ele sentia a pressão dos lábios dela e os movimentos
ritmados da língua feminina dentro de sua boca. Sentiu que
Larah o mordia novamente, mas não havia dor e sim um
imenso prazer.
— Larah! — rouquejou ele, segurando-a pelos ombros
e afastando-a para olhar aqueles seios que, à luz pálida das
estrelas, ganhavam uma beleza toda especial, pura e natural
como a imensidão silenciosa que os cercava.
Seu tronco flexionou-se e seus lábios buscaram um
daqueles seios, sugando-o e lambendo-o com desejo. Larah
apertou-o contra si. Aquela carícia completava as sensações
contrarias que abalavam seu corpo.
Aquele sabor de sangue em sua boca era o mais poderoso dos afrodisíacos. Suas mãos acariciaram as costas dele, depois foram se juntar ao redor da garganta do homem.
Larah descobriu um prazer adicional acariciando ali,
onde podia sentir a pulsação daquelas veias intumescidas
pela excitação.
Klauss abraçou-a com força, desejando despi-la e possuí-la ali mesmo.
— Não, Klauss, comporte-se! — pediu ela. — Vai
amarrotar toda a minha roupa, o que os outros vão dizer?
— O que me importa o que eles digam ou estão dizendo? — retrucou ela, rouco pela paixão.
— Klauss! — repreendeu-o ela, empurrando-o delicadamente.
Ele suspirou fundo e endireitou-se em seus assento.
Procurou nervosamente um cigarro e acendeu-o. Larah
prendeu um a um os botões de sua blusa, depois o encarou.
Klauss se voltou com que atraído pelo olhar mágico da
jovem.
— Você me alucina, Larah. Seja minha, por favor —
suplicou ele, tomando-lhe uma das mãos e beijando-a.
— Serei, no momento certo...
— E quando será isso?
— Quando eu decidir — respondeu ela, ainda saboreando o resto de sangue em sua boca,
Klauss representava, para ela, algo novo, uma descoberta importante ainda não de todo compreendida. Ele a
fascinava, seu sangue a atraia, embora Larah não o entendesse realmente.
No fundo, porém, tudo lhe parecia normal, natural,
como se sempre tivesse desejado aquilo e daquela forma.
— Quando a terei para mim, Larah? — indagou ele,
impaciente.
— Já lhe disse, quando chegar o momento certo...
— Diga-me, então, quando?
— Quer mesmo saber? — retrucou ela, olhando o céu.
Na verdade, sabia que se entregaria a Klauss, mas algo
lhe dizia que haveria o momento adequado. Olhando o céu,
naquele instante, a resposta lhe pareceu lógica e fácil.
— Na lua cheia... — murmurou, vagamente, assoprando lentamente as palavras.
— Na lua cheia... Dentro de dois dias?
— Dois dias? — sorriu ela.
— Sim, dentro de dois dias... É uma promessa?
— Há uma velha cabana de caça numa das encostas. O
local fica num bosque maravilhosos. A relva verde, as flores, um perfume constante, uma fonte cristalina a alguns
passos da porta... É tão maravilhoso. Iremos para lá. O que
me diz?
— Acho maravilhoso!
— Vamos ver a lua surgir entre as árvores e nos amaremos à luz dela, com a janela aberta, com a brisa completando nossas carícias mais ardentes — descreveu ele, excitado e inquieto.
Larah sorriu, enquanto lambia os próprios lábios, procurando ali um resto de sangue. Não o encontrando, segurou o rosto de Klauss entre suas mão e atraiu-o para si,
mordendo e sugando seus lábios com sofreguidão.
Soltou-o, em seguida, e respirou fundo, deliciada. Um
lobo uivou ao longe, mas isso não a assustou. Ela se lembrou, então, das palavras do pai.
— Meu pai recomendou que nos cuidássemos como o
lobo...
Klauss olhou ao seu redor, retraindo-se instintivamente.
— Não fale desse maldito lobo. Já matou mais ovelhas
que a pior das pestes... Mas ainda vamos apanhá-lo... Há
armadilhas por todo o vale e os pastores estão armados, esperando por ele. Cedo ou tarde nós o pegaremos.
— É tão grande como dizem?
— Acho que já duplicaram seu tamanho com tantas
histórias. O povo está apenas assustado. Julga que se trata
de um demônio ou coisa assim. Superstições tolas, apenas
isso... — descartou ele, sem olhá-la.
***
Torg estivera vasculhando aquela velha carroça, oculta num ponto qualquer no pátio do castelo. Sabia que ali,
em alguma parte, tinha o que procurava.
Quando encontrou a velha caixa, apertou-a contra o
peito, olhando ao seu redor. Rumou para o castelo, em seguida, descendo ao calabouço.
Procurou uma das salas mais velhas e entrou nela, levando uma tocha. Firmou-a na parede, depois depositou a
caixa sobre uma antiga mesa de tortura.
Abriu-a lentamente. Havia um veludo vermelho enrolado a um objeto. Torg desembrulhou-o cuidadosamente e
empunhou um espelho de toucador com a moldura de prata.
Não olhou de imediato sua imagem, embora desejasse
fazer aquilo há algum tempo, desde, precisamente o momento em que se deliciara com a carne tenra e revigorante
do corpo daquela jovem.
Era uma espécie de nosferato, um vampiro de cemitério, repartindo com seu mestre uma quase semelhante maldição. Assim estariam sempre juntos, sempre vivos.
Drácula se conservava ao longo dos tempos. O sangue
das jovens o havia reanimado. Para Torg, no entanto, parecia não haver esperanças.
Talvez jamais voltasse a recuperar a antiga beleza. A
esperança de que uma pequena modificação tivesse se operado, animando-o, o fazia segurar aquele espelho com mãos
trêmulas agora.
O mestre lhe prometera um corpo novo, mas isso poderia demorar. Torg estava impaciente, emoções há muito
guardadas ganhando ânimo novamente.
Levantou o espelho lentamente, pondo-o diante do
rosto. Um riso de escárnio delineou-se em seus lábios grossos e repugnantes.
Olhou o formato aquilino do nariz, os olhos quase revirados e estalados como os de um sapo repelente, a pele
lembrando algo podre, sem brilho, sem cor, sem nada.
Seus olhos brilharam como se lágrimas estivessem neles. Arrepiou-se instintivamente, ao pressentir a presença
maligna a suas costas.
Observou pelo espelho, não havia ninguém, mas aquela respiração pesada e animalesca batia contra seu pescoço.
Voltou-se repentinamente e um frio mortal gelou seu estômago.
De pé, olhando-o com olhos faiscantes, a negra capa
enrolada ao corpo esguio, estava Drácula.
— O que faz com isso? — indagou o vampiro.
— Eu pensei que... Essa minha carcaça... Perdoe-me,
mestre! — exclamou, caindo de joelhos diante do outro.
Por momentos, laivos de piedade cintilaram no olhar
do monstro. Ele estendeu a mão e tomou o espelho das
mãos do corcunda.
— Eu lhe prometi um corpo novo, Torg, e você o terá
um dia, saiba esperar. Vivemos a eternidade, o tempo não
conta para nós. Os dias virão e passarão. Fatos terão lugar,
pessoas nascerão e morrerão, mas estaremos presentes para
todo o sempre, observando e vivendo — disse o vampiro,
rodando o espelho diante de si.
A superfície polida nada refletia. Baixou os olhos para
Torg.
— Seu corpo o aborrece, meu fiel criado?
— Sim, mestre, mas esperarei, prometo...
— Deve se considerar um homem feliz, Torg. Pelo
menos tem o privilégio de apreciar a própria repugnância.
Quanto a mim, jamais verei meu rosto. Jamais saberei como
estou ou como sou... Não acha isso uma terrível maldição?
— Mas o mestre é um homem belo... Forte... Sua presença se impõe.
— Foi bom lembrar isso, meu amigo. A lua cheia se
aproxima e sinto-me forte o bastante para partimos.
— Partiremos?
— Sim, assim que apanharmos o tesouro. Minha sede
se define e quero gozar os prazeres adormecidos em mim.
Minha impaciência não tem limite — sorriu Drácula.
CAPÍTULO 7
Alho, estacas, figuras transparentes que atravessavam
portas, homem que se transformava em morcego e transmitia sua maldição a cada dentada...
Esses conhecimentos agora turbilhonavam na mente
do professor, após haver passado toda aquela noite em claro, debruçado sobre o livro.
A lenda era fantástica, inacreditável para um espírito
cientifico e neutro, mas o professor tinha motivos para inquietar-se.
A lenda narrava que a vítima do vampiro, nas noites
de lua cheia, também praticava o vampirismo. Sua preocupação com Larah se acentuou.
Aquela noite seria a primeira de lua cheia após os trágicos acontecimentos. Hilgenstiller clamava por Deus, valendo-se de uma religiosidade havia muito esquecida dentro de dele para encontra algum apoio e proteção.
Larah era sua única filha querida. Ele a amava mais
que a qualquer coisa em sua vida. Teria o maldito vampiro
a contaminado com sua maldição?
Reviveu as cenas macabras daquela noite, havia quase
um mês atrás. Virá o monstro com a boca lambuzada de
sangue. Vira Larah adoecer misteriosamente. Vira as fases
da lua trazerem uma melhora milagrosa e surpreendente.
Mas a lenda era clara. Toda vítima do vampiro se
transformava também num vampiro, a menos que se cravasse uma estaca de madeira em seu coração ou banhasse
com água benta.
Hilgenstiller, angustiado, cobriu os olhos cansados e
estirou-se na cama, desejando acordar daquele terrível pesadelo. Não havia sono em seu corpo.
Ele pensou em Larah, em como ela parecia se esconder durante o dia para vagar à noite na companhia de
Klauss. Tudo era muito suspeito e encontrava, na lenda, a
explicação. O vampiro teme a luz do dia.
Ergueu-se do leito e foi até a porta de seu quarto. A
dúvida persistia. Precisava ver a filha, falar com ela. Atravessou o corredor e foi bater no quarto dela.
Não obteve resposta, o que aumentou sua apreensão.
Tocou a maçaneta, girando-a. A porta não estava trancada.
Empurrou-a.
As grossas cortinas estavam fechadas e, à claridade
que entrava pela porta, ele divisou o corpo da filha, estendido sobre o leito, as formas jovens delineadas sob o lençol
que a cobria.
Não tinha o direito de entrar ali, daquela maneira, mas
não podia evitar. Caminhou silenciosamente até ela. Larah
dormia, o rosto pálido como Hilgenstiller jamais vira antes.
Suas mãos femininas e delicadas cruzavam-se sobre o peito. Sua respiração era imperceptível. Um calafrio percorreu
a espinha do homem e ele recuou alguns passos.
Naquela posição, Larah lembrava um cadáver em seu
ataúde. A palidez, a posição das mãos, a respiração quase
suspensa, tudo lhe trazia aquela amarga e inaceitável comparação.
Voltou a se aproximar do leito. Estendendo a mão e
tocou o rosto da filha. Sua mão se retraiu imediatamente.
Aquela pele era fria como a de uma morta.
Hilgenstiller recuou para a porta, o coração cheio de
pressentimento, a alma dilacerada pela terrível dúvida.
Voltou ao seu quarto. Deveria haver alguma outra salvação para sua filha e, nessa esperança, voltou a debruçarse sobre o livro, remendando página por página, às vezes
linhas por linha.
Seu medo e seu desespero aumentaram, à medida que
continuou a leitura. Larah podia se transformar num vampiro. Um ser imortal pela maldição, voando pelo tempo como
um morcego chupador de sangue, fazendo vítimas e mais
vítimas.
Isso significava um exército de seres anormais se multiplicando até que nenhum mortal filho de Deus restasse
sobre a face da Terra.
— Klauss! — exclamou, levantando a cabeça.
A manhã já estava no fim. Hilgenstiller não sentia
cansaço algum. Levantou-se apressadamente e deixou o
quarto. Rumou para o gabinete do oficial de polícia.
Parou diante da escrivaninha e olhou-o fixamente.
— Klauss, Deus me perdoe pelo que vou dizer, mas
você corre extremo perigo!
O oficial se levantou lentamente, encarando o professor com surpresa.
***
Anoitecerá há duas ou três horas e Klauss ainda estava
em seu gabinete, incapaz de tomar uma decisão. As palavras de alerta do professor ainda soavam em sua cabeça
como marteladas cruéis.
Havia medo em seu coração. Um medo profundo, um
pavor desconhecido. Não se tratava de ludibriar uma cidade
com falsas informações. Não se tratava de afastar daqueles
corações o pânico gerado na mais maldita das superstições.
Klauss nascera em Kizna, andara por aquele vale de
um lado para outro e soubera, muito antes do professor aparecer, muito antes de muitos aparecerem.
Havia uma maldição. Um ser monstruoso e maldoso,
fruto inconsequente de um demônio e de um ventre amaldiçoado reinara ali e, mesmo após sua destruição, aquele rei-
nado do terror persistia com o passar do tempo, oculto nos
corações e nas mentes.
Tudo estava ligado àquele assombrado castelo em ruínas. O fogo que lhe atearam talvez tivesse destruído o ser,
mas não destruíra sua ameaça.
Sempre haviam dito que ele voltaria um dia, acordado
de seu sono, ressuscitado de sua morte, regenerado com um
justo no dia do Juízo Final.
Talvez esse dia tivesse chegado. Talvez aquele lobo
sanguinário fosse ele. Talvez Niita fosse uma de suas vítimas. Talvez a esposa de Mikael fosse outra, emudecida pelo pavor, jogada agora num asilo de loucos irrecuperáveis.
E Larah...
Levou as mãos ao rosto, cobrindo-o como se assim
pudesse esconder-se de toda a sua preocupação. A figura
apaixonante da garota sobrepunha-se, como se o houvesse
enfeitiçado.
Ele a queria. Larah o fascinava, entrara em seu sangue,
pusera fogo em suas veias. Poderia tê-la naquela noite ou
poderia encontrar sua própria morte.
Queria ver naquilo o maior dos absurdos. Queria afastar todas aquelas barreiras de sua frente e correr ao encontro dela para uma noite de amor total.
Queria envolve-la em seus braços, aperta-la contra o
corpo, sentindo-lhe o fascínio de fêmea, dominando-a, apossando-se dela como um garanhão fogoso.
Larah o incendiava, perturbava seus sentidos, atraindo-o irresistivelmente. Imaginar que ela o esperava naquele
momento, a mais bela e sã das virgens, sequiosa de carinhos másculos e viris que a transformariam numa mulher
pelo milagre do sexo.
Esmurrou a mesa com força, estremecido pelo desejo,
ardendo naquela febre de paixão. O desejo brilhava com
seus sentidos, sugerindo convites, insinuando mentiras.
Precisava voltar a falar com o professor. Queria saber
o que descobrira de novo no livro que lia. Era preciso encontrar um modo de livrar Larah daquela maldição, se ela
estivesse contaminada.
Nesse ponto toda sua mente voltava a se confundir e
seu raciocínio era incompleto. Talvez tudo não passasse de
loucura do professor.
Aquele velho talvez tivesse ciúmes da filha e desejasse impedir aquele encontro. Poderia estar transtornado,
desde aquela noite, quando Larah fora hospitalizada.
Alguma coisa acontecera no castelo, mas Larah poderia ter-se ferido de mil e uma maneiras. Aquele castelo era
velho, empestado por ratos e insetos. A infecção seria inevitável.
Pensou em Baja, o rapaz que se suicidara. Sete garotas
tiveram suas gargantas cortadas no calabouço do castelo. O
que teria havido lá, afinal de contas?
Levantou-se resolutamente. Precisava ver o professor.
Ia deixar o gabinete, quando a porta se abriu lentamente,
sem um ruído.
Klauss estacou, enquanto a brisa soprava suavemente,
agitando seus cabelos. Ele fixou o olhar no vulto esvoaçante que caminhava para dentro do gabinete.
Larah parecia deslizar sobre a madeira. A brisa brincava alegremente com seus cabelos e a túnica branca usada
por ela a fazia mais linda e desejável.
As palavras morreram na garganta de Klauss, quando
os olhos dela se fixaram nos seus.
— Eu o esperei... O que houve? — indagou ela, a voz
melodiosa e sensual, o olhar brilhante segredando sedução.
— Eu... Eu estive ocupado. Na verdade, estava indo
para lá agora...
— Foi uma pena. Não poderemos ver a lua nascer enquanto nos amamos. Ela surge agora de detrás da encosta...
— E seu pai?
— Ele dorme agora... Tem trabalhado demais... Quando saía, eu o vi debruçado sobre a mesa de estudos...
Klauss tinha muita coisa a dizer a ela, naquele instante, mas permaneceu em silêncio, como que magnetizado pelos olhos dela, que parecia chamejar agora.
Larah se aproximou e levantou a mão, acariciando-lhe
os cabelos. Depois aproximou seus lábios dos dele, mordiscando-os levemente.
Klauss estremeceu. Aquele perfume de fêmea sedutora
e excitada embriagou seus sentidos, roubando-lhe a razão.
Apertou-a contra o corpo, beijando-a alucinadamente no
pescoço e nas faces frias como o gelo.
— Vamos Klauss... Eu prometi que você me teria hoje
— murmurou ela, roçando seus dentes contra o pescoço dele?
— Aonde iremos?
— Vamos fazer amor na relva, como as ovelhas e os
cabritos...
— Devo apanhar o jipe?
— Não, a noite está maravilhosa vamos caminhar.
Você me dará o braço e caminharemos através da cidade
como um casal de enamorado a caminho do altar — sorriu
ela.
— Sim, Larah. Como você quiser — concordou ele,
dobrando o braço à cintura.
Larah prendeu-se a ele e juntos caminharam para aporta. Desceram para a rua e caminharam para fora da cidade.
A lua surgia por sobre a encosta, jogando prata sobre os telhados e sobre a vegetação.
Havia uma beleza assustadora naquela noite, mas
Klauss já não pensava nisso. Todos seus sentidos estavam
paralisados, como se sugados pela mágica presença de Larah. Apenas sabia contemplá-la e antecipar o prazer de tê-la
para si.
Deixaram a cidade para trás e caminharam à margem
da estrada. Longe deles, no outro extremo, o castelo sombrio espreitava.
— Jamais havia me sentido tão excitada — disse ela,
soltando-se do braço dele e girando a sua frente, até ir apoiar-se contra o tronco de uma árvore.
Ali parou, olhando Klauss se aproximar hipnotizado.
Ela soltou os botões principais da túnica, depois desfez as
alças. O tecido escorregou para o chão, deixando a mostra
seu corpo maravilhoso e sedutor.
Os sentidos de Klauss explodiram de desejo e ele correu para abraça-la e beijá-la com sofreguidão, machucandoa com seus dentes, fazendo brotar em suas bocas um sabor
adocicado de sangue.
Larah se esfregou a ele numa volúpia incontrolável,
mordiscando seu pescoço e seus ombros, roçando seus seios contra o peito dele, girando os quadris em movimentos
que o levavam ao delírio.
Empolgado, Klauss se despiu com rapidez. Seus corpos nus se esfregaram com luxuria. Mãos e lábios experimentaram as carícias mais febris e intensas. Klauss a abraçou. Seu desejo era possuí-la de imediato.
O desejo o transtornou, assim como a ela, que o arranhava mais e mais com seus dentes e suas unhas, acentuando aquele cheiro de sangue que a entontecia e brincava com
seus sentidos, espicaçando-a brutalmente.
— Larah, eu a quero agora... Não posso esperar, amor.
Você me enlouquece, me alucina — rouquejou ele, procurando penetrá-la.
— Sim, Klauss, venha, amor! Sou sua, tome-me, aposse-se de mim, seja minha vida e fonte de eterna juventude...
— murmurou ela, as palavras entrecortadas pela volúpia
assanhada que a dominava.
Klauss flexionou os joelhos e agarrou-a pela cintura,
apertando-a contra a árvore. Ele respirou fundo, antegozando o momento da posse, assim como ela o fazia.
Na sua volúpia, Larah abriu a boca para um suspiro
prolongado. A luz da lua rebrilhou em seus dentes, onde se
destacavam duas enormes presas, pontiagudas e sinistras.
Ela aguardou o momento supremo.
Num arranco espasmódico, Klauss penetrou-a apaixonado, enquanto Larah, com indizível prazer, cravava em
seu pescoço as presas de vampiro.
***
Hilgenstiller acordou num sobressalto.
Ergueu-se da mesa e correu para a porta. Foi até o
quarto de Larah. O desespero estampou-se em suas faces.
Desceu apressadamente as escadas e indagou ao estalajadeiro. Este informou que Larah saíra há menos de uma
hora.
— Klauss! — exclamou o professor, correndo para a
rua.
Rumou ao gabinete do oficial. Encontrou à porta o
carcereiro.
— Onde está Klauss?
— Não sei, quando cheguei, ele já havia saído...
— Mas estou vendo o jipe ali...
— Deve ter saído a pé...
Um jovem que passava ouviu as perguntas do professor e se aproximou.
— Procura pelo oficial Klauss?
— Sim, você o viu?
— Ele deixou a cidade com sua filha, professor. Foi
naquela direção.
— Quando foi isso?
— Uma hora, talvez menos, não estou bem certo...
Hilgenstiller olhou ao seu redor, como se procurasse
algo que o valesse naquele instante de suprema aflição. Viu
a igreja, viu a cruz lá no alto, mas viu, também, uma estaca
de madeira na grama da pracinha.
— As chaves do jipe... — disse, febril, ao carcereiro.
— Klauss costuma deixá-las no veículo... Algo errado,
professor?
O homem olhou para o céu e viu a lua cheia brilhante
e sinistra. Correu para o jipe e ligou o motor. O carcereiro
se aproximou, intrigado.
— Algo errado, professor?
— Deus queira que não — respondeu partindo.
Não houve sequer um mau pensamento que não houvesse torturado os pensamentos dele, enquanto os faróis iluminavam ainda mais a estrada. Rezou para estar errado
em seus pressentimentos. Rezou para encontrar Larah e
Klauss trocando juras apaixonadas em algum sitio aprazível
ali por perto.
Renegou tudo o que lera no maldito livro. Suplicou a
Deus e ofereceu-se ao demônio para que nada acontecesse.
Repentinamente, as luzes incidiram sobre dois corpos
que se espojavam sobre a relva. O professor freou o veículo
e ficou olhando, alucinado, a terrível visão. Espasmos agonizantes abalavam o corpo de Klauss, enquanto Larah, como um animal assanhado, agitava-se sobre ele, a boca colada ao seu pescoço.
— Larah — berrou o professor, saltando do jipe.
Ela ergueu a cabeça. As presas se arreganharam avermelhadas pelo sangue que lhe escorria pela boca.
— Valei-me, meu bom Deus! — exclamou o professor, estarrecido.
Larah ergueu-se, nua e feroz, correndo para ele.
— Larah, sou eu, seu pai! — gritou ele, quando ela se
atirou no ar, como que voando, as presas rebrilhando, tintas
de sangue, um grunhido animalesco escapando de sua garganta.
Seus corpos rolaram na poeira. O professor segurou
com força a cabeça dela, impedindo-a de cravar os dentes
em seu pescoço.
A força de Larah era descomunal e demoníaca. Hilgenstiller não conseguiria evitar seu trágico destino por
muito tempo.
Rolando caíram numa vala à beira da estrada. Espinhos cravaram-se às costas do professor e o cheiro de seu
sangue inquietou ainda mais a vampira.
Ele firmou seus pés contra ela e empurrou-a para longe. Ao tentar se levantar, desequilibrou-se e procurou apoio
num galho seco, que cedeu, deixando entre seus dedos um
pedaço de madeira lascada.
Larah grunhiu novamente, erguendo os braços, os olhos chamejando, o corpo nu retorcido como o de uma aranha prestes a envolver sua vítima.
Hilgenstiller se pôs em pé e olhou fascinado e aterrorizado o pedaço de madeira em sua mão. Depois olhou Larah, banhada agora pelas luzes dos faróis. Seu coração de
pai hesitou, mas sua razão gritava-lhe que não era Larah,
não era sua filha bem amada, mas um monstro que merecia
ser exterminado.
Um espasmo percorreu o corpo da garota, que se lançou novamente sobre ele. Hilgenstiller firmou a madeira em
suas mãos, escorando o salto da filha.
Sentiu o galho lascado e pontiagudo dilacerar as carnes da jovem, fazendo o sangue jorrar contra o seu peito.
Os olhos dela se arregalaram e um urro ecoou pelo campo.
— Filha, perdoe-me! — chorou ele, abraçando-a em
desespero.
CAPÍTULO 8
As lagrimas que rolavam de seus olhos o impediam de
ver com clareza o trabalho do coveiro, arremessando pá após pá. O barulho oco e lúgubre de terra batendo contra o
ataúde cessara e apenas um som macio como um adeus se
ouvia.
Não longe dali, a mesma cena se repetia, enquanto sepultavam Klauss. Aquele pesadelo terrível chegaria ao fim,
mas jamais se apagaria de sua mente.
Ter a filha agonizante em seus braços, estrebuchando
como um animal ferido, rasgando-o ainda com suas unhas
ferinas, como se , no último momento, ainda demonstrasse
um ódio absurdo contra aquele que lhe dera a vida.
Sim, Hilgenstiller jamais se esqueceria daquilo. Aquela tragédia estaria em sua alma, torturando-o, até o fim de
seus dias.
Fora terrível para seu coração de pai submeter a filha
àquela humilhação, após sua morte, mas não houvera outra
maneira de convencer a população.
Dissera a todos que o lobo maldito e perseguido havia
atacado o casal. Era o mais lógico, o mais acessível. Dissera que lutara contra o lobo, conseguindo, Deus sabia como,
afugentá-lo. Tinha as marcas das unhas de Larah em seu
corpo para provar sua história.
Todos pareceram acreditar e aceitar sua versão. Talvez
precisasse aceitar aquilo como única maneira de evitar um
temor maior que estava incrustado em suas almas.
Hilgenstiller se deixava corroer pela dor. Roubar a vida da filha não lhe parecerá seu direito, mas ainda hesitava
ante sua dedução.
Não teria Larah morrido naquela noite no castelo,
quando o vampiro a mordera? Após isso não teria sido apenas um cadáver ambulante e contaminado, seguindo sua
triste e trágica sina?
Mas Larah estava morta de qualquer maneira. Seu
verdadeiro assassino era aquele monstro que vira no castelo. Não descasaria até se certificar disso.
Era um juramento que fazia ali, no túmulo da filha,
enquanto orava pela sua alma atormentada.
Finalmente nada mais havia a ser feito. A cruz foras
encravada sobre a terra. No dia seguinte os pedreiros viriam para erguer um túmulo de concreto.
O professor fez o sinal da cruz e enxugou os olhos
vermelhos. Caminhou até o túmulo de Klauss. Cravara em
seu coração uma estaca de madeira, livrando-o da maldição. Era justo.
Rezou uma prece por ele, depois deixou o cemitério.
Não tinha rumo, não tinha destino. Era um ser atormentado
pela dor e por um remorso que teimava em permanecer em
seu coração.
— Professor! — chamou-o uma voz.
Voltou-se e viu aquele velhote misterioso com quem
já falara. Aproximou-se dele.
— Eu o avisei, professor! Eu sabia que isso aconteceria.
— Vá para o inferno, velho! Que o demônio o leve! —
murmurou Hilgenstiller, profundamente cansado.
Entardecia. O sol se pondo incidia sobre o castelo
maldito, iluminando suas ameias e seteiras semidestruídas.
Os olhos do professor brilhavam. Precisava voltar àquele
lugar infernal.
— Professor, sei que procura o velho cemitério...
Hilgenstiller o olhou com interesse.
— Mas qual deles procura, professor?
— Como assim, velho maluco?
O outro riu matreiramente, exibindo as gengivas esbranquiçadas e os dentes podres.
— Há dois... Mais estou certo que procura o cemitério
sem cruzes... — sorriu.
— O cemitério sem cruzes?
— O sítio maldito dos Drácula, não é isso que procura?
— Você sabe onde achá-lo?
— você vai lá?
— Que o fogo do inferno devore minha alma se não
for — jurou Hilgenstiller.
***
Torg estava encolhido num canto da sala, enquanto
Drácula lia o último dos livros que o corcunda trouxera. O
vampiro levantou, então, os olhos maravilhados para o servo.
— Torg! — chamou. — Sabe dirigir essas maravilhas
que são chamadas de automóveis?
— Sim, mestre. Aprendi há muitos anos, na Alemanha.
O vampiro baixou os olhos para o livro, depois o fechou e o empurrou para o chão. Respirou fundo, depois
voltou a encarar Torg.
— Você vai comprar uma delas, Torg. Precisamos para transportar o tesouro.
— O mestre se lembrou...
— Sim, sei onde está. À medida que minhas forças se
recuperavam com o sangue das ovelhas, minha memória
antiga voltava. Sei perfeitamente onde está e irei lá apanhar
o suficiente para que compre um automóvel. Quero o melhor. Sempre quis o melhor.
— Sim, mestre, tudo que ordenar.
— Trarei uma joia. Você partirá e a venderá. Comprará a maravilha mecânica e me encontrara no antigo cemitério dos Drácula. Sabe onde fica, não?
— O tesouro está lá? Sempre esteve lá?
— Sim, sempre esteve lá, Torg — sorriu o vampiro,
erguendo-se e deixando a sala.
***
Calafrios intensos percorriam o corpo do professor,
enquanto a lua cheia clareava aquele estranho e assustador
lugar. Túmulo enormes, cobertos de ervas, semidestruídos,
ostentando um luxo faraônico. Nenhuma cruz havia à vista.
Por algum tempo vagou por entre as construções, até
que se desse conta do que fizera. Já era noite alta. Ergueu
os olhos. O castelo ameaçador estava lá, a duas ou três milhas dali. Por isso ninguém soubera ou comentara sobre o
local. Ninguém se aventurava a passar por ali perto.
Voltou a olhar as construções. O tesouro indicado no
livro estaria por ali, em alguma parte, mas era tarde para
procurá-lo.
Fora uma imprudência, talvez, ter vindo, mas não medira as consequências quando soubera do local. Precisava e
queria conhecer o local. Agora que o sabia, poderia voltar
no dia seguinte e investigá-lo com calma.
Caminhou, então, na direção da saída. Todo o cemitério sem cruzes era cercado por um muro de pedras que o
tempo não conseguiria destruir.
Apenas a madeira do portão cedera com a passagem
dos anos, apodrecendo e despencando. Hilgenstiller olhou
mais uma vez na direção do castelo, depois apressou o passo.
Um ruído sinistro, assim como o voar assustador de
centenas de pássaros, o fez voltar a cabeça. Qualquer coisa
demoníaca passou sobre ele, indo pousar sobre o muro.
Um estremecimento maior percorreu seu corpo ao olhar o enorme morcego pousado sobre a pedra. Jamais vira
animal daquele tamanho.
Subitamente, uma fosforescência envolveu a ave agourenta, fazendo-a transparente como uma névoa. Ela escorregou para o chão e tremeu, até ganhar novos contornos.
Hilgenstiller recuou, reconhecendo aquele vulto amaldiçoado. Persignou-se instintivamente, tentando correr, mas
se sentiu pregado ao chão.
A brisa bateu contra a capa de Drácula, fazendo-a esvoaçar como as asas de um abutre.
— Eu conheço você — disse o monstro num tom de
voz que pareceu cordial ao professor.
A surpresa e o medo se misturaram. Não podia se deixar enganar. Precisava se afastar dali.
— Como está sua filha? — indagou Drácula, caminhando lentamente para o professor.
— Afaste-se de mim, animal do inferno, monstro das
profundezas, besta da noite... — ordenou o professor, a voz
embargada pelo pavor que gelava seus nervos.
— O que faz aqui?
Hilgenstiller pensou em Larah, em seu terrível suplicio, em Klauss. Eram todos vítimas daquele ser doentio e
desalmado que caminhava para ele.
— Afaste-se de mim! — gritou novamente o professor, recobrando os movimentos e a coordenação de seu
corpo.
Ele correu, então, como jamais julgara poder correr. O
hálito do demônio parecia bater contra sua nuca, enquanto
corria. Arriscou olhar para trás. Viu apenas o muro do cemitério e nada mais, como se tudo aquilo não tivesse passado de um pesadelo. Seu corpo, no entanto, já não obedecia ao seu comando e correr era a única coisa que poderia
fazer. Rasgou-se em galhos, rolou sobre pedras, tropeçou
em troncos, comeu poeira em cada queda, mas julgou haver
deixado o monstro muito atrás quando parou para tomar fôlego.
Apoiou-se a uma pedra. Diante dele, aquela fosforescência brilhou novamente e uma névoa transparente ganhou
contornos negros e ameaçadores. Uma gargalhada animalesca e sádica fez arrepiar o corpo do professor.
Era como se Drácula encontrasse um secreto prazer
em torturá-lo com aquela perseguição implacável.
— Vá embora! — gritou o professor, começando a
correr novamente.
Drácula não se desvaneceu daquela vez e apenas caminhou em sua perseguição, como se estivesse seguro que
o cansaço abateria aquela velha caraça e colocaria o professor a sua mercê.
Hilgenstiller viu-se diante de uma vala e, em sua corrida, não teve um segundo apenas para decidir. Atirou-se,
tentando atravessá-la, mas escorregou no outro lado, rolando mais uma vez sobre pedras e troncos.
A gargalhada sinistra e macabra mais uma vez gelou
seu sangue e ele viu o vulto sinistro de Drácula caminhar
em sua direção.
Subitamente, o monstro se contorceu, abaixando-se
como se algo houvesse prendido seu pé. Um urro bestial e
rouco escapou de seus lábios, enquanto se debatia, o tornozelo preso em uma armadilha para lobo.
Hilgenstiller sabia que era sua chance, mas não tinha
mais forças. Tateou o chão à procura de dois galhos. Retirou o cinto de sua calça e prendeu os dois, formando uma
cruz, a única defesa que poderia lhe valer.
Cravou-a diante de si, depois sentiu o mundo girar ao
seu redor. A última coisa de que se lembrou ter visto foi a
fosforescência de novo e um grande morcego esvoaçando
sobre ele, depois sobre o cemitério sem cruzes e, finalmente, na direção do castelo.
Quando acordou, era dia. O sol projetava a sombra da
cruz improvisada diante dele e alguns pássaros cantavam
nas árvores ali perto.
Ergueu-se com dificuldades. Suas roupas estavam rasgadas e havia diversos ferimentos em seu corpo. Era um
milagre estar vivo. Havia lobos devorando naquela noite
alucinante.
Olhou a cidade ao longe, depois o castelo. Lembrou-se
de ter visto o morcego voar naquela direção. Drácula estava
em seu antigo reduto e, durante o dia, poderia ser destruído.
Como encontrá-lo, porém, era algo em que não conseguia pensar. Ouviu tiros e gritos distantes, nas imediações
do castelo, mas não teve certeza disso. Dirigiu-se apressadamente para a cidade. Quando lá chegou, foi recebido com
admiração e espanto pelos homens que se amontoavam diante da prefeitura.
— O que está havendo? — indagou ao prefeito, que
conhecera uma noite, na estalagem.
— Parece que alguns caçadores decidiram vingar
Klauss e sua filha, professor. Eles encurralaram um enorme
lobo no castelo abandonado. O lobo sumiu em seu interior
e não sabem como expulsá-lo de lá.
Uma buzina estridente soou na rua, fazendo as pessoas
abrirem espaços. Hilgenstiller olhou o caminhão-tanque
que passava, com gasolina para o posto. Era um tanque pequeno. Kizna não possuía muitos veículos e um carregamento daqueles deveria suprir a cidade por um mês.
— Eu sei como destruir aquele lobo e tudo mais que
infesta esta cidade, prefeito.
— Se sabe, diga-nos. Não mediremos esforços ou despesas para acabar com esse pesadelo que nos assola...
Hilgenstiller correu para o caminhão-tanque, fazendoo parar.
— Sua gasolina está à venda, não é?
— Mas é para o posto...
— Desça e deixe-me dirigir. Terá o dinheiro da gasolina. Quanto ao resto, estou certo que a cidade concordará...
— Mas é que eu...
— Saía! — ordenou Hilgenstiller, abrindo a porta e
puxando-o para fora.
Tomou lugar na boleia e manobrou o caminhão, rumando para a saída da cidade.
— Ao castelo! Vamos destruir aquele demônio — gritou, enquanto a multidão o perseguia, curiosa com sua iniciativa e sedenta de vingança.
O professor levou o caminhão até as proximidades da
ponte levadiça. Desceu e pediu ajuda. Havia duas mangueiras no caminhão que, emendadas entraram pelo pátio, levadas por um mais corajoso.
Sua ponta foi jogada no interior da sala principal do
castelo. Hilgenstiller abriu a válvula e deixou escorrer toda
a gasolina. O ar se tornou irrespirável. Um cheiro nauseabundo tomou conta do local. As pessoas se afastaram, assustadas com o perigo. Ele nada temia, sabia o que fazia e o
que pretendia destruir.
Quando a gasolina se esgotou no tanque, Hilgenstiller
pediu que alguém levasse o caminhão dali. O veículo se afastou, arrastando a comprida mangueira.
Alguém entendeu que ele pretendia e surgiu com uma
tocha. Ele a empunhou, pensou em Larah, em Klauss, em
Niita e na esposa daquele camponês. Depois, arremessou-a
com todas as suas forças para o pátio do castelo.
Houve um instante de suspense em que a tocha pareceu queimar inutilmente. Subitamente, num ruído assustador, o fogo se elevou abruptamente, expulsando as pessoas
dali. O local se transformou num inferno. De um ponto seguro, o professor observava a fumaça. Parecia ver nela o
vulto sinistro e macabro do vampiro.
Que o fogo, que tudo purifica, o destruísse para todo o
sempre!
FIM DO LIVRO DOIS
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO TRÊS
A NOITE DO VAMPIRO
CAPÍTULO 1
Falmouth no extremo sul da Inglaterra, à beira do Canal da mancha, era uma agradável praia de veraneio durante
o verão e um bom refúgio, no inverno, para aqueles cujo
fascínio pelo tradicional animava uma viagem mais longa.
A baía abrigava recantos maravilhosos. Seus bares à
beira do mar conservavam um toque de antiguidade na decoração marítima, valendo-se de todo tipo de despojos que
a corrente jogava na praia.
Naquele outono, Falmouth vivia uma meia-estação,
quando os veranistas retardatários deixavam suas praias,
recolhendo as velas coloridas de suas embarcações e jurando voltar no próximo ano.
Ao mesmo tempo, os primeiros saudosistas começavam a chegar, circulando animadamente pelos bares e pelas
ruas calçadas com pedras assimétricas de uma antiga pedreira nos arredores.
De todos os estabelecimentos, o mais visitado sempre
foi o Old Fisherman. Seu proprietário aproveitara uma velha escuna, transportando-a para terra e reformando-a com
muita originalidade.
Os visitantes subiam por uma rampa até o convés e dali podiam escolher a direção mais adequada ao seu temperamento. Havia um bar no porão, com velhos drinques e um
alvo para arremesso de dardos.
Ali toda a decoração original fora preservada para dar
aos marujos aposentados e mesmo aos frustrados, a nítida
impressão de Haver se instalado numa autêntica embarcação audaz.
A cabina da tripulação fora reformada e ali se fizera
uma boate. Havia um toque de mistério nas ossadas pressas
à parede, fosforescentes à noite, sob as luzes apropriadas. A
música era sofisticada e garotas com trajes sugestivos circulavam por entre as mesas, oferecendo cigarros, fotografias e recordações.
Na estreita pista de dança, os casais eram banhados
por uma iluminação que os fazia se sentirem no fundo da
água.
Naquela noite de outono, quando o tempo se fazia ameaçador e as ondas batiam mais fortes sobre a areia, era
grande a frequência na boate de Old Fisherman.
Garotas desacompanhadas e ansiosas por um programa de fim de férias ensaiavam seus melhores passos de
dança, procurando chamar a atenção.
As mesas estavam tomadas e as poucas que restavam
estavam reservadas. Com toda certeza, o proprietário estava
satisfeito com a temporada.
A um canto, estrategicamente voltadas na direção da
porta, Susan Portland, uma garota londrina em férias, conversava com sua amiga Mary Reading.
— E que tipo de sensação foi essa? — indagou Mary,
intrigada com a expressão de Susan.
— Não sei se poderei descrevê-la corretamente... Era
algo além daquela sensação que se tem de estar sendo vigiada. A noção exata que eu tive foi de ser perseguida durante todo aquele trajeto... Qualquer coisa no céu, invisível,
mas perceptível, pairando sobre mim, quase me tocando...
Não sei como não me acidentei com aquele carro — disse,
e sua voz tremia ligeiramente.
O rosado voltava lentamente ao seu rosto, à medida
que o uísque aquecia seu corpo. Por momentos Mary ficou
em silêncio, olhando a amiga, depois deu de ombros, mas
não conseguiu pensar em nada convincente para tranquiliza-la.
— Acha que ele virá está noite? — indagou, então.
— É possível. Ele tem vindo quase todas as noites.
Senta-se ali, perto da porta e não tira os olhos de mim —
afirmou Susan, muito convencida.
Mary sorriu disfarçadamente. Aquele Homem belo e
elegante que vinha ali todas as noites não olhava para Susan. Seus olhares ardentes eram para Mary e nem todo o
convencimento de Susan a faria pensar de outra forma.
Outra garota entrou pela porta e parou, por instantes,
junto à pista de dança, olhando ao seu redor. Mary e Susan
acenaram. Ela foi se juntar às duas.
— Meninas, que tormenta vem aí! — exclamou, tentando recompor os cabelos.
— Tormenta? — comentou Mary. — Está aí a sua
resposta, Susan.
— Como assim? — quis saber a outra.
— O vento soprando nos galhos do bosque deve ter
provocado aquela sensação que comentou.
— Acha mesmo?
— De que estão falando, afinal? — quis saber Dora
O’Hara.
Mary contou-lhe a respeito do que Susan Havia sentido no bosque. Dora ficou séria e seu rosto revelou temor,
como se qualquer coisa naquela narrativa a fizesse estremecer.
— Onde foi isso mesmo? — indagou quando Mary
terminou.
— Na estrada que margeia o bosque, você também está Hospedada por lá, não? — explicou Susan.
— Sim, e já tive essa mesma impressão, acreditem ou
não.
— Ora, ora, garotas. O que temos aqui, afinal? — ironizou Mary descrente.
— É verdade, Mary. É como se qualquer coisa voasse
em torno da gente, não é isso mesmo, Susan?
— Sim, é essa a impressão exata. Algo grande e monstruoso — exagerou.
— Exatamente — concordou Dora.
— Nesse caso, é melhor vocês duas trocarem suas impressões a respeito do monstro voador. Eu prefiro dançar
— descartou Mary, levantando-se e deixando-as.
***
Na pequena delegacia de Falmouth, o Inspetor Charles
Derby se preparava para mais uma noite tranquila.
Agora que o verão se fora, diminuíram as ocorrências
durante a noite. O esquema especial, preparado para o verão, fora relaxado e muitos dos policiais estavam tendo agora suas férias.
— Aceita um chá, inspetor? — ofereceu seu assistente, Lester Sheffield.
— Sim, claro — aceitou o inspetor, deixando de lado
o cachimbo e esfregando animadamente as mãos.
O telefone tocou. Ao olhar para ele, um pressentimento apossou-se dele. Após tantos anos de serviço, Charles
Derby era capaz de farejar a encrenca chegando.
Antes que Lester atendesse, foi até lá.
— É o inspetor-chefe — informou.
— É muita sorte falar direto com o senhor. Aqui é
William Aberdeen, de Salisbury...
— Em que posso ajudá-lo, Sr. Aberdeen?
— É sobre minha filha, inspetor. Ela foi passar o verão aí em Falmouth e deveria ter retornado há três dias...
— Entrou em contato com ela antes disso?
— Sim, ela nos telefonou infamando quando retornaria.
— Tem o endereço dela?
— Não, mas o número do telefone. Tentei entrar em
contato com ela, mas o telefone não responde.
— Tranquilize-se, Sr. Aberdeen. Dê-me o número do
telefone e o seu. Vamos tentar localizá-la. Qual é o nome
dela?
Momentos depois, quando desligou, Derby ficou em
pé, confiando seus bigodes. Havia um cheiro de encrenca
no ar, mas era algo muito vago.
Lester olhava-o interrogativamente.
— Uma garota, por certo, está gostando demais de suas férias e isso preocupa seus pais. Investigaremos mais
tarde. Agora vamos àquele chá — sorriu Charles Derby.
***
O vento agitava as árvores da estrada, assobiando nos
galhos, derrubando folhas que secavam com o outono. No
mar, as ondas se tornavam mais furiosas e martelavam a
praia em meio às nuvens de espuma.
Aquela era a estrada municipal que seguia em direção
a Truro, onde se encontrava com a rodovia principal que
conduzia a Londres.
Havia muitas colinas naquela região, com casas agora
fechadas, após a temporada de verão. Em umas e outras se
notava alguma luz, anunciando a presença tardia de seus
proprietários ou sua chegada antecipada para o inverno.
Numa delas, solidamente cravada no alto de uma das
inúmeras colinas, havia luzes em profissão. Pelas janelas
abertas o vento penetrava com força, agitando as cortinas.
A ampla sala, mobiliada com luxo, estava vazia. Tudo
estava em silêncio e apenas a presença do vento era notada,
entrando pelos cômodos, subindo a escadaria e indo varrer
os aposentos superiores.
Subitamente, destoando de toda a calma e de toda a
beleza daquela sala luxuosa, uma sombra semivergada desenhou-se numa das paredes, quando uma porta se abriu.
Lentamente, Torg foi arrastando o corpo da garota,
enquanto olhava seu rosto pálido, onde se estampava uma
expressão de mortal terror.
O corcunda parou no centro do aposento e deixou a
garota sobre o tapete. Ela estava nua. Seu corpo perfeito estava intacto, a não ser por aquelas duas pequenas marcas
em seu pescoço.
O corcunda sentou-se numa poltrona de couro e ficou
um longo tempo observando aquelas formas perfeitas e aquela beleza rígida.
Suspirou, enquanto a expressão de seu rosto se alterava gradativamente. Pensamentos macabros provocavam-lhe
a mais repugnante das sensações. Seus olhos inexpressivos
se avermelhavam como se refletissem o fogo do inferno.
O vento que entrava pela janela agitou seus ralos cabelos. Ele apertou as mãos contra a cabeça, enquanto começava a sorrir.
Ergueu-se e suspirou. Ajoelhou-se ao lado da garota e
deslizou suas mãos nodosas e ásperas sobre a pele macia e
fria. Arrepios excitados percorreram seu corpo.
— Bela! — grunhiu, inclinando-se mais ainda para roçar seus lábios pelas carnes apetitosas.
Um vento mais frio pareceu soprar. Torg tomou-a nos
braços e ergueu-se resolutamente. Olhou ao seu redor, depois caminhou para os fundos da casa, por onde saiu.
Relâmpagos cortavam o céu, iluminando o mar. Torg
caminhava apressadamente agora, o corpo oscilando a cada
passo, como se o equilíbrio prejudicado o fosse levar ao
chão a qualquer momento.
Aquele corpo em seus braços, apertado contra seu peito, tinha um perfume que o excitava e tocava seus instintos
mais bestiais.
Sabia o que fazer dela. Drácula já se saciara com seu
sangue. Ela já estava morta e os despojos cabiam a ele. Sua
esperança de rejuvenescer crescia, agora que Drácula agia
livremente, escolhendo suas vítimas.
Desceu pela encosta da colina. Leve era a sua carga e
suas forças cresciam, assim como o seu apetite. Folhas rolavam a seus pés, galhos oscilavam tetricamente em árvores
descarnadas, iluminadas pelos relâmpagos que se tornavam
mais frequentes.
O corcunda ergueu-se a cabeça e aspirou aquele cheiro
de mar e tragédia com indizível prazer. Gostava daquele
cenário. A natureza desolada parecia alegrá-lo, pois se
mostrava feia como ele.
Algum tempo mais tarde chegou ao seu destino. Depositou o cadáver da garota sobre uma rocha, depois olhou
ao seu redor. Descobrira por acaso aquele local. Era exata-
mente o que precisava para esconder os corpos das vítimas
de Drácula.
Aquela velha pedreira fora desativada há algum tempo. Suas muralhas desiguais permaneciam, agora, como um
monumento à devastação humana, cortando ao meio uma
montanha.
Ao pé, na cavidade produzida pela retirada de toneladas de pedras, formara-se um lago natural, alimentado pelas
chuvas e pela umidade que escorria das rochas.
Um relâmpago mais próximo iluminou o corpo da garota e deu um brilho de sangue aos olhos do corcunda. Ele
estremeceu, o apetite bestial fazendo seu sangue circular
como fogo pelas veias.
Inclinou-se, acariciando o corpo da garota. Suas mãos
curvas como garras penetraram pelos cabelos dela numa carícia bruta e perversa.
Firmaram-se ali, erguendo-a lentamente, até que seus
instintos pudessem tocar os dela. Por instantes, seu hálito
fétido varreu o rosto pálido e frio.
Depois, como se orgasmos abalassem seu corpo, Torg
fechou-a em seus braços, apertando-a como se desejasse
quebrar-lhe os ossos.
Sua boca pousou sobre a dela, aberta como as mandíbulas de um animal, faminto. Sugou, inicialmente, trazendo
para entre seus dentes aquelas lábios que, outrora, teriam
feito a loucura de muitos homens.
Num grunhido rouco e desumano, Torg, o horrível
corcunda, mordeu-a.
***
O inspetor insistira mais uma vez, mas o telefone não
era atendido. Devolveu o fone ao gancho, depois ficou
tamborilando sua canela contra o tampo da mesa.
Do outro lado da sala, Lester Sheffield levantou a cabeça para olhá-lo.
A chuva chegara com força, empurrada pelo vento.
Era uma péssima noite para uma investigação, mas Lester
conhecia seu chefe. Quando algo o intrigava, jamais desistia.
— O que há, Charles? — indagou.
— Acho que temos o comunicado do desaparecimento
de mais duas ou três garotas, não?
— Isso acontece durante a temporada de verão. Muita
gente resolve não voltar direto para casa...
— Sei disso, mas ninguém comunicou o desaparecimento de um rapaz ou de um homem...
— Geralmente as mulheres preocupam mais quando se
ausentam — comentou Lester, com um sorriso que Charles
não correspondeu.
Lester percebeu, então, que a preocupação dele ia
mais longe. Levantou-se e apanhou seu casaco.
— Aonde vai? — quis saber o inspetor.
— Aonde vamos? — retrucou o assistente.
Momentos depois, após haverem localizado o endereço pela lista telefônica, os dois rumavam para uma vila nos
arredores da cidade.
Ambos conheciam bem o local. Dezenas de chalés eram alugados para os veranistas. Ali dispunham de todas as
comodidades possíveis, além da proximidade do mar.
— Acredita numa epidemia de desaparecimento? —
indagou Lester.
— Não acredito em nada por enquanto, meu amigo.
As pessoas às vezes se preocupam por nada. Por isso investigaremos.
— Que péssima noite para uma investigação — sorriu
Lester.
— Ossos do oficio.
Algum tempo mais tarde chegavam ao local. A chuva
caia torrencialmente e aquilo era um indicio da chegada de
um inverno rigoroso.
Foram até a casa do gerente, um homem afável, de olhos miúdos que denunciavam um observador de primeira.
Após as apresentações, Charles indagou sobre Joan Aberdeen.
O homem vasculhou seus registros. Sorriu, finalmente,
levantando a cabeça.
— Aquela marota! — exclamou. — Enganou-me todo
o tempo.
— O que quer dizer com isso? — quis saber Lester.
— Sempre me pareceu uma garota honesta, mas, justamente no dia de acertar as contas, ela partiu sem deixar
vestígios.
Charles e Lester trocaram olhares surpresos.
— Deixou todas as suas coisas no chalé. Eu as reuni e
guardei nas malas. Se não tiver mais notícias dela, vendo-as
para recuperar o prejuízo.
— Só um momento, senhor. Quer dizer que ela foi
embora sem pagar a conta, deixando todas as roupas e apetrechos?
— Sim, inclusive algumas joias que... Espero... Ajudem-me a recuperar o que perdi.
— Não me parece muito normal isso. Teve casos assim antes?
— Não, inspetor. Quando alguém parte sem pagar a
conta leva o essencial e o mais valioso. Acho que, no fundo, essa garota era mesmo honesta. As joias...
— As joias e todas as outras coisas serão confiscadas,
senhor. Estou certo que a família se encarregará de cobrir
seus prejuízos.
— Não vou me opor à lei — concordou o homem, fácil demais. — Vou apanhar as malas, então.
Lester olhou seu chefe. A garota não deixara apenas as
joias e as roupas. Deixara seu dinheiro também. E isso era
muito estranho.
CAPÍTULO 2
Torg caminhou pelo corredor frio da adega. Era madrugada. Naquela noite Drácula não se levantara, saciado
de sangue, adormecido pesadamente.
Dois, três ou quatro dias... Quem podia calcular quanto tempo ele dormiria? Quando se levantasse novamente
partiria à caça, trazendo nova vítima para aquela casa. Seu
sangue seria sugado e o cadáver caberia a Torg.
Sorriu, enquanto arriscava uma olhada discreta para o
interior daquela cela úmida, no corredor da adega. Podia
divisar o esquife no centro, com seu conteúdo macabro.
Tudo estava bem com seu mestre. Torg retornou para o térreo da casa.
Sentou-se comodamente na confortável poltrona de
couro e estirou o corpo disforme. Pensou na garota que jogara no lago aquela noite. Era bonita, muito bonita e sua
carne tenra. O corcunda estalou a língua inconscientemente.
Olhou ao seu redor. Estava ansioso para se olhar no
espelho, mas Drácula ordenara que todos fossem levados
para o sótão. A curiosidade aumentou dentro dele. Erguen-
do-se e rumou para a escadaria que o levaria ao pavimento
superior.
Gostava daquela casa. Ela o fazia se lembrar do castelo de Tisza. Fora uma escolha perfeita. Em suas andanças
pelo mundo, naqueles cem anos, pudera conhecer muitos
lugares.
Falmouth era um local tranquilo e adequado. Os veranistas constituíam uma população flutuante a oferecer todas
as vítimas de que Drácula necessitava. Os turistas de inverno supriam as necessidades nesse tempo. A população da
cidade se encarregaria de alimentar Drácula durante o resto
do ano.
Empurrou a porta no fim do corredor e subiu por uma
escada às escuras. Era algo que podia fazer facilmente. A
ausência da luz não o incomodava. Seus olhos o serviam
em qualquer circunstancias.
Abriu uma última porta. Havia uma vidraça molhada a
sua frente, por onde os clarões dos relâmpagos penetravam,
provocando um estranho efeito nos espelhos amontoados
contra as paredes.
Torg suspirou emocionado e procurou o interruptor da
luz. Aquilo era algo que precisava ser bem visto, com todas
as luzes possíveis.
Sua imagem se refletiu nos espelhos, multiplicando-se
infinitamente. Ele caminhou um pouco mais, até estacar diante de um espelho maior.
Olhou-se e uma expressão de desalento tomou conta
de seu rosto. Ali estava a mesma imagem grotesca de sempre, sem uma ruga a menos, sem um defeito a menos.
Apalpou-se, examinando sua pele, olhou-se nos olhos,
abriu a boca assustadora. Era o mesmo e infeliz Torg, deteriorando pelos anos, inutilizado fisicamente, despojado de
toda e qualquer beleza.
Abaixou a cabeça, infeliz. Respirou fundo. Precisava
confiar em seu mestre. Ele lhe prometera um novo corpo,
belo, capaz de atrair as mulheres.
Sem isso, Torg jamais poderia experimentar aquele
prazer antigo, cuja simples lembrança provocava frêmitos
em seu corpo.
Os fatos já se confundiam em sua memória, após tanto
tempo. Ele e Vlad eram amigos, até que a maldição se abatesse sobre eles, unindo-os ainda mais.
A Vlad coube a maldição total. A Torg uma parte...
Mas eram bons tempos, podia se lembrar. As orgias, os festins, os bacanais violentos, onde toda sorte de prazeres era
posta à disposição dos homens da família Drácula, dos amigos, como Torg, e dos convidados.
As mulheres sobravam naquelas festas. A lembrança
de tê-las em seus braços, os lábios devorando aquelas peles
macias e perfumadas, aquelas carnes mornas e apetitosas o
fazia se revoltar contra o destino.
Mas Drácula lhe prometera um corpo novo. Quando o
tivesse novamente, poderia se aproximar daquelas belas e
vivas garotas que circulavam pela praia, com suas roupas
minúsculas e suas peles bronzeadas, exibindo elegância e
provocação.
Recuou lentamente para a porta e desligou a luz. Os
relâmpagos voltaram a se refletir com intensidade nos espelhos, como chamas que brilhassem momentaneamente.
***
Os dois policiais examinando atentamente o conteúdo
daquelas malas. Não restavam dúvidas de que Joan Aberdeen desaparecera por algum motivo misterioso. Suas roupas, suas joias e suas malas demonstravam que ela vinha de
uma família abastada, onde problemas de dinheiro deveriam ser inexistentes.
Além disso, havia coisas que uma garota jamais deixaria para trás, se pretendesse deixar a cidade às pressas.
— Qual é a sua teoria? — indagou o inspetor-chefe a
seu assistente.
Lester acendeu mais de seus cigarros sem filtro, depois foi até a janela. A chuva cessara por algum tempo. A
madrugada avançava tranquilamente agora.
— As coisas que ela deixou... Não sei, Charles. Acho
que ela não fugiu daquela vila para não pagar as despesas.
Por algum motivo ela saiu de lá e não voltou, não por vontade própria, mas por algum imprevisto além...
— Um acidente?
— Talvez... Já tivemos casos de alguns malucos velejando à noite e se deixando apanhar pela corrente, direto
para os recifes.
— Tivemos algum comunicado disso?
— Nos últimos dias, não, mas aqueles recifes são traiçoeiros. Um barco pode afundar ali e ser reduzido a escombros pelas forças das águas...
— Isso pode ter acontecido... Pode imaginar em que
vai implicar uma investigação como está?
— Sugiro começarmos pela companhia de ônibus, pelo trem, mas não sei aonde isso vai levar. Se ela saiu daqui,
junto com tantos outros veranistas, quem se lembrará dela?
— Alguma amiga... Aqueles chalés são próximos.
Basta verificar os registros.
— Cuidarei disso e dos transportes também.
— Sim, mas, antes disso, vamos dar uma olhada no
registro dos desaparecidos mais uma vez. Vamos ver o que
mais está acontecendo por aqui.
— O pessoal lá só chega pela manhã...
— Esperaremos... Ainda tem mais chá?
***
A manhã brilhava radiante sobre Londres, reforçando
o colorido das roupagens vistosas dos Granadeiros, enquanto a banda desfilava diante do Palácio de Buckingam.
Nas festivas lojas de Carnaby Street havia um alvoroço de jovens aproveitando as liquidações de verão. Na
King’s Road, um táxi freou junto ao meio-fio e um homem,
envergando um austero sobretudo, desceu apressadamente.
Por instantes olhou o letreiro do prédio diante dele.
Era uma das mais importes editora do país. Depois, resolutamente, apertou nos braços a pasta de couro que levava e
caminhou para a porta de entrada.
Parecia conhecer aqueles corredores, caminhando daquela forma, com certa ansiedade no rosto envelhecido
prematuramente.
Parou, finalmente, diante da secretária do diretor da
editora. A garota levantou os olhos para ele.
— Sou o Professor Hilgenstiller. O Sr. Donaldson pediu-me que viesse...
— Sim, ele o atenderá num minuto, professor — respondeu a garota, levantando-se e entrando por uma porta.
Momentos depois, retornou e fez um sinal para que o
cientista entrasse. Nervoso, o professor apressou-se em fazer o que lhe fora pedido.
Entrou pela sala mobiliada com gosto e parou diante
da mesa do diretor.
— Como tem passado? — cumprimentou o outro, estendendo a mão.
— Ansioso, Sr. Donaldson.
— Posso compreender — comentou o outro, num tom
de voz indefinível. — Sente-se, por favor — pediu, enquanto apanhava um volume numa de suas gavetas.
Depositou-o sobre a escrivaninha, olhou-o por instantes, depois encarou o professor.
— Professor Hilgenstiller, pelo que li neste livro, posso considerá-lo um dos maiores especialistas em vampirismo da atualidade, mas esta história que me apresentou é irreal demais, fantasiosa, absurda.
— Julga isso uma obra de ficção, Sr. Donaldson?
— E não é?
A expressão do rosto endureceu-se. O professor depositou sua pasta sobre a mesa, abriu-a e retirou alguns papéis. Estendeu-os para o outro.
— Aqui estão as provas dessa... Ficção, caro senhor.
Donaldson apanhou, com certa estranheza, aqueles
papéis, passando a lê-los. Seu rosto incrédulo se cobriu de
dúvidas.
— É a certidão de óbito da jovem que... E do policial
que... Quer me fazer acreditar que tudo que está aqui, neste
livro realmente aconteceu?
— Tão certo como Deus está no céu — respondeu o
professor.
Donaldson voltou a ler os papéis. De alguma forma,
tudo o que estava no livro podia ser provado através daqueles documentos, com exceção da existência daquele misterioso personagem.
— E quanto ao Conde Drácula, professor? Afora esse
detalhe, tudo o mais em sua história pode ser confirmado...
— Há um livro antigo que fala de sua genealogia, mas
não pude trazê-lo. Pertence ao acervo municipal da cidade
de Kizna. Mas a família existiu realmente, bem como o último deles, Vlad Drácula. Um incêndio destruiu a totalidade dos registros da prefeitura da cidade, impossibilitando
qualquer outra comprovação.
O editor reclinou-se em sua poltrona, acendeu lentamente seu cachimbo, depois encarou o professor. Ou aquele
homem era maluco ou muito esperto.
— O atestado de óbito diz que sua filha e o policial
morreram vítimas de um lobo...
— Se eu contasse a verdade, alguém acreditaria em
mim? — respondeu simplesmente.
— É uma boa história, professor, mas é um tipo de literatura que não mais impressiona. Vampiros, lobisomens,
zumbis são, hoje, personagens de desenhos infantis. Não
metem medo em ninguém.
— Eu não quero meter medo em ninguém, senhor.
Quero apenas alertá-los para o que aconteceu. Da mesma
forma como julgaram havê-lo destruído há cem anos, aquele monstro pode não ter sido destruído também agora.
— E onde estaria ele agora? Na Hungria, onde sempre
esteve, longe demais para recuperar nossos leitores. Agora,
se me escrevesse sobre o Estripador...
— Sou um cientista, senhor, e penso que não entendeu
o que pretendo com isso. Acho inútil continuarmos. Permita-me? — finalizou o professor, apanhando os originais do
livro que escrevera e retirando-se.
Já na calçada, parou um instante para respirar. Olhou o
livro. As recordações fatídicas ainda estavam presentes em
sua memória. A morte da filha, a destruição definitiva do
castelo, todas aquelas mortes lamentáveis e um pavor imenso ainda torturava sua alma.
Talvez estivesse à beira da loucura acreditando em tudo aquilo. Jamais conseguiria convencer alguém de sua
credibilidade. Talvez estivesse mesmo maluco.
O melhor a fazer era desistir daquela cruzada inútil e
voltar à Universidade, onde um cargo o esperava desde a
sua volta ao país. Mas a estúpida e torturante morte de Larah ainda pesava em sua consciência, fomentando um ódio
insano contra aquele ser maldito que gerava toda aquela
desgraça.
Um consolo era pensar que o destruíra, atando fogo ao
castelo. Mas, mesmo essa ideia, não era definitiva. A sen-
sação de que lutava contra uma força indestrutível pouco a
pouco se tornava mais forte em seu espírito.
— Deus queira que eu esteja errado! — murmurou ele,
enquanto começava a andar pesadamente pela calçada da
King’s Road.
***
A noite chegara mansamente sobre Falmouth.
As chuvas passageiras haviam se afastado e um céu
limpo se oferecia. Uma lua magnífica se refletia sobre o
mar e se derramava generosa em claridade sobre as colinas,
reforçando o aspecto poético e convidativo da região.
Susan consultou o relógio, depois saiu à janela. A noite estava mesmo linda. Ela bocejou. Tudo estava pacato
demais. Nada de novo acontecia, desde que o outono chegara.
Talvez devesse voltar para Londres, onde as coisas
começavam a acontecer durante o outono. Bocejou novamente e voltou para o centro da sala, deixando o corpo se
acomodar sobre macias almofadas.
O telefone tocou, atrás dela. Estendeu o braço e apanhou-o. Era Mary.
— Algum programa especial esta noite?— indagou
Mary.
— Não, nada de novo.
— Estou com dois cavalheiros que acabaram de chegar de Londres e estão ansiosos para experimentar um barco que compraram. O que me diz de um passeio ao luar esta
noite?
— Como são eles? — retrucou Susan, interessada.
— Muito ricos e generosos. Como se não bastasse, são
bastante simpáticos, o tipo agradável do executivo bem sucedido. O que me diz?
— Parece-me tentador...
— Nós a esperamos no cais, então, dentro de uma hora. Está bem assim?
— ótimo! Vou me trocar e estarei aí a tempo de zarpar
— prometeu, desligando.
Levantou-se lépida e foi para o quarto. Separou algumas roupas apropriadas para aquele tipo de programa, depois se despiu e foi para o banheiro.
Retornou pouco depois, o corpo nu perfumado com
esmero, os cabelos escovados com naturalidade. Vestiu-se,
em seguida, depois apanhou sua bolsa.
Deixou o chalé e foi apanhar o carro. Quando estava
na estrada, rumando em direção à cidade, lembrou-se daquela desagradável sensação da noite anterior.
Ainda levaria alguns minutos para atingir aquele trecho do caminho, mas um arrepio instintivo a fez morder o
lábio inferior com apreensão.
— Ora, Susan! — exclamou, tentando sorrir.
Por precaução, porém, fechou os vidros do carro. Depois ligou o rádio. A música suave afastou aqueles pensamentos assustadores.
A calma da noite contagiou-a. O brilho da lua sobre as
árvores quase sem folhas provocava um efeito bonito e sugestivo.
Susan cantarolou, pensando no programa daquela noite. Estava, mesmo, precisando de algo como aquilo. Uma
noite bem divertida, com boas companhias era tudo que
precisava para se sentir viva.
Repentinamente, fazendo seu sangue gelar e um arrepio percorreu-lhe a espinha, qualquer coisa grande e repugnante esvoaçou ao lado do carro.
Tudo não durou um décimo de segundo, mas Susan
jamais se viu tomada de tanto pavor. Seu pé comprimiu o
pedal do freio, fazendo o veículo derrapar perigosamente
sobre os pedregulhos da estrada, atravessando-a.
Uma segunda vez aquela sombra assustadora passou
ao lado do carro, fazendo a garota se assegurar de que não
era apenas uma sensação, mas algo real. Na posição em que
o carro se encontrava, o melhor a fazer era endireitá-lo e
rumar de volta para casa. Jamais poderia atravessar aquele
bosque novamente. Não importava o que fosse aquela sombra. Susan não queria revê-la.
Acelerou o veículo, afastando-se dali, mas aquela sensação sufocante de estar sendo espreitada e seguida gelava
sua medulo e punha um grito atravessado em sua garganta.
Mary e os cavalheiros que a desculpassem, mas naquela noite Susan não seria uma boa companhia.
CAPÍTULO 3
Susan certificou-se de que portas e janelas estavam
bem trancadas, depois apanhou uma garrafa de gim e serviu
uma dose generosa.
Suas mãos tremiam ao levantar o copo à altura dos lábios. Batidas na porta a fizeram estremecer, derrubando o
conteúdo do copo sobre o tapete.
Recuou lentamente, o pavor aumentando dentro de si.
Olhou o telefone. As batidas insistiram, firmes e fortes na
madeira da porta, ecoando nos tímpanos da garota como a
pior das ameaças.
— Srta. Susan! — Chamou uma voz masculina, ligeiramente rouca, mas agradável e antiga.
— Quem está aí? — animou-se a indagar.
— Meu nome é Vlad Alucard, nós nos conhecemos no
Old Fisherman, lembra-se?
Por momentos ela permaneceu estática, depois, num
gesto de pura vaidade, correu até o espelho e olhou-se. Sorriu feliz. Estivera certa o tempo todo. Aquele homem belo e
misterioso que se sentava perto da porta olhava para ela.
Foi até a porta, soltou o fecho de segurança, depois girou a chave. Abriu-a lentamente. Ali estava ele, belo e sedutor, vestido de preto.
Vlad sorriu e seus olhos se fixaram nos olhos dela.
Susan sentiu um arrepio de prazer percorrer seu corpo jovem e provocante.
— Eu estive na boate e não a vi. Sua amiga me deu o
endereço.
— Refere-se a Mary?
— Sim.
— Deve ter custado muito a ela — sorriu a garota,
dando-lhe passagem.
O homem passou por ela, olhando as paredes da sala.
Após fechar a porta, Susan se apoiou à madeira para olhar
aquela figura máscula e fascinante.
A cor preta caía-lhe muito bem, ressaltando aquele ar
misterioso e quase sinistro.
— Quer tomar alguma coisa? — indagou ela.
— Não obrigado! Você estava de saída? Não estou incomodando, estou?
— De modo algum. Eu tinha um compromisso, mas
acabei de cancelá-lo.
Vlad sentou-se no amplo sofá. Por instantes Susan ficou parada diante dele, depois se sentou ao seu lado, observando as maneiras elegantes e sóbrias daquele homem.
Ele a examinou atentamente, sorrindo misteriosamente, como se antegozasse algum secreto prazer. Sua mão estendeu-se, pousando sobre o braço de Susan.
Um arrepio instintivo percorreu seu corpo. Aquela
mão era fria como o gelo, mas seu toque era sensual, dominador, como se uma espécie de energia interior emanasse
daqueles dedos.
Olhou-o nos olhos. Vlad sorriu, enquanto a puxava
lentamente para si, Susan não resistiu não podia resistir,
jamais conseguiria resistir.
O fascínio daqueles olhos roubava-lhe a vontade, como se a devassasse interiormente, descobrindo suas fraquezas.
Próximos, muito próximos estavam seus rostos agora.
Lentamente os olhos de Susan foram se fechando, enquanto
se entregava à magia daqueles braços que rodeavam seu
corpo.
Vlad resvalou seus lábios pela face da garota. A cabeça de Susan pendeu para trás. Seu alvo e torneado pescoço
se expôs. Os olhos dele se cravaram naquela veia latejante
e intumescida.
Ele estremeceu. Seus olhos se abriram desmedidamente. Estrias sanguíneas desenharam-se neles. Sua boca roçou
o pescoço da garota. Suas mãos apertaram-na com mais
força.
Lentamente presas pontiagudas e enormes foram sendo descobertas em suas gengivas. Um frêmito excitado percorreu o corpo do vampiro. As presas roçaram a pele da garota, arrancando um filete de sangue que foi sugado avidamente.
O telefone tocou, estridente. Susan libertou-se dos
braços de Drácula e pôs-se em pé num salto. Levou a mão
ao pescoço. Depois olhou horrorizada os lábios lambuzados
de sangue.
— Que diabos você pensa que...
A campainha soou novamente. Drácula pôs-se em pé
num salto, os braços abertos prestes a envolver a jovem,
que recuou para a porta do quarto, batendo-a e trancando-a
nervosamente.
Susan não conseguia compreender. Aquela dor em seu
pescoço, o sangue nos lábios dele, a campainha soando.
Recuou até tropeçar na cama e cair sobre ela.
O quarto estava às escuras. O pavor tomou conta dela.
Esperou, a qualquer momento, que ele tentasse arrombar a
porta. Um silêncio mortal e fúnebre, no entanto, pairou
dentro de casa.
O telefone cessara de tilintar. Susan levantou-se lentamente, olhos fixos na porta. Qualquer coisa morna e
constante escorria entre seus dedos.
— Oh, Deus! — exclamou ela, ao certificar-se de que
o sangue escapava livremente pelo seu pescoço.
Qualquer coisa brilhou diante dela, junto à porta. Uma
fosforescência foi crescendo, crescendo, até assumir o formato de um corpo masculino.
Por instantes ela percebeu o rosto de Vlad Alucard,
antes que a escuridão voltasse. Ela recuou para a cama novamente. O som apressado e pesado de uma respiração animalesca era ouvido nitidamente.
Olhou a janela. Poderia abri-la e gritar por socorro,
mas era como se compreendesse a inutilidade de seu gesto
ou alguma coisa a envolvesse e dominasse sua vontade.
O cheiro adocicado de seu sangue assanhou o vampiro. Ele caminhou para a garota, envolvendo-a em seus braços. Susan ficou estática quando aquele hálito apressado e
frio varou seu pescoço.
Drácula esfregou-se a ela numa volúpia indescritível,
enquanto seus lábios pousavam sobre a ferida sangrenta e
ele sugava com avidez e prazer a seiva da vida.
***
Na chefatura, Charles terminava de tomar seu chá,
quando Leste chegou. Por instantes o assistente foi até a janela e olhou a noite bela e convidativa.
— Demônios, Charles, mas gostaria de morrer numa
noite dessas! — exclamou.
— E o que há de especial com esta noite?
— Já viu lua mais bonita e mais radiante?
— Estamos na cheia, não?
— Claro que sim, inspetor-chefe — sorriu Lester, após pendurar seu casaco. — Alguma novidade.
— De minha parte, nada. E você?
— Ninguém na rodoviária e na ferroviária se lembra
dela. Pode ter pegado uma carona, se foi embora. Mas já eliminamos essa hipótese, não?
— Precisamos checar todos os detalhes, meu amigo.
Falei novamente com a família. Ela me deu alguns nomes
de amigos. Entrei em contato com a Scotland Yard e pedi
que localizasse alguns deles.
— Uma boa ideia. Talvez a garota tenha ido com algum amigo para casa e... Eu duvido, inspetor. Eu duvido.
— Está tendo o mesmo pressentimento que eu, não?
— Sim, parece-me que está no ar que ela morreu ou
foi morta...
— Acho que devemos reunir numa só investigação os
outros desaparecimentos. Quatro garotas ao todo, todas jovens e bonitas. Veja essas fotos — disse, indo apanhar um
envelope em sua mesa.
Estendeu-o ao assistente. Lester o abriu e observou as
fotografias. Eram, realmente, belas garotas.
— Vou mandar fazer algumas copias dessas fotos e
soltar nossos cães de caça pela cidade. Talvez alguém, em
alguma parte, as tenha visto.
— Já fiz isso, Lester.
— E descobriu alguma coisa?
— Parece-me que todas elas frequentavam o Old Fisherman. É o único detalhe comum entre todas.
— O Old Fisherman... Mas aquilo é um local de classe, muito caro e...
— Talvez drogas... O que me diz?
— É possível. Vai investigar o local?
— Já está sendo feito.
— Você pensa em tudo, não?
— Por isso sou o inspetor-chefe, Lester — sorriu
Charles Derby, indo apanhar mais um pouco de chá.
— Para quem não tinha nenhuma novidade, você está
me surpreendendo — ironizou o assistente, indo apanhar
sua xícara.
***
Torg jamais compreenderia aquela metamorfose. As
cortinas esvoaçaram mais alto numa das janelas e aquele
vulto negro e horrendo entrou, as asas fechadas como uma
flecha.
Rente ao chão, elas se abriram e o enorme morcego
planou até junto da parede. Ali, uma fosforescência envolveu-o até que a forma negra brilhasse intensamente, cres-
cendo, em seguida, até adquirir o formato de um ser humano.
Quando a luz se foi, Vlad Drácula caminhou ao seu
encontro. Os olhos injetados do vampiro provavam que satisfizera sua necessidade de sangue.
— Há uma vila de chalés à beira-mar, umas duas milhas daqui. No chalé número cinco há uma garota. Você sabe o que fazer com ela.
— Sim, mestre. Irei logo mais — respondeu o corcunda, com indisfarçável emoção. — Ainda vai sair?
— Sim, talvez vá ate a cidade. Aquele local me atrai.
Há garotas por lá e preciso encontrar minha próxima vítima. Não sabe como é emocionante conquistá-las pelo olhar,
arrebatá-las e deixa-las em suspense, aguardando uma palavra apenas de meus lábios para se jogarem aos meus pés
— disse o vampiro, com orgulho.
A expressão do rosto de Torg se tornou, contra sua
vontade, feroz. Ouvir Drácula falar daquele modo era como
aguilhoar com ferro quente seu coração torturado.
Só então Drácula percebeu a inveja estampada nos olhos dele. Sorriu, exibindo as presas enormes e brilhantes.
— Fique tranquilo, meu bom Torg. Vamos encontrar
um bom corpo para você, esteja certo disso. A eternidade
nos espera, o tempo não importa. Por que tanta impaciência? Não vale a pena esperar o que há de melhor?
— Claro que sim, mestre — concordou, submisso.
Ia caminhar na direção da porta, mas Drácula o deteve
com um gesto. O vampiro caminhou junto aos móveis, esfregando o indicador sobre a poeira acumulada.
— Torg, sou um homem de classe. Se pudesse imaginar minha mortal aversão por poeira, manteria isso brilhante, mas... Sei que pretendia dizer. É trabalho feminino, não?
Pois contrate uma empregada.
— Isso é perigoso, mestre. Ela pode ser bisbilhoteira e
acabar encontrando-o...
— Você a vigiará... Apenas isso, meu amigo. Você a
vigiará e a deixará fazer seu trabalho. Mantenha-a longe do
corredor da adega e não teremos problemas. Alias, isso servirá para dar uma aparência ainda mais respeitável a nossa
casa.
— Eu procurarei uma agência pela manhã...
— Ótimo. Agora vá cuidar do corpo daquela garota.
Aproveite enquanto a rigidez e a frieza não tiraram de suas
carnes aquele sabor que você aprecia. E ao invés de cravarlhe uma estaca no coração, devore-o.
***
O carro percorria velozmente a estrada, atravessando o
bosque. Por momentos Mary lembrou-se do que Susan dissera a respeito daquele local. À luz da lua aquelas árvores
desfolhadas não pereciam tão assustadoras. Numa noite escura, no entanto, tudo poderia ser diferente.
Os cavalheiros estavam em silêncio. Um deles dirigia
com atenção, enquanto o outro se sentava ao lado de Mary,
mantendo o respeito aparentemente.
Talvez ele estivesse levando em consideração a preocupação da garota pela amiga. Haviam aguardado no cais.
Como Susan não apareceu, Mary ligara para o chalé.
Não obtendo resposta, julgou que a amiga estivesse a
caminho. Uma hora mais se passou e Susan não apareceu, o
que a pôs apreensiva.
Momentos mais tarde chegavam à vila. Susan apontou
o chalé ocupado por Susan e o motorista manobrou até lá.
— Ela não saiu, ali está seu carro — apontou Mary.
— Talvez sua amiga tenha desistido do programa —
disse um deles.
— Acho estranho, então, que não tenha atendido ao
telefone...
— Talvez esteja com alguém... Sabe somo são essas
coisas, não?
— Vamos nos certificar, então — decidiu Mary, descendo e indo até a porta.
Hesitou, por instantes, antes de bater. Susan poderia
estar acompanhada e seria desagradável interromper algum
bom momento.
Pensou que seria melhor, portanto, deixá-la em paz, ao
olhar o carro de Susan, qualquer coisa a alertou. Os faróis
ainda estavam acesos e a porta estava aberta.
Intrigada, foi até lá, Susan jamais deixaria a chave no
contato, a menos que alguma coisa tivesse feito sair do veículo às pressas.
O farol ligado, a porta aberta e as chaves ainda ali pareciam confirmar essa hipótese.
— Algo errado, Mary? — indagou um dos homens,
descendo.
— Não sei... Parece que há qualquer coisa estranha
por aqui — afirmou, batendo resolutamente na porta.
A batida de sua mão fechada, a porta abriu-se lentamente. Um arrepio gelado percorreu a espinha de Mary.
— Susan! — chamou ela, entrando com precaução.
Nenhuma resposta. Olhou a porta do quarto. Foi até lá
e bateu.
— Susan! — insistiu, experimentando o trinco.
A porta estava fechada por dentro. Os dois acompanhantes se aproximaram, compartilhando de sua preocupação.
Os dois cavalheiros se entreolharam, apreensivos agora por seus próprios motivos.
— Mary, pretende mesmo fazer isso?
— Não tenho alternativa, tenho? Minha amiga está lá
dentro e não sei o que aconteceu com ela.
— Sim, mas deve compreender que isso seria terrivelmente embaraçoso para mim e Fred...
— Sim, claro — concordou Mary, conseguindo ainda
raciocinar com clareza. — Vocês podem ir, eu cuidarei de
tudo por aqui.
— Acha que pode fazer isso sozinha?
— Sim, não se preocupem.
Naquele momento, oculto atrás de uma sebe, Torg olhava preocupado o que acontecia. Viu o gerente do local
se encaminhar naquela direção. O que não devia acontecer
iria ter lugar.
A garota seria descoberta e isso provocaria boatos e
comentários comprometendo a discreta atuação de Drácula.
Mas nada havia que pudesse ser feito. O melhor era sair dali o mais depressa possível. Os soldados chegariam em
pouco tempo.
Quando os dois cavalheiros deixavam o chalé, cruzaram com o gerente do estabelecimento.
— O que está havendo por aqui?
— A garota lá dentro vai lhe explicar tudo, senhor —
disse Fred e os dois caminharam rapidamente para o carro.
Ao vê-lo chegar, Mary suspirou aliviada.
— O senhor tem uma chave-mestra de todos os chalés?
— Sim, está aqui comigo. O que houve, afinal?
— Minha amiga está trancada ali dentro e não responde aos meus chamados. Acha que pode abrir?
O gerente aproximou-se da porta e bateu fortemente
na madeira.
— Srta. Portland, está me ouvindo?
— Não adianta chamar. Abra logo, por favor! — suplicou Susan.
CAPÍTULO 4
O quarto estava às escuras. Á medida que a porta se
abria, a luminosidade penetrava, revelando os contornos de
um corpo sobre a cama, numa grotesca posição.
— Susan! — chamou Mary, trêmula e angustiada, tateando a parede à procura do interruptor.
A luz banhou, então, o corpo de Susan, imóvel, os olhos abertos numa expressão de supremo terror. Mary levou
as mãos aos lábios e seu grito estridente cortou o silêncio
da noite.
O gerente aproximou-se do corpo e fitou-o. Não havia
dúvidas, Susan Reading estava morta. Era o pior dos transtornos para um homem em sua condição.
Mary ficou parada, apoiada contra a parede, o eco do
próprio grito soando em seus ouvidos, cortando, enlouquecendo.
— Está morta — disse o gerente. — Por que aqui?
Logo aqui? — resmungou, enquanto ia para a sala, junto do
telefone.
Mary olhou o corpo. Não podia acreditar que Susan
estivesse morta. Era um pesadelo, uma piada, alguma coisa
de mau gosto, mas Susan não podia ter morrido.
Seu olhar, então, fixou-se naqueles orifícios no pescoço da amiga. A macha ligeiramente arroxeada circundavase, dando a impressão de que Susan recebera, ali, uma pancada.
Olhou a janela, depois a porta. Estava tudo trancado.
Como poderia ter ocorrido? Um pavor indescritível tomou
conta dela ao olhar as portas do armário. Gritou, novamente, correndo para a sala.
O gerente soltou o fone e correu ao encontro dela, segurando-a com firmeza.
— O que foi? — indagou.
Pessoas chegavam à porta e observavam com curiosidade e medo o que acontecia.
— Ele está lá dentro, eu tenho certeza... — gritou
Mary.
— Ele quem?
— O assassino... Só pode estar oculto no armário...
Ele está lá — gritou Mary, livrando-se dos braços que a
prendiam. — Alguém aí faça alguma coisa!
O gerente olhou para as pessoas à porta. Dois homens
avançaram. Um deles tinha uma arma.
— O que aconteceu, afinal?
— Encontramos a garota morta lá dentro. A janela está
trancada. A porta também estava quando chegamos. A garota aí tem razão, o assassino deve estar oculto lá dentro —
disse ele, apanhando um pesado cinzeiro.
Os três homens entraram no quarto. O que tinha a arma ficou na defensiva, apontando-a para uma das portas do
armário. O gerente foi até ela e abriu-a num golpe. Estava
vazia.
Repetiram a operação em todas as portas. Vasculharam o local e não encontraram vestígio algum do assassino.
Momento depois a sirena se aproximando indicou a chegada da polícia.
O inspetor-chefe e seu assistente afastaram os curiosos, depois fecharam a porta.
— Muito bem, o que está havendo? — indagou Charles, enquanto Lester ia ao telefone e solicitava o envio de
um carro da polícia técnica e uma ambulância.
— Lá dentro — apontou o gerente.
Os dois policiais entraram no quarto. Charles estava
acostumado aos crimes mais violentos, mas jamais pudera
permanecer insensível diante da morte de uma bela garota.
Inclinou-se sobre o corpo. Lester fez o mesmo, apontando para a marca no pescoço.
***
Dora O’Hara torceu para que suas amigas chegassem
logo e a vissem na companhia daquele homem de que tanto
falavam. Ambas estiveram erradas o tempo todo.
— Não bebe nada, Vlad? — indagou ela, com uma intimidade que deliciou Drácula.
— Não, jamais bebo — respondeu ele, olhando-a nos
olhos, dominando-a, sentindo-a sua, a sua mercê, a sua disposição.
A caça era fácil e apenas o prazer de retardar ao máximo o momento do ataque compensava. Suas vítimas eram
atraídas para ele, ofereciam-se livremente.
Enquanto seus instintos não reclamassem nova presa,
podia se divertir com elas como o gato esperto brinca com
o rato atordoado.
Dora sorriu e inclinou a cabeça sobre a mesa. Naquele
instante, um crucifixo pendeu de seu pescoço, produzindo
um frêmito horrorizado do vampiro.
A visão daquela cruz minava suas forças incrivelmente e, por mais que se esforçasse, não conseguia desviar o
olhar dela.
Assim como o fascínio que atraia suas vítimas para a
destruição, a cruz parecia atraí-lo ao próprio fim. Seus olhos injetaram-se e ele os cobriu com as mãos.
— Algo errado? — indagou Dora, endireitando o corpo.
A cruz resvalou pelo decote e ocultou-se entre seus
seios. Uma sensação de alivio tomou conta do vampiro e
ele descobriu a visão.
— Um ligeiro mal-estar — desculpou-se ele, mortalmente pálido. — Não se preocupe, estarei bem num momento.
— Tem certeza que não quer beber algo? Pode ser um
problema de pressão...
— Jamais tive isso — sorriu ele, já à vontade.
Olhou-a nos olhos, fascinando-a, excitando-a com aquele olhar animal e possuidor que parecia desvendar os
mistérios mais ocultos daquele coração feminino.
— Gosta de joias, Dora?
— Sou uma garota... Garotas adoram joias — comentou ela, com um sorriso coquete nos lábios.
— A cruz que você usa...
— É uma joia de família... Não muito valiosa, mas ganhei-a de minha avó. Jamais a tirei do pescoço...
— Nem para trocá-la por um colar de... Esmeraldas,
digamos? O verde casa-se bem com sua pele morena —
disse ele, a voz rouca e sensual penetrando os ouvidos da
garota como a carícia mais alucinante.
— Está me propondo essa troca?
— Você faria? — retrucou ele, estendendo a mão e tocando o braço da garota, deslizando-a sobre a pele macia.
— Que mão fria! Você tem problemas de pressão baixa. Fui enfermeira por algum tempo, sei como são essas
coisas. Num homem como você, isso pode trazer consequências desagradáveis — riu ela, com malícia.
— Absolutamente — riu ele em resposta, adorando
aquele tom atrevido e espontâneo da garota.
Olhou ao seu redor. Na pista, alguns casais se contorciam ao som da música alucinante. O mundo mudara muito,
os costumes haviam evoluído para uma deliciosa licenciosidade. Drácula apreciava tudo aquilo, como apreciava estar vivo após tanto tempo.
Havia muito ainda a ser descoberto, mas não havia
pressa alguma em seu corpo. Tinha a imortalidade e isso
lhe dava todo o tempo que quisesse para descobrir e gozar
todas aquelas mudanças ocorridas e as que ainda estavam
por vir.
— Mas falávamos sobre joias — lembrou-o Dora.
— Oh, sim! Também possuo algumas joias de família,
mas sou muito pródigo com elas. E continuo achando que o
colar de esmeraldas ficaria magnífico em seu colo moreno e
belo — sorriu ele, sedutoramente.
— Isso é muito lisonjeiro...
— É uma verdade! Gostaria de me ajudar nisso?
— Ajudá-lo? Em quê?
— Em provar que jamais me enganei entre a perfeita
identidade que há entre você e aquelas esmeraldas. Na próxima sexta-feira, em minha casa. O que me diz?
— E onde mora?
— Dê-me seu endereço e mandarei meu motorista apanhá-la — sorriu ele, em regozijo.
***
O corpo foi levado para a ambulância. Charles terminou de falar com o legista, depois voltou para o interior do
chalé, onde Lester conversava com Mary, agora mais tranquila após o calmante que lhe fora ministrado.
Ao perceber a aproximação de seu chefe, Lester se ergueu e foi ao seu encontro.
— E então, o que achou?
— Eu lhe digo o que achei. É um blefe, uma piada de
mau-gosto, uma farsa, uma brincadeira de algum maníaco
louco querendo chamar a atenção. Essa garota não foi morta aqui, disso estou certa. A total ausência de sangue em
seu corpo prova isso. Alguém a matou em alguma parte por
aí, trouxe-a para cá e trancou-a no quarto para nos confundir.
— Mas encontramos a chave no interior do quarto.
— Ele pode ter usado outra. Uma chave-mestra, por
exemplo.
Lester pensou no que Charles dissera. Uma expressão
intrigada desenhou-se em seu rosto e o inspetor-chefe deduziu qual seria a conclusão a que ele chegaria.
— Esta é a mesma vila onde morava Joan Aberdeen.
Acha que o gerente...
— E por que não? Vamos investigá-lo com cuidado.
Dispunha de todo acesso a cada um dos chalés. Pode ter
matado Joan e feito o mesmo com Susan Portland...
Lester encarou-o e a expressão intrigada persistia, agora acentuada em seu rosto.
— Mas qualquer coisa não se encaixa agora... Por que
ele a traria aqui, se fez o mesmo com Joan?
— Eu poderia lhe dar mil e uma explicações científicas, mas acho que pode deduzir todas elas. Um maníaco
tem necessidade de chamar a atenção. Suponhamos que
seus crimes anteriores não tenham produzido o efeito que
desejava, Ele pode ter mudado, então, sua forma de agir.
— Pode ser... Mas não consigo vê-lo como um assassino. Esse gerente pode ser um ladrão, um alcoviteiro, mas
não tem aparência alguma de assassino.
— E como pode afirmar isso?
— Não sei... Apenas sinto — disse Lester, deixando-o
e indo até junto de Mary.
— Quer que a leve para casa, senhorita?
— Sim, por favor! — aceitou ela.
Quando deixaram o chalé, uma viatura chegava com
diversos policiais do grupo de apoio. Charles ordenou-lhes
que vasculhassem toda a redondeza à procura de pistas, depois foi para o carro, onde Lester e a garota já se encontravam.
Quando retornavam, ao passar pelo bosque, Mary se
lembrou do que Susan dissera a respeito daquele lugar e um
arrepio instintivo percorreu seu corpo, fazendo-a se encolher toda.
— Algo errado, senhorita? — observou Lester.
— Não sei, foi algo que Susan me disse ontem a respeito desse lugar...
— E o que foi?
— Ela parecia assustada... Disse que tivera a nítida
sensação de estar sendo seguida por alguma coisa indistinta
que voava ao seu redor dos carros.
— Ora, por favor, Srta, Reading! — repreendeu-a
Charles, aborrecido.
Depois, arrependido da observação, desculpou-se. Um
detalhe veio-lhe à mente e ele indagou à garota.
— Sua amiga costumava frequentar o Old Fisherman?
— Sim, nós nos encontrávamos sempre lá — respondeu Mary, sem entender muito bem a razão da pergunta.
Lester e Charles, no entanto, trocavam um olhar significativo.
***
Quando Drácula voltou para casa, naquela madrugada,
encontrou Torg a sua espera. O corcunda parecia apreensivo.
— Torg, a preocupação o torna ainda mais feio, meu
fiel servo — observou o vampiro.
— Mestre, não pude me aproximar daquela garota...
Quando cheguei, já haviam descoberto o corpo...
— Isso não o isenta de sua missão. Você sabe o que
tem de fazer. Faça-o, portanto. Não me aborreça com detalhes.
— Sim, mestre...
— E não se esqueça de contratar uma zeladora para
esta casa. A visão dessa poeira me irrita — gritou o vampiro, rumando para o corredor da adega.
Caminhou à vontade por entre as paredes frias, até sua
sala. Aproximou-se do esquife. Tocou o pequeno travesseiro com uma espécie de reverência no gesto.
Por momentos a lembrança da antiga nobreza dos
Drácula brilhou em sua memória. Foram ótimos tempos,
mas haviam passado. Ele era o último dos descendentes. A
ilustre família tinha nele, preservada até o fim dos tempos,
a estirpe.
Estendeu-se no ataúde, acomodando-se para repousar.
A escuridão tétrica era agradável aos seus sentidos. Ele
pensou em Dora e a visão daquele crucifixo em seu pescoço e fez estremecer.
Era um imortal, mas vulnerável. Uma simples cruz
como aquela poderia reduzi-lo a cinzas por mais cem anos
ou, talvez, para todo o sempre.
Bastaria que alguém as espalhasse. Jamais poderiam
ser reunidas. Torg estaria sempre por perto para evitar isso,
mas era algo que poderia acontecer.
Seus olhos se fecharam. Ele adormeceu. Uma figura
sinistra desenhou-se na porta da sala. Era Torg se certificando do repouso do mestre.
Quando se viu satisfeito, o corcunda retornou para a
sala. Tinha uma missão a cumprir e, quanto mais cedo a
terminasse, melhor.
Foi retirar o carro da garagem. Amanhecia, quando
partiu na direção da cidade.
***
Apesar da noite atribulada, Charles chegou cedo à
chefatura. Lester já estava lá, aguardando-o com uma xícara de chá.
— Quer estar presente durante a necropsia? — indagou Lester.
— Sim, vamos para lá. Antes acho que devemos informar a família da garota. Você tem aí o endereço que encontramos entre os documentos?
— Sim, está aqui — disse Lester, passando sua caderneta de notas para ele.
Charles foi ao telefone. Antes de discar, pensou em
como aquela pobre família teria um mau começo de dia.
Era sua obrigação, porém.
Após o comunicado, que o deixou bastante deprimido,
ele e Lester foram para a morgue, onde seria realizada a autópsia.
Quando chegaram, o médico encarregado estava se
preparando para iniciar sua macabra operação.
— Tem estomago para isso, inspetor? — ironizou o
doutor.
— Estive na guerra, vi coisas piores — informou
Charles, enquanto caminhavam para a sala onde estaria o
cadáver.
— Não sabia que era tão velho — comentou Lester,
em tom de brincadeira.
— Nem que você era tão observador — retrucou o outro.
Entraram em uma porta. Havia uma mesa de mármore
no centro. Ao fundo, simetricamente dispostas, estavam as
gavetas do congelador onde eram conservados os cadáveres.
— Ordenei que deixassem o cadáver aqui — disse o
médico, aborrecido, indo até as gavetas e olhando-as confuso. — Onde poderiam tê-lo posto — indagou-se, abrindo
uma delas.
— Quer ajuda, doutor? — indagou Charles, aproximando-se na companhia de seu assistente.
— Esses incompetentes... Ordenei-lhes que deixassem
o corpo sobre a mesa... Malditos bastardos! — irritou-se o
homem abrindo e fechando as gavetas com violência.
Quando abriu a última delas, virou-se e encarou os
dois policiais com surpresa.
— Demônios! O que está havendo aqui, afinal?
— Onde está o cadáver? — indagou o inspetor.
— É o que pretendo saber. Na certa aqueles malditos o
deixaram dentro da ambulância. Hoje em dia não se pode
confiar em mais ninguém — afirmou o médico, deixando a
sala.
Charles e Lester o seguiram incontinenti. O médico
avançou pelo corredor, na direção da garagem.
— Há algo em especial que deseja que eu observe neste caso?
— Sim, doutor. Quero que procure traços de drogas,
qualquer uma delas.
— É um trabalho minucioso.
— Estou certo que pode fazê-lo — afirmou Charles.
CAPÍTULO 5
De volta à chefatura Charles e Lester estavam boquiabertos com o que havia ocorrido. O cadáver da garota simplesmente desaparecera. Sentados frente a frente, agora, os
dois policiais não conseguiam pensar numa explicação
plausível para o caso.
O motorista da ambulância e seu auxiliar juravam haver deixado o corpo na mesa da morgue. O vigia jurava não
haver se afastado dali a não ser pela manhã, em seu horário
normal.
— deve haver uma explicação! — afirmou Charles,
como se procurasse convencer a si mesmo dessa afirmação.
— Sim, deve haver — respondeu Lester, hesitando. —
Vou apanhar um pouco de chá.
Quando retornou, momentos mais tarde. Charles estava debruçado sobre um bloco de notas e havia rabiscado ali
algumas observações a respeito daquele caso.
Aceitou a xícara que o assistente lhe estendeu, tomou
um gole, o depois encarou.
— Vejamos, Lester, o temos até agora. Desaparecimentos inexplicáveis. Dois deles ligados àquela vila. Outros dois sem ligação alguma, de garotas que estavam hos-
pedadas em outros pontos da cidade. Duas delas, com certeza estão mortas. O mesmo pode ter acontecido com as outras. E o que temos de comum entre todos esses acontecimentos.
— A única ligação entre todas é que frequentavam a
boate de Old Fisherman.
Charles pensou por instantes, depois vasculhou sua
mesa à procura de alguma coisa. Não encontrando o que
buscava, tomou o telefone e ligou um número, ordenando a
um policial que trouxesse rápido o relatório a respeito de
suas observações.
— É o Larry, mandei-o vigiar o Old Fisherman — explicou a Lester, após desligar.
Imediatamente discou outro número. Era do departamento técnico, onde indagou a respeito do que haviam recolhido na noite anterior, na cena do crime.
— Nenhuma pista realmente?— indagou, ao obter a
resposta.
Ao desligar, havia desalento e confusão em seu rosto.
Encarou o assistente.
— Está tudo muito intrigante por aqui, não acha?
— Sim, a começar pela maneira como a garota foi
morta. Foi uma pena termos perdido o corpo. Acho que encontraríamos nele algumas respostas.
— Penso que traços de droga. Tem que ser a única explicação! — explodiu Charles, esmurrando a mesa.
Alguém bateu na porta. Ele ordenou rispidamente que
entrasse. Era Larry, o policial que vigiava o Old Fisherman,
trazendo seu relatório do dia anterior.
Charles ordenou-lhe que continuasse o trabalho, após
observar o lacônico conteúdo do relatório e passá-lo a Lester.
— Nada a comunicar! — leu o assistente.
— E o pessoal das fotos?
— Deve estar preparando os relatórios.
— É nossa única chance de encontrar um começo em
tudo isso — disse Charles, sentando-se e acendendo seu
cachimbo.
***
Dois dias após aqueles misteriosos acontecimentos em
Falmouth, o Professor Hilgenstiller tomava seu desjejum,
enquanto lia o Times, de Londres.
Numa das páginas internas, uma pequena nota comentava aqueles misteriosos desaparecimentos ocorridos em
Falmouth. Chamou-lhe a atenção, porém, o fato de que os
corpos de duas garotas mortas não haviam sido encontrados
ainda, supondo-se que as outras duas desaparecidas houvessem tido o mesmo destino.
Continuou com interesse. Um corpo fora encontrado
dentro de um aposento fechado, com estranhas marcas no
pescoço e nenhum sangue nas veias.
A xícara de chá em suas mãos estremeceu, derramando algumas gotas sobre a toalha impecável. Um calafrio gelou-o até a medula e os trágicos acontecimentos de Kizna
voltaram-lhe à mente.
A nota nada mais mencionava e havia um tom de galhofa em todo o artigo, como se o jornal zombasse da incapacidade da polícia em chegar a alguma conclusão aceitável.
Entendeu que o mesmo espanto que parecia dominar
aquelas pessoas já fora experimentado por ele durante aquela trágica experiência.
Releu o parágrafo que falava da garota morta, com estranhas marcas no pescoço e nenhum sangue. O quarto fechado, a expressão de terror que na certa se estampara em
seu rosto ao perceber a aproximação daquela fera nascida
nas profundezas do inferno.
Pôs-se em pé, resoluto. Naquele dia teria um compromisso importante. Iria se encontrar com o diretor da Universidade de Oxford para discutirem as bases de seu trabalho. Lecionar sociologia, naquele momento seria impossível.
Precisava ir a Falmouth e acalmar suas apreensões.
Talvez houvesse lá um louco apenas, mas essa hipótese não
encontrava guarida em seu espírito.
Lera sobre vampiros, sabia mais do que mortal algum
jamais soubera. Compreendia quão ingênuas e, com certeza, inúteis haviam sido as tentativas de eliminar Drácula.
Era preciso mais que fogo num castelo para expulsá-lo
para sempre deste mundo. Era preciso estar presente, observá-lo se retorcer e se consumir nas chamas infernais que
corriam em suas veias.
Suas cinzas deveriam ser espalhadas pelo mundo, um
punhado em cada recanto mais escondido, para que jamais
pudessem ser reunidas outra vez.
Sim, precisava ir a Falmouth. Enquanto houvesse uma
possibilidade de Drácula estar vivo em alguma parte, ele
não poderia descansar.
A alma da filha clamaria para sempre por vingança e
justiça. As vítimas jamais encontrariam paz. A humanidade
nunca mais estaria segura com aquele monstro à solta.
Foi até sua biblioteca e localizou Falmouth no mapa.
Tomaria um trem direto até Truro. Dali apanharia outro em
direção a Falmouth. Naquela mesma tarde estaria lá.
***
Dora O’Hara abriu o envelope e retirou a fotografia,
levantando-a diante dos olhos. A decepção estampou-se em
seu rosto, substituída, logo depois, por uma expressão irritada.
— Garota idiota! — exclamou, referindo-se à fotógrafa que circulava por entre as mesas do Old Fisherman.
Pedira a ela que a fotografasse em companhia de Vlad
Alucard. Pensou em Susan Portland, no terrível destino que
lhe fora reservado. Estava chocada ainda com o que acontecera. Olhou mais uma vez a fotografia. Como aquele fotografa poderia ter sido tão idiota?
Ali estava ela, sozinha na mesa. Como poderia mostrar
a foto a alguém e dizer que esteve com Vlad? Jamais acreditariam.
Era um trunfo que não poderia passar em brancas nuvens. Sim, alguém precisava saber que estivera com ele e
que, naquela noite, iria ao encontro dele em sua casa, uma
bela mansão no alto de uma colina, dominando toda a cidade e com a vista mais bonita do mar.
Lembrou-se de Mary e foi até o telefone. Ligou para
ela.
— Como está você, querida? — indagou disfarçando a
cordialidade.
— De partida, Dora. Vou embora daqui hoje mesmo...
— Puxa, é uma pena mesmo. Eu tinha tanta coisa a lhe
contar...
— Não, depois do que houve com Susan e agora que a
polícia me liberou, vou dar o fora. Estou assustada, Dora.
Muito assustada. Se tivesse visto o que vi, agiria da mesma
forma.
— Dando o fora daqui?
— Sim, isso mesmo.
— Não, não posso fazer isso, não agora...
— E por que não? Alguma coisa especial?
— Sim, tenho um encontro muito importante esta noite. Vamos ver se advinha com quem?
— Ora, não consigo pensar em ninguém tão especial
assim... — disse Mary, interrompendo-se em seguida, como
se entendesse finalmente, aquele tom vitorioso na voz da
amiga. — Não vá me dizer que...
— Acho que adivinhou — antecipou-se Dora, incapaz
de se conter por mais tempo — Vlad Alucard, aquele pedaço de mau caminho que conhecemos lá no Old Fisherman.
— E como conseguiu isso? — indagou Mary, surpresa
e enciumada.
— Deve ter sido alguma coisa em meu charme que o
fascinou — riu Dora, convencida.
— Esta bem, espero que se divirta com ele...
— Está brincando! Vou até a casa dele, seu motorista
virá me apanhar. Além disso, ele mencionou qualquer coisa
a respeito de um colar de esmeralda que ficaria muito bem
em meu pescoço... Não é maravilhoso da parte dele? — finalizou, ferina.
— Deve ser mesmo — concordou Mary, remoendo-se
por dentro.
Quando desligou, Dora sorria satisfeita. Deu uma última olhada na fotografia.
— Garota estúpida! — exclamou, jogando-a sobre um
móvel.
***
De um canto da sala, Torg observava atentamente o
desempenho da arrumadeira. Em dois dias ela livrara toda a
casa da poeira, o que deixara Drácula satisfeito.
Torg, porém, vivia em sobressaltos. Seus instintos não
o enganavam. Olhara aquela mulher nos olhos, sabia que
tinha ali uma bisbilhoteira de primeira.
De fato, a Sra. Dundee tinha muitas perguntas, após
haver trabalhado dois dias naquela casa. Primeiro, jamais
vira seu patrão; segundo, jamais encontrara sua cama desarrumada.
Aguçava sua curiosidade a veemência com que Torg
lhe recomendara jamais descer ao porão. Dissera que o patrão tinha ciúme dos vinhos da adega, mas ela jamais vira
um copo sujo naquela casa. Alias, nem prato sujo ela ja-
mais vira. De que eles se alimentavam era coisa que não
conseguia descobrir.
Terminou de polir o mármore da lareira. As noites
começavam a esfriar, mas não havia cinzas ali. Levantou a
cabeça e observou a parede. Havia manchas na parede, como se tivesse removido algum quadro que, durante muito
tempo, estivera ali.
Aquilo a intrigou e um detalhe chamou sua atenção. Já
andara pela casa toda e não vira um espelho ao menos. Sim,
era um detalhe interessante. Onde estariam os espelhos daquela casa?
Girou os olhos um pouco mais e pousou seu olhar sobre a figura sinistra e arrepiante de Torg. Um calafrio percorreu sua espinha. Aquele corcunda lhe provocava um
mal-estar indescritível.
Torg, por seu turno, pôde ler a curiosidade naqueles
olhos miúdos e vivazes. Sabia que a Sra. Dundee era observadora e que muitos detalhes já haviam passado por sua
mente.
Não gostava nem um pouco daquilo. Uma mulher como aquela podia ser perigosa.
— Acho que terminei por hoje. Quer que lhe prepare
um chá? — indagou ela, muito embora soubesse que nada
havia na despensa da casa.
— Detesto chá — grunhiu o corcunda.
— E o patrão, quando volta?
— O patrão não se ausentou. Está trabalhando. Fica o
dia todo fora. Agora, se terminou, pode ir.
— Está bem — concordou ela, indo apanhar suas coisas.
Ao passar diante da porta do porão, seu instinto curioso lhe provocou comichões. Atrás dela, com desagrado,
Torg a espreitava.
***
Entardecia. Em sua sala, Charles relia o artigo daquela
manhã no jornal local. A imprensa e a opinião pública
zombavam dele e de toda a polícia. Nada fora apurado ainda a respeito dos desaparecimentos. O corpo de Susan Portland ainda não fora encontrado.
Lester entrou, trazendo algumas folhas de papel em
suas mãos.
— O que é isso? — indagou o inspetor-chefe.
— Os relatórios de Larry e do pessoal que investigou
as fotos.
— Algo novo?
— Não, tudo aponta para o Old Fisherman, mas apenas isso. Elas estiveram lá. Nesses dois dias, investigaram
cada um dos frequentadores, nada de especial foi encontrado. Da mesma forma, mandaram alguns espiões, disfarçados de viciados, tentando conseguir algum tipo de droga
entre os frequentadores e, mesmo, com o proprietário e
funcionários. Nada, absolutamente nada. Esses são os últimos relatórios. Não os li ainda, mas estou certo que dirão a
mesma coisa — disse Lester, desanimado, jogando as folhas sobre a mesa do chefe.
Charles as apanhou. Um daqueles papéis lhe chamou a
atenção. Relacionava os frequentadores mais assíduos do
estabelecimento.
Desde que entrara o outono, um nome se destacava na
lista.
— Quem é Vlad Alucard? — indagou ao assistente,
que voltava com uma xícara de chá.
— Já ouvi falar nele. Alugou a mansão Black Hill.
Penso que é estrangeiro e muito rico. Não o vi pessoalmente ainda, mas é o tipo capaz de fazer qualquer homem sentir
ciúme.
— Por que diz isso?
— Por experiência própria. Minha garota o conheceu.
Disse que é um homem belíssimo, cuja presença se impõe
sobrenaturalmente — exagerou Lester, mas estacou ao sentir seu corpo percorrido por um arrepio — Eu disse sobrenaturalmente?
— Sim, foi o que disso — confirmou Charles, olhando
intrigado seu assistente.
Lester tomou um gole de chá, depois voltou a encarar
o chefe. Em seus olhos havia a mesma dedução que se estampava agora nos olhos de Charles.
Bateram na porta. Lester foi abrir.
— Boa tarde, cavalheiros. Sou o Professor Hilgenstiller e gostaria de falar com inspetor-chefe...
Lester abriu caminho, enquanto apontava para a mesa
de Charles. Este se levantou e observou, intrigado, aquele
cavalheiro alto, abraçado com uma pasta de couro. Chamou-lhe a atenção a expressão marcada daquele rosto, como se uma angústia interior muito grande se refletisse nele.
— Sou Charles Derby, o inspetor-chefe — apresentou-se.
— Paul Hilgenstiller, professor de sociologia e outras
matérias afins...
— E o que o traz aqui, professor?
— Isto — disse, depositando sobre a mesa o recorte
do Times que falava sobre os acontecimentos em Falmouth.
— Não veio comunicar o desaparecimento de sua filha, veio, professor?
— Não, inspetor — disse Hilgenstiller, um agulhão ferindo-lhe o peito e a lembrança da filha doendo-lhe no coração. — Vim ajudá-los, talvez...
— Ajudar-nos? — espantou Charles.
Lester agiu da mesma forma e se aproximou discretamente.
Hilgenstiller observou ambos, depois retirou de sua
pasta os originais de seu livro, além de outras provas.
— Primeiro gostaria que ouvissem minha história.
Depois discutiremos em que podemos nos ajudar — disse,
começando sua narrativa.
Charles e Lester acompanharam com incredulidade
tudo aquilo. Apesar da aparência honesta daquele homem,
tudo o que dizia mais parecia uma obra de ficção que realidade.
Supor que um vampiro, entre tantas cidades no mundo, fosse escolher justo Falmouth era o mesmo que admitir
a existência de discos-voadores, gnomos, bruxas e fantasmas.
A noite chegou mansamente, trazendo uma lua brilhante e poética, inofensiva na aparência, incapaz de exercer influências malignas sobre os seres humanos.
Quando Hilgenstiller terminou sua explanação, um riso incrédulo desenhou-se nos lábios de Charles Derby.
— Um vampiro, professor? Está tentando me convencer que...
— Tem outra explicação? — cortou-o o professor, incisivo.
CAPÍTULO 6
Torg estava na janela do sótão, após, mais uma vez,
haver se olhado nos espelhos e percebido que nada mudara
em sua triste figura.
Uma sombra deslizando pelo jardim chamou-lhe a atenção. Olhou com cuidado e julgou reconhecer, no vulto
intrometido, a figura da Sra. Dundee.
— Idiota! — exclamou ele, deixando o aposento e
rumando para o andar térreo da casa.
Suas previsões se confirmaram. A maldita mulher não
demoraria muito para satisfazer sua curiosidade. A primeira
coisa que lhe passou pela mente foi enxotá-la dali.
Depois, um pensamento macabro e divertido o fez
pensar melhor. A Sra. Dundee estava curiosa a respeito do
patrão. Talvez devesse satisfazê-la. Estava certo de que ela
se dirigiria direto para o porão da casa.
Aproximou-se sorrateiramente de uma das janelas,
mas não a viu. Olhou a noite. A lua firmava-se no céu. Drácula ainda dormia. Torg seria recriminado por deixar a mulher perturbá-lo.
Resolveu voltar ao plano original e apenas expulsá-la.
Não queria zangar seu mestre. Um acesso de fúria de Drácula intimidava a própria natureza.
Saiu pelos fundos, circundando cautelosamente a casa,
procurando atentamente pela mulher.
Não longe dele, ela tentava arrombar a pequena janela
que iluminava uma passagem do corredor do porão. Não o
conseguiria fazer sem muito barulho. Sabia que o corcunda
estava na casa, por isso desistiu daquela ideia.
Levantou-se e caminhou rente à parede, aproximandose de uma das janelas. Olhou no interior da casa. Não havia
o mínimo sinal do corcunda. Talvez pudesse entrar pelos
fundos.
Ia caminhar naquela direção, quando pesada e intimidadora, a mão de Torg pousou sobre seu ombro. Numa reação inconsciente, a Sra. Dundee se voltou e bateu sobre o
braço do corcunda.
— Oh, Sr. Torg... — gaguejou ela.
— O que faz aqui?
— Esqueci minha bolsa... Preciso dela, as chaves de
minha casa estão lá... Espero que não se importe se eu a apanhar — disse ela, caminhando resolutamente para a porta
dos fundos.
— Pare! — ordenou Torg, perseguindo-a.
— É só um instante — respondeu ela, disposta a entrar
na casa.
Torg a alcançou e segurou-a pelo braço, apertando-o.
— Solte-me! — ordenou ela, furiosa também.
— Você diz onde está a bolsa, eu a apanho...
— Por que não posso entrar na casa? Quero conhecêlo, então — repeliu-o ela, mas Torg voltou a insistir, agarrando com firmeza seu braço.
As unhas da mulher cravaram-se sobre sua mão e o
corcunda grunhiu de dor, encolhendo a mão.
— Eu não gosto que me segurem assim. Você não
manda aqui. Vou me queixar ao patrão — disse ela, fazendo menção de se afastar.
— Maldita! — urrou Torg, segurando-a pelos cabelos.
A Sra. Dundee se voltou e suas unhas traçaram sulcos
no rosto do corcunda. Seus olhos injetaram-se e, sem lhe
soltar os cabelos, puxou-a para perto de si e esmurrou-a no
nariz.
A mulher caiu de joelhos. Seu sangue escorregou para
a blusa branca. Os olhos de Torg chamejaram. Aquele cheiro de sangue morno jogou perigosamente com seus instintos.
Ele olhou a própria mão. Parecia guarda ali ainda o
prazer que a pancada sobre aquelas carnes haviam proporcionado. Ela tentou se levantar. Torg segurou-a pelos cabelos, forçando-a a se manter de joelhos.
Olhou novamente a mão, depois o sangue que escorria
do nariz da mulher. Seu sadismo tentou-o, excitando brutalmente seus sentidos.
Ele golpeou violentamente a face da Sra. Dundee, jogando-a no chão. Esperou que ela suplicasse piedade, mas
desconhecia a fibra das mulheres dos marinheiros do sul.
Noite após noite elas suportavam as apreensões pelos
maridos no mar. A viuvez não as abalava. Pareciam conviver com a tragédia, esperando-a e enfrentando-a.
Quando sua mão segurou aquela pedra e atirou-a contra a cabeça do corcunda, Torg compreendeu que não a intimidara, mas a provocara para uma luta mortal. Avançou
sobre ela, tentando prender os braços que o golpeavam,
procurando evitar aquelas unhas perigosas que buscavam
sua pele para arrancar um prazer que, paradoxalmente, o
assustava.
Sua memória recuou no tempo, muitos anos, nas grandes festas dos Drácula, nos festins orgíacos onde o canibalismo era praticado como requintes de sadismo.
Ali começara a maldição que se abatera sobre ele. O
gosto da carne morna e gotejante veio-lhe aos lábios, após
tanto tempo. Ele venceu, finalmente, a resistência da mulher, jogando seu corpo sobre o dela.
— Solte-me animal! — berrou ela, sem saber que mais
o assanhava.
Torg tremia, ofegante e excitado, arrepios alucinantes
percorrendo seu corpo, aquele apetite bestial tirando-lhe totalmente a razão.
Seus dentes se fecharam sobre o ombro dela, arrancando um naco sangrento. A Sra. Dundee não teve forças
para gritar, tamanho se horror.
Fascinada e apavorada, ficou olhando aquela boca
mastigar com visível prazer um pedaço de suas próprias
carnes, saliva e sangue escorrendo daqueles lábios animalescos numa gosma nojenta.
Uma total transformação se operou no corcunda. Toda
e qualquer aparência humana desapareceu de seu corpo disforme e ele assumiu totalmente sua animalidade, agindo
daquela forma, rosnando como uma fera assassina, arrancando pedaços e mais pedaços da mulher, já desfalecida,
mascando-os apressadamente, gulosamente.
Drácula acordara havia pouco. Caminhava pela sala
quando ouviu aqueles sons de luta e, depois, o rosnar espicaçado de uma fera faminta.
Foi até a janela. Torg devorava o corpo agonizante da
Sra. Dundee.
— Torg! — gritou ele e o corcunda ergueu o rosto, exibindo seus olhos chamejantes, sua expressão animalesca,
seus lábios ensanguentados. — O que está fazendo animal?
A lucidez pareceu voltar à mente da besta, que se ergueu lentamente, enxugando os lábios nas mangas da cami-
sa. Olhou cadáver semidevorado da mulher, depois se postou submisso diante de seu mestre...
— É a empregada, mestre. Eu a avisei... Ela veio bisbilhotar e... Foi inevitável. Ela me atacou, eu...
— Está bem... — concordou Drácula, o cheiro do sangue fazendo arder seu corpo, o desejo e a necessidade brincando com seus instintos.
Resistiu, porém. Um banquete especial estava reservado para aquela noite, na figura doce e tentadora de Dora
O’Hara.
— Livre-se desse corpo depois vá se aprontar. Tenho
um trabalho para você — ordenou o vampiro.
***
Estavam num restaurante não muito longe de chefatura. Por insistência do professor, Lester acabara descrevendo
o tipo de ferimento encontrado em Susan Portland.
Hilgenstiller tomara um pedaço de papel de sua pasta
e rabiscara um desenho apressado, mostrando mais ou menos o ferimento sofrido por Larah, sua filha, na fatídica cidade de Kizna.
— Mais ou menos isso? Sobre a jugular? — indagou,
mostrando o desenho.
— Sim, isso mesmo. Essa parte escura era uma mancha ligeiramente arroxeada...
— O tipo de marca provocado por uma sucção violenta, não?
— Isso mesmo — concordou Lester, voltando-se para
Charles, que acompanhava com visível desagrado àquela
conversa.
Toda aquela teoria fantástica e aquela história do professor podiam impressionar um jovem inexperiente como
Lester, mas jamais convenceria a ela, o inspetor-chefe.
— O que me diz disso tudo, Charles? — quis saber
Lester.
— Eu digo que no próximo arco-íris nós dois sairemos
à procura do pote de ouro. Vamos reparti-lo e nos aposentar. Para nos distrair, vamos sair caçando fantasmas por aí,
não acha uma boa ideia? — ironizou.
Hilgenstiller olhou-o com desânimo. Compreendia a
reação do inspetor e não o recriminava. Ele mesmo teria se
comportado daquela forma se não houvesse passado por
aquele tipo de experiência.
— E qual sua teoria, inspetor? — quis saber o professor.
— Tudo indica que há um louco que frequenta o Old
Fisherman. É nesse que devemos nos concentrar.
— Um louco, inspetor? Porque não uma besta humana, uma fera do inferno ou...
— Esperem um pouco — interrompeu-o Lester. — Se
tudo nos aponta para o Old Fisherman, por que não deixa-
mos que o professor vá até lá. Suponhamos que essa misteriosa personagem apareça por lá e seja reconhecida como o
tal do Drácula... O que teríamos a perder? — propôs Lester.
— Acho que a razão, meu amigo — respondeu Charles, com um sorriso de galhofa nos lábios.
— Pois eu acho uma boa ideia. Eu vi aquela maldição
ambulante e posso descrevê-la. Basta que alguém se lembre
de ter visto alguém parecido para que eu...
— Ora, professor, isso é despojado de toda e qualquer
lógica. O que está pretendendo é um absurdo! — cortou-o
Charles.
— Está bem, está bem! Compreendo e respeito suas
opiniões, inspetor. Deixe-me, então, acompanhar essas investigações. Prometo não atrapalhar e me darei por satisfeito se ficar provado que me enganei. Alias, nada me deixará
mais aliviado que isso, inspetor. Palavra! — desabafou o
cientista.
***
Dora se vestira com esmero para aquela noite especial.
Selecionara um de seus vestidos mais excitantes, com um
generoso decote, deixando à mostra o vale tentador de seus
seios jovens e rijos.
Olhou-se no espelho. Seus olhos pousaram sobre o
crucifixo. Levou as mãos à nuca para soltar o fecho da corrente, mas sorriu travessamente, deixando-a.
Seria desafiador permitir que Vlad fizesse aquilo. Afinal, ele tinha intenção de substituir aquela simples corrente
de ouro por um belo e valioso colar de esmeraldas.
Aquela ideia lhe parecia fantástica demais. Por que ele
faria aquilo? Afinal, um colar como aquele deveria valer
uma pequena fortuna.
Sorriu misteriosamente. Afinal, não seria a primeira
vez que um ardente apaixonado a presentearia regiamente.
Girou o corpo, observando-se. Era jovem, bonita e provocante. Vlad lhe parecia um cavalheiro, o tipo de homem capaz de valorizar e apreciar dignamente as virtudes de uma
bela mulher.
O telefone tocou, sobressaltando-a. Torceu para que
não fosse ele, cancelando o encontro. Era Mary Reading felizmente.
— Pensei que tivesse partido — comentou.
— Pretendia mesmo, mas o assistente do inspetorchefe telefonou-me, pedindo que ficasse até amanhã. Há
uma pessoa que ele deseja que eu conheça. Deve ser a respeito da morte de Susan ainda. Só de pensar sinto calafrios.
Você vai mesmo sair esta noite?
— Sim, vou à casa de Vlad, como lhe disse...
— Eu a invejo. Se não estivesse tão assustada, juro
como iria ao Old Fisherman...
— Por que não liga para uma de nossas amigas e lhe
pede para acompanhá-la esta noite?
— É o que farei, espero! Divirta-se e não se esqueça
de contar tudo que houve...
— Esteja certa que o farei — prometeu Dora, com certa maldade, desligando.
O som de uma buzina lá fora a fez correr até a janela.
Um carro sóbrio e elegante estava parado diante da casa.
Dora passou mais uma vez pelo espelho, deu um último retoque nos cabelos, depois saiu.
A porta traseira do veículo estava aberta. Ela entrou e
fechou-a. O motorista a olhou pelo retrovisor.
— O Sr. Vlad a espera, senhorita... — disse, com voz
cavernosa.
— Sim, eu sei — respondeu ela, excitada e impaciente.
Por momentos Torg ainda observou aquela beleza atrevida e oferecida, invejando seu mestre e os prazeres que
podia usufruir.
Pôs o veículo em movimento, rumando para a casa da
colina, onde Drácula os esperava. Algum tempo mais tarde,
estacionava diante da mansão. As luzes estavam acesas e a
porta principal estava aberta. Quando o ruído do motor cessou, uma figura surgiu no alto da escadaria.
Dora desceu e, por instantes, contemplou com emoção
aquele belo espécime masculino.
— Espero que tenha feito uma viagem confortável —
disse ele, descendo ao seu encontro.
Aquela voz morna e sensual penetrava os ouvidos da
garota, hipnotizada. Ele tomou uma de suas mãos e levou-a
aos lábios frios, beijando-a com sensualidade.
— Ótima! — sorriu Dora, enquanto subiam juntos.
Entraram na casa. Drácula fechou a porta atrás de si,
depois ficou observando aquela silhueta terrivelmente feminina avançar até o centro da sala.
— É linda! — murmurou Dora, voltando-se para ele.
O crucifixo faiscou em seu colo e aquela luz dourada
foi como setas mortais tocando o corpo do vampiro, que
cambaleou, apoiando-se à parede.
— O que foi? — indagou ela, correndo para ele.
— Não, por favor, afaste-se — pediu-ele, cobrindo os
olhos com as mãos, calafrios intensos percorrendo seu corpo, o fogo do inferno ardendo em sua pele, como que a destruindo.
— Vlad, por favor! — pediu ela, tentando ampará-lo
e, no movimento, a cruz tocou a mão do vampiro.
— Afaste-se, maldita! — berrou ele, urrando de dor e
apertando a mão onde uma escura mancha se formara como
uma queimadura.
— Vlad! — exclamou ela, assustada, recuando, incapaz de compreender o que estava acontecendo.
— Torg sua besta humana! — berrou Drácula, sentindo as influências negativas do crucifixo minarem suas forças rapidamente.
O corcunda entrou por uma porta, o corpo disforme
desafiando o equilíbrio. Um olhar para a garota bastou para
que entendesse o que aterrorizava seu mestre.
Caminhou para ela e, num golpe violento arrancou a
corrente, jogando-a no chão, por onde ela deslizou até debaixo de um móvel.
Dora ficou estática, vendo Drácula erguer-se lentamente, como que recuperado de uma crise misteriosa e violenta. Seu rosto estava pálido e não havia vida em seus olhos.
Torg retirou-se como num passe de mágica. Drácula
olhou a garota, percebendo em seus olhos o espanto mortal.
— O que... O que houve? — gaguejou ela, recuando à
medida que ele se aproximava.
— O metal... De sua corrente... Há qualquer coisa nele... Magnetismo, talvez. Já ouvi dizer que os metais afetam
um tipo especial de pessoa? — argumentou ele, procurando
tranquilizá-la.
Quando estendeu a mão para tocá-la. Dora recuou instintivamente, até tropeçar no sofá. Sentou-se, ofegante e
surpresa, tentando compreender o que acontecera instantes
antes.
Drácula não queria que acontecesse daquela forma.
Poderia subjugá-la naquele mesmo momento e satisfazer
seus instintos, mas não haveria naquilo prazer especial que
planejara para aquela noite.
Desviou o olhar, então, para um pequeno estojo de
metal sobre um móvel da sala. Caminhou até lá, apanhou-o
depois se voltou e encarou a aterrorizada garota.
CAPÍTULO 7
Dora O’Hara fitou, deslumbrada, aquelas esmeraldas
que pendiam das mãos de Vlad Alucard. Ele se aproximou
lentamente, com um sorriso cativante nos lábios finos.
— Vlad, são lindas! — exclamou ela.
— Perfeitas para você — disse ele, contornando-a e
prendendo o colar ao pescoço dela.
Depois, inclinou sua cabeça e beijou-a no ombro, escorregando sensualmente seus lábios até o pescoço feminino e torneado, arranhando sobre a jugular com suas presas
arreganhadas.
Dora encolheu os ombros, arrepiada e excitada, contemplando as pedras verdes que repousavam graciosamente
sobre sua pele bronzeada.
— Deixe-me ver como ficou — pediu ela, pondo-se
em pé e olhando ao seu redor. — Um espelho, onde encontro um espelho.
Drácula sorriu novamente e caminhou para, tomandoa nos braços assanhado pelo perfume tentador daquela pele,
pela veia intumescida que latejava em seu pescoço, convidando-o ao seu banquete de sangue.
Seus lábios roçaram o rosto da garota, rumando para
seu pescoço. A volúpia que o invadia era intensa, violenta,
carregada de prazer.
Sugou lentamente a pele macia a sua disposição, passeando sua língua sobre a veia principal, sentindo as pulsações ritmadas daquele coração.
Dora esfregou-se a ele, contagiada, fascinada, cheia de
uma gratidão que esperava demonstrar em breve. Um homem tão ardente e tão apaixonado merecia seus cuidados
especiais.
Suas mãos finas e delicadas firmaram-se às costas dele, subindo até seus cabelos, anelando-os nas pontas sutis
de seus dedos.
Sua boca morna e sensual colou-se ao pescoço de
Drácula, espicaçando-o. Ele a apertou em seus braços, sentindo seus contornos provocantes.
O desejo macabro que o assaltava não poderia ser contido por mais tempo. Urgia satisfazer-se.
— Venha! — pediu ele, num murmúrio rouco que excitou ainda mais a garota.
Subiram lado a lado a escadaria, depois caminharam
pelo corredor até um quarto de porta dupla. Drácula abriu-a
e adiantou-se, indo esperar por ela junto ao leito.
Dora olhou ao seu redor. Precisava encontrar um espelho onde pudesse apreciar a beleza daquelas pedras sobre
sua pele.
Drácula sentou-se no leito e abriu os braços, convidando-a. Os olhos do vampiro injetavam-se. Estremecimentos percorriam seu corpo. Um fogo intenso ardia em suas
veias, entontecendo-o e aguçando seu apetite.
Com um sorriso coquete nos lábios, Dora se aproximou dele, encaixando-se entre aqueles braços que circularam seus quadris. O rosto do vampiro afundou-se em seu
ventre, aspirando aquele perfume ardente de fêmea oferecida.
Suas mãos subiram, então, buscando os fechos do vestido, soltando-os e despindo lentamente a garota.
Ela não protestou, oferecendo sua nudez atrevida aos
olhos deslumbrados do vampiro. Formas perfeitas, palpitantes, convidativas estavam, então, ao alcance das mãos
dele.
— Deixe que eu faço isso agora — pediu ela, as mãos
finas e delicadas soltando os botões da camisa negra que
ele usava.
Ébrio de prazer, Drácula permitiu que ela o visse nu e
depois o abraçasse e se esfregasse a ele numa volúpia sem
fronteiras.
Ele retribuiu carícias, os lábios colados ao pescoço dela, sentindo as batidas daquele coração se alterarem e o
sangue correr mais rápido naquela veia.
Assim ele a queria, no auge da excitação, quando um
rasgo naquela pele macia faria o sangue jorrar direto para
seus lábios sequiosos.
O contato daquela pele morna e inquietante contra seu
corpo gelado provocava um prazer adicional. Gradativamente, porém, ele foi se concentrando no latejar mais forte
do sangue circulando pelo corpo da garota.
Seus lábios se abriam e suas presas roçavam a pele dela, adiando mais uma vez a mordida fatal. Não atacaria uma
garota assustada, tolhida, mas aceitaria dela, de livre e espontânea vontade, aquela oferta de sangue que prolongaria
sua vida.
— Vlad! — murmurou ela, impaciente e excitada, enroscando seu corpo a ele, oferecendo-se suplicante e vencida.
Drácula ergueu a cabeça e fitou-a nos olhos e foi como se Dora compreendesse o desejo dele. Sua cabeça pendeu para trás e, lentamente, seus olhos se fecharam.
Os olhos do vampiro chamejaram, fitando aquele ponto palpitante. Suas faces e arreganharam e as presas brilhantes e pontiagudas avançaram, cravando-se no pescoço
da garota.
Um mesmo estremecimento percorreu seus corpos.
Grunhindo e resfolegando, Drácula sugava o sangue que
jorrava da ferida, lambuzando seus lábios, enchendo a boca
nojenta e engolindo como se estivesse sufocado, como um
animal esfomeado, como uma fera irracional.
***
Naquela manhã radiante, Mary acordou um pouco
mais tarde que o costume. Não saíra na noite passada e tivera que tomar um tranquilizante para poder dormir.
Por qualquer motivo, a lembrança do que acontecera
com Susan a atormentara, como se houvesse uma espécie
de presságio em tudo aquilo.
Após o banho e um desjejum rápido, dispôs-se a ir à
delegacia, atender ao chamado do assistente do inspetor.
Julgou, porém, que devesse levar Dora consigo. Afinal, elas estavam juntas na noite em que Susan falara a respeito
daquela estranha sensação.
Tudo podia ser um absurdo, mas o temor de Mary ia
mais além. Parecia sentir qualquer coisa de sobrenatural
envolvida naqueles acontecimentos.
Foi até a casa onde Dora estava hospedada. O carro da
garota estava na garagem, mas as janelas ainda estavam fechadas. Bateu e, após aguardar um pouco, sentiu-se tomada
de súbita apreensão.
Era como se o que acontecera com Susan estivesse se
repetindo. Experimentou o trinco. Estava fechado. Bateu
com insistência, preocupada ao extremo.
Voltou para o carro, sem saber que atitude tomar. Talvez estivesse nervosa. Dora poderia estar ainda na companhia de Vlad. Sim, por que não?
Encontraram-se para uma noite de amor. Quem podia
estipular um horário para que isso terminasse? Procurou se
convencer disso e rumou para a chefatura.
Lá chegando, foi apresentada ao Prof. Hilgenstiller,
um homem afável que aparentava uma grande preocupação
interior.
Lester pediu-lhe que contasse tudo que acontecera naquela noite. Hilgenstiller a ouviu atentamente, interrompendo-a apenas para que fosse mais precisa na descrição
das marcas que vira no pescoço de Susan.
Era doloroso para Mary lembrar tudo aquilo, mas o interesse com que o professor a ouvia a animou a ir até o fim.
Quando terminou sua narrativa, uma mulher entrou na
sala do inspetor-chefe, demonstrando grande aflição.
— Preciso falar com o senhor, senhor. Derby! — suplicou ela.
— Está bem, minha senhora. Acalma-se. Qual é o
problema?
— É minha amiga, a Sra. Dundee, uma viúva que mora na mesma rua que eu...
— Está bem, o que houve com Sra. Dundee?
— Ela não voltou para casa ontem... Nem passou pela
minha casa pela manhã, como sempre faz...
— Quer explicar melhor, senhora? — pediu Charles.
— A Sra. Dundee trabalha de criada, sempre trabalhou, desde que o marido morreu. Eu falei para ela não ir
trabalhar naquela casa. Recomendei-lhe isso, depois que
me contou as coisas estranhas que aconteciam lá, mas ela
sempre foi muito corajosa... Todas as tardes, quando voltava do trabalho, fosse onde fosse, ela passava em minha casa
para o chá. Pela manhã, quando saía para o trabalho, fazia a
mesma coisa para um dedo de prosa...
— Acalme-se, senhora, assim não consigo entender
nada. Onde ela trabalha, afinal? — indagou Charles, tentando acalmá-la para que respondesse.
Lester providenciou uma xícara de chá. A mulher tomou dois goles, depois encarou o inspetor com olhos assustados.
— A casa em Black Hill... É gente estranha, não come,
não bebe, não desarruma as camas... O patrão não está durante o dia e há também o porão, onde o corcunda não permitia a entrada.
O professor sobressaltou-se, como se uma descarga
elétrica tocasse seu corpo.
— Um corcunda? — indagou, trêmulo de ansiedade.
— Sim, um corcunda todo estropiado e sinistro. A Sra.
Dundee dizia que ele...
— Espere um pouco, como é o nome do patrão dela?
— interrompeu-a o professor, ajoelhando-se diante da mulher.
— Vlad... Alucard, creio eu...
— Vlad Alucard? Mas é o homem com quem Dora foi
se encontrar ontem à noite — informou Mary.
— Espere um instante, alguém quer me explicar o que
está havendo, afinal? — gritou Charles, confuso com tantas
perguntas e respostas.
— Como disse, senhorita? — indagou o professor,
sem dar ouvidos ao inspetor.
— Dora O’Hara, minha amiga. Ela teve um encontro
ontem à noite com Vlad Alucard. Hoje, quando vinha para
cá, passei pela casa dela e ela não havia voltado ainda...
— Inspetor, temos de ir imediatamente àquela casa —
disse o professor.
— Por que afinal?
Em poucas palavras o professor traçou toda sua preocupação a respeito do assunto. Uma mulher desaparecera,
uma garota que tivera um encontro na mesma casa ainda
não voltara após isso.
Além disso, havia aquele corcunda demoníaco. Hilgenstiller se lembrava muito bem dele. As coincidências
eram demais. Um homem que precisava se esconder da luz
do dia.
— Acho que vale a pena, inspetor — afirmou Lester.
— Não se esqueça de que Vlad Alucard é o nome que encabeça a lista dos mais assíduos frequentadores do Old Fisherman.
— Esperem um pouco! — exclamou o professor, lembrando-se de algo. — Vlad Alucard, Vlad Drácula. Basta
inverter o sobrenome. É ele, não tenho mais dúvidas. Não
podemos esperar mais. Somente durante o dia poderemos
destruí-lo.
— Também quero ir. Se Dora estiver lá, eu preciso ajudá-la — pediu Mary, em desespero.
— Está bem, apanhe alguns homens, Lester. Vamos
todos para lá passar isso a limpo — decidiu Charles Derby.
***
Torg estava no sótão, olhando-se desanimado nos espelhos, quando ouviu o ruído dos motores. Saiu à janela e
contou três policiais. Estremeceu, incapaz de imaginar o
que os trazia ali.
Desceu rapidamente e chegou a uma das janelas do
térreo, quando os policiais desciam dos veículos. Procurou
se acalmar. Que mal aqueles homens poderiam fazer? Bastaria informar que o patrão não estava. Ia rumar para a porta quando, de longe, viu aquele homem alto descer apressadamente e olhar a casa com interesse.
— Aquele maldito! — exclamou, reconhecendo Hilgenstiller. — Como chegou até aqui? — acrescentou, procurando se esconder.
Bateram na porta repetidas vezes. Torg ficou colado à
parede. Expor-se àquele homem era denunciar Drácula. O
professor na certa saberia o que fazer para destruir o mestre.
Do lado de fora, Charles ordenara aos policiais que
vasculhassem ao redor da casa. Hilgenstiller subiu a escadaria e foi bater com insistência na porta.
— Parece que não há ninguém aí, professor — gritoulhe o inspetor.
— Eles estão aí, inspetor, eu tenho certeza. Ordene a
seus homens que arrombem esta porta!
— Está maluco! Não tenho autoridade para isso...
— De que precisa, então?
— De uma autorização do magistrado...
— Mande alguém buscá-la...
— Acho que não entendeu a questão, professor. Não
posso ir ao magistrado e pedir-lhe um alvará para invadir
uma casa, apenas porque suspeito que há um vampiro nela...
— Pelo amor de Deus, homem! — exclamou Hilgenstiller, em desespero. — Não pode entender o que se passa?
Não há tempo a perder, vamos ter de vasculhar essa casa
para encontrá-lo. Só podemos fazer isso durante o dia, enquanto ele é vulnerável...
Alguns policiais retornaram, após uma rápida vistoria
pelos arredores.
— Não há nada suspeito, inspetor — informou um deles.
— E o que procuraram exatamente? — indagou Hilgenstiller, impaciente e intrigado.
— O de sempre... Uma sepultura mal fechada no jardim, coisa assim... — gaguejou o policial.
— Está bem, inspetor. Não pode ir ao magistrado com
a minha história. Pois bem, leve, então, a história da moça.
Sua amiga não voltou ainda e todas as suspeitas recaem sobre esta casa, além disso, há o caso da criada...
— Sem falar, nas outras evidências — lembrou Lester,
convencido de que o professor tinha alguma razão em tudo
aquilo.
Um homem não podia se alterar por algo insignificante. O desespero e o interesse de Hilgenstiller pareciam gritar a sinceridade de suas palavras.
— Está bem, farei isso, mas não prometo que consigo
essa autorização ainda hoje...
— Pelo amor de Deus! Não se pode esperar...
— O magistrado anda adoentado, talvez ainda esteja
no hospital...
— Pois consigo o papel e leve para que ele assine.
Mas deixe alguns homens vigiando por aqui. Não podemos
deixar que o corcunda fuja. Eu vou voltar para a cidade
também. Há algumas coisas que preciso apanhar em meu
quarto, no hotel.
***
Hilgenstiller estava febril, quando abriu sua mala e retirou dali uma arma e outros objetos. Havia um crucifixo
grande, um amuleto feito com alho, uma estaca de madeira
e um martelo.
Guardou a arma e o crucifixo no bolso interno do paletó. Passou pelo pescoço o amuleto e embrulhou numa toalha o martelo e a estaca.
Quando ia fechar a mala, qualquer coisa chamou-lhe a
atenção. Estacou. Estendeu lentamente uma das mãos e apanhou a moldura.
Levantou o retrato, olhando o rosto meigo da filha.
Por momentos o terrível pesadelo daquela noite, quando ela
o atacara e tivera de destruí-la rasgando seu coração com
um pedaço de madeira, torturando seu coração amargurado.
— Eu prometo que o destruirei, filha — jurou ele, com
lágrimas nos olhos, voltando a guardar o retrato no fundo
da mala.
Saiu em seguida, tomou um táxi e rumou direto para
Black Hill. Os policiais ainda estavam lá, vigiando. Hilgenstiller sabia que teria de passar por eles e entrar na casa.
Não confiava na presteza de Charles Derby. Se aquele
mandato demorasse, a noite chegaria e seria tudo mais difícil. Esgueirou-se pelo jardim, abrigando-se sempre que via
um dos guardas.
Aproximou-se de uma das janelas e forçou-a. Estava
trancada por dentro. Tentou outra inutilmente. Estava trêmulo e ansioso.
Esbarrou num tronco e, por momentos, fitou os galhos
que subiam e pendiam favoravelmente sobre uma das janelas. Com um pouco de sorte não seria descoberto pelos
guardas.
Prendeu o martelo e a estaca ao cinto e começou a subir, as forças duplicadas pela importância da missão que tinha diante de si.
CAPÍTULO 8
A noite chegara e um clima irrespirável pairava no interior da casa, como se suas paredes pressentissem, finalmente, a presença do demônio.
Torg estava à porta da sala, aguardando Drácula acordar. Atrás dele, desacordado e despojada de suas armas estava Hilgenstiller. Torg percebera sua chegada e o atingira
quando entrava pela janela.
Arrastara o corpo até o porão. Hesitara em matá-lo
imediatamente, mas acabou julgando que esse prazer deveria ser reservado ao príncipe das trevas.
Um estremecimento percorreu o corpo do vampiro e
suas mãos se ergueram, apoiando-se às beiradas do ataúde.
Ele se ergueu, pondo-se em pé. Viu Torg.
— Mestre, estamos em perigo. Fomos descobertos...
— De que está falando?
— Dele — apontou o corcunda.
Drácula aproximou-se lentamente do professor e fitouo demoradamente.
— Você o matou?
— Não, mestre. Deixei esse prazer para o senhor.
— Fez bem — sorriu o vampiro, inclinando-se para o
professor.
Odiava-o, pois quase fora destruído por ele. Queria
vê-lo morto e, para isso, bastaria fechar suas mãos ao redor
de seu pescoço e apertá-lo.
Hilgenstiller era, porém, um grande inimigo. Sua morte merecia consideração. Era preciso que a vítima sentisse
pavor, pedisse clemência, suplicasse por sua miserável vida.
— prepare tudo, vamos embora logo mais Torg.
— mestre, a polícia está lá fora...
— Ora, Torg, são apenas alguns homens.
— Uma garota veio com eles também.
— Uma garota? E como era ela?
Torg descreveu a figura de Mary. Drácula se lembrou
dela.
— Eu a conheço. Ela ousou denunciar-me? Como teria descoberto alguma coisa?
— Não sei, mestre, mas vou cuidar de tudo para nossa
partida.
— Feche este homem na sala do ataúde. Quero encontrá-lo acordado quando retornar. Vá para Londres. Há um
castelo abandonado em Coventry. Nós nos encontraremos
lá. Cuide de todos os detalhes necessários para minha permanência, meu servo fiel — ordenou Drácula, caminhando
pelo corredor até a sala às escuras.
Uma fosforescência iluminou seu corpo e, no momento seguinte, a forma negra e macabra de um grande morcego fazia escorregar as cortinas da janela.
***
Mary foi até o banheiro e tomou uma pílula. Estava
assustada e preocupada. Temia pela sorte de Dora que, possivelmente, tivera o mesmo trágico destino de Susan.
Arrepios percorriam seu corpo, quando retornou ao
quarto e preparou o leito. As palavras do professor a respeito daquele ser infernal ainda feriam seus ouvidos. Queria
dormir o mais depressa possível. Só assim aquela noite
chegaria ao fim e ela poderia partir.
Reservara passagem no primeiro trem do dia seguinte.
Partiria para Londres. Talvez mudasse de vida. Ser uma garota de programas estava se tornando perigoso demais.
Vestiu sua camisola. Pensamentos fúnebres tomavam
de assalto sua mente, inquietando-a. Ia se deitar, mas resolveu fazer algo antes.
Foi até o armário e retirou sua mala. Vasculhou-a até
encontrar o que procurava. Prendeu o rosário em suas mãos
e caminhou para o leito.
Desligou as luzes e começou a desfiar as contas, enquanto orava. Não sabia exatamente a quem dedicar aque-
las preces, mas Susan, Dora e ela própria precisavam delas,
com certeza.
Uma sensação angustiante invadiu-a, como se as orações fossem incapazes de afastar o que a oprimia. Nitidamente, dentro da noite, pareceu ouvir um bater de asas.
Imediatamente lembrou-se da impressão narrada por
Susan, uma noite antes de sua morte. Era isso exatamente o
que sentia agora.
Uma força maligna envolvia toda a casa, forçando as
paredes, buscando uma passagem. Qualquer coisa arranhou
a janela. Seu sangue gelou e um grito parou em sua garganta. Um suor incômodo foi cobrindo seu corpo, enquanto se
encolhia no leito e apertava em suas mãos o rosário.
Ouviu ruídos na porta da rua, como se alguém girasse
o trinco. O pavor foi extremo, fazendo-a sentar-se num salto e procurar o interruptor do abajur.
Seu coração saltara do peito. Ela se lembrou do telefone na sala. Levantou-se rapidamente, os nervos à flor da
pele, um tremor angustiante abalando seu corpo.
Abriu silenciosamente a porta de seu quarto. Por instantes fitou sem compreender aquela estranha luminosidade
junto à porta.
Ela tomava o formato de um corpo humano. Estática e
incrédula, Mary viu diante de si a figura fascinante, mas
ameaçadora, de Vlad Alucard.
Não compreendia como aquilo tinha ocorrido. A porta
estava intacta. Aquela luz... Era sobrenatural!
Bateu a porta do quarto e correu para o leito, encolhendo-se e buscando o rosário. Repentinamente, a luz do
abajur se apagou. Mary tentou gritar, mas era como se
qualquer coisa sufocante obstruísse sua garganta.
Ela ficou olhando para frente, enquanto, diante da porta, surgida não soube de onde, aquela fosforescência foi
crescendo e ela adivinhou de imediato qual forma seria tomada.
Viu Vlad Alucard olhá-la ameaçadoramente, depois a
escuridão voltou. Uma respiração pesada, opressiva, assustadora foi se aproximando do leito.
— Oh, meu Deus! Livra-me do inferno e de satanás —
suplicou ela, num murmúrio ininteligível.
Uma gargalhada estridente e zombeteira explodiu no
aposento, arrancando lágrimas desesperadas de seus olhos,
abalando seu corpo num calafrio que permaneceu, eriçando
seus cabelos e sua pele.
— Olá, Mary! — disse a voz de Vlad Alucard, mas
todo aquele sensualismo que ela conhecera havia desaparecido de sua voz e um tom perverso a fez compreender seu
destino.
Ela viu, os olhos de Drácula, chamejantes como duas
línguas de fogo, assustadores como os olhos de uma fera
noturna, um carniceiro faminto e assassino, um demônio
destruidor.
Ergueu as mãos diante do rosto, tapando a visão daqueles olhos. Um urro desumano ecoou pelo quarto, enquanto passos trôpegos soavam como se Vlad cambaleasse
pelo quarto.
Mary percebeu, então, o rosário e a cruz em suas
mãos. Aquilo intimidava o ser demoníaco, que se fez luz
diante de seus olhos para desaparecer no momento seguinte.
Restou um silêncio pesado. A luz voltou tão misteriosamente com se fora. Mary olhou o rosário e a cruz, apertando-os contra o peito e desabafando todo o seu medo
num pranto descontrolado.
***
Hilgenstiller acordou com uma terrível dor no alto da
cabeça. Sentou-se, apoiando as costas contra a parede, depois passeou os olhos turvados pelo aposento vazio.
Aguardou até que a lucidez lhe voltasse. Lembrou-se,
então, daquela sombra disforme que se aproximara dele.
Fora o corcunda, o maldito corcunda que o atingira.
Apalpou seus bolsos, à procura de suas armas. Estava
sem elas. Levou a mão ao pescoço. Não fora atacado. Por
que estava vivo ainda? Não conseguia compreender, a lógica lhe dizia que deveria estar morto naquele momento.
Levantou os olhos para a porta. Era de madeira sólida,
impossível de ser arrombada. Sabia, no entanto, que precisava sair dali, antes que o pior acontecesse.
Ergueu-se lentamente e foi até lá. Uma esperança animou-o ao perceber que os pinos das dobradiças ficavam no
interior do aposento.
Se pudesse removê-los, faria a porta desabar. Olhou
ao redor. Nada havia que pudesse ajudá-lo naquela tarefa.
Apalpou novamente seus bolsos. Olhou a fivela do cinto.
Talvez houvesse uma chance.
Retirou-o e improvisou uma alavanca com o metal da
fivela. Para sua felicidade, o primeiro pino cedeu facilmente. O segundo, no entanto, parecia mais firme.
Hilgenstiller retirou um dos sapatos e usou o primeiro
pino para expulsar o outro do orifício, batendo com o salto.
Pouco a pouco aquele pino foi cedendo, até cair, finalmente.
Passou ao terceiro pino, que não oferecia resistência.
Mais algumas tentativas e a porta cedeu. Com cuidado e esforço, Hilgenstiller a retirou de seus gonzos, afastando-a.
Saiu para o corredor. Tudo estava em silêncio. Ele avançou cautelosamente na direção da outra porta. Abriu-a.
A sala estava às escuras, mas o luar penetrava generosamente pelas janelas, tornando possível orientar-se.
Avançou na direção da porta de saída. Subitamente,
como um castigo que viesse do céu, uma forma negra e macabra penetrou pela janela aberta, resvalando no professor e
jogando-o no assoalho.
Hilgenstiller arrastou-se, horrorizado, fitando aquela
metamorfose inacreditável. Da figura grotesca do morcego
surgiu Drácula cujos olhos chamejaram, fixos no professor.
— Sua vida está em minhas mãos — rosnou Drácula,
possesso.
— Socorro! — gritou o professor, com todas as suas
forças.
Uma gargalhada sinistra ecoou pelas paredes da casa,
enquanto Drácula caminhava para ele.
— Ninguém o ouve, professor. Ninguém o ouvirá —
disse o vampiro, rouco de fúria.
Hilgenstiller tentou se levantar. A mão pesada e cruel
do vampiro bateu contra sua cabeça, fazendo-o rolar pelo
assoalho. A gargalhada sinistra se repetiu, como que zombando de seu desespero.
— Oh, meu Deus! — suplicou ele, tentando erguer-se
novamente.
Drácula o empurrou, fazendo-o rolar outra vez. Como
um gato jogando com um rato, o vampiro o perseguia, jogando-o ao chão a cada nova tentativa, golpeando-o com
sua mão pesada como um martelo.
Viu-se, finalmente, acuado a um canto. O vampiro se
aproximou lentamente, como que saboreando o terror que
se estampava nas faces do cientista.
Movido pelo desespero, Hilgenstiller gritou e avançou
contra ele. Drácula riu, jogando-o mais uma vez no assoalho. Hilgenstiller rolou, indo bater a cabeça contra um móvel.
A procura de apoio, suas mãos deslizaram pela madeira, mas ele tombou novamente, quando o vampiro pisou
sobre seu peito.
O professor compreendeu, então, a inutilidade de sua
resistência. Suas mãos deslizaram sobre a madeira do assoalho. Qualquer coisa fria tocou uma delas.
Incrédulo, ele segurou entre seus dedos aquele objeto
milagroso. Era uma cruz, era a cruz de Dora O’Hara. No
momento em que o monstro se inclinou sobre ele e suas
mãos procuraram a garganta do professor, este levantou a
cruz, tocando o peito que se debruçava.
Num urro dolorido, Drácula ergueu-se num salto e
cambaleou para trás. Hilgenstiller se pôs em pé, animado
pela força daquela arma divina, indo na perseguição dele.
— Jamais me destruirá — rosnou Drácula e a fosforescência iluminou seu corpo — Mas eu o destruirei um dia
— ameaçou.
— Veremos, demônio! — gritou o professor, atirando
a cruz contra aquela luz infernal.
Era tarde, porém. Uma forma negra esvoaçou pela sala, depois escapou pela janela. Hilgenstiller correu até lá, a
tempo de ver aquela ave ameaçadora delinear-se contra a
luz da lua e sumir.
Só então percebeu o quanto fora excessivo todo aquele esforço para seu velho corpo. Deslizou lentamente pela
parede, enquanto ouvia o ruído de motores se aproximando.
***
Charles o olhava com certa reserva, quando entrou na
sala. A um canto. Lester parecia desanimado. O professor
se aproximou da mesa do inspetor-chefe e encarou-o.
— Queria ver-me?
— Sim, professor. Sente-se, por favor.
Hilgenstiller acedeu. Havia qualquer coisa perturbadora no ar, talvez, nas expressões dos dois policiais.
— Está bem, professor?
— Sim, depois de uma boa noite de sono.
Charles pigarreou, olhando na direção de seu assistente. Voltou a olhar o professor, em seguida.
— Deve ter percebido que nós fizemos tudo para que
repousasse em paz...
— Sim, eu agradeço isso, mas acho que não me chamou aqui só para dizer isso, não?
— Sim, acertou — respondeu Charles, ligeiramente
embaraçado, levantando-se virando as costas para o cientista. — sobre sua versão, professor, é tão fantástica quanto
aquele seu relato. Mas...
— Mas o quê, inspetor? — intrigou-se Hilgenstiller.
— Mas não deve repeti-la a ninguém, nem aos repórteres que, por certo, vão procurá-lo.
— Não estou compreendendo! — exclamou o professor. — Você sabe muito bem o que eu passei lá, você sabe
muito bem com o que nos envolvemos. Aquele ser monstruoso e desumano está solto por aí, ameaçando as pessoas
e precisa ser destruída. Negar isso à humanidade é tão cruel
quanto ocultar a verdade a um condenado.
— Acho que não entendeu, professor. Tudo isso é
muito fantástico, é absurdo demais para ser divulgado. Haveria pânico...
— Pense nas futuras vítimas, pense em suas famílias
— apelou o cientista.
— É inútil, professor — falou Lester, constrangido.
— Devem estar malucos. Direi toda a verdade ao primeiro repórter que me perguntar. Eu prometo! — ameaçou.
— Nesse caso, estou certo que terá de enfrentar uma
situação embaraçosa, professor. Responderemos suas afirmativas com um laudo médico. Um laudo que atesta sua insanidade.
— Isso é chantagem!
— Entenda como quiser, professor — disse o inspetor.
— E pior que isso, senhor Derby. É covardia! — finalizou Hilgenstiller, abandonando a sala.
Rumou direto para a ferroviária. Queria se afastar o
mais depressa possível daquela cidade. Quando apanhou
seu talão para embarcar, percebeu a chegada de Mary.
A garota o encarou, como se compreendesse aquele
desespero interior que marcava o rosto do homem. Depois
abaixou a cabeça e passou por ele.
FIM DO LIVRO TRÊS
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO QUATRO
ORGIA DE SANGUE
CAPÍTULO 1
O rápido da British Rail, com destino a Wolverhampotn, passava não muito longe da casa. Stanley Gardner apanhou seu precioso relógio do colete e olhou-o.
— Com efeito... Está atrasado! — exclamou, levandoo ao ouvido por instantes.
Depois com calma, acertou-o pelo horário da passagem do trem: dezoito e cinquenta e cinco.
Terminou sua xícara de chá, depois ergueu-se da mesa.
Cora Gardner, sua esposa, virou-se:
— O velho relógio de vovô está atrasado — disse, enquanto caminhava até a janela.
Respirou fundo o ar úmido e perfumado que vinha do
bosque a meio quilometro da casa. Seu olhar atravessou o
jardim, as sebes desfolhadas pelo outono, alongando-se até
o bosque e, depois, para as muralhas do velho castelo dos
Panter.
Um sentimento de orgulho dominou-o. Seus ancestrais
haviam servido naquele castelo, há muitos anos, antes que
o último descendente da nobre família morresse numa expedição à índia.
O velho castelo permanecera, vencendo o tempo, descuidado, agora, com o mato tomando conta dos jardins e a
hera subindo pelas pedras dos muros e das paredes.
Na torre principal ainda se equilibrava o mastro onde,
por muitos anos, estivera hasteada a bandeira dourada com
a pantera ao centro, cravando as garras sobre um javali.
— Cora, lembra-se por que havia uma pantera na bandeira dos Panter? E o javali?
— Ora, Stan, como vou me lembrar? — descartou ela,
retirando as peças de porcelana da mesa e levando-as para a
pia, onde as lavou cuidadosamente.
Escurecia rapidamente no outono. O céu azulado em
pouco tempo perdia seu brilho forte, tornando-se escuro...
Stanley foi até seu armário e apanhou um cachimbo.
Encheu-o cuidadosamente, acendeu-o e voltou à janela. As ameias e seteiras do castelo começavam a se confundir com a noite.
Atravessando a rua como uma sombra, um cachorro
avançou para o bosque. No momento seguinte, outro o se-
guiu, mas estacou no meio da estrada, erguendo o focinho
para o ar como se farejasse qualquer coisa.
Um carro vindo pela estrada diminuiu a marcha e o
motorista piscou os faróis. Stanley endireitou-se intrigado.
Antes que o animal sumisse na direção do bosque, teve a
nítida impressão de ter visto um lobo ali, no centro da estrada.
Deveria estar enganado, foi o que concluiu. Não havia
lobos em Coventry há cerca de cinquenta anos, talvez mais.
E depois, de onde poderiam ter vindo?
— Cachorros, com certeza — resmungo, voltando a se
debruçar no peitoral da janela.
— Como? — indagou a mulher, atrás dele.
— Cachorros — afirmou ele. Vi um cachorro, dois, alias, atravessando a estrada na direção do bosque.
— Ah! — exclamou ela, continuando seus afazeres.
— Mas me pareceu um lobo — continuou ele, como
se o dissesse só para si.
A mulher não o ouviu. Havia deixado a cozinha e ido
até a sala, onde ligara o televisor. Tinha as mãos um precioso bule e enxugava-o, enquanto cravava os olhos na tela
azulada.
— Stanley! Jack fez outra! — quase gritou.
— Diabos! — exclamou ele, deixando a janela e indo
até a sala.
O locutor estava dando as últimas informações sobre
mais um crime de Jack, o Estripador. Uma garota fora encontrada num terreno baldio com as vísceras abertas, após
haver sido barbaramente espancada.
Os dois observaram o tempo todo, com atenção. Cenas
do local foram mostradas e, por instantes, surgiu o rosto da
garota.
— Tão jovem! — exclamou.
— Alguém precisa fazer alguma coisa... Positivamente! — afirmou Stanley, pensativo.
— Ela deveria ter a idade de nossa Albertine — acrescentou a mulher...
— Falando nisso... — disse Stanley, sacando o relógio
do colete. — Albertine está cinco minutos atrasada. O trem
já chegou há uns dez.
— Deixe-a, homem. Na certa se encontrou com Chester Blackpool. Eles estão namorando, sabia? — indagou ela, com um riso matreiro nos lábios finos e descorados.
— Gosto dos Blackpool. É uma ótima família. Albertine disse se ele já a pediu em casamento?
— Ora, Stanley! Estão namorando há duas semanas
apenas — resmungou ela, voltando à cozinha.
Ele deu algumas baforadas em seu cachimbo, depois
voltou à mesma janela. Olhou a rua, agora apenas uma
sombra mais clara no chão da noite.
Um farol iluminou-a. O veículo avançava em média
velocidade mas, repentinamente, freou. Seus faróis iluminaram um animal no centro da estrada.
Stanley arregalou os olhos.
— Cora, venha cá! — chamou, mas, quando a mulher
se aproximou da janela, o animal havia corrido para o bosque.
— O que foi? É o carro do Chester, não é? Houve alguma coisa?
— Juro que vi um lobo diante dos faróis — afirmou
ele.
— Ora, Stanley! — murmurou ela, dando de ombros.
O veículo, na estrada, voltou à velocidade anterior,
avançou até a encruzilhada, onde seus faróis descreveram
um quarto de círculo no ar, iluminando direto o rosto o
homem.
Stanley cobriu os olhos. O motorista abaixou as luzes
e veio estacionar diante da casa. Albertine e Chester desceram.
— Boa noite! — cumprimentou Chester, com um aceno.
— Boa noite! — respondeu Stanley e sua mulher veio
olhar por sobre seu ombro.
— É um belo rapaz, não é mesmo? — indagou.
— Sim, um bom partido, não há duvidas!
Chester e Albertine, de mãos dadas, aproximaram-se
um pouco mais da janela.
— Sabe o que vimos, ainda há pouco, na estrada? —
indagou a garota.
— Eu estava aqui mesmo e vi a freada. Juro como havia um lobo diante do carro...
— Sim, isso mesmo! — afirmou Chester. — Não era
um cachorro, tenho certeza.
— Eu não lhe disse? — comentou Stanley, voltandose para encarar a esposa.
— Um lobo... Um lobo aqui, em Coventry... — resmungou ela, incrédula.
— Era um lobo sim, mamãe. Correu para o bosque,
quando paramos o carro. Vi seus dentes e seus olhos. Brilhavam como os de um demônio — disse a garota, entusiasmada.
— Mas por que não entram? — convidou a Sra. Gardner, pondo a cabeça sobre o ombro do marido.
— Chester já tem que ir embora. Só veio me trazer —
falou a garota.
Chester se despediu de todos, apertou com firmeza as
mãos de Albertine, desejando que seus pais não estivessem
na janela.
Ela sorriu emocionada e ele caminhou até o carro. Estacou, subitamente, quando ouviu aquele uivo lancinante,
prolongando-se em seguida até morrer como um eco.
Voltou-se e olhou o Sr. Gardner, na janela.
— Ouviram isso? — indagou.
— Eu fique toda arrepiada! — exclamou Albertine.
— Era um lobo, tenho certeza absoluta! — afirmou
Stanley, intrigado e curioso.
***
Albert Humperdeen se acomodou melhor em seu assento, olhando com atenção a estonteante loura, sentada sozinha, algumas mesas além da sua.
Nos últimos minutos. Albert estivera intrigado, julgando que o uísque estivesse lhe pregando alguma peça.
Via a loura na mesa, através do espelho colocado na parede, à sua frente, após o balcão, no centro das prateleiras de
garrafas...
A loura conversava com alguém. Ria e fazia gestos
coquetes, mas não havia ninguém em sua companhia. Albert ria disso. Pediu outro uísque duplo.
Quando o garçom veio servi-lo, Albert indagou-lhe, a
voz prejudicada pela bebida.
— Há uma loura sentada duas mesas atrás da minha?
— Sim, ela está lá. Vestido vermelho, não?
— Sim, essa mesma. Você a conhece?
— Nunca a vi antes.
— Ela deve ser louca, não? — indagou Albert, com
uma expressão que o garçom não quis entender.
Conhecia Albert. Quando bêbado, era simplesmente
incompreensível. Dizia as piores asneiras. Em sua última
bebedeira, passou meia hora descrevendo as aranhas negras
que subiam pelas prateleiras e se penduravam no teto.
— Louca ou não, é tentadora, não é mesmo? — retrucou, afastando-se.
Albert tomou um gole, depois ergueu o copo até a altura dos olhos. Através do líquido dourado observou o espelho. Lá estava a loura, novamente falando sozinha.
Tentou girar a cabeça lentamente, mas sabia seu estado. Por instantes o salão girou. Ele estacou, os olhos fixos
no espelho. Com quem ela falava, afinal?
Quando o salão se aquietou, continuou virando lentamente a cabeça, até que a loura entrasse em seu campo de
visão. Lá estava ela, em seu vestido vermelho muito decotado, deixando à mostra seios fartos e provocadores.
Piscou os olhos. Depositou o copo sobre a mesa e com
as duas mãos segurou a cabeça. Havia um homem com a
loura. Era alto e magro, feições ligeiramente pálidas, mas
lábios vermelhos e grossos.
Desviou lentamente os olhos para o copo de uísque.
Todo o movimento durou cerca de um minuto. Albert percebeu, então, o quanto estava embriagado.
Durante todo o tempo estivera observando a loura,
julgando que ela estivesse sozinha, mas havia alguém com
ela. Era incrível o que a bebida podia fazer.
Levantou os olhos para o espelho e viu apenas a loura.
Piscou os olhos, esfregou-os e tornou a olhar. Lá estava ela,
sozinha na mesa. Podia jurar que ela estava só. Voltou-se
repentinamente, olhando a mesa.
Lá estava o tal sujeito. Por instantes todos os efeitos
do álcool se dissiparam. Ele girou os olhos do espelho para
a mesa, incrédulo.
Depois começou a rir, quando o salão girou vertiginosamente e ele se agarrou com ambas as mãos ao tampo da
pesada mesa de carvalho.
Rostos se voltaram para olhá-lo com piedade. Albert
ria como se tivesse ouvido a melhor piada de toda a sua vida. Alternou olhares novamente, entre o espelho e a mesa,
incapaz de compreender aquela peça.
Ergueu-se, apoiado à mesa. O bar girou muitas voltas.
Os rostos continuavam fixos no seu, mas a ele isso não
mais incomodava.
Firmou o corpo, finalmente, olhando fixamente o homem que acompanhava a loura. Por momentos pareceu medir a distância e sua capacidade de chegar intacto até lá.
Depois, soltou-se da mesa e cambaleou, indo parar diante da outra. O homem e a loura ergueram os olhos para
ele. Albert puxou rapidamente uma cadeira e sentou-se.
Apontou o indicador para o rosto do desconhecido e engasgou-se com as palavras.
Riu em seguida, voltando o corpo para apontar o espelho. Os olhos do desconhecido brilharam e uma expressão
ameaçadora tomou conta de seu rosto, como se uma fera
instintiva despertasse dentro dele.
— Imagine que... Estou bêbado! Deus, como estou
bêbado! — balbuciou Albert.
— Esta sendo inconveniente, cavalheiro! — disse o
companheiro da loura.
— Sim, por que não dá fora? — acrescentou a loura,
num tom vulgar.
— Eu já vou... Mas você não está! — afirmou o bêbado, encarando o outro.
— Está dizendo asneira! — comentou ele, incomodado...
— Eu estava observando pelo espelho. Só via essa deliciosa senhorita e mais ninguém. No espelho você não estava, mas estava aqui — disse Albert, patético, voltando a
rir.
— O que ele está dizendo? — quis saber a garota.
— Como vou saber? Ele está embriagado! — disse o
homem, erguendo-se e tomando Albert por um dos braços.
A pressão daquela mão assustou Albert. Era como se
uma garra de gelo fosse posta ao redor de seu braço, vencendo a barreira da camisa de lã.
— Espere, eu estou bem... — resmungou.
— Você está bêbado. Por que não vai para casa? —
disse o homem, mais ordenando que pedindo.
Seu tom de voz trazia uma ameaça que, apesar da embriaguez, Albert pôde entender. Olhou-o. Aqueles olhos eram assustadores. Aqueles lábios sugeriam lembranças grotescas, animais.
— Eu vou... Eu vou sim — afirmou, livrando-se da
mão que o segurava. — Já estou indo. Sei quando chego ao
limite — resmungou em seguida, cambaleando por entre as
mesas, esbarrando em algumas.
O homem ficou em pé ao lado da mesa, olhando-o sair
pela porta. Voltou-se para a garota.
— Não me demoro — disse, depois deslizou na direção dos fundos.
Passou pela porta, dos sanitários e foi até outra, mais
além, no corredor. Abriu-a e saiu para o estacionamento.
Com passos rápidos ele contornou a construção. Albert vinha vindo pela calçada, apoiando-se ao muro que acompanhava o estacionamento.
Estacou, arrepiado, ao ver aquele vulto diante de si.
Piscou firme os olhos. A luz cheia, surgindo a suas costas,
foi iluminando o rosto do homem diante de si.
— Ei, você é o homem que não estava no espelho —
reconheceu, esboçando um sorriso.
O outro permaneceu em silêncio. Seus olhos brilharam
quando um farol os iluminou. O veículo passou, mas o brilho persistiu.
Albert cambaleou e se sentou no muro baixo, olhandoo. Ele se aproximou lentamente, como uma sombra que viesse da única luz que brilhava no estacionamento vazio. A
ruela adiante, que desembocava no Baker Street, estava às
escuras. Albert sentiu medo. Um medo estranho, instintivo,
que fez arrepiar seu corpo.
— Sim, sou o homem que não estava no espelho —
murmurou, num tom grave e metálico ao mesmo tempo,
impessoal, sem trair sentimento algum.
— Como pode estar... — ia dizendo Albert, mas calou-se ao perceber a luminosidade que brotava do corpo diante dele, envolvendo-o gradativamente, como radiações
trêmulas e confusas, como chamas que se desprendessem
de uma acha de lenha e se apagassem no espaço.
Endireitou o corpo, sentindo-se arrepiar inteiramente.
Qualquer coisa gosmenta travou-lhe a boca, grudando sua
língua como uma paralisia momentânea.
A luminosidade cresceu, tomou a forma do corpo do
outro, depois foi se transformando, metamorfoseando, encolhendo-se, até que as asas negras de um enorme morcego
fossem agitadas à sua frente.
Não quis acreditar no que via, mas o vento batendo em
seu rosto, trazendo um cheiro fétido de cemitério, dava-lhe
a certeza de que a visão era real.
Recuou, cambaleando. O morcego bateu as asas, pairando a sua frente, depois adiantou as garras como uma ave
de rapina e avançou direto para o seu rosto.
Albert cobriu-o com as mãos e tentou correr, louco de
pavor. Suas pernas embaralharam-se e ele caiu pesadamente, a cabeça batendo contra as pedras do calçamento. Tentou se levantar, mas o mundo girou ao seu redor e suas forças se foram, quando o coração pareceu explodir.
CAPÍTULO 2
Mary Reading foi até o armário do banheiro, abriu-o e
apanhou o vidro de pílulas para dormir. Deixou cair uma
delas sobre a palma de uma das mãos.
Olhou-se no espelho, após fechar a porta do armário.
Toda a tensão e o medo que haviam se instalado nela se refletiam em suas faces.
Profundas olheiras davam-lhe um ar sombrio e cansado. A pele perdera o brilho, como resultado dos constantes
sobressaltos e das noites terríveis que vivia, desde que deixara Falmouth e viera para Londres.
Não conseguia esquecer os acontecimentos. Duas de
suas amigas haviam morrido tragicamente. Ela mesma passara por uma experiência que jamais alguém acreditaria.
Tomou uma pílula, desligou a luz e atravessou a sala,
rumando para seu quarto. A velha tia já dormia, no aposento ao lado. Mary entrou e olhou a porta. Noite após noite
lutava contra aquele fantasma que vivia dentro dela.
Fechou-a lentamente, passou o trinco e girou duas vezes a chave. Por alguns instantes ficou olhando a sólida
madeira trabalhada.
Seus pensamentos voltaram atrás no tempo, até uma
noite de pesadelo. Vira aquele monstro ameaçador atravessar a porta. Fosforescente e aterrador, aquele vulto vivia em
sua mente.
Foi para a cama. Olhando o relógio na mesa de cabeceira. Ao seu lado estava um rosário. A mão da garota se
estendeu, tocando-o. Apertou-o lentamente entre os dedos,
fechando os olhos e começando a rezar.
Não sabia até quando poderia suportar aquilo. Seu
medico já advertira... Estava à beira de um colapso nervoso. As pílulas para dormir à noite e os estimulantes pela
manhã estavam criando um círculo-vicioso perigoso que
deveria ser interrompido, antes que se tornasse irreversível.
Mary sabia de tudo aquilo, mas como sair à noite se
em suas lembranças havia um monstro onipresente, cujas
garras pairavam sobre ela como a sombra do próprio demônio?
Talvez devesse sair, divertir-se um pouco, quebrar aquela rotina perigosa. Teria de criar muita coragem para
aquilo. Se ali, em seu quarto, diante da porta trancada, não
se sentia segura, como poderia sair e passear!
Aquele rosário parecia ser sua única arma, a única coisa a dar-lhe um pouco de confiança. Suspirou, olhando o
abajur. Prometera, na noite anterior, que dormiria com a luz
apagada.
Seus dedos se esticaram e brincaram com o interruptor. Bastaria um toque e a escuridão se faria presente. Tinha
de vencer o seu medo, mas seus dedos tremeram e recuaram.
Gotas de suor brilharam em sua testa. Ela afundou-se
sob as cobertas, cobrindo-se até o queixo. Ficou olhando a
porta, o olhar quase demente, a testa vincada por rugas.
Seu pavor não tinha limites.
***
Vlad Alucard sorriu, mostrando seus dentes brancos e
perfeitos. Berta Wistomer estendeu a mão e lhe tocou os
lábios com o indicador.
— Que belo sorriso você tem! — murmurou ela, apaixonada.
Vlad cravou nela seus olhos penetrantes e sorriu levemente, saboreando a volúpia que se agitava em seu corpo. Sua mão subiu pelo braço da garota, até o ombro, onde
acariciou. Seu polegar contornou pescoço dela, pousando
sobre a veia principal que palpitava ao compasso das batidas do coração.
Seu olhar brilhou mais forte e seus lábios se contraíram, num riso de satisfação. A garota estava seduzida.
Seu olhar se desviou para um homem que entrava no
bar, ligeiramente alterado. Foi até o balcão, pediu uma bebida e entornou-a num só gole.
Conversou por instantes com o barman, que se alarmou e deixou seu posto, após dizer algumas palavras ao
garçom. Vlad fez um sinal a este.
— Mais alguma coisa, senhor? — veio indagar-lhe o
rapaz.
— Mais um drinque para a garota aqui... Algum problema lá fora? — indagou, desinteressadamente.
— Sim, parece que acharam Albert Humperdeen caído
no calçamento. Era fatal que acontecesse cedo ou tarde.
— Não está falando daquele bêbado que veio nos incomodar, está? — indagou Berta.
— Sim, ele mesmo, senhorita.
— Alguma coisa grave?
— Pelo que disse Mike, está morto. Bateu com a cabeça ao cair e... Desculpe-me! — apressou-se em dizer, ao
perceber que impressionara a garota.
— Traga logo aquele drinque — pediu ela. — Sou
muito sensível a essas coisas. Era um bêbado, mas não me
pareceu uma má pessoa...
— Garanto que não era — afirmou o garçom, afastando-se.
***
Torg já estava familiarizado com aquelas escadarias
escuras e aqueles enormes salões, cobertos de teias de aranhas e muita poeira.
Avançou coxeando, após galgar as escadas que levavam à torre principal. Aproximou-se da seteira e olhou adiante, na direção da casa iluminada além do bosque e da estrada.
Um lobo uivou, lento e agudo. Outro se juntou a ele e
o dueto macabro incomodou o corcunda.
— Pelos cascos de Belzebu! — murmurou. — De onde surgiram esses lobos?
Debruçou o corpo, olhando na direção do bosque, mas
nada podia ver, além de sombras que vingavam por entre as
árvores. Depois, com um brilho de luxuria nos olhos, voltou a olhar a casa.
Só então desembrulhou avidamente o pacote que trazia nas mãos. Fora à cidade naquela tarde e comprara aquilo. Estava ansioso para testar seus efeitos.Jogou para o lado
o papel, depois abriu o estojo. Tomou o potente binóculo
em suas mãos, sorrindo. Assentou-o na direção da casa, observando uma a uma as janelas iluminadas. Estacou numa
delas. Viu o vulto feminino deslizar de um lado para outro.
Era ela, não havia dúvidas. Seus olhos se arregalaram,
quando o vulto parou diante da janela aberta.
Com movimentos lânguidos, ela começou a se despir.
O corpo do corcunda se agitou, inquieto, os olhos grudados
às lentes.
Uma de suas mãos foi se estendendo lentamente, como
se quisesse tocá-la, tão perto a sentia. Um fio gosmento escorregou do canto de seus lábios, entreabertos de gozo.
Albert Gardner deixou a blusa sobre a cabeceira da
cama, depois despiu a saía. Apenas a anágua transparente
ocultava suas pernas esculturais.
Torg grunhiu qualquer coisa, a mão agitando-se diante
do binóculo, numa sanha voluptuosa. Albertine baixou a
anágua. Torg fungou, grunhindo sempre, a mão pousando
sobre a pedra e crispando-se como querendo esfacelá-la.
— Bela! — rouquejou, quando ela afrouxou o sutiã,
depois a tirou, revelando os seios redondos e pequenos,
tentadores.
A língua áspera percorreu os lábios de um lado para
outro, impaciente. Albertine escovou os cabelos, depois
vestiu a camisola. Foi até a janela e baixou-a. Depois puxou as cortinas tapando a visão do monstro.
Torg ficou ali, ofegante, olhando ainda, como se esperasse ver, através da pequena fresta o corpo que o seduzira.
Baixou o binóculo. Os lobos voltaram a uivar. A luz
retornou à janela do quarto e o vulto de Albert se destacou.
Os lobos a assustavam. Ao perceber isso, uma fúria
assassina tomou conta do corcunda. Ninguém deveria incomodar o sono da garota.
Ele girou o corpo, encontrando algumas pesadas pedras soltas. Urrou ao erguer uma delas e arremessá-las para
baixo. Outro lobo uivou. Torg ergueu outra pedra, depois
mais outra, atirando-as para baixo, até que se esgotassem.
Agarrou-se a uma das ameias, tentando arrancar o bloco. Não o conseguindo, chutou-a e andou de um lado para
outro, como fera enjaulada.
— Malditos! — grunhiu, retornando para a escada e
descendo apressadamente.
Momentos mais tarde, deixava a passagem secreta que
conduzia ao jardim. Viu-se, logo em seguida, no bosque.
Os lobos estavam silenciosos, mas Torg podia sentir-lhes a
proximidade.
Um deles rosnou a suas costas... Torg se voltou para
encará-lo. Os olhos do animal chamejavam na noite. Torg
avançou para ele. O animal saltou no ar e seus corpos se
chocaram, rolando sobre as folhas secas.
Os braços do corcunda fecharam-se ao redor das costelas do animal e seus dentes cravaram-se no pescoço da fera, que se debateu, uivando e rosnando.
***
O motorista, intrigado, voltou o rosto para olhar seus
passageiros. O homem no banco traseiro olhou-o como que
fuzilando-o.
Um arrepio percorreu seu corpo. Ele se endireitou, atento ao volante, uma sensação estranha e opressiva fazendo-o pisar mais fundo no acelerador.
Arriscou olhar, novamente, pelo retrovisor. Lá estava
a loura, apenas ela sozinha no banco. Onde estava seu acompanhante?
Já estava habituado aos tipos mais estranhos em seu
carro, mas, naquela noite, não conseguia entender o que se
passava. Ao olhar para trás, vira o homem; pelo retrovisor
não conseguia focalizá-lo.
Suspirou aliviado quando chegou ao endereço fornecido pela garota. Era uma casa de cômodos, numa viela escura de Stevenage.
Recebeu uma nota de dez libras e remexeu seus bolsos
à procura de troco.
— Pode ficar! — disse o homem bem vestido que acompanhava a loura.
Seu tom de voz metálico fez o motorista estremecer.
Pôs o carro em movimento e afastou-se rapidamente.
Vlad olhou a garota no fundo dos olhos, depois baixou
o olhar até o pescoço torneado. A volúpia em seu corpo se
assanhava, intensa como a lua cheia que brilhava no céu.
— Vamos entrar? Meu quarto é o primeiro, sob a escada. Não faremos barulho algum e estaremos a sós. — sugeriu ela, com malícia, levemente embriagada.
Conhecera aquele homem fantástico no começo da
noite. Haviam estado em dois ou três bares, antes do último, onde ela bebera um pouco além da conta.
Sentia-se alegre e excitada. Não era todo dia que se
via numa companhia tão distinta. Pelos modos e pelas roupas, juraria tratar-se de um cavalheiro. Se assim fosse, poderia cobrar um bom preço e fazer valer a noite.
Seus braços sensuais enlaçaram o pescoço de Vlad.
— O que quer, amorzinho?
Ele sorriu, olhando a lua por instantes. Fechou os olhos e apertou a garota contra seu corpo. Ela movimentou
os quadris sugestiva e provocantemente, roçando-se nele.
Lábios frios pousaram sobre sua face, depois deslizaram para seu pescoço, mordiscando gostosamente. Ela encolheu os ombros, arrepiada.
— A noite está tão bonita... Você e tão bonita... —
rouquejou ele, a voz perdendo aquele timbre metálico para
adquirir uma tonalidade quente e sensual que a fez vibrar.
— Minha janela dá para o jardim... Vamos nos amar à
luz da lua — propôs, esfregando-se com volúpia ao corpo
dele.
Vlad sorriu, mostrando os dentes. Seus lábios haviam
se tornando mais vermelhos e suas mãos apertavam com
volúpia maior as carnes macias daquele corpo.
— Sim, por que não? — respondeu.
Ela o beijou avidamente, adiantando sua língua. Ele a
prendeu ante os dentes, deixando-a escorregar em seguida.
— É só o tempo de encontrar a chave? — disse ela,
soltando-o e vasculhando sua bolsa.
Adiantou-se até a porta. Abriu-a e acenou convidativamente para ele, que a seguiu pelo corredor, até outra porta, fracamente iluminada por uma lâmpada no alto da escada.
— É aqui — sussurrou ela, abrindo e deixando-o passar.
Ele avançou até o centro do aposento, olhando ao seu
redor em seguida. Era um quarto vulgar, com uma enorme
cama coberta por uma colcha vermelha.
Berta fechou a porta atrás de si, depois foi até a janela
e afastou as cortinas. O luar incidiu sobre o avermelhado da
colcha, produzindo um efeito que agradou aos olhos dele.
— O banheiro á ali — apontou ela.
— Sim — apenas disse ele, sentando-se na cama.
— Vejo que está com pressa — sorriu ela, com malícia, começando a se despir.
Primeiro os sapatos, depois a saía e, finalmente, a
blusa. Apenas de calcinha e sutiã ela se aproximou, flexio-
nando uma das pernas e repousando-a sobre os joelhos dele.
As mãos frias subiram por suas coxas, ultrapassaram a
linha da cintura, resvalaram pelos seios e foram acariciar o
pescoço dela.
— Não vai se despir! — perguntou ela, debruçando-se
sobre ele, fazendo seus seios roçarem os cabelos dele.
— Tudo em seu devido tempo — murmurou ele, a voz
rouca e excitada, puxando-a para si, esfregando-se a ela
como se toda aquela volúpia contida durante a noite explodisse naquele momento.
Girou o corpo, pesado sobre o dela. A lua brilhava nos
olhos de Berta. Seus lábios entreabertos sugeriam prazeres.
Vlad Alucard, o Conde Drácula, segurou aquele rosto entre
suas mãos frias, depois deixou que seus lábios deslizassem
para o pescoço da mulher.
As carícias daqueles dentes provocaram arrepios, excitados no corpo dela. Os movimentos inquietos e bruscos
daquele homem denunciavam um desejo ardente.
— Beije-me! — pediu ela, procurando desabotoar-lhe
a camisa.
— Sim, querida — rouquejou ele, quase num grunhido, torcendo a cabeça dela para um lado e pousando seus
lábios sobre a veia jugular.
Por instantes sentiu, apenas o palpitar ritmado da corrente sanguínea. Estremecimentos abalaram seu corpo. Sua
boca se abriu mais e mais. Os caninos se agigantaram, pontiagudos e mortais.
Berta não entendeu aquela fisgada em seu pescoço,
nem os gorgulhos sôfregos. Algo quente deslizou pelo seu
pescoço, sendo perseguido pelos lábios do vampiro, que retornaram, a seguir, para cima da ferida, sugando-a, sorvendo o sangue que jorrava incontrolado.
Berta quis gritar, dominada pela dor e pelo medo. Sabia que poderia fazê-lo, mas havia qualquer coisa ordenando-lhe que se mantivesse calada.
Seus olhos se fixaram na lua, brilhando atrás do vidro
sujo da janela, enquanto Drácula se esfregava a ela com
lascívia, apertando suas carnes, fungando, bebendo seu
sangue.
Espasmos agitaram seu corpo, ao mesmo tempo em
que o dela estremecia agonizante. Quando a última gota
havia sido sorvida. Drácula rolou para o lado ofegante,
lambendo os lábios, os olhos injetados e arregalados, o
corpo saciado do voraz e nojento apetite.
Ergueu-se em seguida. O luar iluminava o cadáver sobre a cama. Drácula recompôs as roupas, depois foi abrir silenciosamente a janela.
Por momentos fitou o corpo em destaque contra o
vermelho da colcha, depois olhou a noite.
Uma luminosidade cercou seu corpo, tomando seu
formato. Depois, alterou-se até a forma de um morcego enorme, que bateu suas asas e guinchou através da janela.
Subiu alto, muito alto, onde podia sentir seu domínio
sobre a terra e sobre os mortais. Precisava voltar ao castelo
e repousar. Seu fiel criado se encarregaria do resto.
— Onde ela está, mestre? — indagou-lhe Torg, quando a metamorfose se operou e o vulto sinistro do vampiro
se firmou à sua frente.
— Na Real Cross, em Stevenage. O número da casa é
cinco. Se for até o jardim, ao lado, verá a janela aberta. Livre-se dela como das outras vezes...
— Sim, mestre — concordou o corcunda, satisfeito.
CAPÍTULO 3
Coxeando, Torg se encaminhou para a saída que o levaria para fora do castelo abandonado. Drácula olhou-o fixamente:
— Torg! — chamou, e seu tom de voz continha uma
ameaça.
O corcunda se voltou, reconhecendo o tom, e olhou-o
com olhos submissos.
— Deixe os lobos em paz, Torg! — ordenou Drácula.
— Eu não gosto deles... Um deles me atacou está noite... — gaguejou, torcendo as mãos.
— Deixe-os em paz — voltou a ordenar o mestre das
trevas.
Torg abaixou a cabeça, depois se retirou. Algum tempo depois atravessava o bosque. Ouvia o rugir dos animais,
seus passos rápidos sobre as folhas que o outono fazia cair
das árvores.
Quando ganhou a estrada, olhou na direção da casa
dos Gardner. Lá estava, possivelmente adormecida, deliciosa e lânguida sobre os lençóis, aquela bela garota que o perturbava intensamente.
Era uma sensação havia muito esquecida. Algo que
tocava seu coração monstruoso e fazia seu corpo retorcido
vibrar uma emoção leve, antiga e jovem ao mesmo tempo.
Seguia em frente, o mais rápido que podia. Chegou à
estação. Comprou um bilhete e foi para a plataforma esperar.
Sua figura grotesca chamava a atenção. Torg percebia
olhares de horror e piedade, mas não se importava com isso. Acostumara-se àquela aversão natural que seu corpo
provocava nas pessoas.
Um dia voltaria a ser belo. O mestre lhe prometera isso e essa esperança animava pensamentos como os que tinha a respeito daquela garota.
Algum tempo depois chegava a Stevenage. Torg apreciava aquelas viagens rápidas de trem. O barulho ritmado, a
paisagem diante de seus olhos, a distância passando como
as horas.
Stevenage dormia calmamente. Com uma habilidade
que desenvolvera ao longo dos anos, Torg caminhou pelas
sombras como se fosse uma delas.
Localizar o endereço não foi difícil. Um instinto tenebroso parecia guiá-lo ao encontro das vítimas de Drácula,
como se fosse um cão de caça em busca da presa abatida
por seu dono.
Circulou a casa. Ganhou o jardim. Viu a janela aberta.
Tremores espasmódicos abalavam seu corpo, eriçando seu
rosto monstruoso.
Com uma agilidade inimaginável em seu corpo retorcido, saltou pela janela. Sobre a cama, recortada contra o
vermelho vivo da cocha, estava a garota.
Seu corpo nu assanhou a volúpia do corcunda, que ofegou, aproximando-se. Havia beleza e maciez à sua disposição. Ele se sentou ao lado da cama. Suas mãos se estenderam, tocando-a.
Deslizou os dedos pelas carnes inertes da garota, apertando-as, gozando-as. Depois concentrou sua atenção no
rosto deformado pelo terror.
Inclinou-se para ele e o beijou, mordiscando as faces
prendendo os lábios entre seus dentes e alisando-os com a
língua obscena.
Deitou-se inteiramente sobre ela, esfregando-se e ofegando, como se um prazer indescritível e indescritível e inenarrável o fizesse vibrar.
Estacou, porém, quando percebeu a marca roxa, com
as duas perfurações características, no pescoço dela. Ergueu-se. Havia um espelho ao seu lado e Torg olhou-o.
Um riso sinistro desenhou-se em seus lábios refletindo uma revolta interior que se transformou no mais puro
ódio. Drácula, com sua bela figura e seus modos cavalhei-
rescos a conquistara. Para Torg, porém, ela jamais olharia,
a não ser com asco.
Estava ali, no espelho, toda a verdade. Era horrendo
era monstruoso, incapaz definitivamente de despertar qualquer outro sentimento no coração de uma mulher.
— Coração! — murmurou ele, quase num rugido enquanto suas mãos se crispavam.
— Ele se debruçou sobre o corpo da garota, socou
seus seios, seu ventre, seu sexo, seus lábios pálidos e frios,
até que se sentisse acalmar.
— Torg teria te amado... — balbuciou, trêmulo, depois enrolou o corpo da garota na colcha e levou-a para janela.
Saltou para fora, jogou o fardo macabro sobre os ombros, atravessou o jardim e foi para a rua. Começou a caminhar, ainda ofegante pelo ódio e pela revolta.
Ao dobrar a esquina, um policial solitário se aproximava, assobiando e girando o cassetete numa das mãos. Ao
ver Torg com sua carga, indagou, intrigado.
— O que é isso?
Torg o olhou direto nos olhos. O policial estremeceu.
— Nada. Não está vendo que é nada? — falou Torg
passando por ele...
Por instantes o policial ficou estático depois começou
a caminhar, assobiando e girando o cassetete na mão, sem
olhar para trás.
Torg encontrou um terreno baldio, onde havia restos
de uma construção. Avançou por ela, até um ponto mais
oculto. Deitou o corpo da garota e descobriu-o. Olhou-o
por um longo tempo.
O brilho do luar ressaltava a palidez daquela pele. Ele
se inclinou, então, e suas mãos pousaram logo acima dos
seios. Um brilho macabro em seu olhar, um riso de gozo e
suas mãos, como garras afiadas, rasgaram as carnes da garota e escavaram-nas em busca do coração.
Arrancou-o e ergueu-o diante dos olhos. Ali estava o
início e o fim de tudo, receptáculo da maldição, fonte dos
sentimentos.
Levou-o à boca e mordeu-o. Seus corpo estremeceu
seus olhos se esgazearam. Como fera faminta e histérica foi
devorando-os aos bocados, crispado pelo gozo, trêmulo pela emoção horrenda, marcando apressado, fungando esganadamente.
Quando terminou, empurrou o corpo da jovem para
um canto e apanhou a colcha vermelha. Enrolou-a ao pescoço como uma capa, depois saiu coxeando.
***
Albertine entrou no escritório e foi direto para sua mesa. Guardou a bolsa numa das gavetas, depois olhou a correspondência. Separou-a e foi distribuir pelas outras mesas.
Mary Reading chegou em seguida, as olheiras marcando seu rosto, um aspecto horrível para uma garota em
sua idade.
— Olá — disse-lhe Albertine. — Como passou a noite?
— Péssima, como sempre.
Albertine terminou de distribuir a correspondência,
depois voltou para junto da mesa de Mary. Outras pessoas
chegavam. Dentro em pouco o escritório seria uma agitação
total.
— O que você tem, afinal? — indagou Albertine.
— Eu não sei explicar... Nem sei se me acreditariam...
É absurdo demais, sabe?
— Você está assim desde que voltou. Foram as mortes
de Susan e Dora que a abalaram tanto? O que houve em
Falmouth, afinal.
— O que estava no jornal... Apenas o que estava no
jornal — afirmou estremecendo.
Procurou um vidro de pílulas na bolsa. Engoliu uma
delas, evitando encarar a amiga.
— Eu também não dormi muito bem ontem à noite.
Imagine que há num bosque perto de minha casa...
— Lobos? — estranhou Mary.
— Sim, lobos mesmos. Eles uivam toda a noite. Mas o
pior não é isso. Quando fui me deitar, tive a nítida impressão de estar sendo observada. Sabe como é isso, não? Você
está num quarto, no segundo andar de sua casa, despindose diante da janela e vem aquele pressentimento... O pior de
tudo era que a sensação era de ameaça também. Uma ameaça indescritível, mas forte, como se um fato irreversível estivesse para acontecer. Foi angustiante... — interrompeu-se,
percebendo os olhos arregalados de Mary.
— Nunca ninguém explicou tão bem... É isso, Albertine. É isso o que sinto noite após noite. Um temor intenso,
sobrenatural...
Seu tom de voz era rouco, impressionante, e fez Albertine engolir em seco e esboçar um sorriso medroso.
Balançou a cabeça de um lado para outro.
— Acho que estamos as duas muito nervosas — disse.
— precisamos urgentemente de um pouco de diversão...
Escute, por que não saímos juntas uma noite dessas? Chester tem muitos amigos, estou certa de que encontrará uma
boa companhia para você... Sim, isso mesmo. Hoje é sexta,
poderemos fazer isso esta noite. Eu falo com Chester, está
bem?
— Eu não sei... Eu... — gaguejou Mary, incapaz de
expor seus temores à amiga.
— Está decidido!
— Não, espere. Está noite não. Minha tia recebe as
amigas para o bridge... Eu preciso estar lá para servi-las e...
— Amanhã, então. Isso, amanhã será melhor. Sairemos ao anoitecer, jantaremos fora. Depois iremos ao tea-
tro... Há um belo espetáculo no Albert hall. Terminaremos
a noite numa boate... Vamos, está bem assim?
Mary respirou fundo, trêmula e sufocada. A ideia de
sair à noite a assustava tanto quanto ficar em seu quarto,
olhando aquela porta, apertando aquele rosário, esperando
que a qualquer momento algo sobrenatural acontecesse para fazer cumprir aquela ameaça permanente que a punha em
constante sobressalto.
Mas era o que precisava fazer. Tinha de sair, tinha de
voltar ao à sua vida. Estaria acompanhada, haveria gente ao
seu redor. Talvez não fosse tão difícil assim vencer aquele
medo.
Sua cabeça balançou num sinal de aprovação.
***
O Prof. Hilgenstiller desceu do táxi diante daquela estranha loja na King’s Road. Pagou ao motorista, depois olhou as vitrines com os artigos mais estranhos.
— Quem diria? — balbuciou, intrigado com tudo aquilo.
Avançou pela porta. Uma sineta tocou acima de sua
cabeça. Um velho encarquilhado ergueu-se detrás do balcão, segurando um crânio de gato em seus dedos esqueléticos. Seu olhar brilhou. Ao longo do tempo aprendera a reconhecer as pessoas que entravam em sua loja.
Sabia aquelas que o faziam por curiosidade e as que
tinham algo em mente e que vinham, decididas, à procura
de alguma coisa que ao ajudasse.
No caso do homem magro e alto, de sobretudo cáqui,
soube imediatamente que vinha à procura de algo.
— Sou o Prof. Hilgenstiller. Nós falamos pelo telefone...
— Oh, sim, professor! — respondeu o outro, sorridente. — Sou Abner Banks, eu me lembro de seu telefonema.
Venha por aqui, por favor. Ao longo do tempo, tenho recebido os pedidos mais incríveis... Quando falei com o senhor, percebi que tinha exatamente o que procurava... Está
aqui, no depósito. É valioso demais para ser exposto — foi
dizendo enquanto conduzia o professor para os fundos da
loja.
Ali, num quarto carente de arrumação, estacou diante
de uma prateleira, sondando-a.
— Sim, ali está — disse apontando uma pequena caixa de veludo negro, puído pelo tempo, com manchas que
atestavam sua passagem pelas idades. — Pode alcançar para mim? Sim, essa mesma.
O professor baixou a pequena e pesada caixa. O velhote tomou-a de suas mãos e levou-a para uma mesa velha.
Acendeu uma lâmpada e dirigiu seu foco para cima da caixa. Espanou a poeira com suas mãos, depois tocou o fecho.
Antes de abrir, olhou o professor.
— Tenho por princípio jamais indagar, professor, mas
esta é uma peça especial para um pedido especial. Acredita
mesmo que ainda existam vampiros?
Pela mente do professor, uma fração de segundo, desfilaram muitas imagens terríveis. Sim, acreditava porque vira, porque sentira em suas próprias carnes a influencia maléfica e maldosa daquele ser demoníaco.
Um rastro de vítimas já se formara à passagem do
morcego humano. Vitimas que sofreram, após sua morte,
ultrajes infames para que seus corpos se vissem livres daquela maldição.
— Aí está, professor. O espelho da Transilvânia, o autêntico, o único, a arma fatal para se destruir um vampiro.
Hilgenstiller olhou a peça que repousava em seu estojo. O espelho oval tinha uma moldura de prata interiça, toda
trabalhada com símbolos que pareciam lembrar, ainda que
vagamente, a Via Crucis.
No alto, com pontas semelhantes às de estacas, destacava-se uma cruz. A prata, em alguns pontos, apresentava
as marcas características do tempo.
Olhou, então, o pergaminho. Desdobrou-o diante dos
olhos. Era húngaro arcaico, com elementos turcos, realmente curiosos. Ainda assim, não era difícil, para um homem
com o seu conhecimento, saber o que estava escrito.
— Interessante! — exclamou, começando a decifrar o
pergaminho.
— O que diz aí, afinal, professor? — quis saber o velhote.
— Deixe-me ler... Deixe-me ler... — pediu o cientista,
debruçando-se sobre o papel...
A sineta lá fora tocou, anunciando a chegada de outro
comprador.
— Vou deixá-lo sozinho, professor. Fique à vontade
— disse.
Hilgenstiller puxou uma velha cadeira e sentou-se. O
que lia era promissor e diversas vezes interrompeu a leitura
para olhar com atenção o espelho.
Quando o Sr. Banks retornou, algum tempo depois, o
professor segurava o espelho em suas mãos, olhando-se na
superfície polida.
— E então, professor? — indagou o velhote.
— Fascinante! Realmente fascinante! Quanto custa?
O velhote engasgou. Havia interesse no comprador e
não restava a menor dúvida de que a peça era antiga e autêntica. Seu tino comercial apontava-lhe a perspectiva de
uma boa venda. Seu espírito, porém, fazia-o sentir-se quase
apiedado do olhar sofrido e torturado do professor.
— Cem libras — disse, embora soubesse que se arrependeria.
CAPÍTULO 4
O Prof. Hilgenstiller levantou os olhos para o comerciante.
— Por que apenas cem libras, Sr. Banks?
— Foi o que me custou, professor... Depois, talvez seja exagero meu, mas creio que o senhor precisa desse espelho... Não o quer como antiguidade. Vê nele a arma que é,
uma arma especial para um fim especial. Se estou certo na
sinceridade que vejo em seus olhos, eu me sentiria um rato
se o explorasse.
— É um bom homem, Sr. Banks. Eu pago as cem libras — disse o professor, sacando sua carteira.
O velhote recebeu o dinheiro, dobrou-o e meteu-o no
bolso de seu colete. Depois olhou o espelho e o pergaminho.
— Conte-me, agora — pediu.
— Está bem, acho que lhe devo isso. Segundo o pergaminho, este espelho é uma obra de frades de um convento da Transilvânia, estudiosos do fenômeno e ansiosos pela
descoberta de algo que livrasse a região de um terrível mal.
Vampiros não se refletem, são sombras vivas, matéria ine-
xistente que a força de uma maldição mantém unida e atuante. É difícil entender...
— Estou compreendendo... Continue, por favor!
— Sendo assim, o espelho foi elaborado com prata e
uma secreta receita de polimento. Atrás do vidro, como matéria que produz os reflexos, está uma porção de água benta. Penso que jamais notou isso...
— Incrível! — exclamou o lojista.
— Estes símbolos aqui — apontou. — São todos símbolos máximos do cristianismo, elementos de bondade, de
amor, de salvação. Um espelho comum não refletiria a imagem de um vampiro. Este, conforme diz o pergaminho,
refletirá. O vampiro verá sua imagem, talvez a primeira vez
em séculos, e se sentirá atraído, cativado, magnetizado,
preso. Não conseguirá se afastar do espelho, nem poderá se
aproximar o bastante para destruí-lo, por causa de seus elementos e da cruz. Lentamente será destruído, portanto.
Mesmo que se cubra, que evite olhar a cruz, estará ali, à espera do golpe de misericórdia, se é que existe misericórdia
para um monstro.
O comerciante ouviu perplexo a exposição do professor. Ouvindo-o, não tinha a menor dúvida de que ele tinha a
arma e, com roda a certeza, o vampiro em quem a usaria.
Durante todo o tempo ali, em sua loja, habituara-se ao
charlatanismo. O que o professor lhe dizia, no entanto, não
lembrava isso.
Sentiu medo. Um medo instintivo, ameaçador, como
jamais sentira em toda a sua vida.
— Estou impressionado, professor. Realmente impressionado. Gostaria de lhe perguntar mais, mas sinto que isso
me assustaria muito. Boa sorte, professor. Boa sorte mesmo! — finalmente, um calafrio percorrendo seu corpo.
Hilgenstiller dobrou o pergaminho, guardando-o no
estojo com o espelho e ergueu-se da cadeira.
— Quer que o embrulhe? — indagou Banks.
— Não, não será necessário, obrigado! — Agradeceu
o professor.
Quando saiu, passou por uma banca de jornal e olhou
as manchetes do mundo. Assinara os principais jornais do
globo. Era importante isso. Em alguns deles, um dia, surgiria uma notícia que o levaria a Drácula novamente.
Suas vítimas eram certas e não poderiam permanecer
ocultas por muito tempo. Seus crimes logo seriam notados,
em algum lugar, e denunciados.
Quando isso acontecesse, Hilgenstiller estaria pronto
para deixar todas as suas atividades e rumar para lá, com
uma arma eficiente para destruí-lo.
Jurara isso no túmulo de sua filha. As circunstâncias
de sua morte jamais se apagariam de sua lembrança. Isso o
torturava e corroia seu coração de pai.
A bela Larah, uma flor de doçura, a alegria de seu coração, destruído, pela sanha assassina e desumana do vam-
piro. Suas mãos se crispavam e tremiam ao se lembrar do
momento fatídico, quando enterrara no coração da filha a
estaca que a mataria e salvaria ao mesmo tempo.
Era enlouquecedor.
— Quando vão acabar com ele, afinal? — comentou
alguém ao seu lado, diante dos jornais pendurados.
— Como disse, senhor? — indagou, voltando-se para
olhar o outro, um típico homem de negócios, com chapéu
coco e guarda-chuva impecável enrolado.
— Falo de Jack, o Estripador. Está fazendo a Nova
Scotland Yard de palhaço. Comete os crimes impunemente.
Nossas mulheres e filhas vivem sob o regime do medo. A
qualquer momento uma delas pode ser abatida pelo seu punhal implacável...
— Deprimente! — comentou o professor, olhando a
manchete.
Jack zombava da polícia, zombava da população,
zombava das mulheres, matando-as friamente. Por instantes, Hilgenstiller comparou-o ao próprio Drácula. Um
monstro sem corpo, vagando pela noite, à procura de vítimas.
Só que Jack, com certeza, era apenas um homem. Um
anormal, com instintos homicidas, que encontrava prazer
em mutilar os corpos daquelas que caiam em suas garras.
Cedo ou tarde acabaria sendo apanhado. Era um mortal, apenas um mortal simples e comum como todos os outros. Uma bala da polícia o abateria.
Tornava-se, portanto menos assustador que Drácula,
cujo corpo poderia ser crivado de balas, sem que nada lhe
acontecesse.
Apertou com firmeza a caixa sob seu braço.
***
Anoitecera.
Do alto do castelo abandonado, Torg observava os arredores com seu binóculo. Sabia o que procurar, como sabia também que ela ainda não havia chegado.
Assim que o trem passasse, mais ou menos naquele
horário, poderia vê-la outra vez. Ao longe, o rápido da British Rail se anunciou num apito agudo.
Torg desviou o binóculo para aquela direção acompanhando a marcha do trem, até que desaparece de seu campo
de visão. Impacientou-se.
Ela chegaria dentro de pouco. Isso o fazia vibrar estranhamente, como se seu peito, após um longo sono, se
visse despertado para sentimentos entenercedores e ao
mesmo tempo, voluptuosos.
Esperou com a paciência dos que sabiam esperar. Acompanhava com interesse cada veículo que cortava a es-
trada... Rosnava furioso a cada vez que um ruído qualquer
no bosque, indicasse a presença dos malditos lobos.
Não precisou pensar muito para entender por que eles
vinham. Drácula os atraia. Na certa haviam farejado a presença do vampiro.
Era sempre assim. Dispostos a disputar a carne das vítimas, os lobos, movidos por um instinto que Torg não
compreendia, rodeavam, à espreita.
Mas eram apenas animais, todos animais. Drácula jamais atacaria alguém ali por perto. Era esperto o bastante
para fazê-lo em outros pontos, confundindo quem quer que
investigasse...
Estremeceu, assentando o binóculo na direção da casa,
no outro lado da estrada, além do bosque. Um veículo deixava a pista para subir a alameda que levava até a frente da
construção.
Torg regulou o aparelho. Podia ver claramente o rapaz, ao volante. Era belo, com um sorriso fácil nos lábios.
A inveja e o ódio cresceram em seu coração.
Depois, quando o rapaz desceu e contornou o veículo,
seu peito pareceu explodir. Ela surgiu, bela e atraente, enternecendo-o, abalando-o, perturbando-o.
Por momentos o casal conversou. Depois, o rapaz segurou a garota pelos ombros e beijou-a. Ela enlaçou-o pelo
pescoço e retribuiu.
Torg abaixou o binóculo, rosnando, estremecendo,
crispando-se. Uma gargalhada sinistra atrás dele, o fez se
voltar e encarar a figura horrenda do vampiro. Encolheu-se,
constrangido, tentando esconder o binóculo.
— O que tem aí, Torg? — indagou Drácula.
— Nada mestre. Um brinquedo...
Drácula se aproximou e segurou-o pelo braço. Sua
força era descomunal. Torg cedeu, exibindo o aparelho.
— O que é isso? Ah, sei... O que você olhava com tanto interesse? — indagou, tomando o binóculo e levantandoo aos olhos.
Vasculhou os arredores, tentando encontrar o que
Torg olhava, Viu, então, Albertine entrando em sua casa,
acenando graciosa e amorosamente para Chester que partia...
Concentrou-se na figura da garota. Esbelta, simpática,
bonita, virgem com certeza. Detalhes como esse o interessavam. Estava cansado daquelas mulheres da vida, prostitutas cuja falta ninguém sentia e cujas presenças enojavam
um homem de classe.
— Bela! Muito bela! — murmurou, a voz pastosa pelo
desejo e pela volúpia.
— Não, mestre, ela não! — pediu Torg, quase suplicando.
— Não sou tolo, Torg. Está muito próximo do castelo... Mas é tentadora...
Torg olhou-o com ódio, com inveja, com rancor, com
tudo de ruim que podia nascer de seu coração. Drácula tinha tudo, Drácula podia se aproximar de uma garota como
aquela sem despertar repulsa.
Isso torturava e angustiava o corcunda.
— Vai sair, mestre? — indagou, tentando desviar-lhe
a atenção.
— Possivelmente — respondeu Drácula, observando
Albertine entrar em casa e fechar a porta.
Baixou o binóculo, pensativo. Era tentador realmente
tentador. Havia algo nas virgens que o transformava e perturbava. Elas lhe despertavam o gosto por prazeres esquecidos. Elas eram capazes de despertar sua sexualidade.
Lembranças antigas, de orgias de sangue e sexo, bailaram em sua mente. Albertine era a virgem ideal para revivê-las. O gozo sádico do sexo estava desperto em seu corpo, espicaçando-o terrivelmente.
Pena que aquela virgem morasse tão perto do castelo.
Pena mesmo.
Passou o binóculo a Torg, depois gargalhou, percebendo que isso torturava o corcunda.
— É virgem. Torg. Isso não o afeta? Não desperta instintos brutais e deliciosos? Não faz girar sua mente com
pensamentos de volúpia e lascívia? Pena que você seja tão
repugnante Torg. Ela jamais olharia para você sem asco,
sem desejar vomitar a podridão humana que você é — falou o vampiro com maldade.
— Sim, mestre... Sei disso, mestre... — murmurou
Torg, encolhido contra as pedras, envergonhado, humilhado, maltratado. — Mestre... Quando terei um novo corpo?
— Quando eu decidir, meu fiel servo, meu bastardo
amaldiçoado — riu Drácula, recuando e sumindo nas trevas.
Torg ficou só com seu sentimento e sua maldição. Olhou o binóculo, odiando-o e adorando-o. Voltou-se para a
casa e observou, tentando localizar a figura terna e bela de
Albertine, única coisa capaz de acalmar seu coração e aplacar aquele ódio sombrio e impotente.
Não a viu, porém, mas desejou vê-la, não à distância,
mas tão próximo que pudesse sentir-lhe o perfume das carnes frescas e tentadoras.
A ideia envolveu-o, dominou-o, assanhou-o. Vê-la de
perto, tão de perto que pudesse tocá-la, acariciá-la, sentilhe a maciez virgem da pele morna e provocante.
Uma ideia lhe ocorreu. Recordou-se do garoto na plataforma da estação, depois o policial, na rua, quando levava
o corpo daquela jovem vitimada por Drácula...
Sim, podia ser sua solução. Tinha o poder de hipnotizar, sugestionando mentes, dominando-as, envolvendo-as,
confundido-as.
Por que não?
Desceu as escadarias escuras, esbarrando em teias de
aranhas, assustando enormes ratazanas à sua passagem. No
jardim, pouco depois, desprezou o rugir dos lobos e afundou-se pelo bosque.
Seus passos desiguais sobre folhas secas soavam como um pesadelo sufocante. Sua respiração apressada traía
sua excitação.
Era um ser monstruoso, mas poderia ser diferente, se
tivesse a oportunidade de olhar direto nos olhos da garota,
antes que ela fugisse assustada.
***
Diante do televisor, Albertine acompanhava com seus
pais, o editorial apresentado pelo locutor da televisão. Falavam de Jack, o Estripador, e de seus crimes impunes, da
impotência da Scotland Yard, do medo que se espalhava
sobre Londres, do clima de insegurança total.
Pensou no terror das vítimas e se lembrou de Mary e
de seu problema. Jamais o entendera. Mary evitava falar,
mas tudo estava ligado aos crimes de Falmouth, onde duas
garotas haviam sido mortas cruelmente.
Alguma coisa maior deveria haver por detrás de tudo
aquilo. Algo capaz de intranquilizar Mary, de abalá-la terrivelmente, de martirizá-la noite após noite.
— Mamãe, Chester virá me apanhar amanhã, ao anoitecer. Vamos jantar juntos, ir ao teatro e, depois, dançar um
pouco... — avisou.
— Espero que se divirta, querida — respondeu a mulher, mais interessada no via na televisão.
— Vamos levar Mary Reading conosco. Acho que já
falei sobre ela, não?
— Não é aquela que vive tomando pílulas?
— Sim, ela mesma.
— E por que ela toma pílulas? — quis saber Stanley...
— Problemas, papai — respondeu ela, sem saber como explicar.
Calaram-se, enquanto o locutor desfiava o nome das
vítimas do Estripador. As fotos se sucediam na tela. Mulheres jovens, algumas de meia idade, todas trucidadas ferozmente, impiedosamente.
Albertine remexeu em sua poltrona, inquieta, como se
um frio vento soprasse contra sua nuca. Girou o corpo e olhou ao seu redor, intrigada.
— O que foi, querida? — notou a mãe.
— Parece que há um vento encanado por aqui...
— Devo ter deixado a janela da cozinha aberta...
— Eu vou fechá-la, então — disse Albertine, levantando-se.
Deixou aquele aposento, caminhou pelo curto corredor, até a cozinha. Olhou ao seu redor. As janelas estavam
fechadas. Aquela sensação angustiante da noite anterior se
repetiu. Ela sentia-se observada.
Um calafrio instintivo percorreu seu corpo. Ela tratou
de retornar à sala. Sentou-se diante do televisor. Aquela
sensação persistia.
Então, nitidamente, teve aquela impressão novamente.
Parecia haver alguém a suas costas, olhando-a fixamente,
quase a dominando hipnoticamente.
Tudo parecia centralizar-se na janela atrás de si. Temerosa, olhou o pai, quase suplicante.
— Papai... A janela atrás de mim está fechada? — indagou, ligeiramente trêmula.
— Não... Não mesmo — afirmou ele, após uma rápida
olhada. — algum problema? Você me parece assustada...
— Nada — sorriu ela, medrosamente. — Acho que o
noticiário me impressionou, apenas isso.
— Com toda certeza — afirmou Stanley.
CAPÍTULO 5
— Querida, positivamente você me parece assustada
— observou Stanley Gardner, olhando a filha se remexer
em sua poltrona.
— Não sei... — gaguejou ela, sentindo-se possuída de
estranha perturbação.
— Talvez sejam esses lobos... Eles uivam a noite toda... Alguém tem que fazer alguma coisa, Stanley — disse a
Sr. Gardner.
— Fazer o que? Liguei para a polícia, acha que não liguei? Sabe o que me disseram? Que tivesse mais cuidado
com o gim. Eu nem bebo...
— Os jornais... Acho que devemos ir aos jornais.
Quem sabe a própria televisão. Lobos em Coventry seria
uma notícia interessante, não? — opinou a dona da casa.
— Pode ser... Tenho um amigo no Times. Falarei com
ele amanhã cedo. Se isso não der certo, vou convocar o
pessoal do condado. Muitos já estão inquietos também com
esses lobos. Poderemos, então, caça-los.
— Stanley Gardner, se acha que vou permitir... —
começou a mulher.
Albertine se levantou, cumprimentou-os e subiu rapidamente para seu quarto. Queria escapar àquela sensação
intensa e, ao mesmo tempo, deixar os pais a sós para que
discutissem.
Em seu quarto, atirou-se na cama e ficou pensando,
tentando definir exatamente o que sentia. Um lobo uivou lá
no bosque, sobressaltando-a.
Levantou-se e foi até a janela. Por instantes qualquer
coisa chamou a sua atenção no jardim.
Julgou ter visto uma sombra disforme e assustadora,
mas foi tudo muito rápido. Outro lobo uivou e ela se encolheu, fechando rapidamente as cortinas.
***
Naquele sábado, Hilgenstiller levantou cedo como de
costume. Preparou seu desjejum, comeu-o e depois foi até o
jornaleiro, onde recebeu os jornais de sempre.
Conversaram por instante, depois o cientista retornou
ao seu pequeno apartamento. Fazia aquilo todas as manhãs.
Li atentamente aqueles jornais, na esperança de localizar
qualquer notícia que o levasse a Drácula.
Como os outros dias, porém, sua busca se revelou infrutífera. Apanhou o Times, o último deles, e foi se sentar
na sala. Ali estava mais uma manchete a respeito do Estripador.
Uma garota fora encontrada numa construção em ruínas. Havia sido barbaramente espancada e dilacerada. Havia uma foto. Hilgenstiller olhou-a e se apiedou.
Apesar da vulgaridade daquele rosto, havia juventude
nele. A juventude, extirpada daquela forma, sempre tocava
fundo seu coração.
Por um motivo qualquer, talvez instintivo, olhou para
o pescoço da vítima. Havia ali uma mancha escura que o
fez estremecer febrilmente.
Observou melhor. Lembrava-se de algo como aquilo.
Vira-o no pescoço de sua filha. Podia ter sido de uma pancada violenta ou...
— Não, não poder ser — afirmou, levantando-se e indo apanhar seu sobretudo.
Saiu para a rua, tomou o ônibus. Sabia onde deveria ir
para tirar aquela duvida. Levava o jornal consigo. Voltou a
abri-lo. Leu toda a notícia.
Comentavam que, daquela vez, o monstro retirara o
coração da vítima. Esse detalhe ganhou importância. Não
vinha acompanhando as notícias sobre Jack, Estripador.
Sua preocupação era Drácula, mas havia ali, naquela notícia, qualquer coisa inquietante.
— Terrível, não? — observou um homem, ao seu lado.
— Refere-se ao Estripador? — retrucou.
— Sim, ele mesmo. Minha mulher não sai de casa por
um instante, à noite, o que tem sido péssimo para todos.
— Tem acompanhando as notícias sobre os crimes?
— Sim, sei tudo sobre todos eles.
— Diga-me uma coisa, então: Jack sempre extirpa o
coração de suas vítimas?
— Não... No princípio não. Depois começou a alterar
essa atitude. De algumas ele rasga as vísceras, mutila. De
outras, apenas espanca e retira o coração...
— E capaz de precisar a quanto tempo ele começou a
retirar o coração das vítimas?
— Penso que... — hesitou o homem por instantes. —
penso que desde o começo do outono. Sim, precisamente.
Desde o começo do outono.
Hilgenstiller fechou o jornal. Estava febril, impaciente. Pouco depois chegava à estação do metrô. Tomou-o em
direção ao norte da cidade, onde sabia ser a morgue municipal.
Uma vez lá, procurou o setor que o interessava. Foi
atendido por um rapaz sardento, metido num avental que
lhe dava uma falsa aparência de importância.
— Sou o prof. Hilgenstiller... Gostaria de ver o cadáver da garota que foi morta...
— Refere-se à vítima do Jack?
— Um instante apenas, professor — disse o rapaz, entrando por uma porta.
No momento seguinte retornou, acompanhando de outro homem. Hilgenstiller percebeu que se tratava de um policial.
— Sou o Inspetor Timothy Asbury, da Scotland Yard.
Posso ver seus documentos?
— Sim, claro — respondeu o professor, passando-lhe
sua identidade.
O policial o reteve em suas mãos, enquanto examinava
o homem à sua frente.
— Posso saber qual seu interesse no caso, professor?
— Curiosidade cientifica apenas... Sou professor da
Sociologia, o assunto me interessa...
— Está bem, professor. Espero que não se incomode
em deixar seu endereço anotado naquele livro — apontou.
— Sim, claro — concordou o cientista, indo fazer o
que ele pedira.
Depois, o atendente o conduziu pelo corredor até uma
porta. O policial os acompanhou à distância.
O rapaz adiantou-se e foi até uma das gavetas do imenso congelador, onde estavam dispostos os cadáveres à
espera de sepultamento.
Abriu uma delas e fez um sinal para o professor, que
se aproximou. O policial chegou à porta e ficou observando, com interesse.
O rapaz ergueu o lençol que cobria o rosto da garota.
Depois, num movimento brusco, desnudou o resto do cor-
po. Uma cicatriz enorme se destacava acima dos seios dela.
Muitos pontos haviam sido dados para reparar o ferimento.
Hilgenstiller, no entanto, olhava para o pescoço da garota. Empalideceu, engolindo em seco.
— Meu Deus! — exclamou, impressionado, horrorizado, aquele ódio mortal agigantando-se dentro dele, sufocando-o, torturando-o com as lembranças mais doloridas de
sua vida.
Ao perceber sua reação, o policial adiantou-se.
— Conhecia a garota, professor?
— Não, não a conhecia... — respondeu, encarando o
atendente. — Sabe se há, ainda, mais alguma das vítimas de
Jack por aqui?
— Acho que ainda temos duas delas... Quer vê-las?
— Sim, por favor — pediu o professor, transfigurado.
— qual o seu interesse, afinal, professor? O que o impressionou tanto?
— É só um instante, inspetor — disse, caminhando até
a outra gaveta aberta pelo rapaz.
Observou o corpo. Estava marcado, com remendos em
todo o ventre, mas o coração intacto. Nada havia de anormal em seu pescoço.
— E está é a última — disse o rapaz, abrindo outra.
Hilgenstiller foi até ela. Observou o corpo e, novamente, aquela revolta interior se manifestou dentro dele.
Apontou para o pescoço da garota.
— Veja isso, inspetor. Tem alguma explicação para as
perfurações?
— Perfurações? — intrigou-se o inspetor, debruçando-se sobre o cadáver.
O cheiro forte de formol feriu suas narinas.
— Mas... São idênticas às outras da garota encontrada
ontem...
— E desta foi arrancado o coração, assim como da outra. Não lhe parece uma quebra muito brusca no padrão geral dos crimes?
— Sim, como se fossem duas pessoas diferentes... Duas pessoas diferentes... Como não percebemos isso antes? É
possível estabelecer dois estilos aqui. Por isso estivemos
tão confusos, andando em círculos. Preciso informar à Central — disse, caminhando apressado para a porta.
Estacou, porém, e se voltou para o professor.
— O que sabe sobre isso, afinal?
— Não sei se me acreditaria, inspetor.
— No ponto em que estão as coisas, eu acreditaria em
qualquer coisa — afirmou o inspetor, desolado.
***
Quando o jovem ao volante desligou o motor do veículo, Stanley Gardner surgiu à porta da casa, olhando-o
com curiosidade.
— É o Sr. Stanley Gardner? — indagou.
— Sim, ele mesmo.
— Sou Michael Kane, repórter do Times...
— Oh, sim, por favor, Sr. Kane. Vamos entrar — convidou o dono da casa, conduzindo-o até a sala.
Ali o fez sentar-se. Depois se acomodou em sua poltrona preferida e aguardou as perguntas.
— O senhor telefonou ao jornal...
— Sim, ao Doug Flower, um velho amigo...
— Isso mesmo, Sr. Gardner. Mencionou algo a respeito de lobos?
— sim, lobos, aqui em Coventry. Eu mesmo vi um deles, daquela janela — apontou. — Minha filha e o namorado quase atropelaram um, na estrada. Qualquer morador
por aqui poderá lhe descrever os uivos horripilantes que
cortam a noite, assustando a todos...
— Tem certeza de que não se trata de cachorros? Pelo
que sei, há um canil da prefeitura aqui perto e...
— Tenho absoluta certeza, rapaz. Não sou tão idiota a
ponto de não diferenciar um lobo de um cachorro — disse
Gardner, severamente. — Digo-lhe que vi um lobo e era
um lobo mesmo.
O repórter pigarreou e fez algumas anotações.
— Pode me mostrar o local, Sr. Gardner?
— Sim claro. Só vou avisar minha esposa — avisou,
subindo o segundo pavimento da casa, de onde retornou logo depois.
Deixaram a casa, desceram pela alameda e caminharam pela estrada.
— foi ali, naquele ponto, que vi o lobo diante dos faróis do carro. Ele veio e entrou por aquelas moitas, na direção do bosque.
O jornalista acompanhou-lhe o gesto. Depois olhou o
bosque e, após ele, as muralhas escurecidas do castelo. A
brisa soprou, trazendo um odor putrefato.
— Sentiu isso, Sr. Gardner?
— Sim, parece carniça... Possivelmente os lobos fizeram alguma vítima... Algum animal doméstico com certeza.
— Eu gostaria de entra no bosque... Acha isso perigoso?
— Não sei... Não se nota sinais dos lobos durante o
dia. Eles de escondem... Está bem, vamos, então.
Atravessaram a cerca e avançaram na direção do bosque. O outono desfolhava as árvores dando-lhes um aspecto fantasmagórico.
Os dois caminharam com dificuldade. O cheiro de
carniça se tornou mais forte.
— Parece vir daquela direção — apontou Gardner.
— Vamos ver — disse o rapaz, caminhando para lá.
Pouco depois, perceberam, semi-encoberto pelas folhas caídas, os pelos de um animal morto. Perecia ser um
cão, mas, quando se aproximaram, descobriam.
O corpo mutilado e vermes esbranquiçados pulavam
na matéria gosmenta em putrefação. O repórter apanhou um
lenço e cobriu o nariz, aproximando-se ainda mais.
— É um lobo, sem sombra de dúvidas — afirmou
Gardner.
— Um lobo, realmente. Mas isso é incrível... Um lobo,
aqui em Coventry... De onde poderia ter vindo? É realmente intrigante, não?
— É assustador. Precisa ouvir aqueles uivos, Sr. Kane.
O rapaz endireitou o corpo, olhando ao seu redor. Viu,
então, as muralhas do castelo.
— É o castelo dos Panter, uma família muito antiga
aqui em Coventry, o último descendente morreu há algum
tempo, numa expedição à Índia. Até agora não decidiram o
que será feito dele, o que é uma pena. Trata-se de um monumento histórico, devia ser preservado. Fale isso em sua
reportagem.
— Pode estar certo que o farei, Sr. Gardner. Vou tirar
algumas fotos do lobo. Ninguém acreditaria.
O inspetor-chefe esboçou um sorriso de ironizo e incredulidade, depois ficou batucando com sua caneta sobre
o tampo da escrivaninha.
Hilgenstiller o olhou. Sabia que não Seria acreditado.
— Escute, professor. Sei que nos prestou uma grande
ajuda. Vamos investigar o que nos disse. Se precisarmos de
alguma outra explicação, nós o procuraremos.
O professor percebeu que estava sendo gentilmente
despedido. Exasperou-se. Precisava ser acreditado. Estava
convicto de que aquelas garotas haviam sido vítimas do
Drácula.
Não havia outra explicação. Apenas não entendia por
que o monstro extirpara-lhe o coração. Ainda assim, estava
certo de que, logo que pudesse pensar com clareza, chegaria a uma boa conclusão.
— Não acredita em mim, não é? — indagou.
— Professor, vou ser franco. Esse Jack nos tem feito
de tolos. Agradecemos todas as pistas e investigaremos todas elas. A sua, porém, é impraticável. O que nos contou é
fantástico, é incrível, é inacreditável, é inaceitável nos tempos modernos. Vampiros são lendas, apenas isso. Já pensou
o que diriam os jornais se soubessem que estamos investigando algo assim?
— E já pensou o que dirão os jornais quando descobrirem que não investigou? Que de alguma forma contribuiu
para que crimes monstruosos fossem perpetrados?
— Eu sinto muito, professor — lamentou o inspetorchefe, aborrecido pelas palavras do outro.
— Claro que sente, inspetor-chefe. Claro que sente. —
repetiu Hilgenstiller, caminhando para a porta de saída.
***
Mary apanhou seu melhor vestido e o estendeu sobre a
cama.
Albertine lhe telefonara, confirmando o programa daquela noite. De algum modo, Mary se sentia eufórica. Era a
primeira vez, desde que voltara a Londres, que fazia aquilo.
Seria bom poder quebrar aquele círculo-vicioso de medo
em que se metera.
Foi apanhar um sapato que combinasse com o vestido.
Ao fazer isso, deixou cair, de uma caixa, um recorde de
jornal. Apanhou-o raivosa e amassou-o entre os dedos. Era
um jornal de Falmouth, a respeito dos crimes que haviam
acontecidos lá, durante o verão.
Mary jogou longe o papel. Queria esquecer tudo aquilo, precisava. A figura sinistra daquela noite horrível lhe
veio à mente, fazendo-a estremecer.
— Não... Não devo pensar mais — disse a si mesma,
olhando o vestido e os sapatos.
Tinha uma noite agradável pela frente e tencionava
aproveita-la a todo custo. Seria um esforço tremendo, mas
precisava ser feito.
Despiu-se e foi para o banho. Quando retornou, sua
velha tia surgia à porta do quarto. Sorrindo ao perceber o
vestido sobre a cama.
— Fico feliz por você, minha filha — disse com carinho.
CAPÍTULO 6
Mary estava se divertindo. Todos os seus temores pareciam, agora, infundados. Estava livre, cercada de pessoas
alegres e atenciosas.
O amigo de Chester era muito interessante e dedicava
um carinho todo especial à garota, fazendo-a participar da
noite que prometia ser muito agradável.
Estavam em um dos bons restaurantes da cidade. A
comida fora servida, acompanhada de excelente vinho. A
bebida serviu para deixá-la à vontade, totalmente solta e
desinibida.
—Conheço uma boate que vai surpreender a todos —
disse Jonnas, amigo de Chester.
— Vamos adorar, estou certa — falou Mary, olhando
Albertine, que sorria para ela.
— Estou tão contente por você, Mary — disse a outra.
— Que tola eu estava sendo — desabafou Mary, olhando ao seu redor.
O ambiente discreto e acolhedor a fazia se sentir bem.
Certo requinte nos serviços e na decoração dava aquele
grau exato de distinção que cativava as pessoas, sem deixar
de fazê-las se sentirem à vontade.
Alongou um pouco mais o olhar, até o palco onde uma
pequena orquestra se preparava para mais um número. Suspirou e sorriu.
Foi quando seu olhar se viu atraído pela figura elegante que entrava. Por momentos, o rosto dele se ocultou atrás
de algumas plantas que compunham a decoração do hall de
entrada.
Depois, quando ele deixou o sobretudo na chapelaria e
avançou, um calafrio de mortal pavor percorreu o corpo de
Mary, fazendo-a empalidecer...
Seu corpo se enrijeceu, a seguir. Suas mãos crisparamse sobre a toalha da mesa, repuxando-a e fazendo entornar
seu corpo de vinho.
— Mary, o que houve? — indagou Albertine, levantando-se rapidamente para evitar que o liquido escorresse
para seu vestido.
— Deus! — murmurou Mary, reconhecendo aquela
figura.
Seus pensamentos se voltaram para aquele rosário esquecido na gaveta de sua mesa de cabeceira. Estava lá e era
sua única arma, a única coisa capaz de dar-lhe alguma sensação de proteção.
— Eu preciso ir... Eu preciso ir, pelo amor de Deus!
— suplicou, livrando-se da mão que a segurava pelo braço.
Precipitou-se em direção à porta. Esbarrou numa das
mesas e caiu. Todas as atenções se voltaram para ela.
Quando se ergueu, olhou na direção de Drácula. Ele a viu,
então, reconhecendo-a. Sorriu sinistramente, o que mais a
apavorou. Viu-o mover-se em sua direção e correu para a
saída, sentindo o bafo da morte em seu encalço.
Gritou por um táxi. Quando entrou nele olhou na direção da porta. Albertine e seus amigos saiam para vê-la, intrigados. Atrás deles, deles, olhando-a, estava o terror.
Forneceu o endereço ao motorista e pediu-lhe que corresse. Precisava chegar em casa, precisava apanhar aquele
rosário e apertá-lo contra o peito.
Chegou em casa. Pagou o motorista com uma nota de
cinco libras e desprezou o troco. Ao tentar abrir a porta, suas mãos tremiam e a chave resvalava, Quis chorar, quis gritar, mas se sentia impotente para tudo.
Entrou, finalmente, batendo a porta. Depois correu para seu quarto. Abriu a gaveta, derrubando-a. Procurou febrilmente entre os objetos, até apanhar o rosário e desatar
num pranto convulsivo.
Sua tia surgiu à porta, sonolenta e curiosa.
— Mary, o que está havendo?
— Eu o vi, tia. Eu vi aquele monstro maldito! — gritou fora de si.
Batidas secas na porta quase a fizeram desfalecer. Seu
rosto se tornou mortalmente pálido.
— Não atenda, tia. Não atenda, pelo amor de Deus!
— Mas Mary... — hesitou a mulher, confusa.
As batidas insistiram. A velha senhora caminhou para
lá.
— Não tia — suplicou Mary, mas a mulher já abrira a
porta.
A boca da garota se abriu para um grito de horror que
permaneceu calado, enquanto a figura sinistra de Drácula
avançava pela sala, em sua direção.
Saltou sobre a cama e empurrou a porta do quarto,
trancando-a. Quis se mover, quis correr para algum lugar,
quis gritar, mas tudo estava fora de seu controle e apenas
aquele pavor existia.
Ouvia um baque e um gemido dolorido. Depois outro,
como se um corpo tivesse sido jogado contra a porta, abalando-a. Novas batidas como aquela se sucederam, até um
silêncio pesado e opressivo reinar.
Mary ouviu então, nitidamente, o som daquela respiração animalesca do outro lado da porta. Era como se ouvisse o som da própria morte.
— Mary Reading! — disse uma voz metálica e assustadora do outro lado. — Nosso encontro era fatal. Deixei
algo incompleto da última vez. Não resista, você não pode.
Os braços dela penderam, imóveis ao longo do corpo.
O rosário escapou de seus dedos, escorregando para o chão.
Ela se voltou e abriu a porta.
Uma cena dantesca se exibiu ao seu olhar demente. No
chão, banhado em sangue, jazia o corpo de sua tia. Pelas
paredes da sala havia manchas de sangue. Drácula a jogara
de um lado para outro como um boneco.
Ela estremeceu quando as mãos frias tocaram seus
ombros. Aquele hálito infernal banhou seu rosto pálido.
Aquela respiração demoníaca gravou-se em seus ouvidos.
Ele a empurrou lentamente para dentro do quarto, olhando-a nos olhos, sempre. Fechou a porta atrás de si.
Mary recuou até a cama. Drácula levou a mão à cabeça e
cambaleou. Depois urrou, sentindo seu pé em chamas. Pisara no rosário.
— Tire isso daqui! — ordenou, as feições crispadas.
Mary apanhou mecanicamente o objeto e foi guardá-lo
na gaveta de sua penteadeira. Ao olhar o espelho não viu o
monstro atrás de si. Voltou a cabeça numa vã esperança.
Ele estava lá, no entanto, recuperando-se e olhando-a com
volúpia e assanhamento.
Seus olhos injetaram-se e ganharam um brilho infernal. Seus lábios palpitavam, arreganhando-se lentamente e
descobrindo as presas fatídicas.
Ele se aproximou, então. Pousou suas mãos frias sobre
o rosto dela e as deslizou até o pescoço, pressionando o polegar sobre a veia jugular, sentindo o fluir ritmado do sangue, ao compasso das batidas assustadas daquele coração.
— Fique calma... Fique calma... — ordenou, aproximando seus lábios do pescoço dela, enquanto suas mãos
escorregavam para as costas macias e femininas.
Rosnou ofegante, ao tocar a pele e arranhá-la com suas presas. Arrepios percorreram o corpo de Mary, mas ela
nada mais sentia. O pavor se fora. Estava calma. Mortalmente calma.
Os dentes rasgaram sua pele e o sangue esguichou para os lábios do vampiro, que resfolegou. Apertando-se contra ela, em espasmos de puro prazer, sorvendo a vida que se
esvaia do corpo dela.
***
— Acho que devíamos ir a casa dela — dizia Albertine.
— Ora, Al, depois do que ela fez? Sua amiga precisa
de cuidados médicos, não da nossa companhia — descartou
Chester, aborrecido pelo vexame que a conduta imprópria
de Mary havia provocado.
— Penso que vocês vão continuar o programa iniciado. Isso me exclui, portanto. Uma boa noite para vocês —
despediu-se Jonnas.
— Eu sinto muito, Jonnas — disse Albertine.
— Esqueça — sorriu o rapaz, afastando-se.
Ela ficou só com Chester, ao lado do carro. Olharamse. Albertine forçou um sorriso. A noite estava irremediavelmente perdida.
— Valeu a tentativa, não valeu? — indagou ela.
— Claro que sim, querida. Você fez o possível por ela
— disse Chester, com carinho, tomando-a nos braços e beijando-lhe a testa. — Tem certeza de que não quer mesmo
ver o espetáculo no Albert hall?
— Prefiro ir para casa. Eu não seria uma boa companhia, querido.
— Como quiser, meu bem — concordou ele, abrindolhe a porta do veículo.
***
Torg deixou o castelo para ir cumprir sua macabra
missão. Atravessou o bosque. O rugir dos lobos e seus passos rápidos pelas folhas secas o incomodavam. Aproximava-se da cerca, quando ouviu o carro que chegava.
Permaneceu oculto atrás das sebes, observando a passagem do veículo. Reconheceu-o, assim como a garota do
veículo ao lado do motorista.
Era ela e isso fez pulsar seu coração deformado. O desejo de vê-la se fez maior que a ordem do mestre. Assim
que o carro se afastou, ele atravessou a estrada e subiu pelo
jardim da casa dos Gardner.
Viu o veículo parar diante da residência. Albertine e
Chester ficaram conversando. O corcunda se aproximou o
mais que pode. A lâmpada do alpendre iluminava o rosto
da garota, mostrando-o em toda a sua beleza.
Procurou ver Chester. Era um belo rapaz. Na certa Albertine o amava e essa ideia fez Torg odiar o outro. Um ódio profundo, mortal, destruidor.
Ficou ali até que os dois se beijassem e Albertine descesse do veículo. Havia silêncio na casa. Na certa os pais
da garota estavam dormindo. Ela esperou até que o veículo
fizesse o contorno e se afastasse, descendo a alameda.
Depois procurou a chave em sua bolsa. Torg deixou
seu esconderijo, o coração aos saltos, os lábios disformes
entreabertos e úmidos de um desejo obsceno.
Seus passos desiguais alertaram a garota, que se voltou. Num salto ágil, Torg ganhou o alpendre. Seus olhos
brilhantes se fixaram nos olhos dela.
O terror desapareceu do rosto da jovem. Ela sorriu
submetida pela hipnose maléfica daquele olhar.
— Chester, eu pensei que tivesse ido — sorriu ela.
— Meu carro... Meu carro teve um problema... Sim,
isso mesmo — gaguejou Torg, percebendo-a sob seu domínio.
— Quer usar o telefone? Posso acordar papai e pedirlhe que o leve...
— Não, não é preciso... — ofegou o corcunda trêmulo
de emoção. — Eu só queria... Só queria... Um beijo seu...
Um beijo, querida — balbuciou.
— Oh, meu adorado! — exclamou ela, as mão delicadas subindo pelo peito dele, enlaçando seu pescoço, escorregando até a corcova horrenda.
Lágrimas brilharam nos olhos dele. Seus lábios se entreabriram, ofegando de gozo e emoção. A boca tornada e
tentadora da garota se aproximou.
Um súbito esvoaçar alertou Torg, que se voltou repentinamente. O grande morcego pousou diante deles, fosforescente, tomando a forma de Drácula.
Albertine ficou imóvel, como se nada visse e nada
sentisse, alheia, distante, enquanto Torg caía de joelhos diante do mestre.
— Perdoe-me, mestre! Ela é tão bela...
— Você me desobedeceu, Torg. Você me desobedeceu pela primeira vez e agora vou castigá-lo por isso —
murmurou o vampiro, a voz ameaçadora como as presas
que sobressaíam em sua boca.
— Sim, mestre. Eu mereço — concordou Torg abaixando a cabeça e esperando o castigo.
Drácula apoiou um dos pés em seu peito e empurrou-o
para trás. Depois se aproximou de Albertine. Seu perfume
de virgem, sua pele macia, seu pescoço torneado, tudo despertou uma volúpia intensa, orgíaca, demoníaca.
— Não, mestre, ela não — suplicou Torg, erguendose.
Seu tom de voz fez Drácula se voltar para ele, as presas arreganhadas, o olhar destilando cólera.
Torg olhou a garota, depois recuou, em guarda. Seu
rosto se alterou. Seus dentes rebrilharam. Suas mãos se
crisparam como garras.
Drácula entendeu a ameaça. Podia dominar Torg a
qualquer momento, menos naquele. A ideia de ter de medir
forças com ele não o agradava. Precisava de Torg.
— Demônios o levem, seu aborto da natureza, filho de
uma víbora degradada! Farei sua vontade, mas terá seu castigo no momento certo.
Torg estremeceu. O que fizera fora imperdoável, mas
não podia permitir aquilo.
Arrastou-se aos pés do vampiro, tomou-lhe uma das
mãos e beijou-a, em sinal de respeito e submissão.
— Perdoe-me mestre. Perdoe-me.
Drácula escarrou sobre ele, depois desceu os degraus
do alpendre e se perdeu na noite. Torg se ergueu lentamente. Olhou a garota, ainda imóvel.
— Pode entrar, querida! — disse e lágrimas brilharam
seu rosto deformado, dando-lhe, por instantes, um aspecto
verdadeiramente humano.
***
Um homem entrou todo nervoso na sala. O inspetorchefe lhe apontou uma cadeira. Ele se sentou, depois encarou o policial.
— Bem, Sr. Sherit. O que tem a me dizer a respeito da
última vítima de Jack?
— Bem inspetor... Sou motorista de táxi. Deve compreender que é uma profissão um tanto quanto... Mas eu
gosto dela. Gosto mesmo, apesar das coisas por que a gente
passa.
— Sim, Sr. Sherit. Quanto àquela garota, disse ao telefone que a viu na noite do crime, não?
— Eu a levei para casa. Mal pode acreditar no susto
que levei quando vi nos jornais. O assassino estava com ela, isto é o que me assusta ainda agora...
— Sr. Sherit, pode descrevê-lo?
— Aí está o problema, inspetor. Ele estava no carro,
mas eu não podia vê-lo.
Naquele momento, diante das palavras do motorista, o
inspetor se lembrou da conversa que tivera com Prof. Hilgenstiller.
Mal sabia o quão era irônica aquela lembrança.
— Se ele estava no carro, como não podia vê-lo? —
indagou o inspetor, procurando manter a calma.
— Pelo retrovisor, inspetor. Eu via a loura. Ela estava
lá, ela conversava com o sujeito, mas eu não podia vê-lo no
retrovisor. Eu me voltei por uns instantes e vi o olhar dele.
Algo que gelou meu sangue... Impressionante... Não voltei
a olhar, embora me mantivesse atento ao retrovisor. Eu não
sei explicar...
— Mas eu entendi tudo, Sr. Sherit. Seu depoimento
foi muito útil. Deixe seu nome e endereço com o oficial de
plantão... Nós o procuraremos se precisarmos de mais alguma coisa.
— Espero que eu tenha ajudado de alguma forma...
— Ajudou sim, obrigado — despediu-o o inspetor,
cansado.
CAPÍTULO 7
As notícias sobre Jack, o Estripador, passaram a interessar o inspetor Hilgenstiller. Naquela manhã apanhou febrilmente o Times. Havia uma nota de última hora informando mais um crime. Os detalhes ficavam todos para uma
edição vespertina.
Estacou, porém, quando seus olhos pousaram sobre
uma nota curiosa. Havia, inclusive, uma fotografia. Lobos
em Coventry. A população não sabia como explicar. Um
zoológico, consultado pelo jornal, apresentava uma série de
explicações técnicas que, ao fim, não convenciam.
Leu o relatório de um doa moradores da redondeza.
Havia um bosque, uma estrada, um castelo e uivos lancinantes no meio da noite.
Um arrepio percorreu seu corpo, ao imaginar aquela
cena. Ela o fazia retornar um pouco no tempo, até o Vale de
Tisza, onde tudo havia começado.
Depois, qualquer coisa estalou em sua mente. Ele deixou o jornal e correu para sua biblioteca. Ali vasculhou livros febrilmente, até encontrar o que procurava. Depositouo aberto sobre a escrivaninha.
— Há indícios de que os lobos farejam os vampiros e
o buscam, na esperança de que as vítimas do monstro lhes
sirvam de repasto. Em mil, setecentos e... — interrompeuse, retornando à cozinha e apanhando o jornal.
Deixou tudo e foi vestir seu sobretudo. Tomou um táxi
e rumou para a sede da Nova Scotland Yard. Lá, procurou
pelo inspetor-chefe, indo encontrá-lo, atarantado, em seu
gabinete, às voltas com alguns repórteres.
Hilgenstiller se aproximou. Talvez fosse o momento
de informar à população a respeito do mortal e sobrenatural
perigo que corria.’
Ao vê-lo, porém, uma expressão de desalento tomou
conta de seu rosto.
— Está bem, rapazes. O oficial Silvery lhes dará ao
outros detalhes. Agora, por favor — disse, apontando a
porta.
A sala se esvaziou. O professor olhou-o como se zombasse dele.
— O que deseja, professor? — — indagou o inspetor,
com um acento de ironia na voz.
— Pode me dar detalhes sobre o crime de ontem à noite?
O policial lhe empurrou uma pasta. Hilgenstiller a abriu. Havia uma foto da moça. Ele estremeceu, reconheceua. Era Mary Reading, a garota que conhecera em Flamouth,
quando de seu último encontro com Drácula.
Continuou lendo avidamente, todos os detalhes. Não
restavam dúvidas. Drácula estava ali mesmo, em Londres.
O relato dos amigos da garota vitimada, narrando a maneira
precipitada com que ela deixara o restaurante, como se tivesse visto o próprio demônio.
— E tenho certeza de que ela viu o próprio — comentou Hilgenstiller.
— Como disse? — indagou o inspetor.
— Acha que foi obra de Jack? — retrucou, ignorando
a pergunta do outro.
— E de quem poderia ser, professor?
— Sendo assim, inspetor, por que Jack não mutilou a
velha?
— Talvez se satisfizesse em espancá-la, apenas...
— Mas convence a mim, professor — argumentou o
policial, aborrecido. — Não me venha de novo com suas
tolices. Bastam as que ouvi de um motorista de táxi ontem...
O inspetor balançou a cabeça, desacorçoado. Depois,
com um sorriso de zombaria nos lábios, narrou ao outro o
que lhe contara o motorista, a respeito do homem que estava no carro, mas não estava no espelho retrovisor.
O professor sorriu significante. Encarou o policial,
disposto a lhe explicar todos os detalhes que se juntavam
naquela história.
Pela expressão do outro, porém, percebeu que seria
pura perda de tempo. Jamais seria acreditado. Aquele era
um trabalho que teria de ser feito apenas por ele.
— Eu agradeço sua atenção, inspetor. Pode não acreditar, mas ajudou-me muito.
— Espero, então, que consiga terminar seu trabalho,
professor.
— Meu trabalho? — indagou o professor, os olhos
brilhando por instantes, como se, finalmente, o inspetor tivesse compreendido.
— Seu trabalho de sociologia — acrescentou o policial, para desalento do cientista.
***
Fora uma noite terrível, angustiante, de sobressaltos.
Albertine dormia agora, depois de pesados sedativos. Fora
acordada no meio da noite, por policiais, par ser interrogada.
Fora vista em companhia de Mary Reading no restaurante, onde o vexame causado por esta atraiu sobre as atenções gerais...
Ao saber da morte da amiga, Albertine lamentou, sentindo-se culpada por não ter ido até lá, após o que acontecera.
Cenas desfilavam por sua mente, algumas nítidas outras vagas. A sensação era de estar no meio de feras que a
disputavam estranhamente.
Um grito avolumou-se em seu peito. Ela se agitou
mais e mais. O suor escorreu pelo seu rosto, marcando o
travesseiro. O grito explodiu, finalmente, como um desafio,
enquanto ela se erguia e se debatia, tentando se livrar de animais invisíveis que rodeavam seu corpo e a empurravam
para um ponto negro e tenebroso.
Seu pais a acudiram. Albertine desatou um prato convulso, ainda grogue pelos efeitos da droga que lhe fora ministrada.
— Tudo bem, querida. Papai está aqui — dizia Stanley Gardner, abraçando-a e a acariciando.
— Tudo vai ficar bem, você verá — ajuntou sua mãe,
compartilhando da dor.
Ofegante, Albertine os encarou. Depois desviou os olhos para a janela, pousando-os no alto da torre principal do
castelo abandonado.
Dali parecia vir aquela influencia maléfica que não
sabia explicar, mas que sentia. Seus olhos giraram, a seguir,
fora de controle e ela tombou para trás.
Sua respiração foi se acalmando lentamente e ela voltou a dormir. O ruído de um carro chegando fez Stanley ir
até a janela e olhar.
— É o Chester? — indagou-lhe a esposa.
— Não. Com toda certeza é a polícia de novo...
— Não o deixe incomodá-la novamente, Stan.
— Pode estar certo de que não repetirão a desumanidade de ontem à noite — afirmou ele, deixando o quarto.
Descia as escadas para o térreo quando soou a campainha. Irritado, foi abrir a porta.
— Escute, meu senhor. Não vou permitir que a interrogue novamente...
— Perdoe-me, senhor. Deve ter julgado que sou da
polícia, não?
— E não é? — retrucou Stanley, patético.
— Sou o Prof. Hilgenstiller... Sociologia.
— Queria desculpar-me, professor, mas não posso entender o motivo de sua visita...
— Li sobre os lobos...
— Ah, os lobos! — suspirou Stanley, tentando pôr-se
em ordem. — Espero que desculpe minha rispidez inicial,
professor, mas algo terrível aconteceu com uma amiga de
minha filha e...
— Refere-se a Mary Reading, não?
— Sim, ela mesma. Eram amigas de trabalho... Uma
coisa horrível.
Hilgenstiller sentiu-se incomodado em perturbar aquele pobre pai de família, depois da tragédia. Voltou-se e olhou o castelo.
— Os lobos foram vistos naquele bosque? — apontou.
— Sim, lá mesmo... É um inferno todas as noites...
— Sabe se há algum modo de se entrar no castelo?
— Não creio... Talvez escalando as paredes. A ponte
levadiça está alçada. Além disso, há uma porta de grades.
As chaves ficaram com um advogado há muito tempo...
Ninguém mais soube nada sobre o que seria feito do castelo.
— Eu agradeço sua atenção, senhor. Desculpe-me têlo incomoda-lo — disse o professor, voltando ao táxi.
Pediu ao motorista que retornasse à estrada e parasse
junto ao bosque. Desceu e observou as árvores que se despiam e as folhas secas que se amontoavam no chão.
— Vou dar uma olhada por aí. Não me demoro — disse, e atravessou a cerca, ganhando o bosque.
Quando mais próximo do castelo, mais se sentia envolver por uma sensação opressiva.
O cheiro de carniça chegou a suas narinas, nauseandoo. Caminhavas com cuidado, mas não via sinal algum da
presença de lobos.
Viu, então, a carcaça apodrecida de um animal, mas já
era impossível determinar se era um lobo ou um cachorro.
Lembrou-se da fotografia no jornal. Fora tirada ali.
Avançou mais, até diante do castelo, onde examinou
as muralhas indevassáveis. Não havia como entrar, a não
ser escalando.
Sentiu-se impotente. Drácula tinha de estar ali dentro,
mas como poderia entrar? Um ruído, não muito longe dali,
chamou sua atenção.
Aproximou-se e ocultou-se atrás de uma das árvores.
Procurou localizar o ruído, quando este se repetiu, num certo ponto á sua frente, junto a um pequeno muro em ruínas.
No momento seguinte, um alçapão ergueu-se. Hilgenstiller prendeu a respiração ao ver aquele corcunda surgir,
com uma pá em sua mão.
Todo seu corpo estremeceu, em suspense. Lembravase daquele estropiado que agora coxeava pelo bosque, rosnando e resmungando.
Seu desejo foi saltar sobre ele e esganá-lo, livrando o
mundo daquela maldição ambulante. Depois, percebeu o
quão arriscado seria fazer isso.
Em sua memória ele reviveu seu primeiro encontro
com aquele monstro e lembrou-se de sua força descomunal.
Ficou ali, estático, observando Torg ir até o lobo em decomposição e enterrá-lo.
Quando Torg retornou e sumiu pelo alçapão, fechando, o professor deixou seu posto e foi para lá examinar o
local. Junto ao muro, como se fizesse parte de um calçamento, estava a passagem para o castelo.
Havia uma pequena argola de metal. Hilgenstiller enroscou ali seus dedos e tentou abri-lo. Por mais que se esforçasse, porém, não podia obter resultados.
Era preciso mais que a força de um simples homem
para erguer a laje de pedras. Voltou a olhar o castelo. Agora não restava a menor dúvida. Drácula estava ali. Era preciso voltar ao seu apartamento e apanhar o espelho, bem
como ferramentas que o ajudassem a abrir aquela passagem.
Voltou para a estrada, no momento em que um carro
da Scotland Yard passava, com o inspetor-chefe, que o reconheceu. Este ordenou que seu motorista diminuísse a
marcha, enquanto observava o professor subir no táxi e se
afastar.
Tomou o rádio e ligou para a Central.
— Silvery, quero que encontre o Prof. Hilgenstiller e o
leve para aí para ser interrogado. Há qualquer coisa suspeita com ele e preciso descobrir. O endereço dele está em minha mesa. Eu volto assim que falar novamente com s Srta.
Gardner — ordenou, desligando em seguida.
***
Hilgenstiller caminhou impaciente de um lado para
outro da sala. Estava se sentindo como uma fera enjaulada,
incapaz de levar adiante o trabalho importante que tinha a
fazer.
Tratava-se da sobrevivência da própria humanidade.
Tratava-se de livrá-la de um monstro demoníaco. Essa tare-
fa só poderia ser feita à luz do dia. As horas passavam e o
inspetor chefe não aparecia.
— Oficial — disse caminhando até o outro. — Quero
saber por que estou aqui... O que querem de mim, afinal?
Tenho algo muito importante a fazer e...
— O inspetor está a caminho. Um dos pneus do carro
furou. Tiveram de trocar. O inspetor teve um leve acidente
com o macaco hidráulico e foi até o pronto-socorro para um
curativo. Não vai se demorar. Se estiver com fome, posso
mandar virem alguns sanduíches...
— Ao diabo com seus sanduíches, homem — resmungou o professor, procurando um lugar para se sentar.
Consultou seu relógio. Passava das duas da tarde. Escurecia muito cedo no outono. Tinha de se apressar. Não
fazia ideia de quanto tempo mais permaneceria retido ali.
Drácula estava no castelo, exposto, frágil e destrutível enquanto fosse dia.
Mais algumas horas e tudo ficaria mais difícil. Viu o
inspetor e animou-se.
— Inspetor, por favor! Não pode deixar o que quer
queira de mim para mais tarde? Tenho algo a fazer...
— Eu também tenho um trabalho a fazer, professor.
Agora se sente, por favor — disse, apontando uma cadeira
diante de sua escrivaninha.
Sentou-se atrás dela e encarou o professor.
— Pode me dizer onde esteve ontem à noite?
— Em meu apartamento, inspetor. Estive lá toda a
noite.
— Pode comprovar isso?
— Comprovar? Por que comprovar? Está me pondo
sob suspeitas, inspetor? Suspeitas de quê? De ser Jack, o
Estripador? Ora, não seja ridículo...
— O que fazia em Coventry esta manhã?
O professor encarou-o. Lembrou-se do carro-patrulha
que passava no momento em que subia no táxi.
— Passeando, inspetor — respondeu com irritação.
— Por que procurou o Sr. Gardner?
— O homem da casa... Está bem, queria informações
sobre os lobos...
— Lobos? Lobos, professor? Refere-se aquela nota
que saiu no Times?
— Sim, isso mesmo. Não acha interessante, de repente, saídos do não se sabe de onde, um bando de lobos passe
a infestar um bosque antes tranquilo?
— Estou certo de que tem uma explicação para isso,
não?
— Não me acreditaria, inspetor. Assim, não vejo por
que tenhamos que perder tempo com isso.
O inspetor balançou a cabeça de um lado para outro,
aborrecido. Percebia que o professor não estava disposto a
colabora e que ambos tinham visões totalmente opostas sobre os acontecimentos.
Queria, porém, definir qual a ligação e o interesse do
outro em tudo aquilo. Isso o estava deixando intrigado.
— Mas, voltando à minha primeira pergunta, professor. Pode comprovar que esteve em seu apartamento toda a
noite?
— Sim, posso... Claro que posso. Os filhos da Sr.
Westend, Billy e Charity, foram até lá fazer uma pesquisa
em minha biblioteca. Ficaram até perto das onze, quando a
mãe deles foi buscá-los.
— E depois disso?
— Fui dormir, inspetor, não praticar crimes — ironizou.
CAPÍTULO 8
A noite chegara.
O calabouço do castelo estava envolto pela escuridão.
Um rangido leve, quase imperceptível. Nas sombras dois
olhos animalescos cintilaram, enquanto Drácula se punha
em pé, desperto de seu sono.
Desceu do ataúde. Caminhou pela escuridão, livrandose gradativamente do torpor que dominava seu corpo ao
acordar. Por instantes estacou num dos salões do castelo,
pensando em, Torg.
Fora desafiado em seu poder. Torg receberia seu castigo naquela mesma noite. Um riso sinistro marcou seus lábios, enquanto deslizava escadas acima, como uma sombra
ou um mau presságio.
Sabia onde encontrar seu servo. Na torre principal do
castelo, estacou, observando. Lá estava Torg, com seu binóculo assentado na direção da casa, olhando aquela bela
virgem, com certeza.
Retornou até uma das janelas abaixo. Ali, metamorfoseou-se no enorme morcego e voou, havendo traçado seu
destino.
Não era nada adequado atacar nas proximidades do
castelo, mas a perspectiva de uma vingança sádica contra
Torg o animou.
O morcego macabro rasgou a noite com sua mensagem de morte, indo esvoaçar ao redor da casa dos Gardner.
A janela do quarto de Albertine estava aberta. Ele entrou
direto por ela, pousando diante da jovem, que se ergueu do
leito, presa de indescritível espanto.
Drácula se aproximou dela. Estava certo de que Torg,
do alto da torre, acompanhava seus movimentos. Um riso
sádico desenhou-se em seus lábios. Ele se aproximou e envolveu Albertine em seus braços, roçando suas presas no
pescoço delicado.
Estática, hipnotizada, ela ficou sem reação, à sua mercê. A volúpia que o dominou o convidava a cravar suas
presas na veia palpitante e sugar-lhe o sangue entre espasmos e suspiros.
Mas ainda seria pouco a vingança. Torg precisava entender para sempre quem era o mestre, quem dava ordens,
quem ditava as normas.
Recuou, dominando seu desejo lúbrico e mortal. Olhou a garota nos olhos e mentalmente transmitiu-lhe suas
ordens macabras. Depois recuou para a janela.
***
Como um possesso, Torg desceu as escadas do castelo, rumando para a passagem secreta. Estava fora de si,
descontrolando, alucinado. Vira Drácula no quarto da garota, compreendia o que seu mestre lhe preparara.
Fora um louco em desafiá-lo. A vingança seria cruel.
Evitá-la seria impossível mas, ainda assim, algo íntimo e
forte o fazia correr em defesa dela.
Entrou pela passagem e foi ergueu o pesado alçapão.
Deixou-o aberto e coxeou sobre as folhas secas, caminhando em direção da estrada.
Um bando de lobos, saídos de algum ponto do inferno,
rodeou-o, acusando-o contra alguns troncos. Seus olhos
chamejantes, suas bocas abertas de onde escorria uma baba
esbranquiçada e gosmenta seus rugidos ameaçadores, tudo
fez o corcunda enlouquecer de ódio.
Ele apanhou um galho e avançou contra os lobos, mas
estes reagiam e avançavam, acuando-o sempre, impedindoo de continuar.
Não longe dali, horrorizado, o Prof. Hilgenstiller acompanhava a cena macabra. Não entendia o que se passava.
No momento seguinte, tudo se tornou mais confuso.
Uma garota, metida numa camisola esvoaçante, passou entre ele e os lobos, rumando na direção do castelo.
Era jovem e bonita, mas parecia hipnotizada, caminhando como um robô ao encontro de seu próprio destino.
Ao vê-la a inquietação de Torg foi maior.
Ele rugiu e avançava contra os lobos, que se desviavam de seus golpes e voltavam a atacá-lo, mantendo-o encurralado. Como uma fera enraivecida, Torg tentava afastálos, mas seus gestos eram inúteis e mais assanhavam a fúria
dos lobos, que rugiam, mostrando os dentes pontiagudos.
Hilgenstiller tremeu de pavor. O que via era algo dantesco, infernal, terrível demais para ser acreditado. A garota
avançou sobre as folhas secas, quase sem ruídos.
O professor deixou seu esconderijo e correu, tentando
alcançá-la. Ela desceu pela passagem secreta, sumindo de
sua vista.
Hilgenstiller parou, diante da escada escura. Apertou a
caixa com o espelho mágico, depois sacou a arma e a engatilhou. Desceu, então, lentamente os degraus, sem saber
onde o levaria aquele túnel escuro.
***
Do alto da torre, olhando Torg, Drácula gargalhou alto
o bastante para se fazer ouvido pelo corcunda, que levantou
os olhos, as feições crispadas pelo ódio.
— Não, mestre! Ela não! — suplicou.
Em resposta, Drácula abriu seus braços, como que ditando uma ordem aos lobos. Um deles avançou sobre Torg,
mordendo-o na perna estropiada. O corcunda agitou-a, mas
os dentes cravados sobre suas carnes não cederam, provocando uma dor aguda que o enfureceu além da imaginação.
Ele agarrou o lobo pelo pescoço e apertou-o com toda
sua força descomunal. Estertorando, o animal não largou
sua perna. Torg, então, puxou-o com força, desgrudando-o
de suas carnes.
Urrou de dor e raiva, jogando o corpo do animal contra os troncos, depois avançando e chutando-o e golpeandoo com um galho, até que o lobo ficasse imóvel.
Outro salto sobre suas costas, jogando-o contra uma
árvore. Torg sentiu uma dor forte na cabeça e algo morno
escorreu, tapando-lhe a visão de um dos olhos.
Tentou agarrar aquele lobo também, mas o animal escapou-lhe agilmente. Todos voltaram a cercá-lo. Enfurecido, Torg atirava-lhes galhos e pedras, mas, longe de afugentá-los, mais os enfurecia.
Extenuado o corcunda caiu de joelhos e levantou os
olhos para a torre. Drácula estava lá, as roupas esvoaçando
à passagem de uma fria brisa de outono.
As gargalhadas ferinas chegaram aos ouvidos do corcunda, que lamentou sua ousadia. Lá, no alto, Drácula se
sentia satisfeito com a vingança, mas não de todo ainda.
Voltou-se para olhar o último lance da escada, por onde surgia Albertine, fiel a suas ordens. A volúpia dominou
seu corpo monstruoso, agora espicaçado pelo sádico prazer
em torturar seu servo.
Abriu os braços e Albertine caminhou direto para ele.
Aquele perfume virginal entorpeceu os sentidos do monstro, que a estreitou contra o peito, gozando aqueles contornos jovens e rijos, aquele palpitar compassado de um coração puro.
Suas mãos frias subiram até os ombros da garota, desfazendo os nós que prendiam a camisola. O tecido farfalhou
suavemente, indo amontoar-se aos pés dela.
As mãos de Drácula avançaram até as costas, arrebentando o fecho do sutiã... Os seios rijos e arredondados aguçaram sua lascívia, fazendo-o desejar estraçalhá-los com
suas presas, devorando aquelas carnes tenras e sangrentas.
Drácula se ajoelhou diante daquele corpo virginal e
tentador. O perfume de fêmea e sexo feriu suas narinas, alucinando-o. Seus lábios frios posaram entre as coxas da
garota. Sua língua viperina avançou fazendo o corpo de
Albertine estremecer.
Drácula enlaçou-a pela cintura e ergueu-se, erguendoa consigo. Sua boca colou-se, ávida e obscena, sobre um
dos seios, sugando-o e mordiscando-o cruelmente.
Lá embaixo, Torg soluçava, percebendo sua inutilidade, sofrendo sua inferioridade. Era o que Drácula pretendia.
Sua vitória o assanhou. Um cheiro de sangue jovem invadiu suas narinas, transtornando-o. Seus olhos se injetaram.
Seu hálito se alterou, fétido e nauseabundo. Suas faces se
arreganharam, como as de um animal prestes a avançar sobre a presa indefesa.
Ele tocou os dentes pontiagudos no pescoço delicado,
roçando-as no corpo nu, acariciando-o com suas garras, ferindo-lhe a pele.
Depois, num espasmo agoniado, cravou seus dentes
sobre a veia, fazendo o sangue jorrar. O corpo da garota
abalou-se, enfraquecido, enquanto seu sangue era sugado
impiedosamente.
***
Hilgenstiller havia ouvido a gargalhada sinistra vindo
de algum ponto, no alto. Subiu apressadamente, deixando
para trás o estojo vazio.
O espelho em suas mãos era a arma para destruir o
monstro. Se funcionasse, a humanidade estaria livre do
vampiro definitivamente.
Ao chegar ao topo, mal pôde acreditar no que viam
seus olhos. A garota nua era desonrada pelo monstro, que
ainda mantinha em seus pescoço, cravadas como lâminas
mortais, as presas pontiagudas.
— Demônios do inferno! — berrou Hilgenstiller,
brandindo o espelho.
Drácula soltou o corpo da garota e se voltou, resfolegando e urrando de ódio contra aquele que ousara interrompê-lo.
Um baque o fez recuar, como se o espelho emitisse
raios contra ele, enfraquecendo-o. Hilgenstiller avançou até
que Drácula visse refletida a sua imagem. Seu pavor foi indescritível. Os símbolos e a cruz faziam seu corpo arder em
fogo. Sua própria imagem o atraia, numa irônica armadilha
de destruição.
Albertine recuara, enfraquecida, atônita, possuída, até
apoiar-se a uma das ameias da torre.
— Cuidado! — alertou Hilgenstiller, mas era tarde.
O corpo jovem rodopiou ao luar, despencando pela
muralha abaixo.
— Maldito filho das trevas, fruto de um ventre pervertido — gritou Hilgenstiller, deixando o espelho no chão e
correndo até a ameia.
Viu, lá embaixo, o corpo estatelado da garota e um
bando de lobos rodeando-o e avançando para devorá-na.
— Oh, Deus! Não! — murmurou, como numa prece e
correu para a escada, sacando seu revolver.
Tinha de impedir aquela barbaridade, afugentando os
lobos.
O espelho poderia eliminar o monstro, era visível. O
que vira, no entanto, o deixara alucinado. Pensou na garota
como pensara em sua filha, quando a vira atacada pelo
vampiro.
Um instinto protetor o fez descer pela escuridão, em
seu socorro. No caminho, iluminado pelo luar que penetrava por uma das janelas, estacou, vendo a figura abominável
de Torg avançar em sua direção.
Apertou a arma, pronto a se defender, mas o corcunda
passou por ele rosnando como um animal louco, rumando
escada acima, na direção da torre.
Não entendeu, mas ouviu o rugir esfomeado dos lobos
lá fora. Viu-se desorientado, incapaz de encontrar a saída.
Seu desespero era desmedido. Sua angustia era sufocante.
***
Ofegante, Torg chegou ao alto da torre, disposto a desabafar sua fúria assassina. Vira o corpo da garota caído,
vira os lobos deixando-o para avançar sobre ela, assanhados pelo cheiro de sangue.
Não compreendia a cena. Drácula estava encolhido
num canto, enquanto aquele espelho parecia refletir os raios da lua direto sobre ele, enfraquecendo-o, minando-o suas forças.
Drácula podia ser destruído daquela forma.
— Torg, sua besta humana! Destrua esse maldito espelho! — rugiu Drácula, a voz alterada, as feições crispadas, o corpo retorcido, tão horrendo quanto o do próprio
Torg.
Um riso zombeteiro e satisfeito desenhou-se nos lábios do corcunda. Seu mestre se mostrava tão disforme
quanto ele. Aquilo lhe deu prazer e ele permaneceu estático, vendo o vampiro definhar.
— Torg... Excremento da natureza! Bastardo filho de
um animal, quebre esse espelho! — suplicou Drácula.
— Não devia ter feito aquilo com a moça, mestre! Não
devia — soluçou o corcunda.
— Torg, se eu for destruído você também o será...
Somos complementos um do outro... Você sabe... Será seu
fim também... Destrua, Torg! Destrua! — ordenou, os olhos
fixos nos olhos do outro.
Torg estremeceu, fraquejando. Lágrimas brotaram em
seus olhos e ele agarrou o primeiro objeto ao seu alcance e
arremessou-o contra o espelho, arrebentando-o. Era o binóculo com que adorava Albertine.
Drácula se ergueu, enfraquecido e se aproximou do
servo. Olhou-o nos olhos e gargalhou zombeteiramente.
— Temos de sair daqui. Torg. Apresse-se!
***
O professor ouviu tiros, orientando-o naquele labirinto
escuro. Depois o ganir dolorido dos animais, ordens secas,
movimento de pessoas.
Saiu, finalmente. O inspetor-chefe e alguns policiais
acabavam de chacinar os lobos. Hilgenstiller se aproximou,
trôpego, fora de si, mas recuou, ao deparar com a horrível
visão do corpo mutilado e semidevorado da garota.
— Talvez tenha sido melhor assim, Deus! — murmurou, cobrindo os olhos com as mãos.
O inspetor se aproximou dele, olhando-o intrigado.
— Como explicar sua presença aqui, professor? — indagou.
— E como explicar aquilo, inspetor? — gritou o cientista, apontando o corpo da garota.
O policial pigarreou, olhou as muralhas do castelo,
depois os corpos dos lobos.
— A garota estava transtornada, sob pesados sedativos... A morte da amiga a abalou... Ela deixou a casa e se
perdeu no bosque. Os lobos a encontraram...
— É um tolo, inspetor! É um tolo! — repetiu o professor, enquanto um policial se aproximava com uma lanterna.
Estendeu a mão e tomou-a do outro, correndo para a
passagem secreta. Tinha de chegar ao alto da torre e destruir o vampiro, se ainda houvesse tempo.
Alguns policiais o seguiram.
No alto da torre, a desolação e a frustração de mais
uma derrota o esperava. Drácula havia escapado. O monstro continuava vivo e livre!
FIM DO LIVRO QUATRO
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO CINCO
SEPULCRO MALDITO
CAPÍTULO 1
A neblina suave que deixava o Sena e avançava pelas
ruas dava aos prédios um aspecto fantasmagórico acentuando os contrates entre as construções velhas e as modernas.
A umidade grudava-se às paredes e telhados, escorrendo gotejante pelas janelas e embaçando os vidros. Naquele final de outono, os parisienses já podiam ter ideia do
rigor do inverno que se aproximava.
As famílias se reuniam ao redor da lareira, ouvindo
música ou vendo televisão. Jovens estudantes apressavamse em direção às estações do metrô e boêmios caminhavam
sem um destino certo.
A cidade estava viva, porém, sob aquela cortina diáfana de neblina. Seus bares, cafés, restaurantes e boates re-
gurgitavam. A música e a bebida eram oferecidas a todos os
gostos.
O Saint Denis, um café antigo, já tradicional a seus
frequentadores, não recebia a quantidade habitual de fregueses. Uma partida da seleção francesa de futebol parecia
haver deixado suas mesas e o balcão às moscas.
Apenas algumas garotas sonolentas acomodavam-se
displicentemente nos tamboretes ao longo do balcão de
madeira, todo manchado apesar do cuidado constante do
encarregado, que polia com um velho pano ensebado.
A entrada de um cliente provocou um ligeiro alvoroço
nas garotas, mas riram entre si ao perceberem o rapaz de
gestos afeminados que sentou a uma das mesas e pediu conhaque puro com a voz de falsete.
No extremo mais claro do salão, iluminado por um
lustre duplo de luz fria, três garotas brincavam com seus
copos quase vazios, girando-os, erguendo-os contra a luz,
levando-os aos lábios excessivamente pintados ou simplesmente tamborilando suas unhas compridas e esmaltadas
no vidro.
— Diabo de noite! — murmurou uma delas. — O que
há com os homens, afinal? Sentam-se diante de um gramado e ficam observando vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola...
— Eu particularmente, acho isso muito excitante —
resmungou uma delas, com um acento de malicia na voz
preguiçosa.
— Você...
— Acalme-se. Quando o futebol terminar, se já não
terminou... — Pierre, o jogo já terminou? — indagou, elevando a voz para que o rapaz junto ao caixa, diante do televisor, pudesse ouvi-la.
— Sim, estão nos comentários agora...
— Eu não lhe disse, Marie? Logo eles estarão aqui.
Tranquilize-se.
Marie Vallué era a mais bonita das três. Talvez seu
cuidado com a maquilagem, evitando exageros, a fizesse
mais tentadora e desejável que as outras.
Ninon e Chamy já ostentavam aquela classe distinta e
reconhecível das prostitutas veteranas com clientela certa.
Seus gestos e maneiras eram escachados e, detrás da grossa
e berrante camada de maquilagem, havia rostos cansados e
marcados pela vigília de todas as noites.
— Cruz credo! — disse o rapaz que chegara a pouco,
soltando sobre a mesa o jornal que lia com atenção.
As garotas se voltaram para ele e franziram os lábios,
num sinal de desaprovação.
— Vejam só! — continuou ele. — Vocês acreditam
em vampiros?
As três se entreolharam. No outro extremo do balcão
uma garota rechonchuda que tomava licor de hortelã riu
debochada. Ao perceber que os olhares se voltavam para
ela, calou-se e debruçou-se sobre seu copo.
Um velhote, ao fundo, levantou a cabeça com rapidez
e, em seus olhos sonolentos havia um temor instintivo. Fez
o sinal da cruz. Marie tocou o braço de Ninon e lhe apontou o velho.
Este apanhou seu copo e, ao percebê-lo vazio, fez um
sinal para o garçom. Este retribuiu com um gesto característico, esfregando o dedo indicador no polegar.
O velho entendeu e apalpou os bolsos até encontrar
uma nota ensebada de um franco. Ergue-a diante dos olhos
para o rapaz também a visse.
Este foi até a prateleira, serviu uma dose de conhaque,
depois passou pela torneira da pia e completou o copo com
água.
Levou-a até o velho, cujos olhos brilharam agradecidos. O garçom retornou ao seu posto. Ao passar diante das
garotas, Marie o recriminou com um olhar. Ele foi entregar
o dinheiro ao rapaz do caixa, depois voltou e parou diante
dela.
— Ele sempre fica feliz quando vê o copo cheio.
Quando seu dinheiro não dá para pagar isso, eu dou um jeito, só para alegrá-lo. — explicou Pierre.
Um automóvel grande e reluzente parou diante do café. Pelos vidros embaçados notava-se que seu ocupante era
um homem refinado.
Marie e as outras se entreolharam e corrigiram a postura sobre o tamborete, mas o motorista não desceu do veículo. O rapaz que lia jornal, no entanto, com um ar enfadado se levantou, arrumou o cabelo com um gesto rápido e
feminino, depois caminhou para a porta.
— Eu sinto muito, queridinhas — disse deixando o café e indo para o carro.
Quando este partiu. Marie balançou a cabeça de um
lado para outro. Depois olhou o jornal que ele deixara sobre a mesa.
Ergueu-se preguiçosamente e foi até lá, apanha-los.
— Você acredita em vampiros? — leu, em voz alta, a
manchete em letras garrafais.
— Está mesmo aí? — indagou Ninon.
— sim, parece interessante. Vou ler, depois passo para
você — disse Maria, voltando o jornal a favor da luz.
Ia começar a ler, quando outro veículo parou à porta.
Não era tão grande, mas parecia novo e muito bem cuidado.
O negro de sua carroceria ganhava um fascínio especial
com os frisos cromados e reluzentes.
Por algum tempo ficou parado ali. Marie abaixou os
jornais e tentou ver o motorista, mas o vidro embaçado não
o permitia.
Olhou para suas amigas.
— É um desses tipos indecisos — comentou Ninon,
com um riso malicioso nos lábios.
— Sendo assim, por que não encorajá-lo? — propôs
Chamy, deixando seu tamborete e indo até o vidro da janela.
Esfregou-o com as costas da mão, depois fez um gesto
encorajador ao motorista, que olhava em sua direção. Ele
desceu finalmente, contornou o veículo e se aproximou da
porta.
Quando entrou, todos os olhares se voltaram para ele.
Era alto e magro, o rosto pálido onde sobressaíam os lábios
grossos e as sobrancelhas espessas e negras.
Os cabelos, cuidadosamente assentados, e as roupas
distintas fizeram as três garotas suspirarem. Ele correu os
olhos pelo interior do salão, antes de fechar a porta atrás de
si.
Caminhou até o balcão. Havia certa autoridade e imponência em seu modo de andar. Um brilho fascinante em
seus olhos magnetizava e provocava suspiros.
Marie dobrou o jornal e deixou-o sobre o balcão, voltando-se para ele. Era uma boa promessa para aquela noite
miserável. Rico e distinto, na certa deveria ser muito generoso com suas amantes.
— O que vai ser? — indagou Pierre, pondo-se diante
dele.
O recém-chegado passou os olhos pela prateleira. Não
parecia disposto a beber, mas, de repente, qualquer coisa
pareceu desafia-lo.
— Conhaque... O melhor que tiver — pediu com sua
voz metálica.
Marie reconheceu nele, definitivamente, alguém de
autoridade, que sabia ordenar e ser obedecido com presteza. Pierre se voltou para a prateleira, olhou as garrafas, depois estendeu a mão para uma delas.
Apanhou um saca-rolhas e a abriu. Trouxe um copo
para diante do homem e olhou-o, antes de servi-lo.
— Dez francos a dose, senhor.
O outro levantou os olhos para ele, fazendo-o entender
que a observação era desnecessária e totalmente inadequada. Qualquer coisa naquele olhar fez Pierre estremecer e
apressar-se em servir.
O desconhecido retirou uma nota de sua carteira e depositou-a sobre o balcão. Em seguida apanhou o copo, levou-o até o nariz e, por instantes, aspirou o aroma da bebida.
A expressão de seu rosto nada traduziu. Ele levou o
copo aos lábios e provou. Cuspiu de volta e olhou Pierre
com reprovação e fúria:
— Não precisa pagar, senhor — disse Pierre, empurrando a nota de volta, sem entender ao certo o que o fizera
agir daquela maneira.
O desconhecido olhou com desprezo a nota, depois se
voltou para Marie e mediu-a cuidadosamente. Sorriu e havia algo de encantador e fascinante em seu sorriso.
— Sei onde encontrar bebida de qualidade — disse ela.
— Onde? — quis saber ele.
— Um clube aqui perto... Você me leva lá? — indagou ela, com um sorriso malicioso que tornou seu rosto brilhante e cheio de provocação.
Ele fez um gesto indicando a porta. Marie caminhou
adiante dele.
— Garota de sorte — resmungou Chamy, quando o
veículo já havia partido, arrancando aos solavancos.
— Se for tão bom amante quanto motorista, Marie vai
se arrepender desta noite — murmurou Nino, estendendo a
mão e apanhando o jornal.
Ergueu-o diante dos olhos, após consultar o relógio.
Até que deixassem o estádio e voltassem, os homens demorariam a aparecer.
Leu durante algum tempo a principal manchete, depois, riu com incredulidade, empurrando o jornal para
Chamy.
— Veja só... Como alguém pode se dar ao trabalho de
escrever e publicar algo tão idiota... E tem até um professor
metido no meio! — disse, embora seu rosto revelasse certo
temor instintivo.
— Não gosto de ler essas bobagens... Tiram-me o sono — disse Chamy.
— Leia, você vai gostar. Um vampiro é pálido... Esse,
em particular, é muito distinto e tem alguns séculos. Seu
nome é Vlad Alucard e pode estar em qualquer parte do
mundo neste momento.
— Se é pálido e distinto como o cavalheiro que saiu
com Marie, eu não me importaria que ele sugasse meu sangue... Desde que ele me desse algum prazer e algum lucro
— afirmou Chamy, rindo com deboche.
— Loucas... Loucas e descuidadas é o que vocês todas
são — disse o velhote, no fundo do salão, com voz pastosa.
— Eu não devia ter saído esta noite — disse Nina,
com desânimo, terminando o conteúdo de seu copo e fazendo um sinal para que Pierre a servisse novamente.
***
Hilgenstiller avivou o fogo da lareira, depois apanhou
seu exemplar diário do Le Roy, importante jornal francês, e
foi se sentar na confortável poltrona forrada de couro.
Descalçou os chinelos felpudos e, por instantes, manteve-os dirigidos contra o calor agradável que vinha do fogo. Depois os calçou novamente, acendeu seu cachimbo
predileto e abriu o jornal.
Já havia lido e relido aquela página inúmeras vezes,
com especial atenção e redobrado orgulho. Era de algum
modo o responsável por aquilo.
Venha tentando, junto a todos os importantes periódicos do mundo, a publicação daquele alerta. Não tinha notícias de novos ataques de Drácula, mas sabia que cedo ou
tarde eles aconteceriam.
Se o mundo estivesse preparado, talvez a tarefa de achá-lo e destruí-lo fosse mais fácil. Isso poderia se concretizar agora que seus apelos haviam sido atendidos.
Pensou em especial carinho em Dominique Pinon, a
redatora-chefe do Le Roy. Não a conhecia, mas valorizava
uma mulher com a sua coragem. Uma reportagem como
aquela tinha tudo para ser ridícula, mas ela soubera dar-lhe
o tratamento adequado de um alerta.
Precisava conhecê-la e agradecê-la. Talvez encontrasse nela uma importante aliada em sua solitária cruzada contra o vampiro.
Fechou os olhos, por instantes, baixando o jornal. A
lembrança dos crimes hediondos daquele monstro povoava
seu cérebro, martirizando-o.
Não haveria paz, enquanto Drácula não fosse exterminado e sua figura grotesca e sanguinária deixasse de pairar
sobre a humanidade como a pior das ameaças.
Ao abrir os olhos seu olhar pousou direto sobre a moldura de prata com o retrato de Larah, sua filha, na cornija
da lareira.
Estremeceu, como que ferido por uma dor profunda. O
olhar brilhante da filha, seu riso fácil, sua inteligência e sua
alegria, seu amor por ele, tudo isso se fora, maculado pelas
presas e pelos lábios sedentos de sangue e morte de um ser
que a própria natureza rejeita.
Lera tudo sobre vampirismo, tentara entender, afinal
aquele estranho e amaldiçoado fenômeno, mas ele fugia ao
seu conhecimento.
Forças ocultas que desafiavam o conhecimento científico haviam gerado aquele bastardo infernal, aquele príncipe das trevas, aquele demônio assassino.
Não podia haver ternura ao fitar o retrato. Havia nele
sede de vingança, apelo por justiça.
Isso o obrigava a estar preparado. Sabia que Drácula, a
qualquer momento, voltaria a atacar, se já não o estivesse
fazendo.
As armas contra ele, no entanto, eram tão frágeis. Se
ao menos pudesse atingi-lo à distância, mas como fazer isso? Drácula era uma sombra maligna, vagando pelo mundo,
embriagando-se de sangue e de volúpia criminosa.
Estacas de madeira, crucifixos, água benta, réstias de
alho, tudo tinha sua eficácia, mas como atingi-lo com essas
coisas, se ele se escondia tenebrosamente. Primeiro era pre-
ciso encontrá-lo, mas até então sempre chegara tarde ou falhara.
Era preciso impor um método àquela perseguição, mas
como lutar contra uma sombra? Como enfrentar um ser que
se esvai, metade homem, metade fera? Como encurralar a
metamorfose horrenda?
Essa sensação de impotência se tornava angustiante
diante do olhar terno e feliz da filha, no retrato. Hilgenstiller cobriu o rosto com as mãos e orou com fervor, suplicando que Deus o ajudasse a destruir aquela maldição infame.
O telefone tocou, sobressaltando-o. Ergueu-se apressadamente. Não recebia telefonemas com frequência, daí a
razão da expressão intrigada que surgia em seu rosto.
— Ligação Internacional para o Prof. Hilgenstiller...
— Sou eu, pode completar — disse ele, em seu sofrível francês.
— Alô! É o Prof. Hilgenstiller? — indagou uma voz
feminina, após alguns instantes.
— Sim, ele mesmo — respondeu, agora mais curioso
que antes.
— Aqui é Dominique Pinon, professor... Leu meu jornal hoje?
Um sorriso cordial desenhou-se em seus lábios descorados e ele puxou para perto de si uma cadeira. Sentou-se.
— É uma satisfação falar com a senhora. Não pode
avaliar o quanto lhe sou grato por acreditar em mim...
— Serei breve, professor. Sua carta, com todos aqueles detalhes, me impressionou muito. Seria difícil para o
senhor vir até Paris? Gostaria de tratar o assunto com mais
profundidade. Seu relato fascinou-me. Suas provas são
convincentes. Eu queria saber tudo realmente sobre o vampiro. Acha que poderá vir?
— Já estou indo, Sra. Pinon — afirmou esperançoso.
CAPÍTULO 2
Marie Vallué recuou, horrorizada, fitando aquele ser
retorcido e transfigurado, de cujos lábios grossos escorria
um filete de sangue.
Drácula rosnou e seus olhos injetados brilharam forte.
O sabor de sangue em seus lábios o assanhava, despertando
aquela volúpia assassina e maldosa.
Ele abriu os braços como que chamando Marie a seu
próprio suplício, a sua própria destruição. Seus olhos estavam cravados no pescoço dela, onde o sangue brotava rápido das fatias perfuradas de suas presas pontiagudas.
Ela recuou mais, até a parede, a mão tentando estacar
o precioso líquido que escorria morno e incomodo por entre
seus seios e avançava pelo seu ventre, empapando o vestido.
Havia uma súplica em seu olhar e um terror indescritível na expressão de seu rosto. Drácula saltou sobre ela, envolvendo-a em seus braços, rasgando-lhe as roupas com
seus braços em forma de garras, colando sua boca à ferida
sangrenta e sugando avidamente.
Marie tombou o pescoço para o lado e ficou olhando
os móveis pobres de seu quarto, enquanto, pouco a pouco,
sua mente se confundia, mergulhada numa lassidão mortal
que se apoderava dela.
Seus braços inúteis ao longo do corpo. Seus olhos se
fecharam e a palidez cobriu sua pele. Fungando e rosnando,
Drácula soltou o corpo jovem e sem vida, depois limpou os
lábios lambuzados.
Ofegante e saciado, ele recuou até a cama e se sentou,
sentindo os efeitos benéficos daquele sangue jovem acentuar a vida e o vigor de seu corpo.
Seus olhos perderam aquele brilho de sangue, ganhou
um aspecto cristalino e inocente. Ele retirou um lenço de
seda e limpou cuidadosamente os lábios. Depois olhou o
corpo caído, sem nenhuma espécie de piedade. A única coisa que lastimava era a perda daquela volúpia que, há poucos instantes, o fizera vibrar como ao mais alucinado dos
amantes.
Por algum tempo ficou ali, atento aos ruídos da noite,
observando a neblina que lambia os vidros embaçados da
janela, por onde penetravam palidamente os raios da lua
cheia.
Depois se ergueu, satisfeito com as forças de seu corpo, e foi até a porta. Abriu-a e fitou o corredor sombrio da
casa. Foi até Marie e tomou seu corpo frágil em seus braços, levando-a para fora.
Jogou-a no porta-malas do carro, depois foi tomar seu
lugar ao volante. Por algum tempo ele sorriu, embaraçando-
se com a ignição. Depois acelerou e saboreou uma volúpia
nova ao fazer mover, por sua própria vontade, aquele
monstro mecânico.
Gargalhou, enquanto deixava aquele bairro para trás,
cruzava uma das pontes sobre o Sena e rumava para a casa
que alugara, nos arredores da cidade.
Lá, Torg o esperava impaciente para livrar-se do cadáver, extravasando ele também aquela sede monstruosa
que fazia dele um complemento do vampiro.
O carro subiu por uma encosta, os possantes faróis iluminando a casa antiga, no alto. Ali a neblina do rio não
chegava e a lua prateada banhava generosamente os telhados e dava reflexos delicados às últimas folhas das árvores
do jardim.
Drácula levou o carro até a garagem. Torg chegou em
seguida, o corpo desengonçado movendo-se com uma agilidade que parecia impossível.
— E então, mestre? — indagou, babando-se de gozo.
— Excitante, Torg! Excitante — repetiu, descendo o
carro e fitando a carroceria reluzente. — Uma sensação nova... Parece que eu e o mundo vamos nos dar muito bem,
meu fiel servo.
Torg sorriu sinistramente, mostrando dentes finos e
desiguais na boca retorcida. Depois encarou o mestre, com
impaciência. Drácula riu, entendendo.
— Trouxe-lhe algo — disse, indo abrir o porta-malas.
— Ela é toda sua, Torg. Devore-lhe as carnes tenras e o coração macio. Satisfaça seu apetite macabro — finalizou,
desaparecendo como uma sombra.
Torg inclinou-se sobre o porta-malas, olhando o corpo
mal acomodado da garota. Estendeu a mão e acariciou o
rosto dela. Achou-o belo, de traços suaves. Segurou-a pelos
cabelos e ergueu-a lentamente, para que a lua banhasse seu
rosto e pudesse examina-lo.
Por instantes ficou atônito, percebendo a crispação
nos lábios dela e um rápido mover de pálpebras. Teria a
luminosidade provocado um estranho efeito ou ela estaria
viva ainda?
Tomou seu corpo, agora com especial cuidado, e ergue-o, retirando-o dali. Um gemido débil, imperceptível,
escapou dos lábios da garota. De seu pescoço ferido, duas
gotas de sangue brotaram e escorreram lentas para o braço
do corcunda, que estremeceu.
Tinha um ser ainda vivo em seus braços. Drácula não
a matara. Sugara-lhe o sangue até saciar-se e a julgara morta. Um estremecimento apossou-se de seu corpo. Um ser
vivo, carnes tenras e ainda palpitantes, um resto de sangue... A beleza viva em seus braços despertou-lhe pensamentos obscenos, de uma lascívia brutal e selvagem.
Olhou ao seu redor, num sobressalto. Precisava escondê-la em alguma parte, onde pudesse gozá-la intensamente. Conhecia todos os porões daquela velha casa.
Com o corpo nos braços, esgueirou-se para fora da garagem, contornando-a e foi até os fundos da imponente e
sombra construção.
Havia um alçapão, dando entrada ao depósito de carvão. Torg abriu-o depois levou o corpo para dentro. A escuridão não o incomodava.
Soube guiar-se naquele labirinto, chegando até um depósito de coisas velhas. Acendeu a lâmpada para melhor
acomodar o corpo sobre um colchão velho.
Em seguida ajoelhou-se junto dela, fitando longamente aquele rosto belo e ainda marcado pelo horror do ataque.
Aquela volúpia assassina crispou seus músculos e fez seus
olhos quase saltarem das órbitas.
A garota estava viva e isso daria um prazer especial ao
seu ato de canibalismo. Depois, sobressaindo-se acima de
seu próprio sadismo, uma ponta de ternura se manifestou.
Olhou ao seu redor. Ninguém a acharia ali. O aposento
onde repousava o vampiro era na outra ala. Drácula jamais
viria ali. E a garota estava viva e era bela. Normalmente
jamais olharia para Torg, mas ali, naquelas condições, teria
de fazê-lo, teria de submeter-se e, talvez, amá-lo como seu
salvador.
Esse pensamento despertou uma volúpia encantada em
seu corpo maltratado pela natureza. Alguém poderia amalo? Ainda que forçado? A necessidade de tentar se fez mais
forte. Ele se debruçou mais, colando o ouvido ao peito da
garota, atento ao bater quase imperceptível de seu coração.
Ergueu-se. Precisava fazer algo por ela. Podia salvar
sua vida. Havia sido alquimista e curandeiro, mas, acima de
tudo, as forças sobrenaturais eram suas aliadas e podia dominá-las. A magia negra era uma velha amiga. Conhecia
seus meandros e seus efeitos.
Deixou rapidamente o local, movido por estranha e
forte excitação.
***
Um sol generoso brilhava sobre as ruas calçadas de
Montmartre, o bairro boêmio da Cidade Luz. Em seus cafés, grupos de intelectuais e artistas se reuniam, apreciando
a manhã e tecendo comentários sobre os recentes acontecimentos.
Num deles o Café Toulon, de aparência tranquila, com
toldos vermelhos cobrindo a calçada onde se espalhavam
mesas cobertas de toalhas da mesma cor, três rapazes debruçavam sobre a edição matutina do Le Roy.
Havia um riso de incredulidade em cada boca, mas,
imperceptivelmente, um curioso brilho em seus olhares.
Brague Grambrinus, um pintor, riu mais alto e endireitou o
copo. Tomou um gole de seu café com conhaque, depois
apanhou a prancheta e o lápis, começando a rabiscar com
traços rápidos e precisos.
Henri e Maxime Hamond, os outros dois, desviaram
os olhos do jornal para a figura fantasmagórica que Brague
desenhava.
— O que está fazendo? — indagou Henri, de olhos
sonolentos após haver se recolhido às três da manhã e despertado às sete.
— O vampiro! — respondeu o pintor, com um riso de
zombaria.
— Era só o que faltava... Dominique ficou biruta.
Como se pode dar crédito a algo como isso, nos tempos atuais? — ponderou Maxime.
— Se você der uma olhada nas outras mesas, vai compreender os motivos dela. Todos estão lendo Le Roy hoje...
E ontem também. Acho que a humanidade tem sede de coisas sobrenaturais, apesar de temê-las. É um modo curioso
de acreditar nas divindades. Se o mal existe, por certo o
bem também existirá. Com essa dedução, chegam a Deus e
provam a si mesmos a sua existência. Simples não? — disse Henri, satisfeito com sua própria dedução.
— E acho que Henri tem razão — afirmou Brague,
terminando seu desenho.
Ergueu-o para mostrar aos amigos. Numa das mesas
próximas, uma garota desviou os olhos do jornal para a figura hedionda e ameaçadora exibida pelo artista.
Brague talvez houvesse exagerado nos traços, caracterizando o vampiro como um homem com braços abertos e
ameaçadores, uma capa esvoaçante semelhante às asas do
morcego, cabelos desgrenhados e longas presas cobrindo os
lábios inferiores.
De qualquer maneira, a figura desenhada provocava
arrepios.
— Por que não colabora com Dominique e lhe manda
esse esboço? — riu Henri.
— Parece-me uma boa ideia — ajuntou Maxime.
— Pois eu tenho uma ideia melhor. Vocês dois, como
escritores frustrados, não gostariam de partir deste esboço e
escrever algo fantástico a respeito do vampiro?
Henri e Maxime se entreolharam. Parecia uma boa ideia. Se agissem com rapidez poderiam aproveitar a publicidade causada pelas reportagens de Le Roy e chegar, de
algum modo, ao, sucesso que perseguiam.
— Parece muito apelativo... — murmurou Henri, embora a ideia o houvesse agradado realmente.
— Parece-me muito bom trazer um pouco de terror
aos corações empedernidos do século vinte. Quantas virgens irão se arrepiar, fitando a chegada da noite com um
medo torturante em seus corações? Eu acho que é uma boa
ideia. Teríamos de recriar todo um clima, mas estou certo
que realmente um desses casarões nos arredores de Paris
não dará a medida exata para começarmos.
— É... Se não der certo, engavetamos — propôs Henri, seduzido pelo argumento do irmão.
Os três riram e observaram a passagem desengonçada
e apressada de um corcunda, atravessando a rua.
— Ali vai Quasídomo, o corcunda de Notre Dame —
apontou Brague, tomando novamente a prancheta.
— E veja como sua figura horrenda provoca uma aversão natural nas pessoas... — observou Henri.
— Mas veja como elas não deixam de olhá-lo, ainda
que disfarçadamente. O terror fascina. Tudo que é repulsivo parece atrair. Eu acho que estamos diante de uma boa
ideia — ponderou Maxime.
Brague havia traçado rapidamente o esboço da figura
retorcida daquele corcunda. Os dois irmãos se debruçaram
sobre o desenho.
— Se escrevêssemos o livro, Brague faria as ilustrações, ele consegue captar muito bem essas aberrações da
natureza, mano — opinou Maxime.
— Então o que estamos esperando? A biblioteca já esta aberta, vamos pesquisar a respeito dos vampiros. Estou
certa que encontraremos um bom material de apoio — convidou Henri, erguendo-se.
***
O barco deslizava suavemente pelas águas do Sena,
passando sob as arcadas antigas das pontes que se sucediam, ligando a cidade de uma a outra margem.
Renê acomodou os remos no interior, depois fitou
Margot, a sua frente. A garota sorria enternecida. No brilho
de seus olhos havia uma promessa de beijos.
— Você é maluco, Renê! — murmurou, enquanto, nas
laterais, sobre as avenidas, o barulho dos carros encobria o
marulhar tranquilo das águas contra o casco da embarcação.
— Você disse que queria, eu providenciei. Seus desejos sempre foram ordens para mim — sorriu ele.
Margot balançou a cabeça de um lado para outro, o
rosto iluminado pelo mais carinhoso dos sorrisos. Desviou
o olhar para as folhas secas que flutuavam junto à margem,
como pequenos barcos que uma criança lançasse ao rio.
Algo como uma sombra parecia flutuar abaixo das folhas. Ela fixou ali sua atenção, depois levou a mão aos lábios, num gesto instintivo, de espanto e terror.
— Margot, o que foi? — indagou Renê, olhando naquela direção.
Viu claramente uma fina e esbranquiçada mão mexerse à flor da água, como se acenasse um pedido de socorro e
um adeus ao mesmo tempo.
***
Hilgenstiller tomara o primeiro trem da manhã para
Dover e agora aguardava o momento de embarcar no hovercraf e deslizar sobre as águas do Canal durante trinta e
cinco minutos até Calais.
Dali, novamente num trem, rumaria para Paris, onde
se encontraria com Dominique Pinon, a gentil redatorachefe do jornal que vinha dando atenção ao alerta que ele
tentava lançar ao mundo.
Enquanto aguardava, foi até a banca de jornal. Ali estava o Le Roy, com a segunda das reportagens a respeito do
vampiro.
O interesse das pessoas era grande. Um após outro os
jornais estavam sendo vendidos. Aproximou-se e indagou
ao jornaleiro.
— Como está a saída do Le Roy?
— Vendendo como água, senhor. Não vai levar seu
exemplar também? Em uma hora estarão esgotados...
— Sim, dê-me um — pediu, pagando-o.
Afastou-se na direção do cais. Havia sido dado o sinal
para o embarque. Ele subiu para a moderna embarcação e
foi procurar um local longe das janelas, onde crianças se
amontoavam ansiosas pela partida.
Sentou-se e abriu o jornal. Sorriu satisfeito após ler
algumas linhas, depois olhou para a maleta que trazia consigo.
Ainda não conseguia compreender porque tivera que
trazer tudo aquilo consigo. Talvez fosse uma fixação ou o
desejo de estar sempre pronto para enfrentar o monstro tão
logo surgisse a oportunidade.
Drácula deveria estar em alguma parte do mundo agora, mas onde? Essa pergunta torturava-o. Na noite anterior,
de lua cheia, alguma garota inocente poderia ter tido o
mesmo trágico destino que sua filha Larah.
Esse simples pensamento o fazia estremecer de ódio e
repulsa. Seus olhos continuavam fixos na maleta, recordando-se do que constituía parte de sua bagagem.
Tinha ali duas pontiagudas estacas de madeira, esculpidas cuidadosamente em galhos de carvalho, resistentes e
mortais. Um crucifixo grande, de prata, cujas extremidades
ele havia limado para que cortassem. Um frasco de água
benta, colhida numa das igrejas de seu bairro. Uma pistola
alemã Lugger, de grosso calibre, caso tivesse de enfrentar
aquele corcunda monstruoso novamente.
Respirou fundo e o ar marítimo fez bem a seus pulmões. Olhou ao seu redor. Quantas daquelas pessoas não ririam de sua bagagem? Quantos não chorariam, porém, diante do monstro?
CAPÍTULO 3
Hilgenstiller desembarcou a caminhou por entre a
multidão apressada até a rua. Ali, seu olhar passeou pelos
prédios antigos e austeros, pelas ruas movimentadas e cheias de colorido próprio.
Acenou para um táxi. Teria sido mais rápido tomar o
metrô, mas após tempo, era bom matar suas saudades daquela cidade inesquecível.
Forneceu o endereço do jornal, depois se reclinou no
assento, observando as calçadas e os prédios. Quando chegou, pouco mais tarde, sentia-se já parte da cidade impregnado daquela atmosfera de agitação e deslumbramento.
Ao descer lembrou-se de sua missão e dos motivos
que o levaram ali. Seu rosto se tornou sério e pensativo.
Pensou no que dissera o jornaleiro, no porto de Dover.
O jornal Le Roy estava esgotando suas edições, com
aquelas reportagens sobre o vampirismo. Não estaria ele,
Hilgenstiller, sendo usado numa jogada comercial muito
lucrativa?
Descartou o pensamento, enquanto subia os cincos
degraus até a entrada do prédio. Dominique Pinon, pelo que
sabia era uma pessoa muito conceituada e honesta. Por aca-
so era jornalista, mas isso não era o bastante para desmerecê-la. A maneira séria com que abordara o assunto era uma
boa prova disso.
Informou-se na portaria, depois rumou para a sala que
lhe fora indicada. Ali reinava uma agitação incomum. Indagou sobre a redatora.
— É o Prof. Hilgenstiller? — perguntou a secretária,
atarefada entre anotações e telefonemas.
— Sim, ele mesmo.
— Dominique vai recebê-lo num instante. Está na câmara escura. Vou avisá-la — disse, tomando um telefone
interno e ligando para lá.
Depois conduziu o professor até uma sala fechada, livre do barulho e da agitação que vinha de fora. Momentos
depois, a porta voltou a abrir e Dominique Pinon, tendo nas
mãos duas fotografias ampliadas ainda gotejantes entrou e
encarou-o.
— É um prazer conhecê-lo, professor — disse ela,
demonstrando, no tom de voz e nas maneiras, muita excitação.
— O prazer é todo meu — respondeu ele, momentaneamente confuso com a inusitada recepção.
Dominique levou as fotos para cima da mesa, depois
ergueu os óculos que cobria seus olhos verdes, num tom
escuro de esmeralda.
Devia beirar os quarentas, mas não aparentava essa idade. Havia juventude e viço em seu rosto. Um espírito alegre e irrequieto escondia-se no corpo ainda esbelto de
mulher que atingia o apogeu de sua beleza.
— Veja isso, professor — apontou ela, ligeiramente
ofegante.
Hilgenstiller se aproximou. As fotos eram de uma garota nua, aparentemente morta pelo rasgo enorme em seu
peito e em seu ventre. As carnes já haviam atingido o estado de putrefação, o que tornava a visão desagradável.
Quase que instintivamente, os olhos do professor se
dirigiram ao pescoço dela. Comprovou nas duas fotos, estremecendo, conhecia aquelas marcas, eram inconfundíveis.
Ergueu o olhar para a jornalista.
— Aconteceu está manhã. O corpo foi encontrado no
Sena. Rechearam seu ventre com pedras, mas algo aconteceu e ele flutuou. Estive no local e as marcas no pescoço atraíram minha atenção. Podia ser coincidência. Sua chegada
foi providencial. Diga-me, agora, o que pensa disso.
— Drácula está aqui. Tenho certeza — afirmou Hilgenstiller. — O peito dilacerado... Aposto como a necropsia comprovará que o coração foi extirpado. As marcas no
pescoço... Já as vi antes — disse e, por instantes, a lembrança da filha passou por sua mente, torturando-o.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Posso conseguir que veja o cadáver para se certificar.
— Eu não tenho duvidas, senhora...
— Dominique apenas, por favor — sorriu ela, estendendo a mão. — Desculpe minha descortesia, mas o fato
realmente me transtornou.
Ele apertou a mão feminina e firme que lhe fora estendida, depois voltou a observar a fotografia. Sentiu que todos seus músculos e nervos se crispavam, invadidos por
uma onda indomável de furos.
A jovem morta era bela, como fora sua Larah. Ceifada
no desabrochar final da juventude, como um pecado contra
a beleza.
— Professor, por que suspeita que o coração foi extirpado? — indagou a jornalista.
— Segundo as lendas, a maldição do vampirismo se
aloja no coração das vítimas, de onde brota com a lua cheia, operando a metamorfose. Se transpassado com madeira,
extingue-se a maldição e o cadáver encontra seu repouso
natural. Drácula talvez esteja fazendo isso para impedir que
uma legião de vampiros surja a sua passagem. Não entendo
porque o faz.
— Sei que tenho muitas perguntas a lhe fazer e que
deve estar cansado da viagem...
— Pelo contrário. Voltar a Paris sempre alegra e remoça — riu ele.
— Nesse caso, é meu dever convidá-lo para almoçar.
Pode deixar sua bagagem aqui. Depois cuidaremos para
que se instale num bom hotel. O jornal já concordou em
pagar todas as suas despesas. Se me der um minuto, estarei
pronta para ir — disse ela, indo tomar o telefone.
—
Parado na escuridão, Torg podia ouvir o respirar difícil da garota. Acendeu finalmente, a luz e depositou a caixa
que trazia nas mãos sobre um móvel empoeirado, depois foi
se debruçar sobre o corpo maltratado.
Ele a cobrira com um lençol e, antes de descobri-lo,
hesitou, com a visão daquelas carnes alvas e tenras fosse
transtorná-lo.
Afastou, então, o tecido, observando as feridas que recobrira com uma grossa camada de uma pomada gordurosa
e esverdeada. Segurou-a pelos ombros e, delicadamente, a
fez se voltar para a luz. O estremecer das pálpebras, ainda
que imperceptível, indicava que a vida não a deixara ainda.
Sua atenção se concentrou no pescoço da garota. Ao
centro de um enorme hematoma estavam aquelas duas perfurações, igualmente cobertas pela pomada nauseabunda.
Um sorriso momentâneo brilhou em seus lábios. Ele
examinou-lhe as costas, lanhadas pelas garras do vampiro.
Tudo era agora uma questão de tempo. Ele se voltou e olhou a caixa sobre o móvel.
Foi até lá e a abriu cuidadosamente. Depois tocou o
tecido macio do vestido dobrado lá dentro. Era branco, com
enfeites de renda, num modelo um tanto antiquado.
Por instantes a testa do corcunda vincou-se ao se lembrar do olhar zombeteiro da modista, quando fizera a compra. Voltando o rosto para a garota, no entanto, esqueceu-se
de tudo aquilo e sentou-se num caixote, ficando um longo
tempo a olhá-la, com adoração.
—
Haviam retornado, após o almoço, à redação do jornal.
Os detalhes sobre a necropsia já haviam sido recebidos.
Conforme o professor havia previsto, o coração da vítima
fora extirpado.
A polícia julgava-se às voltas com um criminoso passional. Um homem, movido por brutal ciúme, arrancara o
coração da amada, talvez insensível a seus apelos amorosos.
Sob o aspecto, o crime poderia ser romanceado pela
imprensa, mas o enigma permaneceria. Com zombaria o
professor ouviu todo o relato do assistente. Quando Dominique o despediu, finalmente, e se voltou para ele, seu olhar
se tornou sombrio.
— Ele está aqui, não há dúvidas. Oculto em alguma
parte, ele já começou espalhar o terror. Esse corpo descoberto demonstra seu cuidado em esconder as vítimas.
Quantas antes não foram mortas? Quantas ainda não serão?
— Logo mais teremos uma reunião com a diretoria.
Por isso pedi que viesse, professor. Acredito no que me
disse e sei que poderemos juntos convencer a direção a
manter a linha de reportagem. Um bom argumento será o
lado comercial do assunto, mas sabemos que isso não é
mais importante agora. Gostaria de repousar um pouco, antes da reunião? Às vezes ela se prolonga um pouco mais do
que o esperado e não gostaria de fatigá-lo muito.
— Eu estou bem, não se preocupe. Quando se trata de
dar caça a esse monstro, minhas forças se multiplicam.
— Deve odiá-lo muito...
— Como se odeia uma peste, como se odeiam as coisas malignas.
— Se ele está aqui, como vamos encontra-lo? Como
reconhecê?
— Eu já o vi pessoalmente. Penas que não seja um
bom desenhista...
— Não será o problema. Nosso departamento artístico
poderá ajudá-lo. Basta fornecer os detalhes e ir efetuando
as correções e os ajustes. Estou certa de que teríamos um
retrato falado dele em pouco tempo. Não gostaria de tentar?
— Agora mesmo?
— Sim, por que não?
—
Anoitecera e a casa estava às escuras.
Como uma sombra, Drácula deslizou através do salão
e se aproximou da janela, fitando Paris e a Torre Eiffel, ao
longe, iluminada pelos holofotes.
O clima de Paris o agradava. A noite fervilhava de
presas fáceis a seus instintos bestiais. A beleza era uma
constante. Garotas atraentes frequentavam estabelecimentos onde se divertiam muito.
Além disso, ele estava se habituando ao mundo moderno. Fora interessante aprender como dirigir um automóvel. Era cômodo e prático e, mais que um par de asas de
morcego, podia impressionar as mulheres.
Elas continuavam as mesmas, sempre deslumbradas
pela riqueza e atraídas pelo luxo. Isso as punha a perder deliciosamente, sorriu ele.
Voltou-se, atendo aos ruídos da casa. As luzes estavam apagadas ainda.
— Torg! — chamou e sua voz trovejou ameaçadoramente pelas paredes sombrias.
— Torg! — insistiu, caminhando pela sala.
Mal o eco de suas palavras se desfez nas sombras. O
manquitolar ritmado traiu a aproximação do corcunda, que
tocou um interruptor, inundando a sala de luz.
— Perdão, mestre! — disse apressadamente.
— Onde esteve?
— Fazendo alguns pequenos consertos pela casa...
Não percebi que havia anoitecido — explicou o corcunda,
incapaz de olhá-lo nos olhos.
Drácula percebeu que o servo lhe escondia algo. Aproximou-se e sua sombra ameaçadora pairou sobre ele.
Torg se encolheu. Se Drácula soubesse que escondera a garota ainda viva, na certa o puniria.
Reconhecia que o que fizera era imperdoável, mas jamais teria resistido à tentação de fazer daquela garota alguém que o olhasse sem medo e, talvez, até com amor.
Drácula riu. Sabia que Torg tinha algum pequeno segredo. Isso era visível em suas faces desfiguradas. Seria fácil arrancar dele a verdade, mas achou que seria inútil demais se preocupar com aquilo.
A noite parisiense o esperava. Já não era a noite do
seu tempo, quando os salões se enchiam de luzes e de musica e a valsa era a dança do momento. Era outra Paris mais
picante e pitoresca, mas fácil em tentações, mais lasciva em
suas salas fechadas e esfumaçadas.
— Vai sair mestre? — indagou Torg, timidamente,
passado o suspense inicial.
— Sim... Está uma lua magnífica lá fora. A cidade me
espera...
— Vai... Vai buscar uma presa?
Drácula riu e girou o corpo, aproximando-se da janela.
Estava saciado e forte. Seus sentidos se voltavam para outros prazeres.
— Ontem experimentei um pouco de conhaque... Era
péssimo, áspero, agressivo, rude demais, mas despertou-me
o desejo de conhecer de novo o sabor de um bom vinho.
— Há bares refinados e honestos na Avenida dos
Campos Elíseos, mestre.
— Eu sei, Torg. Traga-me mais dinheiro! Bom dinheiro que abre todas as portas e torna tudo tão acessível — ordenou, voltando-se com um sorriso lúbrico nos lábios.
Torg se voltou, mas, antes de se afastar percebeu, junto à lareira, o jornal que comprara naquela manhã. Foi até
lá e o apanhou.
— Veja isso, mestre!
Drácula tomou-o de suas mãos e abriu-o diante dos
olhos. Um riso perverso crispou seus lábios. Ele amassou o
papel e atirou-o na cara do corcunda, num acesso de fúria.
— Maldição! Como ousam falar dessa forma de um
Drácula? O que sabem eles sobre vampirismo? O que sabem sobre mim e minha nobre família?
Torg havia recuado. Percebia a fúria de Drácula e isso
o assustava. Drácula fixou nele seus olhos injetados.
— Você, meu fiel servo, vai descobrir quem está por
trás disso. Localize seja quem for e traga-me o endereço.
Vou fazê-lo se arrepender amargamente de haver ofendido
minha família. Vamos mova-se, inútil excremento ambulante! Faça o que ordeno ou quebro-lhe os ossos dessa carcaça podre e deformada — berrou possesso.
— Sim, mestre. Agora mesmo, mestre — gaguejou o
corcunda, enquanto Drácula, fora de si, ia até a janela e a
abria fitando a lua.
Sua palidez se acentuou, depois brilhou forte, fosforescendo toda sua pele e todo seu corpo, como emanações
de calor visível.
A metamorfose arrepiou Torg que, tendo a consciência
pesada, temeu por si próprio. Quando o grande e ameaçador morcego agitou suas asas e escapou pela janela, o corcunda se voltou e deixou a sala rapidamente.
Desceu aos porões. Seu coração estava aos saltos. Conhecia Drácula e não queria sobre si a sua ira, não depois
do que presenciara.
Na certa, naquela noite, grande tenebrosa seria a devastação sobre a cidade. Drácula mataria por puro prazer,
por vingança apenas, até que saciasse aquela sede de destruição.
Chegou ao aposento onde ocultara a garota. Acendeu
a luz e foi descobri-la. Duas mãos desceram até tocar os
seios rijos e bem conformados.
Crispou seus dedos sobre a pele macia. A garota ainda
não voltara a si, mas sabia que os efeitos medicinais daquela pomada a fariam viver para ser sua.
Era uma tentação, realmente, mas um desafio inútil. O
melhor a fazer era destruí-la, rasgando suas carnes e devorando seus coração.
Imaginou entre suas mãos a fonte de vida daquele corpo, ainda pulsando e gotejante. Não, não poderia. Ela era
bela demais e lhe prometia uma ventura que seu corpo deformado talvez jamais voltasse a experimentar.
Ela poderia amá-lo, olhá-lo com olhos de ternura, acariciá-lo com suas mãos finas e macias, pensou ele, tomando
as pequenas mãos entre as suas.
Estavam frias e Torg desejou aquecê-las entre seus
dedos. Tinha de destruí-la, mas queria ama-la e ser amado.
Suspirou fundo, entrecortando, antes de acariciar os cabelos macios e ainda perfumadas.
Recuou, apagando a luz e se perdendo no corredor escuro.
CAPÍTULO 4
Hilgenstiller se reconhecia fatigado, ao fim da longa
reunião, mas recompensado também. A diretoria aprovara a
linha traçada por Dominique e o professor seria convidado
a participar.
Não via como uma participação, mas como um meio
de alertar humanidade sobre aquele criminoso desalmado.
Todos deveriam estar alerta para ajudá-lo naquela cruzada
insana.
Na sala de Dominique, onde fora apanhar sua maleta,
encontrou-se com a redatora e um dos artistas do jornal. Ele
acabava de trazer o resultado de seu trabalho. Dominique
estendeu o papel ao recém-chegado. Hilgenstiller estremeceu.
Ali estava, em todos seus detalhes, a figura sinistra do
vampiro.
— Um bom trabalho! — elogiou — É ele sem sombra
de dúvidas...
— Na primeira página da edição matutina, Fred, logo
abaixou da manchete principal — ordenou Dominique.
Quando o artista saiu, os dois se olharam.
— Parece que conseguimos, professor.
— Sim. Estou grato ao seu empenho. Encontrei em
você uma forte aliada.
— Se Drácula está em Paris, na certa vai ser visto...
— Nós nos esquecemos do corcunda, lembra-se? Eu o
mencionei em minha carta. Parece ser o elo do vampiro
com o mundo exterior. Seria bom falar sobre ele nas próximas reportagens.
— Cuidaremos disso, não se preocupe. Agora acho
que deseja repousar, não? Vamos ter muito trabalho amanhã cedo. Acha que poderá estar aqui às sete?
— Tranquilamente.
— Um carro do jornal vai levá-lo até o hotel. Espero
que aprecie as acomodações.
— Após este dia, estou certo de que dormiria sobre
uma pilha de tijolos — riu ele.
— Mas não será preciso, professor — acrescentou ela,
rindo também.
***
Oculto nas sombras do beco, cego pelo furor, Drácula
apenas aguardou.
Quando o homem passava junto dele, estendeu o braço
e trouxe-o para junto de si. O outro se debateu, mas a mão
raivosa atacou sua garganta e dedos de uma força sobrenatural comprimiram.
O terror do outro foi indescritível, tentando se libertar
daquelas garras que pressionavam mais e mais, estrangulando-o. Esmurrou às cegas, mas seus golpes pareciam assanhar ainda mais seu agressor.
Um rosnar animalesco acompanhava a ação do vampiro, que via as forças do outro cederem gradativamente, enquanto a vida fugia de seu corpo.
A língua horrenda estendeu-se da boca escancarada e
desfigurada pelo medo. Drácula ergueu-o contra a parede,
os olhos injetados reluzentes na escuridão, as presas mortíferas fosforescendo, como se tivesse luz própria.
Quando sentiu que o homem estava morto, atirou-o
contra a parede oposta, chocando sua cabeça contra o tijolo, num som desagradável.
Deixou-o atrás de si e avançou para a claridade da rua.
A neblina subia pouco a pouco do Sena. Um carro passou e
seus faróis iluminaram a figura do vampiro que, estranhamente, não projetou sua sombra contra a parede.
Continuou caminhando, ainda trêmulo de ódio, à caça
de vida que pudesse exterminar com suas mãos. Não queria
sangue naquela noite. A morte era um eficiente entorpecente para sua ira.
Queria destruir, queria ver o medo e o terror nos olhos
das vítimas indefesas. Seus passos ecoavam pela rua silenciosa e vazia daquele bairro afastado.
Todos pareciam estar ocultos de seu furor e isso espicaçou. Sentiu seu corpo crispado ainda e era preciso muito
mais até que retornasse à calma.
Percebeu luzes numa casa um pouco mais além, separada da calçada por um pequeno e bem cuidado jardim, cujas plantas se achavam preparadas para enfrentar o inverno
que chegava.
Estacou, fitando uma das janelas, depois avançou, atravessando o portão gradeado. Um cão latiu, depois foi
contra ele. Drácula rosnou, olhando-o fixamente e o animal
ganiu, recuando assustado para o lugar de onde viera.
A luz da varanda se acendeu e um homem, fechando o
capote, avançou. Ao ver a figura distinta e bem vestida do
vampiro, sorriu cordialmente.
O sorriso morreu-lhe nos lábios, no entanto, quando
percebeu os olhos injetados e as presas animalescas. Não
compreendeu. Julgou-se diante de um pesadelo vivo. Lá
dentro, em frente ao televisor, a sua esposa indagou:
— Quem é, Jean?
Antes que ele pudesse responder, Drácula saltou sobre
ele, jogando-o para dentro do aposento. A mulher se ergueu, horrorizada, gritando histericamente.
Luzes se acenderam na vizinhança e o cão voltou a latir e ganir, como se alternasse medo e coragem em suas ações. O silêncio se fez dentro da casa, onde dois cadáveres
retorcidos pareciam trocar um último e agonizante abraço,
amontoados grotescamente.
***
Os três empurraram a porta ao mesmo tempo, depois
em fila indiana pelo salão, olhando as garotas ao longo do
balcão.
Entreolharam-se, percebendo que alguma coisa mudara ali dentro. Lá estavam Ninon, Chamy, Colette e as outras, mas nenhuma pareceu se importar com a entrada teatral dos três.
Maxime fez um sinal aos outros dois e todos retornaram à porta, onde efetuaram nova entrada. Nenhum riso escapou dos lábios das garotas.
— O que há? Isso aqui nem parece o velho café do Pierre. Estão todas com cara de enterro — observou Brague,
aproximando-se de Ninon, cuja posição sobre o tamborete
nada revelava de seus encantos.
A garota levantou os olhos para os três e forçou um
sorriso raivoso. Perceberam, então, que havia feito qualquer coisa errada. Henri fez um sinal a Pierre, que lhes serviu conhaque.
— O que está havendo aqui? — indagou ao garçom.
— Elas estão preocupadas. Não disseram uma palavra
desde que se sentaram ali. E olhe que já apareceram bons
fregueses hoje.
Brague fez uma careta divertida, depois se aproximou
de Ninon, pousando sua mão sobre os joelhos dela. A garota empurrou-a, depois o encarou enfezada.
— O que está havendo com vocês? — indagou ele.
— Estamos preocupadas, apenas isso — disse Ninon.
— Não devíamos ter deixado que ela fosse com aquele
estranho. Bem que eu tive um pressentimento — falou
Chamy.
— Besteira sua. Está impressionada com o que leu no
jornal, apenas isso. No momento, aposto como teve inveja
dela. Pode me negar isso? — argumentou Ninon.
— Você não pode ler o que está dentro de mim. Tive
um pressentimento, juro como tive.
— Do que estão falando afinal? — quis saber Maxime, que sentia uma especial atração por Marie Vallué, mas
não a via ali naquela noite.
Quando Chamay falara sobre pressentimentos e jornal,
ele próprio teve um angustiante pressentimento.
— Onde está Marie? — acrescentou, então.
— É o que todas gostaríamos de saber — falou Ninon.
— Que bela classe unida! — exclamou Brague, mas
calou-se arrependido quando todas o olharam ameaçadoramente.
— Está bem, vamos pôr ordem na discussão — falou
Henri, com seriedade. O que está se passando, afinal? Onde
está Marie?
— Ela saiu ontem à noite com um cliente novo...
— O vampiro — cortou-a Chamy, quase histérica.
— Cale a boca, Chamy. Não diga asneira — repreendeu-a Ninon. — ela saiu com o sujeito, mas não foi vista
depois disso. Esteve em seu quarto. A porta estava aberta e
suas coisas no lugar.
— É a primeira vez que ela faz isso? — indagou Maxime.
— Sim, nunca agiu assim antes. Se tivesse recebido
um convite para viajar ou coisa assim, teria deixado um recado para alguma de nós. Por isso estamos todas preocupadas...
Os três rapazes se entreolharam. Maxime se voltou para Chamy.
— Por que diz que o sujeito se parecia com um vampiro...
— histeria dela — antecipou-se Ninon.
— Mentira! Mentira sua — repetiu, levando as mãos à
boca, num gesto patético.
— Nunca vimos aquele homem por aqui, nem ao seu
socorro. Além disso, ele era pálido... Muito pálido mesmo...
— E só porque o jornal disse que os vampiros são pálidos a idiota cismou em deduzir que Marie saiu com um
vampiro, e que, neste momento, jaz em algum ponto da cidade, sem uma gota de sangue no corpo — disse Ninon,
com certa crueldade.
Chamy se ergueu, com as mãos sobre a boca, e correu
para o banheiro, nos fundos.
— Alguém já pensou em dar queixa à polícia? — sugeriu Henri.
— Eles riram de nós, não percebe — descartou Ninon.
— Nesse caso, vamos procurá-la — propôs Maxime.
— Onde?
— Alguém deve tê-la visto... Sei lá...
Pierre, que estava diante do televisor, numa prateleira
ao canto, chamou a atenção deles e foi aumentar o volume.
— Ouçam isso — disse.
Todos se voltaram na direção do televisor. O noticiário informava sobre a garota encontrada no Sena, naquela
manhã. Entre as teorias sobre sua morte, surgia uma, acompanhando o raciocínio do jornal Le Roy.
Destacava as perfurações no pescoço e a total ausência
de sangue no corpo.
— Com aqueles cortes, isso não é de se admirar —
comentou Brague.
Instintivamente, porém, arrepiou-se. Na continuação
do noticiário, falaram de dois crimes recentes que haviam
deixado a polícia atônita pela maneira violenta e desumana
como haviam sido cometidos.
Um homem havia sido estrangulado e teve a cabeça
partida após ser atirado contra uma parede. Numa casa,
seus ocupantes haviam sido estrangulados com requintes de
sadismo.
Os vizinhos próximos juravam ter ouvido gritos, mas
não viram, depois, ninguém entrar ou sair da casa, além de
um estranho e enorme pássaro, com asas pontiagudas.
Todos acompanharam com interesse e, quando o locutor passou aos comentários esportivos, Pierre desligou. Um
silêncio mortal pairou no salão.
Chamy, que estava a meio caminho do balcão quando
Pierre aumentara o volume, voltou para o banheiro, com as
mãos na boca.
— Eu não sei... — murmurou Henri.
— Temos de encontrar Marie — afirmou Maxime,
lembrando-se de tudo que ele e os amigos haviam lido na
biblioteca, a respeito dos vampiros.
Podia parecer absurdo, podia estar impressionado com
o que lera e com a coincidência das notícias, mas temeu por
Marie.
— Espere um pouco, pessoal. Não vamos nos precipitar — disse Brague. — Deve haver uma explicação para
tudo... Não há? — indagou, ao final, olhando os rostos pensativos de seus amigos.
Pareciam lembrá-lo do que lera. Esboçou um sorriso
amarelo, depois se tornou tão sério e pensativo como eles.
Uma ideia lhe ocorreu.
— Ninon, é capaz de descrever o homem que entrou
aqui?
— Acho que sim... Chamy me ajudará... Pierre também...
— Pierre, dê-me lápis e papel. Vamos desenhar o
vampiro — brincou, mas ninguém achou graça de sua piada.
***
O tilintar do telefone parecia um som distante no sono
do professor.
Ele ergueu-se preguiçosamente do leito e procurou o
interruptor do abajur. Consultou seu relógio. Passava das
onze. Estendeu a mão e apanhou o fone.
— Eu sinto muito incomodá-lo, professor — disse a
voz agradável de Dominique, do outro lado da linha.
— Algum problema? — indagou ele, preocupado.
— Algo aconteceu... Dois crimes num bairro afastado.
Um homem foi estrangulado, depois, jogado contra uma
parede. Depois um casal foi atacado em sua própria casa e
estrangulado barbaramente. Os vizinhos julgam ter visto
apenas um enorme e estranho pássaro, de asas pontiagudas...
— Um morcego gigante? — cortou-a ele.
— Pode ser isso...
— As vítimas tiveram seus pescoços perfurados? —
indagou em seguida, febril.
— Não...
— Não?
Em sua decepção Dominique percebeu que seria impossível relacionar os crimes ao vampiro. O que as testemunhas afirmavam a respeito do pássaro, no entanto, encaixava-se àquela fantástica metamorfose narrada pelo professor.
— Drácula mataria dessa forma? — arriscou.
— Não creio... Foge ao seu estilo... Drácula ataca suas
vítimas pelo sangue. Não creio que mataria pelo prazer de
matar apenas... Não acho que não foi ele...
— E o estranho pássaro?
— Talvez seja mesmo um pássaro apenas. O casal não
possuía um?
— Ninguém soube informar. Estive no local, no entanto, mas não vi nenhuma gaiola ou coisa assim, o que seria lógico encontrar. Eu sinto muito tê-lo acordado, professor.
Ele murmurou qualquer coisa, depois desligou. Voltou
a olhar o relógio, depois se levantou e foi até a janela. Havia vida e movimento lá fora.
Era difícil acreditar que, em algum ponto ao seu redor,
um monstro sobrenatural descansasse tranquilamente ou saía sanguinariamente à cata de mais uma vítima.
Esfregou as mãos nos cabelos. Alguma coisa precisava ser feita com emergência. Ele não podia admitir que tal
coisa continuasse acontecendo e vítimas inocentes como
sua Larah fossem destruídas sem justiça.
Retornou para o leito, mas seu sono parecia ter sido
afetado pelo telefonema. Ligou para a copa e pediu leite
quente. Depois foi até sua maleta e retirou um velho livro,
adquirido há algum tempo e que não pudera ler.
Falava sobre bruxarias e magias negra, além de haver
reservado um capítulo ao vampirismo. Hilgenstiller ainda
não dedicara sua atenção ao livro por estar escrito em latim
vulgar e por imaginar que não veria ali nenhuma novidade.
Abriu-o cuidadosamente, virando página por página,
sem se interessar pelos assuntos expostos, até o capítulo
sobre vampirismo.
Começou a ler lentamente, encontrando dificuldade
principalmente para decifrar as letras repletas de arabescos
e enfeites desbotadas em alguns pontos e borradas em outros.
O livro parecia haver passado por naufrágios e incêndios, antes de chegar a suas mãos. Bateram na porta. Ele foi
apanhar o copo com leite e retornar à leitura.
Pouco a pouco o sono retornou, à medida que se esforçava sobre o texto. Um parágrafo, no entanto, chamoulhe a atenção. Falava sobre a fúria dos vampiros, quando
provocados. Nesses momentos, sua sanha destruidora não
tinha limites.
Ronsi Margmann, um vampiro da idade média, incendiara o próprio castelo, num acesso de fúria, após haverem
matado, num acidente de caça, um lobo amestrado que possuía. Outro se deliciara em executar pessoalmente dez aldeões, cujas mortes ordenara num assomo de ódio pelas
chuvas violentas que haviam destruído as colheitas.
Hilgenstiller ergueu os olhos para a janela. As mortes
descritas por Dominique haviam sido bárbaras. Um homem
fora jogado contra uma parede. Continuou febrilmente a
leitura.
CAPÍTULO 5
Brague deixou silenciosamente o aposento e foi até a
esquina, onde encheu a garrafa térmica de café, comprou
uma broa. Retornava, quando, ao passar diante do jornal,
teve um sobressalto.
Com detalhes mínimos de diferença, ali estava o retrato que fizera do homem que saíra com Marie, segundo as
descrições de Ninon, Chamy e Pierre.
Comprou um exemplar e correu para o quarto, onde
acordou Henri e Maxime.
— Diabos, Brague! Que seja madrugada eu concordo.
É até prático, pois nos traz o café e... — interrompeu-se
Henri, ao ver o jornal que o artista lhe mostrava.
— Como isso pode estar aí, no jornal? — surpreendeu-se.
— Isso não é nada, meu amigo. Ouve isso: este é um
retrato do vampiro Drácula, segundo descrição do Prof.
Hilgenstiller.
— E quem é esse Hilgenstiller?
— É o que pretendo saber — disse Brague, levando o
jornal para a mesa de estudos, junto à janela.
Afastou alguns livros e estendeu-o ali. Henri e Maxime se debruçaram sobre seus ombros. Terminaram a leitura
quase ao mesmo tempo, depois se entreolharam patéticos e
surpresos.
— Não pode ser! — exclamou Maxime, num fio de
voz, pensando no triste destino de Marie Vallué, se toda
aquela loucura tivesse algum fundamento.
— Sei o que estão pensando, mas é coincidência demais — disse Brague — estamos às voltas com um vampiro. Acredite quem quiser.
— O que vamos fazer agora? Que tal procurarmos o
jornal? Acho que eles gostarão da ideia — propôs Maxime.
— Temos o testemunho das garotas e do próprio Pierre — lembrou Brague.
— Esperem aí, esperem aí — disse Henri, caminhando
atabalhoadamente pelo quarto em desordem — Vamos pensar com calma, pessoal. Não passamos o dia todo, ontem,
na biblioteca por nada. Temos algo nas mãos. Algo valioso,
a nossa própria reportagem.
— O que está sugerindo? — indagou-lhe o irmão.
— Que devemos pesquisar nós mesmos e elaborar
uma reportagem sobre o assunto, com os elementos que
temos. Qualquer jornal concorrente do Le Roy nos pagaria
um bom dinheiro por algo assim. É a nossa chance...
Batidas apressadas na porta interromperam-nos. Henri
foi abrir. Ninon entrou apressadamente. Estava pálida e ti-
nha um jornal nas mãos. Brague mostrou o seu, dando a entender que também sabia.
— Pobre Marie! Pobre de mim! Que noite! De madrugada ainda, quando os caminhões estavam distribuindo os
jornais, eu vi isso. Corri para casa como uma louca, principalmente depois de ter visto novamente o carro...
— Que carro? — indagaram os três, numa só voz.
— Eu tenho certeza que era o mesmo carro. Negro,
novo, com frisos cromados e reluzentes...
— A placa... Você anotou a placa? — indagou Brague, segurando-a pelos ombros.
— Pode parecer incrível, mas foi a primeira coisa que
fiz antes de correr — disse ela, abrindo febrilmente a bolsa
e retirando seu estojo de pintura.
Ali, com seu lápis de sobrancelhas, anotara o prefixo e
o número.
— E o motorista era o mesmo? — quis saber Maxime.
— Não... Era menor... Todo torto... Corcunda, ao que
me parece... Lembro-me do rosto. Ele passou junto ao poste, mas não me olhou...
Brague ficou pensativo por instantes. Depois correu
pelo quarto à procura de sua prancheta. Encontrou-a e virou
as folhas apressadamente, mostrando o desenho de um corcunda que fizera, no dia anterior, quando estavam no Café
Toulon.
— Era ele! — berrou Ninon, surpresa e aterrorizada.
Henri e Maxime se aproximaram. Olharam com incredulidade para o desenho e para Ninon.
— Oh, não! Estamos no dia das coincidências. É demais... Você deve estar impressionada, Ninon, apenas isso.
Todo corcunda que lhe aparecer pela frente, agora, será o
mesmo que viu no carro — falou Henri.
— Eu sei o que vi. Eu sei o que vi — repetiu, num sopro de voz.
Brague foi lhe servir uma xícara de café quente e depois a levou para sua cama.
— Acho que você não descansou nada essa noite,
não?
— Tremi o resto da madrugada. Só criei coragem para
sair depois que o dia raiou. Eu... Oh, meu Deus! — desatou
ela, num pranto nervoso.
— Tudo bem agora, querida Ninon. Descanse. Os três
mosqueteiros cuidarão de você.
— E Marie? O que aconteceu com Marie?
— Deixe conosco — tranquilizou-a ele, cobrindo-a
cuidadosamente.
Brague se ergueu e voltou para junto dos amigos. Tomou o estojo de maquilagem das mãos de Maxime e olhou
de novo a placa. Depois encarou os amigos.
— O que acham? — indagou.
— Acho que estamos levando longe demais essa história — ponderou Maxime.
— Acho que temos a nossa grande chance nas mãos.
A coincidência entre os retratos. E esse Hilgenstiller afirma
já ter visto o vampiro cara a cara. O que Ninon nos contou
agora, este número. Por que não investigar? O que temos a
perder? — propôs Henri.
— E se chegarmos ao tal sujeito e ele for de fato um
vampiro? — lembrou Maxime.
— Somos três. Eu ainda tenho minha pistola. Vocês
também têm suas armas, eu sei.
— Balas nada fazem ao vampiro — lembrou Maxime
— As armas são outras.
— SE esse vampiro é humano e palpável, como uma
bala em seu olho, por exemplo, não o deixará cego? Se ele
não morre, pelo menos estará fisicamente inutilizado. Só
precisamos cegá-lo vivo. Já imaginaram? — discursou
Brague, entusiasmado — E depois, nada nos custará levar
alguns crucifixos de prevenção.
Os dois irmãos se entreolharam, depois aprovaram
com um movimento de cabeça.
— Ao Departamento de Trânsito, então — decidiu
Brague.
***
Quando Hilgenstiller terminou de contar a Dominique
tudo que lera, na noite anterior, naquele livro antigo, a redatora estava pensativa e impressionada.
— Fantástico, professor! Isso pode explicar os crimes
de ontem à noite... Mas o que o teria enfurecido tanto? O
que pode enfurecer um vampiro?
— Drácula é um nobre e, como todos eles, deve ser
temperamental. Como saber o que o pode irritar? Talvez a
mínima contrariedade, não.
Alguém bateu na porta, depois entrou. Trazia algumas
dezenas de folhas de papel em suas mãos e olhou a redatora
desconsoladamente.
— Já recebemos todos estes telefonemas. Todo mundo
viu o vampiro em alguma parte. O que vamos fazer?
— Vamos verificar cada uma delas. Peça ao diretor
que libere o pessoal dos arquivos e convoque os da distribuição. Temos de descobrir o paradeiro desse homem.
— Vai ser uma loucura — disse o rapaz retirando-se.
Hilgenstiller havia se levantado e ido até a janela. Olhou as águas tranquilas e limpas do Sena e as ruas movimentadas. Depois esticou o olhar até a estrutura metálica da
Torre Eiffel.
Paris era uma grande cidade. Como localizá-lo?
Dominique se aproximou, talvez com o mesmo pensamento.
— Temos duzentos quilômetros de galerias subterrâneas de esgoto, professor. Acha que Drácula poderia se ocultar em uma delas?
— É impossível. Drácula é um nobre e, pelo que já sei
dele, ainda deve ter sua fortuna. Não sei como fez, onde está ou como subsiste, mas tem muito dinheiro. Na certa alugou uma mansão por aí, num lugar tranquilo e isolado. Ou
então pode estar habitando algum sótão de um prédio antigo, mas sempre com algum estilo.
— Algo me intriga ainda, professor. Só temos uma vítima encontrada com as perfurações na garganta. O que teria acontecido às outras?
— Ocultas... Destruídas com certeza... — respondeu o
professor, pensativo. — Espere um pouco, acho que temos
alguma coisa parecida com uma pista nessa sua observação.
Seguramente Drácula já fez muitas vítimas aqui em Paris.
Que tipo de mulheres ele atacaria?
— Bem, se eu fosse ele, buscaria as vítimas entre aquelas cuja falta não fosse muito sentida...
— Exato! Prostitutas, mulheres da noite, vagabundas
mesmos. A garota que foi encontrada no Sena, sabe qual
sua profissão?
— Desconhecida. Ainda não foi identificada. O rosto
estava muito deformado... Todo inchado e...
— Na próxima reportagem falaremos do corcunda e,
ao mesmo tempo, pediremos que a população nos ajude a
descobrir a identidade da garota encontrada. Além disso,
vamos convocá-los a comunicar todo desaparecimento de
mulheres ocorridos nos últimos... Dois meses.
— Como disse meu assistente, vai ser uma loucura,
professor.
— Mas temos de fazê-lo. Dominique. Temos de parar
esse monstro a todo custo!
Novas batidas na porta e Freddy, o assistente de Dominique, apareceu.
—Uma visita para você — disse, dando passagem a
um homem de expressão carrancuda e sobretudo escuro.
— Eu gostaria de lhe falar em particular, senhora.
Dominique olhou para o professor, que entendeu e se
apressou em retirar-se.
— É sobre essas reportagens — começou o homem.
— Espere, professor — pediu Dominique.
O cientista, que chegara à porta, se voltou e encarou-a.
O homem de sobretudo escuro não entendeu.
— Se é sobre as reportagens, acho que o professor deve permanecer.
— Se julga assim — assentiu o desconhecido, abrindo
seu sobretudo para retirar uma carteira de couro.
Desdobrou-a diante dos olhos da jornalista. Era Ivy
Chanton, tenente-detetive da Superintendência Geral de
Policial. O professor se sentou ao lado dele. O policial olhou-o alternadamente, depois se dirigiu a Dominique.
— Peço-lhe que pare com as reportagens sobre o
vampiro. Está assustando a população sem motivo, causando pânico. Nossos telefones estão congestionados com os
comunicados mais absurdos. Estamos no século vinte, às
portas do século vinte e um. O homem já foi à lua, já descobriu mais coisas que em toda a vida da humanidade. Por
isso, senhora, é inconcebível, é absurdo o que está fazendo,
divulgando uma crendice tola da forma como vem...
— Crendice tola? — cortou-o Hilgenstiller, trêmulo
de indignação.
— Crendice tola! — frisou o policial.
— Eu sou um cientista, pensava como você pensa agora, mas o que aconteceu comigo, no seio de minha família, não pode ser chamado de crendice tola...
— Engano seu, professor. Com todo o respeito que
nos merece, pesquisamos a respeito do assunto. Não faço
afirmações gratuitas. Entramos em contato com Londres,
com Falmouth, com a Hungria, apurando os fatos. Nós sabemos sobre o senhor e sobre os acontecimentos em que se
envolveu. Nada obtivemos que comprovasse a existência
de um vampiro. Parece-nos, apenas, que o senhor tem uma
facilidade enorme de se colocar no centro de acontecimentos criminosos, apenas isso. Querer fazer de Paris a capital
do terror, agora, é coisa que não podemos permitir. Sinceramente, professor — disse o policial.
Hilgenstiller suspirou profundamente e se deixou relaxar na poltrona, balançando a cabeça de um lado para outro. Dominique percebeu seu sofrimento e se irritou com o
policial.
— Está bem. Sr. Chanton. Já disse o que queria, agora
saía. As reportagens continuarão...
— Não nos obrigue a magoá-la, senhora. Seja sensata,
raciocine...
— Tenente! — repreendeu-o ela, severamente.
O policial percebeu que seu pedido não teria acolhida.
Ergueu-se e olhou-a quase com piedade.
— Eu lhe garanto que as reportagens cessarão, senhora.
— Não pode impedir a imprensa de informar — argumentou ela.
— É o que veremos — afirmou ele, num tom que deixava de lado a cortesia para se tornar ameaçador.
— Acha que ele poderá fazer alguma coisa contra você? — indagou o professor, após a saída do policial.
— De modo algum. O jornal está sendo vendido, a diretoria está do meu lado, o que pode me afetar? Vamos
continuar, professor — afirmou ela, com um sorriso.
***
Torg misturou os elementos numa pequena tigela. A
expressão de seu rosto era seria. Ao terminar, aspirou o
cheiro forte da mistura gordurosa e esverdeada que tinha
preparado.
Coxeou pela sala. Ao passar junto da lareira, viu o
jornal que comprara naquela manhã. Hesitou. Drácula ficaria possesso se visse aquele retrato.
Foi até lá, apanhou o jornal e escondeu-o, numa gaveta de um móvel. Depois caminhou na direção da porta que
o levaria ao porão.
Pensava na garota e, ao mesmo tempo, no que conseguira, cumprindo as ordens de seu mestre. A responsável
pelas reportagens era Dominique Pinon, uma jornalista
muito conhecida em Paris.
Morava num sobrado elegante, num dos bairros mais
conceituados da cidade. Fora fácil conseguir o endereço.
Por momentos teve pena de seu destino.
Não podia escapar à fúria de Drácula. Ele a destruiria
sem piedade.
Avançando pelo corredor escuro, deixou de pensar na
jornalista para pensar na garota que escondera. As feridas
melhoravam sensivelmente, da noite para o dia.
Ela ainda não voltara a si, mas isso poderia ser, agora,
apenas uma questão de horas. Quando isso acontecesse,
queria estar junto dela, para ver os olhos ternos se abrirem
e encararem-no como seu salvador.
Estremeceu de ternura e deslumbramento. Chegou ao
aposento. Ligou a luz. A garota jazia na mesma posição em
que a deixara na última visita.
Torg descobriu o lençol. As feridas cicatrizavam-se
com uma rapidez espantosa. A força do unguento mágico
era sobrenatural. Ele sorriu, feliz.
Observou o pescoço. Todo o hematoma desaparecera.
Havia apenas dois pontos vermelhos, onde estavam as perfurações. Torg sabia que em pouco tempo elas também desapareceriam e o alvo e delicado pescoço não apresentaria
nenhum sinal do ataque monstruoso.
Esfregou ali um pouco de sua pomada, quase numa carícia. Depois girou o corpo delicadamente para observar as
costas, onde apenas alguns vergões indicavam o local das
feridas produzidas pelas garras de Drácula, no momento da
agressão.
Passou sobre eles a pomada, depois recuou, depositando a tigela sobre um móvel. Ficou olhando o corpo alvo
e bem conformado.
Não gostou daquela posição e foi acomodá-lo melhor
sobre o velho colchão. Fitou, então, extasiado, os seios rijos e arredondados, o ventre achatado, o triângulo sedoso
que apontava o sexo delicado e promissor.
Suspirou, num arquejo que vibrou em seu peito, como
o baque de um tambor. Alongou o olhar pelas coxas escul-
turais, lisas e morenas, sem traços o cicatrizes que as enfrentassem.
Era uma mulher atraente e bela, cheia de juventude,
capaz de enlouquecê-lo de amor. Sentiu-se leve e feliz, esperançoso e louco para experimentar uma emoção que lhe
era negada.
CAPÍTULO 6
Após haver procurado pela tarde toda, haviam conseguido, finalmente, localizar o proprietário do carro. Pertencia a uma locadora, em Montmartre. Foram até lá, dispostos
a descobrir para quem ele fora alugado.
— Acho melhor que me deixem cuidar disso — pediu
Brague, percebendo a recepcionista muito simpática e atraente.
— Está certo, Don Juan — concordaram os outros
dois.
Brague avançou, então, na direção do balcão. A garota
levantou seus belos olhos e sorriu.
— Em que posso servi-lo? — indagou.
— Bem... Na verdade, é muito simples. Apanhei uma
carona num carro que, por coincidência, foi alugado por
vocês. Acontece que sou artista e esqueci, em seu interior,
todo o meu material de pintura.
— Que pena! Você sabe quem estava no carro?
— Não, mas me lembro muito bem da placa — disse,
passando-lhe o número anotado num papel.
A garota examinou-o, depois sorriu cordialmente,
simpatizada com as maneiras simples e espontâneas do pin-
tor. Foi até um arquivo e vasculhou. Retornou com uma ficha na mão.
— O carro foi alugado ao Sr. Vlad Alucard, tenho seu
endereço aqui. Você quer anotar? — indagou, passando-lhe
a ficha, papel e lápis.
— Eu nem sei como lhe agradecer — disse ele, após
haver escrito o endereço.
Ela sorriu, envaidecida e cordial. Brague se despediu e
foi ao encontro dos amigos.
— Aqui está — disse mostrando o papel. — só temos
que ir até lá e verificar de perto se ele se enquadra nas descrições das garotas, de Pierre e — por que não? — do próprio jornal.
— E se isso acontecer? — indagou Henri.
— Bem, teremos que cuidar da situação, então — afirmou o pintor, dobrando o papel e guardando-o.
***
Entardecia.
O professor levantou os olhos cansados do papel e encarou Dominique, aprovando com movimentos de cabeça.
O texto final da terceira reportagem sobre Drácula estava
excelente, dentro daquilo que ele idealizara.
— Vamos ter um bocado de problemas para responder
e pesquisar todas as informações que vamos receber, mas
ainda acho que compensará, professor — afirmou ela.
— Esteja certa que sim, Dominique. Vamos fechar o
cerco ao redor desse monstro, vamos encurralá-lo e localizá-lo para que possamos destruí-lo de uma vez por todas.
— É o que faremos, professor... Agora creio que merecemos um descanso...
— Posso convidá-la para jantar? Eu teria muito prazer
em acompanhá-la.
— Parece-me uma boa ideia, professor. Vou levar a
matéria para a finalização, depois sairemos juntos. Eu o
deixarei em seu hotel. Espero que compreenda que preciso
de algum tempo para tratar de minha vaidade — sorriu ela,
feminina e ativa.
— Digo o mesmo — respondeu ele, apreciando cada
vez mais aquela mulher.
— Aproveite para verificar se alguma coisa nova surgiu, das pesquisas que o pessoal está realizando, investigando todas as denuncias e informações recebidas.
***
A noite chegara.
Drácula vagara impaciente pela casa às escuras, procurando por Torg. O corcunda estava levando muito a sério
seu pequeno segredo, forçando a curiosidade do vampiro.
— Torg! — chamou mais uma vez, parado diante da
janela, por onde raios generosos da lua penetravam, banhando sua figura sinistra.
O corcunda se aproximou apressadamente, após haver
acendido as luzes. Drácula se voltou e observou os olhos
do servo. Torg fugiu ao confronto, intimidado. Drácula riu.
— O que você tem a me dizer? — indagou o vampiro.
— Consegui o nome e o endereço da responsável pelas reportagens...
— Da responsável?
— Sim, é uma mulher...
— Muito convincente — sorriu macabramente o vampiro, deixando à mostra seus dentes alvos e pontiagudos.
— Aqui está, mestre — disse Torg, passando-lhe o
papel com a anotação.
— Sei onde fica... Sinto-me fraco está noite... Sedento
de sangue e vingança ainda... — murmurou ele, quase num
rugido, aproximando-se da janela. — Esteja pronto, Torg,
para sua missão.
A metamorfose se operou e o morcego enorme ganhou
o céu de Paris como uma sombra ameaçadora. Torg recuou
para desligar a luz. Pensou no jornal que escondera. Já não
tinha mais importância.
Enquanto isso, no outro extremo da cidade, Violet, a
criada de Dominique, acompanhava a patroa até a porta,
onde a esperava Hilgenstiller.
Após a saída do casal, a garota andou pela casa, fazendo pequenas arrumações, depois foi se sentar na sala,
diante do televisor.
Acionou o controle remoto até sintonizar um bom
programa. Aquietou-se para vê-lo. Uma brisa fria soprou
pela porta que ligava a sala ao jardim de inverno.
Aborrecida, ela olhou naquela direção, criando ânimo
para ir fechá-la. Esperou o próximo comercial e, quando isso aconteceu, ergueu-se.
Preferiu ir primeiro até a cozinha, onde preparou um
sanduíche. Quando retornou, depositou a bandeja na mesa
de centro e caminhou para a porta do jardim de inverno.
Uma nova brisa soprou, fazendo-a arrepiar. Ela segurou a maçaneta e puxou a porta de correr. Quando tocou a
chave para trancá-la, um vulto negro desceu e pousou sobre
as traves de uma trepadeira.
Violet sufocou um grito, levando as mãos à boca. Algo indescritível aconteceu. Aquele pássaro horripilante brilhou como se tivesse luz própria e, no momento seguinte,
um homem jovem e até atraente caminhou até que suas
mãos grandes, de dedos finos, tocassem o vidro.
A garota recuou, sem entender o que estava acontecendo. O olhar penetrante do homem a fazia enregelar. Sua
expressão ameaçadora a fez tremer e entontecer, como se a
casa girasse num louco e aterrorizante carrossel.
O desconhecido esmurrou o vidro, depois ficou imóvel, olhando a garota, que recuara, mas, tropeçando na mesa de centro, derrubou a bandeja e entornou o copo de leite.
Seus olhos estavam presos ao que acontecia junto à
porta. Viu a figura sinistra desaparecer, por instantes, para
reaparecer, em seguida, do lado de dentro da porta.
— Quem é você? — indagou num sopro de voz.
— Dominique! — murmurou Drácula dominado pela
volúpia da morte, gozando o medo e o terror que via no
rosto dela.
Violet foi recuando, até que se visse encurralada contra a parede. Drácula riu, os lábios grossos se abrindo para
exibir as presas hediondas e sanguinárias.
A criada começou a chorar, o corpo deslizando pela
parede, até ajoelhar-se diante da visão monstruosa, que abria os braços e exibia unhas como garras.
— Oh, Deus! — murmurou ela, como numa prece e
isso fez estremecer o vampiro e redobrar seu ódio.
Ele saltou para junto dela, segurando-a pelos cabelos e
erguendo-a diante de si. Violet ficou imóvel, fitando o terror na figura do filho do demônio.
Drácula fechou-a entre seus braços, apertando-a contra o peito, sentindo seus seios rijos o espetarem e seu corpo escultural aquecê-lo com um calor voluptuoso.
Seus lábios pousaram sobre uma das faces dela, depois
foram escorregando, até cobrirem a veia jugular, que pulsava apressadamente.
Estremeceu e, um urro medonho, cravou suas presas
ali. O sangue esguichou para sua boca. Ele sugou avidamente, resfolegando e apertando a garota, jogando-a de um
lado para outro como se dançasse uma dança macabra e
cruel.
Quando aquele corpo ficou imóvel em seus braços,
Drácula a soltou sobre o tapete e se deitou sobre ele, esfregando-se e sorvendo as últimas gotas de sangue que brotavam das perfurações.
Saciado, ergueu-se, limpando os lábios lambuzados de
sangue. Fitou o corpo exangue, que estrebuchou em espasmos agoniados, depois se aquietou pálido e sem vida.
Ofegante e sorridente, o monstro caminhou para a porta do jardim de inverno. Pouco depois, como uma sombra,
desaparecia na noite.
***
Brague estacionou o veículo um pouco afastado da entrada, depois desceram os três e olharam a casa no alto da
colina. Estava às escuras e tinha uma aparência tétrica.
— É aqui — afirmou o pintor.
— Então vamos — ordenou Henri, sacando sua pistola.
Atravessaram a estrada, saltaram uma vala depois foram até o muro que limitava a propriedade. Auxiliando-se
mutuamente os três o venceram, depois se esgueiraram pelo
jardim, cujas árvores e plantas achavam-se nuas. As folhas
secas sob seus pés estavam denunciadoramente. Brague recomendou cautela e os três se aproximaram cuidadosamente da construção.
— Ali deve ser a garagem. Vamos nos certificar se o
carro está — propôs Maxime.
Os três venceram rapidamente a pequena alameda e
foram colar seus corpos às paredes da garagem. Caminharam até a porta. Não estava trancada. Ergueram-na e passaram para o interior. Henri riscou um fósforo.
— É ele, sem sombra de dúvida — disse, iluminando a
placa.
— Resta saber se há alguém na casa. Está tudo às escuras — falou Maxime.
— Vamos sair e aguardar — aconselhou Brague.
Os três deixaram a garagem, depois cruzaram novamente a alameda e foram se esconder atrás de alguma sebe,
cujos galhos numerosos ofereciam um bom esconderijo.
Ficaram atentos à casa e a algum possível ruído. O silêncio era tétrico, assustador. O temor instintivo e o arrojo
da aventura contribuíam para aumentar a tensão de seus
corpos.
— Por que não entramos lá? — sugeriu Maxime.
— Vamos com calma, não podemos nos precipitar.
Precisamos descobrir se estamos na pista certa, se temos
um vampiro ou um pacato cidadão, confundido pelo temor
de Ninon. Invasão de domicilio é crime grave...
— Vejam! — cortou-o Henri, apontando para uma das
janelas.
Claramente, banhado pelo luar, o vulto indistinto desceu do céu e penetrou por uma das janelas. Por instantes os
três ficaram atônitos, confusos.
— O que foi aquilo? — indagou Maxime.
— Eu não sei... Penso que era um pássaro... Um morcego gigante... — opinou Brague.
— Vampiros se transformam em morcegos. Eu vou
dar o fora daqui — disse Maxime, erguendo-se para correr,
compreendendo que havia ali algo que fugia a sua compreensão.
Não se tratava de uma aventura ou de mais uma de suas farsas, mas algo sério, sobrenatural, incompreensível que
gerara um terror natural em seu corpo.
— Espere! — ordenou Henri, segurando-o pelo punho
e obrigando-o a abaixar-se.
A porta principal da casa se abriu e a figura retorcida
de Torg saiu para o luar e caminhou apressadamente na direção da garagem.
— É o corcunda mencionado por Ninon — lembrou
Henri.
— Silêncio! — recomendou Brague.
Torg foi até a garagem, ergueu a porta e desapareceu
em seu interior. No momento seguinte os faróis do veículo
se acenderam e o motor roncou forte.
Lentamente ele desceu a alameda. Quando ganhou a
estrada Brague se ergueu.
— Rápido vamos tentar segui-lo — ordenou, correndo
pelo jardim, na direção do muro.
Os dois irmãos o seguiram. Em pouco tempo estavam
no carro. Brague manobrou fazendo o contorno e saiu em
perseguição ao automóvel sinistro.
Após algum tempo, porém, não conseguiram avistá-lo
ou alcançá-lo. Brague estacionou a margem de uma avenida
e olhou desconsolado para os amigos.
— Nós o perdemos!
— Acha que o corcunda é o vampiro? — indagou
Maxime, que ainda tremia, dominado por um pressentimento que o terrorizava anteriormente, fazendo gelar sua espinha e tremer todo seu corpo.
— Vampiros mudam de forma, lembra-se? Talvez ele
seja mesmo o corcunda. Com aquela aparência não conse-
guiria se aproximar de ninguém sem assustar. Transformando-se num homem elegante e atraente tudo se torna
mais fácil. As mulheres caem facilmente a seus pés — deduziu Henri.
— Se assim for, temos algo que aquele professor desconhece, o que dá um valor especial à reportagem que vamos preparar. Que acham de voltarmos à casa? Poderemos
aguardar a volta do carro e o dia amanhecer. Se ele é o
vampiro, nada teremos a temer com a luz do dia. Investigaremos com maior facilidade. Há espaço para dormimos aqui dentro. Nós nos revezaremos na vigília... O que me dizem? — propôs Brague.
— Acho que já que estamos envolvidos e chegamos
até aqui, não há como recuar agora — ponderou Henri, embora Maxime tivesse seus próprios argumentos contra.
Como estava em inferioridade, teve de concordar.
***
Torg se aproximou do vidro.
Do outro lado, estendida sobre o tapete, estava a garota descrita por Drácula. O corcunda empurrou a porta para
o lado e entrou. Foi até lá. Olhou-a. Seus olhos se injetaram
pela volúpia canibalesca.
Abaixou-se e tomou o frágil corpo em seus braços, levando-o para fora. Caminhou até os fundos da propriedade,
onde havia um terreno fofo onde o jardineiro estivera trabalhando naquela tarde.
Apanhou uma pá e começou a cavar, arquejando a cada movimento. Quando terminou, voltou-se para junto do
cadáver. A lua banhava o rosto pálido da garota. Era bela,
mas estava morta. Não podia dedicar a Torg um olhar que
fosse. Ele rasgou, então, a blusa, depois o sutiã, expondo a
seus olhos lúbricos os seios tentadores.
Deitou-se junto dela e passeou os lábios sobre as deliciosas e frias elevações, arranhando-as levemente, dominador aquele apetite voraz de morder e dilacerar, uivando e
rosnando como um lobo faminto.
Foi despindo-a lentamente, expondo suas carnes lisas
e macias, dominado pela volúpia macabra. Suas mãos passearam sobre a pele exangue, subindo pelo ventre, até pousar entre os seios.
Ali, como garras impiedosas, seus dedos se crisparam.
Seus olhos se esgazearam quando as unhas avançaram, rasgando os tecidos e as carnes, afastando os ossos, buscando
o coração.
Num arranco violento que abalou todo o corpo imóvel.
Torg levantou diante de si o coração da garota. Rosnou, apertando-o entre seus dedos, como se quisesse feri-lo e
maltratá-lo sadicamente.
Depois o levou à boca, aspirando aquele cheiro adocicado, lambendo-o com sua língua imunda, prendendo-o en-
tre seus dentes pontiagudos e arrancando um naco que
mascou deliciado.
Depois, esganadamente, meteu-o todo dentro da boca
e mastigou-o, caminhando de um lado para outro, impaciente e ofegante, as mãos se agitando como garras que quisessem rasgar o silêncio e a escuridão.
Quando terminou, empurrou o cadáver para dentro da
vala e cobriu-o rapidamente. Retornou ao veículo, que deixara na rua num local mais afastado e menos iluminado.
Ao se sentar ao volante, olhou-se no espelho do retrovisor e se amaldiçoou por nada haver mudado em sua fisionomia.
CAPÍTULO 7
Amanhecia.
Os primeiros raios do sol brilhavam sobre o telhado
escuro da mansão. Brague endireitou o corpo dolorido, olhando ao seu redor. Seus amigos ainda estavam adormecidos.
— Ei, acordem! — ordenou, movendo-os alternadamente.
— O que foi? — indagou Henri, sonolento.
Maxime se endireitou num salto, olhando-os assustados, como se acordassem de um pesadelo.
— É dia! — exclamou Brague. — Acho que dormimos...
— Que belos detetives nós somos — ironizou Henri,
esfregando os olhos.
Brague abriu a porta e saltou, atravessando a estrada
decididamente. Maxime e Henri o seguiram intrigados. O
pintor pediu ajuda para saltar o muro.
— Aonde vai, afinal? — quis saber Henri.
— Vou até a casa. Vocês vêm?
Os dois irmãos se entreolharam, depois assentiram.
Saltaram para o jardim e correram até a entrada da casa.
Olharam pelas janelas. Estava tudo vazio e em silêncio.
Rodearam a construção, até a porta dos fundos.
Brague mais hábil conseguiu abrir uma das janelas.
Olhou os amigos, depois saltou para dentro. Eles o seguiram. Caminharam lentamente por um aposento que parecia
uma biblioteca. As enormes prateleiras estavam vazias e
empoeiradas.
Chegaram a uma porta dupla, de correr que separava o
aposento dos outros. Brague atentou para algum ruído, depois fez uma das partes deslizar silenciosamente. Estavam
diante de um amplo salão, sem moveis. A luz do sol, penetrando pelos vidros da janela, iluminava a poeira acumulada no assoalho, onde havia algumas pegadas.
Brague apontou-as. Elas se dirigiam tanto para a direita como à esquerda. O pintor escolheu uma delas, a da esquerda, e seguiu, seguindo pelos amigos, quase colados a
ele.
Pararam diante de outra porta. Brague abriu-a e sondou o outro aposento. Era uma sala, com alguns móveis velhos dispostos irregularmente. A sensação era de abandono
e desleixo. Ninguém podia morar ali, naquelas condições.
Apontou novamente as pegadas que cobriam toda a
sala, em todas as direções. Seus amigos o olharam interrogativamente.
— Não há ninguém! — murmurou Maxime, caminhando pela sala, observando as pegadas sobre a poeira.
Abaixou-se. Podia distinguir dois tipos delas: uma pesada e desigual, outra uniforme e mais leve. Chamou seus
amigos com um gesto.
— Vejam, há duas pessoas na casa. Esta parece ser do
corcunda. A outra...
— Do vampiro? — indagou Henri, erguendo os olhos
e olhando ao seu redor.
— Pode ser — falou Brague. — Vamos seguir esta e
ver onde nos leva — acrescentou, apontando para as pegadas mais uniformes.
Todos sacaram suas armas. Maxime apertou um crucifixo numa das mãos. Seguiram até a porta por onde haviam
entrado e retornaram ao salão. Passaram diante da biblioteca e seguiram em frente, até outra porta. Parecia levar na
direção do porão.
Brague, à frente, empurrou-a. Aguardando alguns instantes. Estava tudo em silêncio. Havia um corredor diante
deles, iluminado apenas pela claridade que penetrava pela
porta.
O pintor tateou a parede, à procura de um interruptor,
mas nada encontrou. Voltou-se para seus amigos. Henri
fez-lhe um sinal para que fosse em frente, ele desceu lentamente os degraus. O silêncio e a escuridão brincavam
com seus nervos. Estavam atentos e tensos.
Caminharam lentamente, colados à parede, até outra
porta. Brague abriu-a. Havia uma fresta de luz ao fundo,
como se uma grossa cortina cobrisse a janela. Avançou seguido pelos outros.
Caminharam lentamente, colados à parede, até outra
porta. Brague abriu-a. Havia uma fresta de luz ao fundo,
como se uma grossa cortina cobrisse a janela. Avançou, seguido pelos outros.
Quando chegavam ao centro do aposento, a pesada
porta foi puxada e bateu, trancando-se e deixando-os na escuridão.
***
Quando Dominique chegou ao jornal, parecia preocupada, além de haver se atrasado. Hilgenstiller a esperava no
gabinete e, ao vê-la, percebeu que qualquer coisa a preocupava.
— Não sei o que houve com minha criada! — disse a
jornalista, soltando-se sobre a poltrona. — simplesmente
desapareceu. Deixou cair leite e sanduíches sobre meu precioso tapete persa e...
— Na certa ela percebeu o desastre que cometera...
— Violet não faria isso. Deixou a porta do jardim de
inverno aberta. Quando retornei, não percebi isso. Estava
tão cansada e aérea, a noite foi maravilhosa, justifica-se.
Desliguei a luz a luz e fui para quarto e ela não me acordou
como vem fazendo nos últimos dois anos. Saí a sua procura
e não a encontrei.
Hilgenstiller ficou pensativo, olhando-a. Um estranho
e terrível pressentimento passou por sua cabeça. Ia dizer
alguma coisa, quando o telefone tocou. Dominique atendeu
depois se ergueu rapidamente.
— A diretora está reunida e quer ver-me. Acho que
não vou me demorar — sorriu ela, deixando a sala.
Ganhou o corredor e avançou até a sala de reuniões.
Quando entrou, alguns rostos constrangidos se voltaram para ela. Um deles era do tenente-detetive Ivy Chanton. Estranhou sua presença ali.
Um dos diretores apontou-lhe uma cadeira. Dominique sentou-se. Percebia o ambiente carregado e tenso.
— Vamos falar diretamente, Dominique. As reportagens serão suspensas — disse o diretor-presidente.
Ela se segurou em sua poltrona, incrédula. Seu olhar
dirigiu-se ao policial, que parecia sorrir.
— Por quê? Nossas edições se esgotam diariamente...
— tentou argumentar.
— Sabemos disso, mas não podemos negar um pedido
do próprio Superintendente da Polícia. O Tenente Ivy lhe
explicará.
O policial dirigiu-lhe um olhar vitorioso antes de falar:
— A polícia precisa que cessem as reportagens, senhora. Estão sugestionando os criminosos. Uma simples
perfuração na garganta das vítimas vai nos confundir, se
acreditarmos no que tenta nos impingir e à população. Seremos obrigados a acreditar que temos um caso sobrenatural nas mãos. Deve compreender que...
— Não, não compreendo realmente. Vocês não entendem a gravidade da situação? Há um monstro lá fora. Suas
vítimas todas ainda não foram descobertas, mas estão mortas, em algum lugar imundo, clamando por justiça — disse
ela, num fôlego só.
Os diretores se entreolharam. As reportagens haviam
aumentado consideravelmente a circulação do jornal, mas
teriam de ser interrompidas. Havia detalhes políticos que
não podiam explicar à jornalista, mas que haviam incluído
em suas decisões.
Bastava que cessassem as reportagens e tudo estaria
bem. Haveriam de encontrar outro assunto a ser explorado.
— É definitivo? — indagou ela pateticamente, percebendo que seu breve discurso não os havia sensibilizado.
— Infelizmente sim. Dominique! — afirmou um deles.
Ela se ergueu de sua poltrona, fitou-os um a um, depois deixou a sala rapidamente. Estacou no lado de fora,
respirando fundo, pensando na decepção que aquilo causaria ao professor.
— Tudo bem, Dominique? — indagou-lhe seu assistente, com um calhamaço de papéis nas mãos.
— Tudo bem, Freddy — assentiu ela, forçando um
sorriso.
— O que faço com tudo isso? — mostrou.
Dominique disse-lhe uma obscenidade, depois avançou pelo corredor, deixando-o atônito atrás de si. Chegou
diante de sua sala. Tentou imaginar a melhor maneira de
dizer aquilo ao cientista. Sabia que iria magoá-lo, mas o
que podia fazer? Haviam atados suas mãos.
Talvez o melhor a fazer fosse lhe dizer diretamente,
sem rodeios. Empurrou a porta e o encarou.
— Está terminado, professor — disse, passando por
ele e indo se sentar a sua escrivaninha.
— O que está terminado? — indagou ele sem entender.
— As reportagens, nossos planos, tudo. A diretoria
ordenou que parássemos com as reportagens. Não haverá
mais nada sobre o vampiro, professor. Eu sinto muito!
Hilgenstiller demorou alguns instantes para perceber.
Ergueu-se, então, e caminhou abobalhado pela sala. Quando tudo parecia tão certo e tão bom...
— Por quê? — indagou, pateticamente.
— Um pedido do Superintendente de Polícia, mas é
claro que há pressões políticas por trás de tudo. Não sou
nenhuma tola. A polícia está perdida, andando em círculos... Diabos! — explodiu, esmurrando a mesa.
O telefone tocou. Ela atendeu rispidamente. Depois, a
expressão de seu rosto se alterou. Ao desligar, estava pálida
e transfigurada.
— O que houve? — indagou o professor, aproximando-se da escrivaninha.
— Encontraram o corpo de Violet no fundo do quintal... O jardineiro viu pegadas estranhas... Oh, meu Deus!
— Desabafou, cobrindo o rosto.
Hilgenstiller contornou a escrivaninha e foi ampará-la.
Dominique respirou fundo, depois se ergueu, agradecendoo.
— Tenho que ir até lá...
— Eu a acompanho — disse ele, apanhando seu sobretudo.
Algum tempo depois chegavam lá. Havia algumas viaturas policiais. O jardineiro estava a um canto, sendo interrogado. Quando Dominique se aproximou, foi detida por
um policial. Ela se identificou.
O homem a levou até seu chefe, que a reconheceu logo. Ia dizer qualquer coisa, quando passou a maca, conduzindo o corpo de Violet.
— Esperem! — pediu ela.
— Eu não olharia se fosse você — Alertou o policial.
Ela hesitou, depois tocou o lençol e removeu-o. Uma
careta horrorizada dominou seu rosto e ela cambaleou. O
professor a amparou, enquanto olhava o pescoço da garota.
Alem da terra, havia as duas marcas fatídicas.
— Devíamos ter imaginado. As reportagens despertaram a fúria de Drácula. Ele veio aqui a sua procura — disse
Hilgenstiller.
A jornalista parecia não ouvi-lo, tamanho seu pavor
diante do que vira.
— Eu posso pedir que nos acompanhe, Dominique?
Vai ter que responder algumas perguntas — disse o policial.
Ela concordou com um aceno de cabeça e um olhar
vago, indefinido, atônito.
***
Anoitecera.
A pequena fresta de lua desaparecera. O vidro da janela estava coberto pelo lado de fora, com grossas tábuas pregadas.
Maxime se ergueu, alucinado. Haviam tentado forçar a
porta, inutilmente. Ele sacou sua arma e disparou repetidas
vezes contra a janela, apenas um friso pálido na escuridão.
— Acalme-se, Maxime! — ordenou Brague, tentando
ele próprio se manter calmo.
— Diabos! Demônio! Estamos perdidos não percebe
isso? — gritou ele.
Uma gargalhada explodiu do lado de fora, sinistra,
zombeteira, cruel.
— Quem está aí? — indagou Brague, empunhando
sua arma.
A risada persistiu por instantes, depois se afastou acompanhada de pisadas desiguais. A escuridão e o silêncio
os aterrorizaram. Aquela gargalhada havia sido a gota
d’água. Brague disparou na direção da porta. Uma das balas atingiu a parede e ricocheteou perigosamente pelo aposento.
— Pare! — ordenou Henri. — Pode nos matar desse
modo. Temos de agir com calma. Temos de sair daqui.
— Como? — berrou Maxime, fora de si.
Henri andou de um lado para outro, apalpando os bolsos. Encontrou a caixa de fósforos. Estacou, esfregando os
pés pelo chão. Encontrou um pedaço de madeira. Depois
outro.
— Eu sei como vamos sair daqui — disse, riscando
um fósforo.
Reuniu apressadamente a madeira e levou-a para junto
da porta. Havia um caixote ao fundo, com planta dentro.
Apanhou-o e acomodou-o também.
— O que vai fazer? — indagou Brague.
— Incendiar esta maldita porta — disse, ateando fogo
à palha.
Os três correram para um canto, observando as chamas
crescerem e lamberem a madeira envelhecida. A fumaça os
fez tossir, anunciando um novo perigo.
— Deitem-se no chão — ordenou Brague.
Todos fizeram isso. As chamas devoraram a madeira
da porta, que desabou logo depois. A fumaça avançou, dominando o corredor. Um resto de chama ainda iluminava as
paredes, quando se ergueram e saltaram para fora.
Aproveitando-se da claridade, correram na direção da
saída. Antes que chegassem lá, no entanto, a porta se abriu
violentamente e a figura ameaçadora de Drácula barroulhes a passagem.
Henri ergueu sua arma e disparou repetidas vezes. As
balas atravessavam o corpo do vampiro, sem causar-lhe nenhum mal. Um urro medonho, de fera raivosa, se ouvia,
quando Drácula saltou sobre Brague, agarrando-o pelo pescoço e erguendo-o diante de si.
Maxime caiu de joelhos, emudecido e paralisado.
Henri tentou correr para o fundo do corredor, mas tropeçou
e rolou sobre o resto de chama que iluminava macabramente o cenário.
Drácula olhou-o. Arremessou Brague para trás e praticamente voou sobre o corpo de Henri, fechando suas garras
ao redor do pescoço dele e apertando-a violentamente.
Ele se debateu, os olhos esbugalhados diante da visão
infernal e desumana. Brague, mais morto do que vivo, rastejou, na direção da escada. Havia sangue em sua cabeça e
ele tossia engasgado.
Drácula se ergueu e arrastou o corpo de Henri com
uma das mãos. Passou pelo atônito Maxime e foi pisar sobre o crânio de Brague, pressionando-o contra o cimento
frio.
O pintor estrebuchou, sangue brotando de sua boca,
espasmos grotescos retorcendo seu corpo. Henri ficou imóvel, o pescoço partido pela força descomunal do vampiro.
Ele soltou suas duas vítimas e voltou os olhos injetados e furiosos para Maxime. Este ergue pateticamente o
crucifixo, sem esperança.
A luz tênue que vinha da chama que se apagava, viu o
vulto ameaçador cambalear e cobrir os olhos, afetado pela
luz.
Ergueu-se, invadido por uma esperança alucinada, adiantando o crucifixo e passando lentamente pelo vampiro
que se contorceu e se encolheu.
— Morra, maldito filho do inferno! — berrou Maxime, começando a subir os degraus para a salvação.
Olhou o corpo de seu irmão e de Brague, depois a figura do vampiro. Tudo era irreal, um pesadelo, uma alucinação bestial, uma cena do inferno.
Queria ficar e ver a destruição do monstro e, ao mesmo tempo, queria dar vazão ao desejo de correr que impacientava e estremecia seu corpo.
Chegou ao alto da escada. Drácula agitava as garras,
descobrindo os olhos e voltando a cobri-los, como que ameaçando o jovem.
Um riso insano esboçou-se nos lábios de Maxime, antes que uma pancada violenta o arremessasse sobre o vampiro. O crucifixo escapou-lhe as mãos. Ele tentou encontralo, mas estava atordoado.
Drácula olhou Torg, parado no alto da escada, o punho enorme ainda fechado e ameaçador. Depois se inclinou
e agarrou o pescoço de Maxime, erguendo-o diante de si,
observando seus olhos se esgazearem e se revirarem, sua
boca se abriu num sufoco mortal e a língua adiantar-se obscenamente.
Maxime estrebuchou grotescamente, depois se imobilizou. Drácula o jogou sobre os outros, depois se voltou para Torg.
— O que eles faziam aqui?
— Não sei, mestre. Juro como não sei...
— Vá ver se aqueles disparos não atraíram a atenção
de ninguém. Apesar de não termos vizinhos, há a estrada —
ordenou Drácula, deixando o corredor calmamente.
CAPÍTULO 8
Drácula estava sentado numa das mesas do fundo de
um barzinho tranquilo, observando as garotas que começavam a chegar. A sua frente, separados por uma mesa vazia,
alguns rapazes discutiam sobre os últimos acontecimentos.
Junto ao balcão, alguns homens bebiam ladeados por
garotas provocantes e oferecidas. No extremo do enorme
tampo de madeira, havia um televisor. Drácula sorriu, pensando em como a ciência evoluía, dos alquimistas de seu
tempo aos técnicos da atualidade.
Algo, na tela colorida, chamou-lhe a atenção. Ele se
ergueu, olhando-a fixamente. Aproximou-se. Reconhecia
aquela figura magra e alta que acompanhava a mulher cercada de policiais.
Prestou atenção ao que dizia o repórter. Dominique
Pinon estava sendo libertada, após haver sido interrogada
durante toda a tarde sobre um possível envolvimento na
bárbara morte de sua criada.
Os olhos do vampiro fuzilaram ao perceber o engano
cometido. Dominique estava viva ainda, assim como aquele
homem que o perseguia. Ambos precisavam ser destruídos
sem mais demora.
Deixou o bar apressadamente. Lembrava-se do endereço e da facilidade de penetrar na casa. Se a jornalista tivesse retornado para lá, era possível que encontrasse os
dois, esperando pela destruição.
Cruzou uma praça. Oculto pelas árvores, metamorfoseou-se no morcego negro que cortou a noite ameaçadoramente.
***
Hilgenstiller não bebia com frequência, mas estava
seguro de que, após aquela tarde, um gole de bom conhaque poria seus nervos no lugar.
Acompanhara Dominique e fora igualmente incriminado pelas perguntas sutis e maldosas com que os crivaram.
Serviu dois copos e retornou para junto da jornalista.
A expressão do rosto dela traia seu cansaço e sua angustia.
— Obrigada, professor! — sorriu ela, forçadamente.
— Eu precisava mesmo de um trago. Estou exausta e faminta. Deus, como eles podem ser cruéis! — Exclamou, em
seguida.
— É o trabalho deles! — suspirou Hilgenstiller, repousando o corpo numa poltrona.
Fechou os olhos por instantes. Era difícil acreditar que
tudo aquilo estava acontecendo, enquanto Drácula, solto na
noite, saía à cata de novas vítimas. Quando iriam acreditar?
Quando algo iria ser feito decididamente para acabar com
aquilo?
— Eu sinto tê-lo metido nessa encrenca, professor! —
disse Dominique.
— Esqueça! Eu sei que não é uma tarefa amena convencer a humanidade da existência daquele monstro...
— Estávamos a caminho, temos de reconhecer isso.
— Talvez eu devesse tentar outro jornal... Um concorrente do Le Roy...
— É inútil. Ele acabaria sofrendo as mesmas pressões
e tudo voltaria à estaca zero.
— Acha que devo desistir?
— Não, professor. Deve persistir. Eu lhe darei todo o
meu apoio. Poderemos tentar algumas revistas científicas,
de curiosidade, imprensa marrom, qualquer coisa. Estou
disposta a pedir demissão do Le Roy e acompanhá-lo nessa
cruzada, se me aceitar.
— Está falando sério? — surpreendeu-se ela, gratamente.
— Como nunca falei em minha vida — assegurou ela.
— Aceito sua ajuda, Dominique.
— Nesse caso, vamos celebrar. Eu o convido para um
jantar que eu mesma prepararei... — disse ela, recobrando o
entusiasmo e pondo-se em pé decididamente.
Ia caminhar até a cozinha, mas estacou, franzindo a
testa, decepcionada e constrangida.
— Não há nada na despensa... Hoje seria o dia de Violet ir às compras... Pobre Violet! — exclamou e seus olhos
brilharam mais fortes, marejados.
Hilgenstiller forçou um sorriso, erguendo-se.
— Há um restaurante ali na esquina. Vou até lá e trago
alguma coisa pronta. O efeito será o mesmo. O que me diz?
— Excelente! Devo ter vinho. Que tal um candelabro?
Ele apenas sorriu, alegrando-se em perceber como ela
se esforçava para reagir.
— Decidido, então! Dou-lhe quinze minutos para fazer isso, meu caro professor.
— Já estou providenciando — riu ele, caminhando para a porta, onde estacou e se voltou, encarando-a pensativa
e preocupa.
— O que foi? — quis saber ela.
— Acha que vai estar bem?
— E por que não?
Hilgenstiller olhou na direção da porta do jardim de
inverno e Dominique entendeu. Um calafrio enregelou sua
medula, perturbando-a.
— Eu me sentiria melhor se fosse comigo. Talvez pudesse jantar lá mesmo, no restaurante...
— Ora professor! Ficarei bem — afirmou ela.
Hilgenstiller hesitou por instantes, depois enfiou os
dedos entre o colarinho e o pescoço, retirando dali um crucifixo de prata, numa corrente do mesmo material.
Aproximou-se da jornalista e colocou-o no pescoço
dela.
— Vou me sentir melhor se usar isso — pediu ele.
Ela sorriu e o acompanhou até a porta. Quando a fechou, voltou-se e olhou ao seu redor. Seus olhos se fixaram
na mancha do tapete persa, onde caíra o copo de leite derrubado por Violet.
Por instantes tentou adivinhar o terror vivido pela empregada. Depois, impressionada com as próprias divagações, foi para a sala de jantar, preparar a mesa.
Consultou o relógio. Após toda aquela tarde no Distrito, sentia-se suja. Acreditou que teria tempo de tomar um
banho, antes que o professor retornasse.
Caminhou até seu quarto, onde se despiu. Meteu-se
num roupão e foi para o banheiro. Trancou a porta. Ligou a
ducha. Olhou no espelho. Era um belo crucifixo aquele, todo trabalhado, com pequenas pedras engastadas nas extremidades.
Pouco a pouco o espelho embaçou-se com o vapor que
escapava do box. Dominique se voltou e caminhou para a
água. Olhou mais uma vez o crucifixo. Retirou-o e deixando-o sobre a pia.
Esfregou-se com força, como se pretendesse arrancar
alguma coisa que estivesse impregnada em sua pele. Um
pouco de espuma caiu em seu olho. Dominique lavou-o para livrá-lo da ardência, depois abriu a porta do box e estendeu a mão na direção da toalha.
Tocou algo frio e assustador. Forçou os olhos para
mantê-los abertos e divisar claramente aquela figura sinistra que a olhava.
— Quem é você? De onde veio? — indagou, recuando.
A mão fria do vampiro agarrou-a pelo pulso e puxou-a
violentamente. Dominique escorregou e desabou. Como o
pior dos pesadelos, movido por uma sanha destruidora e
bestial, Drácula a segurou pelos cabelos e a ergueu, prendendo-a em seus braços.
Dominique se debateu, tentando se livrar da ameaça
mortal que via naqueles olhos chamejantes e naquelas presas pontiagudas que pareciam rir dele.
— Eu não tenho medo de você. Acabará destruído,
porque encarna o mal e o mal sempre será derrotado...
— Lindas palavras, Dominique Pinon! Tão lindas
quanto seu pescoço — murmurou ele, quase rosnando.
Ela se debateu novamente, olhando o crucifixo sobre a
pia, vendo nele sua salvação. Tentou manter o controle e
desafiá-lo de alguma forma para destruí-lo.
A boca de Drácula, no entanto, arreganhou-se e os
dentes rebrilharam, antes de enterrarem-se nas carnes macias do pescoço dela.
Dominique estremeceu, aquela dor aguda dando-lhe
consciência do terrível fim que a aguardava. Debateu-se,
enojada e aterrorizada, enquanto ele, como fera esganada,
fungava e sorvia aos goles o sangue que esguichava para
sua boca.
Quando a soltou algum tempo depois, o corpo pálido e
inerte da jornalista deslizou para o piso, numa grotesca posição. Seus olhos esbugalhados e sua face crispada davam a
exata medida do horror por que passara.
Drácula abriu a porta e deixou o banheiro, acompanhado de uma nuvem de vapor. A água continuava a caindo, mas ele ouviu nitidamente as batidas desesperadas na
porta. Recuou, então, para o banheiro. Um sorriso sádico
iluminou seu rosto. Ele ouvia claramente a porta sendo posta a baixo e os gritos desesperados de um homem.
Pouco depois, Hilgenstiller surgia à porta do banheiro.
— Oh, não, meu Deus! — exclamou, em desespero.
O rugido animalesco o fez erguer os olhos para a figura que vinha ao seu encontro. Apoiou-se na pia, mudo de
espanto, e seus dedos tocaram o crucifixo. Drácula cobriu
os olhos e encolheu-se, urrando medonhamente. Hilgenstiller olhou ao seu redor, esperando encontrar alguma arma
para destruí-lo, mas nada havia. O monstro passou por ele,
retorcido e nojento, avançando para a porta. O professor o
seguiu, arremessando contra ele tudo que estivesse ao alcance de suas mãos, praguejando e orando ao mesmo tempo, num desespero total.
Drácula chegou à sala e correu para a porta de vidro
do jardim de inverno. Hilgenstiller exultou, crendo havê-lo
encurralado. Inesperadamente, porém, a figura monstruosa
surgiu do outro lado e ganhou a noite como num passe de
mágica. Hilgenstiller caiu de joelhos e não pôde impedir as
lágrimas que brotaram violentamente de seus olhos.
***
Torg esgueirou-se pelo corredor escuro até o aposento
onde deixara a garota. Acendeu a luz. Olhou surpreso ao
seu redor. Ela não estava ali.
Recuou para o corredor, atônito e perdido. Ela não
podia ter escapado. Não tinha para onde ir. Precisava ficar
para ama-lo. Precisava.
Voltou pelo corredor até a sala principal. Parou ali,
tentando ouvir algum som. Algo como breves rugidos abafados vinham de algum ponto da casa.
Ele foi caminhando, guiando-se pelo som, até uma
porta, após a biblioteca. Fora ali que Drácula destruíra aqueles três intrusos. Um arrepio percorreu seu corpo deformado e um pressentimento medonho o fez estremecer.
Ele empurrou a porta. Os rugidos se tornaram mais nítidos. Ele desceu os degraus e tateou a parede. Aqueles rugidos ofegantes e esganados se explicaram diante de seus
olhos horrorizados.
Recuou cambaleante, enquanto a garota, os cabelos
desgrenhados, os lábios lambuzados de sangue, as presas
arreganhadas, levantava para ele os seus olhos injetados e
animalescos.
— Você... — balbuciou ele, ao vê-la sugando o sangue dos cadáveres. — Você tinha de me amar... O que foi
que eu fiz? — lamentou, desesperado.
A garota não ouvia seus apelos. Apenas sentia a promessa de sangue quente que saciaria aquele seu novo apetite. O sangue frio dos cadáveres não a satisfizera. Era preciso algo mais vivo, mais humano.
Torg compreendeu isso, vendo os olhos dela. A garota
urrou bestialmente e ergueu os braços, mostrando os dedos
crispados e as unhas como garras.
— Eu sou Torg... Seu salvador! — gritou ele, enquanto ela avançava.
O corcunda recuou pela escada, confuso, sofrendo.
Puxou a porta e trancou-a. Cobriu o rosto com as mãos.
Deveria ter imaginado desde o princípio. Não poderia ter se
esquecido daquele detalhe. Drácula a contaminara com sua
maldição. Ao pensar no vampiro, estremeceu dominado por
um pavor maior. Drácula o destruiria, ao perceber que fora
feito. Torg foi recuando, sem perceber Drácula, estático atrás dele, olhando-o com curiosidade. Quando seus corpos
se chocaram, o corcunda caiu de joelhos e ergueu as mãos,
num gesto de adoração e súplica.
— Perdão, mestre! Perdão! — gritou.
— O que tem atrás daquela porta, Torg? — indagou
Drácula, sem entender o comportamento de seu servo fiel.
— Não, mestre! Suplicou-lhe...
— Acho que chegou a hora de desvendar seu segredo,
meu bom Torg — disse Drácula rumando para aquela porta.
— Não! — gritou o corcunda, saltando para frente e
interpondo-se.
Drácula olhou-o nos olhos, percebendo o terror. A reação inusitada do corcunda espicaçou-o e o enfureceu. Ele
agarrou o corcunda pelo pescoço e atirou-o para o lado como se fosse um graveto. Depois escancarou a porta. Recuou surpreso por instantes, quando a garota avançou. Reconhecendo-a afinal. Ela urrou, pondo-se na defensiva, as
presas à mostra, as mãos em garra.
— Maldita besta humana! — praguejou, olhando Torg
se arrastar pelo assoalho, buscando proteção atrás dele. —
Eu devia deixar que ela sugasse todo o seu sangue podre.
— Não, mestre! Perdão! Eu só queria que ela me amasse, mestre...
— Amor? Tolo, inútil! — exclamou Drácula, com
desprezo, voltando-se para a garota, tentando submetê-la
com seu olhar poderoso.
Ela rosnou, retribuindo um olhar de ódio, reconhecendo nele um inimigo e destruidor. Avançou sobre o vampiro,
engalfinhando-se, procurando cravar suas presas no pescoço dele.
Drácula urrou medonhamente e empurrou-a de encontro à parede. Depois abriu os braços ameaçadoramente e
saltou sobre ela, cravando suas presas em seu pescoço dele,
dilacerando-o furiosamente.
Torg se ergueu pálido de terror, percebendo a fúria desencadeada no corpo de seu mestre, que despedaçava aquela que o ameaçara.
Não havia clemência ou humanidade nas atitudes dele.
Era uma fera, uma besta irracional ao extremo, movida apenas pelo instinto de sobrevivência.
Os rugidos de vitória de Drácula sobrepujaram os gemidos arquejantes da garota, que foi atirada violentamente
contra a porta, caindo para o corredor.
— Ande, vá devorar-lhe o coração! — ordenou Drácula, voltando-se para Torg. — Não era isso que você queria?
O coração dela? — gargalhou satanicamente o monstro,
enquanto Torg se apressava em cumprir a ordem recebida.
FIM DO LIVRO CINCO
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO SEIS
FLOR DE SANGUE
CAPÍTULO 1
De repente, o terror.
A porta do carro se abriu e um braço se estendeu. A
mão fria e forte se fechou em torno do pulso da garota, arrancando a do veículo com veículo. Seu namorado debruçou-se para olhar a figura alta e sinistra que dominava a jovem.
Instintivamente abriu o porta-luvas e retirou dali uma
arma. Antes que pudesse engatilhá-la e apontá-la, Drácula
agarrou-o pelo braço, arrastando-o para fora também.
— Solte a minha namorada! — gritou o rapaz, desequilibrado.
Drácula apertou o braço ao redor da cintura dela, depois gargalhou satanicamente. Ao encará-lo, o rapaz percebeu que o ser em sua frente não era humano. Aqueles olhos
faiscantes, aquela boca arreganhada, exibindo presas ani-
malescas e aquela mão feito garra deram-lhe a certeza de
que a arma era inútil.
Ele se lembrou do que lera nos últimos dias sobre o tal
vampiro. Não podia estar acontecendo, não com ele, não
com sua namorada.
Recuou, alucinado e patético. Drácula olhou a garota
junto de si. Ela desfalecera, o tronco pendido para trás, os
cabelos soltos, o pescoço torneado e sedutor o convidado a
extravasar sua volúpia assassina.
O rapaz, fora de si, agarrou um pedaço de madeira e
investiu contra ele. Drácula deixou cair a garota sobre a
relva e aparou o golpe com facilidade, puxando o rapaz ao
seu encontro.
Segurou-o pela garganta, depois o ergueu diante de si.
Ao lado havia uma cerca, de mourões pontiagudos. O vampiro o jogou sobre eles. Transpassado grotescamente, o rapaz estrebuchou, expelindo golfadas de sangue.
Drácula voltou os olhos para a jovem ainda adormecida. O luar tornava sua pele mais clara, ressaltando sua beleza suave e terna.
Inclinou-se para apanhá-la. Faróis o iluminaram naquele momento. Ele cobriu os olhos, esperando que o veículo passasse.
— O que está havendo aí? — indagou o motorista,
freando o carro, no entanto.
Drácula rugiu ameaçadoramente. Uma lanterna iluminou seu rosto.
— Deus do céu! — exclamou um dos ocupantes do
veículo.
— É o vampiro! Só pode ser ele! — gritou outro.
Havia quatro homens no carro. Quase que em seguida,
quatro carabinas foram apontadas para o vampiro e detonadas. As cargas de chumbo passaram por seu corpo como se
passassem por uma sombra.
Drácula recuou furioso. Seu corpo rebrilhou fosforescente, depois o enorme morcego ganhou a noite, afastandose daquele lugar ermo.
***
No café de Pierre, em Saint Denis, alguma coisa parecia ter se alterado profundamente. Ninon, Chamy e Colete,
as garotas mais atrevidas e acessíveis da noite, estavam a
um canto, numa das mesas, bebendo em silêncio.
No balcão superlotado, os homens se entreolhavam,
indagando-se o que podia tê-las feito agir daquela forma.
— Acho que enriqueceram...
— Arrumaram um padrinho rico...
Pierre se aproximou mais uma vez, para explicar. As
garotas, que antes atraíam fregueses para o café, estavam
pondo tudo a perder.
— Estão assim por causa de Marie que desapareceu e
ainda não foi encontrada — disse, passando o pano ensebado sobre o tampo de madeira.
Na mesa, Ninon terminou seu conhaque, depois fez
um gesto para Pierre, que mandou servir-lhe outro. A garota estava preocupada não apenas por Marie, a amiga que
havia desaparecido, como por Brague e os irmãos Hamond,
que igualmente haviam desaparecido.
Alguns dias antes, Ninon os procurara na pensão onde
moravam, para lhes contar que vira novamente o carro que
levava Marie, na noite em que ela desapareceu com um estranho.
Depois daquele dia, não vira novamente. Ninguém sabia dar o paradeiro deles. Sua preocupação, portanto, redobrava-se.
Encarou suas amigas, tão desanimadas e preocupadas
quanto ela.
— Precisamos fazer alguma coisa, garotas — disse.
— E o que podemos fazer, Ninon? — indagou Chamy.
— Vimos aquele estranho entra aqui, sabemos que ele
se parecia com o vampiro que apareceu no jornal...
— É, mas o jornal não fala mais nada, sobre o caso.
Simplesmente parou com as reportagens todas. Eu achei ótimo. Tudo aquilo estava me impressionando demais — afirmou Chamy, tomando um gole de sua bebida.
— Isso me intriga. Por que pararam? Teria sido por
causa da morte daquela jornalista? Como era mesmo o nome dela?
— Dominique Pinon — informou Chamy
— Tudo ficou muito misterioso, não? Nada se comentou sobre o fato.
— E o que isso tem a ver com o desaparecimento de
Marie? — quis saber Colette.
— Tenho certeza de que há uma relação. Aquele professor que apareceu na televisão, não era ele quem sabia
tudo sobre o tal vampiro? — lembrou Ninon.
— Eu não assisti a isso — descartou-se Colette.
— Você tem razão, Ninon — disse Chamy. — Foi o
que eu entendi também.
Ninon tomou outro gole. A noite avançava e nada havia sido feito. Não podiam ter ânimo para nada. A vida precisava continuar, mas não depois de tudo que acontecera.
Primeiro Marie, a doce e terna Marie, levada por um
desconhecido numa noite calma e nunca mais vista. Depois
os irmãos e Brague, a quem ela havia contado o fato e dado
o número da placa do carro do estranho.
A semelhança incrível entre a fotografia do vampiro
publicada pelo jornal Le Roy e aquela figura feita por Brague, exímio pintor, com base nas descrições de Ninon e dos
outros.
Tudo fazia crer que havia um vampiro e que Marie fora levada por ele. Sendo assim, seu destino fora trágico.
Mas o que acontecera a Brague e os outros? Onde estariam? Por que haviam sumido tão misteriosamente?
— Acabo de ter uma ideia — disse Ninon.
— Que ideia? — quis saber Chamy, debruçando-se
sobre a mesa para ouvi-la melhor.
— Vocês querem saber de uma coisa? Eu desisto de
todo esse assunto louco. Estou vendo Deny ali na ponta do
balcão. Ele me olha com uns olhos... — pavoneou Colette.
— Pós vá ter com ele, diabos! — respondeu Ninon.
— Pois é o que vou fazer mesmo. Preciso viver, não
sou rica, minhas filhas. Adeusinho para vocês. Se cruzarem
com o vampiro de novo, mandem-lhe minhas lembranças
— ironizou a garota, levantando e deixando-as.
— Ela nunca foi muito amiga de Marie — comentou
Chamy.
— Esqueça-a. Ouça o que podemos fazer: vamos procurar o tal professor.
— Para quê?
— Para contar-lhe tudo o que sabemos. Pode não ser
nada, mas pode significar alguma coisa. Se ele puder nos
ajudar a localizar Marie ou, então, souber o que houve com
ela... — interrompeu-se por instantes. — Vou procurá-lo.
Você vem comigo?
— Onde vamos achá-lo?
— Talvez no jornal saibam informar.
***
Hilgenstiller consultou o relógio.
Passava das onze da noite. Estivera ali, naquela cadeira, durante o dia todo, repetindo sempre a mesma história.
Os policiais se revezavam no interrogatório, interrompido
apenas para as refeições principais.
Estava sozinho naquele momento, mas sabia que logo
outro policial entraria e lhe perguntaria a mesma coisa que
os outros.
Ouviu o ruído da porta, mas não se voltou. O policial
avançou até a cadeira, tirou o paletó e o repousou no espaldar. Depois encarou o professor.
— Lembra-se de mim? — indagou.
— Sim, seu nome é Ivy Chanton e é tenente detetive
da Superintendência Geral de Polícia. Nós nos conhecemos
no gabinete de Dominique Pinon, no jornal Le Roy. Como
vê, tenente, não estou louco. Tenho consciência de tudo
que aconteceu.
— Nesse caso, deve compreender nossa posição e...
— Não, tenente. Você deve compreender minha posição. Sou um cidadão inglês, dono de minhas faculdades
mentais e mantido sob interrogatório nos últimos dias. É
um modo desumano de tratar um visitante, não? Se preten-
de me acusar de alguma coisa, por que não o faz? Ou então
me deixe voltar ao meu país...
— Não é tão fácil assim, professor — disse o tenente,
apanhando sua carteira de cigarros.
Ofereceu um ao professor, que recusou Ivy acendeu o
seu e, após algumas baforadas, voltou a encarar o cientista.
— Acredita mesmo em vampiros, professor?
Hilgenstiller balançou a cabeça desconsoladamente.
Quando alguém acreditaria nele? Quando a humanidade perceberia o perigo que estava ocorrendo com aquela
besta monstruosa à solta.
— É uma pergunta tola, tenente. Já sabe a resposta.
Claro que acredito. Eu enfrentei um. Minha filha morreu
por causa dele...
— Temos aqui um relatório que diz que sua filha morreu num ataque de lobos. Está assinado por médicos do
serviço público da Hungria...
— Eu sei o que está aí. É uma farsa, tudo tem sido
uma farsa. Há um vampiro lá fora, tenente. Agora mesmo
pode estar atacando alguém e...
Naquele momento, a porta se abriu e um policial deixou ver o seu rosto para fazer um gesto ao tenente.
— Já continuaremos nossa conversa — disse Ivy, levantando-se e deixando a sala.
Momentos depois, ele retornou. Havia sorriso maldoso
e irônico em seus lábios.
— Vou lhe mostrar o que sua história provocou, professor. Venha comigo — ordenou.
Hilgenstiller não entendeu o que ele queria dizer com
aquilo, mas ergueu-se e o seguiu até a sala do plantão. Ali,
quatro caçadores de patos, ligeiramente embriagados, confundiam um policial ao tentar explicar o que haviam visto.
— Depois virou morcego... Um morcego enorme... —
e o rapaz estava lá, espetado como um pedaço de carne...
— A garota só estava desmaiada...
— Nós atiramos nele. Os quatro. Não podíamos ter errado...
Ivy fez um sinal ao professor e retornou com ele à sala
de interrogatórios. Sentou-se diante dele e encarou-o.
— Um rapaz foi morto estupidamente está noite. Seu
corpo foi jogado sobre uma estaca. Sua namorada está no
hospital, em estado de choque. Aqueles caçadores bêbados
juram que viram um homem semelhante à fotografia que
saiu no Le Roy. E que atiraram nele com suas espingardas,
sem causar-lhe danos. Depois, num passe de mágica, ele se
transformou num morcego e desapareceu na noite...
— Chama isso de histeria? Quer dizer que eu provoquei isso? Por que não acredita neles, homem? Eles podem
estar falando a verdade...
— Estavam bêbados, professor. Eu fico admirado com
sua relutância em não aceitar os fatos como eles são. O se-
nhor, como um cientista que é, pode imaginar o que realmente aconteceu...
Hilgenstiller abaixou a cabeça e suspirou, cansado.
— E o que aconteceu, tenente?
— Simples, lógico e evidente. Aqueles homens voltavam de uma caçada. Estavam embriagados. Viram o carro à
beira da estrada. Atacaram a garota. O rapaz reagiu e eles o
jogaram sobre o espeto. Depois, ao perceberem o que haviam feito, valeram-se do que tinham lido e inventaram toda
aquela história sobre tiros e morcegos.
Hilgenstiller cobriu o rosto jogando a cabeça para trás.
Dia após dia aquelas sessões vinham se repetindo. Estava
cansado, realmente cansado. Voltaria ao hotel, dormiria pesadamente para, na manhã seguinte, ser acordado de novo
pelos policiais.
Não lhe permitiam viajar. Haviam retido seu passaporte. Estava preso em Paris.
— Mas voltemos ao que nos interessa, professor. O
que veio fazer em Paris?
— Atender a um convite de Dominique Pinon.
— Para quê?
— Para assisti-la nas reportagens sobre o vampiro.
— Por que a matou, professor?
— Eu não a matei, tenente. Está cansado de saber disso. Eu não podia tê-la matado e sugado todo o sangue de
seu corpo. O porteiro me viu chegar e me ouviu gritar por
socorro cinco minutos depois. Ele comprova tudo o que eu
disse. Não havia motivo, não havia tempo... Vá para o inferno! — explodiu, erguendo-se e caminhando para a porta.
— Ande vai, professor?
— Vou sair daqui e só voltarei quando tiverem uma
acusação contra mim. Mandarei chamar meu advogado.
Tenha uma boa noite, tenente — finalizou, saindo e batendo a porta com violência.
***
A garota desceu do carro, contornou-o indo se debruçar à janela. O rapaz estendeu a mão e acariciou seus cabelos.
— Eu a vejo amanhã, outra vez?
— Eu o espero na saída da loja... — prometeu ela, avançando os lábios carnudos e sensuais.
Ele firmou sua mão à nuca da jovem e pressionou seus
lábios contra os dela, sugando-os apaixonadamente. Separam-se antecipando a saudade. Ela sorriu. Ele acelerou e
partiu. Ela acenou depois se voltou e abriu o porão.
Atravessou o jardim. Um ruído de passos sobre as folhas secas a fez se voltar. O luar banhava um vulto de homem. Ele estremeceu, fixando-se naqueles olhos que pareciam brilhar dentro da noite.
Algo hipnótico, sobrenatural e forte a fez permanecer
ali, imóvel, enquanto ele se aproximava. Seus olhos se tornaram injetados e longas presas avançavam, destacando-se
sobre os lábios inferiores.
Seus braços se abriram, atraindo-a. Ela percebeu o perigo e o medo a aterrorizou, mas não conseguia fugir àquela
atração.
Ele a segurou pela cintura, levando-a bruscamente para um canto escuro, junto ao muro. Pressionou seu corpo ao
dela, aspirando o perfume jovem e delicioso.
Suas presas arranharam-lhe o rosto. Seu hálito fétido
varreu-lhe o pescoço torneado. Rosnando como uma fera,
ele se esfregou a ela, dominando por intensa volúpia.
Suas mãos frias desceram pelos ombros da garota, apertaram-lhe os seios, enquanto os lábios se colavam sobre
a veia palpitante do pescoço.
A jovem estremeceu. Uma fisgada aguda fez crispar
seu corpo. Rosnando e resfolegando, Drácula a apertava e
sugava o sangue que jorrava da ferida.
Uma volúpia indescritível abalava seu corpo violentamente, enquanto percebia suas forças aumentaram, à medida que fugiam as dela.
Primeiro a cabeça pendeu para o lado e os olhos se fecharam, apagando a expressão de terror. Depois, seus músculos ganharam a lassidão da morte, lenta e gradativa, enquanto todo seu sangue era roubado.
A última gota se fora. Drácula rosnou deliciado e soltou o corpo, que deslizou pesadamente. Olhou-a, ofegante
ainda. Ela estava morta, mas reviveria se seu coração não
fosse destruído.
Um desejo desafiador o fez sorrir macabramente. Afastou-se até uma árvore desfolhada e quebrou um galho
pontiagudo.
CAPÍTULO 2
A noite estava fria e o vento que soprava sobre o Cemitério de Saint Germaine parecia clamar contra a profanação, agitando galhos esqueléticos, segredando uma estranha
e macabra melodia.
As folhas secas, roçando o calçamento e as tumbas,
sussurravam mau agouro. Uma sombra disforme esgueirava-se por entre as lápides, levando uma lanterna numa das
mãos, iluminando lousas como se procurasse um nome.
Era Torg, apressa em cumprir mais uma das sinistras
ordens de seu mestre. Movido apenas pelo instinto de obediência, como um cão treinado, ele se dispunha a realizar
todo o tipo de missão.
Estacou, finalmente, ofegante. Depositou a lanterna
junto ao cimento fresco de um túmulo. Com as unhas ele
arranhou o material, sentindo sua consistência.
Do bolso interno de seu casaco, retirou um martelo de
madeira e um formão. Corrigiu a posição da lanterna, iluminando a entrada recém-fechada.
Olhou ao seu redor, depois começou a escavar o cimento, soltando a laje que tapava o jazigo. Às vezes interrompia-se para erguer o corpo deformado e ofegar ruido-
samente. Investigava os arredores e retornava, em seguida,
ao seu trabalho.
Uma coruja piou agourenta numa árvore próxima.
Torg levantou os olhos por instantes, procurando-a. Gostava das corujas. Não gostava dos lobos. Podia até tolerar os
morcegos, mas detestava os lobos.
Era um ódio irracional. Ele não compreendia bem sua
origem. Sabia apenas que odiava aqueles animais. Eles lhe
provocavam uma repulsa incontrolável.
Voltou a se concentrar em seu trabalho. A laje estava
solta. Torg retirou-a. Os frisos cromados de um ataúde de
luxo se mostraram pela abertura.
Ele respirou fundo e estendeu o braço o mais que pôde, segurando uma das alças. Puxou lentamente, até retirálo do jazido.
Soltou os fechos e ergueu lentamente a tampa. Um
rosto pálido, deformado pela morte, encarou-o. Torg inclinou-se e segurou-o pelas axilas, erguendo-o sem dificuldade.
Foi apoiá-lo contra outro túmulo. A rigidez cadavérica
fez com que o corpo permanecesse em pé, imóvel, como
uma maligna estátua ofendendo a paz das cruzes.
O corcunda respirou fundo novamente, depois se sentou por instantes, tomando fôlego aparentemente ou saboreando aquela calma e aquele silêncio, quebrados apenas
pelo vento que protestava.
Retirou um pacote do bolso e depositou-o ao lado do
túmulo. Abriu-o em seguida e olhou ao seu redor. Caminhou em frente, alheio às sombras.
Encontrou o que procurava. Era um balde junto a uma
torneira. Apanhou um pouco de água e retornou. Despejou
o conteúdo do pacote no balde e misturou-o com o formão.
Recolocou a laje e cimentou-a. Depois foi lavar o balde e as mãos. Quando retornou, fitou o cadáver e sorriu tétrica e zombeteiramente.
A morte não o afetava. Apanhou a lanterna e examinou seu trabalho. Tudo estava como antes. Ele guardou-a e
caminhou até o cadáver.
O odor putrefato não o incomodou. Firmou-o em seus
braços e caminhou rumo à saída.
***
Quando o táxi parou diante do hotel, Hilgenstiller pagou o motorista e desceu. Não entrou de imediato. Ficou
observando a rua. Viu quando um carro se aproximou lentamente e estacionou do outro lado.
Os homens em seu interior olharam-no disfarçadamente. O cientista sabia que eram policiais. Havia sido assim
todas as noites, desde a morte de Dominique.
A vigilância era constante. Pela manhã, dois deles
compareciam, indo acordá-lo. Era levado ao interrogatório,
de onde só sairia à noite.
Estava cansado e abalado com tudo. O desânimo o abatia. Drácula estava solto, impune por mais um crime.
Ninguém acreditava em suas advertências. Era preciso pôr
um fim em tudo aquilo, mas se sentia tolhido.
Era como se estivesse, de fato, preso. Os policiais não
lhe davam trégua. As perguntas capciosas durante o interrogatório indicavam o desejo da polícia de incriminá-lo pela morte de Dominique, a corajosa jornalista, que ousara
publicar reportagens sobre Drácula.
Respirou fundo e caminhou para a entrada. Dirigiu-se
à portaria. Um rapaz sonolento ergueu-se.
— Professor, aquelas duas garotas o esperam há horas... — disse, apontando-as a um canto, sonolentas e cansadas também.
Hilgenstiller as olhou discretamente. Pela aparência e
pelos modos, não tinha dúvidas. O que duas prostitutas
queriam dele?
Apesar do cansaço, percebeu o quão importante poderia ser aquela visita, lembrando-se do que dissera a Dominique, certa vez. As vítimas do vampiro eram mulheres sem
família, cujas faltas não seriam sentidas. Desse modo, talvez aquelas duas estivessem ali por um bom motivo.
Ia caminhar para elas, quando o rapaz pigarreou, chamando-lhe a atenção.
— Professor... Tomamos a liberdade de preparar sua
mala...
O cientista o encarou sem compreender.
— Não vou viajar... Aliás, não posso viajar...
— Sei disso, senhor, mas foram ordens... Parece que o
jornal não irá mais pagar suas despesas...
— E qual o problema? Eu posso pagar...
— Eu sinto dizer-lhe isso, professor, mas deve compreender, cumpro ordens apenas...
— Então diga!
— É que esses policiais, todos os dias aqui no hotel,
estão preocupando a gerência. Isso incomoda os clientes
e...
— Que se queixem à polícia, então. Não é minha culpa se...
— Eu sinto muito, professor. Vou mandar descer a
mala — afirmou o rapaz, constrangido.
Hilgenstiller abaixou a cabeça e suspirou. Era difícil
acreditar que tudo aquilo estivesse acontecendo com ele.
Pretendia apenas ajudar, livrando a humanidade de uma
praga infernal.
Queria ajuda para isso. Era demais para suas forças.
Ao invés disso, recebia apenas incompreensão. Dominique,
a única que acreditara nele e se propusera a ajudá-lo, estava
morta, destruída pelo monstro.
Qualquer coisa estalou em sua mente, fazendo-o estremecer. Ele ergueu a cabeça e seus olhos se estalaram.
Dominique já fora sepultada. Tivera seu corpo contaminado
pela maldição do vampiro. Se uma estaca não fosse cravada
em seu coração, retornaria como nova inimiga da humanidade.
Inquietou-se, nervoso e preocupado. Precisava fazer
alguma coisa, mas nada havia que pudesse fazer.
— Escute! Sabe onde Dominique Pinon foi sepultada?
— Fala da jornalista que... — disse o rapaz, interrompendo-se ao se lembrar do envolvimento do professor.
— Sim, ela mesma...
— Em Saint Germaine, creio eu.
— Preciso de uma certeza! — Exclamou Hilgenstiller,
debruçando-se sobre o balcão da portaria.
O rapaz recuou instintivamente para o fundo.
— sim, foi lá mesmo. Agora me lembro de que vi no
noticiário da televisão...
O professor levou as mãos à cabeça, ficando pensativo
por instantes. As garotas, ao fundo, se ergueram, reconhecendo-o.
— Professor! — chamou Ninon, com um aceno.
Hilgenstiller caminhou até elas.
— Meu nome é Ninon... Está é Chamy... Precisamos
falar com o senhor... É importante para nós... Achamos que
nossa amiga foi morta pelo vampiro.
***
Torg fechou a garagem, depois voltou a apanhar o cadáver em seus braços e levou-o para casa. Quando entrou,
Drácula ergueu a cabeça para olhá-lo. Levantou-se, então, e
foi ao seu encontro, olhando com verdadeiro ódio a figura
diante dele.
— Aqui está, mestre. Fiz conforme me ordenou.
— Leve esse corpo para o sótão. Deixe-o lá, trancado...
— Mestre, é o corpo de um inimigo... — comentou o
corcunda, como se não entendesse o motivo daquela ordem.
— Eu sei o que faço, Torg. Vá guardá-lo — ordenou
Drácula, voltando a se sentar.
Torg passou com o corpo, levando-o para o sótão. Verificou as grades da janela. Eram resistentes. A porta era de
madeira maciça, com uma sólida fechadura.
Voltou para a sala levando a chave. Drácula estava em
sua cadeira, ainda, e parecia meditar. O corcunda passou
diante dele e foi se sentar na poltrona vizinha.
Por algum tempo o silêncio reinou.
— Já me livrei dos corpos daqueles três que ousaram
invadir a casa e desafiá-lo, mestre.
Drácula apenas moveu a cabeça num sinal de aprovação.
— Também verifiquei os arredores, depois que a polícia veio e levou aquele carro na estrada. Pensei que viesse
até aqui fazer perguntas, mas isso não ocorreu.
— Ótimo! — rosnou o vampiro, fechando os olhos.
Sua testa vincada e a expressão sinistra de seu rosto
indicavam que ele parecia tramar algo. Torg podia sentir isso. Não seria um acesso de fúria. Drácula parecia calmo.
Na certa se saciara naquela noite, tomando alguma bela garota em seus braços, esfregando-se a ela, roçando seu pescoço com os lábios sedentos.
Tivera carnes macias e tenras junto de si. Gozara um
prazer que Torg ansiava gozar de novo.
Estremeceu, a volúpia provocando comichões em seu
corpo.
— Quero que compre os jornais de amanhã, Torg. Ataquei um casal está noite. Matei o rapaz, mas não pude saciar minha sede com a garota. Na certa surgirá alguma coisa nos jornais. Descubra o endereço dela.
— Farei isso tão logo amanheça, mestre — prontificou-se o corcunda.
Olhou o vampiro. Drácula ainda tinha algo a dizer.
Pela expressão sombria de seu rosto, percebeu que ele
tramava uma vingança. As palavras seguintes do monstro
confirmaram suas suspeitas.
— Quero que verifique o que está fazendo aquele professor maldito. Sei que não deixou Paris. Estive num bar e
ouvi alguns comentários. Tive de sair logo. As pessoas me
olhavam como se me reconhecessem. Aquelas reportagens
causaram-me mal, Torg. Preciso eliminar aquele homem. É
perigoso demais para mim. Localize-o. Quero lhe mandar
um presente de que jamais se esquecerá... Um presente de
que jamais se esquecerá — repetiu o vampiro começando a
rir. — Um belo presente realmente! — quase gritou, gargalhando estridentemente.
Aquele som horrendo, mistura de guincho e grunhido,
ecoou pelas paredes da casa, assustando os ratos que se esgueiravam pelas frestas.
Ainda gargalhando, Drácula se ergueu e caminhou na
direção da ala onde estavam seus aposentos. O ataúde o esperava para um dia de repouso. Quando a noite chegasse
novamente, a sede de sangue o poria de pé e o lançaria contra o mundo, à cata de novas vítimas.
***
Ivy Chanton, o tenente-detetive, entrou na sala, aspirando o forte cheiro de formol. Sobre a mesa ao centro, co-
berto por um lençol, havia um cadáver. O médico, ao lado,
levantou a ponta do tecido, mostrando-o ao policial.
— É uma garota... Pouco mais de dezoito anos. Sem
uma gota de sangue e com essas marcas no pescoço... Vê?
O cansaço irritava o policial. O médico parecia sugerir
alguma coisa em seu tom de voz, Ivy encarou-o.
— E como acha que ela morreu?
— É difícil dizer... Estado de choque, creio. Ou talvez
isso — disse, descobrindo mais e mostrando a chaga entre
os seios. — Espetaram-lhe um galho entre os seios. A violência foi tanta que ele se quebrou e ficou preso entre as
costelas. Pedi autorização à família para retirá-lo, mas preferem que fique assim. Talvez não queiram retalhar o corpo
da moça ou...
— Ou? — ajudou o policial.
— Nada, tenente — disse o médico, voltando a cobrir
o corpo.
Ivy esfregou as mãos no rosto. Tudo estava se tornando muito confuso. Aquela febre de vampirismo estava ameaçando jogar a cidade numa onda de crimes insolúveis.
Tornava-se fácil para os marginais agirem, imitando a
forma de agir de um vampiro. As reportagens no Le Roy
haviam fornecido detalhes.
— Posso liberar o corpo para a família? — indagou o
médico — A perícia já esteve aqui e fotografou.
— Sim, faça isso... Pensei que meu dia estivesse terminando... Os jornais sabem alguma coisa sobre o fato?
— Não sei...
— Terei que ligar para todos eles, então. Não quero
que publiquem nada sobre isso. Iria apenas reforçar o mito
e dar novas ideias aos criminosos e assassinos da cidade.
Que bela situação aqueles inconsequentes foram criar! —
lastimou, deixando a sala.
***
Genny Mataint reforçou o batom dos lábios, depois
apanhou o estojo de sombras e pincelou ao redor dos olhos.
Piscou algumas vezes, antes de colar os cílios postiços.
Afastou o rosto por instantes para melhor se observar
ao espelho. Tudo estava perfeito. Sua beleza serena ganhava toques agressivos com a maquilagem carregada.
Ergueu-se. Vestia apenas um maiô colado ao corpo,
sugestivo e bem torneado. O tecido transparente deixava
perceber, à altura dos seios, dois botões preciosos e escuros. Sob o ventre, o triângulo sedoso se destacava sensual e
provocante.
Um pouco mais afastada do espelho, fora do foco de
luz do abajur, seu corpo parecia nu, na cumplicidade das
sombras. Era esse o efeito desejado pelo homem da boate
que a contratara.
Apanhou uma blusa e a vestiu. Depois abotoou uma
saía e calçou os sapatos. Estava pronta para sair. Passava da
meia-noite. Genny nunca fora corajosa. Sentiu, mais do que
nunca, a falta do irmão.
Aimê era um bom rapaz, merecia destino melhor. A
vida lhe fora madrasta. A morte fora cruel. Apesar do corpanzil deformado, tinha uns olhos bondosos e serenos.
Suspirou, olhando a fotografia na moldura, sobre a
penteadeira. Lá estava Aimê, com seu sorriso bom e confortador. A corcunda não o enfeava como ele sempre supunha. Ou talvez fosse o amor da irmã que o fizesse belo.
Terminando de se vestir, foi apanhar a bolsa. Olhou-se
pela última vez e retocou o batom que borrara num canto
da boca.
Deixou a casa. A rua estava vazia. Ela teria de caminhar algumas quadras, até uma avenida, onde seria fácil
conseguir um táxi até a boate.
Em outros tempos, quando Aimê a acompanhava, fazia todo o trajeto até o trabalho. Iam conversando. Agora
tudo passara. Tinha medo de andar nas ruas à noite, principalmente depois do que lera nos jornais sobre o tal vampiro.
Não bastassem os tarados e os engraçadinhos, só faltava mesmo um vampiro para aterrorizar suas noites. Precisava de um emprego melhor.
Vinha tentando, inutilmente. A vida em Paris a empurrara para um círculo-vicioso que sufocara e abortara todas
as suas aspirações.
Quando viera para a cidade grande, tencionava estudar
à noite e trabalhar durante o dia. Sem experiência e estudos, fora difícil um emprego. Tivera de aceitar aquele, que
a impedia de estudar. Despir-se todas as noites, diante de
olhos obscenos, era degradante.
CAPÍTULO 3
O professor ouviu com atenção toda a narrativa de Ninon. Quando esta terminou, ele estava ansioso por detalhes
mais consistentes.
— A placa, não consegue mesmo se lembrar dela? —
indagou.
— Já disse, professor. Eu sinto muito... Ficou tudo
confuso em minha mente... O medo que passei...
— E o corcunda, tem certeza sobre ele?
— Sim, eu o vi claramente...
— Sabe quais foram os passos seguintes dos rapazes?
— Não os vi mais... Eu os procurei, fui até a casa onde
moravam. Ninguém soube informar. Desapareceram com o
carro.
— Quem tinha um carro?
— Brague.
— Talvez fique mais fácil começar por aí... — disse o
professor, observando que um dos rapazes do hotel trouxera sua maleta e a depositara no balcão da portaria.
Conversou por instantes com o encarregado, depois
olharam disfarçadamente na direção do cientista. Na certa o
conteúdo da maleta os havia intrigado.
— Vai nos ajudar então? — indagou Ninon.
— Vocês procuraram a polícia? — quis saber.
— Acha que acreditariam em nós? — retrucou Ninon.
— Penso que não — respondeu ele, num suspiro.
As duas continuaram olhando-o em suspense. Hilgenstiller compreendeu que aquela era uma pista importante.
Drácula ainda estava em Paris, estava seguro disso.
Pensou por instantes. Teria de deixar o hotel. A polícia estava lá, vigiando-o. Enquanto eles mantivessem aquela vigilância, ele nada poderia fazer.
Percebeu o que tinha a fazer. Provavelmente o hotel
tivesse uma saída pelos fundos. Sairia sem deixar pistas.
— Vocês acreditam realmente na existência de um
vampiro? — indagou com seriedade.
Ninon e Chamy estremeceram, entreolhando-se.
— Nós o vimos, não vimos? Foi ele quem levou Marie... Possivelmente tenha sido ele quem deu sumiço nos rapazes... Por que não acreditaríamos?
— Está bem, então, mas devo dizer-lhes que estou
sendo vigiado pela polícia. Acho que estão cientes disso,
não?
— Sim, acompanhamos pelos jornais e pela televisão
— confirmou Ninon.
— Vocês saem, aguardam-me naquela praça junto ao
obelisco. Vou cuidar de alguns detalhes e irei ter com vocês
em poucos minutos.
As duas concordaram. Assim que saíram, Hilgenstiller
foi apanhar sua maleta. As despesas até ali haviam sido pagas pelo jornal. Ele pediu uma informação qualquer ao rapaz da portaria, depois esgueirou para os fundos do prédio,
onde localizou a saída.
Momentos mais tardes, estava na rua, longe das vistas
dos polícias que vigiavam a frente do hotel, então, ao encontro das garotas.
Localizar Drácula era importante, mas havia algo mais
urgente a fazer. Assim que se juntou a elas, indagou:
— Vocês ouviram ou viram alguma coisa sobre o sepultamento de Dominique Pinon?
— Sim, ela foi sepultada em Saint Germaine — informou Chamy.
— Escutem! Pode parecer insanidade minha, mas acreditem-me, é importante ir àquele cemitério, ainda esta
noite, se possível. Se não quiserem me acompanhar, eu
compreenderei. Pensando melhor, é bom que não se envolvam nisso. Tenho uma missão a cumprir. Vou me encontrar
com vocês depois. Podem me dar o endereço?
— Estaremos no Café do Pierre, em Saint Denis, não
será difícil achá-lo. Agora... Está dizendo que vai ao cemitério?
— Preciso ir, preciso mesmo — confirmou ele, erguendo sua maleta e retirando dela uma das pontiagudas estacas.
As garotas ficaram estarrecidas.
— Preciso cravar isso no coração de Dominique ou a
maldição do vampiro a afetara, fazendo dela um vampiro,
também. Ali vem um táxi. Tomem-no e vão para lá. Irei ter
com vocês assim que terminar — prometeu ele.
Quando elas se afastaram, Hilgenstiller procurou outro
táxi e, algum tempo mais tarde, estava nas proximidades do
suntuoso cemitério.
Caminhou na direção do portão de entrada. As árvores
desfolhadas, o vento frio que soprava, tudo criava um clima
de medo e suspense.
Julgou que encontraria alguma dificuldade para entrar,
mas estranhamente o portão estava aberto. Verificou a fechadura. Havia sido forçada com violência. Um pressentimento o fez se apressar.
A neblina subia lentamente, avançando pelo céu, empanando o brilho da lua. Uma coruja piou como o rasgar de
uma mortalha. Seria difícil localizar o túmulo. Não tinha
ideia onde Dominique poderia ter sido sepultada.
Guiou-se pela suposição, caminhando para o fundo.
Um terreno gramado delimitava o avanço dos túmulos.
Provavelmente os novos estariam em alguma parte, naquela
linha.
Procurou cuidadosamente, aproveitando-se da claridade que gradativamente ia sendo ofuscada pela neblina. Pa-
rou diante de um jazido, finalmente. Podia ler o nome na
placa: Dominique Pinon.
Procurou a provável localização da abertura. Quando
seus dedos tocaram o cimento fresco, um arrepio percorreu
seu corpo.
Não fazia sentido aquilo, a menos que o túmulo tivesse sido violado naquela mesma noite. Abriu sua maleta e
retirou o crucifixo de extremidades cortantes. Não foi difícil remover a laje. Retirou o ataúde. Estava ofegante. Gotas
de suor porejavam de seu rosto, apesar do frio. Uma febre
misteriosa queimava-lhe as entranhas, ao tentar imaginar o
que encontraria ali dentro.
Talvez Drácula tivesse tomado o cuidado de destruir a
maldição que inoculara em Dominique. A maneira como fizera isso poderia ser aterradora.
Abriu os fechos e levantou a tampa. Estremeceu, os
olhos esbugalhados de surpresa e espanto.
O ataúde estava vazio.
***
Fora um péssimo dia de trabalho para Ivy Chanton.
Após outro encontro com o professor, a quem julgava um
louco, tivera nas mãos dois casos simplesmente estarrecedores. Primeiro aqueles caçadores; depois, aquela jovem
assassinada de modo tão brutal.
De Algum modo, responsabilizava o jornal pelo que
acontecia. Aquelas reportagens haviam despertado instintos
inimagináveis nos criminosos da cidade. Possivelmente o
pior ainda estava por vir.
Foi apanhar seu casaco. Estava cansado demais para
pensar em qualquer coisa. Uma boa noite de sono e poderia
precisar com mais calma o que deveria ser feito que se alastrassem como uma epidemia maligna.
— Tenente, um chamado para você. É de Phill!
— Que dia! — resmungou, terminando de vestir o casaco.
Foi apanhar o telefone. Phill era um dos policiais encarregados de vigiar o professor.
— Tenente, o homem sumiu! — informou o outro.
— Como disse?
— Ele sumiu.
— Como isso aconteceu?
— Nós o seguimos até aqui. Depois entramos para nos
certificar, como fazemos todas as noites. O rapaz da portaria nos informou então, que ele havia saído.
— Pois então, trate de encontrá-lo! — ordenou, batendo o telefone.
Não queria pensar em mais nada. Não podia pensar em
mais nada ou explodiria.
***
Hilgenstiller entrou no café e olhou à procura das garotas.
Ninon, preocupada, levantou-se e foi ao seu encontro.
A palidez no rosto dele, aquela expressão muda de terror
em suas faces e o visível cansaço, tudo indicava que aquele
homem estava à beira de um colapso nervoso.
Levou-o para uma das mesas ao fundo. Hilgenstiller
sentou-se pesadamente. A carga estava se tornando pesada
demais para seus ombros. Lutar contra um monstro sobrenatural, imprevisível e inatingível, era uma tarefa árdua,
impossível.
Olhou ao seu redor. Os rostos preocupados de Ninon e
Chamy fizeram-no se lembrar de sua própria filha. Todas
aquelas cenas terríveis, acontecidas no passado, voltaram a
sua mente brutalmente, dilacerando seu coração de pai.
Tinha de continuar. Tinha de exterminar o monstro para que outros não enfrentassem a mesma tragédia por ele
enfrentada. Não podia esmorecer.
O cheiro forte do conhaque que Ninon aproximou de
seus lábios pareceu reanimá-lo. Ele aceitou um gole, depois
outro. O frio que o fazia tremer não era o frio da natureza:
parecia vir de dentro dele, como um ódio mortal e incontido que despertava forças julgadas impossíveis.
— Sente-se melhor agora? — indagou Ninon.
— Sim, estou bem.
— O que houve, professor?
— Eu prefiro que vocês não saibam. Preciso descansar, agora. Há algum hotel por perto?
— Sim, aqui perto mesmo. Não é de luxo, mas...
— Não se preocupe quanto a isso, minha cara. É um
local onde, por certo, a polícia não me procurará. Devem
compreender que isso vai limitar minhas atividades. Vocês
terão de agir por mim. Estão dispostas a isso?
— Tudo que for preciso, professor! — prometeu Ninon.
— Muito bem. Amanhã, pela manhã, quero que vão ao
Departamento de Trânsito. O carro daquele rapaz...
— Brague — lembrou Chamy.
— Sim, é nossa pista inicial. Se algo aconteceu a eles,
devem ter encontrado o carro e levado para lá. Investiguem
isso, Estarei à espera de vocês, tão logo descubram alguma
coisa. Eu me sinto cansado demais...
— Vamos acompanha-lo até o hotel, professor —
prontificou-se Ninon.
Algum tempo mais tarde, num desconfortável quarto
de hotel barato, Hilgenstiller olhava pela janela. Seus pensamentos eram sombrios. Não podia entender o que houvera com o corpo de Dominique.
Drácula vinha tendo cuidado com suas vítimas, impedindo que a maldição se espalhasse. Se ele havia profanado
o túmulo e levado o corpo, Hilgenstiller não conseguia entender o motivo.
Não quis pensar em mais nada. Foi para a cama e se
deitou, desligando o abajur descorado. Na escuridão, rostos
indefinidos lamentavam, pedindo justiça. Ao centro deles,
como um talismã a impulsioná-lo, estava o rosto de Larah,
sua pobre filha.
***
Mal o dia havia raiado, Torg foi à cidade comprar os
jornais pedidos por Drácula. Procurou pela notícia a respeito da jovem que ele atacara e do rapaz que fora morto. Ali
estava, também, o nome e o endereço da garota. Mas, naquele momento, ela se encontrava no hospital.
Procurou alguma coisa a respeito do professor. Ali
mencionava que ele que ele continuava sob suspeita, mas
que as testemunhas a seu favor acabariam por livrá-lo de
qualquer acusação.
Havia uma foto dele, diante de um hotel. Pelo nome
seria fácil localizá-lo. Procurou uma cabine telefônica e
consultou a lista. Anotou o endereço do hotel. Depois certo
de que deveria verificar, ligou para lá.
Informaram-no que Hilgenstiller havia deixado o hotel
na noite anterior e que não sabiam de seu paradeiro. Torg
teria de encontrá-lo, Drácula exigiria isso.
Voltou ao carro. Ia retornar à casa, quando uma garota
que passava chamou-lhe a atenção. Ela lembrava alguém
que ele conhecera, embora não conseguisse precisar quem
fosse.
Dominado pela curiosidade, ele a seguiu. O dia mal
começava e não havia muito movimento nas ruas. A garota
tomou um táxi logo na esquina. Torg seguiu o veículo até
um bairro pobre da cidade.
Viu-a entrar numa pequena casa, com um jardim agora
mal cuidado, mas que aparentava ter sido bem tratado em
outros tempos. Pedras estavam cuidadosamente enfileiradas, formando canteiros, onde arbustos se misturavam às
flores que o outono tornava murchas.
Ficou ali por algum tempo, aquele rosto dançando em
sua mente curiosamente. De repente, seu rosto se iluminou
e ele grunhiu de satisfação.
A semelhança era incrível realmente. Aquela garota se
parecia com a filha daquele maldito professor que perseguia seu mestre.
Lembrava-se claramente agora. Talvez aquilo interessasse Drácula. Afinal, o vampiro estava planejando vingarse do professor. Nada poderia atormentá-lo mais que reviver sofrimentos passados.
Sorriu macabramente. Talvez não tivesse o endereço
do professor para contentar seu mestre, mas isso poderia ficar para mais tarde.
***
Ninon e Chamy deixaram o veículo e rumaram para a
escadaria que as levaria ao prédio do Departamento de
Transito. Com os rostos livres da maquiagem carregada,
pareciam envelhecidas, apesar de seus corpos esculturais.
Caminharam pelos corredores, à procura da seção de
informações. Aguardaram algum tempo na fila, até que
chegasse sua vez.
— Procuramos três amigos que estão desaparecidos.
Saíram com um carro há quase uma semana. Tememos que
tenha se acidentado — disse Ninon.
— Preencha este formulário com os dados do veículo,
se é que se lembra... Use letra de forma, por favor — pediu
o rapaz.
Juntas conseguiram se lembrar dos detalhes solicitados. Passaram o formulário preenchido ao rapaz, que o levou até a sala do computador. Ali, em poucos segundos,
obteve a informação que elas desejavam.
O carro foi recolhido pelo departamento. Está no pátio, atrás do prédio. Um funcionário lhes dará todas as informações a respeito. O seguinte, por favor!
Ninon e Chamy rumaram para os fundos do prédio,
chegando a um pátio enorme, com algumas dezenas de veículos. No intimo, talvez desejassem encontrar o veículo to-
do amassado e receberem a informação de que todos os três
haviam se acidentados.
Esta hipótese, pelo menos seria mais aceitável que aquela outra que incomodava suas mentes e fazia o sobrenatural se tornar algo tão próximo delas que podiam sentirlhes as garras envolvendo-as e enchendo-as de medo.
— Ali está! — apontou Chamy.
Aproximaram-se. O carro estava intacto externamente.
Seu interior, no entanto, demonstrava que havia sido roubado. Todos os acessórios de que Brague se orgulhava haviam sido retirados, inclusive os assuntos.
Um velhote, com uniforme do departamento, se aproximou delas.
— Reconhecem o veículo? — indagou.
— Sim, pertencia a um amigo nosso. Pode nos informar alguma coisa?
— Acho que sei tanto quanto vocês. O carro foi encontrado abandonado nos arredores da cidade, mais precisamente na estrada de Fontainebleu, quilômetro vinte e cinco — disse, após consultar uma papeleta presa ao que restava do volante do carro.
— E quanto a seus ocupantes? — indagou Ninon, temerosa.
— Presume-se que foram assaltados em algum ponto
da cidade e mortos. Os assaltantes livraram-se de seus cor-
pos, depois levaram o carro para lá, retirando tudo que tivesse valor.
CAPÍTULO 4
Quando as garotas chegaram ao hotel. Hilgenstiller estava no saguão, junto à janela, folheando apressadamente
um jornal.
Elas se aproximaram e, ao vê-las, ele abaixou o jornal
e encarou-as interrogativamente.
— Procuramos o carro. Tudo indica que eles foram assaltados, pois o carro estava sem os seus acessórios mais
valiosos. Eu prefiro que tenha sido assim, professor. O que
acha? — indagou Ninon.
— Seria preferível... Estamos na estaca zero, então. Se
ao menos você se lembrasse da placa do carro...
— Que carro? — quis saber Chamy, distraída no momento.
— O carro com o homem que levou Marie e que, mais
tarde, eu vi com aquele corcunda — informou Ninon — Eu
havia anotado o número, mas o passei ao Brague e não consigo me lembrar. O que vamos fazer agora, professor? Eu
sinto que algo trágico aconteceu e Marie. Gostaria de descobrir...
— Isso não vai ser nada fácil — disse o professor,
passando-lhe o jornal.
Havia traçado um círculo ao redor de uma notícia curta sobre um acontecimento policial. Bêbados haviam atacado uma garota e matado seu namorado. Hilgenstiller os vira
na noite anterior na polícia.
— Aqui diz que a garota está no hospital. Não seria
interessante falar com ela, professor? — sugeriu Ninon.
— Se eu conheço certo tenente-detetive da polícia parisiense, estou certo que há um verdadeiro aparato cercando
a garota. Seria muito arriscado eu tentar falar com ela. Na
certa eles estão a minha procura agora.
— Então o que podemos fazer? — indagou Chamy.
— Temos de achar uma pista... Como era o carro que
viu com o corcunda? — quis saber Hilgenstiller.
Ninon descreveu. Era um carro de luxo, fácil de ser
reconhecido. Não deveria haver muitos iguais a ele na cidade, pela descrição de Ninon.
— Talvez alugado... — murmurou Hilgenstiller, erguendo-se e indo apanhar a lista telefônica sobre o balcão
da portaria.
Ao consultá-la, porém, uma expressão de desânimo
estampou-se em suas faces. Era uma longa lista a que tinha
pela frente.
Ninon e Chamy se aproximaram, olhando-o interrogativamente.
— Em que pensou, professor?
— Talvez o carro pertença a uma locadora...
— Ou a um revendedor. Se o vampiro veio para cá há
pouco tempo, não será difícil descobrir, pelas características do carro, não? — opinou Ninon.
— Mas teríamos de consultar todas as locadoras e revendedoras da cidade. Já imaginou quanto tempo isso vai
demorar? — disse o professor.
— Eu e Chamy podemos nos sentar no café do Pierre
e telefonar para todas elas. O que me diz? — indagou Ninon.
— Parece ser a única solução. Vamos gastar um bocado em fichas telefônicas... Isso me faz lembrar de algo. Vou
verificar agora mesmo — disse ele, folheando a lista telefônica até encontrar o que procurava. — Ótimo! Meu banco
tem uma agencia aqui. Preciso solicitar algum dinheiro. Eu
não estava preparado para essa estada forçada aqui... Mas
posso fazer isso mais tarde. Agora creio que devemos começar nossa busca sem mais demora — decidiu.
***
Phill se apresentou constrangido diante do tenente. O
humor do superior não parecia dos melhores, depois da noite atribulada que tivera.
Ivy tamborilou os dedos sobre o tampo da escrivaninha, depois ergueu os olhos para Phill.
— E então? — indagou.
— Nós o perdemos mesmo, tenente. Deixou o hotel e
não pudemos encontrá-lo. O pessoal continua procurando,
mas... Paris é uma cidade grande...
— Desculpas, sargento, não vão resolver. Aquele homem é suspeito de um crime. O superintendente ligou para
mim agora cedo. Quer que acabemos de uma vez por todas
com essa história de vampiro. A chave para tudo é aquele
professor. Temos de encontrá-lo a qualquer custo...
— Mas já não sabemos o que fazer, tenente. Vasculhamos todos os hotéis registrados, mas há aqueles clandestinos, as pensões, as casas que alugam quartos indiscriminadamente...
Ivy abaixou a cabeça e pensou por instantes. Estava
com a pasta do caso Dominique diante de si. Folheou-a distraidamente, enquanto tentava encontrar um meio de encurralar Hilgenstiller.
Parou numa das folhas e ficou observando uma frase
sublinhada no depoimento do diretor do jornal. Phill, diante
dele ainda, mexeu-se com inquietação.
— Sente-se, sargento — ordenou-lhe Ivy, olhando aquela frase no papel, como se ali estivesse a chave para localizar o professor.
Seu rosto se iluminou num sorriso satisfeito. Encarou
o sargento, que aguardou alguma ordem.
— Se você fosse convidado para ir a um país vizinho,
com todas as despesas pagas, o que faria? — indagou Ivy.
— Eu não perderia isso por nada, tenente — apressouse em responder o outro, com um sorriso estúpido nos lábios.
Ivy riu.
— Por isso é apenas sargento, Sr. Phill — disse o tenente.
— Como, senhor?
— Esqueça o que disse... É algo que está aqui — falou
Ivy, apontando o depoimento na pasta. — Hilgenstiller veio
para cá a convite do jornal com todas as despesas pagas. O
jornal cortou-lhe esse privilegio a partir de ontem. É quase
certo, portanto, que Hilgenstiller vai precisar de dinheiro.
Vamos agir junto a todos os bancos que possuem matriz em
Londres. Se ele pedir alguma transferência de dinheiro, nos
o acharemos — explicou o tenente.
O sargento sorriu, compreendendo a brilhante dedução.
***
Anoitecia.
Sentados junto ao telefone, o professor e as garotas
davam mostras de desânimo e extremo cansaço. Haviam
passado todo o dia tentando localizar algum carro semelhante àquele descrito por elas.
— Descontando as agencias que não quiseram informar, por razões de sigilo, temos aqui o nome e o endereço
de dez proprietários de carros como aquele. São todos nomes franceses e endereços aqui da cidade. O que temos a
fazer é falar com um deles...
— Ou então ir aos endereços, o que acho mais prudente. Poderíamos vigiar o carro, até ver seu motorista... —
sugeriu Ninon.
— Sim, mas isso vai nos tomar muito tempo... Se
houvesse outro meio mais rápido...
— Acho que é o único meio, professor. Se ligarmos
para os endereços, formos atendidos pelo corcunda ou...
Pelo vampiro... Na certa vão mentir — lembrou Ninon.
— Você está certa quanto a isso. Sugiro uma refeição
antes dessa tarefa. Estão dispostas a começar hoje mesmo?
— Pode contar conosco — respondeu Chamy, com a
aprovação de Ninon.
***
Torg trouxe o jornal e o entregou na mão de Drácula.
O vampiro o folheou rapidamente depois o deixou de lado.
— E quanto ao professor, descobriu alguma coisa?
— Não, mestre. Ele deixou o hotel e não souberam dizer para onde foi... — informou, mas a expressão de seu
rosto dava a entender que tinha algo mais a dizer.
— Continue! — ordenou o vampiro.
— Mestre, hoje pela manhã quando fui comprar o jornal, vi algo que julguei poder interessá-lo, já que percebo
sua intenção em livrar-se daquele inimigo...
Os olhos de Drácula brilharam acentuadamente. Ele
fez um gesto de mão, animando o corcunda a continuar.
— Vi uma garota, mestre, muito parecida com a filha
do professor. Lembra-se dela?
O vampiro sorriu, acenando afirmativamente com a
cabeça.
— Eu a segui, tenho seu endereço.
— É realmente parecida com a filha dele?
— Sim, eu mesmo fiquei surpreso.
— Gostaria de vê-la. Isso me desperta pensamentos
diabólicos a respeito daquele homem. Se ele desapareceu,
há um meio de fazê-lo aparecer, se a garota for realmente
semelhante à filha que ele perdeu por minha causa.
— É uma pequena casa, em Patin. Anotei o endereço
aqui no jornal — disse, mostrando-o.
— Eu a visitarei esta noite. Prepare a casa, Torg. Talvez tenhamos uma hóspede. Além disso, quero que consiga
uma câmara fotográfica ainda está noite. Vamos dar ao
Prof. Hilgenstiller uma surpresa de que jamais se esquecerá.
Torg, apesar de não haver entendido, aprovou. Drácula ergueu-se, a figura horrenda caminhou até a janela. Por
instantes brilhou intensamente, depois deu lugar à sombra
negra e aterrorizante do enorme morcego, voando em busca
da noite.
O corcunda olhou, ao redor. Precisava limpar a poeira
da casa e prepará-la. Não conseguia entender o que Drácula
quisera dizer quanto à hospede.
Antes, porém, tinha de providenciar a câmara fotográfica. Não fazia sentido a ordem, mas não havia outra coisa
a fazer senão cumpri-la.
***
Michelle Ferrot abriu os olhos e ficou olhando demoradamente a figura sorridente e bondosa do medico que se
sentará à beira do leito.
Aquela expressão de terror ainda marcava o rosto dela.
A cena de violência que vivera possivelmente jamais se apagaria de seu rosto.
Lembrou-se de Victor, seu namorado e seus olhos se
moveram com inquietação.
— Sente-se melhor agora? — indagou o médico, tomando-lhe o pulso.
Michelle encolheu-se toda, fugindo ao gesto, como se
ele a fizesse lembrar algo aterrorizante. O médico compreendeu e procurou transmitir confiança.
— Está tudo bem agora, Michelle. Só queria sentir-lhe
o pulso...
A garota baixou os olhos, olhando seu braço. Parecia
sentir ainda a pressão dolorosa daquelas garras frias que a
haviam magoado.
— Onde está Victor?
— Victor está bem... Nossa preocupação é você apenas — descartou.
— Quero vê-lo... E minha família, onde está?
— Estão todos lá fora. Muita gente quer ver você, mas
tem que me provar que está bem...
Ela o encarou pateticamente.
— O que houve doutor? Quem era aquele homem...
— Depois você fala sobre isso. Agora me deixe examiná-la — insistiu, estendendo gentilmente a mão e segurando-lhe o pulso.
Uma careta de dor desenhou-se no rosto dela. O médico afastou a manga da camisola e olhou a mancha arroxeada da contusão. A altura do pulsa, Michelle levara com toda certeza uma pancada violenta para que se produzisse aquele resultado.
— Foi aí que ele segurou, doutor... Ele tinha os dedos
frios como o gelo... Seus olhos brilhavam... E aquelas presas enormes... — disse, num sopro de voz angustiado, cobrindo o rosto.
O médico ficou olhando-a, sem entender o que ela
queria dizer realmente. Não podia estar delirando. Os remédios que lhe prescrevera eram calmantes apenas.
Michelle descobriu lentamente o rosto.
— Quero ver minha família... E Victor também...
— Você os verá, mas antes...
— Quero vê-los agora.
— Compreenda, Michelle. Sei como isso é importante
para você, mas o que passou foi registrado e está sendo apurado agora. Um policial está aí fora. Você terá de vê-lo
antes de falar com alguém de sua família. Concorda? — indagou ele, preparando uma injeção.
Ela olhou desconfiada para a seringa.
— Para que isso?
— Apenas mais um calmante. É tudo de que precisa.
Você me parece bem, talvez a mande para casa muito antes
do que possam imaginar.
Ela sorriu debilmente, enquanto ele se aproximava
com a injeção. Seu rosto jovem crispou-se por instantes
quando ele a espetou. Depois, uma sensação de paz foi invadindo seu corpo gradativamente, fazendo-a relaxar confortavelmente.
— Tudo bem agora? — sorriu o médico, examinandolhe novamente o pulso.
As palavras dela faziam sentido. Aquelas marcas poderiam ter sido provocadas pela pressão de dedos fortes,
muito fortes. Sentiu-se curioso. Como a maioria dos parisienses, lera a respeito do vampiro.
Estaria Michelle influenciada também? E a história
narrada pelo policial lá fora, teria sentido? O que se passara
com Michelle e o namorado?
— Você disse que ele a segurou pelo pulso...
— Sim... E tinha as mãos frias... Eu me lembro de seu
hálito... Cheirava a carniça, doutor! Não vi seu rosto... Ele
me puxou com violência... Agora posso ver minha família?
— Depois que falar com o policial — afirmou o médico. — Posso ir chamá-lo?
— Sim, depressa, por favor!
O médico olhou-a por instantes, certificando-se de que
ela estava bem, depois deixou a sala. No corredor, procurou
pelo policial que iria falar com a garota.
Não o vendo saiu a sua procura. Enquanto isso, no
quarto, Michelle alisava vaidosamente os cabelos. Tudo o
que se passara parecia agora um sonho mau, amenizado pela expectativa de rever a família e o namorado.
Subitamente, sua atenção foi desviada para a janela.
Um arrepio percorreu seu corpo e ela sentiu a mesma sensação de extremo pavor que a assaltara na noite anterior,
quando aquele monstro a arrancara do carro com violência.
Ficou olhando para a janela, sem saber de onde vinha
aquele pressentimento horrível. Estremeceu e lágrimas bro-
taram em seus olhos ao ver, repentinamente, aqueles olhos
chamejantes fitando-a como uma maldição implacável.
Encolheu-se no leito, o coração aos saltos, algo amargo e sufocante travando-lhe a respiração e retendo o grito
de socorro que desejava lançar.
Os olhos vermelhos se aproximaram do vidro e um
rosto pálido e assustador fitou-a demoradamente.
— Não! — murmurou, num fio de voz, enquanto lágrimas deslizavam por suas faces.
Aqueles olhos continuaram fitando-a, injetados e ameaçadores, sugerindo, hipnotizando, ordenando,
— Não, Deus! Não! — repetiu ela, a voz embargada, o
corpo trêmulo, as faces pálidas.
Sem que pudesse evitar, seu corpo deslizou para fora
do leito e cambaleou até a janela, abrindo-a. A brisa fria do
outono bateu em seu rosto, agitando seus cabelos.
O ruído dos carros lá embaixo, na rua chegou a seus
ouvidos, mas não a incomodavam tanto quanto aquela respiração animalesca e ofegante que vinha daquela figura sinistra, pairando diante de si, na janela do oitavo andar do
hospital.
A mão ameaçadora se estendeu para ela. Michelle tentou impedir a sua de ir ao encontro dela, mas não pôde. Havia uma ordem brutal e violenta imperando sobre sua vontade.
A garra se fechou, então, sobre sua mão em num puxão violento. Drácula a atirou no espaço, rumo à morte.
Riu sadicamente, vendo o corpo se espatifar no asfalto.
CAPÍTULO 5
Torg girou a câmara em suas mãos, tentando imaginar
o que Drácula pretendia. Pelo que podia deduzir, a imagem
do vampiro jamais sensibilizaria filme algum. Drácula era
como uma sombra viva, transparente na essência, apesar de
aparentemente no físico como qualquer outro ser humano.
Foi depositá-la, depois sobre a cornija da lareira. A
noite estava fria e decidiu acendê-la. Após fazê-lo, foi puxar uma poltrona para perto do fogo. Mal havia se sentado,
lembrou-se da ordem que recebera.
Quem seria a misteriosa hóspede que Drácula pretendia receber? Ergueu-se e foi procurar, em algum canto da
casa, material de limpeza.
Encontrou uma velha vassoura e um trapo imundo.
Disfarçou a sujeira reinante na sala, varrendo a poeira e alguns detritos para debaixo dos moveis. Depois espanou
sem muita vontade o pó que se acumulava em toda parte
dos objetos.
A casa era enorme. Talvez Drácula desejasse que um
dos quartos fosse preparado. Deixou a sala, atravessou outras, até a escadaria que o levaria ao pavimento superior.
Pouco depois caminhava pelo corredor escuro, escolhendo um quarto para ser preparado. Optou pelo último, de
frente para o corredor, pouco iluminado durante o dia, com
janelas para os fundos.
Empurrou a porta e procurou o interruptor. A luz banhou o aposento empoeirado, com panos imundos cobrindo
a enorme cama. Retirou-os. O colchão estava enrolado. Alguns ratos e insetos fugiram assustados. Torg estendeu o
colchão. Teria de providenciar lençóis e travesseiros, mas
já não havia mais tempo para isso.
Ouviu ruídos vindos de alguma parte. Julgou que Drácula houvesse retornado e saiu para o corredor. Os ruídos
vinham do alto, como se alguém forçasse uma porta.
Foi andando, tentando localizar com exatidão de onde
provinha o barulho. Estacou diante da estreita escada que
conduzia ao sótão. Não teve dúvidas de que o ruído vinha
dali.
Subiu lentamente. Alguém forçava a porta, tentando
abri-la, girando a maçaneta com impaciência, puxando-a,
fazendo estalar a madeira dos batentes.
O corcunda fechou a mão e esmurrou com força a porta e tudo ficou em silêncio do outro lado. Ele colou o ouvido à madeira, procurando ouvir alguma coisa do outro lado.
A madeira maciça nada deixava escapar.
Torg bateu novamente contra a porta, esperando alguma resposta. Tudo continuava em silêncio. Ele se lem-
brou de que trazia a chave consigo. Retirou a do bolso e introduziu-a na fechadura. Antes de girá-la, voltou a bater repetidas vezes.
Não obtendo nenhuma resposta, girou a chave e empurrou a porta. Quando tentava perceber alguma coisa na
escuridão, um vulto descabelado se atirou sobre ele, rosnando ferozmente, as mãos como garras rasgando-lhe as
carnes.
— Maldita! — berrou Torg, rolando escada abaixo, os
braços diante do rosto, tentando proteger-se da fera que o
atacava.
O vulto caiu sobre ele, grunhindo e fungando, as unhas lanhando-lhe os braços numa fúria homicida.
Torg agarrou-a pelos cabelos e girou-a, jogando-a para
longe de si. Pôs-se de pé, alucinado pela dor e pelo medo,
recompondo-se do susto e da agressão.
Diante dele, os olhos cercados por olheiras profundas,
os lábios entreabertos e brilhantes de uma gosma nojenta,
longas presas cobrindo o lábio inferior, estava Dominique
Pinon, dominada pela maldição, contaminada pelo vampirismo.
Precisava de sangue, não importava como. Via em
Torg seu alimento, sua vida, sua subsistência. Irracional
como um animal, apenas podia perceber o vermelho do
sangue que escorria dos braços dele, experimentando uma
volúpia macabra ao aspirar pesadamente aquele cheiro
promissor.
— Afaste-se, maldita! — rosnou Torg, os dentes brilhando na boca, as mãos se fechando ameaçadoramente.
Dominique era, agora, incapaz de compreender qualquer tipo de ordem e, o que era pior para Torg, temer qualquer coisa.
Guiava-se por instintos malignos que a maldição inoculara em seu corpo. O desejo de sangue e destruição a fizera se aproximar dele gradativamente, em arrancos e rosnados, como fera que prepara o bote sobre a presa.
Torg recuava a cada investida, incapaz de enfrentá-la
diretamente. Sabia o que tinha diante de si. Sabia o que teria de fazer, também. Se Drácula a encontrasse livre, Torg
pagaria caro pela tolice cometida.
Ela urrou, a boca arreganhada, os olhos chamejantes,
as presas ansiosas para rasgarem as carnes do corcunda e se
banharem em seu sangue.
Ele a esmurrou com toda sua força descomunal, fazendo-a retroceder um passo para investir novamente. O
corcunda se engalfinhou com ela, segurando-a pelos cabelos, tentando manter aqueles dentes longe de seu rosto.
A força do vampiro era descomunal, redobrada pela
necessidade de sangue. Torg entendeu que sucumbiria se
não agisse com presteza.
Girou o corpo com força, jogando-a contra uma parede, depois correu para o quarto. Ela o seguiu imediatamente. Torg agarrou dois castiçais, cruzando-os diante do vampiro, formando uma cruz.
O corpo da mulher se abalou e um grito desumano escapou de seus lábios. Ela cobriu os olhos e recuou. Torg a
seguiu, tentando guiá-la de volta ao sótão.
Quando conseguiu encurralá-la na escada, um sorriso
de satisfação estampou-se em seus lábios. Ela correu escada acima, indo se refugiar num canto do aposento escuro.
Torg fechou a porta e girou a chave. Depois deixou
cair os castiçais. A dor em seus braços era terrível. O sangue empapava sua camisa. Um ódio mortal explodiu em seu
coração, fazendo-o desejar destruir aquela que o atacara.
Ia abrir a porta, após apanhar os castiçais, mas estacou. Drácula lhe ordenara que trouxesse aquela mulher. Na
certa tinha alguma ideia maligna em mente. Frustrá-la seria
irritá-lo perigosamente.
Desceu as escadas e se sentou no último degrau. Examinou os ferimentos nos braços. As unhas daquela fera haviam lanhado profundamente suas carnes. Ergueu-se e caminhou decidido. Sabia o que fazer para curá-las.
***
Genny terminou de se pintar, depois se examinou ao
espelho. Mais uma noite pela frente. O trabalho já não a incomodava. Dia a dia, resignava-se com seu destino. Seus
sonhos frustrados iam ficando para trás.
Embrutecia-se naquela vida, mas nada a incomodava
tanto quanto a solidão. Desde que o irmão morrera, tudo se
tornava sem atrativos e não havia mais importância em nada.
A solidão pesava, porém. Sabia que esse detalhe seria
fácil de resolver. Bastaria aceitar todos os convites que
choviam após suas apresentações na boate. Um número
sem conta de homens a via todas as noites e a desejava. Poderia ter todo o tipo de companhia que desejasse.
Era difícil, porém, acostumar-se à ideia. Vinha do interior, tivera uma rigorosa educação. Sabia que, cedo ou
tarde, Paris se encarregaria de mudá-la, mas, talvez, ainda
fosse muito cedo.
Ergueu-se, a malha colante ressaltando os contornos
perfeitos e tentadores de seu corpo jovem e provocante.
Rodopiou diante do espelho, ensaiando um passo de
sua dança, jogando com os quadris para os lados antes de
golpeá-los para frente e para trás, numa sugestão erótica.
Seus olhos pousaram sobre a fotografia de Aimê, o
irmão falecido. Ela ficou imóvel. Lentamente sua cabeça
baixou, como que demonstrando arrependimento.
Aimê se fora. Talvez parte da culpa existisse no coração dela. Se não tivesse desejado vir para aquela cidade
grande, nada teria acontecido para ele.
Mas era tarde para lamentações ou sentimento de culpa. A realidade era uma noite após outra, chamando-a e obrigando-a a sobreviver.
De repente, um ruído leve, como de garras arranhando
madeira, veio de alguma parte da casa. Genny prestou atenção a ele. Parecia vir da porta dos fundos.
Deixou seu quarto e foi até a cozinha. O ruído vinha
dali realmente. Garras arranhavam a madeira da porta. Ela
se aproximou, soltou o trinco de segurança e girou a chave.
Abriu lentamente a porta.
O gato ronronou, entrando lepidamente e indo se esfregar carinhosamente em suas pernas. Genny sorriu, fechou a porta, depois segurou o animal em seus braços, apertando-o contra o peito.
— Cherry, onde andou o dia todo? Deve estar faminta,
minha gatinha — disse, enquanto o bichano ronronava, esfregando a cabeça contra o pescoço da garota.
Ela foi até a geladeira, abriu-a e apanhou a vasilha
com leite. Depois depositou um pires no chão, derramando
leite dentro dele.
Soltou o animal que se apressou em saciar sua fome.
Genny se ajoelhou junto à gata, acariciando o pelo sedoso.
— Arranjou algum namorado hoje? Você é muito namoradeira, minha gatinha. Precisa tomar jeito... Ou, então,
precisa me ensinar todos os seus truques. Você faz tudo parecer tão fácil e divertido... Você me tanta Cherry. O que
acha de formamos uma dupla explosiva?
A gata terminou de tomar o leite e levantou a cabeça
para a dona, como que a pedir mais. Genny sorriu, compreendendo, e voltou a encher o pires.
Acariciou o animal e se dispôs a retornar ao quarto e
terminar de se vestir. A gata miou furiosamente assustando
Genny, que se voltou para olhá-la.
Os pelos do animal estavam eriçados, seus olhos miúdos brilhavam e sua boca aberta parecia preste a enfrentar
algum inimigo oculto.
— O que foi, Cherry? Que susto você me deu — falou
Genny, ajoelhando e tomando a gata em seus braços.
Pôde sentir o bater descompassado e furioso do coração do animal, que mantinha os pelos e a boca aberta ameaçadoramente.
Algo instintivo fez a garota levantar o rosto para a janela da cozinha. Encolheu-se, arrepiada, julgando ter visto
ali um rosto.
Teria sido apenas uma impressão? Não quis se certificar e correu puxar a cortina. Era uma garota sozinha e tentadora. Sua fragilidade poderia atrair a cobiça de algum
maníaco.
Pensando nisso, Genny soltou a gata e caminhou rapidamente de volta ao quarto. Seu animal de estimação a seguiu, enroscando-se em suas pernas, enquanto ela parava
diante de um móvel, examinava a arma de Aimê.
Era uma velha pistola automática, mas em perfeito estado, funcionando adequadamente. Genny empunhou-a.
Não ouviu nada atrás de si, mas seu corpo se enrijeceu e a
respiração pareceu lhe faltar.
A sensação de estar acompanhada a fez morder os lábios, num gesto de desespero. Apertou a pistola. Seu polegar tocou o gatilho. Engoliu seco.
Havia alguém atrás dela. Essa certeza a sufocava. O
gatilho estalou. Ela sabia que teria de se voltar para confirmar aquela sensação. O temor se tornou maior ao compreender que poderia ser real o que a assustava.
Podia ouvir, agora, claramente, uma respiração pesada, ofegante, como de fera esfomeada. Lutou contra o terror
que se apossava de seu corpo e punha pânico em sua mente,
mas estava acima de suas forças.
Baixou os olhos para a arma que apertava nas mãos.
Ela deveria inspirar confiança e proteção, mas isso não acontecia.
Voltou-se, então, bruscamente, e encarou o que a aterrorizava. Por instantes, o impacto da força daquele olhar
embrutecido e animalesco a pôs à beira da loucura.
Depois, como se algo acima de sua vontade a dominasse, baixou os braços e encarou com passividade o homem diante de si. Viu-o sorrir levemente, os lábios grossos
ganhando um ar selvagem e obsceno.
Ele se aproximou, olhando-a com interesse. Genny estava apavorada diante daquele exame, mas algo dentro dela
gritava que não podia fazer nada, que não possuía mais
vontade própria, que se escravizara de um momento para
outro.
— Interessante — rosnou o homem sinistro.
Sua mão se ergueu, tocando os cabelos de Genny, soltando-os do coque que os prendia ao alto da cabeça. Ela estremeceu, mas nada fez. Seus cabelos cascatearam sobre
seus ombros, levemente ondulados nas pontas.
Drácula se afastou um pouco para observar detidamente. Sua testa vincada indicava que algo o desagradava.
Ela se aproximou novamente. Genny tremia de pavor, sem
compreender o que passava, afinal.
Ele ergueu uma das mãos, frias como o gelo, e tocou o
rosto da garota. Os dedos pálidos se tingiram no vermelho
da maquilagem que cobria a face dela. Drácula sorriu levemente. Depois, quase com violência, esfregou as mão pelo rosto dela, limpando-o daquela mascara de cosméticos.
Pareceu satisfeito com o resultado. Examinou de um
lado e de outro o perfil da garota. Sorriu ao observar os
seios rijos e arredondados, praticamente à mostra sob a malha semitransparente.
Depois, com um sorriso malicioso, examinou-lhe as
nádegas roliças e o triângulo sedoso do ventre. Seu olhar
brilhou mais forte. Sua respiração se tornou pesada. Seu
corpo roçou o dela. Seu hálito lambeu-lhe o pescoço.
Genny arregalou os olhos, desejando vencer aquela
mórbida entrega, mas tudo estava acima de suas forças. Os
lábios grossos e úmidos resvalaram pelo pescoço da garota.
As presas rebrilharam, pousando sobre a pele alva e macia.
Lentamente elas pressionaram, rompendo, rasgando,
fazendo sangrar.
***
Hilgenstiller desembrulhou lentamente o papel laminado, abaixando suas pontas. Depois levou o sanduíche aos
lábios e mordeu-o prazerosamente. Estava faminto, assim
como as garotas.
— Experimente isso, professor! — disse Ninon, passando-lhe uma pequena garrafa de refrigerante.
— Muito bom! — comentou o professor em seguida.
Comeram em silêncio. Às vezes seus olhos se levantavam para observar a garagem da casa no outro lado da rua.
À passagem de um carro, sobressaltaram-se.
O trabalho que a principio pareceu tão difícil, se mostrara muito fácil. Haviam investigado os proprietários e locadores de nove dos carros semelhantes àquele que fora
descrito pelas garotas.
Nenhum deles tinha alguma coisa a ver com Drácula.
Restava apenas um, mas o desanimo tomava conta de todos
os três.
Hilgenstiller terminou seu sanduíche. Ninon lhe estendeu outro. O professor recusou com um gesto agradecido.
— Acho que estamos perdendo nosso tempo, garotas!
— disse ele.
— Temos de tentar, não? — respondeu Ninon.
— Já verificamos nove deles. Este não me parece suspeito também. Está na garagem desde que chegamos...
— Mas não há luz na casa. Não acha isso estranho? —
indagou Chamy.
Ninon terminou seu sanduíche, amassou o papel laminado e foi atirá-lo no cesto de lixo perto a casa. Retornou.
Olhou com impaciência a casa. Parecia ter alguma ideia em
mente. Acendeu um cigarro, depois parou diante do professor, jogando o cigarro fora.
— Eu vou até lá. Não suporto mais esperar — desabafou.
— Você não pode fazer isso. Pode ser perigoso...
— Acho que é a única maneira de acabar com essa
dúvida. Vou até lá. Bato na porta. Se for o vampiro, eu o
reconhecerei e darei uma desculpa qualquer. Se não for, agirei da mesma forma.
— Eu tremo só de pensar em encarar aquele sujeito de
novo, sabendo que ele é um vampiro — disse Chamy, amedrontada.
— Pois eu quero acabar logo com isso — afirmou Ninon.
CAPÍTULO 6
Ninon caminhou alguns passos pela rua. O professor
avançou, alcançando-a e a segurando pelo braço. Olhou-a
nos olhos, com seriedade.
— Pode não ser tão simples assim, Ninon.
— Não há outra maneira, professor...
— Se está disposta a ir, é melhor se proteger com isto
— disse ele, passando-lhe um crucifixo.
A garota esboçou um sorriso agradecido e dispensou,
mostrando seu próprio crucifixo. Hilgenstiller aprovou com
um aceno de cabeça. Ninon atravessou a rua.
Aproximou-se do portão. Podia ver o carro na obscuridade da garagem. Olhou a placa. Vira tantos números naquele dia que tudo se tornava confuso em sua mente. Queria lembrar-se daquele que anotara e que confirmaria todas
as suspeitas, facilitando a busca, mas era impossível.
Examinou as janelas da casa. Tudo estava às escuras.
Percebeu que não era tão corajosa como quisera parecer.
Chamy e o professor, do outro lado da rua, observavam-na.
Respirou fundo, tentando se controlar. Empurrou o
portão, que rangeu tetricamente. Avançou lentamente pela
calçada de cacos de cerâmica. Havia uma campainha na
porta.
Estendeu a mão para tocá-la. Estava trêmula e hesitante. O que faria se visse o corcunda ou aquele homem misterioso diante de si? Talvez se traísse e acabasse estragando
tudo.
O som musical da campainha, ecoando pela casa, em
nada lembrava o terror que se abaterá sobre a cidade. Tudo
continuou em silêncio, depois. Ninon insistiu, nervosamente, pressionando o botão repetidas vezes.
Uma luz se acendeu na sala e um rosto de mulher se
mostrou por instantes. Depois os passos se aproximaram da
porta.
— Quem é? — indagou a voz feminina.
— Eu... Eu gostaria de uma informação... Sim, uma informação — gaguejou Ninon.
A porta se abriu parcialmente, presa ao batente por
uma corrente de segurança. Uma garota, ainda muito jovem, encarou Ninon.
— Que informação?
— É a respeito do carro... Aquele carro na garagem...
É seu?
— Não, pertence ao meu noivo... Quero dizer, meu
marido. Ainda não me acostumei com a ideia. Nós nos casamos hoje — explicou a garota, com um sorriso convincente nos lábios.
— Eu... Bem... Acho que me enganei... Eu sinto ter atrapalhado... — foi se desculpando, à medida que recuava.
A jovem senhora à porta ficou olhando, intrigada, por
alguns instantes, depois deu de ombros, fechou a porta e
desligou a luz.
Ninon foi ao encontro dos amigos.
— Imaginem! Um casal em lua de mel... E eu... Puxa,
eu me sinto tão ridícula... — balbuciou.
Hilgenstiller e Chamy se entreolharam, desanimados.
Tudo fora inútil. Em algum ponto da cidade, ileso e inatingível, o vampiro talvez zombasse de tudo e de todos.
— O que vamos fazer agora? — indagou Chamy.
— Não sei... Acho que precisamos de uma refeição
decente... Depois, verificaremos o que se pode fazer. Deve
haver um meio de localizá-lo. Na certa algumas das locadoras que deixaram de prestar a informação tenha a resposta.
— Acha que podemos insistir? — quis saber Ninon.
— Se soubéssemos em qual delas procurar... Mas é
melhor descansarmos por hoje. Já fizemos demais. Ainda
querem continuar? — indagou ele.
As duas confirmaram com movimentos de cabeça.
***
Torg caminhou pela sala, observando os resultados da
limpeza. Não sabia até que ponto Drácula iria levar aquilo.
Quando se voltou, o vampiro, com um sorriso satisfeito nos
lábios carnudos, o observava.
— Fiz o que mandou, mestre — apressou-se em dizer
o corcunda.
— De que está falando? — ironizou Drácula.
— Limpei a casa... Preparei um quarto...
A gargalhada zombeteira explodiu entre as paredes da
casa, ecoando sinistramente pelos corredores sombrios.
Drácula caminhou até a lareira. Observou a câmara fotográfica sobre a cornija. Esfregou o indicador de uma das mãos
sobre a pedra.
— Chama isso de limpeza? Imundo Torg. Tudo está
imundo, nojento, indigno de receber a flor que está para
chegar...
Os olhos do corcunda revelaram surpresa. Drácula foi
se soltar sobre uma das poltronas. Esfregou uma das mãos
nos lábios, como se ainda sentisse neles um resto de sangue.
— Lembra-se da garota que disse ter encontrado e que
se parecia com a filha de Hilgenstiller?
— Sim, mestre.
— Vá buscá-la... Apanhe o carro e vá buscá-la! — ordenou o vampiro.
Por instantes o corcunda ainda o olhou sem entender.
Havia qualquer coisa de maligno e cruel nos olhos de Drá-
cula. Depois abaixou a cabeça e tratou de cumprir a ordem
recebida.
Momentos depois estava a caminho. Lembrava-se do
endereço. Não foi difícil chegar à casa novamente. Havia
luzes acesas. Observou a vizinhança, depois atravessou o
portão e foi olhar por uma das janelas.
Tudo estava em silêncio. Experimentou a porta da
frente. Estava trancada. Contornou a construção, indo forçar a porta dos fundos, que cedeu facilmente a sua força
descomunal.
Entrou lentamente, observando os cômodos. Viu a garota finalmente, no quarto, o corpo coberto pela malha cor
da pele, parecendo nu.
Aproximou-se. A ferida no pescoço sangrava lentamente, o que indicava que Drácula não a matara. Estranhou
aquilo. Que artimanha estaria o vampiro tramando.
A garota se ergueu lentamente, parecendo hipnotizada.
Seus olhos demonstravam calma, mas, ao fitarem o corcunda, alteram-se, revelando uma alegria incontida.
Torg estranhou aquele comportamento. A garota sorria, agora, com infinita ternura, como se visse nele a presença de algo muito querido.
Passo a passo ela se aproximou do corcunda. Suas
mãos finas e delicadas se ergueram, acariciando-lhe os cabelos e depois o rosto.
Torg estremeceu. Não conseguia entender o que ela
via nele. A sensação era intensa, agradável. Não havia repulsa nos atos dela, mas carinho, ternura, amor, coisas que
Torg a muito não experimentava.
Olhou ao seu redor. Viu roupas num armário. Precisava vesti-la adequadamente. Tinha de se apressar em cumprir as ordens de Drácula.
— Aimê! — murmurou a jovem, estreitando o corpanzil deformado entre seus braços.
A proximidade daquelas carnes quentes e macias, o
perfume sutil e embriagador, as carícias ternas com que ela
o brindava, tudo isso confundiu o corcunda.
Suas mãos grossas e ásperas subiram pelo corpo dela,
acariciando os cabelos sedosos as faces frescas e perfumadas, os lábios sensuais e bem delineados.
Uma volúpia intensa dominou-o e ele a apertou em
seus braços, gozando, trêmulo e confuso, aquele contato.
Ela sorriu então, beijou-o nas faces, depois se afastou
dele lentamente, sempre o olhando com aquela ternura que
tocava o coração embrutecido de Torg.
Foi se vestir, como se soubesse o que deveria fazer.
Torg acompanhou alucinado cada um dos movimentos dela. Quando terminou, ela foi até o espelho, alisou os cabelos com as mãos e depois se voltou para ele.
A semelhança, agora, era incrível. Se Hilgenstiller a
visse, certamente juraria que a filha estava ali, viva de novo, diante dele.
Genny tomou, então, uma das mãos de Torg e juntos
deixaram a casa, como um par inseparável. Ele a acomodou
no carro, depois foi tomar seu lugar ao volante.
Estava trêmulo de emoção ainda e, quando ela repousou a cabeça contra seu ombro, Torg se sentiu o mais feliz
dos homens.
***
Ivy Chanton terminou a xícara de café, depois acendeu
um cigarro.
Diante dele, igualmente, pensativos, estavam seus subordinados de confiança. Estavam todos cansados e igualmente confusos, após todos os acontecimentos.
O tenente-detetive parecia desanimado, mas, acima
disso, irritado. Não haviam localizado Hilgenstiller e isso
era importante ser feito. A pressão superior havia começado. Todos queriam uma breve solução para o caso de Dominique Pinon.
Como se tudo isso não bastasse, havia também a garota que se suicidara, atirando-se da janela do oitavo andar do
hospital.
O médico estava atônito, Ivy estava atônito. Todos estavam atônitos. Ninguém conseguiu compreender o que fizera a garota cometer um ato tão extremado.
Segundo o médico que a atendera, ela estava bem, lúcida e calma. Por que abrira a janela e se atirara, ninguém
conseguia responder.
— As buscas vão continuar. Precisamos encontrar
Hilgenstiller. A vigilância nos bancos não deu resultados.
Já entrei em contato com as saídas do país. Todos estão de
olho, ele não conseguira voltar à Inglaterra sem ser descoberto.
— Acha que ele ainda está em Paris? — indagou alguém.
— Com toda certeza. Como se não bastassem todos os
malandros criminosos de Paris, tinha de nos aparecer um
professor maluco com uma história sobrenatural para complicar tudo.
A porta do gabinete se abriu e um policial entrou, entregando uma pasta ao policial. Ivy a abriu. Era o exame
sumário do cadáver de Michelle Ferrot, a garota que se suicidara.
Leu atentamente, dominando sua irritação. Intimamente, qualquer coisa entrava em contradição. Tudo estava se
tornando muito misterioso, sem respostas, sem sentido, sem
lógica.
A sombra de algo acima da compreensão pairava em
seu espírito. Acreditar em todo o mistério e em todo o terror defendidos por Hilgenstiller pareciam ser a única maneira de explicar aqueles estranhos acontecimentos.
Fechou a pasta e passou-a a um dos homens.
— O que acham dos vampiros? — indagou.
Os outros se entreolharam, indecisos na resposta que
deveriam dar. Haviam percebido que o superior era insensível a tudo aquilo. O tom da pergunta, porém, revelava
certa predisposição do tenente a ceder diante dos argumentos que se acumulavam.
— Falei com aqueles caçadores hoje, tenente. Eles
confirmaram tudo outra vez. Viram um homem semelhante
àquele que apareceu no jornal. Juram que o viram se transformar num morcego. Dois deles estão sob cuidados médicos, abalados...
— Ou com ressaca — completou o tenente.
— Abalados realmente, tenente. Estivemos no local.
Vimos onde os disparos atingiram. Todas as cargas se cravaram numa árvore, como se todos eles houvessem apontado para o mesmo ponto. Encontramos uma pistola automática, ainda engatilhada. Não pertencia a nenhum deles. O
coldre estava no porta-luvas do carro do jovem. Ele saiu
com a arma. Ela estava engatilhada. Por que não foi disparada? Há muita coisa sem resposta, tenente. O rapaz tinha
algumas marcas no pescoço...
— Foi o que li agora, na pasta que está com Phill ali.
As marcas no pescoço dele são semelhantes às que estavam
no pulso da garota, como se tivessem sido produzidas pela
mesma mão...
— Mão, tenente? — indagou alguém.
— Acho que garras seria o termo mais exato — afirmou o policial, já não sabendo mais em que acreditar.
***
Torg estacionou o carro na garagem, desligou os faróis e ficou imóvel, sentindo o peso suave da cabeça da garota contra seu ombro e o toque macio das mãos dela sobre
seu braço.
Após tanto tempo sentindo-se como um animal diante
do mundo, recebendo olhares de zombaria e desprezo, era
bom experimentar de novo uma sensação tão gratificante e
tão comovente.
Virou-se para ela, que levantou os olhos e encarou-o.
Sua mão fina e delicada se ergueu, tocando os cabelos dele,
acariciando-os. Lágrimas brotaram nos olhos do corcunda,
que a beijou na testa e estreitou-a em seus braços.
Ela estremeceu, então, como se algo a houvesse assustado. Torg tentou retê-la em seus braços, desejando prolongar aquela sensação gratificante.
— Fique! — suplicou pateticamente.
Ela abriu a porta e desceu. Torg se apressou em fazer
o mesmo. Quando contornou o veículo para encontrar-se
com ela, a figura magra e sinistra de Drácula se interpôs entre os dois.
Torg estacou, na defensiva, fitando os olhos zombeteiros do vampiro. Drácula riu inicialmente, depois gargalhou,
fitando alternadamente o rosto patético do corcunda e o
impassível da garota.
Em seguida, num gesto de desprezo, virou as costas
para ele e se aproximou da garota. Ela o olhava fascinada,
magnetizada.
— Essa semelhança é providencial, Torg — disse —
Mas ela é uma bela garota não? — continuou, num tom
cruel, depositando as mãos sobre os ombros dela, despindolhe a blusa com violência.
Na penumbra da garagem a malha usada por ela dava
uma falsa impressão de nudez a seus seios rijos e bem conformados. As garras do vampiro pousaram sobre eles, massageando as carnes apetitosas.
— Que lhe parece esta sensação, Torg? Não gostaria
de experimentá-la?
Torg estremeceu, a ira crescendo em seu corpo, a lembrança daqueles momentos de ternura e encantamento sendo enlameados e profanados pela atitude cruel de Drácula.
Sem esperar pela resposta de seu criado, o vampiro se
afastou dali, lavando a garota consigo. Torg olhou a blusa
caída no chão. Apanhou-a, cheirou-a, depois a apertou contra os lábios, beijando-a.
Humilhado e magoado, Torg os seguiu. Quando chegou à sala, a jovem estava sentada numa das poltronas e
Drácula examinava com curiosidade a máquina fotográfica.
A garota se voltou para olhá-lo e, em seus olhos calmos, havia aquela mesma ternura que confundira e tocara o
coração deformado do corcunda. Ele estacou, olhando-a estranhamente, sensibilizado e confuso.
Venha cá! — ordenou Drácula, asperamente.
Torg se aproximou. O vampiro passou para as mão dele a câmera, depois foi até Genny e a fez assumir uma pose
forçada.
— Fotografe-a, Torg! — disse, então.
O corcunda não entendeu o motivo de tudo aquilo. De
algum ponto da casa veio o ruído violento de madeira sendo atacada.
Drácula ergueu a cabeça, como que farejando qualquer
coisa no ar.
— É aquela mulher, mestre. A maldição já a contaminou. Ela me atacou está noite... Consegui trancá-la de novo,
porém.
Drácula sorriu.
— Perfeito! Tudo está saindo muito bem. Agora fotografe a garota — insistiu.
Torg preparou a máquina, ligou o flash e se aproximou.
— Apenas o rosto. Não queremos chocar ninguém —
riu o monstro — Tire mais de uma, quero ter certeza de que
uma delas sairá perfeita.
O corcunda atendeu-o, batendo algumas chapas.
Quando terminou, olhou para seu mestre, aguardando novas ordens.
— Onde comprou a câmera?
— No Aeroporto de Orly — explicou Torg.
— Acha que seria possível revelar o filme ainda está
noite?
— Sim, eles dispõem de um sistema especial para atendimento dos turistas...
— Pois faça isso, depois leve a foto ao Le Roy. Quero
que faça o seguinte, não importa a que preço — disse Drácula.
CAPÍTULO 7
Madrugada fria de final de outono. A neblina do Sena
se espalhava sobre a cidade como um manto protetor e frágil. De volta ao carro, cujos vidros embaçados pela umidade pareciam cobertos por finas camadas de gaze, Torg suspirou.
Fora uma noite atribulada e tudo agora começava a fazer sentido. As ordens desencontradas de Drácula ganhavam significado.
O vampiro tramara sua vingança contra Hilgenstiller e
a faria cumprir da maneira mais horrenda possível. As fotos
foram reveladas sem muita demora. No jornal, Torg fez o
que Drácula ordenara.
Tudo estava perfeito, portando, para a vingança. Sorriu, mostrando a fileira desigual de dentes finos e pontiagudos. Tomou o volante e se afastou com o carro. Voltava para casa. Havia agora, certa pressa e frebilidade nele. Drácula estaria adormecido em seu ataúde e a garota estaria no
quarto, repousando.
Ao pensar nela, sensações ternas e selvagens se misturavam dentro dele. A maneira com que ela o olhava fazia
Torg se sentir como um ser humano normal. Via ternura e
amor naquele olhar e isso o tocava profundamente, despertando sentimentos e apetites julgados adormecidos para
sempre.
Já a tivera junto de si, apertando-a em seus braços
descomunais, sentindo a maciez de suas carnes e o perfume
de seu corpo.
A ideia de tê-la, de possuir sua virgindade, devassando-a com a força de seus apetites mais instintivos, faziamno estremecer dominado por uma volúpia intensa que perturbava seus sentidos.
Ela estaria lá, sozinha e frágil, esperando por ele para
brindá-lo com olhares de ternura e amor. Seu pé afundavase, apresado, no acelerador e o carro derrapava nas curvas
mais acentuadas.
Deixou a cidade e tomou a estrada. Pouco depois via
os contornos da casa, subia pela alameda e ia guardar o veículo na garagem.
Quando desceu, percebeu-se trêmulo e ofegante. Suas
faces ardiam. Ele caminhou apressadamente para a porta e
seus passos ecoaram desiguais pela casa, pouco depois.
Subiu a escada para o segundo pavimento. Andou sorrateiramente pelo corredor, olhos fixos naquela porta que
lhe parecia entrada de um paraíso, um paraíso que julgara
jamais voltar a ver.
Empurrou-a. A lua cheia declinando no céu ainda jogava sua claridade prateada sobre o vulto frágil estendido
sobre o colchão imundo.
Torg avançou lentamente, a respiração pesada como
de um animal faminto e cruel. Debruçou-se sobre ela olhando as faces tranquilas e belas.
Suspirou entrecortado, estremecendo. Suas mãos se
estenderam lentamente, tocando-lhe os seios, acariciandoos gentilmente, depois os apertou com força.
A garota estremeceu e murmurou qualquer coisa, virando a cabeça para o lado. A ferida provocada pela mordida do vampiro estava ali, anunciando a maldição. Aquela
visão revoltou Torg, fazendo-o odiar Drácula por macular a
beleza irretocável daquele corpo.
Ajoelhou-se lentamente e suas mãos ficaram dançando
sobre os contornos da jovem, sentindo-lhes as formas provocantes, embebendo-se numa volúpia que transtornava.
Sua cabeça pendeu e seus lábios se entreabriram, cobrindo
os dela. Sugou-os avidamente, seus sentidos bailando numa
dança macabra de prazer e crueldade. Deitou-se então, apressadamente ao lado dela, depois rolou com ela pelo leito, beijando-a e abraçando-a selvagemente, um brilho bestial iluminando seu olhar.
***
Após o rápido desjejum, Hilgenstiller saiu à rua. Foi
até o jornaleiro espiar as principais manchetes do dia. Desde que o Le Roy interrompera as reportagens, nada havia
que pudesse atraí-lo.
Mesmo assim, comprou o Times do dia anterior e foi
até uma praça, sentar-se ao sol e ler. A manhã estava magnífica. Não fossem as árvores e plantas desfolhadas, juraria
ser primavera.
Quando chegou à seção econômica do jornal, lembrou-se de que precisava fazer um balanço em suas finanças. Teria de recorrer ao banco para poder voltar à Inglaterra.
Isso, porém, ainda estava indefinido. O vampiro estava solto e impune em Paris. Encontra-lo era o que mais desejaria fazer.
Baixou o jornal. Viu quando Ninon e Chamy deixaram
o hotel onde ele estava hospedado. Na certa elas estavam a
sua procura.
Ergueu-se e caminhou ao encontro delas. Cumprimentaram-se.
— Por que não vamos até o Café do Pierre conversar?
— Ainda não tomamos nosso desjejum — convidou Ninon.
— Sim, claro — concordou ele.
Momentos depois, já no café, enquanto aguardavam
ser servidos, o professor manifestou sua preocupação.
— Temos de encontrá-lo sem demora. Tenho o pressentimento de que ele ficará aqui por muito tempo. É esperto, sabe que estou em seu encalço e que aquelas reportagens o denunciaram, apesar de tudo.
— Mas o que podemos fazer, professor? — indagou
Chamy. — Já tentamos tudo. — em alguma locadora ou revendedora de carros está a resposta que precisamos. Tentamos por telefone e falhamos. Acho que devemos fazê-lo
pessoalmente agora.
— Vai ser um trabalho danado! — exclamou Ninon.
— Mas é a única pista de que dispomos. Temos de explorá-la e encontrar a resposta. Estão preparadas?
As duas se entreolharam resignadamente, confirmando. Haviam se metido naquela cruzada e tinham que ir até o
fim agora. A todo custo precisavam descobrir o que houvera com a amiga Marie e com os rapazes, vingando-os.
Enquanto eles tomavam o café, Hilgenstiller foi apanhar a lista telefônica e relacionar todas as locadoras e revendedoras que haviam recusado fornecer alguma informação a respeito do misterioso carro negro.
Pessoalmente talvez fosse mais fácil conseguir alguma
coisa. Era uma esperança e precisava ser tentada.
Tudo se mostrou inútil, porém. Por algum motivo, havia um movimento incomum nas locadoras e revendedoras.
Uma alta de preços nos carros e um final de semana mais
prolongado por um feriado na segunda-feira motivaram a
procura.
Ao fim da tarde, estavam os três exaustos e desanimados, sem nada de concreto. Hilgenstiller desesperou-se. Era
como se sentisse que Drácula lhe escaparia outra vez. Todos aqueles crimes horrendos continuariam impunes e o
monstro vagaria livre pelo mundo, semeando o terror.
Rumavam para o café do Pierre. Ao passarem diante
de uma banca de jornal, algo chamou a atenção de Hilgenstiller. Era a edição vespertina do Le Roy. Havia uma foto
na primeira página que o fez estremecer.
Aproximou-se e apanhou febrilmente um dos exemplares. Seu rosto empalideceu. Ele cambaleou atônito, chocado e surpreso. Seus olhos se esbugalharam, estarrecidos.
— O que houve, professor? — indagou Ninon, percebendo a transfiguração.
Ele apontou para foto. Seus lábios se abriram, mas nenhuma palavra foi articulada. As duas garotas o fitaram
preocupadas.
— Quem é a garota? O senhor a conhece? — indagou
Chamy.
— É Larah... É minha filha Larah! — conseguiu dizer,
afinal.
— Tem um recado aí — disse Chamy.
— Ela quer se encontrar com o senhor hoje à noite,
junto à Torre Eiffel — leu Ninon.
O professor continuava mudo, olhando aquela fotografia. Era mesmo Larah, seus traços suaves e belos, as linhas
do rosto lembrando a mãe, os cabelos com aquele caimento
natural que a fazia tão meiga.
Tudo se confundia em sua mente. Vira o que acontecera à filha, havia algum tempo atrás. Vira-a sendo atacada
pelo vampiro e sendo amaldiçoada. Lembrava-seda morte
dela, de quando cravara em seu coração uma estaca que a
livraria da maldição e a libertaria para a morte.
Que trama infernal estava sendo armada? Larah estava
morta. Ele a enterrara pessoalmente. Então tudo se aclarou.
Era Drácula o responsável por aquilo.
Perturbara o vampiro com aquelas reportagens e com
aquela caçada implacável. Ele descobrira como se vingar.
Na certa trouxera Larah do túmulo para revivê-la e dominála com seu poder maldito.
Tinha de encontrá-la e libertá-la novamente. Seria seu
pior castigo ver a filha transformada num vampiro. Larah,
uma flor de meiguice e ternura não merecia aquele destino.
— Eu tenho que ir ao encontro dela... — murmurou,
decidido.
— Sim, claro, professor — concordou Ninon. — Se
quiser, poderemos acompanha-lo...
— Não, tenho de ir só agora. Sei o que me espera —
disse ele, num tom sombrio.
As duas se entreolharam, sentindo-o misterioso e angustiado.
— Professor — disse Ninon, com gentileza. — Há algo errado, não? Deveria estar alegre por reencontrar sua filha, mas não o está. O que significa isso, então?
Hilgenstiller olhou-a fixamente.
— Larah foi atacada pelo vampiro, há algum tempo.
Ela está morta, eu mesmo cravei em seu peito uma estaca
de madeira para libertá-la da maldição... Compreendem o
que isso significa? Agora preciso ir. Ela me espera. Tenho
de livrá-la das garras daquele monstro — afirmou, afastando-se apressadamente.
***
Quando Ivy Chanton terminou de falar, seus homens
estavam cabisbaixos e desorientados. O tenente se ergueu,
então, indo apanhar um café na mesa junto ao telefone. Bebeu-o num só gole, depois acendeu um cigarro, enquanto
olhava a cidade através da janela.
Entardecia sobre Paris e mais um dia se passara sem
que conseguissem localizar Hilgenstiller. Seus superiores o
estavam pressionando. A imprensa começava a atacar o caso com mais veemência, exigindo justiça.
Alguém bateu na porta, depois a abriu.
— Tenente, há duas garotas que... — não terminou de
falar. Ninon o empurrou, abrindo a porta. Ela e Chamy se
adiantaram, encarando o tenente com impaciência.
— O que se passa aqui, afinal? — indagou Ivy, de
péssimo humor.
— Precisamos falar-lhe, tenente. É importante...
— Se desejam apresentar alguma queixa, basta que
procurem o oficial de plantão na sala ao lado e...
— É sobre o Prof. Hilgenstiller — adiantou Ninon.
O tenente se interrompeu, olhando-as surpreso. Fez
um sinal para que seus homens saíssem.
— Sentem-se, por favor! — convidou. — O que sabem sobre o professor?
— Ele vai se meter numa grande encrenca...
Ivy sorriu ironicamente.
— Ele já se meteu numa encrenca senhorita.
— Sabemos a que se refere. Ele é inocente de tudo aquilo. Falamos sobre isso agora — disse Ninon, mostrando
a fotografia no jornal.
— “Papai, quero vê-lo. Venha à torre Eiffel esta noite”
— leu.
Encarou as garotas como se não tivesse entendido.
Depois, voltou a olhar a fotografia. Algo estalou em sua
mente. Abriu uma gaveta e retirou uma pasta.
Vasculhou-a até encontrar o que procurava. Era uma
foto de Larah Hilgenstiller e fazia parte do dossiê que a polícia da Hungria remeterá a seu pedido.
Dispôs as fotos uma ao lado da outra. Não havia dúvidas, mas tudo se tornava confuso e misterioso. Larah Hilgenstiller estava morta. Ali mesmo, naquela pasta, havia
uma cópia de seu atestado de óbito.
— Não entendo! — gaguejou.
— Tenente, sei que deve ter sua teoria sobre tudo que
está acontecendo e sobre o professor. Agora saiba que há
um vampiro. Nós o vimos. Ele deu sumiço numa de nossas
amigas.
Ivy balançou a cabeça de um lado para outro, recusando-se a aceitar tudo aquilo. Deixar-se levar por aquela mistificação era loucura. Hilgenstiller poderia ter publicado
aquela foto apenas para reforçar sua história maluca.
Havia, porém, um modo de se certificar de tudo. Tomou o telefone e discou para o jornal. Tinha um amigo na
redação. Seria fácil descobrir quem era o responsável por
tudo aquilo.
Quando atenderam pediu que o chamassem. Momento
depois, indagava-lhe:
— Ernest, o que sabe sobre aquela foto e aquele recado que saíram na primeira página da edição vespertina?
— Espere um momento, Ivy. Vou ver o que descubro.
O policial aguardou com impaciência.
— Ivy, foi o pessoal da madrugada quem atendeu o
sujeito.
— Como era ele?
— Dizem que era o sujeito mais feio do mundo. Todo
torto, corcunda, com uma voz cavernosa, o tipo do sujeito
misterioso que se enquadraria muito bem na história do
vampiro — riu o outro.
— É só, Ernest, obrigado! — agradeceu o policial,
desligando.
Olhou as garotas. Não fora Hilgenstiller quem mandara publicar a foto e o recado, mas poderia ter mandado alguém fazê-lo.
— Estiveram em contato com o professor nos últimos
dias? — indagou.
— Sim, nós o estivemos ajudando a localizar o vampiro.
— Ele tem algum amigo corcunda? — indagou, com
um sorriso incrédulo nos lábios.
As duas empalideceram, trocando olhares significativos.
— Disse um corcunda, tenente? — indagou-lhe Ninon.
— Sim, um corcunda. Por que a surpresa?
Ninon contou-lhe, então, tudo o que sabiam. Para o
tenente era difícil acreditar em tudo ainda. As garotas pode-
riam estar a mando de Hilgenstiller, interessado em criar
toda a confusão a respeito do assunto.
Mas havia sinceridade nas palavras de Ninon e real
pavor em seus olhos. A preocupação que manifestavam não
podia ser fruto de uma encenação.
Tudo aquilo que vinha incomodando seu espírito como a única explicação para o caso ganhou consistência.
***
Torg estivera o tempo todo ali no quarto, esperando o
escurecer. Quando a noite chegou, ele foi retirar a pesada
cortina que pusera à janela para impedir que a luz do dia
destruísse aquele corpo jovem sobre o leito.
Embevecido, deixara-se contagiar pela ternura e pela
paixão, agradecido por todas as sensações que a chegada da
jovem despertara dentro dele.
Um chamado forte ecoou pelas paredes da casa, sobressaltando-o. Apressou-se em ir ao encontro de Drácula,
que já despertara.
— Onde se meteu, seu inútil? — indagou o vampiro.
— perdoe-me, mestre. Estava me certificando de que a
porta do sótão estava bem fechada — desculpou-se o corcunda.
— Você tem de agir depressa agora. Fez o que lhe ordenei?
— Sim, a fotografia foi publicada, mestre.
— Então vá buscar Hilgenstiller — ordenou o vampiro, com um sorriso, satânico nos lábios e um brilho incandescente nos olhos profundos. — Depois prepare tudo.
Vamos partir.
—Partir, mestre? — estranhou o corcunda.
— sim, partir. Acho que desejo rever a bela Itália. Você providenciará tudo, como das outras vezes.
— Mestre, o que vai acontecer com Hilgenstiller precisamente? — quis saber Torg.
Drácula riu de pura satisfação e lhe explicou.
CAPÍTULO 8
O brilho e a festa reinantes na cidade, à noite, sugeriam alegria e despreocupação. Para Hilgenstiller, porém, o
pesadelo horrendo estava acontecendo. Angustiado e confuso, vagava ao redor da Torre, esperando ver, em algum
daqueles rostos, o da filha.
Não sabia qual seria sua reação. Larah estava morta,
seria apenas um cadáver amaldiçoado, vagando sem paz e
sem destino. Não seria sua filha, não seria aquela flor de
ternura e meiguice que, por muito tempo, iluminara seu coração de pai.
Apertou com força a alça da maleta. Ali dentro estavam suas armas. Sabia que Drácula estava por trás de tudo
aquilo e se preparava. Intimamente rezava para suas forças
não o abandonassem no momento supremo.
Viu, então, algo que o estarreceu e chocou. A figura
mórbida e retorcida daquele corcunda se aproximava, como
que a sua procura. Adiantou-se ao encontro dele. Os olhos
de Torg brilharam de ódio e crueldade. Ele encarou o professor.
— Venha, professor! Sua filha o espera — disse, com
profundo desprezo.
Hilgenstiller dominou sua cólera e seu desejo de avançar sobre aquele monstro e destruí-lo. Agora estava certo.
Drácula estava a sua espera. O corcunda era a única maneira de chegar até ele.
Torg foi à frente, guiando-o até o carro. Quando entraram, Torg se voltou e encarou-o.
— O que leva aí? — indagou, enquanto estendia o
braço e apanhava a maleta.
Riu com profundo desprezo ao examinar os objetos
que o professor levava. Exibiu o martelo e as estacas, antes
de jogá-los pela janela. Examinou um crucifixo comum de
madeira, depois o quebrou. Apanhou a réstia de alho. Gargalhou, jogando tudo pela janela.
— É um louco, professor. Um louco! — disse, pondo
o veículo em movimento.
Hilgenstiller rezou para que o corcunda não o revistasse. Trazia ao cinto, em suas costas como vira um policial
portar a arma certa vez, o precioso crucifixo de extremidades cortantes.
Seria sua única arma, mas a mais poderosa de todas.
Com ela estaria protegido e poderia destruir o monstro, se
lhe surgisse oportunidade.
O corcunda o vigiava pelo retrovisor o tempo todo. O
professor tratou de ficar atento ao trajeto. Viu que deixavam Paris e tomavam uma estrada para o interior. Algum
tempo mais tarde, quando viu a casa no alto de uma colina,
teve certeza de que seria levado para lá.
Assim foi feito. Quando o carro estacionou na garagem escura, ouviu a porta da frente se abrir e ser fechada
em seguida. Tudo estava em silêncio. Ele apanhou o crucifixo e o trouxe para o bolso de seu paletó. Depois desceu
do carro e saiu da garagem.
O corcunda havia desaparecido. O professor sabia que
seu destino o esperava no interior daquela casa. Apertou
com força o crucifixo. Não havia como voltar atrás agora.
***
Torg entrara pelos fundos da casa e se apressara, subindo as escadas. Foi até o sótão. Ouviu ruídos em seu interior. Dominique estava inquieta, sedenta de sangue. Torg
girou a chave na fechadura, depois se afastou rapidamente.
Foi até o quarto onde repousava Genny.
Fechou a porta atrás de si e ligou a luz para vê-lo melhor. Ela estava no leito ainda. Abriu os olhos e encarou o
corcunda. Estava seminua e em sua pele estavam as marcas
da sanha voluptuosa do corcunda.
Ela se ergueu lentamente e um de seus seios ficou à
mostra. Em seu olhar, porém, havia aquele sentimento fraterno e estranho que Torg não entendia.
Ela se aproximou lentamente e estendeu a mão, acariciando os cabelos do corcunda.
— Aimê! — murmurou ela e Torg não entendeu o
significado daquele nome.
Apenas a olhava, embevecido, grato a ela por aquele
olhar. Ouviu ruídos no corredor. Na certa era Dominique,
vagando à procura de sangue. Seu destino agora era terrível. Seria um vampiro. A garota diante dele também o seria
e isso tocou o coração embrutecido do monstro.
Ela não merecia aquele destino trágico. Ela devia ser
preservada, pois dera a ele algo inesquecível e bom. Devia
a ela a salvação. Isso significava desobedecer Drácula, mas
aquele olhar da garota, suplicante agora, parecia lhe pedir
isso.
Torg abriu os braços e estreitou-a contra o peito. A
cabeça dela repousou sobre seu ombro. Ela ficou observando, então, a veia que latejava ao pescoço de Torg. Aquele
palpitar fascinou-a. Seus olhos se fixaram naquele ponto. O
cheiro de sangue fez dilatar suas narinas e estremecer seu
corpo.
Sua boca se abriu num sorriso revelador. As presas
enormes cobriram às costas do corcunda e apenas podia ver
aquela veia latejante e promissora, segredando-lhe um apetite inconfessável.
Torg sentiu que o corpo dela se enrijecia e que suas
mãos agora o seguravam como garras. Percebeu o que ha-
via acontecido ao sentir o hálito dela bafejar seu pescoço.
Segurou-a pelos ombros e empurrou-a para trás.
Genny rosnou, as mãos se erguendo diante do corpo,
crispadas e ameaçadoras. Suas presas mortais e maléficas
rebrilharam. Seu desejo por sangue a transformou num animal irracional.
Uma dor aguda, profunda, torturante e insuportável
tocou o coração de Torg. Era tarde demais. Não a queria
daquela forma. Lágrimas brilharam em seus olhos. Ele a
desejava, ele era grato a ela e só havia uma coisa a fazer em
retribuição.
Quando ela avançou, as mãos do corcunda pousaram
sobre seus seios, mantendo-a afastada de si. Olhou-a nos
olhos e não havia traços da meiguice e da bondade que a
cativaram.
Estavam injetados como os olhos de um vampiro, brilhantes, acesos como chamas do inferno. As lágrimas brotaram mais fortes agora, rolando pelo seu rosto. Suas mãos se
crisparam, movidas pela força descomunal.
Seus dedos se enterraram nas carnes macias, rasgando,
rompendo, vasculhando como pinças frias de um carneiro o
interior daquele peito.
Um grito estridente e desumano escapou dos lábios
dela, quando Torg, num arranco quase espasmódico, tiroulhe o coração ao peito, erguendo-o ensanguentado diante de
si.
O corpo dela tombou para trás. A paz voltou ao seu
rosto, devolvendo-lhe aquela beleza cativante e terna. O
sangue que escorreu de seu peito tingiu-lhe estranhamente
a pele.
Torg caiu de joelhos, apertando convulsivamente aquele coração em suas mãos, enquanto fitava sua pobre flor
de sangue estendida no assoalho.
***
Hilgenstiller ouvira aquele grito e estremecera.
Por instantes voltou-lhe à mente a imagem da filha, no
momento em que lhe enterrara a estaca no coração. Ela gritara da mesma forma. Estaria o pesadelo acontecendo de
novo?
Avançou desesperadamente pela sala, na direção da
escadaria. O grito viera do andar superior da casa. Precisava ir até lá. Estacou, porém, incrédulo e aterrorizado ao olhar para cima. Não podia crer em seus olhos, mas ali estava a explicação para o que acontecera no cemitério.
Dominique Pinon o olhava estranhamente.
— Olá, professor! — disse ela, começando a descer os
degraus.
Hilgenstiller recuou. Era Dominique, sua amiga, diante de si. Seu corpo, pelo menos, mas não era sua alma. A-
quele olhar satânico não era dela. Aquela maneira felina e
ameaçadora de caminhar também não.
Sua mão procurou o crucifixo, apertando-o. Drácula
mais uma vez se superara em sua vingança.
— Foi bom que tenha chegado, professor. Eu preciso
de sua ajuda. O perigo está lá em cima. Venha comigo, vamos destruí-lo — dizia ela, aproximando-se mais e mais.
— Afaste-se, Dominique! — ordenou.
— Venha, professor! — insistiu ela, abrindo os braços, enquanto sorria bestialmente, exibindo as presas aguçadas e mortais.
Ele estremeceu e retirou o crucifixo do bolso, levantando-o diante de si. Um urro medonho escapou da garganta dela, que se contorceu, tentando fugir à visão da cruz.
Hilgenstiller foi ao seu encalço, procurando encurralála. Doía-lhe fazer aquilo, mas não havia outra saída. Para
ela seria uma bênção se livrar daquela maldição.
Torg ouvira o barulho da luta e tratou de agir imediatamente, correndo desligar os fusíveis da casa. A escuridão
imediata confundiu Hilgenstiller.
Mesmo depois, quando a luz da lua penetrava pelas
janelas dando certa nitidez aos contornos ao seu redor, ainda se viu ameaçado. Parou imóvel por instantes, depois recuou para o centro da sala.
O perigo o espreitava de todos os pontos escuros do
aposento. A respiração pesada de um animal monstruoso e
destruidor era ouvida como a pior das ameaças.
Na escuridão, poderia ser atacado a qualquer momento, sem que pudesse esboçar uma reação. Rezou por sua
alma e pela de Dominique, enquanto segurava o crucifixo
com firmeza. Não podia perdê-lo. Ele significava sua própria vida.
Subitamente, de uma das janelas, um facho de luz atraiu a atenção do cientista. Ele se voltou para olhar a lanterna, cobrindo o rosto em seguida, ofuscado.
— Professor! — gritou Ninon, confundindo-o, no
momento em que o vulto sedento e macabro de Dominique
voava sobre ele e suas garras se enfiavam nas carnes do
professor, lanhando-o.
Ele urrou de dor, rolando pelo chão, tentando fugir a
ela. A porta de entrada se abriu. Ivy Chanton, seguido por
Ninon e Chamy, entrou, olhando estarrecido a cena que o
facho de luz de sua lanterna iluminava.
Empunhou sua arma, mas não pode disparar. Enquanto isso, Hilgenstiller lutava desesperadamente para fugir às
presas que tentavam alcançar seu pescoço. O crucifixo havia caído em algum ponto da sala. Sem ele, estava vulnerável, todos estavam vulneráveis, à mercê de Dominique o do
próprio Drácula.
— O crucifixo — gritou. — Encontre o crucifixo.
O facho de luz varreu o assoalho, localizando-o. Ivy
ficou imóvel, no entanto, sem saber o que fazer. Ninon se
investiu de coragem e avançou, apanhando o objeto, trêmula e chocada com a cena animalesca que tinha diante dos
olhos.
Seus movimentos atraíram a atenção do vampiro, que
soltou o professor e se voltou ameaçadoramente para ela.
— Não fuja, Ninon! — gritou Hilgenstiller. — Toquea com o crucifixo. Toque-o.
Ivy dirigiu a luz contra o rosto de Dominique, que levantou o braço para proteger os olhos. Ninon ficou imóvel,
hipnotizada, em choque, fitando aquelas presas ameaçadoras e brilhantes, incapaz de esboçar um movimento.
Dominique se lançou sobre ela, derrubando-a. O instinto destruidor prevaleceu e suas presas buscaram o pescoço da jovem, rasgando suas carnes e sugando sofregamente
o sangue que jorrava.
— Deus, não! — exclamou Hilgenstiller, atirando-se
sobre as duas e arrebatando o crucifixo.
Segurou-o com as mãos e o baixou com força, cravando-o entre as costelas da vampira, que berrou medonhamente e rolou pelo chão, como se ardesse em chamas.
Hilgenstiller correu em socorro de Ninon, tentando estacar o sangue que esguichava. Seu desespero era total. Ninon não merecia aquele destino.
Enquanto isso, no alto da escada, Drácula observava a
cena, furioso. Onde estava a outra garota? Ela deveria estar
auxiliando Dominique e destruir o professor. O que fizera
Torg?
— Torg! Maldito filho de um cão! — berrou e suas
palavras ecoaram por toda a casa.
Lá embaixo todos ficaram em silêncio.
O tenente Ivy levantou a lanterna, iluminando aquele
vulto ameaçador no alto da escada. Estremeceu, reconhecendo aquele rosto. Era o mesmo que vira nas páginas do
jornal. O vampiro existia. Tudo aquilo estava acontecendo,
não era fruto doentio de uma mente distorcida.
Ergueu a arma e disparou repetidas vezes. As balas
passavam simplesmente pelo corpo de Drácula, indo lascar
a madeira atrás dele.
— Deus do céu! — exclamou o policial, incrédulo e
aterrorizado.
O vampiro ergueu os braços e precipitou-se escada
abaixo, cego pela fúria, Hilgenstiller foi apanhar o crucifixo, retirando-o do corpo de Dominique.
Antes que pudesse esboçar um gesto de defesa, o
vampiro o jogou a um canto. Ivy avançou contra ele, tentando golpeá-lo com a lanterna, mas foi seguro pela garganta e atirado violentamente contra a parede. Chamy tentou correr para a porta, enlouquecida pelo medo, mas foi
alcançada e segura pelos cabelos.
Drácula a puxou para junto de si e sua mão fechada se
abateu contra o pescoço da garota, que caiu pesadamente,
estremecendo espasmodicamente.
O vampiro então, olhou ao seu redor, procurando por
seu mortal inimigo. Atordoado, Hilgenstiller se erguia, apoiado contra a parede, ainda firmando desesperadamente o
crucifixo em suas mãos.
Drácula o viu e rosnou como um animal ferido, cheio
de ódio, dominado por uma sanha destruidora e cega, avançando resolutamente para eliminar definitivamente aquele
que ousara desafia-lo.
— Venha, monstro dos infernos, maldito fruto de um
ventre devasso e amaldiçoado! Venha, venha apanhar-me!
— desafiou o professor, cego pela ira e pelo desespero, desejando apenas e tão somente sua vingança.
O crucifixo erguido fez Drácula cambalear e recuar,
cobrindo os olhos, sentindo-se em fogo pela influencia negativa das forças do bem.
De sua garganta escaparam sons animalescos e estridentes. Não podia se aproximar, não podia vencer o poder
da cruz. Seu corpo brilhou. Hilgenstiller percebeu o que iria acontecer. Antes que o vampiro se transformasse totalmente em morcego, ele jogou o crucifixo de pontas cortantes.
Um guinchado horrível se seguiu, enquanto o morcego
se debatia com o crucifixo cravado às costas. Hilgenstiller
avançou, quebrando uma poltrona e apanhando uma lasca
de madeira.
Inesperadamente, porém, a cruz se desprendeu do corpo monstruoso, que se debateu aos saltos, afastando-se do
professor, recuperando as forças, alçando voo.
— Volte, maldito! — berrou Hilgenstiller, jogando
com todas as suas forças a lasca de madeira contra o vulto
macabro que escapava pela porta aberta.
Estacou ouvindo os gemidos de Ninon e de Ivy Chanton. Olhou perto de si. Chamy estava caída, o pescoço grotescamente retorcido.
Levou as mãos à cabeça, em desespero. O grito que
ouvira ao entrar na casa parecia ecoar ainda pelas paredes.
— Larah! Larah! Minha pobre filha! — berrou, desvairado, correndo pela casa à procura dela.
FIM DO LIVRO SEIS
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO SETE
CEMITÉRIO SEM CRUZES
CAPÍTULO 1
As chuvas de outono caiam incessantemente, cobrindo
a estrada com um tapete de contas prateadas. Os faróis tentavam ir mais longe, mas apenas produziam reflexos, enquanto o furgão derrapava de um lado para outro na estrada
lamacenta.
Torg, ao volante, se inquietava. A manhã estava para
nascer e ainda estava distante de Saluzzo. Havia atravessado a fronteira, favorecido pelas chuvas pesadas. Sua preocupação se concentrava toda na preciosa carga que levava.
Felizmente firmara bem o ataúde do vampiro. A fuga
apressada de Paris não o permitira traçar um roteiro definido. Importava agora chegar a algum local onde pudesse repousar por algum tempo, a salvo.
Numa curva mais acentuada, o furgão derrapou violentamente, fugindo ao seu controle. Guinou para a esquerda e foi ao encontro de uma árvore.
Com o choque, Torg foi jogado contra a outra porta.
Um filete de sangue escorreu por sua testa. Ele se ergueu
aturdido, olhando os reflexos que os faróis produziam nas
poças da estrada.
— Maldição! — Praguejou, levando a mão à testa e
pressionando o corte.
Voltou ao volante. Engrenou a marcha mais pesada e
acelerou com impaciência. As rodas giraram inutilmente. O
carro estava preso na vala que margeava a estrada.
— Maldição! — voltou a berrar, esmurrando o volante
e pressionando o pé contra o acelerador.
Sua ação desesperada apenas serviu para prender ainda mais o veículo no atoleiro.
Quando se convenceu, finalmente, de que seu esforço
era inútil, desligou o motor e ficou por instantes, ouvindo o
bater incessante da água contra a lataria do carro.
Para os lados do nascente, as nuvens pareciam se tornar claras. O dia chegava. Drácula estava em seu ataúde,
enfraquecido pela batalha travada contra seu mortal inimigo.
Era preciso fazer algo, mas o corcunda não via nenhuma saída. Não podia ficar ali, esperando ajuda. A presença do ataúde poderia provocar suspeita ou atrair a curio-
sidade de algum intrometido. Além disso, o veículo poderia
ter sofrido algum dano. Se tivesse de levá-lo a uma oficina,
não poderia fazê-lo com Drácula em seu interior.
Ergueu-se do assento e abriu a porta que separava a
cabine da carroceria. Uma lâmpada se acendeu no alto do
teto, iluminando o ataúde.
A chuva pareceu amainar. À claridade que se esboçava, Torg viu algo além da estrada, ao pé de uma colina. Parecia uma caverna. Talvez exatamente o que necessitava.
Deixou o veículo e atravessou o lamaçal da estrada até
uma cerca de arame farpado. Havia uma placa. Torg não
era muito bom em italiano, mas poderia entender que, por
um motivo que não pudera traduzir, a entrada daquele local
era proibida.
Ultrapassou a cerca. A região estava toda demarcada e
havia algumas escavações transformadas agora em enormes
poças de água.
O corcunda coxeou, evitando-as, até chegar à caverna.
Sondou o interior escuro, esperando alguns instantes até
que seus olhos pudessem ver com clareza. Depois avançou.
Alguns passos após a entrada, a caverna se subdividia em
dois grandes túneis. Torg examinou um e outro, escolhendo
ao acaso. Seguiu em frente, percebendo que descia por um
declive que, pouco a pouco, se acentuava.
À frente, finalmente, viu-se numa grande sala de pedra, com estalactites formando arcadas tétricas e frias, como um cômodo grotesco de um castelo antigo.
O ruído de seus passos ecoou pelos diversos túneis
que partiam daquela sala, aprofundou-se no interior da terra. Torg andou um pouco mais.
Estacou, porém, ao perceber que um de seus pés pairava sobre o vazio. Havia uma fenda no meio da sala natural. Torg se inclinou, apanhou uma pedra e jogou-a em seu
interior. O eco de seus movimentos, porém, confundiu sua
audição, não deixando perceber se havia profundidade naquele buraco perigoso.
Ergueu-se, então, olhando ao seu redor. O local parecia adequado para esconder Drácula e seu ataúde. Enquanto
isso, poderia caminhar até Saluzzo e conseguir ajuda para
rebocar o furgão e consertá-lo, caso houvesse algum dano.
Retornou, então, encontrando facilmente a saída. O
dia chegara. As nuvens escuras, porém, mantinham aquela
aparência sombria.
A chuva cessara momentaneamente. Torg se apressou
em fazer o que precisava ser feito. Foi até o furgão e abriuo. Observando o precioso ataúde de madeira fina, com frisos cromados e curiosas inscrições nazistas na tampa. Seria
uma pena arrastá-lo pela lama, mas não havia outra saída.
Teve de se valer de toda sua força descomunal para
descê-lo do veículo, depois arrastá-lo pela estrada até a cerca.
Por momentos ficou indeciso entre o que fazer. Depois, arrebentou os fios de arame, partindo-os em suas
mãos fortes e nodosas.
Depois arrastou o ataúde para a caverna. Tudo se tornou mais fácil quando chegou ao declive. A madeira deslizava com facilidade pelas pedras soltas do túnel. Torg apenas cuidava em controlar a descida, mas escorregou e ficou
para trás, enquanto o caixão fúnebre avançou ruidosamente
para a sala de pedra.
Sons confusos se misturaram num só eco. Depois, tudo ficou em silêncio, quebrado apenas pelo gotejar interminável de gotas que se filtravam por entre as pedras e iam
construir lentamente as estalactites e estalagmites.
O corcunda se ergueu num salto e correu pela sala à
procura do ataúde. Parou diante da fenda que cortava o
chão. Tentou ver algo em seu interior, mas era impossível.
Drácula talvez estivesse lá dentro agora. Precisava tirá-lo,
mas como fazer isso.
Andou de um lado para outro, manifestando toda sua
preocupação e sua raiva pelo incidente. Temeu pela ira do
mestre. Praguejou sua má sorte. Rosnou ameaçadoramente
para as pedras, até que percebeu ser inútil permanecer ali.
Precisava alcançar a cidade, conseguir cordas, uma
lanterna possante e uma roldana. Só assim poderia retirar o
ataúde. Andou ainda de um lado para outro. Não queria
deixar o local.
Saiu, finalmente. O furgão estava preso à lama da vala. A chuva recomeçara. O dia se firmava gradativamente.
Não havia outra solução. Ganhou a estrada e seguiu a
pé em frente, tão rápido quanto seu corpanzil desajeitado
permitia.
***
Giuseppe Santini desligou o motor de seu trator, depois saltou para a calçada enlameada que circulava a cantina anexa ao posto de gasolina.
Fez um sinal para o encarregado junto à bomba de óleo, apontando um tambor que trazia numa carreta atrelada
ao veículo. O outro respondeu com um sinal. Giuseppe jogou-lhe as chaves, depois entrou na cantina.
Quase em seguida recomeçou a chover. Um vento frio
soprou para o interior da cantina uma lufada úmida. Ele fechou a porta e despiu a capa impermeável que vestia, pendurou-a num gancho da parede.
Foi até o balcão. Não havia ninguém do outro lado,
mas um delicioso aroma de pão fresco indicava que os fornos ao fundo estavam em franca atividade.
Ele se sentou num dos tamboretes e aguardou. Girou o
corpo para olhar pela janela. Debaixo de algumas árvores
desfolhadas havia um trailer moderno com o emblema da
Universidade de Turim.
O lavrador fez uma careta de desagrado, depois se voltou para a prateleira de bebidas, repleta de garrafas de vinho.
Um homem, vestindo um avental, saiu de uma porta
no extremo do balcão. Ao ver Giuseppe, abriu os braços e
exclamou:
— Ei, compadre! Como vai?
Giuseppe sorriu, estendendo uma das mãos e apertando a que lhe era estendida.
— Faz tempo que está aí?
— Acabei de chegar...
— Estava preparando uns pões lá dentro... Que acha
de levar alguns para casa?
— Excelente ideia! Sabe como as crianças adoram seu
pão — elogiou.
— eu vou apanhar os mais frescos. — disse o cantineiro, retornando aos fundos.
Momentos depois, trazia um embrulho muito bem feito e o depositava diante de Giuseppe. A porta de entrada se
abriu e um casal entrou apressadamente.
Ela era jovem ainda, mas os óculos de aro grosso davam-lhe uma falsa aparência de maturidade. O rapaz não
devia passar dos trinta e era forte, espadaúdo. Ambos foram
ocupar uma das mesas ao fundo.
O cantineiro fez uma careta e contornou o balcão para
ir atendê-los. Voltou apressadamente. Providenciou duas
xícaras de café e um pão recém-assado. Juntou algumas fatias de queixo e foi levar tudo numa bandeja ao casal.
Quando voltou ao balcão, encarou Giuseppe com desagrado.
— Eles ainda estão aí, Nuno. Acha que vão mesmo
continuar com aquilo? — indagou Giuseppe.
— Parece que sim. Pensei que as chuvas fossem empatá-los, mas continuam aí, estacionados em meu posto,
aguardando.
— Muita coragem, não?
— Dizem que são cientistas... Profanadores, é que são.
— Aquele cemitério pagão esteve lá por todo esse
tempo. Nem os romanos ousaram invadi-lo. Os fascistas
passaram ao largo dele. Nossa gente o respeita. Esses, porém, vêm para escavar e destruir. Gostaria que uma daquelas lendas fosse verdadeira e que um monstro das profundezas lhes pregasse um susto de morte — resmungou Nuno.
Instintivamente Giuseppe persignou-se. Nuno percebeu seu gesto e o imitou. Depois se olharam. Conheciam as
histórias que circulavam a respeito daquele local. Não fo-
ram poucos os que se viram frente a frente com as aparições mais terríveis naquela região.
A porta se abriu novamente e uma lufada fria agitou
alguns cartazes de propaganda de cigarro presos à parede.
Todos se voltaram para a figura grotesca e patética parada à
porta.
Torg gotejava, exausto, após a caminhada. Aproximou-se do balcão. Percebeu o recuo instintivo daqueles que
estavam ali. Sua figura retorcida os repugnava. Aquela reação o enraivecia, mas precisava se controlar.
— Vocês têm uma oficina por aqui? — indagou, num
péssimo italiano.
— Sim, mas não creio que vá abrir. O encarregado foi
a Saluzzo visitar um parente que está à morte — respondeu
o cantineiro.
— A que distância estamos ainda de Saluzzo?
— Perto de quinze quilômetros. Para ser exato... Quatorze e meio...
A água escorria de suas roupas encharcadas gotejavam
no assoalho, empoçando. Estava exausto.
— Onde posso conseguir corda e uma roldana... Uma
lanterna possante também...
O cantineiro olhou seu amigo Giuseppe depois voltou
a encarar o corcunda.
— Acho que só conseguirá isso em Saluzzo. Para que
precisa de tudo isso.
— Meu carro caiu numa vala, a alguns quilômetros
daqui... Talvez um trator... Há um aí fora... Estou disposto a
pagar muito — disse.
Giuseppe demonstrou interesse. Pela maneira como
falava o corcunda parecia ter dinheiro. Talvez pudesse ganhar alguma coisa com isso.
— Onde, precisamente, seu carro caiu na vala? — quis
saber.
— A alguns quilômetros daqui... Não sei ao certo a
que distância. Foi numa curva, bati numa árvore também.
Há uma colina com uma caverna...
Giuseppe não esperou que ele terminasse. Ergue-se
rapidamente, pagou Nuno e saiu apressadamente. Torg ficou sem entender o que fizera o outro reagir daquela forma.
— Acho que não conseguirá ajuda, amigo. Pouca gente se arrisca a ficar muito tempo perto daquele local. Quem
passa por ali não olha para os lados. Vai ser difícil conseguir alguma ajuda...
— Por quê? — quis saber o corcunda.
— Fantasmas... Maldições... Aquele local é um velho
cemitério pagão... Túmulos antigos sem cruzes... A caverna
é considerada uma espécie de catedral do mal... — explicou
o cantineiro, afastando-se para ir atender o casal que estava
na mesa.
Torg desejou rir do medo que vira nos olhos do homem, mas estava exausto demais para ironizar. Estava re-
almente encrencado agora. Se não retirasse o ataúde daquela caverna, Drácula o esganaria.
Percebeu que o tratorista lá fora manobrava seu veículo na direção de Saluzzo. Deixou a cantina e correu em seu
encalço.
***
— Que tipo mais sinistro, professora — murmurou o
rapaz à mesa, observando o corcunda saltar para a carreta e
acomodando-se junto ao tambor de óleo.
— Realmente — concordou a mulher, retirando seus
óculos para limpar as lentes com um guardanapo de papel.
Seus olhos eram verdes e expressivos, embora aparentassem o cansaço característico daqueles que se debruçam
incessantemente sobre os livros, descobrindo seus segredos.
O vento lá fora soprou mais forte e as gotas de água
vieram se acumular na vidraça. O rapaz tomou um resto de
café em sua xícara, depois a depositou sobre o pires e acendeu um cigarro.
Ficou olhando a chuva que caia, lavando os campos
desfolhados à espera do inverno.
— As chuvas não vão cessar tão cedo, professora —
disse ele.
— Sei disso, Domenico, mas vamos continuar assim
mesmo. Se não podemos aprofundar as escavações, vamos
explorar aquela caverna. Estou certa de que vamos encontrar coisas interessantes por lá.
— Está realmente convencida de que a caverna era usada pelos pagãos que habitavam a região?
— Seguramente. As lendas que temos ouvido confirmam isso.
O rapaz riu, batendo o cigarro contra a borda da xícara.
— Fantasmas... Isso a assusta?
— Sou uma cientista, já se esqueceu?
— Sim, uma das maiores arqueólogas da Itália. Deve
depositar muita fé nesse trabalho, não?
— Tenho pesquisado muito sobre esse povo. Minhas
conclusões apontavam para esta região. Todas essas lendas,
os túmulos que encontramos... Está confirmado.
— Algo me intriga, professora Naiara! — disse o rapaz.
— O que é?
— Escavamos os túmulos encontramos utensílios, armas e outros apetrechos, mas nenhum esqueleto. Por quê?
Tem alguma teoria sobre isso.
— Por isso acredito que a caverna era uma espécie de
templo. Tenho trabalhado sobre as inscrições que encon-
tramos em todos os objetos. Mas alguns elementos e serei
capaz de decifra-las. Aí, então, toda a história se revelará.
— Quando entraremos na caverna?
— Assim que o pessoal voltar de Saluzzo com o material. Mandei que apanhassem as cordas, lanternas e ferramentas adequadas. Eu havia telegrafado para o diretor da
Universidade, pedindo-lhe isso.
— Enquanto isso, vamos esperar que a chuva passe.
Eu, particularmente, gostaria de aprofundar as escavações.
Talvez encontremos os esqueletos que nos faltam — disse
ele, sorrindo.
CAPÍTULO 2
No grande barracão de madeira, misto de oficina e deposito, tudo estava preparado para o acontecimento.
A um canto, junto à porta, um tacho de cobre fervia. A
fumaça era levada pelo vento que soprava. Novas gotas de
chuva começaram a tamborilar sobre o telhado.
Lauro Marettino experimentou o fio de uma das facas,
esfregando-a no pulso e fazendo saltar alguns pelos. Ainda
assim, apanhou a pedra de amolar e esfregou-a com paciência pelo fio reluzente.
Depois, impaciente, olhou na direção da porta. Agostinho Lassera entrou em seguida, conduzindo o porco enorme, quase incapaz de caminhar.
— Amarre-o sobre o estrado — ordenou Lauro, apanhando uma faca de lâmina fina e aguçada.
Aproximou-se do estrado de madeira onde Agostinho
tentava amarrar o animal, que se debatia. Lauro ajudou-o,
então. O porco ficou imóvel. Seus olhos pareciam demonstrar toda a resignação do mundo.
— como estão lá dentro? — indagou Lauro, fazendo
um gesto de cabeça na direção da casa.
— Estão preparando o tempero.
— Vá buscar a vasilha para o sangue. Vamos ter o
mais delicioso chouriço da redondeza — sorrio o fazendeiro, examinando com satisfação as banhas que pendiam em
dobras do corpo do suíno.
Agostinho afastou-se rapidamente, puxando para cima
da cabeça a gola de sua capa de chuva. Venceu o espaço
que separava o deposito da casa.
Retirou a capa e bateu levemente na porta.
Ela sorriu, percebendo o que ele pretendia. Recuou,
fugindo ao campo de visão do pai, lá no deposito, e ergueu
o braço para enlaçar o pescoço do rapaz.
Beijaram-se e esfregaram-se com uma volúpia incontida. O cheiro forte de tempero reinante na cozinha em nada
perturbava os dois namorados.
— Onde está sua mãe? — quis saber ele, enquanto a
beijava no pescoço e descia pelos flancos macios e bem delineados do corpo dela.
— Foi na despensa, apanhar mais alho. Aí vem ela! —
alertou soltando-se dele e indo apanhar uma vasilha enorme.
— Tudo pronto por lá? — indagou a mulher que entrava.
— Sim, vamos sangrar o porco.
— Vamos descascar um pouco mais de alho e cebola.
Lauro gosta desse chouriço muito bem temperado.
— E não podia ser de outra maneira — concordou
Agostinho, olhando mais uma vez na direção da garota, antes de sair pela porta.
Apenas jogou a cabeça a capa de chuva e correu para
o deposito. Passou a vasilha ao fazendeiro, que a acomodou
sob o estrado, debaixo de um orifício preparado para aquele
fim.
Depois segurou firme o punhal em sua mão, agarrando, com a outra, uma das pernas do animal. Agostinho veio
ajudá-lo a conter o porco em sua agonia.
Lauro olhou para o tacho de água fervente, depois
empurrou com firmeza a lamina afiada contra o corpo do
suíno, golpeando-lhe o coração.
O sangue esguichou para a vasilha com um ruído desagradável que foi coberto pelo grito de agonia do animal,
que se debateu desesperadamente.
— Mantenha-o imóvel — ordenou ao empregado. —
Não quero desperdiçar nem uma gota desse sangue.
***
O trator diminuiu a marcha ao chegar a uma encruzilhada.
— Siga em frente. A cidade está a uns oito quilômetros apenas — disse Giuseppe ao corcunda, que havia saltado da carreta.
Ficou ali, em pé na lama da estrada, encharcado até os
ossos, enquanto o trator tomava outra direção. Resmungou
qualquer coisa, olhando para o céu.
As horas passavam com rapidez. Drácula estava naquela caverna, talvez preso em seu ataúde. Precisava ser atendido depressa. Estava fraco, necessitava de sangue. Torg
compreendia a delicada situação.
Começou a caminhar, então. Tinha de chegar à cidade
e conseguir o material necessário para explorar aquela caverna e resgatar o ataúde. Além disso, estava preocupado
com o carro, preso naquela vala.
A chuva voltou a cair com intensidade. O vento agitava galhos desfolhados à beira da estrada. Torg se esforçou
para enxergar a estrada, mas se tornava cada vez mais difícil. Precisava encontra um abrigo, pelo menos até que o
temporal amainasse.
Viu, então, próximo dali, uma pequena capela. Correu
naquela direção. O local era pequeno e havia tocos de velas
espalhadas pelo chão. Ao fundo, num pequeno altar, uma
fotografia com uma placa logo abaixo.
Tentou ler o que estava escrito ali, mas o tempo se encarregava de escurecer totalmente o metal. Acomodou-se
num canto. Estava protegido da chuva.
Estirou as pernas, sentindo-as doloridas. Apertou de
encontro ao corpo as roupas molhadas. Olhou os tocos de
velas. Ao pé do pequeno altar havia uma caixa de fósforos.
Sorriu, estendendo uma das mãos. Havia alguns palitos de
restos.
Acendeu um resto de vela. Depois, reuniu todos que
pôde e acendeu também. O vento fazia as agitar as chamas,
mas, ainda assim, elas produziam um calor reconfortante.
Suspirou, fechando os olhos. Talvez o temporal ainda
demorasse a passar. Precisava descansar, ainda que por
poucos instantes.
Sua cabeça pendeu para o lado. Ele roncou, adormecido.
***
Todo o pessoal que participava da equipe da professora Naiara estava reunido no salão da cantina.
Conversavam ruidosamente, enquanto a chuva caia lá
fora. A um canto, debruçada sobre suas anotações, a cientista pensava nos resultados até então conseguidos.
Tão logo obtivesse o exame do material conseguido,
poderia estabelecer a época aproximada em que aquela civilização habitara a região. Isso era importante. O passo seguinte era localizar alguns esqueletos. Era intrigante o fato
de que todos os túmulos examinados estivessem vazios de
qualquer indício humano positivo. Os utensílios e armas tinham seu valor, mas nada como um esqueleto para confirmar todas as suas teorias.
Domênico, seu principal auxiliar, aproximou-se e se
sentou diante dela, Naiara levantou os olhos verdes e expressivos para ele.
— Não creio que o pessoal tenha condições de chagar
até aqui com esse temporal, professora.
— Estou sentindo isso, também — concordou ela,
com desânimo.
Sabia que aquela era a pior época do ano para o tipo
de trabalho que realizavam. Não podia, no entanto, esperar
pela chegada do inverno.
Pensou, então, no que tinha conseguido. Os túmulos
não continham esqueletos. A caverna lhe parecia, portanto,
extremamente significativa. Em seu interior talvez estivesse
oculto o segredo de tudo aquilo.
Sem o material adequado, no entanto, nada podiam fazer. Domênico, todavia, linha uma excelente sugestão a fazer:
— Professora, já que não podemos continuar as escavações nem explorar totalmente a caverna, acho que deveríamos ir fazendo algo para adiantar...
— O quê, por exemplo? — indagou ela.
— Podemos improvisar. Temos as baterias do trailer e
o jipe. Uma equipe poderia ir até lá e instalar um sistema de
iluminação, até onde permitissem os fios de que dispomos.
Com um pouco de luz poderíamos ir mapeando e demar-
cando o terreno da caverna, deixando para explorá-la totalmente quando o resto do equipamento chegar.
A professora sorriu, aprovando com um gesto de cabeça, enquanto seus olhos ganhavam um brilho intenso e
satisfeito.
— Excelente ideia. Domênico. Eu, particularmente,
não consigo mais ficar aqui, sentindo-me presa. Prepare o
que temos em mão. Vou me trocar. Acho que poderemos
adiantar nosso trabalho, fazendo alguma coisa hoje — disse
ela, dominada por uma inquietação natural.
Algum tempo depois, o jipe partia para o local das escavações, levando a professora e mais dois rapazes, juntamente com todo o material que puderam, reunir.
A chuva continuava e aquele vento frio soprava com
intensidade crescente. Naiara julgou aquilo um bom indício. O vento poderia varrer as nuvens e afastar a chuva.
Se isso acontecesse depressa, no dia seguinte poderiam reiniciar os trabalhos interrompidos. Quando chegaram
ao local. O furgão preso na vala à beira da estrada.
— Acho que deve pertencer àquele corcunda que esteve na cantina — comentou.
— Podíamos ajuda-lo, não? — opinou ela.
— É difícil dizer, professora. A estrada está muito enlameada, não sei se teríamos tração para tanto. Ele precisaria de um trator realmente — disse o rapaz, enquanto ma-
nobrava o veículo para uma entrada que os levaria até próximo da caverna.
— Vamos fazer uma investigação preliminar — disse
a cientista, saltando do veículo e correndo até a caverna —
Devíamos ter feito isso antes.
— Com todos aqueles túmulos sugestivos nos esperando? — riu Domênico, que a seguira.
— É, acho que tem razão — concordou ela.
Domênico acendeu então, a pequena lanterna que
trouxera, iluminando as paredes da caverna.
Naiara e Domênico foram observar. Havia marcas da
passagem de algo pesado que fora arrastado para dentro da
caverna. O rapaz iluminou, então, a trilha que seguia para o
interior. Entreolharam-se.
— Vejam aquela cerca também — apontou o outro rapaz. — Parece que trouxeram algo do furgão para cá. Talvez contrabando. Não estamos muito longe da fronteira.
— Acha que aquele corcunda poderia ser um contrabandista? — indagou Naiara.
— Pode ser — murmurou Domênico, avançando caverna adentro, seguido pelos outros.
Chegaram ao declive que os levaria até uma ampla sala. A lanterna iluminava as marcas do chão. Elas iam acabar, no entanto, numa fenda, enorme que cortava a pedra no
meio. Aproximaram-se cautelosamente.
— Isso parece não ter fim — disse Domênico, iluminando-a.
Apanhou uma pedra e soltou. Após alguns instantes,
um som oco foi produzido.
— Madeira! — exclamou Naiara, estranhando.
Apanhou ela mesma outra pedra, um pouco maior, e
soltou-a na fenda. O som voltou a ser produzido, confirmando suas suspeitas anteriores.
— Tente iluminar — pediu a Domênico.
— É inútil esta lanterna não é apropriada. Talvez possamos conseguir algo, baixando uma lâmpada até o fundo.
O que me diz? Poderemos trazer uma das baterias para cá.
— Sim, faça isso — pediu ela.
Os rapazes foram cuidar disso. Enquanto os esperava,
Naiara observou as paredes da caverna, procurando qualquer coisa significativa.
Percebeu a existência de diversos túneis que se aprofundavam. Um objeto junto à entrada de um deles lhe chamou a atenção.
Foi até lá, iluminou o caminho com a lanterna. Apanhou uma espécie de tigela de cerâmica, partida ao meio.
Assemelhava-se aos outros utensílios encontrados no lado
de fora.
O fato de estar ali, porém, significa que a caverna era
usada para alguma coisa. Isso a fez se sentir esperançosa
em relação às investigações futuras.
— Professora, ilumine o caminho, por favor! — pediu
Domênico.
Naiara retornou até a entrada da caverna, auxiliandoos. A bateria foi levada até junto da fenda. Giglio, o outro
rapaz, desenrolou um bom pedaço de fio, depois instalou
um soquete na extremidade.
Domênico tratou de providenciar a ligação à bateria. A
lâmpada fortíssima se acendeu, então, possibilitando uma
visão deslumbrante do interior da caverna.
— Lindo, não! — murmurou Naiara.
— Sim, realmente — confirmou Domênico.
— Mas vamos ver o que descobrimos nesta fenda —
ordenou ela.
A lâmpada foi sendo baixada. Logo de início iluminou
diversas ossadas, amontoadas sobre reentrâncias e saliências.
— Fantástico! Está tudo aí. Todos esses esqueletos
vão nos fornecer explicações interessantes — exclamou ela, satisfeita e febril.
— Veja aqui, mais abaixo, professora — disse Domênico, baixando a lâmpada ao máximo possível.
Algo rebrilhava ao fundo, como metal cromado e madeira envernizada.
— Veja as bordas da fenda. Algo caiu por ela recentemente. Talvez o contrabando que o corcunda tentou esconder — opinou Giglio.
— isso não nos interessa. Estou fascinada pelos esqueletos. Se ao menos pudéssemos alcançar um deles.
— Não há meio de fazê-lo sem provocar danos. Vamos precisar de equipamento adequado, não há outro meio
— opinou Domênico.
— Então temos de providenciar isso o mais depressa
possível. Domênico, você vai a Saluzzo com o jipe. Com
ele poderá trazer o material, apesar da chuva. Nosso caminhão ficará preso lá até que o tempo melhore, mas não podemos esperar agora que descobrimos o mais importante.
— E quanto ao corcunda e o que ele escondeu lá dentro?
— Que importa o corcunda? Ele jamais chegará aqui a
tempo. Mesmo que o faça, terá de tirar o furgão da vala
primeiro. Depois, estou certa de que terá muitas dificuldades para retirar o que quer que seja de dentro desta fenda.
Se você se apressar, estará aqui à noite. Amanhã cedo traremos todo o pessoal para cá e o corcunda nada poderá fazer enquanto não esclarecer toda situação e deixar que nós
retiremos daí tudo que precisarmos — argumentou a professora.
Ela tem razão, Domênico — ajuntou Giglio — Vamos
nos apressar, portanto.
***
Torg acordou sobressaltado com o que pensou ser o
ruído da chuva ainda. Aguçando os ouvidos, no entanto,
percebeu que um veículo se aproximava, na direção de Saluzzo.
Deixou a capela e correu para a beira da estrada. Um
jipe se aproximava. O corcunda sorriu satisfeito. Com aquela ajuda providencial chegaria a Saluzzo rapidamente e
poderia providenciar tudo antes do anoitecer.
Trazia algum dinheiro consigo. Poderia alugar um jipe
para trazê-lo de volta e ajudá-lo a retirar o furgão da vala.
Depois, com o material que comprariam trataria de resgatar
o ataúde.
Durante a noite poderia recomeçar a viagem interrompida pelo acidente.
Acenou, quando o jipe se aproximou, derrapando sobre a estrada lamacenta. Ao volante, Domênico o reconheceu. Giglio lhe disse qualquer coisa. O motor foi acelerado.
Engatou-se uma marcha pesada.
— Levem-me a Saluzzo! — gritou Torg, enquanto o
veículo passava por ele, espirrando lama sobre seu corpo.
— Levem-me a Saluzzo, malditos! — berrou, fora de si, ao
ver que o jipe se afastava, insensível a seus apelos.
CAPÍTULO 3
— Torg! Bastardo amaldiçoado! — berrou o vampiro
e sua voz trovejou, ecoando pelos túneis da caverna.
Drácula estava atônito. O corcunda não se encontrava
em parte alguma. Queria descobrir o que houvera, o que fazia seu ataúde no fundo daquela fenda e onde estava, afinal
de contas.
Apenas o gotejar lento e incessante das gotas de água
filtradas através da pedra respondia a suas indagações. Sentia-se fraco. Precisava recuperar suas forças no sangue
morno de algum mortal.
Caminhou até a saída da caverna. A noite caíra negra e
densa. A chuva persistia. O vento soprava úmido e frio. Farejou o ar, à procura de algum odor conhecido. Apenas percebeu o cheiro agreste de terra molhada.
Apoiou-se por momentos à parede da caverna, mas
uma dor aguda em suas costas o fez enrijecer-se. Em seu
último encontro com aquele maldito professor havia sido
atingido ali.
O que fora usado para provocar a ferida? Lembrou-se,
então, de ter visto, durante a luta, um crucifixo nas mãos do
cientista. As extremidades haviam sido limadas, tornando-o
uma arma mortal ao vampiro.
Ofegou enraivecido. Hilgenstiller ainda o pagaria por
aquela perseguição implacável. Quando chegasse o momento, iria fazê-lo se arrepender de haver desafiado o Príncipe das Trevas.
Sentiu todo o corpo tremer, se ressentindo da falta de
seu alimento vital. Mas chovia lá fora e a água o afetava.
Tinha de permanecer ali, à espera que algo ou alguém viesse buscar abrigo na caverna. A espera poderia ser torturante.
Olhou ao seu redor, atento para detalhes que não perceberá antes. Havia aquelas escavações do lado de fora,
onde a água se empoçava. Viu pegadas na estrada da caverna, rastos de um veículo ali perto e algumas caixas.
Foi examiná-las. Continham baterias e fios. Aprofundou-se na caverna, seguindo as pegadas. Elas iam ter na
fenda, onde caíra seu ataúde.
Repentinamente, como um frio que lhe percorresse o
corpo, Drácula recuou, pressentindo um perigo, ainda desconhecido. Olhou ao seu redor. Nada via, mas aquela sensação fazia eriçar seu corpo.
Havia algo maligno na caverna, tão maligno quanto
ele, inimigo, portanto. Rosnou, andando inquieto de um lado para outro, sentindo aquela presença no ar. O perigo estava presente, embora desse a impressão de estar adormeci-
do. Drácula se aproximou da fenda e olhou. Viu os esqueletos em que esbarrara quando saíra. Tudo fazia sentido agora. Aquele local fora usado há muito tempo com uma espécie de altar de sacrifícios.
Deveria ter sido frequentado por um povo pagão, já
que não havia cruzes. Aquelas escavações lá fora, também
eram significativas. Cientistas estavam pesquisando o local.
Acabariam por despertar aquela presença que podiam pressentir, mas não identificar.
Talvez pudesse concluir algo se soubesse onde estava.
Tudo o que sabia, no entanto era que estava preso numa
caverna em algum ponto da Europa, talvez na França ainda,
na Suíça ou na Itália.
Sua inquietação aumentou quando se lembrou de
Torg.
— Maldito corcunda! Eu devia destruí-lo — rugiu,
sentindo-se mais fraco a cada momento. — Se ao menos
essa chuva parasse por instantes——
Hilgenstiller entrou em seu apartamento, carregando a
correspondência que se acumulara durante sua ausência.
Deixou tudo sobre a mesa da sala, depois foi se soltar sobre
uma poltrona.
Estava exausto pela viagem e obcecado pela frustração. Drácula estivera ao seu alcance, poderia ter destruído
aquela maldição. Sabia, no entanto, que lhe causara algum
mal com as extremidades cortantes daquele crucifixo. Esse
pensamento o fazia se sentir um pouco melhor.
Olhou sua maleta sobre a mesa. Os instrumentos que
carregava eram eficientes mas, para usá-lo, teria de se aproximar do vampiro até quase tocá-lo.
Estivera pensando nisso durante toda a viagem. Era
preciso algo mais eficiente, mesmo à distancia. Repassou
mentalmente tudo o que poderia afetar o vampiro.
A madeira de uma estaca transpassando-lhe o coração
era mortal.O alho, o afugentava, devendo, portanto, provocar-lhe algum tipo de sofrimento. A água, principalmente a
benzida, também lhe era prejudicial. Uma cruz podia destruí-lo, mas antes teria de ser encurralado. A luz do dia, finalmente, o mataria em definitivo.
Todos esses elementos, porém, tinham suas limitações. A proximidade era exigida para que atassem contra
aquela força maligna.
Precisava unir isso a algum outro elemento, tornandoos mais poderosos e eficientes a longa distância. Só assim
teria mais chances de eliminar aquela ameaça.
Mas como fazer isso? Como tornar suas armas contra
o monstro realmente eficazes? Fosse Drácula um lobisomem, usaria contra ele balas de prata...
— Balas de prata! — exclamou, saltando da poltrona e
se aproximando da mesa.
Abriu sua maleta e vasculhou-a a procura de sua velha
pistola. Empunhou-a, por instantes, antes de retirar-lhe a
munição.
Examinou as balas. Poderia parecer maluco. A polícia
moderna usava balas de borrasca para conter multidões exaltadas. Talvez pudesse substituir os projéteis de chumbo
por outros de madeira.
Teria, então uma arma realmente eficaz. Com um pouco de treinamento, voltaria a ter a antiga pontaria. Bastaria,
então, transpassar o coração do monstro com uma daquelas
balas de madeira e o teria destruído.
A ideia parecia excelente. Merecia ser tentada. Usara
um tipo de madeira bem pesada. Tinha de consultar um armeiro e verificar aquela possibilidade. Talvez seu velho
amigo, um sargento do Exercito, pudesse ajudá-lo. Duffy
era armeiro do Regimento de Guarda.
Foi até seu estúdio e examinou um velho caderno de
endereços. Lá estava o endereço do sargento, com o número de seu telefone inclusive. Não podia perder um minuto
sequer. Da próxima vez que se avistasse com o vampiro estaria mais preparado que antes.
***
Torg andou de um lado para outro, demonstrando toda
sua inquietação e sua raiva. Estava encharcado. A noite já
caíra. A chuva continuava e a oficina fechada.
Caminhou depois, pela cidade. Sua figura grotesca e
patética agora provocava olhares de repugnância e desprezo. Tudo contribuía para aumentar sua fúria.
Encontrou outra oficina, igualmente fechada. Informou-se num posto de gasolina. Ninguém poderia ajudá-lo.
Estavam muito longe do local onde o furgão ficara preso na
vala. Apenas no dia seguinte, se o temporal amainasse, poderia encontrar ajuda.
— Mas tem de ser hoje... Pagarei dobrado — dizia ele,
exibindo as notas de francos que trazia consigo.
— Vai ser difícil encontrar alguém que aceite dinheiro
francês — lembrou o rapaz. — Vai ter de esperar o dia amanhecer para trocá-lo no banco.
— Demônios! — praguejou o corcunda, sentindo-se
tolhido.
Pensou em Drácula, preso naquela fenda. Estava fraco,
destrutível, vulnerável ao extremo. Precisava ajudá-lo de
alguma forma.
Via, no entanto que todos seus esforços se mostravam
inúteis. As lojas estavam fechadas, as oficinas também. Tinha dinheiro francês e não podia gastá-lo. De qualquer maneira, portanto, teria de esperar o dia chegar. Isso poderia
ser fatal para o vampiro, porém.
Qualquer coisa forte e opressiva fez crispar seu corpo,
como se estivesse à beira de um acesso de fúria. Precisava
fazer alguma coisa com urgência ou acabaria destroçando
tudo que lhe surgisse pela frente.
Afastou-se do local. Blasfemou contra a chuva, responsável por toda aquela situação. Esperou ansiosamente
que Drácula entendesse o ocorrido. O temor pela fúria do
vampiro o assustava.
Nada podia fazer, no entanto, a não ser lamentar e esperar pela chegada de um novo dia.
***
O vento assobiava por entre os galhos desfolhados de
uma árvore ao lado da casa.
Agostinho se preparava para dormir. Fora um dia exausto aquele, quando a família se empenhava em preparar
suprimentos para o inverno que chegava.
Apesar do cansaço, porém, sentia uma espécie de ardor dominando seu corpo. Seus pensamentos se voltaram a
todo instante para a figura tentadora e meiga de Nunciata
Marettino, a filha do patrão.
O empregado foi até o armário e apanhou uma garrafa
de vinho pela metade. Serviu um copo e se aproximou da
janela, ouvindo o vento lúgubre lá fora.
Não ouviu ruídos da chuva. O temporal parecia haver
acalmado. Ele abriu a janela. Gotas pingavam do beiral diante de seus olhos, que se alongaram até a casa principal da
fazenda, subindo por suas paredes de tijolos descobertos,
até uma janela.
Pelas frestas da veneziana percebia luz. Nunciata ainda estava acordada, talvez pensando nele. Essa ideia fez
aumentar aquele calor que invadia seu corpo.
Tomou alguns goles lentos de vinho, concentrando
seu pensamento naquela janela, como se esperasse vê-la abrir a qualquer momento, revelando o rosto jovem da garota.
O vento foi cessando, então, gradativamente, até que
um silêncio pesado pairasse, quebrado apenas pelo gotejar
do telhado.
Procurou um cigarro, acendeu-o e foi se debruçar na
janela, olhando a casa principal. Seus lábios se entreabriram, como que murmurando um nome. Suas mãos se crisparam, lembrando-se daqueles momentos em que estivera a
sós com ela, sentindo suas carnes macias, seus contornos
definidos, beijando seus lábios de mulher.
Estremeceu, excitado. A luz persistia naquela janela,
apesar de todo o resto da casa estar às escuras. Talvez ela
ainda estivesse acordada, dominada pela mesma inquietação que o tornava insone, apesar do cansaço.
Terminou o vinho. Olhou sua cama. Por instantes imaginou ali a presença deslumbrada da garota. Seus olhos
brilharam mais fortes e seu coração disparou.
Quase que no mesmo instante, ruídos vieram do curral, onde estavam as vacas. Aguçou os ouvidos. Os animais
estavam inquietos por algum motivo.
— É cedo para os lobos — murmurou, afastando-se da
janela para ir apanhar seu rifle de caça, preso na parede, acima da cabeceira da cama.
Verificou a carga da terrível arma. Os cartuchos estavam em ordem. Voltou à janela, atentando para os ruídos
no curral.
Eles persistiram, revelando uma inquietação crescente
dos animais. O inverno ainda não chegara. Era cedo demais
para os lobos. Ainda assim precisava verificar. Era sua obrigação proteger os animais.
Vestiu sua capa e suas galochas, depois deixou a casa.
Engatilhou a arma e se dirigiu para o curral. Quando chegou, viu qualquer coisa se mover do outro lado da cerca,
entre o gado, que se debatia inquieto e assustado.
— Chô! — gritou, erguendo a arma.
O vulto escuro afastou-se do pescoço, de um dos animais e se esgueirou com rapidez, fugindo a sua visão.
— Maldito lobo! — exclamou, atravessando a cerca e
entrando por entre os animais.
Uma das vacas cambaleava, depois caiu de joelhos diante dele. Seu pescoço sangrava abundantemente, dilacerado.
— Maldição! — exclamou o rapaz, retirando seu lenço e comprimindo-o sobre o ferimento.
O lobo escolhera o local exato para morder. A perda
do sangue enfraqueceria o animal, tornando-o presa fácil.
Precisava fazer algo com urgência mas, naqueles casos apenas o tempo poderia solucionar.
Afastou o lenço por instante, sentindo o sangue do animal esguichar sobre suas mãos. Era uma região delicada
para um torniquete, mas teria de fazê-lo. Foi até o deposito
ali perto e apanhou o necessário. Quando retornou, percebeu novamente aquele vulto negro esgueirando-se por entre
os animais.
— Diabos! — exclamou, indo em sua perseguição,
com sua arma pronta para disparar.
Um relâmpago iluminou o céu, seguido de um trovão
ensurdecedor. Agostinho estacou, julgando-se enganado
por seus olhos. O que vira parecia humano, mas ser humano algum atacaria um animal como aquele o fizera.
Novo relâmpago cortou o céu e a chuva recomeçou. O
vulto havia desaparecido, talvez assustado pelo próprio
trovão.
Voltou a apanhar o material que deixara cair quando
saíra em perseguição ao lobo, tratando, depois, de providenciar um torniquete para o pescoço da vaca.
Fez o melhor que pode, depois foi guardar o que restara no deposito. Parou à porta, esperando o momento propício para correr até sua casa.
Uma réstia de luz avançou, então, pelo pátio, fazendo
seus olhos se erguerem automaticamente para a janela do
quarto de Nunciata.
Lá estava ela, talvez assustada pelo trovão, olhando.
Agostinho avançou, então, até se ver iluminado, possibilitando que ela o visse também.
Por algum tempo ficou ali, trocando com ela um olhar
de paixão. Depois fez um sinal, apontando sua cabana, A
garota permaneceu imóvel. Agostinho jogou-lhe um beijo,
depois insistiu no convite. Nunciata fechou lentamente a
janela, deixando-o em suspense.
Ele aguardou alguns instantes, depois correu para sua
casa. Despiu a capa e as galochas e correu à janela de seu
quarto, observar a casa principal.
A luz do quarto da garota se apagara. Tudo estava às
escuras, agora, na casa.
Percebeu, então, o sangue em suas mãos. Foi até a torneira da cozinha lavá-las. Esfregou-as com sabão, depois as
cheirou. O cheiro de tempero continuava. Naquela noite,
todos naquela fazenda cheiravam a alho, cebola e pimenta.
Sorriu.
Um ruído em algum ponto da casa o sobressaltou.
Voltou-se, tentando definir de onde ele viera. A chuva caia
miúda, agora, quase parando. Um novo ruído, dessa vez
junto à porta, fez tremer seu corpo e palpitar seu coração.
Abriu-a. Coberta por uma grossa capa de oleado, estava Nunciata, olhando-o entre temerosa e enternecida.
— Os animais estavam inquietos — murmurou ela,
como se precisasse justificar sua presença ali.
— Sim, um lobo atacou uma das vacas... Acha que
devo acordar seu pai?
— Um lobo? Assim tão cedo? — retrucou ela.
Ele continuou olhando para ela, como se esperasse a
resposta para sua pergunta, que definiria toda a situação
que viria em seguida.
— Acho que não deve acordá-lo — falou ela, finalmente, trêmula e ansiosa. — Ele está tão cansado... Todos
estão tão cansados.
— Nunciata! — exclamou ele, num suspiro, estendendo ambas as mãos.
Ela sorriu timidamente, erguendo as suas e depositando-as sobre as dele. A chuva parara de novo. Ele a levou
lentamente para o quarto, beijando aquelas mãos com um
cheiro acentuado de temperos.
Abraçou-a. A porta de entrada bateu com força, sobressaltando-os.
— Apenas o vento, amor — murmurou ele, beijandoa.
CAPÍTULO 4
O ruído do vento não incomodava a professora, debruçada sobre suas anotações, no trailer.
A noite ia alta, mas ela não se sentia cansada. A viagem até a caverna, naquele dia, servira para excitá-la ao extremo.
Toda sua teoria a respeito do assunto estava ali, naquelas anotações e naquelas peças de cerâmica e utensílios,
coletados no local.
Uma das peças a interessava mais que as outras. Era
um fragmento de placa com traços que lembravam uma criatura. Vasculhava, agora, os outros pedaços acumulados,
tentando montar aquele quebra-cabeça.
Tinha o corpo da criatura, mas o que a espicaçava era
a parte superior, a cabeça, precisamente. Se não encontrasse ali o pedaço restante, restaria aguardar o dia seguinte para examinar alguns daqueles esqueletos que viram na fenda.
Comprovar sua teoria era essencial. Naquela caverna
parecia estar a resposta que buscava.
Ouviu o ruído de um motor lá fora e reconheceu-o.
Ergueu-se e foi até a janela. Ao abri-la, uma lufada agitou
seus cabelos e acariciou gelidamente seu rosto.
No jipe, Domênico sorria satisfeito por haver conseguido todo o necessário para as tarefas do dia seguinte. Assim que deixou o veículo, aproximou-se da janela do trailer.
— Trouxe todo o necessário, professora — comunicou.
— Ótimo! Encontrou o resto do pessoal?
— Sim, o caminhão está em Saluzzo, mas não poderá
sair de lá enquanto o tempo não melhore.
— Bem, vamos ter o que fazer enquanto aguardamos.
Pode vir até aqui um momento?
— Sim, claro — concordou ela, pedindo a Giglio que
levasse o jipe para a garagem que alugaram ao proprietário
do posto de gasolina.
Quando entrou no trailer, a professora tinha uma xícara de café estendida para ele. Domênico despiu seu agasalho, depois a apanhou, agradecendo.
Olhou Naiara com interesse.
— Venha até aqui! — pediu ela, levando-o até a mesa
de estudos, onde se acumulavam as anotações e os objetos
já encontrados nas escavações.
— Esteve estudando isso tudo até agora? — surpreendeu-se ele.
— Sim, há algo que me intriga aqui. Veja está placa.
Você demarcou o local e mapeou os objetos encontrados?
— Sim, está tudo comigo.
— Preciso que consulte seus apontamentos e verifique
se algum outro fragmento disso foi encontrado.
O rapaz examinou a peça em suas mãos.
— Eu me lembro disso. Só encontramos este pedaço.
Pedi ao Rocco, que escavava o local, para que tentasse localizar mais alguma coisa que se encaixasse aqui, mas não
creio que tenha encontrado. Ele teria me comunicado se algo significativo aparecesse... É bem verdade, porém, que a
chuva interrompeu a todos...
— Então ainda pode estar lá... — murmurou ela, tomando a peça das mãos dele e examinando-a.
Pensou por instantes, depois a levou para cima da mesa, depositando-a sobre uma folha de papel em branco.
Guiando-se pelas proporções daquele tronco gravado na
placa, esboçou alguns traços, formando uma figura humana.
Domênico observou com interesse. A professora ainda
não dissera o que esperava encontrar exatamente naquela
pesquisa. Tudo seria importante, lembrara ela, no início do
trabalho.
— Por que não tenta esboçar a cabeça também, professora — disse ele, percebendo que esse detalhe ficara incompleto na figura elaborada por ela.
Naiara pensou por instantes, como se hesitasse. Depois, com firmeza, traçou os contornos de uma cabeça quase humana.
— O que é isso? — quis saber ele.
— O Licorne — explicou ela, completando o chifre
longo que se projetava da testa do esboço.
— Licorne? — retrucou o rapaz, sem compreender ainda.
Naiara deixou o lápis cair de sua mão, depois se levantou e foi apanhar uma xícara de café. Olhou demoradamente o rapaz como que analisando a reação dele diante daquela estranha revelação.
Domênico voltou a olhar a figura agora traçada no papel. Aquela criatura não era humana. Poderia ser algo sugerido por uma lenda, por descrições fantasiosas ou supersticiosas, mas nada real e digno de uma pesquisa séria.
Encarou a professora. O olhar dela, no entanto, revelava determinação e segurança, como se estivesse realmente convencida dos objetos de sua busca.
— Já esteve no Museu de Cluny, em Paris? — indagou ela.
— Sim, mas não me lembro de...
— Há uma tapeçaria, cuja origem ainda não foi determinada. Eu devo ter uma foto em minha biblioteca, em Turim. A idade daquela tapeçaria também não foi determinada
ainda. Sei que é antiga, muito antiga. Apresenta uma cena
incomum. Um homem, muito de besta e divindade, comanda um grupo de seguidores que o adoram. Essa figura é o
Licorne. Segundo algumas lendas, ele era uma espécie de
vampiro... Não esses descritos pelas revistas e explorados
nos cinemas. O Licorne era um ente degenerado e vivia a
custa do fluido vital de seus seguidores... Era como se lhes
sugasse a alma e tivesse de fazer isso para sobreviver.
Havia um brilho de incredulidade no olhar de Domênico. Tudo aquilo era muito fantástico, quase absurdo. Não
compreendia como Naiara, uma cientista, pudesse dedicar
um trabalho como aquele que realizavam para provar uma
teoria tão fantasiosa.
— Você não acredita, não? — indagou ela, sem se abalar.
— É fantástico... Inacreditável realmente — gaguejou
ele.
— Por isso era importante encontrarmos aqueles esqueletos. Um deles, talvez, traga a resposta que buscamos.
Naquele local houve uma colônia pagã, comandada por um
Licorne. Dia após dia ele tinha de sugar uma alma de suas
vítimas para sobreviver. Quando enfim elas foram dizimadas, o Licorne continuou ali, enfraquecendo-se e morrendo.
Percebendo que a expressão de Domênico não se alterara, Naiara foi até um armário estreito e abriu-o. Dentro
havia algumas dezenas de livros antigos.
— Em cada um desses livros, de autores renomados da
antiguidade, você vai encontrar referencias ao Licorne. Eu
as coletei ano após ano, mapeando as referencias, até que
tudo apontasse para esta região. Estamos aqui e já encon-
tramos boas pistas. Amanhã, talvez tenhamos a prova, definitiva. O que me diz agora?
O rapaz balançou a cabeça de um lado para outro, sem
saber o que dizer realmente.
***
O dia amanhecera nublado e ameaçador, mas a chuva
cessara. Por algum tempo reinou verdadeira agitação no
posto de gasolina e no restaurante, até que dois veículos
partissem.
Num jipe, levavam todo o material necessário à exploração da caverna. No outro, iam a professora, Domênico e
duas outras garotas que participaram da equipe.
Naiara era a mais ansiosa de todos. Suas teorias poderiam ser comprovadas. A existência de um ser fantástico,
misto de homem e demônio, poderia ser provada se encontrasse o que buscava.
Aqueles esqueletos poderiam explicar tudo. Uma teoria fantástica que não ousara levantar quando solicitara autorização e verbas da universidade para a expedição, poderia ser discutida, então, abertamente.
Guardara aquele segredo para si. Sabia que todos a olhariam com incredulidade, da mesma forma como fizera
Domênico. Disfarçando seus reais interesses pudera, então,
chegar ao seu objetivo maior.
O dia sombrio não incomodava. Tudo parecia brilhante demais, iluminado por sua excitação. Lembrou-se, então,
quando chegavam ao local, daquele corcunda e do que ocultara na fenda.
Fosse o que fosse, poderia ter danificado preciosas informações. A pressa em se certificar disso a fazia inquieta.
— Encontramos o corcunda na estrada — disse Domênico, ao ver o furgão caído na vala.
— E o que fizeram?
— Passamos por ele bem depressa — riu o rapaz, manobrando o veículo para levá-lo até a entrada da caverna.
— Ótimo! — exclamou a professora.
Algum tempo depois, estavam descarregando o material. Naiara fora, com as duas garotas, até a fenda no interior da gruta.
Um detalhe, então, passou por sua mente. Aqueles esqueletos estiveram ali por muito tempo. Como não haviam
sido descoberto antes? Alguém poderia ter entrado na caverna. Havia, ela tinha conhecimento, algumas lendas a
respeito do local.
Lendas e ameaças, porém, fatalmente acabam por atrair a curiosidade de um espírito mais ousado. Não teria alguém entrado ali antes? Alguém já teria visto aqueles esqueletos?
Era difícil não pensar nisso. A menos que as ameaças
resultantes das lendas fossem aterradoras demais. Isso seria, no entanto, muito significativo.
Domênico e Giglio entraram, então, trazendo uma bateria e um rolo de fio. Instalaram-se ao lado da fenda, depois iluminaram as ligações. Uma lâmpada potente iluminou as paredes de pedra.
— Vamos examinar tudo sem demora — ordenou a
professora.
A lâmpada, então, foi sendo baixada lentamente, iluminando esqueletos desfeitos, ossos que se desfaziam em
pó, caveiras que pareciam rir assustadoramente.
Giglio, que controlava a descida da lâmpada, intrigouse pelo brilho daqueles metais mais abaixo e continuou soltando o fio aprofundando a luz.
— Ou estou enganado ou aquilo é um ataúde! — exclamou.
— Sim, parece que é mesmo um ataúde — confirmou
Domênico.
— Impossível! — exclamou Naiara.
— Aquele furgão lá fora — lembrou uma das garotas.
— Não, não se parece com um carro funerário. E depois, que interesse alguém teria em arrastar para cá um ataúde, quando ele estaria mais protegido lá no veículo? Ainda
acho que aquele corcunda usou o ataúde para fazer contra-
bando. Talvez haja algo valioso em seu interior — disse
Domênico.
— Talvez haja, mas isso não nos interessa por enquanto. Vamos fotografar o local e estudar a melhor maneira de
içar cada um desses esqueletos sem danificá-los.
Domênico e Giglio se entreolharam. Qualquer coisa
brilhou em seus olhares como uma espécie de cumplicidade.
***
Torg deixou o banco conferindo o dinheiro que trocara.
O dia continuava nublado. Poderia voltar a chover.
Tinha, no entanto, condições de preparar tudo e voltar para
o furgão a tempo de livrá-lo e de resgatar Drácula.
Procurou a oficina mais próxima. Durante a noite, vagara pela pequena cidade como uma alma penada. Praticamente já a conhecia inteiramente.
— Preciso de reboque para tirar um furgão que caiu
numa vala a uns vinte quilômetros daqui — disse ao rapaz
que o olhava com uma expressão indefinível no rosto.
— Algum problema com o furgão?
— Ele bateu numa árvore. Talvez tenha danificado alguma coisa, eu não sei. Quanto quer para ir até lá?
— Bem... — começou o rapaz, puxando uma série de
argumentos para justificar o alto preço que cobraria.
— Eu lhe pago o dobro para irmos agora mesmo —
disse o corcunda, sacando o dinheiro de seus bolsos ainda
úmidos.
— O senhor manda — disse o outro, fascinado pela
oferta — Vá preparando tudo. Vou até o armazém e volto
logo.
Sorriu, satisfeito, pressentindo que tudo ainda acabaria
bem. No armazém providenciou um bom rolo de corda e
uma roldana adequada. Com aquele material poderia resgatar o ataúde.
Quando retornou à oficina, o rapaz já estava com tudo
pronto para partir. Saíram no mesmo instante. Para Torg o
gasto não tinha a menor importância.
Dinheiro era algo que não preocupava o Conde Drácula. Todo o seu tesouro fora vendido aos poucos, de cidade
em cidade, numa peregrinação que Torg efetuara.
Todo o produto da venda fora aplicado em bancos suíços. Os rendimentos que se acumulavam possibilitavam ao
vampiro viver cercado do luxo e do requinte a que estava
habituado.
Nem sempre tudo poderia ser feito abertamente. Às
vezes teriam de se esconder às pressas, principalmente com
aquele maldito professor Hilgenstiller em seu encalço.
Estava seguro, porém, de que Drácula, mais cedo ou
tarde, eliminaria aquele inimigo implacável e tudo poderia
ser mais cômodo para os dois.
***
Hilgenstiller passou pela sentinela, que o havia informado a direção a tomar, depois avançou por entre as alamedas desfolhadas do quartel do Regimento de Guarda.
Ao se aproximar do arsenal, foi contido por outra sentinela. Ao exibir o passe que lhe fora cedido à entrada, tudo
se tornou mais fácil.
Caminhou, então, na direção de uma espécie de casamata, nos fundo do quartel. Ali outra sentinela o guiou para
o interior da construção.
Seu amigo, sargento Duffy, veio ao seu encontro afinal.
— Olá, professor! Há quanto tempo — disse o outro,
cumprimentando-o efusivamente. — Vi seu retrato, dias atrás, num jornal francês. Não consegui ler o que dizia, mas
penso que só tecia elogios a sua pessoa, não?
— Mais ou menos — confirmou ele, lembrando-se
dos desagradáveis momentos que passara em Paris.
Duffy o guiou pelos corredores, até uma sala onde se
localizava um estande de tiro ao alvo.
— O que me disse ontem, ao telefone, me deixou curioso. Pode me dizer para que precisa desse tipo de projétil?
Confesso que não vejo uma utilidade prática para eles.
— Não me diga que já fez alguma coisa nesse sentido
— surpreendeu-se Hilgenstiller.
— Para ser franco, sim. Um homem como eu, perto da
aposentadoria, torna-se mais inquieto que nunca. Assim
que recebi seu telefonema, apanhei o material necessário e
entalhei alguns projéteis. Já os experimentei, até. Use esta
pistola. Tente atingir aquele alvo ao fundo — disse o sargento, pressionando um botão e fazendo acender uma luz
ao fundo.
O professor se retraiu, apertando a mão a pistola automática. O alvo mencionado pelo militar era um boneco,
com feições humanas.
Ao perceber a reação do cientista, o sargento sorriu.
— Temos de ser práticos aqui, professor. O ser humano sempre foi o alvo principal de todas as guerras. Se quiser, posso conseguir algo mais adequado ao seu temperamento.
— Não, deixe para lá — disse o professor, fixando seu
olhar no alvo.
Não era difícil alterar aquelas feições e aquele corpo,
projetando sobre ele a figura sinistra e ameaçadora de Drácula.
Tudo se tornava mais fácil e apertar aquele gatilho
poderia até ser um prazer.
Apontou cuidadosamente, mirando o coração do boneco. Apertou lentamente o gatilho. A arma escoiceou seu
pulso, enquanto que o alvo permanecia intacto. Olhou a
arma, intrigado.
— Aí está o problema, professor. Jamais encontraremos madeira que seja tão pesada a ponto de reagir adequadamente ao impulso, sem desviar-se. Só usando uma metralhadora se poderia atingir aquele alvo — explicou o sargento.
CAPÍTULO 5
Agostinho acordara cedo, como de costume e fora
cuidar de seus afazeres. As nuvens escuras e ameaçadoras
ainda continuavam no céu, dando um aspecto sombrio e tétrico à natureza.
Sua primeira preocupação foi examinar o animal que
fora atacado na noite anterior. Encontrou-o agonizante.
Nada mais poderia fazer. Ele fora mordido num ponto delicado. O maldito lobo atacara firme e com decisão.
Pouco mais tarde, retornou à cabana para deixar a capa que vestia. Aparentemente o tempo se manteria daquela
forma, sem chuva, e o pesado agasalho dificultava seus
movimentos.
Quando entrou, algo lhe chamou a atenção. Eram pegadas de lama na sala de entrada. Lembrou-se, então, de
Nunciata e da inesquecível visita noturna realizada por ela.
Retirou a capa e pendurou-a num gancho junto à porta. Depois foi ao quarto, apanhar uma blusa. Percebeu, então, que ali não havia pegadas. Voltou-se e olhou para trás.
Alguém entrara em sua cabana na noite anterior. Aqueles rastros de lama seguiam na direção de uma pequena
despensa ao fundo. Foi até lá, intrigado. Não conseguia imaginar quem teria feito aquilo.
Voltou para seu quarto, vestiu a blusa e olhou a cama
desfeita e ainda perfumada pela passagem do corpo tentador da namorada.
— Tino! — chamaram lá fora e ele se pôs em pé num
salto, reconhecendo a voz do patrão.
— Sim, Sr. Marettino — respondeu, deixando rapidamente sua cabana.
— O que houve com aquela vaca?
— Foi atacada ontem por um lobo, nada pude fazer.
— Ela está morta... Uma de minhas melhores vacas —
disse o fazendeiro, praguejando enquanto rumava apressadamente para o curral, seguido pelo empregado.
Aproximou-se do animal, agora estendido a um canto,
os olhos arregalados como se a morte lhe tivesse sido dolorosa.
Lauro debruçou-se e retirou o torniquete aplicado por
Agostinho. Examinou atentamente o ferimento. Uma careta
de repulsa e raiva estampou-se em seu rosto.
— Não foi um lobo, Tino — declarou, encarando o
rapaz.
— E o que pode ter sido então, Sr. Marettino?
— Veja... Um lobo morde, quer arrancar pedaços. O
que temos aqui é um rasgão, exatamente sobre a veia prin-
cipal do pescoço, como se fosse feito deliberadamente para
que o animal sangrasse...
— Se não foi um lobo, o que poderia ter sido então?
— indagou o rapaz, lembrando-se da noite anterior, quando
perseguia aquele vulto escuro.
Um relâmpago iluminara o céu e ele julgou ter visto,
não o vulto de um lobo, mas uma figura humana. Juntando
isso às pegadas que vira em sua cabana, tinha algo sem resposta. Ser humano algum faria algo como aquilo, a menos
que fosse um monstro ou quisesse prejudicar o fazendeiro.
Se a primeira hipótese era maluca, a segunda era improvável. Lauro Marettino não tinha inimigos.
— Veja como isso infeccionou de um dia para outro
— apontou Lauro.— Ela poderia ter se arranhado ontem
em algum prego enferrujado da cerca — opinou Agostinho,
vendo naquilo a melhor explicação em que poderia pensar.
— Talvez... Mas justo aqui, no pescoço...
Agostinho se pusera em pé e observava ao seu redor.
Caminhou pelo curral até o ponto onde vira ou julgara ter
visto alguma coisa na noite anterior.
Além da cerca, viu pegadas. Poderiam ter sido feitas
por qualquer um da fazenda.
— Vá apanhar as ferramentas. Vamos enterrá-la, nada
se pode fazer com um animal que morre assim — ordenou
Lauro.
— Sim, senhor — obedeceu o rapaz, indo até o deposito.
Na volta passou diante de sua cabana. Estacou, curioso. Acabou entrando e examinando as pegadas que via ali.
O barro continha aquela mistura inconfundível de estrume
e capim que só poderia ser encontrada no curral.
Quem entrara ali estivera lá, talvez atacando aquela
vaca e levando-a à morte. Se assim fosse, não poderia ser
algo humano. Ao invés de esclarecer, apenas complicava
tudo.
— Apresse-se, Tino — gritou Lauro e o rapaz deixou
a cabana, apressando-se em atender o chamado.
***
Uma crispação instintiva retorceu o corpo do corcunda, ao perceber toda aquela movimentação diante da caverna.
Viu gente entrando e saído apressadamente, como se
alguma coisa os excitasse e os fizesse agir daquela forma.
— É aquele o furgão? — indagou o mecânico ao seu
lado.
— Sim, sim afirmou o corcunda, saltando assim que o
veículo parou.
Enquanto o outro ia observar os danos no furgão. Torg
observou atentamente o que se passava na caverna. Já havia
visto antes aquele emblema nos veículos ali parados. Fora
no posto de gasolina.
Sua chegada também fora notada. Uma bela mulher,
acompanhada de um rapaz, deixaram a caverna e caminharam até a cerca arrebentada por Torg na noite anterior.
— Algum problema? — indagou o rapaz, com visível
animosidade no tom de voz.
— Não, tudo bem — resmungou apressadamente o
corcunda, como se lesse nos olhos deles que sabiam sobre o
ataúde.
— O furgão é seu? — continuou o rapaz.
— Sim, é meu. Ontem à noite eu...
— Levava alguma coisa? — insistiu o outro e Torg
sabia a que ele se referia.
Não conseguia adivinhar, no entanto, em que pé estavam as coisas. Teriam eles encontrado alguma coisa? Teriam aberto o ataúde? Se o tivesse feito, Drácula seria um
monte de cinzas naquele momento.
— Não, nenhuma carga — declarou, sondando-os.
O semblante do rapaz revelou satisfação e Torg não
entendeu. A bela mulher, que até então estivera em silêncio, se manifestou.
— Por acaso guardou algo na caverna ontem à noite?
Torg estremeceu, assustado.
— Não, nada... Por quê? — arriscou perguntar, notando que o rapaz examinava os fios de arame arrebentados.
Tudo era muito comprometedor e podia sentir que não
acreditavam nele. O que estava se passando, no entanto, era
algo que não conseguia perceber.
— Por nada — respondeu Naiara. — Somos da Universidade de Turim e estamos cavando o local. Se pudermos ser úteis em alguma coisa, basta dizer — sorriu ela, afastando-se.
O rapaz ainda continuou ali, junto à cerca, olhando
Torg de uma maneira estranha e cúmplice. Depois virou as
costas e seguiu a professora.
O mecânico veio apresentar seu relatório. Torg simplesmente lhe disse que cuidasse de tudo. Precisava ir até a
caverna se certificar do que estava acontecendo. Se Drácula
fosse destruído, tudo estaria perdido para ele também.Sem
seu mestre, voltaria a vagar pela terra sem destino e sem
oportunidade de concretizar seu sonho maior. Apenas Drácula poderia ajudá-lo a conseguir um novo corpo, belo, atraente, capaz de fornecer a Torg todas as oportunidades
para gozar dignamente sua imortalidade.
Ultrapassou a área delimitada como se demonstrasse
apenas curiosidade. Chegou à caverna. Entrou. Todos pareciam ocupados demais para dar-lhe atenção.
Ao ver que trabalhavam junto à fenda, estremeceu e
seus músculos se crisparam. Se houvesse descoberto o ataúde, teria de agir imediatamente, dizimando-os com sua
força descomunal.
Não era a melhor maneira de resolver tudo, mas seria a
única coisa fazer. Caminhou alguns passos. A lâmpada colocada sobre a fenda, iluminava seu interior.
Viu, então, que todo o trabalho da equipe se encontrava concentrado na tarefa de resgatar um esqueleto. Uma
prancha de gesso havia sido armada ao redor dos ossos, equilibrados numa saliência.
Recuou. Talvez não tivesse descoberto o ataúde, mas
não confiava muito nisso. As perguntas que lhe haviam sido formuladas revelavam que alguma coisa fora descoberta.
O instinto o alertava.
— Não vai demorar agora, senhor — disse o mecânico. — Vamos tirar essa beleza daqui em pouco tempo.
Torg olhava na direção da caverna, cheio de pressentimentos.
— São uns loucos, não? — comentou o outro, percebendo o modo como Torg olhava.
— Loucos? — retrucou o corcunda.
— Esse lugar tem permanecido intocado desde que me
lembro. Antes disso, meu pai e meu avô já contavam coisas
a respeito desse local. É assombrado, muitos já viram coisas inexplicáveis aí...
— Assombrado? E todo mundo sabe disso?
— Sim, esse aí também, mas parece não acreditar em
assombrações... Mas cedo ou tarde vão acabar acreditando,
isso eu lhe garanto... Vão mesmo — resmungou o mecânico, indo cuidar de seu trabalho.
Torg sentou-se no estribo do furgão e ficou pensando.
Se o local tinha certa fama, poderia se valer disso para expulsar aqueles intrusos e resgatar Drácula.
Tudo poderia ser feito após o anoitecer. Restava aguardar e torcer para que nada de irreversível houvesse acontecido ao vampiro.
***
Assim que o trabalho foi concluído e puderam remover aquela preciosidade que despertava tanto interesse na
professora, Domênico deixou a caverna para acender um
cigarro.
Giglio estava no furgão, observando o jipe arrastar o
outro veículo, retirando-o da vala. O corcunda acenou para
o mecânico, depois saiu, acelerando firme e manobrando o
veículo sobre a estrada enlameada.
Domênico foi ter com o amigo.
— Como foi lá dentro? — indagou.
— A professora e as garotas estão cuidando de tudo. É
a especialidade delas, não? — respondeu Domênico, acompanhando, com o olhar, o furgão do corcunda desaparecer
na próxima curva.
Giglio seguiu a direção de seu olhar e demonstrou certa inquietação.
— O que conversaram com aquele sujeito? — indagou.
— Segundo ele, não levava carga alguma no furgão
nem guardou nada na caverna.
— Acreditou nele?
— Claro que não. Aquele ataúde é dele, estou certo. O
que leva lá está me intrigando. Nada me tira da cabeça que
se trata de contrabando.
— Também pensei nisso. Pode ser algo valioso. Não
se sabe de onde ele vinha nem para onde ele ia. Talvez se
dirigisse à Suíça...
Domênico concordou com um aceno de cabeça, depois
encarou o amigo. Pareciam falar da mesma coisa e nutrir a
mesma curiosidade a respeito do conteúdo daquele ataúde.
— Por que alguém esconderia um caixão? — indagou
Domênico.
— Se levasse um corpo em seu interior, não haveria
motivo para isso... Não pensa assim?
— Realmente... Pena que a professora esteja tão interessada naqueles esqueletos. Jamais permitiria...
— Sim, jamais permitiria — respondeu Giglio, entendendo onde Domênico queria chegar. — Além disso, ela
dorme muito tarde. Com o material que coletou hoje, na
certa atravessará a noite...
— Talvez se nós sugerirmos, ela o traga para o furgão.
Poderíamos ir até a fenda... Somos especialistas, afinal. Poderíamos retirar aquele ataúde sem danificar os esqueletos
que restam...
— Claro que podemos.
Domênico deixou cair seu cigarro sobre uma poça de
água, depois se endireitou e caminhou na direção da caverna.
***
Anoitecera.
Naiara se concentrava sobre seu trabalho, auxiliada
por Magda e Helena, suas melhores alunas naquele tipo de
atividade.
O jantar fora servido há pouco. Pouco importava à
professora alimentar-se, quando estava próximo de chegar
à descoberta mais surpreendente dos últimos tempos.
Não se tratava de revelar ao mundo cientifico italiano
a existência de outros vestígios da passagem dos romanos
pela região. O que tinha em mão era mais antigo, de muito
antes da fundação da própria Roma.
A analise daquele esqueleto revelaria muitas coisas.
Teria de remetê-lo o mais depressa possível para a Universidade, a fim de que fosse estabelecida a sua idade.
Antes disso, porém, precisava analisar cuidadosamente aquele crânio. Nele poderiam estar todas as respostas que
procurava.
Seria bom demais se encontrasse o Licorne ou seus
vestígios logo de inicio. Era improvável, mas não impossível. Cada caveira que lhe caísse nas mãos teria de ser estudada com afinco. Uma delas poderia ser aquela que buscava.
— Estou exausta! — exclamou Helena, terminando de
compor o molde daquela cabeça antiga.
— Descanse um pouco. Eu e Magda vamos assumir.
Você já fez sua parte.
— Espero que encontre o que procura, professora —
sorriu a garota, apanhando sua carteira de cigarros e seu isqueiro de cima da mesa de estudos e rumando para a porta
traseira do furgão.
Quando a abriu uma lufada fria bateu contra seu rosto.
— Voltou a chover — disse, observando a garoa fina
que descia do céu e era empurrada pelo vento.
— Feche a porta, Helena! — pediu Naiara.
A garota saltou do veículo e obedeceu. Ia caminhar na
direção da barraca montada pelos rapazes, mas mudou de
ideia, no meio do caminho e correu para a entrada da caverna.
Havia luz em seu interior. Ficou ali, encostada à parede, olhando a noite. Viu quando a luz na barraca de Giglio
e Domênico se apagou. Pensamentos marotos passaram por
sua mente e ela sorriu.
Poderia ir até lá e aliviar adequadamente toda a tensão
e o cansaço por aquele dia de trabalho.
Descartou a ideia, porém. Não gostava muito de Giglio. Era antipático e convencido. Domênico tinha certa
classe, mas não poderia fazer nada em relação a ele sem
despertar a atenção de Giglio.
Sentou-se numa pedra e continuou fumando, olhando
a garoa que caia, apreciando o silêncio daquela noite. Não
pensava em nada tétrico. Seu espírito científico a punha acima de supertições ou temores sobrenaturais.
Acreditava no que via, no que seu raciocínio entendia.
Isso a fez lembrar-se de que estava com frio. A ideia lhe
veio de repente, como uma espécie de pressentimento infundado.
Não era o vento que soprava que fizera esfriar seu
corpo daquela maneira. Era algo que vinha da caverna. Riu
de si mesma e da tolice daquela conclusão.
O cigarro permaneceu, no entanto, entre seus dedos e
ela ficou imóvel, como se qualquer movimento de seu corpo fosse confirmar um receio que se infiltrava nela estranhamente.
Voltou a rir, dizendo a si mesma que só bastava ter a
impressão de estar sendo observada para que o quadro se
completasse.
Mordeu os lábios, porém, quando exatamente isso aconteceu. Algo sufocante oprimiu seu peito. Talvez apenas
sugestão, mas um animal rosnou baixinho atrás dela e sua
respiração pesada e ameaçadora pareceu ecoar pela caverna.
Na parede, ao lado, uma sombra foi lentamente se agigantando.
CAPÍTULO 6
Voltou-se temerosa, sentindo sucessivos calafrios eriçarem sua pele. Um terror angustiante se manifestou naquela sensação de sufocação que explodiu em seu peito.
Ficou olhando aquela sombra aumentar, até que um
vulto sinistro, caminhando lento, se emoldurasse à boca do
túnel. Um homem vestido de negro, de rosto indefinido pelas sombras, estendeu-lhe as mãos, num convite irrecusável.
Helena estremecia espasmodicamente. Seus maxilares
se entrechocavam num ruído característico e seus olhos estavam fixos naquelas órbitas de fogo que se destacavam no
rosto diante dela.
Era impossível resistir. Não sabia o que estava se passando nem quem era aquela figura misteriosa e aterradora,
mas tinha de fazer o que lhe era ordenado.
Mecanicamente seus passos a conduziram na direção
dele, que foi recuando pelo declive, até a ampla sala de pedra. Dali Drácula a guiou até um dos túneis, aprofundandose na escuridão.
A presença morna e revigorante da garota despertava
incontida volúpia em seu corpo enfraquecido. Queria gozá-
la ao extremo, sugando-lhe o sangue que lhe devolveria as
forças e o livraria da ameaça de destruição.
Helena apenas ouvia, agora, o eco dos próprios passos
no túnel, além do rosnar ameaçador do homem que a guiava.
Mantinha-se lúcida, percebia onde caminhava, mas
não sabia o que a esperava ao fim daquela caminhada. O
pavor desconhecido era enlouquecedor.
Estacou, subitamente, quando seu corpo esbarrou em
algo frio e impessoal, como uma sombra materializada.
Seus músculos se crisparam. Lágrimas brotaram espontaneamente de seus olhos, escorrendo por suas faces.
Drácula a abraçou, bafejando-a com seu hálito fétido,
esfregando-se a ela, gozando o secreto e macabro prazer de
adiar o momento supremo.
Queria se sentir vivo novamente, forte outra vez e nada como a presença vencida de uma bela mulher para isso.
Suas mãos apertaram as carnes voluptuosas de Helena, das
nádegas aos seios, das coxas torneadas ao ventre delicado.
Sua boca gosmenta pousou sobre as faces dela e o
gosto de sal das lágrimas que escorriam deram-lhe a exata
dimensão de seu poder sobre os mortais comuns.
Riu, misturando grunhidos e rosnados, enquanto todo
o corpo de Helena estremecia, percorrido por arrepios de
indescritível horror.
Os lábios dele deslizaram, então, para o pescoço frágil
e tentador, pousando sobre a veia que latejava. Uma volúpia intensa e alucinante dominou-o. Ele empurrou a garota
contra a fria parede de pedra e pressionou seu corpo ao dela
com força.
Sua boca se abriu, as presas se destacaram ameaçadoras, pousando sobre a veia latejante. Sua respiração se acelerou. Uma pressão firme e sentiu que a pele se rasgava e
que algo morno e delicioso esguichou para sua boca.
Resfolegou esganadamente, ébrio de prazer e volúpia.
***
Tudo estava em silêncio no acampamento. Havia luz
apenas no furgão e no interior da caverna. Torg avançou
pelas sombras, observando tudo atentamente.
Quando se certificou de que não seria visto, penetrou
na caverna e rumou para a sala de pedra. Viu a fenda e se
aproximou. Debruçou-se, viu os metais do ataúde rebrilhando, além de uma estrutura de madeira que haviam instalado para remover os esqueletos das bordas da fenda.
Teria de desfazer tudo aquilo. Se agisse com presteza,
poderia remover o ataúde e libertar Drácula.
Trazia, enrolado a tiracolo, um pedaço de corda e uma
roldana. Quando ia iniciar seu trabalho, pressentiu qualquer
coisa.
Ergueu a cabeça, prestando atenção. O som de passos
na entrada da caverna. Ele olhou ao seu redor, depois correu para se ocultar num dos túneis.
Giglio e Domênico se aproximaram da fenda e, por
instantes, examinaram seu interior.
— Vamos desfazer o estrado. Eu cuido disso, enquanto você prepara o guindaste — disse Domênico.
— Certo. Vamos agir com rapidez e retirar o ataúde.
Estou curioso a respeito de seu conteúdo — disse o outro.
Oculto no túnel. Torg sorriu. Talvez não precisasse fazer esforço algum. Deixaria que os dois trabalhassem por
ele e resgatassem Drácula.
Estava certo de que se arrependeriam amargamente
depois. Enquanto os observava, sentiu qualquer coisa no ar.
Era a mesma sensação que o dominava quando Drácula estava por perto. Sua presença maligna impregnava o ar.
Olhou ao seu redor, perscrutando, tentando definir de
onde vinha aquilo. Teria Drácula deixado seu descanso? Isso parecia nítido.
A menos que houvesse na caverna outra força maligna, tão poderosa quanto o vampiro, aqueles rapazes encontrariam apenas um travesseiro de terra no interior do caixão.
Drácula estava enfraquecido, no entanto. Disso Torg
tinha certeza. Desejou poder investigar aqueles túneis, mas
seus movimentos fatalmente atrairiam a atenção dos dois.
Precisava deixá-los terminar o trabalho, antes de afugentálos.
— Devagar agora — recomendou Domênico, após haver baixado o gancho e o enroscado a uma das alças polidas.
Giglio começou a manobrar a manivela do guindaste
improvisado sobre a fenda. Lentamente o trabalho mostrou
resultado.
Enquanto Domênico controlava a subida, evitando
provocar danos nas ossadas acumuladas por toda parte. Giglio ia enrolando o cabo, mal podendo se conter para não se
apressar e satisfazer imediatamente sua curiosidade.
O ataúde finalmente, fora alçado. Domênico puxou-o
para o lado. Giglio baixou-o lentamente. Cercando-o, olhando-o com curiosidade.
— É antigo... Veja estas inscrições — apontou.
Domênico se inclinou e espanou a poeira acumulada
sobre uma das muitas placas de metal que cobriam a tampa.
Uma inscrição nazista se revelou ante seus olhos surpresos.
— Um ataúde nazista! — exclamou.
— Não consigo imaginar o que estaria fazendo aqui.
Ainda acha que foi o corcunda?
— Não sei, onde ele conseguiria algo assim? O que
haverá aqui dentro — comentou Domênico, verificando a
maneira como era fechado o ataúde. — Não há fechos nem
parafusos.
— Então deve estar colada... Estranho, não?
Subitamente, interrompeu-se. Passos soaram na entrada da caverna.
— Helena! Precisamos de sua ajuda! — gritou Magda.
Os dois rapazes se entreolharam. Antes que pudessem
se esconder, porém, a professora e a aluna surgiram diante
deles. Naiara os olhou severamente.
— Vocês não tinham o direito de...
— Não danificamos os esqueletos, professora. Sabe
que somos capazes...
— Isso deveria ficar onde estava. Muita coisa importante pode ter se perdido com esse ato impensado...
— Talvez tenhamos descoberto um pouco de história
nisso também, professora — adiantou-se Domênico. — Este ataúde traz algumas curiosas inscrições. Venha ver.
Naiara se aproximou, contendo sua indagação. Aqueles irresponsáveis poderiam ter causado danos irreparáveis
com a sua curiosidade.
Ao se debruçar sobre o ataúde, no entanto, viu-se intrigada. Eram mesmo inscrições nazistas. O conjunto todo
parecia muito bem conservado, mas revelava certo artesanato que há muito deixara de ser praticado.
A madeira negra era sólida e polida, com entalhes artificiais bem distribuídos. Nas laterais, as alças cromadas ainda conservavam, talvez o brilho original.
— Como teria vindo parar aqui? — indagou Domênico.
— Uma coisa é certa: ele caiu pela fenda recentemente. Vejam isso — apontou ela, onde a madeira fora riscada
no choque contra as pedras. — além disso, há lama aqui,
como se alguém o tivesse arrastado.
— O corcunda? — lembrou Giglio.
— Talvez, mas ele negou. Por que teria feito isso? O
que haverá aqui dentro? — indagou ela.
— Acho que devemos abri-lo — sugeriu Domênico,
impaciente — Mas não vemos parafusos ou fechos. Talvez
esteja colado.
— Seria uma pena danificá-lo. Dê-me aquela lâmpada
— ordenou.
Giglio se apressou em atendê-la. Naiara se ajoelhou
junto ao ataúde e aproximou a lâmpada, observando atentamente. Podia perceber onde a tampa se encaixava ao corpo do ataúde. Não havia vestígios de cola ou qualquer outro material. Retirou, então, uma espátula do bolso de seu
avental.
Introduziu-a na fenda, deslizando-a de um lado para
outro, sem encontrar nenhuma resistência.
— Curioso! Vamos tentar remover — disse.
Os quatro se juntaram, então, mas todo o esforço foi
inútil. Era como se houvesse algo prendendo a madeira ou,
então, uma força misteriosa mantendo-a unida.
Desistiram e, por instantes, ficaram olhando os outros.
Percebeu que Helena não estava entre eles.
— Onde está Helena? — indagou.
— Não está no furgão? — retrucou Domênico.
— Não, nem em sua barraca. Pensamos que estivesse
aqui...
— Talvez tenha ido dar uma volta — argumentou Giglio.
— A está hora, com a garoa fria que cai? É improvável. Vamos procurá-la.
— E o ataúde?
— Não irá a parte alguma, irá? — ironizou a professora.
Quando deixaram a caverna, Domênico apontou algo
junto à parede.
— Vejam, o isqueiro e cigarros!
— É de Helena. Eu a vi pegá-los quando saiu — afirmou Magda.
Os quatro se entreolharam.
— Vamos apanhar lanternas e procurá-la. Talvez tenha se perdido num dos túneis da caverna, ou por aí, nas
redondezas.
Quando suas vozes se afastaram, Torg deixou seu esconderijo e correu para junto do ataúde. Ergueu facilmente
a tampa. Drácula repousava em seu interior, o corpo esguio
estendido, as mãos cruzadas sobre o peito, sangue fresco
em seus lábios que pareciam rir de satisfação.
O corcunda compreendeu, então, o que ocorrera. A
Helena que procuravam havia servido ao mestre, devolvendo-lhe as forças com seu sangue morno.
Drácula estava a salvo, pelo menos por enquanto. Remover o ataúde seria uma tarefa impossível, com todos aqueles intrometidos rondando lá fora.
Não havia o que temer se deixasse o ataúde ali. Jamais
outras pessoas conseguiriam remover aquela tampa. Apenas ele, Torg, e Drácula podiam fazê-lo em virtude do elo
sobrenatural que os unia.
Fechou-o, depois se esgueirou cuidadosamente, deixando o local.
***
Amanhecia e nos rostos exaustos de Naiara e seu grupo estava estampada a preocupação. Nenhum vestígio de
Helena fora encontrado, durante toda noite de buscas.
Haviam preparado um rápido desjejum. Enquanto comiam em silêncio, olhavam na direção da caverna. Ali parecia estar a resposta para suas indagações.
Talvez Helena tivesse penetrado num dos túneis e se
perdido. Poderia ter sofrido um acidente. Haveria, com certeza, outras fendas pela caverna.
— O que vamos fazer agora, professor? — indagou
Magda.
— Não vamos nos desesperar, Giglio. Apanhe o jipe e
vá até o posto. Traga todo o pessoal. Tente ligar para Saluzzo e verificar se a turma do caminhão também pode vir.
Temos de investigar cada um desses túneis.
— Devo avisar a polícia?
— Não vamos nos antecipar. Se fizermos isso, o povo
da redondeza saberá e com certeza haverá novas pressões
para que encerremos nosso trabalho aqui. Sabemos como é
importante continuar, agora que estamos tão perto das respostas que procuramos. Vá, vá depressa!
Giglio saltou para o jipe e se afastou na manhã nublada, mas sem chuva. Apenas a garoa caíra durante toda a
noite.
— Domênico, apanhe todo o fio de que pudermos dispor. Vamos começar agora mesmo. Escolheremos um dos
túneis e iremos por ele. Quanto mais luz tivermos, mais rápido será o trabalho — ordenou.
Algum tempo depois estavam na sala principal da caverna, observando os túneis que se aprofundavam na pedra.
Junto deles, como uma presença maligna e sinistra, estava o
ataúde negro, agora esquecido.
Todas as suas atenções se concentraram em localizar
Helena. Domênico instalara uma lâmpada numa bateria
portátil, tornando mais fácil o trabalho.
Percorria, agora todas as entradas de túneis. Parou diante de um deles, observando algo na parede. Esfregou uma
das mãos no local. Depois apanhou um pincel de pelos duros que trazia sempre no bolso e espanou.
— O que encontrou aí? — indagou Naiara, aproximando-se na companhia de Magda.
— Veja está inscrição, professora. É a primeira que
encontramos por aqui com essa característica.
Um arrepio percorreu o corpo de Naiara ao observar.
Um crânio havia sido entalhado rusticamente na pedra. Não
chamaria tanto a atenção se não fosse por aquele longo e
pontiagudo chifre que se projetava à altura da testa.
— O Licorne! — exclamou, num sussurro emocionado.
Domênico sabia a que ela estava se referindo e observou a entrada do túnel. Era maior que os outros existentes
por ali e, no chão, a pedra parecia haver sido polida ao longo dos anos, como se aquele caminho tivesse sido percorrido vezes sem conta por pés humanos.
Abaixou a lâmpada para que Naiara também notasse
isso. Entreolharam-se. A excitação da professora se fez
maior que a preocupação de encontrar Helena.
— Temos de começar de alguma parte não? — argumentou ela, como se precisasse justificar seu egoísmo científico que se sobrepunha à preocupação humana.
— Claro — concordou o rapaz, enquanto Magda os
olhava sem entender sobre o que falavam.
— Está bem, vamos em frente, então — ordenou Naiara.
Enquanto caminhavam pelo túnel, novas inscrições foram surgindo, todas apresentando aquela figura intrigante
com um chifre saliente no alto da testa.
— Vejam! — apontou Naiara, diante de uma delas,
que apresentava uma espécie de reunião, com diversas figuras humanas sentadas e de cabeças baixas diante da figura
do Licorne que, de braços estendidos, parecia afirmar seu
domínio sobre aquela gente.
— Lembra-me alguma coisa — disse Domênico.
— A tapeçaria no Museu de Cluny. As semelhanças
são incríveis.
— De que estão falando, afinal? — indagou Magda,
intrigada com toda aquela conversa misteriosa.
Naiara, então, em rápidas palavras, a pôs a par do que
se tratava. Magda se contagiou, então, pela mesma excitação que dominava os outros e seguiram em frente, até um
ponto onde o túnel se estreitava.
Um desabamento obstruíra a passagem, tornando impossível prosseguir. Naiara estremeceu de frustração. Sabia
que por de trás daquelas pedras talvez estivesse tudo aquilo
que viera buscar naquela local.
— Pelo menos sabemos que Helena não veio por aqui.
O desabamento é antigo — murmurou Domênico, igualmente frustrado.
— Não conseguiríamos desentulhar o caminho sozinhos. Vamos ter de esperar... Vejamos os outros túneis, enquanto isso.
CAPÍTULO 7
Entardecia e todos estavam reunidos ao redor do furgão. Em seus rostos estampava-se o mesmo cansaço e a
mesma desolação.
Haviam palmilhado os túneis da caverna inutilmente.
Muitos haviam sido os obstáculos e muitas as hipóteses levantadas.
Havia muitas fendas naquela sequencia de túneis, algumas tão profundas que jamais seriam exploradas. Helena
poderia ter despencado por uma delas.
Para a professora, no entanto, todas aquelas teorias eram improváveis, mas, por mais que se esforçasse, não conseguia pensar no assunto com clareza.
Toda a sua atenção e preocupação se concentravam
naquele túnel maior, obstruído por um desabamento. As
inscrições reveladoras confirmavam a existência, um dia,
daquele ser fantástico.
Descobrir mais sobre ele, seus restos, possivelmente,
era tudo que importava agora.
— Devemos avisar a polícia? — indagou Domênico,
estendendo-lhe uma xícara de café.
— Não, não podemos fazer isso. Todo nosso trabalho
seria interrompido... Temos de continuar procurando e, ao
mesmo tempo, não deixar que nosso verdadeiro objetivo fique para trás. Divida o pessoal. Uma turma continuara nas
buscas. A outra cuidará em desentulhar aquele túnel.
— Sim, claro — concordou o rapaz.
Era igualmente ambicioso. Aquele projeto poderia se
tornar a manchete mais importante nos meios científicos.
Constar nela como um dos principais colaboradores de
Naiara contaria pontos valiosos para seus trabalhos futuros.
Quando dividiu o pessoal, dando-lhes as tarefas, houve alguém que discordasse da decisão.
— Já vasculhamos tudo na caverna e ao redor. Onde
mais vamos procurar? — indagou alguém.
— Sim, o único lugar em que não procuramos foi naquele ataúde lá na caverna. — ajuntou outro e a lembrança
pareceu despertar todos, que olharam na direção da professora.
Naiara se pôs em pé num salto. Era impossível, mas se
o ataúde despertara a curiosidade de Giglio e Domênico,
por que não de Helena.
Não precisou dizer nada. Um grupo de rapazes correu
para a caverna e trouxe para a luz do dia o misterioso caixão. Alguém surgiu com um pé de cabra.
— Já vamos descobrir — disse, introduzindo uma das
pontas onde as madeiras se juntavam.
Forçou. Dois outros foram ajudá-lo. Todo esforço se
mostrou inútil. Nada abalava o ataúde. Domênico, então,
muniu-se de um machado.
— Vai ser uma pena danificá-lo, mas é o único modo
— disse, erguendo a pesada ferramenta.
Um grito de mulher, no entanto, ecoou pelas paredes
da caverna, aterrorizando todos. Correram naquela direção.
Um dos rapazes saía, amparando uma garota, cujo semblante refletia terror.
— Lá dentro... Nós o achamos — murmurou o jovem,
igualmente chocado.
— Helena? Como ela está? — quis saber Naiara, febrilmente.
— Está morta, professora. A coisa mais horrível que já
vi. Seu pescoço foi rasgado... Abriram-lhe o peito.
— Mostre-nos onde foi — pediu Naiara, estarrecida.
***
Anoitecera.
Oculto nas proximidades, Torg observava toda aquela
gente ao redor de uma fogueira. Silenciosos, assustados, estranhos.
O ataúde estava num ponto afastado e o corcunda decidiu resgatá-lo, enquanto os outros estivessem alheios a
ele. Avançou até o local, agarrou uma das alças e foi arrastando lenta e silenciosamente sobre a terra úmida.
Quando se julgou a salvo, ergueu a tampa. A mão de
Drácula, fria e firme, estendeu-se, agarrando-o pelo pulso.
O vampiro se ergueu e rosnou, enfurecido, fixando seus olhos chamejantes nos do corcunda.
— Sua besta inútil! — vociferou, enquanto sua mão se
abatia pesadamente contra o rosto do outro, atirando-o ao
chão.
— Perdão, mestre! — choramingou Torg, rastejandose para junto de Drácula e suplicando clemência.
O vampiro ergueu o pé e depositou-o sobre o rosto de
Torg, afundando-o na lama.
— Quase sou destruído... O que fez a respeito? Seu
verme rastejante, inútil e bizarra criatura do mal, aleijão da
natureza. — rosnou o vampiro, recuando, finalmente.
Torg se ergueu, cuspindo lama, mas manteve a cabeça
baixa. Sabia que seria inútil argumentar. Drácula tinha razão, afinal. Sua imprudência quase destruíra seu mestre.
— Quem é essa gente? — indagou o mostro.
— Cientistas, mestre. Estão à procura de alguma coisa
na região...
— Estão investigando a caverna... Há qualquer coisa
nela, eu senti a animosidade no ar...
— Também senti o mesmo, mestre. Há uma força maligna e inimiga lá dentro. Por que não vamos embora agora
mesmo? Temos um longo caminho até Roma. Lá estaremos
protegidos e o mestre recuperará todo o tempo perdido.
— Não! — grunhiu o vampiro — Tentaram me destruir. Tentaram abrir o ataúde à luz do dia. Sabe que não posso
permitir isso. Quem os lidera?
— É uma mulher... Uma bela mulher, mestre — disse
o corcunda, sabendo que a ideia agradaria o vampiro.
— Uma bela mulher... — repetiu Drácula, num tom
ameaçador. — Onde está nosso veículo?
— Não muito longe daqui...
— Leve o ataúde para lá, depois siga em frente e me
aguarde em algum ponto da estrada.
— Há um posto de gasolina, a alguns quilômetros daqui...
— Ótimo! — concordou o vampiro, afastando-se na
noite.
***
Quando Naiara deixou o furgão, todos os rostos se
voltaram para ela, que demonstrava, no semblante cansado,
estar atônita diante do que ocorrera.
Examinara o corpo de Helena. Não fora fácil. Primeiro, aquelas feridas na garganta. Depois, o peito aberto com
uma violência bestial e o coração arrancado impiedosamente.
Homem algum, em sã consciência, cometeria um crime tão horrível. Jamais em sua vida inteira tivera conhecimento de algo tão desumano.
Os alunos a cercaram, esperando respostas. Preocupava-a, no entanto, o prosseguimento de seu trabalho. Estava
próximo de confirmar todas as suas teorias. O Licorne existia, não tinha mais dúvidas. O trabalho não podia parar.
O que estava prestes a fazer talvez fosse cruel, mas
sabia o que aconteceria se a morte de Helena fosse revelada
àquela altura.
Precisava manter segredo, afastando a polícia e os
comentários dos habitantes da região, que na certa se armariam de suas supertições para impedir que a pesquisa tivesse prosseguimento.
Encarou cada um dos que a cercavam. Conhecia todos
eles, sabia o quanto confiavam nela.
— Helena se perdeu no túnel. Na certa se desesperou,
vendo-se na escuridão. Debateu-se, machucando-se seriamente. Foi uma pena, uma lástima. Aquelas pedras pontiagudas rasgaram seu corpo e ela sangrou até morrer. Parece
que não sofreu apesar de tudo.
Um silêncio se abateu entre todos.
— O que vamos fazer, professora? — indagou alguém.
— Pelo que me consta, Helena não tinha família...
— Sim, eu e ela dividíamos um quarto na Universidade — disse uma das garotas.
— O que vou lhes dizer é cruel e desumano, sei disso,
mas devem compreender tudo que teremos a perder se o fato for revelado agora — disse, calando-se por instantes,
como se medisse as palavras que deveria dizer a seguir.
Domênico percebeu sua dificuldade e se antecipou.
— O que a professora quer dizer é que seremos impedidos de continuar nosso trabalho, se o acontecimento chegar aos ouvidos do povo daqui. Vocês sabem das dificuldades que enfrentamos no inicio...
— E o que será feito de Helena? Não podemos simplesmente ignorar o fato de que ela está morta — protestou
alguém.
— Chamar a polícia e interromper nossa missão não
vai mudar esse fato. Ela está morta, é irreversível, mas tenho absoluta certeza de que ela jamais desejaria que interrompêssemos tudo. Era uma garota curiosa, entusiasta e
cheia de vida. Acho que devemos isso a ela. Temos de
prosseguir, agora que estamos muito próximos do que viemos buscar aqui.
— E o que viemos buscar, afinal? Parece que não nos
contou tudo, professora.
— Está bem, devo fazer isso agora. Vocês vão saber
de tudo — concordou, expondo-lhes tudo a respeito de suas
teorias e das descobertas mais recentes.
Quando terminou, todos estavam emudecidos, oscilando entre a incredulidade e a curiosidade. Tudo aquilo
parecia muito fantástico. Inacreditável, mistura de fantasia
com incredulidade.
Os povos antigos sempre haviam desenhado seus deuses com características além da imaginação. Interpretá-las
ao pé da letra seria exagerar. Naiara, no entanto, falara com
tanta convicção que aguçava a curiosidade de cada um a
respeito do assunto.
Muito mistério cercava a antiguidade. Seres mitológicos sempre estiveram presentes em todas as culturas. Provar a existência de um deles poderia ser o golpe mais contundente no materialismo cientifico do mundo moderno.
— Se temos de fazer esse trabalho, sugiro começarmos agora mesmo. Poderemos escalonar as turmas para que
trabalhem sem parar, desimpedindo o túnel. O que me dizem? — animou-os Domênico, interessado no prosseguimento da pesquisa.
A resposta foi unânime.
***
Lauro Marettino, o fazendeiro, possuía um par de bons
cães de caça que, por serem muito ferozes, guardava num
canil afastado do curral.
Naquela noite, porém, quando todos haviam se recolhido, ele se lembrou do que acontecera na noite anterior.
Fosse um lobo ou qualquer outro tipo de fera, merecia ser
mantido afastado das outras vacas.
Pensando nisso, deixou a casa e foi até o canil. A sua
aproximação, os animais puseram-se a latir furiosamente. A
balbúrdia atraiu a atenção de Agostino, que foi até lá verificar.
Levara, numa das mãos, sua espingarda de caça lobos.
— Vai soltá-los? — indagou ao patrão.
— Sim. Se o tal lobo aparecer outra vez, será bem recebido pelos cães. Tranque bem a porteira do curral. Não
quero que eles entrem lá, iriam assustar os animais.
Agostino foi cumprir a ordem recebida, enquanto Lauro libertava seus cães, que festejaram ao seu redor. Recolheu-se, depois.
Em sua cabana, Agostino olhava a janela do quarto de
Nunciata, percebendo a luz acesa. Conversara com ela naquela tarde e a convidara novamente para vir encontrar-se
com ele.
Ela respondera vagamente, mas a malicia estampada
em seu olhar não negava seu interesse em atender ao convite. Estava seguro de que bastaria esperá-la. Ela viria, como
na noite anterior.
Foi se servir de vinho. A noite estava fria e a expectativa da presença da amada aquecia seu coração. Debruçouse na janela e aguardou com impaciência.
No céu, empurradas pelo vento, as nuvens caminhavam com rapidez, deixando perceber, espaçadamente, o brilho das estrelas.
A claridade baça da lua cheia ameaçava varar o véu
compacto, revelando com certa nitidez contornos das construções da fazenda.
Os cães farejavam o pátio. O vento soprou mais forte.
Um deles ergueu a cabeça para o alto e ficou imóvel naquela posição. Depois, como que descobrindo algo, correu na
direção do deposito.
O outro ficou para trás, depois o seguiu sem muita
pressa. Quando os ouviu latir julgou que teriam acuado
uma das ratazanas que habitavam a velha construção.
Toda a sua atenção estava voltada para a casa principal. A luz no aposento de Nunciata se apagara e isso fizera
aumentar sua expectativa e sua excitação.
Viu, então, a porta se abrir e o vulto encapuzado da
garota ensaiar alguns passos em sua direção. Os cães passaram em disparada, ganindo assustados, com os rabos entre
as pernas e as orelhas caídas.
Por momento Agostinho ficou confuso com aquela fuga desesperada dos animais. Depois, quando Nunciata ca-
minhou com mais firmeza na direção da cabana, concentrou
nela toda a sua atenção.
Repentinamente um vulto negro e ameaçador passou
ao lado, rumando para a garota, que estacara. Agostino não
entendeu o que se passava.
Viu aquele homem se aproximar da jovem e tomá-la
nos braços. O ciúme explodiu em seu peito, já que a garota
perecia corresponder e não reagia.
Estendeu a mão e apanhou sua espingarda. Saltou pela
janela e correu.
— Quem pensa que é para... — foi dizendo, enquanto
engatilhava a arma.
Estacou, quando um raio da lua cheia venceu, finalmente, as nuvens e iluminou aquele rosto crispado e furioso
que o olhava.
— Deus! — exclamou, lembrando-se do que vira na
noite passada.
Aquele vulto sinistro estivera no curral e atacara uma
das vacas. Não tinha dúvidas quanto a isso. Bastava ver as
longas pressas ensanguentadas que cobriam seu lábio inferior.
Nunciata recuou, levando a mão ao pescoço e gritando
estridentemente. O monstro estendeu uma das mãos na direção do pescoço de Agostinho, que apertou os gatilhos.
A explosão ensurdecedora e à queima roupa poderia
destroçar um ser vivo, mas nada causara aquilo que tinha
diante de si.
Sentiu o gelo e a força daqueles dedos contornando
seu pescoço e pressionando violentamente. Nunciata voltou
a gritar, enquanto corria na direção de sua casa.
Drácula ergueu Agostino diante de si, depois o jogou
para trás como se fosse apenas um graveto. Depois caminhou em perseguição a Nunciata.
Uma lâmpada se acendeu no alpendre da casa e a figura sonolenta e assustada de Lauro Marettino se emoldurou
na porta.
A filha se jogou nos braços do pai, que não entendeu
aquele sangue em seu pescoço nem aquele homem que se
aproximava ameaçadoramente.
— A espingarda! — gritou ele para a mulher que se
aproximava.
Antes que ela pudesse atendê-lo, Drácula já o agarrava
pelo pescoço e o arremessava violentamente contra a lareira. Um baque surdo e um gemido dolorido anunciaram a
queda daquele corpo.
Do lado de fora, Agostino se erguia, sentindo como se
o pescoço estivesse separado do resto do corpo. Viu aquele
homem entrando na casa. Apanhou sua espingarda, mas
soltou-a ao se lembrar de que a descarregara momentos antes.
Correu para lá. Havia uma espécie de varal ao lado do
alpendre, de onde partiam fios de arame que serviam de apoio e caminho para as trepadeiras da primavera.
O desespero lhe deu forças e arrancou com decisão a
estrutura com o formato de uma cruz. Entrou na sala. Drácula rosnou e se voltou para ele. Agostino golpeou-o no
ombro e o vampiro urrou, ferido pelo poder do bem.
Sua fúria foi bestial, animalesca, devastadora. Quando
o rapaz soltou aquela arma poderosa e se apossou de uma
faca que estava sobre a mesa, os olhos de Drácula chamejavam de sadismo e ódio incontroláveis.
CAPÍTULO 8
O professor Hilgenstiller abriu febrilmente o pacote,
tão logo fechou a porta atrás de si.
A encomenda estava em sua caixa postal no saguão do
prédio. Ao ver quem era o remetente, assegurou-se de que o
outro conseguirá pôr em pratica o que fora sugerido.
Desfez o embrulho. Numa caixa de papelão, estavam
os projeteis, feitos conforme sua orientação.
— Balas de madeira com um recheio de chumbo —
disse, sopesando uma delas.
Estava ali, seguramente, a solução. O chumbo no interior escavado de madeira assegurava o peso necessário a
uma trajetória firme e segura.
Foi até um armário e apanhou sua velha pistola. Carregando-a. Os projeteis se encaixavam com perfeição nas
câmaras do tambor. Apertou a arma contra o peito.
Quando se avistasse novamente com Drácula teria
uma surpresa para o monstro. Precisava apenas estar atento,
agora, a todos os acontecimentos do mundo.
Em alguma parte, talvez naquele mesmo momento,
Drácula estaria fazendo mais uma de suas vítimas. Saber
que contava com uma arma eficiente para extermina-lo abrandava a impaciência que ardia em seu peito.
Tudo poderia ser apenas uma questão de tempo.
***
Encolhida a um canto, Nunciata presenciava aquela
cena dantesca, incapaz de crer e de aceitar aquele massacre
horrendo e sanguinário.
Junto à porta. Agostino estrebuchava em arrancos espasmódicos que retorciam seu corpo ao de uma ave destroncada. Lauro Marettino, com uma expressão de terror no
rosto, jazia junto à lareira.
Imóvel, a garota viu o monstro se erguer do cadáver
de sua mãe. Um grito escapou de seus lábios ao perceber
aquela boca lambuzada de sangue e aquelas presas pontiagudas.
O olhar penetrante do vampiro fixou-se nela. Chamejantes aqueles olhos transmitiam a vontade do mal, submetendo-a, chamando-a. Nunciata, em seu horror, sabia que
precisava resistir, mas isso era impossível.
Apesar do tremor que dominava seu corpo, lentamente
foi se aproximando daqueles braços abertos que a convidavam para um pacto de morte.
Lágrimas brotaram de seus olhos, escorrendo límpidas
por sua face angelical. Um riso animalesco desenhou-se
obscenamente nos lábios grossos da besta-fera.
— Não! — murmurou Nunciata, tentando não olhar
para a figura aterradora diante de si.
Uma gargalhada explodiu, então, fazendo-a encolherse de pavor. Drácula estendeu suas mãos e a agarrou pelo
pulso, puxando-a violentamente para si.
Seu hálito ardente varreu o pescoço da garota. Seu olhar faiscante fixou-se na veia que pulsava ao compasso
das batidas assustadas daquele coração.
Nunciata desfaleceu nos braços do monstro, que a amparou e a depositou sobre a mesa. Ficou olhando para ela,
admirando sua beleza jovem e tentadora.
Uma volúpia incontida dominou-o e, num movimento
brusco, rasgou os tecidos, despindo os seios rijos e deliciosos da jovem.
Admirou-os num suspiro rouco, sentindo-se acalmar
da fúria que se apossara dele. Estava saciado de sangue e
não deixava testemunhas além da garota.
Uma ideia sinistra passou por sua mente. Olhou ao seu
redor, depois caminhou pela casa, examinando-a. Havia
uma adega antiga, sem janelas, ideal para seu repouso.
Teria em Nunciata uma escrava à altura de sua nobreza. Poderia descansar temporariamente naquele local, recuperando totalmente suas forças.
Voltou à sala de entrada. Percebera muitos crucifixos
pela casa. Torg cuidaria de removê-los e tudo ficaria, então,
adequando a sua permanência.
A fazenda era isolada, isso tornava tudo mais apropriado. Sobre a mesa, Nunciata gemeu debilmente, abrindo os
olhos ainda cheios de pavor.
Drácula se inclinou sobre ela. Seu poder se impôs, sua
vontade seria a vontade dela. Poderia mantê-la intacta até
que chegasse o momento de gozá-la condignamente. Aquele corpo jovem merecia uma orgia de sangue, embora soubesse que não se tratava de uma virgem.
Riu, então, quando a garota se ergueu, desceu da mesa
e ajoelhou a seus pés. Drácula estendeu a mão onde se sobressaia seu magnífico anel.
Nunciata beijou servilmente a mão de seu carrasco.
***
Havia muito pó dentro do túnel e uma agitação incomum, agora que haviam anunciado à professora que ele estava quase desobstruído.
Naiara aguardava impacientemente, o coração aos saltos, uma expectativa angustiante invadindo seu corpo e inquietando-a.
Tudo poderia se confirmar a partir de então. Suas teorias julgadas fantasiosas poderiam ser provadas. O mundo
científico seria revolucionado com a prova da presença de
seres julgados mitos, mas reais em algum tempo.
— Professora — chamou-a Domênico, um tanto apreensivo.
— Sim? — quis saber ela, num sorriso que retratava
sua euforia diante da possível descoberta do Licorne.
— O que houve com aquele ataúde?
— Como assim?
— Não o acho em parte alguma.
— Deve estar lá fora, em alguma parte... Mas o que
importa isso agora?
Comentários ecoaram pelo túnel empoeirado, atraindo
a atenção da professora. Um dos alunos surgiu à boca para
sorrir-lhe com satisfação.
— Está livre agora, professora — disse. — Estão providenciando uma extensão para iluminar o caminho.
Naiara avançou pelo túnel, cobrindo o rosto com a gola de seu casaco. Rostos cansados e empoeirados sorriam
para ela.
— O privilégio é seu — disse Giglio, passando-lhe a
lâmpada acoplada a um cabo elétrico.
Naiara estremeceu, olhando a sequencia do túnel a sua
frente. As pedras do piso demonstravam o quanto a caverna
fora percorrida. Nas paredes, seguiam-se inscrições e gravuras, sempre retratando aquela figura misteriosa, centro de
toda a sua pesquisa.
Não havia como hesitar. Avançou lentamente, seguida
pelos alunos. Nas paredes frias e úmidas ecoavam apenas
os passos cautelosos e as respirações ansiosas de todo.
O túnel prosseguia, agora num aclive acentuado, como
se rumasse para o topo da colina. Uma sequencia de vasos
de cerâmica, com estranhos formatos, chamou a atenção de
todos.
Estavam intactos e Naiara se debruçou para examinara
um deles. Iluminou-o. O interior estava enegrecido, como
se alguma substancia houvesse ressecado ali.
Ergueu-se e continuou. O mais importante deveria estar à frente. Repentinamente viu-se numa ampla sala, com
inscrições enormes e todo tipo de armas rudimentares.
— maravilhoso! — exclamou alguém.
Naiara avançou até o centro daquele aposento natural,
olhando ao seu redor com visível impaciência. Não havia
esqueleto algum ou vestígio convincente da existência de
um ser animalesco e dominador.
— Veja, professora! — apontou Domênico.
Ela olhou na direção, depois caminhou para lá cheia
de curiosidade. Um estranho painel havia sido montado naquele ponto.
Era uma espécie de placa de cerâmica, onde fora esculpido em todos os seus horrendos detalhes a figura do Licorne.
A decepção apressou as condições em sua mente. O
Licorne poderia não passar mesmo de uma imagem criada
pelos próprios habitantes primitivos daquela região.
Seria uma espécie de deus, saído da imaginação de alguém, transformado num ídolo por algum artista habilidoso. Toda sua teoria desmoronava, portanto, diante daquilo.
— É arrepiante! — murmurou uma das garotas.
— Assustador realmente, mas fascinante. Vejam a perfeição dos detalhes e a expressão daquele rosto. Parece ter
vida... — comentou Domênico.
— Um valioso achado, professora — disse Giglio.
— Vai torná-la famosa, professora — acrescentou
Magda.
— Mas nada prova... Não podem compreender isso?
Nada prova! É apenas uma imagem — desabafou Naiara.
— Mas professora... — ia dizer Domênico.
— O que temos aqui? Mais um ídolo pagão, apenas isso. Um altar de cerimônias, um deus criado pela imaginação, mas nada real. Eu não buscava isso, vocês sabem que
não. Eu preciso mais... — quase gritando ela, recuando e
deixando a sala.
Caminhou apressada pelo corredor escuro, seguida pelos seus alunos que não compreendiam sua reação. Era uma
grande descoberta arqueológica, que possibilitaria grandes
conclusões a respeito do povo que habitava a caverna.
O entendimento daquelas inscrições todas nas paredes,
a analise dos materiais e utensílios encontrados, o exame
das gravuras humanas, tudo isso levaria a importantes estudos e deduções sobre a vida primitiva.
Para ela, no entanto, nada daquilo teria o sentido sensacionalista e revolucionário de uma descoberta realmente
explosiva.
***
Drácula avisara Torg a respeito da fazenda, incumbindo-o de fazer as arrumações necessárias a sua permanência.
Rumara, depois, para o sítio arqueológico.
Faria daquela a sua noite de vingança. Era preciso exterminar aqueles que ousaram ameaça-lo.
Ao se aproximar do local, no entanto, julgou que deveria concentrar toda sua fúria naquela mulher mencionada
por Torg, que comandava aqueles intrometidos.
A noite estava magnífica. O vento empurrava as nuvens negras, descobrindo uma lua cheia enorme. Seus raios
prateados incidiam sobre as asas do morcego negro como
agulhadas de prazer que punham vigor em seu corpo.
Em noites assim, Drácula se sentiu totalmente à mercê
de sua maldição e gozava os efeitos voluptuosos da lua.
Uma bela mulher era tudo que poderia desejar para extravasar sua fúria homicida instintiva.
O acampamento estava em silêncio, embora um grupo
de alunos se reunisse ao redor de uma fogueira, num canto
protegido do vento.
No furgão, havia luz e um vulto de mulher obscurecia
as janelas constantemente, como se alguém andasse de um
lado para outro.
Drácula olhou, então, na direção da caverna. Um arrepio instintivo fez arrepiar seu corpo, como se pressentisse a
proximidade de um inimigo igualmente poderoso.
Aquela sensação tinha um sabor acre de desafio e disputa por um domínio. A presença de algum outro ser infernal soava como uma ameaça ao poder do vampiro.
Voltou os olhos para o furgão. O caminho estava livre.
Ele avançou. Lá dentro, Naiara tentava aceitar a verdade
dos fatos, lutando contra a própria frustração.
Julgava haver se deixado levar por teorias fantásticas.
Deixara de lado importantes estudos antropológicos e sociológicos.
No fundo, porém, talvez soubesse de tudo isso e quisesse apenas chegar a algo diferente. A ciência surgia sempre com explicação plausíveis, mesmo para os fenômenos
mais intrigantes.
Naiara quisera, com tudo aquilo, provar que havia algo além da imaginação. Que lendas e mitos tinham um fundo de verdade. Que monstros como o Licorne não haviam
sido apenas fruto de imaginações férteis.
Estacou, repentinamente, olhando para uma das janelas, onde um par de olhos chamejantes se fixou nela. Levou
a mão aos lábios, ensaiando um grito, mas foi contida por
uma força além da sua.
Tentou reagir e fugir àquele domínio que se impunha
avassaladoramente, mas aquele olhar de fogo simplesmente
devorava sua vontade.
Do lado de fora, Drácula sorriu sadicamente e se esgueirou para a caverna. Ali, nas sombras, aguardou impaciente a aproximação daquela bela mulher.
Aquela sensação anterior voltou, agora mais forte, eriçando seu corpo, aguçando suas garras, fazendo arreganhar
suas presas amaldiçoadas.
Ele olhou ao seu redor, tentando captar de onde vinha
aquela maléfica influência que o perturbava. Naiara se aproximou. A luz da lua, um crucifixo brilhava em seu pescoço.
Drácula recuou, num grunhido dolorido, olhando-a
nos olhos e ordenando-lhe que se livrasse daquele amuleto
mortal para ele.
Qualquer coisa se agitou dentro dela, como se a fraqueza momentânea do vampiro a fizesse despertar daquele
transe suicida.
Ela viu nitidamente aquela figura grotesca diante de
si. Tentou recuar, mas Drácula contornou-a e barrou-lhe o
caminho. Naiara correu para o interior da caverna. A lâm-
pada fora esquecida acesa no túnel maior. Ela correu naquela direção.
Livre da influência do crucifixo, Drácula foi em sua
perseguição. Naiara gritou, então, enquanto se aprofundava
na caverna. Sua voz ecoou estridente e assustada, alertando
os alunos lá fora.
A fúria de Drácula explodiu em toda sua bestialidade e
brutalidade. Ele correu no encalço dela, alcançando-a na
entrada da ampla sala que ela descobrira naquela tarde.
Uma sensação forte como um impacto estremeceu o
corpo do vampiro. Ele olhou e aquela figura entalhada na
parede, reconhecendo-a. O Licorne de cerâmica parecia
zombar dele, como que o desafiando.
Ele agarrou com firmeza o pescoço da professora, depois, num empurrão repentino, arremessou-a contra aquela
gravura. O choque fez desfalecer a professora e ruir o mural de cerâmica, que se desfez em cacos, revelando uma
passagem secreta.
Um vento frio pareceu soprar. Drácula ofegou, ouvindo ruídos de passos que avançavam pelo corredor e vozes
chamando pela professora.
Metamorfoseou-se em morcego e voou para fora do
túnel, assustando aqueles que entravam, provocando pânico
entre as garotas que aguardavam na entrada da caverna.
Voou iluminado pela lua, satisfeito com a vingança.
A pancada fora violenta. Aquela bela mulher na certa
estrebuchava naquele momento, com sua linda cabeça feita
em pedaços.
Drácula não estava enganado de todo.
Espasmos agonizantes sacolejavam o corpo de Naiara,
enquanto seus olhos aterrorizados fitavam aquela caveira
hedionda, de cuja testa descarnada se projetava um chifre
longo e aguçado.
FIM DO LIVRO SETE
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO OITO
NAIARA, A MULHER VAMPIRO
CAPÍTULO 1
A enorme lua no céu espalhava calma, beleza e romantismo pelos campos lavados e pelas colinas desfolhadas.
O vento deixara de soprar e o clima de inverno próximo se desmanchava no perfume da terra molhada com cheiro de uma primavera temporã.
Ao redor da fogueira que projetava sombras tremidas
no chão úmido, o grupo de estudantes estava apreensivo e
assustado. Quando Domênico deixou o furgão e caminhou
até lá, todos os olhos cansados se voltaram para ele.
— Como ela está? — indagou Magda, apertando contra o peito o cobertor de lã, sentindo um frio intenso dominar-lhe a alma e uma sensação angustiante e indescritível
oprimir-lhe o peito.
— Muito agitada... Mal...
— O que vamos fazer? — quis saber Giglio.
O olhar de Domênico foi vago, revelando sua indecisão. Estavam aturdidos pelos acontecimentos. Ninguém dizia nada, mas a tensão se estampava em seus rostos.
Um estalido na fogueira, uma pedra que rolava da colina, um ruído anormal, tudo acelerava seus corações e os
fazia sobressaltar.
Um grito de mulher, repentinamente, gelou a medula.
As garotas se encolheram, os rapazes crisparam suas mãos
ao redor dos cabos das ferramentas que deixaram por perto
das escavações.
Todos tinham medo, embora não conseguissem definir
de onde ele vinha. Era um pavor que os cercava, impregnando-os e influenciando-os, como se larvas do mal pairassem no ar fresco da noite e fossem penetrando lentamente
suas peles.
— Eu não aguento mais! — desabafou Domênico, tomando uma garrafa das mãos de Giglio e levando-a aos lábios. — Ela está morrendo... Esses gritos... Diabos! Temos
de fazer alguma coisa!
Magda se levantou e caminhou até o furgão. Abriu
lentamente a porta traseira. Sobre a cama improvisada,
Naiara se contorcia em dores e em pavor.
O suor molhava seu corpo e seus olhos, que nada viam, abriam-se desmedidamente, injetados, inquietos, assustadiços.
Magda girou sobre os calcanhares e retornou para junto dos outros. Encarou Domênico com desespero.
— Temos de levá-la até Saluzzo — disse, numa súplica.
— Impossível! A estrada está impraticável. Se ao menos ventasse, haveria possibilidade de secar esse barro todo. Além disso, ela sofreu uma pancada violenta na cabeça.
Não podemos nos arriscar aos solavancos.
— Mas ela se agita tanto... Tão transfigurada...
Um grito cortou os ares, angustiado, aterrorizado, como se uma navalha dividisse a noite em duas partes sangrentas.
Todos se encolheram. Alguns levaram as mãos aos
ouvidos, apertando-as como se quisessem obter o silêncio.
— Já fizemos o possível... Temos de esperar. Tenho
sonífero no estojo de pronto-socorro.
Todos os olhares se voltaram para ele, suplicando.
***
Madrugada.
Agitando-se no leito, Naiara tinha instantes de lucidez,
alternados com momentos de pavor indescritível. As cenas
se desenrolavam e se repetiam em sua mente como sequencias macabras de um pesadelo tétrico.
A figura sinistra de presas pontiagudas e olhar magnetizante se alterava com aquela outra, descarnada e enigmática.
O Licorne estava lá, junto dela, imóvel como uma
sombra, até que o sangue que escorria dela fosse molhar os
ossos ressequidos de seu pé animalesco.
Um grito agigantou-se novamente no peito de Naiara,
porejada de suor, agitada e febril, ecoando metalicamente
pelas paredes do furgão.
A sombra grotesca deixara a figura hedionda do Licorne e se debruçava sobre ela. Então suas lembranças eram confusas, numa sequencia alucinante de cenas que jamais haviam sido vistas por ela.
Danças infernais, sacrifícios humanos, sangue esguichando de corpos nus e manchando paredes, um chifre pontiagudo projetado contra a pedra, casco revelando pelo
chão numa trilha apavorante, fogo ardendo sobre lenhos
cruzados a exalar um odor fétido de matéria em decomposição.
O festim orgíaco chegava a um clímax de gritos indecifráveis e sensações fortes, espasmódicas de um prazer
que Naiara jamais experimentara antes, como se seu corpo
vivesse um transe alheio, onde o sadismo e a maldade fossem o prazer da criatura que habitava sua carne agora.
Sentia-se esbraseada, mas, nitidamente na madruga,
sentiu o sopro frio do ar úmido. Os olhos abertos, por mo-
mentos, viram o forro branco do furgão e um pressentimento incomum retorceu seu corpo numa ânsia desesperada.
Apesar da dor que latejava em sua cabeça, arqueou-se
para olhar para trás. Gritou, horrorizada, ao ver aquela
sombra negra de morcego debater-se diante da porta, banhada de luz.
Encolheu-se em seguida, sentindo-se dominada por
um instinto bestial de defesa. Estava fraca, sentia-se fraca e
urrava de ódio diante da impotência em erguer-se e enfrentar o inimigo.
Drácula avançou, confiante, seguro de si, sequioso de
concluir o que deixara incompleto. Aquela bela mulher não
estava morta como supunha. Fizera bem em se deixar levar
pela inquietação e desejar se certificar.
Aproximou-se. Naiara se retorceu sobre o leito, as faces transfiguradas, os olhos injetados e raivosos. Suas mãos
crisparam-se como garras. Sua boca tomou a forma de
mandíbulas ferozes.
Drácula rosnou, estranhando as sensações deitadas pelo seu instinto. Sentira aquilo antes, na caverna, quando estivera lá. Agora, diante de Naiara, um ser frágil e impotente, voltava a sentir a mesma coisa.
O que se passava? Por que eriçava todo e suas pernas
se sobressaiam com tanto ódio, fitando as tentativas desastradas daquela mulher ferida em se por em pé?
O que lhe parecia impossível aconteceu. Naiara cambaleou apoiando-se à parede do outro lado, olhando-o malignamente, antagonicamente.
Drácula urrou e recuou um passo, estremecido. A disposição agressiva que via nos olhos chamejantes da mulher
anunciava um perigo extremo.
Compreendeu que algo acontecera, que alguma coisa
se apossara daquele corpo. Um ente tão maligno quanto ele,
tão perverso e sedento de destruição quanto seus piores instintos.
Algo ocorrera naquela caverna. Alguma coisa se libertará e apossara da mulher. O desafio estava no ar. Naiara
adiantou os braços, agitando-os em movimentos rápidos e
cortantes, as finas unhas rebrilhando vermelhas como garras.
O Príncipe das Trevas saltou fora o furgão. Ao redor
tudo era silêncio.
Nas barracas, dominadas pelo sonífero distribuído por
Domênico, todos dormiam pesadamente.
Naiara avançou, cambaleando a principio, decidida
após sentir que forças gigantescas nasciam em seu corpo,
vindas do poder do mal.
Queria lutar contra isso, mas seu pavor pela figura de
Drácula despertava seu instinto de defesa, que recorria a
tudo que estivesse ao seu alcance.
Gradativamente a força se impôs e, num grito lancinante, projetou-se no espaço, buscando o vulto negro do
vampiro, atracando-se a ele numa luta mortal.
Suas unhas rasgaram tecidos e feriram a pele do morcego-humano. A dor foi algo novo dentro dele. Aquelas
garras não eram físicas. Significavam um poder maior e capaz de feri-lo e destruí-lo.
Reagiu, rosnando ameaçadoramente, buscando o pescoço de Naiara, que compreendeu a ameaça e tentou evitála. Suas unhas traçaram sulcos avermelhados sobre o rosto
dele, arrancando pele e carne que exalaram um odor pútrido
e repugnante.
Drácula a empurrou violentamente, esperando jogá-la
para longe. Naiara rolou sobre o terreno úmido e se pôs em
pé, os olhos injetados fitando as próprias mãos.
Rosnou qualquer coisa incompreensível, enquanto
lambia um a um seus dedos, mascando o que arrancara do
corpo do vampiro.
— Nohasti maganif! — murmurou Drácula. Cavasti
Licorne! — urrou em seguida, reconhecendo o que tinha
diante de si.
Naiara riu, um riso pérfido e zombeteiro que provocou
a ira total do vampiro. Ele abriu os braços e das roupas esfrangalhadas pelas garras da mulher asas negras se projetaram.
Ele voou para cima dela, chocando seus corpos, desequilibrando-a, jogando ao chão. Saltou sobre suas costas,
prendendo-se com firmeza e cravando seus dentes ao pescoço dela. Um sangue morno jorrou para seus lábios.
Gorgolejando e ofegando, sugou cada gota que lambuzava a pele alva e macia, enquanto ela, inutilmente, tentava se libertar das garras de seu carrasco.
***
Torg obedecia às ordens de seu amo. Empilhara os
crucifixos e as delicadas imagens barrocas a um canto e
despejara querosene, ateando fogo.
Depois foi remover os corpos massacrados por Drácula na fazenda de Lauro Marettino. Estacou na ampla sala
destruída, olhando os cadáveres imóveis. Um vago cheiro
de sangue pairava no ar, mas, acima dele, havia um perfume de mulher, excitante, provocante.
Girou ao redor de si mesmo, auscultando o ar, depois
olhou a escadaria que levava ao pavimento superior da casa. Resmungou qualquer coisa enquanto se esforça para pôr
em pé a pesada mesa tombada.
Aquele perfume de mulher continuava solto, insistente
como um apelo que tocasse seus instintos mais adormecidos. Remexeu-se, inquieto e foi até o cadáver mais próximo.
Olhou-o com inveja. Apesar da expressão de horror
daquele rosto, reconhecia nele um belo rapaz. Seus pensamentos se distanciaram, conduzidos por uma vaga esperança, alimentada ano após ano, até a ressurreição de Drácula.
Poderia ter um corpo como aquele, másculo, vigoroso,
fascinante, capaz de atrair as mulheres e submetê-las a si.
Suspirou, mordendo o lábio inferior em seguida. Seu
pé se ergueu, depois pisoteou como pata furiosa o rosto pálido e imóvel, esfregando sobre a pele morta a áspera sola
de seu sapato.
— Maldita beleza inútil! — exclamou, num tom choroso, ajoelhando-se e acariciando piedosamente o rosto
marcado e esfolado de Agostino Massera.
Olhou-o durante algum tempo, depois se ergueu lentamente, um crispar repugnado no canto de seus lábios.
Respirou fundo e aquele perfume sutil e embriagador provocou seus sentidos numa deliciosa vertigem.
Voltou a fixar seu olhar na escadaria, galgando um a
um os degraus, avançando pelo corredor escuro, parando
diante de uma porta e imaginando a bela jovem que jazia
adormecida.
Era a filha do proprietário daquela fazenda, invadida
por Drácula e devastada impiedosamente. A certeza de um
corpo morno e aconchegante, transbordando feminilidade e
juventude, fez eriçar sua pele.
Estremeceu. Drácula poderia retornar a qualquer momento. Precisava limpar a sala. Baixou suas enormes mãos
e agarrou o cadáver de Agostino, o empregado da fazenda,
pelas axilas e o foi arrastando para fora da casa, na direção
da grande vala que abrirá além do curral.
Passou junto à cerca, onde os animais se moviam inquietos, como se sentissem o cheiro da maldade no ar. Na
terra úmida, os pés de Agostino traçavam duas trilhas paralelas de imobilidade e morte.
Junto à vala, Torg hesitou. A lua cheia banhava o rosto do cadáver, ocultando as manchas deixadas pelo atrito da
sola áspera.
Uma ideia desesperada passou pela mente de Torg.
Não tinha o poder de Drácula sobre a vida, mas seus conhecimentos sobre magia negra e feitiçaria poderiam lhe
valer.
Seria uma tentativa absurda, arriscada. Num corpo
mortal, seria vulnerável, frágil diante da ira do vampiro.
Mas o que poderia ser pior que aquele corpo aleijado e repugnante, cuja paisagem assustava crianças e afastava toda
e qualquer tentativa de aproximação com uma mulher.
Olhou para o céu limpo, onde apenas o disco prateado
da lua se destacava, ofuscando até o brilho das estrelas longínquas.
Drácula pretendia descansar naquela fazenda, recuperando-se.
Haveria tempo. Haveria uma oportunidade. Secretos
ritos de magia negra poderiam ser tentados. Sua alma amaldiçoada poderia habitar o corpo jovem e bonito de Agostino Massera. Se isso ocorresse, teria vida própria e servir Drácula não seria mais seu objetivo único.
Se conseguisse superar seu mestre, poderia voltar a
viver, a frequentar ambientes luxuosos, a entregar-se à volúpia da carne, quebrando um jejum de um século.
Estremeceu, olhando de um lado para outro. Poderia
encontrar todo o necessário naquela fazenda. Apressou-se.
Agarrou firme o corpo imóvel daquele jovem e arrastou-o
para o deposito escuro.
Depois, movido por uma febrilidade jamais sentida antes, retornou à casa principal para continuar seu trabalho.
Foi até a cozinha e vasculhou gavetas, até encontrar uma
faca de açougueiro.
Prendeu-a ao cinto e foi para a sala, apanhar o corpo
do ex-proprietário da casa. Levou-o até junto da vala. Depois, num ritual macabro e impiedoso, esquartejou-o, jogando os pedaços ensanguentados para dentro da cova.
A fogueira dos crucifixos e santos ainda ardia, jogando uma luz fantasmagórica sobre o corpo retorcido e curvado do corcunda, projetando sua sombra contra a parede
logo atrás, assustando ainda mais o gado inquieto.
A lembrança de uma canção picante de tempos antigos
bailou em sua cabeça e ele soletrou-a entre murmúrios, enquanto finalizava seu macabro trabalho.
O corpo de Lauro Marettino estava amontoado, agora
dentro da sepultura improvisada. Com uma agilidade jovial,
Torg se ergueu e correu até a casa.
Agarrou a esposa do fazendeiro pelos cabelos e arrastou-a para fora. A luz da lua e a intensa expectativa despertada por sua decisão, convidada-o a extravasar aquela alegria incontida.
Segurou o corpo feminino e inerte junto do seu e bailou sobre a lama, à luz da lua, sapateando sobre poças de
águam arrastando consigo o corpo da mulher.
— Nadja Vam tem lindas coxas, lindas coxas torneadas; seus cabelos são dourados, sua pele é perfumada... —
foi cantarolando desafinadamente, enquanto rodopiava.
Um ruflar pesado de asas enormes interrompeu-o e ele
soltou o cadáver, que caiu pesadamente na lama. O vulto
escuro de Drácula pousou no alpendre da casa, metamorfoseando. Por instantes o vampiro ficou ali, depois cambaleou para o interior da sala.
— Torg! Seu amaldiçoado! — berrou medonhamente.
O corcunda correu até lá.
— Estou aqui, mestre! — disse assustado com a ira
que percebera no chamado do vampiro.
Drácula se voltou, ofegante, exibindo o rosto lanhado
grotescamente. Sulcos avermelhados marcavam suas faces,
deixando escorrer um liquido viscoso, quase negro.
— Mestre! — exclamou o corcunda, pasmado.
— Mexa-se, monstro tenebroso. Prepare um de seus
unguentos mais poderosos... Quase fui destruído... O maldito Licorne! — balbuciou, deixando-se cair pesadamente
numa cadeira.
Torg se aproximou. Jamais vira ferida como aquela na
pele de seu amo. Ser humano algum as teria produzido.
Mortal algum causaria dano ao corpo do vampiro.
— Licorne, mestre?
— Sim, ele incorporou aquela mulher... Suguei-lhe o
sangue, Torg, mas isso não vai resolver. Você tem de ir lá e
despedaça-la, arrancando-lhe o coração.
Torg se voltou. No horizonte, a claridade da manhã
anunciava-se. No pátio, um cadáver enlameado precisava
ser sepultado.
CAPÍTULO 2
O trator enlameado imobilizou-se a um canto do pátio.
Apertando o casaco de encontro ao corpo, Giuseppe Santini
correu na direção da cantina.
O calor gostoso produzido pela lareira envolveu-o. Ele
foi até junto do fogo e estendeu as mãos, esfregando-as
uma na outra.
— Que vento infernal! — exclamou, assim que viu
Nuno, do outro lado do balcão, servir uma boa dose de fernete e sorrir a sua espera.
Aproximou-se e tomou um gole da bebida amarga, estalando a língua com satisfação.
— Como vão as coisas por aqui? — indagou.
— Calmo, tudo calmo...
— Não estou vendo aqueles intrometidos por aqui —
observou Giuseppe, flexionando os joelhos e abaixando a
cabeça para olhar pela janela.
— Estão lá — disse Nuno, com visível mal-estar.
Quedaram-se pensativos, como se o mesmo medo os
invadisse e corroesse suas almas supersticiosas, olhando o
dia lá fora.
O sol ia alto e as brumas espessas da manhã haviam
sido empurradas pelo vento frio que soprava estranhamente, ressecando a lama da estrada gradativamente.
— Tem visto o Marettino por aqui ultimamente? —
indagou Giuseppe, após terminar seu trago e esfregar as
mãos.
— Ficou de aparecer está manhã. Encomendei-lhe
uma lata de sua preciosa banha de porco. Não sei o que
houve. Lauro jamais falha a um compromisso.
— Talvez algum problema na estrada de acesso de sua
fazenda...
— É possível!
Giuseppe, então, comprou algumas coisas que precisava, depois mandou reabastecer o trator.Precisava estar de
posse de todo combustível possível, já que pretendia revolver a terra antes da chegada do inverno rigoroso.
Quando estava pronto para sair, pediu outra dose de
fernete e a engoliu num só gole. Esfregou as mãos e olhou
lá fora, onde o vento fazia agitar galhos desfolhados.
— Vai ser difícil trabalhar a terra com esse frio. Inesperado, não? — comentou.
— Vai passar. Foi por causa da chuva — animou-o
Nuno.
***
Giglio retornou da estrada e foi ao encontro de Domênico.
— O vento e o sol forte estão secando o barro. Acho
que conseguiríamos passar com a professora — disse.
— Como vamos removê-la, principalmente depois do
que houve? Eu não posso entender como ela conseguiu
deixar o furgão e se enlamear daquela forma. As garotas
devem estar terminando de limpá-la agora. Não sei como
não morreu...
— Se isso tivesse acontecido, teria sido culpa daquele
sonífero — comentou Giglio, mas Domênico preferiu não
ouvir aquilo.
Coisas estranhas estavam acontecendo naquele lugar.
Não conseguia compreendê-las, mas sentia medo. Um medo instintivo e primitivo que parecia emanar das pedras, da
entrada da caverna, das poças de água que se secavam ao
sol.
Fora o primeiro a acordar naquela manhã. Vira a cena
grotesca. A professora caída no barro, pálida como um cadáver, mas com um sorriso zombeteiro nos lábios.
Além disso, aquelas pegadas ao redor dela, como se
ela tivesse lutado contra alguém.
Estava apreensivo, muito apreensivo. Naturalmente
assumira a liderança do grupo, mas estava às voltas com
problemas insolúveis.
Naiara precisava de urgentes cuidados médicos, mas
jamais poderia removê-la num jipe e mesmo no furgão. Não
bastasse isso, havia o cadáver de Helena, encontrada morta
num dos túneis da caverna, dilacerada, estripada.
Seu corpo estava num caixote, no compartimento de
carga do furgão, mas não poderia permanecer ali indefinidamente. Houve um crime e precisava ser comunicado às
autoridades.
Quem matara Helena? Quem agredira Naiara? Que
vulto sinistro e macabro fora aquele que voara para fora da
caverna na noite em que a professora quase fora morta?
Essas perguntas giravam em sua mente, atordoando-o.
Os outros pareciam alheios, embora se notasse em seus rostos um medo silencioso e profundo.
Estavam encrencados, isso era certo. O impasse não
poderia durar para sempre. Era muito sério o que tinham
nas mãos. Estariam todos sob suspeitas dos horríveis acontecimentos.
Viu as garotas exaustas deixando o furgão. Em seus
rostos havia um olhar atônito e assustado. Magda veio ao
seu encontro.
— E então? — quis saber ele, ansioso.
— Eu não sei explicar, Domênico, mas ela está bem,
incrivelmente bem, apesar daquela palidez... Cadavérica!
— afirmou a garota, com uma careta repugnada no rosto.
— além disso...
— Além disso? — ajudou-a Domênico, percebendo
que ela fazia um esforço enorme para prosseguir.
— Aquelas marcas no pescoço...
— Que tipo de marcas? — estranhou ele.
— Já viu picada de cobra?
— Sim, mas qual a relação?
— Imagine uma picada dessas no pescoço de uma
pessoa bem sobre a veia jugular...
Um arrepio intraduzível percorreu o corpo de Domênico, fazendo-o se lembrar imediatamente de certas notícias
que lera num jornal francês.
Passou por Magda e foi até o furgão. A poeta estava
aberta. Sobre o leito improvisado, jazia o corpo da professora. As bandagens em sua cabeça haviam sido removidas.
Ele hesitou por instantes, depois entrou.
Aproximou-se lentamente. A professora pareceu adormecida, morta, talvez, não fosse o leve, quase imperceptível, arfar de seu peito.
Inclinou-se. As garotas haviam aplicado um curativo
sobre o pescoço dela. Domênico retirou com cuidado as
pontas do esparadrapo e olhou, enojado, aquelas duas feridas, cercadas de um halo roxo, como se o local tivesse sido
sugado ou mordiscado com violência.
A ideia que lhe veio à mente era por demais absurda,
mas coerente com que lera no jornal francês. A palavra
vampiro dançou em sua cabeça como uma hipótese improvável, mas absurda demais.
O que eram os vampiros? Frutos da imaginação e da
supertição, assim como lobisomens, almas do outro mundo,
zumbis, discos voadores e tudo o mais.
Estavam no início praticamente de um novo século. A
tecnologia e a ciência tinham uma explicação plausível para todos os fenômenos e acontecimentos. Como se deixar
levar por algo tão fantástico e tão sobrenatural.
Lembrou-se de Helena, encontrada morta na caverna
que exploravam. Ela também tinha marcas como aquela em
seu pescoço. Seu coração fora arrancado do peito e consumido. Teria sido, também, vítima do vampiro?
O vulto negro que viram na caverna na noite do acontecimento com a professora, voltou-lhe à cabeça. Poderia
ser um morcego, um morcego gigante, alguma espécie em
extinção ou, por que não, um mutante.
Quem poderia descrever os mistérios e segredos ocultos naquela caverna? Quem poderia dimensionar a ação devastadora e perniciosa do homem com seus pesticidas, inseticidas, herbicidas e outras armas de um arsenal químico e
biológico capaz de alterar radicalmente todo o ciclo natural
das coisas, gerando aberrações como muitas que ele já estudara?
O besouro-camaleão era um deles, fruto da ação devastadora de certo tipo poderoso de inseticida que alterara
toda a estrutura molecular do inseto, tornando-o imune ao
veneno e desenvolvendo nele características que a natureza
jamais sonhara criar.
Lembrou-se do pequeno animal que havia sido descoberto nos arredores de Roma e mandado para as principais
universidades do país para estudos.
O mesmo poderia ter ocorrido ali. Alguma coisa agira
sobre os morcegos que habitavam aquela caverna, gerando
uma nova e perigosa espécie.
Um fato aterrador, porém, jogava por terra essa teoria.
Lembrou-se das pegadas ao redor do corpo de Naiara. Eram
humanas.
A fantástica teoria do vampiro ganhou força e destaque. Se assim fosse, alguém da equipe poderia...
— Não, não! — murmurou. — O ataúde! Aquele ataúde! — lembrou-se, da misteriosa peça encontrada no fundo de uma fenda na caverna e que havia desaparecido misteriosamente.
Saltou do furgão. Giglio notou sua expressão alterada
e correu até ele.
— O que houve?
— Aquele ataúde, Giglio. O que houve com ele?
— Não sabemos. Simplesmente sumiu. Por que pergunta?
— Lembra-se daquela notícia que vimos no jornal
francês, antes de virmos para cá?
— Não está se referindo ao vampiro?
— Sim, isso mesmo.
— Ora, Domênico, não vai querer me fazer acreditar
que...
— Espere um pouco, vamos examinar todos os detalhes — pediu Domênico, contando-lhe tudo aquilo que o
atormentava.
Giglio ouviu boquiaberto. A teoria fantástica tinha
sentido, mas, ainda assim, era difícil acreditar em algo tão
sobrenatural, principalmente para ele, um aprendiz de cientista.
Tinha para si que todos os fatos, mesmo os mais absurdos, sempre poderiam ser explicados cientificamente.
Diante de tudo aquilo que acontecera e da veemência com
que Domênico expunha o assunto, sentiu-se em dúvida.
— Helena foi mordida, estava sem sangue no corpo e
sem o coração. Segundo o que lemos no jornal, ela está
morta definitivamente, já que a maldição do vampirismo
habita o coração das vítimas. No caso de Naiara, o vampiro
apenas sugou seu sangue e inoculou em seu corpo o mal.
Isso explica como ela ainda está viva depois de ter a cabeça
praticamente arrebentada. Pense, Giglio, pelo amor de
Deus. Pela lógica, uma pessoa com um ferimento daqueles
na cabeça poderia estar viva?
Giglio balançou a cabeça de um lado para outro. Era
absurdo conjeturar sobre aquilo. Uma ideia corajosa se apossou dele. Encarou Domênico com decisão.
— Vamos supor que o vampiro sugou todo o sangue
da professora? Ela não poderia viver sem ele, não é?
— Isso é cientifico!
— Então vamos fazer um teste simples e decisivo.
— Como assim?
— Vamos tentar extrair um pouco de sangue do corpo
da professora. Se conseguirmos, tudo o que você está dizendo não terá o menor sentido.
— E se não conseguirmos? — indagou Domênico,
sombriamente.
Giglio esboçou um gesto vago, patético, amedrontado.
***
Torg se aproximou sorrateiramente, no alto da colina,
de onde tinha uma vista total do acampamento dos pesquisadores. Tudo parecia calmo e eles ainda estavam lá.
Como descobrir, então, o que houvera naquela madrugada, capaz de irar tanto o Drácula? Ele falara sobre o Licorne. Torg se lembrava vagamente de uma lenda, mas não
havia como relacionar o momento com aquilo.
No entanto, estivera lá, cuidando do corpo lanhado do
vampiro. Aqueles rasgões em sua pele não podiam ter sido
produzido por um ser humano.
Recuou, então, afastando-se do local. Era uma longa
caminhada de volta à fazenda e estava cansado, após todo o
trabalho que enfrentara noite adentro.
Sepultara todos os cadáveres, com exceção daquele
jovem, cujo corpo o fascinara. Seria capaz, ainda, de realizar o prodígio?
Livrar-se daquela casca aleijada e disforme que o cobria, fazendo com que sua alma passasse a habitar aquele
corpo belo e viril?
Todo o necessário estava ao seu redor. Drácula conhecia o meio. Torg se lembrava dele vagamente, mas jamais o
fizera antes.
Sua submissão ao vampiro sempre fora maior que
qualquer outra preocupação, apesar de acalenta aquele sonho ao longo dos anos em que aguardara a ressurreição do
mestre.
Drácula, no entanto, jamais estivera preocupado em
dar a Torg um corpo digno. Parecia se comprazer em vê-lo
estropiado daquela forma.
Era uma espécie de desprezo maior que magoava o
corcunda e despertava nele uma raiva cega contra o vampiro. Rebelar-se e exigir aquilo a que tinha direito seria desafiar o poderio do vampiro e isso despertaria sua ira total.
Torg já a conhecia e tinha medo. Um medo que, gradativamente, porém, ia sendo vencido pela própria ansiedade em se ver livre de suas frustrações.
Quando chegou a fazenda, a tarde ia pelo meio. Tudo
estava calmo. Um silêncio mortal pairava sobre as construções. No curral e no estábulo, os animais estavam imóveis,
silenciosos, como se percebessem o perigo que os rondava
e quisessem passar despercebidos a qualquer custo.
O corcunda rumou direto para o deposito onde ocultara o corpo do empregado da fazenda. Aproximou-se. Lá estava ele, estendido sobre o estrado de pelar animais. O vento frio que soprava agitava seus cabelos sujos de barro.
Torg parou diante do corpo que poderia ser o seu.
Uma coisa precisava ser feita com urgência: preservalo contra as larvas da decomposição. O corcunda se voltou
e olhou a posição do sol. Se se apressasse, ainda poderia
fazer isso.
***
Domênico fechou a porta do furgão, depois foi se sentar à boca da caverna. Giglio se aproximou dele, segurando
pateticamente uma seringa hipodérmica vazia. Olharam-se.
O terror estava estampado em seus olhos.
Giglio ainda estava pasmado. Domênico parecia aceitar o fato, embora suas consequências ainda lhe fossem
desconhecidas.
— Como pode? — indagou Giglio, soltando a seringa,
depois a esmagando sob seu pé.
— No entanto... — tentou dizer Domenico, mas algo
opressivo e angustiante sufocou-lhe a voz.
A cena se repetia diante de seus olhos. Inutilmente haviam tentado localizar uma das veias do corpo da professora. Todas, indistintamente pareciam retraídas, secas, mortas. Espetaram-lhe o corpo com a agulha, mas nem uma gota de sangue britara das picadas.
Mas ela estava viva, pálida e viva, respirando como
um animal hibernado, as faces tranquilas e aquele zombeteiro sorriso marcando seus lábios, como que a rir do mundo, das coisas todas e do próprio destino.
Giglio se sentou numa das pedras ao lado de Domênico, depois ficou olhando para o amigo, como que a esperar
uma palavra que desmentisse ou justificasse tudo aquilo
que o confundia.
A expressão do rosto de Domênico, no entanto, apenas
comprovava que tudo era real e aterrorizante.
— O que vamos fazer? O que ela fará? Como vai ser?
— indagou pateticamente Giglio.
— Eu não sei... Eu juro que não sei... — Escute...
Lembra-se bem da notícia? Havia o nome de um homem,
um professor...
— Hilgenstiller...
— Isso mesmo. Talvez ele tenha as respostas que procuramos.
Domênico se pôs em pé num salto. Em sua mente elaborara o que deveria ser feito a seguir. Encarou Giglio.
— Você vai até o posto de gasolina. Tenho um cartão
de crédito comigo. Use-o para tentar localizar aquele professor ao telefone e convencê-lo a vir para cá — decidiu.
CAPÍTULO 3
A noite chegara.
O vento soprava mais forte agora, vergastando os galhos ressequidos, arrancando macabras melodias das frestas
entre as pedras da colina, agitando a lona das barracas do
acampamento.
Recolhidos, os estudantes se viam cercados por uma
influência maligna que apenas sentiam penetrando suas
carnes, ganhando suas medidas como tentáculos frios do
vento que assobiava lá fora.
Domênico era o mais aturdido de todos. Parado à porta da barraca, seus olhos se fixaram no furgão, onde repousava a professora.
No céu limpo sem nuvens, uma claridade avermelhada
subia, antecedendo o nascer da lua cheia. O terror estava no
ar, palpável e certo. Seu desejo era fugir dali imediatamente, mas havia os outros.
Contar-lhes sobre tudo que ele e Giglio haviam concluído seria libertar o pânico que pulsava dentro deles. O
melhor a fazer era esperar. Giglio fora à procura de um telefone. Não seria uma tarefa fácil localizar aquele professor, mas precisava ter sucesso.
Olhou as outras barracas. As luzes acesas em seus interiores projetavam sombras imóveis contra a lona. Muitas
das garotas rezavam. Outras ficavam em puro silêncio, talvez tentando compreender o que ocorrera entre eles.
Consultou o relógio. Se tudo tivesse corrido bem, Giglio deveria estar no posto de gasolina, telefonando. Rezou
mentalmente para que ele conseguisse.
Lentamente, o disco ensanguentado da lua surgiu no
horizonte, ganhando o céu em sua caminhada fixa. As estrelas que brilhavam iam tendo suas cintilações embaçadas
pela claridade que dominava o espaço.
Um arrepio percorreu o corpo dele.
— Lua cheia! — murmurou ele, percebendo a importância daquele detalhe.
A relação entre a lua cheia e a atividade sobrenatural
dos vampiros fora estabelecida na reportagem que lera. A
sensação de que aquela seria uma noite ameaçadora se instalou em seu espírito.
— Vampiros e lua cheia — murmurou novamente. —
Alho e crucifixos... Madeira...
Correu até a barraca que servia de depósito e apanhou
a caixa de ferramentas. Retirou o martelo e pregos. Havia
alguns caixotes onde acondicionavam tudo aquilo que encontravam.
Desmanchou um deles, quebrando as tábuas de modo
a construir uma porção de crucifixos de até meio metro cada. Febrilmente pregou-os.
O barulho atraiu a atenção do pessoal nas barracas
que, intrigados, cercaram-no?
— O que está fazendo, Domênico? — quiseram saber.
Ele não tinha resposta. Simplesmente continuou o que
julgava ter que fazer. Assim que terminou de martelar a
madeira, foi cravar um crucifixo daqueles diante da entrada
de cada barraca.
— Deixem isso aí, estão entendendo? Não o tirem! —
ordenou. — Agora retornem a suas barracas.
Magda caminhou até o furgão Domênico foi até ela,
segurando-a pelo braço.
— Ande vai?
— Ver a professora. Acho que alguém deveria estar
com ela. Não entendo por que você...
— Ela está bem... Precisa repousar. Deixe-a em paz.
Volte a sua barraca.
— Mas Domênico...
— Faça o que eu disse — gritou ele, quase a empurrando para longe.
Os outros olharam-no surpreso. O medo que havia nos
olhos dele os assustava, mas, ao mesmo tempo, percebiam
que a falta de explicações poderia ser uma bênção.
Lentamente obedeceram-no, retornando às barracas.
Domênico contemplou seu trabalho. A presença das cruzes
parecia devolver um pouco de paz ao local, como se desfazendo aquela atmosfera fantasmagórica e opressiva que o
cercava.
Foi para sua tenda. À porta voltou-se para olhar o furgão. Persignou-se instintivamente.
***
Torg caminhou pela casa às escuras, rondando o aposento onde repousava a jovem. Ela estivera ali durante todo
o dia, imóvel no leito como se obedecesse a uma ordem além de suas forças.
O corcunda sabia o que isso significava. Drácula a
dominava, mas, não a atacara. Na certa e reservava para
uma orgia de sangue. Essa ideia atormentou o corpo deformado do corcunda. Drácula, apesar da monstruosidade, podia se aproximar de uma jovem e domina-la sem provocarlhe asco.
Quanto a ele, jamais garota alguma o olharia senão
com piedade e nojo. Suportar por mais tempo aquela aversão natural era torturar-se.
Havia agora uma chance e isso o punha febril. Encontrara o necessário para um ritual de magia negra em que
transformara o empregado da fazenda numa espécie de
morto-vivo. Seu corpo não tinha mais uma alma, mas seria
preservado da voracidade das larvas da morte.
Intacto, aguardaria o momento em que Torg pudesse
valer-se de segredos milenares para despir-se de sua carcaça podre e vestir aquele novo e brilhante corpo.
A lua cheia firmava-se no céu e sua claridade se projetava através das vidraças para o interior dos aposentos silenciosos. O vento assobiava lá fora. Drácula ainda dormia.
Era natural. Depois dos ferimentos que recebera na noite
anterior, precisava repousar bem.
A lembrança da face lanhada do vampiro o intrigou.
Que ente diabólico teria feito aquilo? Drácula dissera que
fora o Licorne incorporado naquela bela mulher.
O som de uma voz feminina, vindo de algum ponto da
casa, alertou-o. Aguçou os ouvidos e retornou pelo corredor. Parou diante de uma porta. Do outro lado estava a garota.
— Agostino! — ouviu-a chamar. — Agostino...
Girou o trinco e empurrou lentamente a porta. Banhado pela lua, o corpo dela exibia uma beleza diáfana e desprotegida sobre o leito.
Um frêmito de emoção percorreu o corpo de Torg, que
se aproximou dela.
— Agostino... Adorado! — murmurou ela, e Torg parecia sentir a doçura que havia naquelas palavras.
Invejou Agostino naquele mesmo momento, depois,
surpreso, constatou a verdade. Agostino deveria ser aquele
rapaz, cujo corpo ele agora preservava para ser seu.
Um brilho intenso e voluptuoso dominou seus olhos.
Aquela garota amava Agostino e ele poderia ser Agostino.
A ideia de beber daqueles lábios a doçura ofertada pela
paixão eletrizou-o.
Recuou para a porta, dominado por uma insuportável
inquietação, como se cada segundo que passasse fosse um
desperdício em sua vida eterna.
Tinha de se apressar. Tinha de conseguir de Drácula
os detalhes de que não se lembrava. Aquele era uma prática
reservada aos piores bruxos, àqueles cujas almas pertenciam ao demônio num pacto amaldiçoado.
Drácula era um nobre, um demônio nobre e essa sua
natureza lhe permitiria acesso total aos rituais mais apavorantes e misteriosos.
Torg os aprendera ao longo do tempo, num aprendizado lento e instintivo. Não tinha, porém, a segurança necessária para tentá-lo.
Apenas Drácula poderia ajudá-lo, mas o morcegohumano não cederia com facilidade. Tinha um secreto prazer em ver Torg abominar sua forma horrenda. Parecia rir
sempre que o olhava. Divertia-se com o sofrimento do servo.
Desceu para a sala de entrada. A luz banhava o pátio
da fazenda. Aquela inquietação era um verme rodeando suas entranhas. Se Drácula o quisesse, naquela mesma noite
Torg habitaria um novo corpo.
Um ruído quase inaudível, como o farfalhar de uma
seda, o fez se voltar. No alto da escada, Drácula o olhava.
Trazia algo nas mãos.
— Acenda a luz da lareira, Torg! — ordenou.
No momento seguinte a sala se banhava de luz. O corcunda foi juntar à lareira algumas lascas de lenha. O fogo
crepitou, aquecendo agradavelmente.
Quando se ergueu e se voltou, viu Drácula examinando o negro pedaço de tecido estendido sobre a mesa.
— Já viu algo assim antes, Torg? — indagou.
— Há muito, muito tempo, mestre — disse, indo examinar a preciosa capa, forrada de veludo escarlate.
Drácula segurou-a pela gola e rodopiou-a num gesto
elegante, jogando-a sobre os ombros. Fechou-a ao pescoço,
prendendo um laço de seda trabalhando a um botão de ouro. Girou o corpo que se destacou contra o fundo escarlate.
Quando se quietou, a capa moldou-se ao seu corpo como as
asas fechadas de um morcego.
— Excelente para estes dias frios — murmurou o corcunda, invejando a elegância e a nobreza do mestre.
— Vou usá-la... — disse o vampiro, levantando as
mãos ao rosto e tateando-o. — Como estão as feridas?
— Curadas, mestre — afirmou o corcunda, observando.
Apenas linhas um pouco mais pálidas que o resto da
pele indicavam onde o rosto havia sido arranhado.
— Você é um bom feiticeiro, Torg — riu o vampiro,
aproximando-se do fogo e ficando ali, observando as chamas que saltavam e se desfaziam numa agitação incessante
e inquietante.
— Onde está a garota?
— Lá em cima, mestre. No quarto.
— Ótimo! Você fez o que lhe ordenei?
— Refere-se àquela bela mulher que...
— Sim! — afirmou Drácula, voltando-se num movimento rápido, como se a voz de Torg já tivesse lhe fornecido a resposta.
— Estive lá, mestre. Não havia nada de anormal no
acampamento. Todos estavam lá... Não podia fazer nada...
— Maldição! — blasfemou o vampiro e seus olhos se
injetaram.
As presas malignas saltaram sobre seu lábio inferior e
uma gosma formou-se nos cantos de sua boca, como se, de
um momento para outro, o vírus da hidrofobia se manifestasse nele.
Torg sabia que estava diante de um dos acessos de ira
do vampiro. Aquele, em especial, tinha um significado
maior. Drácula estava com medo. Era difícil acreditar nisso,
mas o poderoso Príncipe das Trevas traia seu temor.
— Ele vive agora, eternizado num corpo que eu imortalizei... Compreende isso, Torg? — indagou ele, após dar
alguns passos apressados agitando a capa.
Torg não entendia, porém. Seu olhar pasmado apenas
via o medo refletido no rosto de seu mestre.
— Nohasti maganif! Cavasti... Cavasti Licorne! — urrou o vampiro.
Torg estremeceu com aquelas palavras. Conhecia seu
significado. Um desafio pelo poder estava lançado sobre a
face da terra. Um poder acima e pior que o dos truculentos
e dos tiranos.
Tratava-se de um desafio pelo trono do mal supremo,
do terror e da crueldade absoluta sobre os seres humanos.
***
Tudo era silêncio no acampamento. Apesar disso, luzes ainda brilhavam nas barracas, como se a escuridão total
fosse o pior dos castigos.
No furgão, Naiara estendia-se imóvel e só, o corpo pálido num repouso estranho e incompreensível. Pelas janelas
embaçadas, a claridade da lua penetrava, iluminando-a.
Uma neblina espessa avançava gradativamente sobre os
campos.
Uma crispação, então, agitou as pálpebras até então
imóveis, como se o brilho da lua lhes provocasse comichão.
Elas se imobilizaram a seguir.
Depois, lentamente, foram se erguendo o revelando
olhos injetados e faiscantes, destilando maldade e determinação. Por um longo tempo ficaram daquela forma, fixos na
lua, como que absorvendo uma força incompreensível, aos
seres humanos normais.
O corpo permaneceu imóvel, como sem vida. Depois
uma das mãos se ergueu para arrancar o curativo ao pescoço e tatear onde deveriam estar as marcas do brutal ataque
da noite anterior.
Um riso zombeteiro desenhou-se nos lábios carnudos
da professora. A pele estava lisa, sem marcas, curada misteriosamente.
Aquela mesma mão se ergueu até a cabeça puxando as
bandagens e desfazendo-as. O crânio estava intacto, nada
havia de anormal senão uma pequena protuberância no alto
da testa, como uma ligeira inchação que indicasse o local
de uma pancada.
Seus dedos massagearam aquele local. O riso se alargou em seus lábios, tomando um aspecto maligno cruel.
Aquela mão repousou ao lado do corpo. Naiara pensou
apenas em seus novos apetites. A lua cheia os segredava,
provocando dormência em seus músculos e perturbando
seus sentidos.
Um sabor novo veia a sua boca, emocionando-a intensamente. Quando sorriu outra vez, afiladas presas se destacaram dos outros dentes brancos.
Ela se ergueu lentamente. As imagens que se sucediam em sua lembrança eram totalmente opostas, misturando
antiguidade e mitologia com o presente.
Nada a surpreendia. Ela sabia o que se passava com
ela e aceitava o fato como se fosse algo natural ou porque,
talvez, sua mente já não lhe pertencia.
Era, agora, o mais fantástico elo entre o sobrenatural e
o natural. Um casamento macabro de um mesmo apetite e
de dois seres do terror.
O Licorne estava nela, existindo novamente após seu
sono forçado de séculos, sedento por sangue e almas. O
vampiro a mordera e inoculara em suas veias agora ressequidas o germe de uma maldição que, para o novo ser, era
uma benção. O apetite por sangue se aguçava e era agora
imortal.
O Licorne poderia ser destruído nela, mas o vampiro
continuaria vivo. O vampiro poderia ser morto, mas o Licorne existiria. Era uma eternidade multiplicada por dois.
Suas forças eram sobrenaturais. Sua crueldade era dobrada.
Sua crueldade escapava as raias da compreensão.
Empurrou a porta e o vento que soprou contra seu
corpo parecia crivá-la com setas malignas. Ela recuou, a-
tordoada sentindo o corpo arder como se o fogo do inferno
o devorasse.
Apoiou-se a uma das paredes. As cruzes iluminadas
diante das barracas eram uma visão mortal e maléfica. Reuniu suas forças e saltou do furgão, fugindo à visão das cruzes.
Parou algum tempo depois, à margem da estrada, ainda atônita com o que enfrentara. Julgara-se indestrutível,
mas aquelas cruzes lhe provavam o contrário.
Tinha de evita-las e sabia exatamente como fazê-lo. O
ruído longínquo de um motor a alertou. Ela foi para a entrada e caminhou ao seu encontro.
Não longe dela, Giglio retornava, após haver conseguido, finalmente, localizar o professor. Gastara muito dinheiro em ligações internacionais.
Primeiro falara com a França e com o jornal Le Roy,
que publicara as reportagens sobre o vampiro. Depois, ligara para Londres, conseguindo localizar, finalmente, o professor Hilgenstiller.
Esperava ter alguma dificuldade em convencê-lo, mas,
ao narrar como haviam encontrado o ataúde e como era aquele corcunda que rondara o acampamento, o professor
prometeu embarcar imediatamente ao encontro deles.
Isso o punha aliviado. Hilgenstiller parecia saber o
que fazia e, na certa, os tiraria daquela situação incomoda e
perigosa.
Estava cansado agora. Para sua felicidade, a estrada
não oferecia as mesmas dificuldades de antes. O veículo
rodava firmemente. Os faróis rasgavam a neblina prateada
facilmente.
CAPÍTULO 4
A porta aberta deixava entrar o vento frio que agitava
as chamas da lareira.
Por algum tempo Torg fitou a figura sinistra de Drácula avançar pelo pátio banhado de luar, depois se metamorfosear no grotesco morcego que agitou suas enormes asas e
maculou o céu de prata.
Ficou ali, olhando a noite, ainda trêmulo pelo pavor de
ter enfrentado a ira do vampiro. Drácula estava furioso e a
humanidade teria que se haver com ele.
Caminhou, depois, para o alpendre. O frio não incomodava seu corpo. Arrepios de excitação percorreram-no.
Um riso maligno e inquieto brincou em seus lábios deformados. Ele olhou na direção do deposito.
A tentação de experimentar o que sabia sobre o ritual
de transposição de alma impacientou-se. Sabia o risco que
corria. Se falhasse sua alma vagaria danada pela eternidade,
sem repouso, atormentada e infeliz.
A expectativa de obter sucesso, porém, era animadora
e se sobrepunha aos temores. Avançou passo a passo na direção da construção. O vento agitava seus cabelos e suas
roupas, dava-lhe um aspecto fantasmagórico e horripilante.
Empurrou a porta e sua sombra, impulsionada pelo luar, se projetou para cima do cadáver sobre o estrado de madeira no centro do deposito.
Precisaria de alguns recipientes e do sangue morno de
um animal. Tudo isso estava ao seu alcance. Algumas ervas
condenadas também seriam necessárias, mas já havia cuidado disso... Encontrara a maior parte delas nos arredores
da fazenda. O que faltava poderia ser substituído por órgãos vivos de animais.
As palavras cabalísticas dançavam em sua cabeça,
surgindo do nada como se uma força sobrenatural devassasse sua mente e as arrancasse dos tenebrosos esconderijos
que habitavam.
Sua excitação produzia resultados. A noite era propícia. O luar favorecia. Tudo estava a suas mãos. As palavras
da garota, murmurando o nome de Agostino, ecoaram em
sua mente, seduzindo-o.
Naquela mesma noite poderia abraça-la e possuí-la recebendo os beijos de uma paixão ardente. Sorriu de um
pensamento malicioso. As italianas eram amantes fogosas.
Poderia comprovar isso naquela mesma noite.
Girou os calcanhares e rumou para a casa principal da
fazenda. Foi cantando, gingando o corpo aleijado como se
desafiasse a lei da gravidade e pudesse se precipitar ao
chão a qualquer momento.
Quando entrou na sala e o calor gostoso do fogo o envolveu, uma inquietação maior se juntou àquela que punha
seu corpo em febre.
Olhou as escadas para o pavimento superior, depois
subiu rapidamente, varando o corredor e parando diante da
porta do quarto onde repousava a garota.
Empurrou-a e contemplou longamente o corpo imóvel
sobre o leito.
— Minha... Minha bela italiana! — murmurou, a voz
enrouquecida por um desejo que assanhava agora seu corpo
como o pior das doenças.
Retornou à sala e, dali, foi até a cozinha, onde apanhou o necessário. Trouxe o necessário. Trouxe uma faca
de açougueiro e um punhal longo e pontiagudo.
Levou tudo para o deposito, depositando-o ao lado do
cadáver. Depois voltou mais uma vez à casa e trouxe as ervas que havia recolhido.
Precisava agora matar alguns dos animais lá fora, extirpando-lhes os órgãos necessários ao ritual. Muniu-se do
longo punhal e da faca e foi até o curral.
Sua presença assustou as vacas, como se elas entendessem suas intenções macabras. Ao tentar segurar uma delas pelo chifre, ela o arremessou contra a cerca, num estalar
de ossos que esbugalhou os olhos do corcunda e o fez
prender a respiração por instantes.
Depois dominado por um furor homicida, atirou-se
sobre o animal, quase a decapitando com repetidos golpes
da afiada faca de açougueiro.
O animal debateu-se, tombando num mar de sangue.
Torg rasgou-lhe o ventre, devassando-o à procura do coração, arrancando-o violentamente e erguendo-o sangrando
diante dos olhos.
Foi levá-la ao deposito e acomodá-lo num dos recipientes. Depois apanhou uma vasilha maior, onde tencionava
recolher o sangue de outro animal.
Retornou ao curral. Seus olhos procuraram entre os
animais. Um bezerro parecia se esconder, amedrontado, do
outro lado. Torg sorriu com crueldade e foi ao encontro dele. O pequeno animal tentou fugir, mas Torg o agarrou com
firmeza, jogando-o sobre os ombros.
A vaca-mãe mugiu dolorosamente e avançou. Torg a
olhou como que fulminando. O bezerro berrou, suplicante.
A vaca estremeceu, negaceando, depois recuou, o desespero nítido em seus olhos enormes.
Torg deixou o curral e depositou o bezerro no chão. O
pequeno animal se debateu, tentando fugir dele. O punho
pesado do corcunda se abateu sobre sua cabeça, jogando-o
ajoelhado sobre as patas dianteiras.
Um novo golpe o imobilizou. Torg segurou-o e firmou
seu pescoço sobre a vasilha. Colou o fio da lâmina junto ao
couro e puxou-o rapidamente. O sangue esguichou para o
interior da vasilha num ruído macabro, enquanto o bezerro
se debatia inutilmente.
Quando obtivera o necessário, Torg empurrou o corpo
imóvel para o lado e se ergueu, rumando para o deposito.
Uma sombra negra e esvoaçante surgiu entre ele a porta. Era Drácula.
***
Quando os faróis iluminaram aquela figura no centro
da estrada, Giglio levou instintivamente o pé ao freio, fazendo o jipe derrapar e atravessar-se na estrada.
Assim que se recompôs, saltou do veículo e ficou olhando, pasmado, aquela figura conhecida que se aproximava dele. O luar vencia a neblina com facilidade e iluminava o corpo da professora.
Pensamentos arrepiantes passaram por sua mente. Tudo o que Domênico lhe revelara fazia, agora, um pavor imenso se apossar dele.
Inacreditavelmente, porém, suas pernas se recusavam
a obedecê-lo e ele ficou ali até que Naiara se aproximasse.
Estava incólume, sem nenhum sinal da pancada que levara
na cabeça, nem daquelas mordidas no pescoço.
A dois passos do assustado rapaz ela parou, olhando-o
angelicamente.
— Estava preocupada com você, Giglio. Onde foi? —
indagou num tom convincente que o confundiu.
— Professora, eu... — tentou explicar, mas o pavor
ainda o sufocava.
Ela não podia estar ali, daquele jeito, com tanta naturalidade. Vira seus ferimentos. A cabeça fora esfacelada. A
garganta fora ferida e marcada horrivelmente. No entanto,
ali estava ela, banhada pelo luar, sem marcas aparentes.
Aquele terror primitivo se agigantou. Arrepios intensos percorreram sua pele, eriçando-a. O que tinha diante de
si não era normal. Tudo aquilo fugia a sua compreensão.
Era sobrenatural, assustador, incompreensível.
— O que foi, Giglio? Por que me olha assim? — indagou ela, avançando um passo.
Giglio colou-se ao jipe. Os faróis se projetavam lateralmente, iluminando os galhos desfolhados de uma árvore,
onde uma coruja insone parecia assistir à cena grotesca.
— Está com medo de mim? Sou eu, a professora Naiara, lembra-se? — disse ela, fazendo menção de vencer o
espaço que os separava.
Giglio estendeu o braço, como a delimitar a distância
entre os dois.
— Pare aí mesmo, professora! Eu... Por favor, tenho
que ir até o acampamento...
— E por que não? Podemos ir juntos. Estamos pertos.
A noite está fria. Estou gelada. Sinta minha mão — disse
estendendo-a ao alcance dele.
Giglio hesitou, apertando-se contra o veículo. Olhou
para os lados. Poderia correr. Sempre fora um bom atleta.
Podia fazer isso. Com facilidade se afastaria dela. Tinha de
tentar. Queria tentar, mas seus pés estavam colados ao chão
e uma luminosidade animalesca brilhava nos olhos da professora agora, como que o magnetizando.
Um terror mortal se manifestou. Ela podia ser uma
vampira agora. Um ser demoníaco que se aproximaria dele
e o dominaria, rasgando seu pescoço e sugando seu sangue.
Sua mão, imperceptivelmente, subiu pelo próprio corpo e foi apalpar a garganta num gesto inútil de proteção.
Naiara riu, percebendo o que o assustava. Ele sabia. O medo estava escrito ao rosto dele.
— Sinta minha mão, Giglio. Está fria — disse ela, avançando um pouco mais e tocando-lhe o rosto.
Um arrepio mortal percorreu-o ao sentir aquela mão
gelada contra sua pele. Tentou reagir. Sabia que podia empurrá-la, mas estava petrificado, dominado por aquele olhar
brilhante e fixo nele.
De seu rosto, a mão de Naiara desceu para seu pescoço, avançando para a nuca, firmando-se ali e atraindo-o lentamente.
Giglio relutou tentando valer-se de todas suas forças
para impedir aquela aproximação.
Por mais que tentasse, no entanto, não conseguia vencê-la. Uma força descomunal a habitava agora. Seu hálito
banhou o rosto do rapaz, concentrando-se em seu pescoço.
Giglio estremeceu, fitando-a bem próximo de si.
Ela sorriu, então e o pavor se estampou definitivamente no rosto dele ao perceber aquelas presas que se sobressaiam ameaçadoramente.
Sons roucos e incompreensíveis saíram de sua garganta, enquanto sentia aqueles lábios gelados colarem-se em
sua pele. Num arranco quase espasmódico, Naiara se abraçou a ele, apertando-o contra seu corpo e cravando as presas, rasgando a pele, lambuzando-se em sangue.
Giglio debateu-se, acordando do transe hipnótico pela
dor da mordida. Os braços de Naiara o prendiam, no entanto, fortemente. Sons grotescos, gorgolejantes, sôfregos, esganados se ouviam, enquanto uma fraqueza gradativa se
apossava dele, mergulhando sua mente numa dormência
mortal.
A dor era aguda, lancinante. A pressão daqueles braços o sufocava. Os ruídos o enojavam. Sua própria impotência diante do fato consumado venceu toda e qualquer resistência, mergulhando-o numa passividade suicida, arrastando-o para a morte.
***
Drácula estendeu a mão e tomou a vasilha que Torg
carregava. Cheirou-a, assanhando-se. Depois fixou seus olhos furiosos nos do corcunda.
— O que pretendia fazer?
— Perdoe-me, mestre. Não suporto mais está velha
carcaça podre...
— E o que há de errado com sua carcaça apodrecida?
— zombou o vampiro.
— Mestre... As mulheres...
— Os prazeres de carne... Você não os venceu ainda,
Torg? É um tolo... Um fraco... Um idiota completo, um imbecil total, uma besta irracional e teimosa — explodiu Drácula, atirando o sangue ainda morno sobre o corcunda, que
recuou, apavorado, antes de cair de joelhos e rastejar pela
lama ressequida até os pés da besta-fera.
— Perdão, mestre! Perdão — suplicou, beijando os
sapatos de Drácula.
O vampiro ergueu um dos pés, como se estivesse disposto a esmagar a cabeça do outro. Interrompeu o movimento, no entanto, enquanto olhava as próprias mãos sujas
de sangue coagulado.
Riu zombeteiramente, desanuviando uma tensão que
se estampara em seu rosto.
— Você quer aquele corpo lá dentro, não? — indagou.
— Sim — afirmou Torg, num fio de voz.
— Não ouvi.
— sim, mestre — repetiu o corcunda, agarrando-se às
pernas do vampiro e beijando seus joelhos.
— Você o quer mesmo, Torg? Sabe que posso retirar
sua alma e passá-la para ele. É o que deseja?
— Sim, mestre. Eu lhe serei grato pela eternidade. Terá em mim um servo atento e aplicado. Nenhum de seus desejos deixará de ser atendido por mim, mestre. Por favor!
Livre-me desse corpo amaldiçoado. De que me vale a eternidade se não posso gozá-la.
— Sua eternidade nasceu da promessa de me servir...
— Eu o servirei, mestre. Juro-lhe pelos olhos apodrecidos de meus ancestrais.
— É aquele corpo que deseja? Tem certeza disso?
— Se eu o atender, jura que jamais me atormentará
com seu desejo de um novo corpo?
— Sim, mestre, juro — quase gritou Torg, cheio de
esperança, pondo-se em pé e colhendo uma das mãos do
vampiro para beijá-la.
Drácula retirou a mão, enojado esfregou-a contra a
suntuosa capa que usava agora. O riso zombeteiro retornou
a seus lábios finos e cruéis.
Ele encarou o corcunda, zombando de suas lágrimas e
de seu tolo desejo.
— Eu lhe dou aquele corpo, Torg. Sua alma atormentada vai se apossar dele. Posso fazer isso agora mesmo. Entre, Torg. Vá admirar seu novo corpo — disse Drácula, abrindo-lhe passagem.
Torg, ensanguentado como estava, apressou-se e caminhou rapidamente até o estrado. O luar iluminava aquele
que seria seu novo corpo. Torg levou as mãos ao rosto, gemendo dolorosamente, enquanto uma gargalhada sinistra e
zombeteira explodia ali perto, quebrando o silêncio da noite calma.
— Não! — urrou o corcunda, a imagem grotesca do
cadáver esquartejado bailando diante de seus olhos.
O sadismo de Drácula não tinha limites. Sua crueldade
era incomensurável. O corpo do corcunda crispou-se num
relâmpago. Sua mão se estendeu e apanhou a faca amolada
sobre o estrado e se voltou para Drácula, arreganhando os
dentes.
O riso morreu nos lábios do vampiro.
— Não, Torg, não me desafie, não nesta noite, seu
maldito aborto da natureza, fruto de um ventre degenerado.
Não me provoque ou vou reduzi-lo a pedaços, como esse
corpo que você tanto deseja.
A mão de Torg tremia de fúria assassina, fazendo rebrilhar a faca. Seus olhos esbugalhados refletiam ódio puro.
Drácula se pôs na defensiva. Seus olhos cintilaram injetados e possessos.
Lentamente Torg foi se dando conta da inutilidade de
qualquer um de seus atos. A faca escorregou de seus dedos,
cravando-se no solo.
Ele baixou os olhos, desviando-os para o estrado. Drácula desperdiçara, por pura maldade o corpo que devolveria
a Torg à alegria de gozar todos os prazeres ao alcance dos
seres humanos normais.
A ideia de uma vingança se formou em sua mente. Era
mais forte que qualquer conjetura ou submissão. Drácula
era seu mestre, jurará servi-lo, mas algo como aquilo não
poderia ficar impune.
Tanta maldade merecia um troco à altura. Isso era certo e decidido.
— Tenho um trabalho para você. Estive no acampamento daqueles abelhudos. Há cruzes por toda parte. Preciso localizar aquela mulher e destruí-la. O ente maldito que
se apossou dela ameaça meu domínio e desafia meu poder.
Quero que vá agora e a encontre para mim. Não retorne
sem notícias dela entendeu? — ameaçou.
— Sim, mestre — afirmou ele, submisso e vencido.
CAPÍTULO 5
Giglio agia agora como um zumbi, obedecendo as ordens de Naiara.
Nada mais era do que uma carcaça humana sem conteúdo, sem vontade ou sentimentos. Apenas obedecia removendo cada uma das cruzes improvisadas por Domênico.
Levou-as para longe. Quando retornou, Naiara já se
aproximara e sorria malignamente. Por algum tempo ela ficou parada ao centro do acampamento, deixando o vento
agitar suas roupas e seus cabelos.
A expressão do mal em suas faces parecia ganhar mais
força a cada minuto. Os raios da lua, incidindo sobre a neblina que se esparramava pelo cenário, dava a tudo um aspecto irreal, fantasmagórico.
Giglio se aproximou lentamente, cabisbaixo e se postou diante de Naiara.
— Acordem todos! — ordenou ela, caminhando, então
resolutamente para o furgão, abrindo a porta e acendendo a
luz interna.
Quando os rapazes e garotas sonolentos deixaram suas
barracas acordados por Giglio, não entendera, aquela visão
incrível.
— Não pode ser! — exclamaram.
— Giglio, aconteceu alguma coisa? — correu lhe indagar Domênico.
O rapaz voltou para ele seus olhos opacos, sem expressão, e o rosto sem vida. Domênico percebeu as marcas
em seu pescoço e recuou, horrorizado.
— professora, como pode... — ia indagar Magda, mas
Naiara a interrompeu com um movimento de mão.
— Já perdemos muito tempo, pessoal. Vamos continuar nosso trabalho. Há escavações e material a ser recolhido.
— Mas é noite... — lembrou alguém.
— Pois assim será. Trabalharemos à noite e repousaremos durante o dia.
— Isso é um absurdo! — falou Domênico, aproximando-se mais para encará-la.
O que viu naqueles olhos o fez estremecer. Arrepios
de pavor eriçaram sua pele e seus cabelos pareceram erguese no alto da cabeça.
— Isso é o que farão! — afirmou Naiara, olhando cada um fixamente.
Giglio avançou e se postou a seus pés como um cão
doméstico. Domênico percebia o que houvera. Tinham de
se rebelar, mas como explicar aos outros, ali, diante de
Naiara, o que estava acontecendo.
O melhor, talvez, fosse concordar temporariamente. A
noite não demoraria a chegar ao fim. Sendo um vampiro,
Naiara seria vulnerável a luz do dia. Tudo poderia se resolver, então.
— Quero ver todos trabalhando agora — ordenou ela,
fazendo um gesto para Giglio, que subiu para o furgão.
A porta se fechou. Domênico ficou estático, assim
como tosos os outros. Entreolharam-se então, como que a
indagar o que fariam em seguida.
— Ao trabalho, pessoal — disse, procurando animar
seus amigos.
***
Hilgenstiller verificou seu passaporte, depois o guardou no bolso de seu sobretudo. Estava febril, movendo-se
rapidamente e pelo seu apartamento.
Já telefonara ao aeroporto, reservando uma passagem
para o voo noturno com escala em Turim. Estudara o mapa
da Itália. Era a maneira mais rápida de chegar ao local de
onde recebera aquele telefonema desesperado.
Drácula estava lá, não tinha dúvidas quanto a isso. O
corcunda mencionado pelo rapaz que telefonara era Torg.
O ataúde com inscrições nazistas fora o mesmo roubado ao
cemitério de Kizna, quando todo aquele pesadelo se iniciou.
Já perdera chances preciosas de destruir aquele monstro. Esta poderia ser a melhor de todas. Chegar de surpresa
e localizá-lo, atacando-o com uma arma que poderia ser
mortal.
Verificou mais uma vez as roupas que jogara na maleta, sobre alguns estranhos utensílios. Apanhou o estojo onde guardava sua velha pistola, agora armada com projéteis
de madeira e chumbo.
O cano da arma havia sido retirado e adaptado no estojo de cachimbos, de modo a parecer uma piteira estranha,
mas convincente.
Era a única maneira de passar com aquilo pela segurança dos aeroportos. A arma, no estado em que se encontrava, era inútil e ele poderia sempre alegar que se tratava
de uma lembrança de guerra.
Os projeteis de madeira confirmariam a inofensividade
do revólver. Fechou a maleta, então, e consultou o relógio.
Tinha meia hora para chegar ao aeroporto. Na manhã seguinte, estaria em Turim, após algumas escalas.
De lá seria fácil chegar até Saluzzo e ao sítio onde se
realizavam as pesquisas mencionadas pelo rapaz ao telefone.
Caminhou até a porta, mas estacou, tateando o próprio
peito. Retornou até seu quarto e abriu uma das gavetas de
um móvel, retirando dali um crucifixo de prata preso a uma
corrente forte de metal.
Acomodou-a ao pescoço e escondeu o crucifixo dentro das roupas. Seu olhar pousou, então, sobre o retrato de
Larah, sua filha, vitimada pela sanha maldosa do Drácula.
Um arrepio de ódio estremeceu seu corpo e, após uma
breve prece, apressou-se em deixar o apartamento. Quando
tomou um táxi, pouco tempo depois, foi refazendo a história contada ao telefone.
Drácula atacara a professora e chefe da equipe de arqueólogos. O que não compreendia era porque o vampiro
não a destruíra.
Isso fugia totalmente aos padrões dos ataques do
monstro até então. Tudo isso o punha curioso, mas, acima
de tudo, a impaciência em vencer a distancia e se defrontar
o mais rápido possível com o vampiro o deixara inquieto e
impaciente.
Larah e todas as outras vítimas precisavam ser vingadas. Aquele monstro tinha de ser varrido da face da terra e
mandado de volta às profundezas do inferno, local de onde
jamais deveria ter saído.
Seu arsenal estava preparado. Levava o necessário.
Estacas de madeira, o crucifixo de extremidades limadas
que provara ser eficiente e, acima de tudo, as balas de madeira.
Testara aqueles projéteis. Com o chumbo em seu interior, cada bala daquelas tinha o peso necessário para manter
a trajetória durante o disparo.
Não erraria o alvo, quando tivesse chance. Sabia que
não erraria.
***
Torg estranhou aquela luminosidade que se projetava
contra a neblina, criando um estranho efeito. Aproximou-se
mais e mais, até poder observar o local.
Não pôde acreditar no que via. Aquela gente trabalhava em plena noite, movendo-se febrilmente pelo acampamento, entrando e saindo da caverna.
Observou atentamente, procurando localizar aquela
mulher, mas não a via em parte alguma. Foi então que ouviu, atrás de si, um ruído denunciador.
Voltou-se e encarou um dos rapazes do acampamento,
que o olhava sombriamente. Ergue-se lentamente, pensando
numa boa resposta, mas o outro nada perguntou.
Apenas caminhou ao encontro do corcunda e estendeu
a mão, agarrando-o pelo braço. Torg se livrou daquela mão
com um giro de corpo.
O rapaz pareceu não se intimidar com a reação agressiva do corcunda e voltou a se aproximar com a mão estendida. Torg reparou naqueles olhos, então, que o fixavam sinistramente.
Não tinham vida, não tinham expressão alguma. Apenas fitavam, sombrios e imóveis, como se olhassem através
do seu corpo.
A mão voltou a se firmar sobre seu braço. O rapaz tentou arrastá-lo. Torg resmungou qualquer coisa e jogou seu
punho com toda sua força descomunal atingindo o outro em
pleno rosto.
Giglio, ou o que quer que fosse agora, apenas balançou a cabeça, sem soltá-lo. Torg ficou pasmado e assustado. Aquele golpe mataria um ser humano normal.
Voltou a golpeá-lo, dessa vez extravasando toda sua
ira. O corpo de Giglio tombou para trás, mas ergueu-se imediatamente e voltou a se aproximar do corcunda.
As mãos de Torg se crisparam com fúria mortal e ele
se viu separando a cabeça daquele corpo maligno. Quando
se dispunha a esquartejar aquele estranho agressor, um vulto de mulher avançou das trevas e se interpôs entre eles.
Os olhos de Naiara brilhavam, fixos no corcunda, que
recuou, estremecendo. Seu olhar se viu atraído pela protuberância no centro da testa dela, vencendo a pele, intumescendo-a como um tumor preste a se romper.
— Eu sei quem você é, animal! — disse Naiara.
Torg rosnou enraivecido. Podia ser obrigado a suportar os insultos de Drácula, mas não daquela mulher. Seus
dentes se arreganharam e uma fúria bestial desenhou-se em
seu rosto deformado.
— Onde está seu mestre? — indagou Naiara.
— No inferno! — urrou Torg, avançando contra ela.
A mão dela se estendeu com rapidez, agarrando a garganta do corcunda, que emudeceu diante daquela força descomunal que ameaçava esganá-lo.
Lentamente seu corpo foi sendo erguido no ar. Suas
pernas se debateram e seus olhos avermelharam. A língua
saltou fora de sua boca, arroxeada e obscena.
Com uma gargalhada gélida, ela o arremessou para
trás, contra uma pedra. Torg julgou que todos os ossos de
seu corpo se partissem com o choque.
A mulher voltou a se aproximar dele. Seu rosto também revelava fúria e, ao ver aquelas presas pontiagudas e
brilhantes, Torg levou a mão ao pescoço, massageando-o
instintivamente.
— Fale, besta estropiada, ou nada restará de sua carcaça miserável — rosnou Naiara, ameaçadoramente.
Torg encolheu-se contra a pedra. Lembrou-se do que
Drácula dissera. Um ente maligno se apossara do corpo dela. Um ser poderoso fora gerado daquela incorporação. Um
ser tão maldito e tão poderoso quanto o morcego-humano.
Era fácil, agora, compreender o temor e a ira de Drácula. Aquela mulher poderia destruí-lo.
— Fale! — ordenou ela, voltando a agarrá-lo pelo
pescoço e a erguê-lo em pleno ar.
Toda sua vida de peregrinações e devoção transcorreu
diante de seus olhos, enquanto tentava convencer-se de que
jamais deveria trair Drácula.
As cenas daquela mesma noite bailaram em sua mente.
Drácula zombara dele, de seu físico maltratado, destruindo
a chance que tinha de dar-lhe um novo corpo.
A mágoa e o ressentimento alimentaram o ódio instintivo. A visão da própria destruição apavorou-o. Um ser
humano não o destruiria. Poderia feri-lo, maltratá-lo, mas
jamais destruí-lo.
Aquela mulher, porém, podia, pois não era humana.
Quando ela o soltou contra a pedra novamente. Torg
não hesitou mais, contando-lhe onde estava o vampiro.
A mulher gargalhou de satisfação, depois se inclinou e
o encarou ameaçadoramente.
— Você pode me ser útil, corcunda infernal. Sinto isso. Pode me servir muito mais que ele — disse, apontando
Giglio. — vou destruir seu mestre e você será meu servo.
Amanhã, quando a lua cheia atingir sua plenitude e eu me
saciar de sangue humano, irei ao encontro dele para pôr fim
ao seu reinado. Eu Naiara, a mulher-vampiro, personificação do Licorne — finalizou ela, fazendo um gesto para Giglio e se afastando com uma gargalhada.
Torg ficou ali, apoiado contra a pedra, tentando definir
o que deveria fazer em seguida. Uma coisa era certa. Jamais
teria outra chance para testar o poder de Drácula e, ao
mesmo tempo, vingar-se de todas as humilhações que recebia como paga a mais total e submissa das servidões.
A tentação de voltar naquele mesmo instante e lançar
na cara de Drácula o desafio era irresistível. Ver o medo estampar-se naquelas faces medonhas lhe causaria um prazer
indescritível.
Sorriu malignamente, enquanto se punha em pé com
um gemido. Voltaria a Drácula com o desafio e ficaria à
margem do terrível combate.
Ao mesmo tempo, iria se precaver. Compreendia que a
destruição de Drácula seria sua própria destruição. Assim,
teria de ajudá-lo, caso pudesse ser destruído pela mulherlicorne.
Ela era um monstro dotado de poderes extremos, mas
havia um modo de destruí-la. Todos os monstros podiam
perecer no fogo. Ela não seria a exceção. Havia um posto
de gasolina ali perto. Seria fácil preparar uma armadilha.
Um círculo de fogo sempre se mostrara eficiente.
***
Quando os primeiros raios da aurora despontaram no
horizonte, Naiara se apressou em rumar ao furgão. Todos,
extenuados, observaram aquela espécie de fuga.
Ela fechou as cortinas intensas, depois ainda jogou
mais alguns panos sobre os trilhos, obtendo a escuridão total Giglio do lado de fora, submisso e vigilante.
Domênico fez um sinal para os outros e todos se reuniram na entrada da caverna.
— Domênico, você é o único que parece compreender
o que está acontecendo, afinal. Vai nos contar? — indagou
Magda. — O que houve com a professora? O que se passa
com o Giglio? Parece um morto-vivo...
— É o que ele é agora, pessoal! — afirmou Domênico
e o pavor se estampou nas faces dos outros, que o encararam interrogativamente.
— Como assim? — quis saber alguém.
— Talvez vocês não me acreditem, mas é a pura verdade. Alguém se lembra de ter lido, há algum tempo, uma
ou duas reportagens que saíram no Le Roy, a respeito de
vampirismo?
— Vampirismo? — retrucou Magda. — Você não vai
querer nos convencer que...
— Pois então ouçam-me — pediu ele, narrando-lhes
tudo que sabia.
Um silêncio mortal pairou entre eles, ao fim de sua
narrativa. Todos os olhares se voltaram para Giglio e para o
furgão.
O vento soprou na direção deles e um odor putrefato
chegou a suas narinas, nauseando-os.
— É o corpo de Helena! Temos de sepultá-la — disse
alguém.
— Não, temos de nos salvar. Não podemos usar o furgão, mas temos o jipe. Sugiro que deixemos tudo para trás
e saíamos daqui o mais depressa possível.
Não precisou repetir a sugestão. Todos correram para
o jipe. O olhar inexpressivo de Giglio os acompanhou.
Quando Domênico se acomodou ao volante, percebeu que
faltava algo importante.
—As chaves! Onde estão as chaves? — indagou.
— eu não sei, sempre ficaram no jipe — respondeu
Magda, ao seu lado.
— Foi ela! — disse alguém — ela retirou as chaves.
— Mas não pode nos impedir de nos movermos por
nossos próprios meios — disse Domênico saltando do veículo e correndo para a estrada.
Os outros mal tiveram tempo de compreender o que se
passava. Giglio se pôs em pé num salto e o alcançou, agarrando-o pelo pescoço e puxando-o para trás.
Ao cair, Domênico sentiu em suas mãos o metal frio
de uma alavanca. Ergueu-a e vibrou-a com todas as suas
forças. A pancada violenta atingiu o alto da cabeça de Giglio. Seus miolos saltaram para fora, ficando dependurados
horrivelmente.
Ele permaneceu em pé, no entanto e, quando Domênico o golpeou novamente, aparou o golpe com a mão e puxou o outro ao encontro de si.
Sua mão firmou-se, então, na garganta de Domênico e
dessa forma Giglio o arrastou até a entrada da barraca, jogando-o para dentro com violência.
CAPÍTULO 6
Torg gargalhou macabramente, enquanto dirigia o furgão. O sol se firmara no céu e a manhã era linha, como se a
natureza negasse totalmente a existência de trevas e de seres malditos que a habitassem.
A terra lavada era acariciada brandamente pela aragem
fria. Os galhos desfolhados das árvores pareciam envernizados, refletindo o brilho do sol.
A relva, não de todo ressequida, exibia um verdor esmaecido que avançava pelas colinas, cobrindo-as delicadamente. No céu, bandos de aves voavam juntos para um
só destino.
Apenas a risada sinistra do corcunda, dentro do furgão, quebrava aquele cenário poético de paz e beleza.
Torg tinha motivos para ir, motivos muitos bons, sádicos, quase voluptuosos. Bastava lembrar-se da expressão
de Drácula na noite anterior, quando lhe lançara o desafio
da mulher vampiro.
O mestre das trevas tivera um de seus acessos de fúria,
destroçando a casa, agredindo Torg. As pancadas recebidas
não o haviam ferido.
A cena fora recompensadora. Drácula temia aquele
encontro e nada poderia alegrar mais o corcunda que vê-lo
receber uma lição de medo, pelo menos uma em toda sua
vida amaldiçoada.
Talvez depois do susto, Drácula passasse a tratá-lo
melhor, reconhecendo seus serviços, recompensando-o pela
dedicação e pelos cuidados.
Deixaria tudo pronto para o duelo. Com a gasolina que
pretendia comprar naquela manhã, providenciaria para que
aquela mulher, caso o pudesse, não destruísse Drácula.
Seria uma boa vingança, mas não satisfazia de todo.
Drácula despedaçara maldosamente aquele corpo que poderia ter sido dele.
A frustração e a dor daquela visão macabra não seriam
facilmente esquecidas. Alguma coisa semelhante precisava
ser feita.
Lembrou-se então de Nunciata, a jovem que definhava
estendida num leito. Drácula a reservava para uma orgia.
Era um prazer raro para o vampiro.
A gargalhada de Torg explodiu mais alto, agora, e ele
quase perdeu o controle do veículo. Decidira o que haveria
de fazer.
A jovem amava o tal de Agostino. Torg quisera ser
Agostino e ainda o poderia ser. Com seus poderes hipnóticos poderia fazê-la crer que a figura disforme e encarquilhada diante de si era seu adorado amante.
A lascívia contagiou-o. Sensações voluptuosas percorreram seu corpo deformado, impacientando-o. Poderia têla. Poderia fazer-se amado e gozar os prazeres inconfessáveis que habitavam sua mente.
A ideia de a tomar em seus braços, de comprimir suas
carnes mornas e macias, de colar seus lábios sequiosos aos
dela, de penetrá-la e saborear aquele calor úmido e íntimo
que alucinava, quase o fez desfalecer ao volante.
Uma baba gosmenta e satisfeita escorreu do canto de
seus lábios. Seus olhos brilharam intensamente. Seu corpo
estremeceu convulsivamente, de puro gozo.
Chegava ao posto de gasolina. Manobrou o veículo até
junto da bomba. Desceu e foi abrir a porta traseira, onde
carregava um tambor apropriado.
— Quer que encha? — indagou o encarregado.
— Sim, totalmente — concordou Torg, num grunhido.
Um carro vinha pela estrada e parecia determinado a
seguir em frente. Uma ordem do passageiro, no entanto, fez
o motorista freá-lo.
Hilgenstiller olhou pela janela o coração aos saltos, os
músculos tensos, a expressão crispada. Aquela figura horrenda e deformada, junto aquele furgão negro, era Torg, o
corcunda servo de Drácula.
— É uma cantina, senhor. Se quiser comer alguma
coisa...
— Não, não! — afirmou Hilgenstiller. — Já viu aquele furgão por aqui antes?
— Não senhor, mas me lembro de ter visto aquele corcunda em Saluzzo, há alguns dias atrás. A placa do carro...
Sim... É francesa. Muitos turistas passam por aqui...
Hilgenstiller sabia, no entanto que não se tratava de
um turista. Aquele furgão poderia levá-lo ao esconderijo do
vampiro. Bastava segui-lo. Era dia. Nada poderia ser mais
adequado.
— Vamos esperar, motorista. Quando aquele furgão
partir, quero que o siga à distancia. Preciso descobrir aonde
vai.
— Mas não íamos até...
— Sim, depois iremos até lá. O mais importante talvez
esteja aqui mesmo — disse, mas o motorista não entendeu
suas palavras, pronunciadas com nervosismo e impaciência.
***
Em sua fazenda, Giuseppe Santini desligou o trator,
quando viu a mulher se aproximar pela terra recém arada.
Um cheiro agreste e delicioso penetrava suas narinas, revigorando-o.
Aquela era a melhor terra de toda a região e Giuseppe
se orgulhava dela.
— Trouxe sua comida — disse ela, passando-lhe o
embrulho.
— Ótimo! Estou faminto — sorriu ele, indo se sentar
ao lado do trator para aproveitar a sombra e proteger-se do
vento frio.
Começou a comer, estalando a língua com satisfação.
Sua esposa era ótima cozinheira. Sua terra era a melhor.
Seu trator era excelente.
Giuseppe tinha, portanto, boas razões para sentir-se
um homem feliz e orgulhoso de suas posses.
— Estamos colhendo os legumes e as verduras, antes
das primeiras geadas. É demais para nós. Posso fazer conservas, mas jamais consumiremos tudo — riu ela.
— Posso levar um pouco para a cidade, logo mais, assim que terminar de arar este pedaço.
— Pensei em mandar um pouco para a comadre Marettino...
— Boa ideia! Nuno me disse, lá na cantina que o Lauro tem daquela banha excelente. Poderíamos ir até lá e
comprar um pouco também.
— Trocar — corrigiu ela, com um brilho malicioso e
comercial nos olhos.
— Trocar, seja lá como for — concordou ele. — Que
tal irmos está noite? A estrada estará seca e poderemos usar
a camionete...
— Excelente ideia! Vou separar o que levaremos para
eles, então.
— Não se esqueça do alho. As terras de Lauro não
produzem alho ou ele não gosta de plantá-lo.
***
Com a precaução exigida pelo professor, o motorista
levava seu carro em perseguição ao macabro furgão que
seguia pela estrada.
Hilgenstiller mal podia se conte. Não esperava que tudo pudesse ser tão fácil. Talvez o destino, finalmente, estivesse agindo a seu favor, facilitando-lhe aquela ingrata tarefa.
Localizar Drácula em plana luz do dia significava destruí-lo, Torg não seria empecilho, não diante daquela pistola.
Ao lembrar-se dela, abriu sua maleta e retirou o necessário para montá-la. Pelo retrovisor o motorista percebeu a
manobra e assustou-se.
— Fique tranquilo, meu bom homem. Não sou assaltante.
— Sendo assim, por que a arma? Vai matar alguém?
— Não. Talvez eu tenha que matar um animal, só isso
— afirmou o professor, introduzindo, uma a uma as balas
na arma.
Guardou-a no bolso de seu sobretudo. Seus olhos se
alongaram pela estrada, até aquela mancha negra que se
deslocava velozmente.
— Ele parece ir na direção daquele sítio malassombrado — falou o motorista.
— É o que supus, também.
Suas conclusões, no entanto, estavam erradas. Em algum ponto logo à frente, Torg deixou a estrada principal e
tomou outra, mudando de direção.
Quando o táxi chegou àquela encruzilhada, o professor perguntou:
— Onde isso vai dar?
— Na fazenda de Lauro Marettino.
— Uma fazenda!
— Sim, uma fazenda. Agora não estamos longe daquele local que deseja ir, senhor. O que devo fazer?
— Vamos até a fazenda. Agora com toda cautela, por
favor. Não quero que nossa chegada seja descoberta — disse, pensando com tristeza no trágico destino das vidas humanas que habitavam aquele local.
Se Drácula lá se instalara, era certo que semeara total
destruição.
— Ei, veja aquilo! — gritou o motorista, quando ia
pôr o veículo em movimento.
Hilgenstiller olhou na direção apontada. Suja de terra,
desgrenhada e com as roupas rasgadas, uma garota estendia
as mãos, suplicando por ajuda.
— Deus! O que será que houve? — indagou Hilgenstiller, saltando do veículo e correndo ao encontro da jovem.
— Ajuda, pelo amor de Deus! — balbuciou, tombando
nos braços do professor.
Ele a levou para o carro. O motorista abriu a porta traseira e a garota foi acomodada no assento. Estava em péssimas condições, com profundas olheiras e marcas por toda
a pele, como se tivesse se chocado com uma cerca de arame
farpado ou corrido através de um campo de espinhos.
— Os outros... Precisam de ajuda... Giglio... Ele...
Deus! — gritou ela, incoerente e febril.
— Acalme-se, por favor — pediu o professor, com
gentileza, acariciando-lhe o rosto.
A garota lhe agarrou a mão e ergueu os olhos suplicantes e apavorados. Estava em choque, terrivelmente assustada. Inconscientemente, Hilgenstiller examinou-lhe o
pescoço e respirou aliviado por não ver ali as fatídicas marcas.
— Tenho um pouco de vinho aqui, senhor. Sempre
trago uma garrafa para essas noites frias de agora — disse o
motorista.
— Pode ajudar.
O motorista apanhou-a e passou-a ao professor. Este
derramou um pouco nos lábios da garota, que se debateu e
procurou se erguer.
— Ele está lá... Ela também. Algo aconteceu o demônio está solto e nós...
O professor não viu outra solução. Sua mão espalmada
bateu com força no rosto da jovem, que o olhou chocada,
depois chorou convulsivamente, cobrindo o rosto.
— Vamos, beba um pouco disso, vai ajudá-la — disse
ele, a seguir, com ternura.
Ela concordou, parecendo acalmar-se. As lágrimas
correndo por seu rosto deixavam um trilho de limpeza na
pele suja. Hilgenstiller olhou suas mãos. Estavam machucadas e igualmente sujas. Havia terra sob suas unhas.
— Sente-se melhor agora?
— Sim, mas é preciso ajudar os outros. Giglio está lá,
não sei como ainda pode se manter em pé daquela forma.
Não deixa ninguém escapar do acampamento. Foi por um
milagre que eu tenha conseguido...
— Está bem, vamos com calma e nos conte tudo desde
o princípio. Acha que pode?
Ela engoliu em seco, depois respirou profundamente,
tentando vencer o asco e o pavor que convulsionavam seu
corpo.
Em breves palavras ela narrou, então, tudo que houvera no acampamento, desde quando localizaram o ataúde até
a última noite, quando a professora Naiara agira daquela
forma tão estranha e Giglio fora transformado numa espécie de zumbi.
O motorista se persignava a cada nova palavra da garota, mas Hilgenstiller apenas ouvia atentamente. O terror e
o sobrenatural já não mais o intimidavam.
Sua perseguição implacável à besta-fera, sugadora de
homens e semeadora de destruição o fizera crer nas mais
horrendas aberrações com que a natureza era violada em
sua máxima sabedoria.
— Precisa ajudá-los. Estão lá, mortos de cansaço e de
medo, sem chances de escapar...
— Iremos — prometeu o professor, enquanto o motorista balançava a cabeça de um lado para outro, negando.
— Aquele local é assombrado. Jamais acreditei nisso,
mas agora vejo que me enganei todo o tempo. Sinto muito,
professor, mas não vou lá...
Hilgenstiller retirou seu crucifixo do peito e mostrou-o
ao motorista.
— É cristão?
— Sim, mas o que tem isso a ver com...
— Se é um cristão, deve saber que isto representa a
força máxima do bem. Nada há a temer. Eu lhe prometo.
— Mas se é como a garota disse, como vamos matar
alguém que já está morto?
Hilgenstiller abriu a maleta e apanhou uma de suas
pontiagudas estacas. O motorista arregalou os olhos. Aquele homem diante de si parecia saber o que fazia, inspirando
confiança.
— Está bem... Está bem! — concordou finalmente.
Hilgenstiller foi se sentar ao lado e partiram em seguida. No banco traseiro, encolhida, Magda cedia ao cansaço e
adormecia.
Algum tempo depois chegavam ao local. Quando Hilgenstiller desceu, um vulto macabro se ergueu de junto do
furgão perto da caverna e caminhou na sua direção.
Rostos assustados e esperançosos surgiram às portas
das barracas. O motorista persignou-se e encolheu-se. Hilgenstiller teve de se esforçar para conter a náusea que convulsionou seu estômago.
Um odor putrefato dominava o local. Como se isso
não bastasse para horrorizá-lo, havia aquela figura que caminhava ameaçadoramente em sua direção.
Era incompreensível. Mesmo ele, preparado para as
mais macabras surpresas do sobrenatural, podia conter o
pavor diante de um corpo humano naquelas condições.
O cérebro jazia fora do crânio esfacelado. A pele enrugara-se, como se ressecada pelo sol. Os olhos eram buracos negros nas órbitas. As mãos estendidas eram ossos cobertos por pele enegrecida e decomposta.
Compreendeu, então, o que se passava. Era um vampiro e o sol estava destruindo seu corpo. Ainda assim, era
ameaçador. O professor levou a mão ao bolso do sobretudo
e ergueu a arma, apontando-a para o coração.
Esperou até que Giglio, ou o cadáver ambulante que
ele fora se aproximasse o bastante, depois abriu fogo. A bala transpassou-lhe o coração, fazendo-o cambalear.
A passagem da madeira pelo seu corpo foi como se
um ferro em brasa o dilacerasse. Ele urrou de dor. Seus
braços se agitaram ameaçadoramente.
O sol inclemente fazia seu papel. O corpo sem vida
tombou de joelhos e ficou se retorcendo, soltando pedaços
de pele na terra, revelando pústulas que cobriam os ossos
putrefatos.
Hilgenstiller correu até o carro e apanhou uma das estacas. Ante o olhar horrorizado de todos os que acompanhavam a grotesca cena, cravou-a no peito daquela aberração, que se aquietou.
Um sorriso brilhou em seus lábios descarnados, como
se desse graças por se ver livre da maldição.
Ofegante e trêmulo, o professor levantou os olhos para
os jovens que saiam das barracas. Domênico se adiantou.
— É o Prof. Hilgenstiller? — indagou.
— Sim...
— Graças a Deus! — exclamou o rapaz. — Chegou
bem a tempo, já não suportávamos mais, Magda conseguiu
encontrá-lo?
— Refere-se à garota que está no carro? Ela está bem.
— Então venha, professor. Ela dorme no furgão. É um
monstro. Temos de destruí-la — disse Domênico, febrilmente, arrastando-o até o furgão.
Por mais que tentassem, no entanto, não conseguiam
abrir a porta.
CAPÍTULO 7
Uma força maligna e infernal parecia guardar o interior do furgão, barrando toda e qualquer tentativa de ataque
ao corpo em repouso da professora.
Usaram de todas as ferramentas, mas a simples lataria
adquirira a consistência do aço. Mesmo os vidros das janelas resistiam às pancadas mais violentas.
Estavam atônitos e ofegantes, após todas as tentativas
infrutíferas de devassar aquele tempo do mal.
— O que vamos fazer? — indagou Domênico.
Hilgenstiller olhou ao seu redor. Viu um tambor de
metal ali perto. Foi até lá examiná-lo.
— Contém óleo para ser usado no gerador — informou Domênico.
Os olhos astutos do professor vasculharam os arredores, enquanto uma ideia se formava em sua mente. Havia
muita lenha naquelas árvores ressequidas e nos troncos caídos no chão.
— Há um meio de destruir o demônio que se apossou
do corpo dela. Um meio drástico, mas eficiente.
Domênico pareceu entender, assim como os outros.
Por instantes se entreolharam, depois, numa procissão si-
lenciosa, saíram recolher galhos de lenha, troncos, empilhando-os contra o veículo.
O professor tratou de retirar alguns baldes de óleo
combustível e deixá-los pronto, depois foi auxiliar os jovens na ingrata tarefa.
Parou, porém, junto ao corpo decomposto e fétido de
Giglio. Movido por um sentimento de piedade, fez um gesto para Domênico, que compreendeu.
Uma padiola foi providenciada e o corpo foi empurrado para cima dela e levado até o veículo, onde seria incinerado, juntamente com Naiara e o cadáver de Helena.
Quando todo o furgão estava cercado pela madeira, o
professor distribuiu os baldes de óleo, que foram atirados
sobre a lenha.
Momentos depois, a fumaça negra anunciava a grande
fogueira que destruiria o mal definitivamente. Afastaramse, temendo a explosão do tanque de gasolina.
Um grito lancinante se ouviu acima do crepitar lúgubre das chamas, fazendo com que todos se arrepiassem e
estremecessem.
— Veio do interior do furgão — disse Domênico.
— É ela! — gritou alguém.
No momento seguinte, uma explosão ensurdecedora
partiu o veículo ao meio. Saindo das chamas com as roupas
ardendo, um vulto foi atirado no espaço, caindo junto à entrada da caverna.
Gritos de dor e ódio escoaram pelas paredes, de pedra,
enquanto Naiara, fugindo ao fogo e ao sol, inimigos mortais, aprofundava-se no interior escuro da caverna.
— Ela escapou! — alertou o professor.
— Como Deus meu? — indagou Domenico.
— Não importa. Temos de destruí-la, mas seria imprudente ir em seu encalço.
— E o que podemos fazer? Se a deixarmos, ela continuará sendo a ameaça terrível que é...
— Há algo que podemos fazer, sim — disse o professor, indo apanhar madeira. — Há um martelo e pregos por
aí?
Domênico o atendeu com presteza. Todos se reuniram
ao redor dele, enquanto montava um enorme crucifixo. Depois, levou-o e plantou-o no interior da caverna, entre seus
túneis ameaçadores e a saída.
— Isso a prenderá aí dentro pela eternidade. A caverna será seu túmulo. Vamos bloquear a passagem.
— Temos cimento, professor.
— Ótimo! Prepare a argamassa. Os outros me ajudem
a empilhar pedras. Ela jamais sairá daí.
Uma verdadeira muralha foi erguida à boca da caverna, prendendo, talvez para sempre, a terrível ameaça da
mulher-vampiro.
Quando terminaram, o dia chegava ao fim. Estavam
exaustos ao término daquele pesadelo. Para Hilgenstiller,
no entanto, o pior ainda estava por vir.
A noite chegava, e tornava mais difícil seu confronto
com Drácula. Não recuaria, porém. Adiar poderia se perder
uma chance de destruí-lo.
Apesar de o perigo ser maior, iria àquela fazenda.
— e agora, professor? — indagou Domênico.
Hilgenstiller olhou-os, então. Estavam no fim de suas
forças físicas e mentais. O que haviam enfrentado era enlouquecedor.
— Vocês voltarão para o local de onde vieram. Não
sei como irão justificar os incidentes, mas terão de fazê-lo.
Domênico se voltou e encarou os amigos.
— Ninguém nos acreditará, pessoal. O melhor a fazer
será alegarmos que a professora, Giglio e Helena morreram
num acidente, quando o furgão pegou fogo e explodiu. É a
única maneira de deixá-los em paz, após o terrível destino
que enfrentaram.
Todos concordaram unanimemente. Enquanto se preparavam para partir, o motorista do carro se aproximou do
professor.
— Olhe, senhor, depois do que vi aqui, não espera que
eu o leve até aquela fazenda, não?
— Enquanto houver luz, não haverá o que temer...
— Eu sei, mas não quero facilitar. Já vi mais do que
podia suportar. Se quiser, deixo-o na estrada. O resto é
consigo.
O professor sorriu, então, concordando. Não podia lutar contra o medo das pessoas.
***
As roupas jaziam a um canto do aposento. A luz do sol
ainda penetrava pela janela, iluminando o corpo branco e
torneado de Nunciata.
Seus olhos se fixaram no homem a sua frente. O terror
desaparecera de seus olhos e um brilho de felicidade tomou
conta de seus lábios.
Toda a tensão se desfez. Ela abriu os braços.
— Agostino! — murmurou, enquanto Torg, o corpo
nu e deformado caminhava para ela, trêmulo de hesitação,
incrédulo diante da oferta de paixão que lia naqueles lábios
rubros e sensuais.
A volúpia que se apossou dele foi brutal, bestial, animalesca. Com um apetite desenfreado atirou-se sobre ela,
apertando-a, mordendo-a, esfregando suas mãos ásperas e
imundas sobre a pele delicada.
— Agostino! — ria ela, surpresa diante de tanto desejo, disfarçando a dor que os carinhos brutos provocavam.
Grunhidos apenas escapavam da boca gosmenta de
Torg, enquanto devassava aquele corpo com as carícias
mais audaciosas e depravadas.
Nunciata não sabia protestar. Sua mente estava confusa. Era como se acordasse de um pesadelo tenebroso e visse
Agostino diante de si, pedindo-lhe amor desesperadamente
e uma força interior desconhecida a fizesse ofertar-lhe o
que pedia.
Entregou-se, portanto, à luxuria degradante do corcunda, que se apossou de seu corpo com a sofreguidão de
quem espera demais por algo que desejava.
Foi uma tarde de gozos intermináveis, de carícias brutais, de beijos sufocantes, Torg extravasou todo seu apetite
macabro.
O prazer de haver se antecipado ao seu próprio mestre
foi amais compensadora das vinganças.
Mais tarde, satisfeito e exausto, vestiu-se e deixou o
aposento. Desceu até a sala principal. Sentou-se à mesa.
Gargalhou loucamente, enquanto o dia morria lá fora.
Uma dormência gostosa invadiu seu corpo. Ele se debruçou sobre a mesa e cochilou, sonhando com o prazer
dos anjos.
***
A noite chegou, trazendo a neblina e um vento lúgubre, que parecia convidar as bestas noturnas para um espetáculo de horror.
Nos currais, os animais esfomeados se moviam com
inquietação, como que farejando no ar a presença de algo
maligno e ameaçador.
Na adega da casa, a mão descarnada do Conde Drácula firmou-se contra a tampa do ataúde e empurrou-a para
cima. A presença das trevas era revigorante.
Após o descanso, sentia-se faminto e impaciente. Havia um desafio no ar e isso despertava o furor em cada
músculo de seu corpo.
Era um Príncipe das Trevas, o preferido de Satanás, o
ente maldito mais poderoso da face da terra. O Licorne era
poderoso, mas jamais destruiria aquele cuja maldade não
tinha limites.
Ergueu-se lentamente. Precisava de sangue fresco,
sangue de mulher, morno e fortalecedor. Seu corpo precisava de todas as forças para o terrível encontro.
Lembrou-se da jovem que preservara e que dormia
agora no quarto. Estremecimentos de volúpia e crueldade
agitaram-no e ele deixou a adega escura.
Ao passar pela sala, viu o vulto de Torg, debruçado
sobre a mesa, e sorriu com certa piedade. O corcunda o vinha servindo muito bem, talvez fosse hora de recompensálo da forma como ele desejava.
Isso ficaria para mais tarde, no entanto. Urgia saciar
sua sede e preparar suas forças. Exterminando aquela ameaça, o mundo voltaria a ter um único rei do terror.
Avançou pelo corredor, a esvoaçante capa negra realçando seu aspecto macabro. Penetrou no quarto e se aproximou do leito.
Não entendeu aquele vulto retorcido sobre a cama desfeita. Aproximou-se mais. A garota estava morta. Em sua
pele, marcas de unhas e dentes, como se alguém houvesse
extravasado nele seus instintos mais animalescos.
— Torg! — murmurou, sentindo um sabor de veneno
subir-lhe à boca.
Não era preciso examinar atentamente para perceber
as barbaridades cometidas pelo corcunda, em sua volúpia.
O vampiro girou nos calcanhares e deixou o aposento, movido por uma fúria diabólica.
Torg, debruçado sobre a mesa, ainda sonhando com as
carícias e os prazeres de um corpo morno e tenro. Assim, a
pancada que o atingiu no alto da cabeça foi como um banho
de água fervendo em sua pele.
Rodopiou para o chão. Ao erguer os olhos, viu o vulto
ameaçador que rumava para ele. Com um bastão, Drácula
golpeou impiedosamente o corpo maltratado do corcunda,
vociferando maldições e palavrões.
— Perdão, mestre! — clamava Torg, tentando fugir às
bordoadas implacáveis que o destroçavam.
— Maldito aleijão, inútil carcaça podre, fétido excremento de uma víbora!
Quando cessou o vampiro estava exausto e enfraquecido. Torg jazia estendido no assoalho, o corpo coberto de
sangue, as carnes maltratadas ao extremo.
O ruído inquieto dos animais no curral alertou Drácula
para o que poderia ameaçá-lo. Precisava de sangue com urgência, ou sucumbiria aos ataques do inimigo que marchava contra ele.
Naquele momento, o único ser humano, com sangue
capaz de fortalecê-lo, era o próprio Torg. Drácula riu macabramente. Aquele seria o pior dos castigos. O corcunda
lamentaria pela eternidade haver desafiado seu mestre.
***
A fúria se apossara do corpo de Naiara.
A dor das queimaduras, no entanto, não era pior que
aquela, no alto de sua testa, onde a protuberância intumescida se abria para dar passagem a um chifre pontiagudo,
que crescia à medida que sua fúria aumentava.
Queria sair dali, vencer aquela escuridão e rumar decididamente ao encontro de seu maior inimigo. Drácula
precisava ser exterminado. A terra só podia pertencer a um
deles. A luta seria de vida ou morte, mas, para isso, tinha de
escapar daquele túmulo onde a haviam encerrado.
Sua força descomunal poderia ser usada contra aquela
simples murada de pedra, mas, ao aproximar-se da cruz,
sentia-se invalida por uma extrema fraqueza.
Retornava, recuperava-se, partia os blocos de pedra da
montanha com golpes demolidores, enquanto, em sua testa,
o chifre pontiagudo atingia o máximo do tamanho.
Ela estacou repentinamente, ao ver rolar lascas de uma
rocha que golpeara. Seus olhos animalescos brilharam e
uma ideia salvadora a fez estremecer de satisfação.
Não podia se aproximar da cruz, mas podia atingi-la.
Com uma enorme pedra em suas mãos, caminhou até a saída da caverna, atirando-a com todas as suas forças.
A Cruz de madeira partiu-se ante a força do impacto.
Com um urro medonho, ela se arremessou contra a muralha
de cimento e pedra, demolindo-a e ganhando a liberdade.
Livre do ar viciado e pestilento da caverna, suas narinas se dilataram.
Ela ergueu a cabeça e urrou, desafiando a noite. Depois ficou imóvel, farejando, o peito arfando pesadamente,
animalescamente.
A lua nascente projetou sua sombra disforme contra a
colina. O vento varria os destroços do acampamento. No ar
ainda havia um cheiro nauseante de queimada.
Repentinamente, como percebendo qualquer coisa no
ar, olhou numa direção. Suas feições se arreganharam, as
presas malignas cobriram seu lábio inferior. Ela começou a
correr, então, rápido como o vento, ao encontro de seu inimigo mais perigoso.
***
Hilgenstiller deu graças pelo nascimento da lua, que
vinha iluminar a estrada. Estava exausto depois daquele dia
infernal. A maleta em sua mão parecia pesar uma tonelada.
Longe de abater-se, no entanto, mais suas forças aumentavam ante a expectativa de destruir aquele demônio
monstruoso que surgira das cinzas para aterrorizar a humanidade.
A caçada implacável poderia chegar ao fim naquela
mesma noite e nada no mundo lhe daria mais prazer que fazer com que isso acontecesse.
Suas armas estavam prontas. O revólver com as balas
de madeira, as estacas pontiagudas, o crucifixo de extremidades cortantes.
Um ruído se fez ouvir, então ao longo da estrada. Ele
correu se ocultar atrás de um tronco caído, ao ver a luz dos
faróis que vinham rasgando a neblina fina que avançava
sobre os campos.
Poderia ser o corcunda, naquele furgão negro, por isso
tomou todas as precauções. Empurrou a arma e engatilhoua. O veículo se aproximou e passou por ele. Hilgenstiller
jurou ter visto um casal na boleia.
A camionete se perdeu na próxima curva do caminho.
Intrigado, o professor deixou seu esconderijo. Quem seriam
aquelas pessoas? O que faziam? Não sabiam do perigo que
poderiam estar correndo naquele momento?
Giuseppe Santini e sua mulher, realmente, jamais poderiam imaginar o que os aguardava. Conversavam animadamente. O luar os punha românticos. Ela se aproximou dele o bastante para que seus corpos se roçassem.
Ideias marotas passaram pela cabeça dele e ele prometeu a si mesmo que, na volta, iria parar a camionete em algum lugar ermo e relembrar velhos tempos de namorados.
Na carroceria, levavam verduras, legumes e algumas
réstias de alho. A ideia da mulher era trocá-los por uma lata
de banha de porco.
Todos, na redondeza, sabiam que os Marettino a preparava da melhor maneira possível.
— Não vamos ficar muito tempo, não? — indagou ela,
vibrando aquelas sensações voluptuosas que a assaltavam
ao esfregar seu corpo ao do esposo.
Ele a olhou e, no brilho de seu olhar, leu o mesmo desejo que o impacientava.
— Claro que não. A noite está bonita, a lua é muita
sugestiva — riu ele, apertando as coxas carnudas da esposa.
CAPÍTULO 8
Drácula agarrara Torg pelos ralos cabelos e erguera
seu corpo ensanguentado, jogando-o sobre a mesa. O cheiro provocante do sangue que empapava suas roupas espicaçava o vampiro.
Ele retorceu para o lado o pescoço do corcunda e se
fixou naquela veia grossa que latejava compassadamente.
Seus lábios se abriram e as presas mortais e malditas se alongaram.
O ruído de um veículo se aproximando o fez estacar
intrigado e enraivecido. Foi até a porta. A caminhonete
manobrava e estacionava próximo do alpendre. Giuseppe e
sua esposa desceram, estranhando a escuridão.
— Lauro! Eh, Lauro! — gritou Giuseppe.
O olhar chamejante do vampiro se fixou na mulher
que se agarrava ao braço do marido. Ali estava seu repasto,
o sangue morno e delicioso que devolveria suas forças.
Caminhou para fora. O vento agitou a capa negra, destacando seu corpo magro contra o fundo escarlate. O casal,
sob o luar, não entendeu aparição.
O rugir esfomeado do vampiro, no entanto, os fez estremecer. Quando o luar banhou aquele vulto esquelético e
grotesco, com o rosto crispado pelo mais horrendo dos apetites, compreenderam o terrível destino que os aguardava.
Giuseppe empurrou a esposa para trás, numa tentativa
patética de protegê-la. Drácula o agarrou pelo pescoço, erguendo-o diante de si e arremessou-o para trás, por sobre a
carroceria do veículo.
Depois, olhou a mulher, muda e encolhida, a sua frente. Rosnou ameaçadoramente, enquanto se aproximava dela.
— Afaste-se de mim, satanás — berrou ela.
A gargalhada rasgou o silêncio da noite como uma navalha assassina, fazendo o gado se movimentar com loucura pelo curral e se lançar contra as cercas, arrebentando-as.
O som de seus galopes desenfreados pareceu fazer eco
ao grito de horror e desespero que escapava dos lábios da
mulher, enquanto Drácula bafejava em seu pescoço, louco
pelo seu sangue.
Giuseppe se ergueu-se na carroceria da camionete,
uma réstia de alho enrolada ao pescoço. Ficou olhando aquela cena hedionda, vendo as presas rasgarem o pescoço
de sua esposa e, em meio a ruídos grotescos, seu sangue ser
sugado com volúpia pelo vampiro.
Gritou em desespero, jogando-se sobre o monstro. A
presença do alho fez Drácula hesitar. Santini se debruçou
em lágrimas sobre a esposa. Drácula chutou-o, empurrando-o para longe.
Quando o homem se ergueu novamente, aquele urro
medonho do vampiro o fez correr instintivamente para longe.
No dia seguinte, seria encontrado pelos amigos, com
aquela réstia de alho ao pescoço e uma expressão de pavor
ao rosto, completamente doido.
Drácula gargalhou ao vê-lo afastar-se e voltou-se para
a mulher, que choramingava e suplicava, tentando estancar
o sangue que lhe empapava o vestido.
O vampiro se lançou sobre ela, disposto a não desperdiçar uma gota do precioso liquido.
Desperto pelos ruídos da luta. Torg chegou à porta e
deu graças pela aparição daqueles estranhos. Só assim Drácula desviaria sua atenção e não o mataria.
Quando Drácula, finalmente, se saciou e se sentiu forte novamente, atirou para trás o corpo exangue da italiana.
Virou-se para Torg, que se encolheu, temendo o brilho que
via naquele olhar.
Caiu de joelhos, suplicante e assustado. Drácula gargalhou de puro sadismo, sentido-se o mais poderoso e o
mais forte de todos os monstros.
Repentinamente, como uma lufada de vento infernal,
um vulto esbranquiçado saltou para o alto da cabine da camionete e urrou medonhamente.
Drácula se voltou olhando seu desafiador. Suas mandíbulas se arreganharam, suas presas brilharam ao luar,
seus braços se estenderam, as garras recurvas e ameaçadoras.
— Cavasti! Cavasti, Licorne! — berrou, rodeando o
veículo e indo se plantar no pátio.
Não longe dali, com a arma na mão, Hilgenstiller olhava aquela cena fantástica, sem compreendê-la.
De um lado, aqueles dois monstros. De outro, movido
pelo instinto carniceiro, Torg se jogava sobre o corpo da
mulher e enterrava suas mãos em seu peito, arrancando-lhe
o coração gotejante.
Náuseas agitaram o estomago do cientista, que tossiu
incapaz de conter o vômito ao ver o corcunda levar à boca
e mascar com indizível prazer aquele órgão vital extirpado.
Sua presença fora notada. As atenções se voltaram para ele. Ergueu-se corajosamente, empunhando a arma e o
crucifixo de extremidades aguçadas.
— Bestas do apocalipse, venha a mim! Tenho o que
precisam — berrou avançando.
Os reflexos do crucifixo eram como setas atingindo os
corpos dos dois monstros, que urrando animalescamente,
desapareceram na noite.
Um silêncio de morte cercou o professor. Seus inimigos haviam desaparecido, mas estava certo de que o espreitavam nas sombras.
Aquela casa era o refugio deles. Entrar lá, no entanto,
era uma temeridade. O perigo o rondava a cada recanto escuro. Não haveria, porém, outra forma de atacar.
— Não posso enfrentar sombras — murmurou, sentindo calafrios de intenso pavor percorreram seu corpo.
Seu olhar se dirigiu à camionete. Não estava longe daquele posto de gasolina. Talvez conseguisse lá algum tipo
de ajuda. Nesse ínterim, Drácula poderia escapar, como fizera das outras vezes.
Seu dilema era torturante. Aproximou-se lentamente.
Junto à camionete, sentiu o cheiro forte do alho. Apanhou
uma réstia e enrolou-a ao pescoço. Depois retirou do peito
o crucifixo.
Havia fios elétricos, o que demonstrava que a casa estava ligada à rede de energia. Bastaria encontrar um interruptor e tudo começaria a ficar mais fácil.
Avançou para o alpendre. O alho o incomodava, mas
sabia que era benéfica sua influência. Olhou para o interior
da casa. Seu temor era o corcunda que poderia atacá-lo.
Tateou a parede. A luz iluminou a sala em desordem
com manchas recentes de sangue no assoalho. Após um rápido exame, seu olhar se dirigiu para a escadaria.
Foi até lá, apertando com força a arma em sua mão.
Subiu um a um os degraus. No alto, encontrou outro interruptor que iluminou todo o corredor.
Havia diversos quartos, mas apenas um tinha sua porta
aberta. Caminhou até lá, olhando em seu interior. Parecia
ver um corpo feminino sobre o leito. Sua mão tateou a parede, acendendo a luz.
Recuou horrorizado pela cena grotesca. O corpo jovem estava coberto de arranhões e sangue, numa posição
indigna e degradante.
Dominado pela piedade, ele avançou, examinando o
aposento. Estava só. Aproximou-se do leito. Havia uma expressão muda de dor e medo no rosto pálido da jovem.
Inclinou-se para acomodá-la melhor em seu leito de
morte. Um ruído na porta o fez se voltar a tempo de ver o
corcunda puxar a maçaneta e batê-la.
No instante seguinte, viu-se trancado no quarto. O
corcunda o fechara pelo lado de fora. Examinou então, a
fechadura, antes de disparar contra ela.
As balas de madeira, com miolo de chumbo, não produziam o necessário para abrir sua liberdade. Correu, então,
para a janela. Era alta demais para arriscar um salto. Estava
preso numa armadilha, com um cadáver.
***
Quando Torg desceu à sala. Drácula estava lá, olhando-o interrogativamente.
— Eu o prendi lá encima, mestre — apressou-se em
dizer o corcunda, num tom reconciliador.
— Aquele maldito nos descobriu novamente, mas foi
uma tolice o que fez. Será destruído desta vez. Vamos nos
livrar dele para sempre.
Um urro lá fora, no entanto, o fez eriçar-se todo e arreganhar os dentes.
— É ela, mestre. É aquela mulher.
— Sim, eu sei. Vou destruí-la, antes de cuidar daquele
professor — disse o Príncipe das Trevas, caminhando para
fora da casa.
O luar banhava o pátio deserto. O vento deixara de
soprar, como que comandado por mãos sobrenaturais. A
neblina se fez mais tensa, acobertando a presença dos dois
monstros.
Drácula aguardou o ataque, mas apenas o silêncio o
agredia. Gritou para Torg.
— Vamos deixar este lugar, Torg. Leve meu ataúde
para o veículo.
O corcunda ia se apressar em cumprir a ordem recebida, mas estacou ao ver o vulto disforme que avançava ao
encontro de Drácula.
O chifre aguçado e ameaçador se agitava no ar, cortando a neblina. O corcunda olhou para o tambor de gasolina que trouxera naquela manhã.
Precisava traçar um círculo ao redor dos dois monstros. Seria a única forma de defender seu mestre, caso estivesse em desvantagem.
A qualquer momento Drácula, ameaçado, poderia se
transformar num morcego e voar para fora do círculo de
chamas. A mulher não restaria outra saída, senão parecer
devorada pelo fogo.
Tinha muito a fazer, mas ficou ali, parado, observando
a cena.
No alto da janela, Hilgenstiller já apontava sua arma
para o vulto sinistro de Drácula, quando percebera a aproximação daquela mulher estranha e macabra.
Imobilizou-se, atento ao que se seguiria. Urros lancinantes cortaram a noite, enquanto os monstros se mediam,
caminhando em círculos.
— Cavasti! — rosnou Drácula, a voz revelando a fúria
imensa que se apossara dele.
— Não entendo seu húngaro antigo — disse a voz doce e feminina de Naiara — Katou li, Drácula! Katou li —
repetiu, começando a gargalhar zombeteiramente.
O uivo do vampiro, mescla de guincho agudo e um roçar desagradável de ossos ressequidos, cortou a noite, enquanto ele se lançava sobre ela.
No último momento, porém, desviou seu corpo ao se
ver atacado pelo corno pontiagudo. A gargalhada zombeteira explodiu próxima a seus ouvidos. O inimigo era perigoso
e ágil, mas não podia haver temor nas atitudes do Príncipe
das Trevas.
Seu corpo se envolveu em luz difusa e o grande morcego agitou suas asas, adiantando as garras num voo aquilino em direção ao inimigo.
As unhas pontiagudas se cravaram no rosto de Naiara,
arrancando nacos de carne que gotejaram uma matéria pútrida e enegrecida. Ela urrou e seu chifre se projetou contra
o corpo do morcego, ferindo-o na coxa.
A fúria de Drácula foi como o abrir dos portões do inferno. Suas garras voltaram a atacar o corpo possuído, arrancando novos pedaços.
Seu objetivo parecia ser o coração. No alpendre, mudo
de espanto, Torg observava a facilidade com que seu mestre destruía aquela que ousara desafiá-lo.
Seu respeito e seu temor cresceram. Ele se apressou
então, em atender a ordem recebida, indo arrastar o ataúde
para fora da adega.
Lá fora, com metódica crueldade e rápidos ataques, o
morcego ia despedaçando o corpo de Naiara. Mesmo a força descomunal do Licorne que a habitava nada podia fazer
contra um poder maior.
Uma de suas mãos foi levada pelas garras do morcego.
Seus seios estavam em pedaços. Ela se debatia, movida por
uma fúria cega e inútil, tentando agarrar aquela sombra esvoaçante.
Drácula agora gargalhava zombeteiramente, voltando
a sua forma natural. Naiara estava caída de joelhos, ofegante, vencida, mutilada.
O morcego-humano se aproximou vitorioso. Sua mão
se estendeu, agarrando o chifre longo e pontiagudo, quebrando-o com facilidade.
Depois, agarrou o pescoço da mulher e ergueu-se diante de si. Apontou o chifre em sua mão para o coração dela e enterrou-o violentamente, transpassando-a.
Ao soltá-la, ela ficou estrebuchando grotescamente,
até se acalmar, afinal, destruída. Drácula pisoteou seu corpo, como a consolidar sua vitória.
Um tiro se ouviu e o projétil passou perto de seu ouvido. Ele se voltou. Na janela, no alto da casa, Hilgenstiller
disparava contra ele.
Afastou-se do campo de visão de seu agressor, mas estacou logo à frente, levando a mão à coxa e gemendo dolorosamente.
Um rasgo fora feito em sua pele e em suas carnes. A
dor era violenta. Ele se lembrou de haver sido atingido ali,
durante a luta, pelo chifre amaldiçoado.
Torg surgiu à porta, arrastando o ataúde. Ao ver a expressão crispada de seu mestre, correu até ele.
— Fui ferido, Torg, mas você me curará...
— Sim, mestre.
— Leve o ataúde para o veículo. Preciso cuidar daquele professor maldito.
— Ele tem uma arma, mestre.
— As balas nunca me afetaram, Torg.
— Não creio que sejam balas comuns. Ele disparou
contra a fechadura, mas não conseguiu arrebentá-la. Talvez
balas de madeira, mestre.
Drácula ergueu a cabeça. Aquela ideia era digna de
seu perseguidor. Balas de madeira representavam um perigo extremo. A distância não seria uma barreira a um ataque
mortal.
— Temos de nos livrar dele — disse.
— Há um meio — falou Torg, correndo para a casa.
Drácula o seguiu. Torg foi até a cozinha, de onde retornou rolando um pesado tambor.
— Gasolina, mestre — disse, abrindo a válvula.
O liquido se espalhou rapidamente pela madeira do
assoalho. Drácula gargalhou satisfeito. Aquela casa fria se
transformar num inferno digno de Hilgenstiller.
Como um louco, Torg foi rolando o tambor pelos aposentos inferiores, embebendo a madeira. Depois foi levar o
ataúde para o furgão, enquanto Drácula preparava uma tocha.
Lá em cima, Hilgenstiller arrancara uma das traves da
cama e a batia contra a fechadura, quebrando-a. Depois usou o crucifixo como alavanca para abri-la.
Avançou para o corredor, mas estacou no alto da escada ao sentir o cheiro do liquido inflamável fazer arder
suas narinas. Recuou, quando, num estrondo terrível, o inferno brotou a seus pés.
Poucos segundos depois, ouviu o ruído do furgão se
afastando. Ainda dessa vez, Drácula escapara.
FIM DO LIVRO OITO
DRÁCULA, O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO NOVE
DISCÍPULOS DO MAL
CAPÍTULO 1
Ao longe, recortadas contra o céu frio do final de outono, as ruínas romanas eram atravessadas pelo vento, que
arrancava uma sinistra melodia dos velhos nichos, onde se
dependuravam morcegos negros.
Ao pé da colina, na zona de acampamentos, um trailer
era o único elemento moderno a quebrar a harmonia antiga
da região. Um rapaz deixou o veículo e espreguiçou-se, encolhendo-se a seguir, reclamando do frio.
— Sammy, eu faço o fogo e você vai buscar água —
gritou ele.
Uma voz preguiçosa ronronou lá dentro, antes que um
vulto louro e gracioso chegasse à porta e enlaçasse o rapaz
pela cintura, mordendo-lhe o lóbulo da orelha.
— Por que não usamos o nosso a gás? — indagou ela,
esfregando-se nele.
— Porque nosso gás acabou. Vamos, não seja preguiçosa. Eu vou apanhar lenha e fazer um belo fogo. Você trate de ir o rio e apanhar água. Lembre-se depois de encher
nosso reservatório.
— Diabos, Bull! Você tinha de ser tão esquecido? Só
falta deixar de reabastecer o trailer agora — disse ela, indo
até o fundo do veículo.
Bull a seguiu logo depois, vestindo uma blusa. Caminhou até o fim do acampamento, olhando a cerca de tábuas
pontiagudas. Algumas delas seriam o bastante para um bom
fogo, mas ele preferiu ultrapassá-la até o bosque ressequido
além.
Suas pisadas sobre as folhas secas produziam um ruído inquietante. Uma coruja piou agourenta num galho desfolhado. Outro ruído se juntou ao dos passos do rapaz, que
parou.
Apenas o vento assobiava e arrancava notas macabras
dos galhos secos, que oscilavam fantasmagoricamente. Por
um instante ele julgou que Sammy o houvesse seguido.
Começou a reunir galhos secos e folhas para a fogueira. Um pressentimento estranho o agitou. Era como se alguém o observasse, oculto por entre os troncos esqueléticos.
Com certa inquietação, continuou seu trabalho, enquanto pairando acima das ruínas romanas, o disco pratea-
do da lua jogava uma claridade agradável por sobre o bosque.
Não longe dele, oculto como uma fera enraivecia à espera da vítima, um ser hediondo e retorcido lastimava a sua
natureza e se deixava contagiar pela maldade e pela inveja.
Torg vira Sammy e a desejara ardentemente, como desejaria toda e qualquer bela mulher que cruzasse seu caminho. A face horrenda, o corcunda deformado, a selvagem e
assustadora aparência, tudo isso barrava as suas pretensões.
Mulher alguma o olhava com desejo ou atração. Mulher alguma o olharia como olharia a face e o físico elegante e másculo daquele rapaz.
Nenhuma delas se atreveria a fazer amor com um aleijado e isso o fazia odiá-las, apesar de desejá-las ardentemente.
Da mesma forma, olhando aquele belo rapaz, Torg reconhecia que a inveja que ele despertava tornava tudo mais
fácil. Drácula ordenara que o rapaz fosse destruído. A presa
final, a bela e tentadora garota, satisfaria sua sede infindável.
Torg o invejava também, mas apenas servindo-o poderia obter o que mais desejava: um novo corpo.
Bull terminara de recolher lenha e folhas. Ergueu-se.
Torg deslizou para mais perto, sem se importar com o barulho provocado por seus passos desiguais.
— Sammy? — indagou Bull, um leve acento de medo
no tom de voz.
Torg nada respondeu, sentindo uma enorme satisfação
em saber que era temido. Se o rapaz pudesse imaginar o
destino que o corcunda lhe reservara, teria se afastado dali
o mais depressa possível.
— Sammy! — insistiu o jovem.
Torg arrastou-se para mais perto ainda. Suas mãos se
crispavam, ansiosas para golpearem impiedosamente aquele rosto belo até transformá-lo numa pasta sanguinolenta e
disforme.
— Sammy! — voltou a dizer Bull, dessa vez pondo-se
na defensiva.
As achas de lenha escorregaram de seus braços. Em
sua mão ficou apenas a mais grossa e pesada. O som dos
passos desiguais que se arrastavam em sua direção puseram-no em alerta.
Fosse o que fosse, iria encontrá-lo preparado. Seus olhos se aguçavam, tentando ver nos reflexos prateados que
se esparramavam pelo bosque um vulto humano.
Ao invés disso, um ser disforme surgiu a sua frente,
mãos erguidas e crispadas, olhar faiscante e ameaçador.
— Quem é você? — indagou, antes que Torg se lançasse sobre ele.
Bull, no entanto, reagiu instintivamente, vibrando a
acha de lenha com todas as suas forças. Ao ruído surdo e
desagradável se seguiu uma imprecação, enquanto o corcunda rolava sobre as folhas secas.
Ergueu-se imediatamente. Bull recuou. Aquela pancada teria matado um ser humano normal. Aquele vulto grotesco continuou avançando, agora rosnando como uma fera
raivosa.
— Afaste-se de mim! — ordenou o rapaz, enquanto
Torg ia em sua direção. — Afaste-se, eu disse — repetiu,
voltando a golpear o corpo do corcunda.
— Maldito! — grunhiu Torg, segurando-lhe o pulso e
torcendo-o.
A Lua cheia iluminou o rosto crispado pela dor. Torg
forçou mais e mais, até que um ruído seco se ouviu e um
grito de dor desesperado cortou o silêncio do bosque, assustando as corujas e fazendo esvoaçar um bando de morcegos.
— Você... Você quebrou meu braço — lamentou Bull,
rastejando sobre as folhas secas, tentando fugir à agressão
animalesca.
Torg apanhou um galho e vibrou-o contra as costas do
rapaz, fazendo-o estatelar-se com um gemido. Golpeou-o
novamente, fazendo seus olhos se esgazearem e uma golfada de sangue ser expelida de sua boca entreaberta.
Com um riso sádico nos lábios disformes, Torg se aproximou e chutou-o, fazendo-o se voltar para cima. Por
instantes o corcunda olhou aquele rosto mudo de espanto e
dor, depois ergueu um dos pés e pisou-o violentamente.
— Deus! — gemeu Bull, tentando se erguer, mas era
como se seu corpo não mais obedecesse ao seu comando.
Ele ficou ali, contorcendo-se no chão, enquanto Torg
fitava com indizível satisfação o sangue que jorrava da boca e do nariz do rapaz.
Com crueldade, Torg pisou sobre a garganta do outro,
depois chutou repetidas vezes a cabeça de Bull, arrancando
gemidos cada vez mais fracos.
Não satisfeito, apanhou uma enorme pedra e ergueuse. Por instantes pareceu ver, nos olhos ensanguentados do
rapaz, uma súplica final.
Com todas as suas forças ele arremessou a rocha, esmigalhando aquela cabeça, jogando miolos, sobre as folhas
secas. Rosnando animalescamente debruçou-se sobre o cadáver, rasgando a blusa e a camisa, desnudando-lhe o peito.
Como garras suas mãos se crisparam e seus dedos se
enterraram na pele, arrancando pedaços de carnes e ossos,
até finalmente, trazerem o coração ainda palpitante.
Olhou-o contra a lua, depois, levou-o à boca e mascou-o vorazmente, enquanto o corpo a seus pés estrebuchava macabramente.
Um grito feminino cortou a noite, mas não incomodou
o corcunda. Ele sabia o que estava acontecendo.
***
A noite caíra mansamente. Enquanto havia um resto
de luz, delineando contra o céu a figura tortuosa do monte,
um ar de falsa paz podia ser sentido pelas encostas silenciosas.
Depois, quando gradativamente a escuridão jogava
seu manto sobre aquele lugar desolado, uma sensação de
terrível opressão e maldade faria gelar a medula de algum
mortal que se aventurasse por aqueles ermos.
O monte era maldito. Os segredos de suas cavernas e
escuras e misteriosas, onde a treva era total, ocultavam-se
nas cinzas que a terra absorvera.
Cinzas muito antigas de filhos de Satã que arderam
nas fogueiras da purificação e que jamais aplacaram a sede
de vingança de suas almas torturadas.
Seus lamentos de morte, suas maldições, ainda pareciam ecoar na voz lúgubre do vento frio. O crepitar das chamas que devoraram seus corpos podia ser ouvido, quando o
vento silenciava.
Um odor constante de carnes putrefatas e queimadas,
mesclado ao cheiro forte e nauseante do enxofre, sobrepujava o da terra lavada pelas últimas chuvas.
Animais o evitavam. Roma toda aprendera a temê-lo.
Era algo instintivo, enraizado, transmitido de geração em
geração desde há muitos séculos.
Raros pastores, que ainda teimavam em levar suas ovelhas segundo a tradição, evitavam aquele local maldito.
Ali a erva não crescia e as árvores viviam desfolhadas e secas, numa vigília macabra.
Turistas eram alertados para os perigos ocultos naquelas encostas escarpadas. Um perigo que iam além da imaginação e da razão.
Naquela noite, quando na Cidade Eterna as pessoas se
preparavam para o início do fim de semana e as prostitutas
vestiam suas melhores roupas e se maquiavam cuidadosamente, o monte espreitava, como se aguardando.
Era sexta-feira, dia maldito, quando as forças do mal
atingem sua plenitude e se voltam contra a humanidade,
semeando pavor.
Era a noite do demônio, que se regozijava com a presença de seu filho predileto nas proximidades de seus domínios.
O vento parecia gritar um alerta que voava pelo céu e
ia se perder na agitação da grande cidade.
O medo, porém, se refletia na boca pintada da prostituta, nos trejeitos do travesti, no ar sério e sombrio dos exploradores de mulheres, na aparência arredia e assustadiça
dos ladrões e malfeitores que se ocultavam nos becos mais
nojentos.
O vento que soprava contra o monte contagiava a cidade com a peste de sua maldição. Suas entranhas frias e si-
lenciosas guardavam o segredo como um feto mal gerado,
apenas esperando o momento de ver a luz através da fétida
cloaca do sobrenatural.
Por isso, quando em algum canto ermo, um grito de
pavor se elevou, o monte todo parecia se eriçar, gargalhando uma satisfação que mortal algum entenderia.
***
A garota descabelada seminua, deixada para trás trapos de roupas, escorregou pela ravina escura, esfolando-se
nas pedras, jogando no ar o cheiro adocicado do sangue
morno que cobria sua pele macia.
Sabia que precisava correr, fugir dali, escapar àquela
perseguição macabra, afastar-se daquele terror instintivo
que gelava-lhe a espinha e confundia seus pensamentos.
Ela soluçava, os pés descalços cortando-se nas pedras,
deixando uma trilha de sangue para a fera que a perseguia.
A sombra sinistra pairava, avançando mais e mais, gozando
o pavor daquele corpo, assanhando-se nos soluços assustados, espicaçado-se nas súplicas perdidas no vento.
Sammy tropeçou mais uma vez e caiu. Girou rapidamente o corpo, tentando se levantar. O vento pareceu soprar mais frio e arrepios angustiantes percorreram sua pele,
ao perceber aquele vulto parado a seus pés.
— Não! O que quer de mim? — indagou, a voz embargada pelo pavor.
A mão descarnada do vampiro estendeu-se. Sentia-se
fraco e ferido. Precisava de alimento, de vida, de novas forças. Já não havia encanto naquela perseguição. Sua sede era
urgente, apressada, esganada.
Segurou o pescoço da garota e a ergueu facilmente diante de si. Sammy fitou com horror aqueles olhos injetados
e faiscantes, como se o fogo do inferno ardesse neles.
Aquelas feições crispadas e cruéis, aquelas mãos assassinas aquele cheiro de cadáver em decomposição, tudo a
levou ao paroxismo do terror.
Ela se debateu, tentando usar seus braços, suas mãos,
suas unhas, seus pés em carne viva, mas suas pancadas contra aquele ser nada produziam, senão uma força maior que
lhe apertava a garganta, sufocando-a.
— Deus! — murmurou, sentindo-se desfalecer.
Uma gargalhada sarcástica e cavernosa seguiu-se ao
seu lamento e, como se ela fosse um boneco, Drácula puxou-a para si com violência, colando-a ao corpo esquelético e enfraquecido.
Fora uma longa viagem. Drácula estava ferido e precisava de sangue fresco. Pena que não fosse uma virgem. Seu
prazer e sua vitalidade seriam dobrados.
Ainda assim, era uma bela garota. Seios rijos, cintura
torneada, coxas firmes e elásticas, pescoço delicado e apetitoso...
Seu olhar injetado e chamejante se concentrou naquela
veia latejante, por onde o sangue corria, transbordando vida
e juventude.
Um rosnado escapou de seus lábios finos e frios. Sua
boca gosmenta esfregou-se à pele macia. Sua língua áspera
como a de um animal lambeu um resto de perfume. Suas
presas pontiagudas e sinistras rebrilharam à luz do luar.
Tremores espasmódicos abalaram seu corpo. O cheiro
do sangue era insuportável. Seus instintos vibravam intensamente, sua fome aumentou, seu desejo pediu vazão.
Apertou-a contra si, sentindo o estalar das frágeis costelas e colou sua boca no pescoço delicado, rasgando-o
com suas presas e sorvendo esganadamente o sangue que
jorrava.
CAPÍTULO 2
Ambrósio Scallone recuou um passo, depois outro, caindo finalmente de encontro à sacaria de macarrão, após
tropeçar numa botija de vinho.
Limpou o sangue que lhe lambuzava o rosto e ergueu
os olhos assustados para a expressão de seu patrão.
O cheiro do vinho nauseou-o. Vitório Caprilho fitou o
prejuízo, depois arremessou com todas as forças o pé, atingindo o peito do rapaz e fazendo-o cair para trás. Avançou,
o enorme pé quase pisando a garganta de Ambrósio, que se
encolheu assustado.
Vitório sorriu e, no entanto, seu desejo era pisotear o
corpo do empregado, dando àquele pobre imbecil uma lição
de que jamais se esquecesse.
Inclinou-se, porém, e suas mãos grossas e enormes
quase rasgaram o bolso da camisa do rapaz ao retirar dali
algumas notas. Olhou-as com um sorriso sádico, depois as
agitou, batendo-as contra o rosto ensanguentado do rapaz.
— É meu... Juro como é meu! — exclamou o rapaz.
— Quê! Um pobretão como você? Não tem onde cair
morto! Vive da minha caridade! O que faria sem o maldito
emprego que lhe dou? O que? Eu sei de onde isso veio, seu
pedaço de asno ingrato! Estas notas vieram dali. Dali, ouviu bem? Dali! — repetiu, apontando para a antiga máquina registradora.
Um vulto gracioso avançou pelo mercado escuro e estacou ao observar com horror aquela cena. Seu rosto meigo
se crispou numa expressão de surpresa e indignação.
— Papai o que pensa que...
— Cale a boca, Sofia! O que quer aqui? Não a chamei.
Veio me espionar?
A garota olhou, apiedada, o rosto assustado e envergonhado de Ambrósio, que tentava limpar o sangue que
teimava em escorrer de seu nariz. A patada fora violenta,
cruel.
Sofia ergueu, então, os olhos para as faces coradas e
gordas de seu pai, observando por instantes o brilho de
maldade e embriagues que o tornava tão infame e desprezível.
O rosto do homem crispou-se ameaçadoramente e Sofia girou nos calcanhares, rumando para a saída. Não era difícil reconhecer quando seu pai estava bêbado. Temeu por
Ambrósio, mas nada podia fazer senão lamentar.
Saiu para a rua e parou junto ao meio-fio, erguendo o
rosto para o céu. Quando suas preces seriam ouvidas?
Quando Deus a atenderia?
Lá dentro ouviu-se um som desagradável, seguido de
um gemido de dor. Depois outro e, em seguida. Ambrósio
saiu pela porta, desequilibrando, indo esbarrar em Sofia e
estatelar-se na sarjeta.
Ergueu-se rapidamente, limpando o rosto do sangue e
da água suja que escorria constantemente pelas pedras. Seu
olhar humilhado pedia compaixão.
No rosto da garota havia pena, desespero, ódio e amor.
A sombra gigantesca de Vitório Caprilho se projetou para a
calçada, fazendo-a se voltar num sobressalto.
— Para casa! — ordenou raivosamente o comerciante.
Sofia apressou-se em obedecer. Atrás dela, Ambrósio
se ergueu, cabisbaixo e humilhado ao extremo. As pessoas
que passavam pareciam rir dele, mais por medo de Vitório
do que por julgar hilariante aquele rosto sujo.
Todos conheciam Vitório, sabiam de seu gênio violento. Ninguém ousaria intervir. Ambrósio era um pobre coitado.
Por instantes ele fitou o rosto do patrão, ousando encará-lo. Qualquer coisa ameaçava explodir em seu peito.
— E esteja aqui amanhã bem cedo, seu imprestável!
Vai me pagar por tentar roubar meu dinheiro. E dê-se por
satisfeito por não mandar prende-lo, ouviu bem? Você apodreceria numa jaula, seu vagabundo, amaldiçoado filho de
uma...
Ambrósio afastou-se o mais depressa que pode. O
sangue lhe fervia nas veias e o ódio latejava em sua cabeça,
sugerindo pensamentos tétricos e violentos.
Era explorado, maltratado e humilhado diariamente.
Não podia mudar de emprego. Jamais acharia outro. Depois
ali, apesar de tudo, havia uma compensação nas visitas de
Sofia.
Naquela noite, porém nem esse pensamento parecia
acalmá-lo. Era como se a última gota houvesse transbordado e o desejo de mudar aquela situação drasticamente imperasse sobre sua vontade.
Lutou contra essa tentação, como sempre tinha lutado.
Queria resistir, mas dia após dia, lentamente, sua resistência vinha sendo vencida.
P poder latente em seu corpo se resumia naquela marca em seu pulso. Era o símbolo do mal. Ambrósio, porém,
sempre se recusara a entregar-se ao mal. Não podia pensar
nisso, não quando tinha o amor da doce e terna Sofia.
Cabisbaixo e pensativo, nem percebeu o vulto de mulher que deixou o beco e se postou a seu lado, caminhando
junto.
— Eu o odeio! — murmurou Sofia, entredentes, com
decisão e rancor.
Ambrósio parou, aquele conflito íntimo empurrando-o
para a pior das soluções.
— É seu pai...
— Um monstro!
— Você deve amá-lo...
— Eu o odeio! Gostaria de destruí-lo, de esmagá-lo
como se esmaga um verme desprezível — desabafou ela e
lágrimas correram por suas faces angelicais.
Ambrósio poderia resistir a qualquer coisa, mas não
àquelas lágrimas.
Segurou pelos ombros a mulher que amava e olhou-a
no fundo dos olhos.
— E o que quer? — indagou ele.
— Sim, é o que quero. De que outra forma poderíamos
um dia ficar juntos? Oh, Ambrósio! Eu adoro você, mas ele
nunca vai aprovar nosso namoro. Não compreende? Jamais
ele permitira — soluçou ela, lançando-se nos braços dele.
O rapaz a estreitou com força, rodeando seu corpo
com carinho e apreensão.
A manga do casaco deslizou. À altura do pulso havia
um sinal negro. Ele olhou aquela marca maldita e estremeceu.
***
A velha mulher se ergueu num sobressalto, as narinas
dilatadas, os olhos opacos adquirindo um brilho intenso de
ódio, como o da besta que corre em socorro da cria ameaçada.
Deixou o casebre atabalhoadamente e seus olhos se fixaram no monte ao longe. Torceu nervosamente as mãos
descarnadas, pressionando as unhas pontiagudas contra a
pele, como se desejasse ferir-se.
Uma sensação angustiante lhe oprimiu o peito e ela
compartilhou um ódio que partia do filho e vinha vibrar em
seu próprio corpo.
Recuou, então, apoiando o corpo alquebrado contra a
parede. Suspirou resignadamente.
Depois, como se uma convulsão interior desse força a
seus atos, repuxou com violência a manga da blusa ensebada e descobriu o sinal maligno no pulso.
Muita coisa acontecera, muito tempo fora perdido,
desperdiçado para nada. O sinal perdera a força. Não era
mais do que uma pequena mancha arroxeada agora, misturada às outras que a velhice jogara em sua pele, como um
estigma.
Um pressentimento a fez ergueu a cabeça e observar
atentamente o vulto que caminhava ao seu encontro.
Ambrósio estendeu os braços e tomou o corpo esquelético da velha, procurando não deixar que ela percebesse a
máscara de sofrimento e sangue que ainda marcava seu rosto.
— Mãe, não devia estar aqui fora — disse carinhosamente, enquanto a levava para o interior da casa miserável.
Com uma força surpreendente, no entanto ela se desvencilhou dele e encarou-o. Seus olhos opacos ganharam
um brilho de náusea e sofrimento ao fitar o rosto sujo do filho.
Depois, gradativamente, seu olhar se alterou brilhante
e intenso, perturbando. Seus lábios trêmulos fecharam-se
com firmeza numa expressão de altivez e desafio.
— Outra vez, não? — indagou ela e havia repreensão
em seu tom de voz.
Ambrósio abaixou a cabeça, incomodado pela força
daquele olhar.
— O que foi dessa vez? — quis saber sua mãe.
— Aquele dinheiro...Seu remédio... Ele jamais acreditaria que...
— O maldito tomou-lhe o meu dinheiro?
— Sim, mas...
— Aquele filho bastardo de uma cadela vagabunda!
— grunhiu a velha, como o mais puro ódio. — Não é pelo
dinheiro, filho, mas pela prepotência daquele monstro. Posso me curar com minhas ervas, com meu elixir... Mas...
Ambrósio, filho, meu! — soluçou ela e sua voz soou gutural e amedrontada, enquanto sua mão descarnada se estendia e agarrava o pulso direito do rapaz, descobrindo-o e apontando o sinal negro.
— Veja isso, Ambrósio. Você não precisa se humilhar
e se sacrificar dessa forma. Seus desejos serão lei. Isso lhe
dará tudo. Basta que aceite, filho. Basta que aceite — sussurrou a velha, então, a sua voz ganhou um novo acento,
suave e convincente como o sopro do vento, nas noites
calmas, atravessando os espinheiros do monte Equillin.
Ele a encarou, tentando fazer prevalecer dentro de si o
amor de Sofia, acima do ódio que sentia pelo pai dela. Abaixou a cabeça e passou pela mãe, fugindo àquele convite
quase irresistível.
Ela o fitou com seus olhos perturbadores e, por instantes pareceu que ele fraquejava finalmente. Um riso esboçou-se em seus lábios descorados. Dentes apodrecidos se
destacaram em sua boca escancarada.
Entrou. Caminhou até uma velha arca a um canto da
pequena sala e abriu-a lentamente. Dali retirou uma espécie
de baú antigo, construído de metal enegrecido pelo tempo e
ostentando grossas tachas de ferro nas emendas.
Olhando pacientemente o filho, a velha esperou que o
filho se voltasse. Vinha repetindo aquele ritual dia após dia.
Um dia ele se voltaria. Um dia ele haveria de ceder às evidencias.
O dia, finalmente parecia haver chegado. Para sua satisfação.
— Venha filho! Deixe-me mostrar-lhe — sussurrou
ela.
Ambrósio venceu aquela agonia interior que o martirizava e se aproximou. Viu a mãe retirar um grosso e antigo
volume do interior do baú.
— Está é a bíblia de Satã — disse ela e seus olhos se
injetaram malignamente. — Pergaminhos de pele humana
— acrescentou, alisando lubricamente, como num ritual satânico, a capa enrugada.
Ambrósio estremeceu de um pavor instintivo, mas se
viu fascinado pelo curioso volume. A velha retirou, em seguida outro objeto do baú.
Era um antigo punhal, longo e recurvo como os chifres de um bode velho. Depositou-o sobre o livro. Encarou
o filho.
— Sabasius! — disse, então.
— Sabasius? — repetiu Ambrósio, sem entender.
— Você é um sabasius. Talvez o último deles. Essa
marca em seu braço é a marca do diabo. Você é um predestinado. Demorou em acordar. Seu estigma é sua salvação.
A vida eterna e tudo aquilo que sempre desejou poderão se
tornar real. Basta que aceite, que deseje, que peça.
— A marca do diabo! — murmurou ele, aterrorizado,
olhando o sinal em seu braço.
A velha empunhou o punhal e tomou o pulso do filho.
Depositou a lamina afiada sobre o sinal negro e fez correr o
fio. Ambrósio se retraiu esperando ver suas carnes se abrirem e o sangue jorrar.
Incompreensivelmente, porém, não sentiu dor e o local
continuou intacto. Ele apanhou a arma e examinou-lhe o fio. Repetiu o gesto da mãe, maravilhado.
— Mas...
— Acredita em mim, afinal? Satã é seu pai e seu destino é governar os mortais desprezíveis. Homens como Vitório Caprilho se arrastarão a seus pés. Basta que vá ao encontro daquele que o espera, filho.
— Quem? — indagou ele, com voz trêmula ainda.
— Satã, seu pai!
— Onde?
Um frêmito incontido e assustador fazia vibrar o corpo
e marejar seus olhos. Arrepios intensos e estranhos enrijeciam sua pele. Seus dedos se agitaram independentes de
sua vontade, comandados por um poder acima de sua compreensão.
— Lá — apontou a velha, na direção do monte Equillin. — Suas legiões o esperam, filho. O rei das Trevas vai
guiá-lo. O mal será sua redenção.
Ambrósio levantou os olhos para o monte distante e
pareceu sentir a força de um apelo irreversível.
— Deve ser feito hoje — disse a mãe, segurando-o pelos ombros e fixando nele seus olhos injetados e febris.
Ambrósio percebeu, então, que se metera num caminho sem volta.
***
A lua enorme, amarelada e lenta, firmava-se no céu,
jogando sua claridade sobre a terra. Torg rosnou, mascando
esganadamente o último pedaço sangrento.
Uma baba gosmenta escorria de seus lábios, pendendo
de seu queixo, acumulando-se em seu peito. Ao lado, Drácula o fitava com desprezo.
A seus pés, o cadáver nu e mutilado de uma bela jovem que lhe dera seu sangue. Não fora o bastante, porém.
O apetite maldito não fora saciado. O cheiro provocante de
sangue fresco ainda espicaçava os instintos do vampiro.
— Precisamos ir, Torg. Eu ainda tenho sede! — disse.
— Sim, mestre. Claro mestre — balbuciou o corcunda,
engolindo apressadamente, depois esfregando as mãos nodosas pelos lábios e pelo queixo.
— Não tenho tido a paz que procuro. Estou cansado
dessa fuga. Ninguém nos persegue agora, Torg. Aquele
maldito professor teve o fim que merecia. Estamos livres. O
filho de Satã deve encontrar as honras e o repouso que merece. Que minhas legiões trabalhem por mim agora —
murmurou o monstro e sua voz cavernosa intimidava o
próprio vento.
— O que ordena, mestre.
— Quero mais sangue nesta noite maravilhosa, meu
fiel Torg. Leve-me onde há sangue fresco. Depois conduzame ao monte Equillin. Em suas cavernas estarei próximo de
Satã e poderei organizar minhas legiões.
— Sim, mestre — concordou Torg, ciente de que Drácula ainda estava fraco, após a viagem. Precisava alimentar-se, devolver-lhe as forças totais, saciá-lo completamente. Assim o veria manso e acessível para o pedido secreto
que teria de repetir.
Estava cansado daquela carcaça podre e deformada.
Queria um novo corpo, belo e atraente, capaz de encontrar
e seduzir as mulheres.
Seguiu-o servilmente até o furgão. Antes de entrar,
Drácula ergueu o rosto para a lua cheia e respirou fundo,
um riso macabro retorcendo seus lábios finos e ainda úmidos de sangue fresco.
Entrou, finalmente estendendo-se no negro ataúde que
estava preso no centro do furgão. Torg olhou-o respeitosamente, depois fechou a porta.
CAPÍTULO 3
O furgão negro diminuiu a marcha. Torg acompanhou
com o olhar a cena à beira da estrada. Duas garotas se empenhavam em trocar o pneu de um Fiat antigo.
Um riso sinistro e asqueroso desenhou-se nos lábios
do corcunda e ele manobrou seu veículo para o acostamento, parando-o. Por instantes pensou naquelas duas mulheres, sozinhas, disponíveis. Haveria muito sangue para Drácula. Talvez até demais. Quem sabe uma das garotas poderia.
Saltou da boleia e foi abrir a cabine do furgão. O ataúde negro, com metais reluzentes, faiscou ao clarão da lua
generosa. A pesada tampa ergueu-se macabramente. A mão
descarnada do vampiro se apoiou à beira e seu tronco esquelético se levantou.
— Onde estamos? — indagou, sentando em seu ataúde.
— Na estrada de Roma, mestre.
— E por que paremos?
Torg recuou e apontou para trás. Drácula se levantou e
olhou naquela direção. Um riso sádico e satisfeito desenhou-se em seus lábios finos. Havia um cheiro de fumaça
no ar e o ruído dos carros, em sua corrida incessante, era
perturbador.
Drácula deixou o furgão e caminhou na direção do outro carro, olhando fixamente os vultos graciosos e tentadores. Seus olhos injetaram-se e a sede amaldiçoada assanhou-lhe o corpo.
Seus passos não foram ouvidos. O vulto grotesco se
aproximou, gozando um aroma que se sobrepunha ao cheiro da fumaça dos carros na estrada e brincava selvagemente
com seus instintos.
A capa esvoaçava. Espasmos estremeceram seu corpo.
— Diabos, se... — ia dizendo uma das jovens, mas interrompeu-se ao perceber a aproximação de alguém.
— Posso ajudá-las em algo? — indagou e sua voz metálica ganhou um tom amigável e cavalheiresco. — Meu
nome é Vlad Alucard.
— Bem, eu não sei se... — ia dizendo a loura graciosa,
de cabelos curtos e corpo roliço.
— Claro que sim! — interrompeu a amiga, uma apetitosa morena de seios fartos delineados contra a blusa justa.
— Se tiver um macaco hidráulico melhor que o nosso...
— Posso fazer melhor que isso. Por que não deixam
que meu motorista cuide disso tudo? — indagou e sua voz
se tornou hipnótica, persuasiva.
As garotas tentaram sorrir, cativadas pela classe e pela
generosidade do cavalheiro com que falavam. Apesar de
não lhe verem o rosto, adivinhavam-no belo e atraente.
Estavam de férias, dispostas a se divertirem acima de
tudo. Não havia roteiros ou previsões. Era simplesmente
deixar que acontecesse.
— Se me acompanharem até meu veículo, darei ao
meu motorista. Tenho um pouco de conhaque. Poderão se
aquecer dessa fria noite — sugeriu e não havia como recusar.
— Temos o suficiente para um lanche agradável —
disse a morena. — Aceitaria?
— Claro. Estou faminto! — disse ele, sentindo-se brutalmente excitado pela docilidade com que elas se entregavam a ele, subjugadas pelo seu poder.
— Acho-o um pouco esquisito — comentou a loura,
em voz baixa, enquanto apanhava qualquer coisa no carro.
— Parece-me um ricaço — cortou-a morena mais extrovertida e disposta a uma aventura sem maiores consequências.
No momento seguinte, caminhavam na companhia de
Drácula. Quando se aproximavam do furgão, Torg se adiantou.
— Torg, cuide do carro das senhoritas — ordenou o
morcego-humano.
A loura pareceu, então, demonstrar certa preocupação.
Talvez a figura de Torg a houvesse impressionado, talvez
algo no cavalheiro que as acompanhava sugerisse um perigo mortal.
Pararam diante da porta. O luar batia sobre os metais
do ataúde, dando-lhe um brilho fantasmagórico.
— Mas... É um ataúde! — exclamou a loura recuando
alguns passos.
A morena ficou estática, sem compreender o que se
passava. Drácula alcançou a outra, segurou-a pelo pescoço
e impulsionou-a para dentro do furgão. A loura foi jogada
contra a parede oposta, estatelando-se com um gemido.
— Quem é você? — indagou a morena, estática, incapaz de desviar seus olhos daquele rosto fatídico, banhado
pelo luar. A jovem subiu para o furgão. Drácula entrou em
seguida. A porta se fechou pesadamente.
***
Ambrósio estava fascinado pela facilidade e decisão
com que sua mãe o guiava por entre os caminhos tortuosos
do monte Equillin.
Jamais estivera ali antes. Conhecia as lendas a respeito
daquele local amaldiçoado, mas tudo estava acontecendo
rápido demais para que pudesse temê-las.
Via apenas as pedras cobertas pelo luar, pontiagudas e
agressivas, como se houvesse ali uma intenção perversa em
afastar os visitantes. Ambrósio apertava firme, sob um dos
braços, a bíblia estranha e assustadora. Preso a sua cintura,
em contato com o corpo, ia o punhal misterioso.
O metal parecia não se aquecer, mantendo-se frio, apesar do calor que dominou o rapaz. Seus pensamentos se
voltaram para Sofia e os acontecimentos daquela noite.
Era um amor impossível, nascido do desespero, da
humilhação, da vergonha. Ele a queria muito, mas a figura
autoritária e repugnante de Vitório pairava entre os dois.
Havia sido um longo tempo de espera. Por mais assustadora que lhe parecesse aquela decisão, estava certo de
que jamais voltaria atrás.
Se havia uma chance, por menor que fosse, de ter Sofia, então valeria a pena.
— Estamos próximos! — disse a velha e não havia
cansaço em sua voz, mas apenas uma excitação estranha,
febril, maligna.
Aproximou-se de uma enorme rocha, de formato irregular como uma espécie de pentagrama natural. Espinheiros se juntavam diante dela. A velha abriu caminho por entre eles, avançando para uma estrada escura e assustadora.
— Venha! — ordenou ao filho.
Ambrósio hesitou por instantes. Seu coração bateu
mais forte. Qualquer coisa diabólica parecia habitar aquela
caverna. Era lago que o assustava e fascinava ao mesmo
tempo, embora não conseguisse explicar essa sensação.
Havia apenas uma sugestão forte, um convite irrecusável no cheiro nauseabundo que chegava a suas narinas.
Era como se a própria Morte estivesse próxima, exalando
seu perfume macabro.
Avançou, então, resoluto, deixando-se abraçar pela
escuridão fria daquelas pedras.
— Deixe-me acender a vela — pediu a velha, soltando-lhe a mão.
Sua voz ecoou lugubremente por corredores sombrios
e profundos. A chama de um fósforo espantou um bando de
morcegos, que esvoaçou assustado. Uma claridade frágil
firmou-se no pavio de cera, iluminando gradativamente as
paredes, onde ratazanas enormes se escondiam e aranhas
peludas descansavam em suas teias.
— Onde estamos? — indagou Ambrósio.
— Siga-me! — ordenou a mãe, avançando.
Estavam numa estreita sala de pedra agora, de onde
saíram diversos túneis. A mulher ergueu a vela. No alto da
pedra, acima de uma das passagens, havia uma inscrição
rústica, quase coberta pelo limo.
— Dê-me o punhal. Meus olhos já não são os mesmos
— pediu.
Ambrósio passou-lhe a arma. Ela tomou-o e estendeu
o braço, raspando a pedra.
— Abbadon! — murmurou ela e sua voz com um fervor místico e respeitoso ecoou pelos corredores.
Qualquer coisa se agitou no interior do monte, como
se um monstro enorme despertasse de um sono demorado.
— O que quer dizer isso? — quis saber o rapaz.
— A maldade! — respondeu ela, seguindo em frente.
Ambrósio procurou segui-la o mais perto possível. Ela
conhecia os segredos daqueles corredores que avançavam
para dentro do monte.
Túneis sucessivos surgiam à frente deles, num intrigado labirinto que não confundia a mulher, que se guiava pelas inscrições que se repetiam sobre os túneis por onde penetravam.
Aquela palavra era a chave que abria o segredo das
profundezas da terra. Ambrósio a seguia sempre, intrigado
e curioso, contendo aquele pavor que fazia gelar sua medula, como se as garras de um ser repulsivo o envolvesse.
Gradativamente aquele cheiro repugnante foi se acentuando, mesclado ao sutil e nauseante aroma do enxofre. O
frio da caverna enregelava seus ossos, mas, acima de tudo,
podia sentir próxima, muito próxima, uma presença sobrenatural e aterradora.
***
— Quem é você? — voltou a indagar a loura, erguendo-se aturdida, ouvindo aquela respiração animalesca.
Um hálito bafejou malignamente sobre seu rosto, arrepiando-a. Uma gargalhada sinistra explodiu, enquanto as
mãos frias do vampiro pousavam sobre os ombros mornos
da garota que estremeceu.
Uma força maior que sua vontade se impunha. Aquela
mão como garra massageando suas carnes, comprimindo
seus seios, machucando-a, terminando por buscar sua intimidade com selvageria.
O tecido de suas roupas cedia ruidosamente à passagem daquela mão fria e possessiva. O Príncipe das Trevas
ofegou, sentindo-se poderoso e perverso, dono da humanidade.
O sangue que corria nas veias daquelas duas em breve
o alimentaria, restaurando suas forças, saciando seu apetite
macabro.
Adiar aquele momento provocava uma excitação brutal em seus sentidos. A sensação de poder despertou um furor cego e maldoso que aguçou sua lascívia desumana.
Ele desejou manifestar seu poder, espancando, brutalizando, atirando-as de um lado para outro como joguetes em
suas mãos.
Gargalhou sadicamente, enquanto suas mãos se fechavam ao redor da garganta da loura, erguendo-a lentamente,
deliciando-se no debater daquele corpo e nos ruídos grotescos que escapavam da garganta comprimida.
Jogou-a para o alto e gargalhou mais ainda ao ouvir o
gemido que se seguiu ao baque pesado do corpo contra o
metal.
— Quem é você? — perguntou a morena, tateando a
escuridão à procura da porta.
Drácula avançou para ela, estendendo a mão e agarrando-a pela gola da blusa, dilacerando o tecido e arranhando-lhe as costas.
O cheiro adocicado e tentador de sangue chegou a suas narinas, que se dilataram animalescamente. Seus olhos
brilharam na escuridão. Ele tropeçou no corpo da loura, que
tentava se erguer.
Apanhou-a pelos ombros e a pôs em pé. Havia medo e
loucura naquele corpo. O pavor fazia circular mais rápido o
sangue em suas veias. Quando sua garganta fosse dilacerada, o precioso líquido jorraria para os lábios frios e sequiosos do vampiro, inundando-o de prazer e vigor.
A morena soluçava, jogada a um canto do furgão.
Drácula envolveu a loura, apertando-a contra o peito, sentindo-lhe o calor e o tremor desesperado.
Sentiu-se mais apetitosa daquela forma. Seu hálito fétido varreu o rosto crispado pelo medo. Suas presas rebrilharam na escuridão, roçando a pele macia e levemente perfumada.
A garota se debateu. Suas mãos esbofetearam o rosto
frio do monstro, que gargalhou.
— Idiota! — rugiu batendo-lhe a cabeça, contra a parede metálica.
O cheiro de sangue se tornou mais forte, fazendo estremecer o corpo monstruoso. Um rosnado escapou de sua
boca escancarada.
Ele trouxe a garota para junto de si. Seus lábios degenerados deslizaram pelo rosto assustado, espalhando beijos
obscenos.
Drácula grunhiu, triunfante, quando sua boca deslizou
para o pescoço delicado e seus lábios sentiram o latejar
compassado da veia jugular.
Um frêmito fez crispar seu rosto. Seus olhos injetaram-se totalmente e faiscaram como os de um felino contra
a luz. As presas pontiagudas rasgaram as carnes mornas e o
sangue esguichou para sua boca.
Com sofreguidão, rosnando e apertando convulsivamente o corpo da jovem, como se desejasse espremê-lo de
seu vital líquido, Drácula sorveu cada gota.
Gradativamente a vida foi deixando aquele corpo, até
que, finalmente ofegando e guinchando, Drácula a soltasse
e pisoteasse com desprezo.
Voltou-se para a outra jovem, acuada a um canto, soluçando convulsivamente. Segurou-a em seus braços, depois a apertou contra si.
Num rosnado selvagem, beijou o rosto pálido com sua
boca lambuzada de sangue. A garota estremeceu, no paroxismo do terror, à mercê da sanha voluptuosa e assassina
daquele ser monstruoso.
As presas fatídicas voltaram a rasgar carnes macias e
Drácula sugou avidamente. A garota debateu-se. Um grito
desumano escapou de seus lábios, abafado pelas paredes de
metal e pelo ruído dos carros lá fora.
***
O eco do grito lancinante ainda se debatia contra as
paredes do quarto, quando a luz foi acessa.
Morgana ficou ali com os olhos esbugalhados, a boca
ressequida, a respiração ofegante, olhos perdidos em algum
ponto da parede, como se houvesse presenciado uma tragédia. Tinha tido um pesadelo.
Febrilmente saltou da cama, atravessou o aposento,
abriu a porta e correu para a sala. Tomou o telefone e discou apressadamente. Aguardou com nervosismo que atendessem.
— Mamãe, onde está Viviana? — indagou, incapaz de
se libertar daquela sensação angustiante e opressiva que lhe
viera num pesadelo.
— É você, Morgana? O que foi? Isso são horas de ligar?
— Mãe, onde está Viviana?
— Está indo ao seu encontro. Saiu hoje de Turim, na
companhia de sua amiga.
— Ela está vindo de carro?
— Sim, mas qual o problema, afinal?
Morgana ficou parada, segurando o telefone sem saber
como responder.
CAPÍTULO 4
— Abbadon! — gritou a velha, quando a última tocha
foi acesa.
Um bando assustado de morcegos esvoaçou. O sangue
gelou nas veias de Ambrósio, que fitou atônito a transfiguração que se operava no rosto da mãe.
Recuou, cobrindo os olhos com os braços, protegendo-se dos morcegos que voavam sem tocá-lo.
— Veja, Ambrósio! Veja! — ordenou a mãe, enquanto
as aves repulsivas se aquietavam nos túneis escuros e profundos.
Lentamente ele descobriu o rosto, fitando a pedra de
um altar rústico. Antigas manchas de sangue se incrustavam por sobre a rocha, lembrando sacrifícios. Ao fundo,
toda puída e quase desfeita, havia uma cortina negra. Símbolos cabalísticos ainda podiam ser vistos por todo o manto.
A velha se abaixou diante de Ambrósio e apanhou a
bíblia que ele derrubara no momento do espanto. Olhou o
filho e sorriu. Depois tomou-lhe a mão e conduziu-o até o
altar.
— O que mais deseja agora, filho? Diga-me e seu senhor lhe dará em sinal de boas-vindas. Peça, filho. Você é
um sabasius, um eleito. Há muito que aprender — disse,
abrindo o estranho volume a esmo.
Seu dedo indicador descreveu um círculo no ar, depois
apontou direto para a página logo abaixo, tocando-a.
— Diga-me o que mais deseja, filho?
Ambrósio pensou por instantes. O rosto de Sofia banhado de lágrimas surgiu-lhe à mente. O desejo dela era
seu desejo. Encarou a mãe com desafio.
— Eu quero que Vitório Caprilho vá para os quintos
do inferno! — disse e sua voz trovejou pelos corredores
que partiam da ampla e fria caverna.
***
Morgana parou diante do espelho e fitou sua própria
face, alterada pela preocupação. Jamais se enganará com
algo tão sério. Um perigo extremo ameaçara a vida de sua
irmã. Estivesse onde estivesse, lançara um apelo a Morgana, sensível e estranhamente, captara no seu sonho.
A garota juntou as duas mãos diante dos olhos. Observou a marca do diabo em seu punho. O mal não ousaria
prejudicar Viviana, sua irmã. As forças do sobrenatural eram suas aliadas. Morgana tinha o poder de dominá-las.
O que houvera, então? O que aterrorizara tanto Viviana a ponto de fazê-la vibrar daquela forma?
Fechou os olhos e tentou captar alguma coisa no ar.
Lentamente imagens se formaram em sua mente. Imagens
de terror, de alucinação. Aquilo não podia estar acontecendo.
Havia uma sombra negra e esvoaçante, com garras
impiedosas que retalhavam o corpo quase desnudo de Viviana. Ela implorava, suplicava.
A comoção interior fez Morgana suar frio. Seu corpo
estremecia. O que provocara a ira daquela sombra? Como
pudera ameaçar Viviana, se esta estava protegida contra o
mal?
Tremores espasmódicos abalaram-na ao ver o corpo
da irmã ser atirado contra uma parede e cair desfalecido.
Abriu os olhos e respirou fundo, os olhos esbugalhados, algo nauseante e opressivo atravessado em sua garganta. Ódio brilhou em seu olhar. Quem ousara, afinal, desafiar
o poder da filha do demônio?
— Fosse quem fosse, pagaria caro.
— Eu juro! — rosnou a garota, o rosto se transformando numa máscara horrenda e ameaçadora.
Sua mão esquerda ergueu-se lentamente e traçou o sinal da cruz ao peito.
***
Torg! — berrou Drácula, recuando para a parede que
o separava do corcunda.
O veículo guinou para o lado e imobilizou-se. Uma
pequena abertura surgiu diante dos olhos injetados do vampiro. Seu servo fiel encarou-o assustado.
— Sim, mestre!
— Venha aqui! — ordenou o monstro, caminhando
até a porta e abrindo-a.
O ar frio da noite e o brilho intenso do luar pareceram
reanimá-lo e acalmá-lo. Torg se aproximou coxeando e encarou-o sem entender.
— Algo errado, mestre?
— Aquela mulher... A morena... Ela não usa um crucifixo, mas algo pior. Não consegui dominá-la. Vá lá ver! —
rosnou o vampiro e sua voz tremia, como se a cólera estivesse ainda adormecendo dentro de si.
Torg fechou parcialmente a porta, depois correu até a
cabine e girou o botão. Uma luz se acendeu no interior do
furgão. O corcunda retornou apressadamente e entrou.
Viu a garota loura caída a um canto como uma boneca
deliciosa de trapos coloridos. Por momentos antegozou o
prazer de enterrar seus dedos naquelas carnes ainda mornas
e arrancar aquele coração tentador.
Voltou-se para a outra garota, estendida após o ataúde.
Aproximou-se, intrigado. O que havia nela que perturbava
tanto o vampiro?
Inclinou-se sobre o corpo. Ela respirava, embora debilmente. Sua pele era quente e macia, mas havia marcas
arroxeadas e ferimentos cruéis manchando-a.
Olhou o pescoço da vítima de Drácula. Havia a marca
das presas fatídicas, mas o sangue não jorrava como seria
de se esperar. A garota continuava rosada, com as veias regurgitando do precioso liquido que saciaria o vampiro.
Procurou um crucifixo ou alguma marca semelhante,
mas havia apenas uma corrente de ouro, com um estranho
medalhão. Torg julgou reconhecer aquilo.
Tomou-o em suas mãos. Tinha o formato de um pentagrama, com símbolos cabalísticos entalhados artisticamente no metal dourado.
Havia um fecho. Tocou-o e o medalhão se abriu. De
seu interior o corcunda retirou um pequeno pedaço de pergaminho, branco como a cor do leite.
Sorriu estranhamente, enquanto o desdobrava.
— Anasisapta! — leu, compreendendo.
Deixou a corrente e o medalhão entre os seios rijos e
perturbadores da garota e se ergueu. Sabia que força alguma poderia retirá-lo dali.
Recuou até a porta.
— E então, descobriu o crucifixo?
— Não é um crucifixo, mestre.
O olhar do vampiro demonstrou confusão. Depois ele
riu e sua mão direita se estendeu, tomando o pescoço do
corcunda e o apertando até que seus olhos quase saltassem
das órbitas.
— Não zombe de mim, seu dejeto da natureza! Sabe
muito bem que posso destruí-lo como a qualquer mortal...
O corcunda caiu de joelhos diante do vulto imponente
do Conde Drácula. Abaixou os olhos e juntou as duas mãos
sobre os sapatos do vampiro.
— Eu jamais faria isso, mestre. A garota tem um talismã poderoso...
— Talismã? Nada resiste ao meu poder, Torg, exceto
as coisas sagradas de meu pai das trevas!
— O talismã é sagrado, mestre. Ela é uma protegida
de Satã!
— Eu sou o filho predileto de Satã e meu poder é supremo — urrou o vampiro, enquanto seu corpo estremecia
e seus olhos chamejavam. — Eu a mordi...
— A maldição não a afetará. Ela está imune pelo poder do inferno.
O vampiro pareceu se acalmar, compreendendo afinal
a situação. Seus olhos se aquietaram. O brilho de ódio cedeu lugar ao da curiosidade.
— Por que não pensei nisso antes? Uma aliança com
uma filha de Satã! — murmurou, pensativo.
— Essa garota não é a filha de Satã...
— Mas pode me levar a uma delas. Vamos levá-la conosco.
Os olhos do corcunda luziram e a baba escorreu de
seus lábios para o queixo. Ele torceu nervosamente as
mãos, desejando que seu mestre entendesse seus apetites
em relação àquela loura tentadora e morta lá dentro.
— Seria prudente marrá-la para que não fuja — disse
o vampiro, no entanto, entrando no furgão e estendendo-se
no ataúde.
Torg entrou e fechou a porta atrás de si. Debruçou-se
sobre a loura. Dedos frios seguraram seu pescoço e puxaram-no pra trás raivosamente.
Equilibrou-se assustado, fitando os olhos chamejantes
do vampiro.
— Não a toque, imbecil e tola carcaça podre. Ela me
será útil.
— Vai deixar que a maldição a reviva?
— Sim, ela será minha serva fiel, assim como você,
Torg. Pense nas vantagens que isso me trará, depois faça
como ordenei — sentenciou o monstro, voltando a se entender no ataúde luzidio.
Torg ficou ali, parado, sem compreender, o apetite
frustrado, um sorriso morto nos lábios obscenos.
***
Vitório Caprilho estremeceu e o copo de vinho caiu de
suas mãos. Ele ficou olhando para a parede, o corpo hirto, o
rosto crispado numa expressão de terror. Seus amigos se
ergueram rapidamente, fugindo ao liquido que entornara
sobre a mesa.
— Vitório, homem, já bebeu demais! — disse um.
— Sim, já não pode segurar um mísero copo — ajuntou outro.
— Que fraco!
O comerciante, no entanto, continuava imóvel. Sua
boca se abria, embora palavras não fossem articuladas.
Com um esforço terrível, uma de suas mãos se ergueu e apontou para a parede.
Todos olharam naquela direção, mas nada havia de
anormal no Bar do Pepe. Aquela parede sempre estivera ali,
com manchas na pintura e rachaduras na madeira velha.
— Vitório, que passa? — indagou um amigo, debruçando-se sobre ele.
— Deve ser o coração — lembrou-se o outro, observando com apreensão aquela expressão terrível no rosto do
amigo.
Vitório tentava falar, tentava mostrar-lhe aquele horrível ser junto à parede, de longos chifres e asas pontiagudas
como as de um morcego.
Ninguém parecia vê-lo, mas ele estava lá, rindo zombeteiramente e fazendo gestos ofensivos e provocadores,
como que o chamando para seu destino.
O comerciante tentou se mover, mas uma força acima
de sua vontade paralisara seus movimentos. Aquele ser estranho e horrendo continuava lá, fazendo gestos, exibindo
os dentes pontiagudos e a pele coberta de escamas arroxeadas.
Sentiu seu corpo ser agitado. Dedos apressados desabotoavam sua camisa. Um imbecil qualquer abanou uma
forma de pizza diante de seu rosto.
O monstro junto à parede gargalhou. Ninguém o ouvia, mas era impossível. Tinham de vê-lo e ouvi-lo.
Tudo sumiu, de repente. Aquela força que o paralisava, o que lhe travava a voz e o que assustava.
— Lá! — berrou, em voz alta, assustando a todos, que
olharam na direção apontada.
A velha parede manchada e rachada foi tudo que viram. O corpo de Vitório amoleceu-se e ele tombou, amparado por mãos amigas.
— Vitório, o que se passa, homem de Deus? — indagou um amigo preocupado.
— Não viram? Lá, na parede? — voltou a apontar, assim que readquiriu o controle do corpo.
— O que havia lá?
— Não viram? — insistiu, olhando rosto por rosto.
Todos ficaram sérios, olhando-o com preocupação.
Risos zombeteiros esboçavam-se nos lábios deles, mas eram contidos a custo.
— Não me diga que... — ia dizendo um.
— Vitório, você não! — acrescentou outro, começando a rir.
— Macacos ou aranhas? — quis saber outro.
— Elefantes?
— Mussolini?
Em breve formavam um coro que troçava do rosto atônito e embriagado do comerciante, que se ergueu furiosamente e tentou atacar o mais próximo.
Todos se afastaram, rindo divertidamente.
— Acalme-se, Vitório. Isso não é mal, homem. Ainda
ontem eu vi um bando de marcianos nas paredes de meu
quarto. É o tributo que se paga por gostar tanto de vinho...
— comentou um amigo.
— Isso passa.
— Passa nada! É melhor ir se acostumando com essa
fauna que povoa nossos sonhos de alcoólatras! — recomendou outro.
— Malditos! Corja de imprestáveis! Bando de cegos!
Punhado de abutres gozadores! Eu vi, estava lá, o próprio
diabo em pessoa, rindo de mim! Eu juro como o vi...
— Eu também juro como vi os marcianos — riu outro
e o bar todo o acompanhou num coro divertido.
Vitório empurrou dois e passou como um furacão,
buscando a porta de saída. Antes de ganhar a rua, porém,
voltou-se e encarou-os, lançando-lhes um gesto de ofensa e
desagrado.
— Malditos! — berrou e saiu para a rua, buscando
consolo no ar da noite.
A rua deserta incomodou-o. Desejou encontrar alguém
para desabafar a raiva que o invadira.
— Bando de abutres gozadores! — rosnou, cuspindo
para o lado, enquanto avançava cambaleando.
Lembrou-se da figura impressionante que vira. Náuseas assaltaram-no. Ele apoiou-se a um muro, desejando
vomitar tudo que engolira.
Algo fez cócegas entre seus dedos. Ele olhou atônito.
Vermes pareciam brotar de sua pele, esverdeados e nauseabundos.
Agitou a mão, batendo-a contra a coxa, tentando expulsar aquelas coisas gosmentas e incômodas. Comichões
tomaram seu corpo de assalto.
Um odor fétido e desagradável chegou a suas narinas,
nauseando-o definitivamente. Ele apoiou-se com as duas
mãos ao muro e vomitou um liquido gosmento e avermelhado. Tremores o abalaram. Ele tentou se equilibrar.
Dedos frios e repulsivos, com unhas que feriam sua
pele, envolveram seu pescoço e pressionaram-no para bai-
xo. Apesar de forte, Vitório se viu incapaz de lutar contra
aquela força descomunal.
Reconheceu o cheiro nauseante. Era enxofre, pior que
a substância pútrida que fora expelida em golfadas de sua
boca, onde pululavam vermes esbranquiçados.
Lentamente seu corpo foi vergando, enquanto aquela
força sobrenatural o empurrava para baixo. Tentou se libertar, mas era inútil.
Caiu de joelhos. Uma gargalhada sinistra enregelou-o.
O vento soprou fortemente, agitando seus cabelos e suas
roupas, trazendo um cheiro forte de enxofre para suas narinas.
Procurou girar o rosto e observar quem o agredia. Estremeceu. Seus olhos esbugalharam-se ao ver de novo aquele monstro arroxeado, coberto de escamas, com longos
chifres e faces animalescas, de onde escorria uma baba esbranquiçada e malcheirosa.
— Oh, Deus! — lamentou, mas a gargalhada se repetiu, cobrindo seu apelo.
A força daquela garra o fez se dobrar totalmente, o
rosto próximo daquela massa gosmenta que fora expelida
de seu estômago.
Sem piedade o demônio esfregou o rosto de Vitório
Caprilho contra o cimento e o vômito arrancando-lhe a pele, sangrando-o, enquanto se divertia.
Soltou finalmente. O comerciante cruel rolou pela calçada. A comichão em seu corpo acentuou-se. Vermes brotavam de sua pele, que ardia como que em chamas.
CAPÍTULO 5
Os pombos revoavam sobre a cidade com a chegada
do sol, ocupando o lugar que fora dos morcegos noturnos.
A vida retornava febril e colorida nas ruas de Roma, afastados os temores noturnos.
A despreocupação de uns contrastava com a intensa
atividade de outros, empenhados em seus negócios e afazeres. Ao longe, banhado pelo sol, o monte Equillin não deixava perceber o terror que habitava suas entranhas.
Num bairro da periferia da cidade, porém, o temor noturno parecia permanecer nos rostos assustados, cheios de
interrogações e suposições.
Uma aglomeração inquieta formara-se diante de uma
das casas. Murmúrios corriam como presságios malditos,
fazendo fundo a um coro lamentações e lágrimas.
O bairro não adormecera. Atravessara febrilmente a
noite, mergulhado no mais puro terror, desde que o cadáver
de Vitório Caprilho fora encontrado junto a um muro.
Os motivos de sua morte eram desconhecidos, mas
comentava-se que sua maldade o destruíra. Outros comentavam um pacto de crueldade com o próprio diabo. Alguns
lembravam-no na noite passada, ainda no Bar do Pepe, embriagando-se com os amigos.
Nada, porém, explicava sua morte horrível e misteriosa. O segredo parecia guardado para sempre no ataúde lacrado que se achava sobre a mesa, rodeado de velas.
Apesar das flores espalhadas, um ar putrefato e nauseante se formara cobrindo o local como se o amaldiçoasse
com a podridão prematura.
Estavam todos abalados, principalmente os amigos
que haviam encontrado o corpo. Ninguém podia explicar
nada. Um corpo não podia se decompor tão depressa. Peste
nenhuma, por mais maligna que fosse, atacaria tão rápido e
brutalmente.
A verdade, porém, estava à espera no ataúde lacrado.
O que fora Vitório Caprilho nada mais era agora que um
amontoado de carnes decompostas.
Vermes enormes haviam roído suas entranhas, vazando seus olhos, destruindo sua fisionomia. Se houvera terror
no momento da morte, jamais seria descoberto.
Aquelas criaturas alongadas e onduladas haviam feito
seu papel macabro. A autópsia não pudera ser realizada.
Nada havia intacto a ser analisado.
Parado sob o sol, ainda sob os efeitos da violenta emoção que lhe fora provocada na noite anterior. Ambrósio
tentava raciocinar a respeito daquilo.
Seu desejo fora cumprido, mas jamais pudera imaginar
quão horrível seria o destino a ser dado ao homem que infernizava sua vida e tiranizava a família.
Aquela marca enegrecida em seu pulso o convencia
agora, enchendo-o de temor e confiança ao mesmo tempo.
Sofia estava livre, ambos estavam livres.
Não era difícil traçar seu futuro a partir daquele acontecimento. A família não poderia manter os negócios em
andamento sem a mão firme de um homem.
Ambrósio seria a solução para Sofia e sua mãe. Nada
poderia ser mais adequado a seus planos.
A necessidade de rever a garota de contar-lhe sobre
seu libertador, de revelar-lhe sua nova força, de confessarlhe um amor agora se redimia na morte de Vitório se tornou
imperativo.
Avançou lentamente, sentindo-se dono daquela força
estranha e poderosa. Não precisava mais baixar a cabeça a
quem quer que fosse. O destino entrava em suas mãos agora.
— Ambrósio! — soluçou Sofia, num grito agoniado,
lançando-se nos braços dele.
Apertou-a contra si, vibrando uma emoção forte e gratificante. Sonhara com aquele momento inúmeras vezes.
Lamentou o tempo perdido e gozou a proximidade adorada
daquela mulher.
Consolou-a com palavras ternas, mas, acima de tudo,
precisava contar-lhe. Seu olhar pousou sobre o ataúde. Ali
dentro estava a última barreira a sua felicidade. Riu e daria
gargalhadas se tal atitude não escandalizasse.
— Preciso lhe falar a sós, querida — murmurou ele.
Ela o conduziu por entre as pessoas até seu quarto.
Quando a porta se fechou. Ambrósio experimentou uma violenta emoção, fitando as coisas tão íntimas da garota.
Estar ali era como estar dentro dela, compartilhando
seus segredos, numa união total e desejada.
Apertou-a contra si, beijou-lhe os cabelos, deixandose contagiar pelo momento. O calor daquela pele o seduzia
irresistivelmente. Queria senti-la, tocá-la, experimentar aqueles contornos, senti-los sob seu domínio.
— Ambrósio! — surpreendeu-se ela, entre ofendida e
chocada, afastando-se dele.
— Que importa agora, querida. Ele está morto — disse ele, preso da excitação.
— Ambrósio! — repreendeu-o ela.
— Estamos livres, amor. Ele está morto, graças a Deus
morto!
— Não blasfeme assim...
Um riso sinistro o demente surgiu nos lábios dele e
seus olhos brilharam estranhamente.
— Posso corrigir, querida. Graças a Satã, graças ao
diabo! — sussurrou ele. — Seu pai está morto. Eu o destruí. Eu fiz o que você desejou e...
— O que está dizendo?
— Mas o que importa? Interessa apenas que ele foi
morto, que sumiu para os quintos dos infernos e nos deixou
livre para nos amarmos. — falou ele, excitado, lançando
seus braços ao encontro dela.
Sofia recuou para a porta, olhando-o com surpresa, incapaz de compreender o que ele pretendia dizer.
— Está tentando me dizer que teve alguma coisa a ver
com a morte de meu pai? — balbuciou ela.
Um riso triunfante surgiu nos lábios dele.
— Sim, eu causei a destruição dele. Eu fiz aquilo acontecer. Ele deve ter experimentado o terror absoluto,
quando...
— Ambrósio! Você praticou aquela monstruosidade?
Como? Deus meu, eu...
— Acalme-se — pediu ele, tentando se aproximar.
— Fique longe de mim. Eu vi o corpo dele, foi demoníaco o que...
— É o que estou tentando lhe dizer. Foi o demônio,
foi Satã, atendendo ao meu pedido, ao nosso pedido.
— Você deve estar louco, Ambrósio — murmurou ela
e o medo se estampou em suas faces lívidas.
— Querida, não fale assim... Não me olhe assim... Eu
consegui... Nós estamos livres...
— Não... Afaste-se de mim! Você enlouqueceu!
— Mas foi você quem desejou...
— Ele era meu pai...
— Mas...
— Deus!!!
***
Viviana tropeçou e se estatelou na escuridão. Suas
mãos se apoiaram numa massa viscosa e malcheirosa.
Qualquer coisa moveu-se entre seus dedos e ela gritou,
pondo-se de pé.
Olhou para trás. A luz do fogo a seguia pela escuridão
do túnel. Passos desiguais ecoavam mais alto que sua respiração pesada e seus gemidos de dor e medo.
Avançou tateando a escuridão daquela caverna, procurando a luz do dia, tentando encontrar uma saída naquele
labirinto. Uma gargalhada soou a seus ouvidos e lágrimas
vieram a seus olhos.
Não conseguia compreender o que acontecia. Primeiro, aquele homem monstruoso e feroz, agredindo-a no interior daquele furgão até que desfalecesse. Depois, como uma
continuação do pesadelo, via-se numa caverna, envolta pela
escuridão. Tentara fugir, mas aquele ser deformado que a
perseguia parecia se divertir apenas, brincando com seu pavor.
— Venha a mim, protegida de Satã — disse uma voz
zombeteira, ecoando pelas paredes frias.
Viviana não entendeu o que aquilo queria dizer. Pensou na irmã, na afinidade entre as duas, na proteção que
Morgana lhe dispensava e rezou para que ela, de alguma
forma, a ouvisse.
Depois seguiu em frente, descobrindo uma passagem.
Adiante viu luz, mas não era a do dia. Avançou tropegamente, até ver-se numa sala de pedras, iluminada por archotes presos às paredes.
Ao centro, como num altar, havia alguns objetos. Seres humanos poderiam estar por perto, já que havia luz no
local.
Correu até o altar. Viu um grosso volume, encadernado curiosamente e um punhal brilhante de lâmina recurva e
afiada. Empunhou-o e se escondeu atrás da pedra entalhada.
Torg surgiu tão intrigado quanto ela, olhando o local.
Parecia entender aquele cenário, mas estava mais preocupado com a garota agora.
Não a amarra, como Drácula ordenara e, por isso, ela
fugira quando a levara para a caverna. Estacou, atento. Ouviu a respiração agoniada. Sorriu sadicamente e atirou a tocha para o lado.
— Venha, protegida de Satã! Não quero lhe fazer mal
— disse, caminhando para o centro da sala de pedra.
— Afaste-se de mim, monstro — gritou a garota, pondo-se na defensiva e erguendo o punhal.
Torg estava se divertindo com aquela perseguição.
Um pouco de resistência final lhe daria o prazer adequado
pelo tempo perdido.
Foi caminhando para ela, preparado para se defender
no momento certo.
— Escute, não quero lhe fazer mal. Podemos ser amigos — afirmou tentando ser convincente. — Isso em seu
pescoço, onde conseguiu?
Viviana recuou um passo e levou uma das mãos ao
pescoço. Morgana lhe dera aquele medalhão, pedindo-lhe
que o usasse sempre.
Lembrava-se das recomendações da irmã. O medalhão
era um talismã poderoso e a defenderia do mal. Nunca acreditara naquilo, mas era uma bela joia. Morgana sempre
fora muito estranha e não custava nada fazer a vontade.
Pensou, por instante, na ironia dos fatos. Depois,
qualquer coisa brilhou em sua mente. Sua amiga estava
morta, tateara seu cadáver na caverna escura. Ela estava viva ainda e, talvez, houvesse alguma lógica na proteção do
medalhão. Um riso confuso se estampou em sua face, e ela
ergueu o medalhão, esperando, com isso, intimidar o homem diante de si.
Torg riu em resposta e balançou a cabeça. O medalhão
não o afetaria. Na verdade, não pretendia fazer mal à garota. Queria apenas levá-la de volta e, talvez, tornar-se realmente seu amigo.
— Onde o conseguiu? — voltou a indagar.
— Minha irmã...
— Ela o deu pessoalmente?
— Ela o pôs pessoalmente em meu pescoço! — respondeu a jovem, intrigada com a curiosidade demonstrada
pelo corcunda horripilante.
— Escute, podemos ser amigos — disse ele, avançando mais um pouco e estendendo a mão.
O punhal vibrou no ar e gotas de sangue escorreram
pela palma da mão do corcunda. A ira brilhou em seus olhos e, por momentos, ele esteve preste a se deixar levar
por ela.
Conteve-se, no entanto. Havia uma chance, uma remota chance de se beneficiar da situação.
— Não quero lhe fazer mal, juro — disse abrandando
a voz.
— O que quer de mim?
— Diga-me onde encontrar sua irmã e eu a libertarei.
— O que quer com minha irmã?
— Ajuda... Mas você não entenderá jamais. Diga-me
onde encontrar sua irmã e prometo-lhe não lhe fazer mal
algum.
***
Morgana se movia febrilmente pelo quarto escuro,
como que dominada por um instinto selvagem. Traçara
símbolos no assoalho e levara uma vasilha para o centro.
Depois apanhou um candelabro estranho, em forma de
metade de uma estrela, e o postara numa das pontas do pentagrama traçado com um estranho e malcheiroso pó.
Acendeu as velas, que iluminaram suas faces crispadas. Um pombo arrulhou assustado quando ela o retirou da
gaiola e o aproximou das chamas.
— Abbadon! — murmurou ela, depois começou a recitar o Pai-Nosso de um modo estranho, ao inverso, numa
linguagem incompreensível a um leigo.
Quando terminou, havia aproximado o pássaro das
chamas o bastante para que os olhos da ave fossem cegados.
Trouxe-o para cima da vasilha e estendeu uma das
mãos para apanhar uma tesoura ainda em sua embalagem
lacrada, que rasgou furiosamente com os dentes.
Depois, voltando a repetir as mesmas palavras iniciais,
degolou a ave e recolheu seu sangue na vasilha diante de si.
A chama do fogo se refletiu como cintilações de um rubi
sobre o liquido morno.
Rouquejou qualquer coisa, jogando a cabeça para trás.
O corpo degolado da ave foi posto de lado. Palavras intraduzíveis soaram dos lábios de Morgana, antes que ela se
debruçasse sobre a vasilha com sangue e a olhasse atentamente.
Juntou as duas mãos ao peito e fechou os olhos por
instantes, suspirando aliviada.
***
— Isso é palhaçada! — explodiu Ambrósio, atirando
para o lado a veste negra que a mãe lhe estendera. — Jamais vestirei essa mortalha. Acabou-se a farsa. Tudo foi
uma loucura.
A velha abaixou a cabeça e pareceu murmurar alguma
coisa. Foi recolher, em seguida, a roupa que o filho atirara
para o lado.
— Foi ela, não? — indagou, aproximando-se de Ambrósio.
— Nada lucrei com isso, mãe. Ela me detesta agora,
ela me julga um monstro, ela me abomina e...
— Nada é impossível para um sabasius, filho.
— Isso é pura besteira! Eu vi os olhos de Sofia, mãe.
Eu vi o repúdio, a aversão total. Como compreender isso?
Ela desejava a morte do pai... Talvez... Me amasse o bas-
tante para não desejar esse crime horrendo em minhas
mãos... — conjeturou ele, com um olhar demente.
— Tudo é possível para um sabasius, filho. Você quer
o amor daquela mulher? Você o terá...
— Não, não quero mais nada dessa feitiçaria, será que
não compreendeu isso?
A velha olhou-o fixamente. Seu rosto enrugado estava
sério, ameaçador, preocupado. Ela estendeu a mortalha negra para Ambrósio e pediu.
— Use isto!
— Acabou-se! — afirmou ele, convicto. — Perdi o
que mais desejava neste mundo...
— Nada está perdido quando se tem Satã...
— Para o inferno com Satã! — berrou Ambrósio, apanhando a mortalha e jogando-a ao chão e pisoteando-a num
acesso de fúria.
Uma gargalhada explodiu na sala, imobilizando-o. Olhou a mãe, sem entender. Ela ria, zombeteiramente, assustadoramente.
— Não pode recuar agora. Já se entregou a Satã, ele já
o presenteou com as boas-vindas. Agora terá de servi-lo...
Não chegou a terminar. Uma gosma esverdeada explodiu da boca e das narinas da velha, projetando-se contra
o rosto dele, enojando-o.
Ele recuou, tentando se limpar. A velha riu. O vento
soprou agitando seus cabelos. Ambrósio olhou ao seu re-
dor. As janelas estavam fechadas. De onde viria aquele
cheiro de enxofre? De onde brotava aquele vento insuportável que o empurrava contra a parede e ameaçava esmagálo?
CAPÍTULO 6
Seu corpo se contorcia, rolando pelo assoalho até os
limites do pentagrama. Seu rosto era uma máscara horrível
de pavor demoníaco. Seus cabelos se agitavam loucamente,
enquanto suas mãos se lançavam para o alto, dedos recurvos como garras, tentando alcançar o inimigo que via em
seu transe demoníaco.
— Cavasti Abbadon! — urrou ela, rangendo os dentes
e imobilizando-se, finalmente, para olhar a tigela de sangue.
Tomou-a entre as mãos ainda trêmulas e levou-a até a
altura dos seios. Lentamente, então, derramou o sangue do
pombo sobre o corpo, fechando os olhos numa expressão
de gozo macabro.
Por longo tempo ficou ali, naquela posição, enquanto
o transe diabólico se diluía nas trevas do quarto e no oscilar
das chamas das velas.
Respirou fundo, finalmente, e ergueu-se. Venceu facilmente os limites do pentagrama e deixou aquele quarto.
A claridade da sala ofuscou seus olhos. Ela foi repousar o
corpo sobre o sofá macio, cobrindo o rosto.
Tudo fora claro, sua irmã corria perigo, mas sua salvação parecia estar acima das forças de Morgana. Havia um
poder maligno superior bloqueando sua visão mística. Não
conseguia imaginar o que ou quem estaria causando aquilo.
Ergueu-se num salto, passou diante de um espelho e
recompôs os cabelos. As roupas manchadas de sangue
chamaram sua atenção. O vermelho vivo a atraiu por instantes e seus olhos brilharam misteriosamente.
Correu para o banheiro, despiu-se e tomou uma ducha
rápida. Logo em seguida se vestiu e deixou o apartamento.
Tomou um táxi e, algum tempo mais tarde, entrava num enfumaçado barzinho, encravado no subsolo de um velho
prédio num bairro mal afamado de Roma.
Imediatamente rostos se voltaram para ela, encarandoo em silêncio. Alguém desligou a máquina da música. Homossexuais, lésbicas, pervertidos da pior espécie e elementos da mais baixa índole demonstraram seu respeito à entrada de Morgana.
Ela fez um gesto apenas e todos pareceram entender.
— Às seis horas místicas — disse ela, girando nos
calcanhares e retirando-se do bar.
Imediatamente após sua saída o ruído das conversas e
a música retornaram, como se, por instantes, sua presença
houvesse feito parar o tempo naquele local de perdição.
Dali tomou outro táxi, indo até um parque de diversões armado numa das mais belas praças do centro da cida-
de. Caminhou por entre a multidão que aproveitava o sábado para se divertir.
Rumou para as barracas, dispostas num dos cantos da
praça, longe da agitação dos brinquedos eletrônicos. Entrou
numa delas.
— Eu sabia que você vinha — disse uma megera, olhando fixamente um globo de cristal diante de si.
— eu sei. Preciso de ajuda.
— Conheço seu problema, irmã, mas não posso ajudála.
— Quem pode me ajudar/
— O que tem a enfrentar está acima de nossas forças,
pude sentir.
— E quem é ele?
— Não sei... Satã também está do lado dele e o fez tão
maligno como nós.
— Satã se regozija quando um de seus prediletos demonstra seu poder. Mas você não pode enfrentar esse mal
facilmente. Precisa de ajuda... Da ajuda de outro sabasius.
Absorvendo-lhe o poder, você será tão forte quanto seu inimigo.
— Acharei outro sabasius.
— Sei que achará, mas... — murmurou a velha, como
se lesse algo agourento em sua bola brilhante.
— Eu nada temo. Rezarei a missa negra e tomarei o
poder do outro sabasius pelo ritual. O que vê em sua bola?
— Trevas impenetráveis, apenas isso — disse a mulher, mas Morgana percebeu claramente que ela mentia.
Não se amedrontou, no entanto. Conhecia sua missão.
Teria de salvar e proteger a irmã a qualquer custo.
***
Ambrósio se levantou com dificuldade. Em seu olhar,
havia espanto e terror. Encarou a mãe, cuja expressão
transmitia agora uma profunda serenidade.
— O que... O que aconteceu? — balbuciou ele.
— Uma demonstração de ira de Satã. Você o desafiou,
mas ele não puniu. Apenas revelou-lhe sua força. Acredita
agora?
— Como duvidar? — argumentou ele, pateticamente.
— Então fique tranquilo que tudo se arranjará. Você
deseja Sofia. Está noite mesmo você a terá nos seus braços.
Iremos ao monte para a cerimônia de sua iniciação. Você
pedirá Sofia e ela lhe será dada.
— Teremos de voltar ao monte, então?
— sim. Agora, há muito que precisa aprender. Sentese e ouça, filho — ordenou a mulher.
***
Na escuridão da caverna. Torg meditava, quanto olhava o corpo adormecido de Viviana, encolhido a um canto.
No centro da sala de pedras estava o ataúde negro de Drácula.
O olhar aguçado do corcunda, vencendo a escuridão,
fitava aquele talismã no pescoço da jovem adormecida. Reconhecia aquilo um poder superior algo acima das forças
do próprio Príncipe das Trevas.
Quem o havia posto no pescoço da jovem, possuía um
poder que tentava Torg. Alguém com aquela força poderia
lhe dar de imediato um novo corpo, aplacando aquele desejo que o desesperava havia muito.
Livrar-se de sua carcaça deformada e repugnante poderia ser um bom preço pela traição. Ainda assim, relutava.
Conhecia a ira do Drácula. Não havia lugar no mundo onde
pudesse estar seguro, caso o traísse.
A menos que...
Estremeceu diante da ideia, mas a verdade era aquela.
Se havia alguém capaz de destruir Drácula, seria Torg. Protegido pelo poder de uma filha de Satã, não seria difícil realizar aquela missão e sobreviver para gozar seu novo corpo.
Anos de servidão fiel passaram por sua mente. Dedicara-se sempre ao morcego humano, mas o que recebera em
troca? Humilhações, ofensas, desprezo.
Ergueu-se, resoluto, e deixou a sala de pedra. Caminhou facilmente pelo labirinto de túneis. Seu instinto animalesco o conduzia para a lua do sol.
***
Morgana caminhou na direção do casebre, guiada por
uma força desconhecida. Sabia que ali encontraria o necessário. O ritual negro mostrara-lhe onde encontrar a ajuda de
que precisava.
Seus passos eram apressados. A tarde que caia, anunciando a noite, era cheia de presságios. A escuridão parecia
trazer um perigo maior a sua irmã.
Tudo que sabia dela era que estava ameaçada e cercada pelas trevas frias de algum lugar assustador. O mal que a
ameaçava era poderoso.
Bateu a porta e aguardou com impaciência.
Quando Ambrósio abriu a porta e a encarou, frêmitos
percorreram seus corpos e seus olhos brilharam intensamente, numa revelação.
Morgana sabia o que aquilo significava. Ambrósio
pressentia apenas. A garota exibiu a marca negra em seu
pulso.
— Preciso de ajuda! — disse ela.
Ambrósio esboçou um sorriso atônito e se voltou para
olhar a mãe. A velha fixou-se no pulso de Morgana, entendendo.
— Entre! — disse.
— Tenho pressa. Preciso de ajuda.
— E o que a ameaça? — indagou a mulher.
— Laços de sangue estão ameaçados. Minha irmã...
— Entendo! Sou velha, mas meu filho, um sabasius
iniciante, poderá ajudá-la.
— Iniciante? — indagou Morgana, olhando-o.
Aquilo tornava mais fácil seu plano. Todo o poder latente naquele bruxo poderia ser assimilado por ela, muito
conhecedora da magia negra.
Seria como roubar uma criança, mas era necessário.
Seu poder místico percebia a confusão interior que habitava
Ambrósio.
Ele não estava de todo definido e havia desejos conflitantes dentro dele.
— Vai me ajudar? — indagou a ele.
— Sim, claro.
— E o que posso dar-lhe em troca?
— Nada que eu não possa ter.
— O amor de uma mulher? — arriscou Morgana.
— Talvez sim — sorriu ele.
— Uma virgem?
— Uma adorável virgem — confessou o rapaz, ingenuamente.
Os olhos de Morgana luziram estranhamente e seu
sorriso demonstrou satisfação interior.
— Você terá ainda está noite. Onde recebe suas legiões?
Diante da ignorância de Ambrósio, sua mãe se adiantou.
— Ambrósio ainda é iniciante, como já disse. Hoje rezaria sua primeira missa negra.
— Rezaremos juntos, então. Eu o ajudarei a agrupar
em torno de si os discípulos necessários. Já escolheu seu
local?
— É um velho altar, no monte Equillin — respondeu
ele.
— Excelente! Estaremos lá na hora mística. Juntos
conseguiremos fazer prevalecer nossa vontade — prometeu
ela, retirando-se.
Ambrósio ficou à porta, vendo-a afastar-se. Voltou-se,
então, para a mãe.
— Como ela soube de mim?
— Você descobrirá que todos sabemos de nossos irmãos, quando necessitamos deles. Descobrirá, também, que
jamais deveremos confiar neles.
— Como assim?
— Satã é um pai generoso, mas cruel. Cerca-se dos
poderosos. Seus filhos indecisos e fracos são destruídos.
Por isso você tem de ser forte, impiedoso. Seu poder é
grande, filho, mas poderá ser maior, mais experiente, se
conseguir destruir essa mulher.
***
Torg estava nas proximidades do prédio. Seu coração
se convulsionava de ódio e ressentimento ao perceber os
olhares zombeteiros e piedosos que lhe eram lançados.
Nada daquilo aconteceria se possuísse um corpo belo,
elegante e atraente. Sua mágoa contra Drácula se agigantava, cegando-o. O vampiro poderia tê-lo recompensado há
muito tempo, mas se divertia em torturá-lo, adiando para
um tempo indeterminado a realização daquele sonho.
Repentinamente, um táxi parou diante do prédio e uma
garota desceu. Torg olhou-a incrédulo. Tudo se confundiu
em sua mente por instantes.
— Gêmeas! — exclamou, afinal, compreendendo.
Morgana avançou para a entrada do prédio. Torg atravessou rapidamente a rua.
— Abbadon! — disse ele e a garota se voltou como
que tocada por um raio.
Torg se aproximou, maravilhado. Era incrível a semelhança entre as duas irmãs.
— Gêmeas idênticas! — murmurou ele, diante dela.
Os olhos da bruxa brilharam e seu corpo estremeceu.
A proximidade daquele corcunda traía o círculo maligno
que o envolvia.
Ao mesmo tempo, aquela observação só podia ter um
significado.
— Onde está ela? — indagou, chamando a si todo o
poder da maldade para ampará-la.
— Bem — respondeu Torg, percebendo que seria fácil
dialogar com ela.
Ambas eram gêmeas. Seguramente haviam nascido em
condições especiais. A que, estava diante dele nascera depois e trouxera consigo o sinal do diabo. Isso a obrigava a
proteger a irmã contra tudo e contra todos. Era uma espécie
de anjo da guarda do mal.
— Eu a quero, sã e salva — disse Morgana.
— Você pode tê-la, se... — hesitou ele.
— Se?
— Se me ajudar.
Ela olhou e compreendeu de imediato. Alguém com
aquele corpo só desejaria uma coisa de uma filha de Satã.
— Eu posso lhe dar um novo corpo — afirmou ela,
pensando em Ambrósio.
O bruxo iniciante viera a calhar perfeitamente em seus
planos. Poderia lhe tomar o poder e ainda usar seu corpo
para pagar aquela troca.
— Imagino, ainda assim, que não será fácil, não é? —
quis saber ela.
— Vi o talismã que pôs no pescoço de sua irmã. Se
aquilo revela a dimensão do seu poder, não será tão difícil.
— Contra quem lutarei?
— Nosferato — rouquejou Torg.
Morgana estremeceu. Um vampiro era um ser poderoso, privilegiado na escala demoníaca, preferido de Satã acima de seus outros filhos mais diretos.
Se o vencesse, porém, seu privilégio estaria assegurado e seu poder não teria limites. O corcunda poderia ajudála muito mais do que imaginava.
— Onde ele se esconde?
— Nos labirintos do monte Equillin.
— Conveniente — sorriu a discípula do mal — Muito
convincente.
***
Lentamente as trevas venceram a luz e a noite chegou
sobre o monte maldito, que via reunirem-se em seu ventre
as mais estranhas e sórdidas criaturas.
Num ponto profundo de seu labirinto de túneis, um ser
monstruoso ergueu-se de sua tumba e aspirou o ar úmido da
caverna.
A escuridão total não o incomodava. Seus olhos se dirigiram para um canto, onde um corpo feminino maltratado
ressonava suavemente.
— Torg! — chamou Drácula e sua voz ecoou, despertando a garota, que se encolheu, aterrorizada.
Por instantes nada pressentiu. Depois, gradativamente,
uma respiração pesada, animalesca, selvagem, soou mais e
mais, envolvendo-a num terror desesperado.
Suas mãos se juntaram sobre o medalhão. O corcunda
dissera a respeito do poder oculto ali dentro, capaz de livrála de todo o mal.
Drácula a fitava. Seu olhar animal brilhou, como chamas do inferno. Sua sede de sangue o espicaçava e a força
que se opunha a ele era um desafio.
Caminhou lentamente ao encontro dela. Seu olhar maligno se concentrou nos olhos dela, forçando-a, vencendoa, ameaçando-a.
— Quem está aí? — indagou Viviana, aterrorizada,
tentando fugir à força daquele olhar sanguinolento que vinha em sua direção.
Uma gargalhada soturna se ouviu, aumentando e ecoando pelos túneis ameaçadora e zombeteiramente. Depois
silenciou e apenas um ranger trágico de dentes, acompanhando de um rosnado furioso, se fez ouvir.
Drácula lutava contra o poder do talismã.
CAPÍTULO 7
Um urro grotesco e raivoso provou que suas forças eram insuficientes para vencer aquela palavra mística escrita
num pergaminho virgem e guardada no interior do medalhão que Viviana segurava fervorosamente.
Como fera enraivecida. Drácula caminhou de um lado
para outro. Sua ira crescia, seu poder desafiado o fazia
crispar os músculos e chamejar os olhos.
Viviana experimentava momentos de indescritível terror. Pressentia aquela presença feroz rondando-a, mas não
podia vê-la ou enfrentá-la. Apegava-se ao medalhão, esperando que cumprisse sua missão.
Instintivamente, porém, foi rastejando pelo chão úmido da caverna, ao longo da parede. Esbarrou numa sacola.
Tateou-a. Encontrou fósforos e uma vela. Acendeu-a. A
claridade fez o monstro recuar.
As faces do vampiro eram uma máscara de ódio e impotência. Seus olhos destilavam sangue, seus dentes brilhavam, refletindo o fogo da vela.
— Afaste-se de mim, monstro — berrou a garota, fechando os olhos e erguendo o medalhão.
— Tola! Idiota! Mulher inútil! — rugiu o vampiro,
apanhando uma pedra e arremessando-a contra a perna de
Viviana.
Ela gemeu num sufoco e levou as mãos ao membro ferido. À vista do sangue, um furor demoníaco se apossou de
Drácula, que avançava e recuava, as mãos à frente como
garras, os dentes rangendo furiosamente, um rosnado surdo
brotando de seu peito.
O cheiro adocicado do sangue espalhou-se pela caverna. As narinas do vampiro dilataram-se, ele estremecia
convulsivamente, desejando despedaçar a mulher que ousara desafia-lo.
Foi então que seu olhar se dirigiu para o corpo da outra garota, morta na noite anterior. Olhou-a demoradamente, depois foi até o cadáver, virando-o.
O Príncipe das Trevas inclinou-se sobre ela, agarrando-a pelos cabelos e a erguendo. Viviana acompanhou aterrorizada a ação do monstro.
O corpo de sua amiga posto em pé. Drácula enlaçou-a
em seus braços, então, apertando-a contra o peito. Seus lábios finos e frios aproximaram-se daquele rosto, bafejandoo com cheiro da morte.
Depois, num ritual que fez Viviana enlouquecer de
pavor. Drácula beijou o cadáver, enquanto o envolvia em
sua capa negra.
Por instantes ficou ali, como um negro e enorme morcego, protegendo a presa com suas asas demoníacas. Depois, lentamente se afastou.
— Não! — berrou Viviana, vendo o corpo da amiga
em pé.
Uma palidez mórbida lhe cobria o rosto agora. Seus
olhos se abriram, brancos, sem expressão, frios como o olhar da morte.
Ela olhava Drácula, como se observasse o poder maligno que lhe destituía a vida. Sorriu. Caninos alongados e
pontiagudos se sobressaíram, fazendo de seu sorriso um
símbolo da maldade.
Drácula gargalhou satanicamente.
— Vá! — ordenou a sua discípula e ela se voltou para
Viviana, que se encolheu por instantes, depois tentou rastejar.
A ferida em sua perna sangrou mais ainda, espicaçando Drácula e sua vampira, que avançava resolutamente para
Viviana.
— Não, afaste-se! — suplicou a garota, apertando e
erguendo o medalhão.
— É inútil agora — gritou Drácula, concentrando todo
os eu poder no cadáver ambulante que cumpria seu desejo.
— Não! — balbuciou Viviana, fracamente, desfalecendo.
A vampira se voltou para o mestre e sorriu, mostrando
os dentes ameaçadores. Depois caminhou rapidamente,
como um lobo carniceiro, para junto de Viviana, arrebatando-lhe o medalhão e atirando-o para longe.
Depois, resfolegando, debruçou-se sobre a garota,
buscando seu pescoço. O palpitar da veia jugular espicaçou-a e o desejo de sangue se fez intenso.
— Pare! — ordenou Drácula, quase voando sobre ele
e agarrando-a pelos cabelos.
A vampira rugiu, defendendo-se com as unhas em garras agora. Drácula socou-a violentamente na cabeça, jogando-a para longe.
Depois, rosnou e amaldiçoando, debruçou-se sobre o
corpo de Viviana, agarrando-o pelos cabelos e a dobrando
para trás. Seu olhar se concentrou na veia palpitante. Suas
presas avançaram, rasgando profundamente as carnes tenras. O sangue jorrou para seus lábios sequiosos.
Atrás dele, igualmente sedenta, a vampira se arrastou
para junto do corpo de Viviana, agarrando-lhe a perna ferida e lambendo prazerosamente o sangue que lhe escorria.
***
— Abbadon! Cavasti Nosferato! — gritou Morgana,
dobrando-se inicialmente, depois se jogando para trás e rolando na umidade da caverna.
Seus discípulos a olharam sem compreender. Torg, a
um canto, estremeceu, suspeitando. Ambrósio e sua mãe se
entreolharam, pasmados.
Lágrimas de sangue escorreram dos olhos de Morgana, quando ela se levantou dolorosamente. Suas mãos se
fechavam com força. As unhas pontiagudas cravavam-se
nas palmas, ferindo-as, sangrando-as.
— Nohasti maganif! Cavasti Nosferato! — Voltou a
gritar Morgana, esfregando as mãos e lambuzando de sangue seu próprio rosto, transformando-o numa máscara de
dor e ódio.
Seu grito de desafio avançara profundamente pelos
túneis escuros, ecoando como se o próprio monstro gargalhasse satisfeito com a volta total da maldade a suas entranhas.
Ajoelhada agora, Morgana passou os olhos pelos seus
discípulos, surpresos com a atitude de sua mestre. Ela sabia
o que houvera. De alguma forma, sua irmã sucumbia ao
poder maior do vampiro que a ameaçava.
Isso lhe dava uma mostra do poder que teria de enfrentar, mas não recuaria agora. Satã saberia recompensar a
força de sua filha, quando ela vencesse.
Seu olhar se voltou, então, para Ambrósio, parado ao
lado do altar pagão. Por momentos pareceu ler sua alma e
seus pensamentos. Depois se concentrou profundamente,
murmurando velhas orações malditas.
— O que pensa que vai fazer? — indagou a mãe de
Ambrósio, reconhecendo-as.
Morgana não a ouviu. A velha avançou, postando-se
diante da bruxa mais jovem e encarando-a.
— Eu sei, Morgana! Eu sei! — disse, num rugir furioso.
— Cale-se, velha bruxa, e ceda à força dos argumentos. Não planejei nada para você. Eu a respeito pelo seu papel. Leonardo a tem em sua glória, mas não me desfie.
— Eu defendo o que é meu! — rosnou a velha.
— Mas, o que está havendo? — indagou Ambrósio,
incapaz de compreender aquele diálogo ameaçador.
— Ela quer seu poder, filho! Mas só o terá passando
sobre meu cadáver!
— Não me desafie, velha bruxa — rosnou Morgana,
pondo-se em pé.
Seu rosto transfigurado revelava decisão e dor. Não
planejara destruir a mulher diante de si, mas o faria, se preciso fosse.
Seu poder seria fortalecido um pouco mais, mas Satã
jamais apreciava a destruição de uma velha servidora.
A velha, no entanto, ergueu as mãos e estremeceu
convulsivamente. Seus olhos brilharam satanicamente.
Morgana cambaleou alguns passos, depois seu corpo enrijeceu-se.
O olhar da velha demonstrou surpresa. Talvez esperasse provocar a destruição de Morgana, mas esta se revelara forte demais.
A confirmação de sua suspeita veio em seguida. Os
olhos de Morgana se arregalaram, como se círculos de fogo
concêntricos brotassem deles.
O corpo da velha foi jogado violentamente para trás.
Pedras soltas espalhadas pelo chão da caverna voaram em
sua direção, atingindo-a, dilacerando sua pele enrugada.
— Pare! — ordenou Ambrósio, num grito, apontando
sua mão para Morgana.
Uma convulsão violeta dobrou o corpo da jovem. Seu
rosto demonstrou estupor. Sua língua se enrolou dentro da
boca, ameaçando sufocá-la.
Ambrósio talvez não dominasse muito bem seu poder,
mas acabara de dar uma demonstração de sua força. Enquanto corria para junto da mãe, Morgana rosnava, tentando arrancar a língua de sua própria garganta.
Ao redor, olhando-a pateticamente, os discípulos da
bruxa reconheciam sua impotência para ousarem se intrometer naquela disputa poderosa.
— Não! — gritou Ambrósio, ao remover as pedras
que cobriam o corpo da mãe.
Espinhos brotavam das feridas em sangue, um sapo
estufou as bochechas da mulher, que regurgitou e o lançou
para fora. O negro animal, de olhos esbugalhados, fitou
Ambrósio como se zombasse dele.
O rapaz apanhou uma pedra e bateu sobre ele. Uma
fumaça nauseabunda se elevou e, no momento seguinte, o
horrível animal sumira.
A velha regurgitou novamente e expeliu sangue pela
boca e pelas narinas. Seus olhos encararam o filho com piedade, depois se voltaram para dentro, brancos e sem vida.
— Maldita! — berrou ele, abraçando-a, manchando-se
em seu sangue.
Largou-a e se voltou para Morgana, que respirava ofegante e cruzava as duas mãos diante do peito, num gesto
de defesa. Talvez não suportasse a ira de Ambrósio. Um filho de Satã enfurecido era indomável.
Confiava, no entanto, na estratégica de seus planos.
Cedo ou tarde teria nas mãos como dominá-lo.
E então, como que atendendo suas preces macabras,
seus discípulos se afastaram e um vulto feminino e delicado, trajando uma camisola transparente que realçava suas
formas avançou.
Ambrósio olhou atônito. Era Sofia. Tentou correr para
ela, mas, a um gesto de Morgana, um círculo de fogo a cercou, barrando a passagem dele.
O rapaz se voltou para ela. Seus olhares se cruzaram,
em desafios, medindo forças. Morgana riu, quando Ambrósio cedeu. A vida de Sofia lhe era mais importante. Imobi-
lizou-se. Morgana repetiu o gesto e o círculo de fogo desapareceu. Sofia caminhou pra ela.
Morgana a recebeu em seus braços, apertando-a contra
si. Depois, beijou-a nos lábios com lascívia, para horror e
desespero de Ambrósio, que ameaçou avançar.
A bruxa repetiu o gesto anterior e o círculo de fogo
enlaçou Ambrósio, prendendo-o. Ele se debateu, mas aquelas chamas invocadas das profundezas do inferno formavam uma barreira intransponível.
— Alegremos-nos, irmãos! — disse Morgana. — Já
temos a virgem para o nosso sabá.
Seus discípulos urraram de gozo e se uniram, de mãos
dadas, num círculo ao redor da bruxa. A um canto, fascinado, Torg observava tudo atentamente.
Muita coisa acontecera ali, rapidamente, prendendo
sua atenção. Esquecera-se que a noite chegara e que Drácula se levantaria do ataúde e procuraria por ele.
Sua preocupação era o corpo prometido. Pelo que via,
logo sua alma habitaria Ambrósio. Olhou-o com interesse.
Era um belo jovem, vigoroso, másculo, atraente.
Com a fortuna de Drácula em suas mãos, não seria difícil recuperar em pouco tempo os anos todos aprisionados
naquela carcaça podre e repugnante.
***
Saciado, Drácula se afastou do cadáver de Viviana,
enquanto sua discípula avançava, tentando colher as últimas gotas que escorriam da garganta da outra.
O vampiro da noite limpou a boca lambuzada de sangue. A mulher loura se levantou, então, aproximando-se dele e postando-se respeitosamente de joelhos.
Um brilho de maldade tornava seus olhos esbranquiçados assustadores. De sua boca lambuzada de sangue escorregava uma gosma avermelhada, que ela colhia com a
língua, lambendo-se como um animalzinho esfomeado.
Drácula afagou os cabelos de sua seguidora. Não sabia
ainda que destino daria a ela. Poderia lhe servir, atraindo
novas vítimas. Sem a perseguição implacável de um homem como o Prof. Hilgenstiller, o vampiro poderia descansar em paz, escolhendo um local propício, formando uma
legião de vampiros que o serviria fielmente.
Aquela loura afável poderia ser a primeira delas. Mas
onde estaria Torg?
Ergueu, então, a cabeça. Seu ouvido aguçado de morcego humano parecia captar sons tétricos que percorriam
aqueles túneis infindáveis.
Seria o vento soprando uma alegre melodia? Sorriu
saciado e forte. O ódio em seu coração, porém, não havia se
aplacado.
Seu olhar maligno se voltou para o corpo exangue de
Viviana, caído grotescamente junto à parede de pedra. Que
força misteriosa estivera por trás dela?
Procurou, então, pelo medalhão. Estava aberto e o pedaço de pergaminho saltara fora. Era inofensivo, agora que
fora vencido.
Tomou-o nas mãos e o desembrulhou. Leu a palavra
mística que, após um ritual, ganhava a força de proteger
quem a portasse de todo o mal.
Riu, então, satisfeito por perceber que seu poder ainda
era maior sobre a face da terra. Depois, intrigado, voltou a
examinar o pergaminho.
— Seguidores de Satã! — murmurou e sua voz ecoou
lugubremente.
— Como disse, mestre? — indagou a mulher, rastejando servilmente até seus pés.
— Isto — disse ele, mostrando o medalhão e o pergaminho.
— Morgana o deu a sua irmã. Sempre suspeitei que
fosse uma adoradora do diabo — disse a loura.
— Sabe onde achá-la?
— Sim, ela mora...
— Silêncio! — ordenou Drácula, aguçando os ouvidos.
Pelos corredores sombrios, morcegos esvoaçavam assustados, como se algo os houvesse expulsado de seus ninhos.
— Eu ouço! — murmurou o vampiro, quando um frêmito percorreu seu corpo.
A presença do mal, assim como a daquele medalhão
momentos antes, parecia habitar aquelas cavernas. Em algum ponto, tinha sua origem.
Isso intrigou Drácula, da mesma forma como o intrigava não encontrar Torg ali. A noite chegara e o corcunda
sempre estivera presente nesses momentos.
A menos que algo muito mais importante surgisse,
mas nada havia para Torg acima de Drácula. A não ser seu
desejo tolo por um novo corpo.
Um pressentimento demoníaco passou pela mente
perversa do Príncipe das Trevas. Voltou-se e olhou o corpo
de Viviana. A ideia era absurda. Torg jamais ousaria desafiá-lo.
— Fique e proteja meus domínios — ordenou à loura.
— Mestre, sou Conciliata!
— Não, seu nome, agora, será Daura — disse ele, depois foi caminhando na direção de um dos túneis que partiam daquela sala.
A fosforescência maligna o envolveu-o, alterando sua
forma para a de um enorme e asqueroso morcego, que agi-
tou suas asas pontiagudas e desapareceu nas trevas, buscando a direção daqueles sons lúgubres e arrastados.
CAPÍTULO 8
De costas para o altar profano, os discípulos do mal
entoavam cânticos fúnebres, enquanto Morgana despia Sofia e a submetia a sua vontade, obrigando-a a se postar diante do altar, apoiada nas mãos e nos joelhos, numa grotesca posição.
Sobre as costas nuas da garota, Morgana depositou um
cálice de haste retorcido, encimado por metade de um crânio humano.
Velas negras, sobre a pedra, iluminavam agora o ambiente. As tochas haviam sido apagadas. Um cheiro de enxofre parecia vir das entranhas da terra.
— Leonardo! — murmurou Morgana.
— Leonardo! Leonardo! Leonardo! — repetiram os
outros, numa cadência pesada e inquietante.
O pesado volume foi depositado sobre as costas de
Sofia, ao lado daquele cálice. Morgana abriu uma página ao
acaso e recitou:
— Lúcifer!
— Abbadon! — repetiu o coro.
— Bal! Rosierth! Eu vos conjuro!
O coro repetiu suas palavras, abalando as paredes da
caverna, fazendo bruxulear as chamas das velas negras.
Tomando o punhal místico, Morgana traçou um círculo no
ar, na direção de Torg, que estremeceu, sentindo-se abalar
por uma força estranha.
A bruxa se voltou para Ambrósio, caído no chão frio
da caverna, impotente diante de um poder maior que o seu.
Seus músculos se crisparam e ele tentou erguer o rosto.
Os olhos da bruxa cintilaram. Ambrósio cedeu novamente, tombando para o chão.
O coro silenciou. Morgana ofegava, fitando o copo nu
de Sofia. Depois encarou Torg, que olhava fascinado o corpo virgem de Sofia, sonhando momentos em que gozaria
prazeres há muito sepultados dentro de si.
Percebeu, porém que Morgana estava abalada. Não
conseguia entender o motivo, mas aquilo poderia ser perigoso para ela. Ambrósio era um bruxo poderoso. Deitado
como estava, em contato com a terra, seu corpo poderia estar absorvendo novas forças.
Seguramente ele as teria num local como o monte Equillin. Desejou interferir, pedido que Morgana apressasse
o ritual e terminasse logo com tudo.
Um pavor intenso e indescritível tomou conta dele,
quando o morcego enorme penetrou na caverna, fazendo
tremer as chamas das velas negras.
Morgana se pôs em guarda, as unhas prontas para atacar, rangendo os dentes e se descabelando em movimentos
frenéticos. O morcego parecia brincar com ela, girando ao
seu redor, entontecendo-a.
Ambrósio se ergueu, então, livre do domínio da outra.
Olhou Sofia, naquela grotesca posição e seu ódio se agigantou. Ele correu para junto dela e a puxou para si, derrubando os objetos que ela equilibrava a suas costas.
— Pare! — ordenou Morgana, voltando-se para ele.
— Profanou a cerimônia.
Uma gargalhada satânica explodiu na caverna, enregelando o sangue dos discípulos do mal.
A figura de Drácula se metamorfoseou diante deles. O
monstro os encarou um por um. Quando seu olhar fitou o
de Morgana, ela estremeceu, mas se manteve incrivelmente
calma.
Pareceu reconhecer a figura sinistra que vira em suas
visões, ameaçando sua irmã. Olhou Torg, que se encolhera
aterrorizado. Tudo estava claro, portanto.
— Beberei teu sangue, filha do demônio! — prometeu
Drácula, embora se postasse na defensiva.
Conhecia o poder daquela bruxa. Vencê-la era difícil,
mas não impossível.
Morgana ofegou. Falhara em sua missão de proteger a
irmã por culpa daquele nosferato. Sabia, no entanto, como
atacá-lo. Não que estivesse pronta. Mais alguns instantes e
somaria seu poder ao de Ambrósio.
— Espalharei suas cinzas pelas encostas flageladas
deste monte, vampiro.
Drácula gargalhou, tentando abalar a confiança da
bruxa. Morgana se moveu com rapidez, traçando dois círculos no ar. Depois fechou os olhos, enquanto uma cruz de
fogo ardia no centro da caverna.
Drácula urrou, blasfemando e cobrindo os olhos com
os braços. Recuou para a parede, mas a cruz o perseguia.
Todos olharam atônitos a grande cena.
Retorcendo-se e urrando, o vampiro se encolhia, querendo fundir seu corpo à pedra, enquanto o fogo mais e
mais se aproximava, ameaçando reduzi-lo a cinzas.
— Torg! Ajude-me! — berrou ao seu servo.
— Ele jamais o ajudará! — respondeu Morgana. — É
meu discípulo agora. Terá um novo corpo, algo que deseja
acima de tudo agora, maldito. Eu o atenderei e o farei espalhar suas cinzas pelo monte!
— Maldito seja, filho do demônio! A vingança do
Drácula permanecerá eternamente sobre sua cabeça, Torg.
Ajude-me ou lamentará para o resto da eternidade!
Morgana gargalhou, concentrando-se naqueles traços
de fogo que avançavam para o Vampiro da Noite.
Ambrósio, porém, recuperava-se em definitivo. Vendo
Morgana concentrada e de olhos fechados, concentrou-se
no punhal que jazia caído ao lado da bíblia de Satã.
Como que movido por mãos por mãos invisíveis, a
arma se aprumou e se lançou no espaço. Morgana abriu os
olhos no último momento e gritou de dor ao sentir a fisgada
que espargiu seu sangue.
Contorceu-se e se dobrou, agarrando o cabo do punhal
e o puxando. Com horror, percebeu na ponta recurva, o
globo sangrento de um de seus olhos.
Imediatamente a cruz de fogo se desfez. Drácula se
encolheu e seu corpo luziu, como que irradiando luz. No
momento seguinte, em voo rasante, o morcego negro sumiu
por um dos túneis.
— Maldito! Filho de uma megera! — urrou Morgana,
transfigurando-se. — agarrem-no. — ordenou a seus discípulos, que caíram imediatamente sobre Ambrósio, subjugando-o.
Com as mãos atadas, ele foi jogado de joelhos diante
do altar pagão. Morgana o olhou com seu único olho agora.
Da órbita vazia pendia uma confusão de vasos e nervos. Ela
arrancou uma tira de sua veste e improvisou uma atadura,
cobrindo-o.
Com seus poderes, não seria difícil reconstruir seu
rosto. Agora precisava concentrar toda a sua energia na
vingança que absorveria o poder daquele bruxo.
Para tanto, teria de fazê-lo implorar e abjurar Satanás.
Isso não seria difícil, considerando a presença de Sofia.
A bruxa tinha pressa agora. Precisava estar preparada
para a volta do morcego humano. A um gesto seu, seu bando de degenerados caiu sobre o corpo virginal de Sofia.
Lésbicas e maníacos sexuais deram vazão a seus instintos,
sob o olhar desesperado de Ambrósio.
A um canto, Torg tremia. A voz trovejante de Drácula,
jurando maldição e vingança, ainda ecoava em seus ouvidos. Talvez Morgana pudesse superá-lo, mas Drácula não
seria tolo de enfrentá-la num encontro direto.
— Ambrósio, meu adorado! Ajude-me! — suplicou
Sofia, enojada pelas mãos e lábios pegajosos que avançavam sobre seu corpo, devassando-o inteiramente.
— Pare! Pare! — gritou o rapaz, rastejando para os
pés de Morgana, que o olhou em triunfo.
— Abjure Satanás! — ordenou.
— Eu o abjuro. Eu esconjuro as forças do mal, eu esconjuro a minha maldição. Eu não quero ser filho de Leonardo — gritou ele, preso do horror e do desespero.
A bruxa gargalhou, enquanto os gritos de pavor de Sofia silenciavam e apenas o som cadenciado de sua respiração se ouvia, enquanto um homem nu a cavalgava, deflorando-a e a sangrando impiedosamente.
Morgana apanhou o punhal, que ainda trazia em sua
ponta o globo ocular. Limpou-o nos cabelos de Ambrósio,
depois traçou uma série de símbolos no ar.
O corpo dele se contorceu. Seus olhos se arregalaram.
Sua boca espumou raivosamente. Num espasmo maior,
quedou-se imóvel, enquanto Morgana fechava os braços ao
redor do próprio corpo, como se recebesse com prazer algo
etéreo que se elevava do vencido.
Ela suspirou deliciada, depois abriu os braços e encarou Torg.
— Você quer esse corpo? — indagou, apontando o
cadáver imóvel de Ambrósio.
— Sim... — respondeu o corcunda, tremendamente.
— Você o terá! Aproxime-se!
Mal havia dado um passo, Torg estacou, percebendo a
entrada na caverna da garota loura que Drácula havia atacado na noite anterior.
A bruxa também a viu e se pôs na defensiva. Com sua
atenção atraída para a figura ameaçadora que caminhava
lentamente em sua direção, não percebeu a entrada de uma
enorme ratazana, que foi se alojar entre as pedras do altar
profano.
— O que quer? Quem é você? — indagou Morgana,
os braços se alongando diante do corpo.
— Daura! — respondeu a jovem, num tom inexpressivo.
— O que quer?
— Eu não quero. Eu faço — respondeu a vampira.
— Afaste-se ou a destruirei! Afugentei seu mestre e
poso afugentá-la também.
Daura não a ouvia. Continuou se aproximando. Morgana fez um gesto e o punhal macabro avançou no ar, cravando-se no peito da outra, que riu, arrancou-o e o quebrou
como se fosse um graveto, jogando seus pedaços ao chão.
Morgana traçou a cruz no ar e o fogo iluminou os olhos esbranquiçados de Daura, que recuou, cobrindo-os.
Por instantes hesitou, depois se firmou e caminhou resolutamente ao encontro das chamas, que envolveram seu corpo
imediatamente.
Um grito de puro pavor escapou de sua garganta em
chamas, mas ela continuou em frente, movida pelo instinto
de servidão que a ligava a seu mestre.
Morgana estremeceu diante da tocha humana que se
retorcia horrivelmente, mas continuava avançando. Fez um
gesto e pedras voaram para cima de Daura, arrancando pedaços em chamas de seu corpo.
— Afaste-se! — ordenou e um vento sibilante soprou
contra as chamas, apagado-as, mas sem evitar que, num esforço sobrenatural, o cadáver ambulante e deformado de
Daura se jogasse contra ela, enlaçando-a num abraço mortal.
Os discípulos da filha de Satã recuaram, horrorizados.
Presa naqueles braços possessos, a bruxa se debatia, pedindo ajuda, mas imobilizada, afinal.
Náusea e horror abalaram seu corpo. A ratazana se esgueirou das pedras do altar e avançou para ela. A bruxa
tentou se livrar, mas, rápidos e cruéis, os dentes afiados do
animal se cravaram em seu único olho, vazando-o. No momento seguinte, para horror e espanto de Torg, a sinistra e
ameaçadora figura de Drácula surgiu do corpo do rato.
Chamas repentinas voltaram a brotar do corpo de Daura. Morgana rastejou, libertando-se, as vestes em fogo, o
olhar tresloucado. Numa corrida cega, chocou-se contra as
rochas, tropeçando no cadáver de Sofia, blasfemando e urrando desesperadamente.
A ira de Drácula explodiu, então, em todo a sua violência e crueldade, jogando-se sobre Morgana e cravando
suas presas fatídicas no pescoço da bruxa.
O sangue jorrou e Drácula o sorveu avidamente, enquanto golpeava impiedosamente o corpo dela, moendo-o
com sua força descomunal.
Um odor de carnes em fogo dominava a caverna. Os
discípulos da bruxa perceberam a ameaça, afinal, e se dispersaram numa corrida suicida pelos túneis sombrios.
Drácula se ergueu. Gritos de dor e desespero vinham
dos túneis. O morcego humano gargalhou. Um farrapo de
mulher que um dia fora Morgana jazia no chão frio da ca-
verna. Ratazanas se grudavam em seu corpo, arrancando
pedaços sangrentos.
Morcegos esvoaçavam ao redor de seu pescoço, cravando suas presas em busca da veia principal, já rompida,
sugando o que lhe restava de sangue.
Nos corredores, gritos desesperados cessaram, dando a
entender que os outros haviam tido o mesmo trágico destino. O Príncipe das Trevas se voltou, então, para Torg.
Seu olhar destilava cólera e prometia vingança. Sua
crueldade, porém, sabia como puni-lo. Viu o medo estampado nas faces do corcunda. Riu satanicamente, como se
quisesse torturá-lo com a mais angustiante espera.
Voltou-lhe as costas e caminhou até as cinzas do que
fora o corpo de Daura. Olhou-o demoradamente. De alguma forma, estava sensibilizado. Não fosse aquela mulher,
teria amargado uma vergonhosa e definitiva derrota.
Duas lágrimas de sangue formaram-se nos cantos avermelhados de seus olhos. Arquejou num lamento final.
— Torg! — chamou e a ameaça contida em sua voz
apavorou o corcunda.
— Perdão, mestre! — suplicou ele, lançando-se nos
pés do Príncipe das Trevas, o preferido agora de Satã.
— Maldito aleijão da natureza! — rosnou o vampiro.
— Eu estava louco, mestre! Puna-me, mas não me
destrua!
O vampiro sorriu macabramente e olhou o corpo imóvel de Ambrósio. Afastou Torg com um pé e caminhou até
o cadáver. Abriu os braços e, misteriosa e macabramente, o
corpo do bruxo se ergueu, sem expressão, sem vida.
Torg acompanhou com um fio de esperança a ação de
seu mestre. Drácula se voltou para ele, então.
— Você queria este corpo, Torg?
— Sim, mestre.
— Não o acho bom para você, meu fiel servo! — disse
o monstro, caminhando ao redor do corpo imóvel.
Viu, então, caído perto dali, um dos pedaços do punhal. Apanhou-o e se voltou para o corcunda.
— Não gosto desse nariz — disse, golpeando ferozmente o cadáver imóvel.
Sangue coagulado minou do corpo mutilado e Torg
cobriu os olhos com as mãos, percebendo o que Drácula
pretendia.
— Essas orelhas, meu bom Torg — continuou o vampiro.
De olhos cobertos, o infeliz corcunda acompanhou o
silvo da lâmina e ouviu nitidamente os tecidos sendo decepados. Estremeceu. Lágrimas de dor e ódio saltaram de
seus olhos, mas ele sabia que era inútil.
— Finalmente, Torg, esse pescoço não me agrada em
definitivo — berrou o vampiro, golpeando profundamente.
Torg encolheu-se quando algo úmido rolou para junto
de si. Depois ouviu o baque de um cadáver inútil caindo.
Ficou ali, enquanto uma gargalhada satânica se ouvia entre
suas pernas.
Abriu os olhos. A cabeça de Ambrósio zombava dele,
gargalhando escarnecedoramente.
FIM DO LIVRO NONO
DRÁCULA,O PRÍNCIPE DAS TREVAS
LIVRO DEZ
BATISMO DAS FEITICEIRAS
CAPÍTULO 1
Após desligar as luzes, Nara Coletto trancou as austeras portas do prédio e desceu lepidamente a escadaria até a
calçada. Consultou o relógio. Passava das dez e todos os
outros empregados do Centro de Tradições Medievais já
havia ido embora.
Perdera sua carona e teria de caminhar algumas quadras até a avenida onde conseguiria um táxi ou um ônibus
para casa.
O inverno chegava rigoroso para toda a Europa, prometendo nevascas violentas e quedas repentinas de temperatura. O ruído das folhas secas arrastadas pelo vento a assustou.
Apressou o passo. Toda aquela preocupação com a
Grande Festa Medieval teria sua recompensa. Como pri-
meira-secretaria da comissão, receberia o costumeiro um
por cento da renda total.
A cidade toda esperava ansiosamente aquela noite,
quando velhos trajes seriam desenterrados dos velhos baús
e envergados com elegância pelos convidados.
Uma sombra passou diante de seus olhos e ela julgou
que alguma folha, derrubada de uma arvore, viesse ao encontro de seu rosto.
Instintivamente desviou a cabeça para o lado e um
gosto adocicado tomou conta de sua boca, ao recuar horrorizada. Por instante, ficou atônita, contemplando aquela
metamorfose aterradora. Seus joelhos fraquejaram, mas o
instinto de sobrevivência falou mais alto e ela gritou, alto,
rouco, demorado, antes que nova pancada a atingisse no alto da cabeça e ela tombasse desfalecida.
Luzes se acenderam numa janela do outro lado da rua.
A vidraça foi erguida. Um rosto de homem surgia, olhando
de um lado para outro, antes de recolher-se.
O silêncio caiu sobre a rua deserta. O vento continuou
arrastando folhas.
***
Um dos motivos de orgulho de Máximo Seratti era sair à varanda de sua casa, no alto da colina, e observar as luzes da cidade de Roma.
Cofiando seus imensos bigodes, ficava ali embevecido, ao cair a noite, enquanto lá dentro sua mulher lhe preparava a melhor refeição.
Naquele noite, pouco antes de entrar para o jantar,
Máximo ouviu ruídos no curral das ovelhas. A princípio
julgou que seu carneiro reprodutor estivesse em atividade.
Depois, quando ouviu o lascar de madeira, preocupou-se.
— Malditos! — murmurou consigo mesmo, entrando
apressadamente e indo apanhar sua espingarda de caça.
Ao vê-lo municiando a arma, a esposa ficou apreensiva.
— O que foi, Máximo! — indagou, limpando as mãos
no avental.
— Ouvi barulho lá no curral das ovelhas. Garanto como é algum desses invejosos querendo meu carneiro —
respondeu, saindo antes que esposa tivesse tempo de dizer
qualquer coisa.
Engatilhou a arma, Máximo atravessou sorrateiramente o pátio, procurando se ocultar e observar, antes de dar o
próximo passo.
Tudo estava em silêncio. Apenas o vento assobiava
macabramente por entre galhos desfolhado.
Chegou até a cerca e observou atentamente. As ovelhas estavam quietas. Seu carneiro descansava a um canto.
Do outro lado, porém, haviam aberto um buraco na cerca
cuidadosamente construída pelo fazendeiro.
Um sorriso iluminou seu semblante. Desejou que a lua-cheia tivesse nascido. Assim poderia ter uma visão imediata do ladrão.
Esperou pacientemente. O barulho voltou a se repetir e
mais algumas tábuas caíram, assustando as ovelhas. Julgando ter visto um vulto esgueirar-se pela abertura, Máximo se ergueu, levantando a arma à cara.
— Pare, ladrão, amaldiçoado! — berrou, pronto para
atirar.
O vento soprou mais forte, estranhamente, mudando
de rumo e atirando poeira em seus olhos. No momento seguinte, um pesadelo travessão cruzou toda a extensão do
curral, rumando para seu peito.
Quando o percebeu, era tarde demais. A pancada arrebentou ossos e jogou-o para trás, num gemido de dor. Tentou erguer-se, tentou gritar, tentou apertar o gatilho da arma
para alertar a esposa, mas as forças se esvaíram e ele desfaleceu.
O vento continuou arrastando folhas. As ovelhas se
aquietaram. Na varanda da casa, a mulher chamava inutilmente o nome de Máximo.
***
Nicola D’Anunzo dirigia um dos mais estranhos estabelecimentos da cidade. Sua loja possuía, espalhados pelas
prateleiras empoeiradas, os mais exóticos artigos, de um
simples talismã contra mau-olhado até os mais perigosos
ingredientes de feitiçaria e magia negra.
Naquela noite, após haver verificado seu estoque e
constatado a falta de certa essência do Tibet, ele se sentou
diante da máquina registradora e verificou a féria do dia.
Fora fraca. Dia a dia decaía a procura pela sua mercadoria. Os italianos pareciam mais interessados em armas ou
pornografia do que no culto do sobrenatural.
Houvera um tempo em que aquilo fora um bom negócio. Nicola há muito vinha hesitando entre continuar com
aquilo ou aposentar-se com o que havia acumulado ao longo dos anos.
Alguém bateu na porta o fez deixar o dinheiro e se levantar. Armou-se de um facão. Com tantos assaltantes cometendo os crimes mais bárbaros, era sempre bom estar
preparado.
— Quem é?
— Preciso de uma porção de mandrágora! — disse
uma voz cavernosa do outro lado.
Os olhos do comerciante brilharam. A mandrágora escasseava. Poderia ser um bom negócio.
— Vamos embora! Estou com pressa — disse a voz
do outro lado, com certa impaciência.
— Está bem, é só um minuto — disse, enquanto soltava o trinco e girava a chave.
A impaciência do comprador deveria ser muita, pois
não esperou que o comerciante abrisse de todo a porta.
Empurrou-a violentamente, fez Nicola recuar alguns passos.
Instintivamente o homem ergueu o facão. Ao encarar
o que tinha diante de si, no entanto, percebeu que toda e
qualquer reação seria inútil.
Lágrimas vieram a seus olhos. Ele caiu de joelhos.
Seus dedos perderam a força e o facão bateu contra a madeira do assoalho,
Nicola levantou os olhos. Pensou em suplicar, em oferece tudo que tinha, mas as palavras morreram em sua garganta. Uma negra mão estendeu-se apanhou o facão.
— Padre nosso que estás... — começou Nicola, com
voz trêmula, mas não foi adiante.
O fio da lâmina cantou lugubremente e o sangue se
espargiu sobre a madeira e contra o vidro de um balcão
próximo. A cabeça rolou macabramente pelo assoalho. Os
olhos esbugalhados revelavam o terror.
***
Sentada a um canto do Salão, em companhia de seu
pai, Suzanah Gantry observava todos os movimentos da
irmã, a loura e estonteante Vanessa Gantry, rodeada, como
sempre, de inúmeros admiradores.
Além daquele ar de timidez e introspecção de seu rosto, havia um brilho acentuado de inveja. A maneira como
os homens eram atraídos pela beleza e pelo encanto de Vanessa aborrecia Suzanah e a fazia odiar-se por ser como era.
Vanessa tinha tudo, pois sabia como conseguir o que
queria, fosse um presente especial de seu pai ou algo emocionante de um homem.
Suzanah jamais poderia ser como ela, apesar de, em
sua beleza, quase se igualar à irmã. Faltava-lhe a agressividade, talvez, que sobrava em Vanessa.
Sempre fora daquela forma. Vanessa sempre demonstrara possuir algo mais. Talvez coragem, talvez o brilho inquieto dos olhos faiscantes ou o modo envolvente e persuasivo de falar que cativava e escravizava.
— Vamos embora, pai? — indagou, incapaz de assistir por mais tempo à apresentação sempre impecável e quase escandalosa de Vanessa.
— Ora, filha! Só mais um momento. Vanessa está se
divertindo tanto. Por que você não a acompanha?
Suzanah abaixou a cabeça e um brilho forte e assustador passou por seu olhar. Ela respirou fundo, torcendo nervosamente as mãos.
Fixou-se, então, naquele incomodo sinal negro em seu
pulso, semelhante às asas de um morcego. Distraiu-se com
ele, embora o detestasse.
Além de ser um ponto insensível de seu corpo, aquele
sinal a envergonhava, pois fatalmente atraía a curiosidade
de quem a visse.
Chagara a comentar isso com seu pai, mas ele evitou o
assunto tão rispidamente que a desencorajara em definitivo,
como se quisesse esconder algo ou manter um segredo que
o desgostava.
Suzanah sabia que não era uma marca de nascimento.
Adquirira aquilo depois, talvez em sua infância. Por mais
que se esforçasse, no entanto não conseguia se lembrar.
A única coisa de que se lembrava era de uma tênue ligação entre o sinal e uma figura feminina que habitava o
fundo de seu cérebro e lhe surgia, às vezes, em sonhos de
que não se lembrava em detalhes.
Juraria, porém, que entre ela e aquela imagem de mulher havia uma afinidade profunda e estranha. Talvez fosse
sua mãe, mas não conseguia se lembrar dela também.
Por um motivo que jamais esclarecera. Amos Gantry,
seu pai, havia destruído todas as recordações da falecida
esposa.
— Suzanah, venha conosco, querida! Billy vai nos
cantar alguma coisa, acompanhando-se ao piano — disse
Vanessa, aproximando-se rodeada de seus admiradores.
— Eu... Eu agradeço, mas prefiro me recolher. A viagem foi cansativa e... Bem, amanhã temos um programa agitado e...
— Indecisa como sempre, irmãzinha. Seja como você
quiser, então — descartou Vanessa, afastando-se com sua
legião de fãs.
Amos Gantry a observava se afastar com um sorriso
embevecido nos lábios, depois voltou os olhos para Suzanah e a fitou com certo aborrecimento mal disfarçado.
— Quer ir então? — indagou.
— Sim, pai — confirmou ela, levantando-se.
Momentos depois, após haver informado Vanessa,
Amos a acompanhou até a saída do luxuoso restaurante,
onde todo o pessoal da excursão se encontrava.
Suzanah caminhava à frente dele, sentindo que sua atitude estragava-lhe a noite. Podia sentir o humor de seu pai.
Podia sentir o humor de Vanessa. Podia ler os pensamentos
de qualquer pessoa.
Tudo era vago, indefinido, mas era como se sentisse as
mesmas sensações dos outros ou como se captasse essas
sensações vagamente.
— Eu detesto saber que estraguei sua noite, papai —
disse ela, quando o ar frio da noite os envolveu. — Posso
caminhar até o hotel, é aqui perto.
— Não, eu a acompanho — afirmou Amos, embora
sua voz traísse certa rispidez que não incomodava mais a
garota.
— Ora, papai, por favor! Pensa que não vi os olhares
da viúva Wallace?
Amos ruborizou e pigarreou, mas não pode impedir
que um sorriso maroto viesse a seus lábios.
— Vamos, fique e divirta-se — insistiu Suzanah. —
Eu estarei bem. Amanhã cedo estarei pronta para as atividades — disse voltando-se e encarando-o.
Amos esboçou um sorriso sem significado e tomou
uma das mãos da garota entre as suas, acariciando-a. Ao tocar aquele ponto negro do pulso, no entanto, retraiu-se rapidamente.
Sua atitude não surpreendeu a garota, embora servisse
para constrangê-los.
— A noite está maravilhosa, papai. Divirta-se! — recomendou ela, afastando-se no meio da noite.
Amos ficou olhando a filha caminhar rapidamente pela rua quase deserta, depois sorriu, suspirou e retornou ao
luxuoso salão.
***
A gargalhada satânica fez gelar no corpo da garota,
que se ergueu aturdida, tentando manter o corpo coberto
em meio às tiras a que se reduziam suas roupas.
Olhou ao seu redor. Um grito brotou de sua garganta
ao encarar o rosto zombeteiro e repugnante de um corcunda. A mão pesada de Torg se abateu sobre o rosto dela, jo-
gando-a para trás, sobre uma arca medieval, recoberta de
metal.
— Por favor! O que deseja de mim? — indagou ela,
limpando o sangue que escorria de seus lábios feridos.
Torg riu sadicamente. A maciez daquele corpo, cedendo deliciosamente à força de suas pancadas provocava
um prazer intenso animalesco, desumano.
Ele avançou para ele novamente. Nara Coletto recuou,
tropeçando num amontoado de correntes enferrujadas e caindo sobre uma prancha coberta de velhas manchas de sangue.
Torg a dominou, segurando seus pulsos e colando seu
corpanzil ao dela. Esfregando-se voluptuosamente, procurando encaixar-se entre as coxas que se debatiam.
Nara debateu-se, suplicando. Num impulso irresistível, Torg colou seus lábios aos dela e mordeu impiedosamente, arrancando um naco de carne.
Nara gritou horrorizada e o som de seu grito ecoou inutilmente pelo calabouço escuro. O corcunda gargalhou,
extravasando sua volúpia assassina. Suas mãos se concentraram ao redor do pescoço da jovem e ele apertou-o até
senti-la estrebuchar.
Soltou-a em seguida e ficou vendo seu corpo deslizar
para o piso frio das pedras do calabouço. Nara tossiu espasmodicamente, agitando-se debilmente.
Torg olhou, então, a bolsa que tomara dela. Estava sobre uma estranha cama, cujo colchão era construído de cravos pontiagudos e de cujas extremidades pendiam velhas
algemas enferrujadas.
Sob a luz macabra dos archotes, ele capengou até lá e
abriu-a. Um envelope caiu a seus pés e ele se abaixou para
apanhá-lo. Abriu-o e examinou seu conteúdo. Um sorriso
de satisfação passou por seus lábios frios e cruéis.
Virou-se para a garota, que, de joelhos, refletia o terror nos olhos esbugalhados e no rosto lambuzado de sangue.
Caminhou para ela e ela pressentiu o pior, encolhendo-se instintivamente.
Uma sombra avançou pelo corredor e desembocou na
antiga sala de torturas. Torg estacou ao observar Drácula.
Os olhos dilatavam-se ao cheiro de sangue que dominava o
ambiente sinistro.
Em suas mão o Príncipe das Trevas trazia uma caixa
de metal. Torg olhou-a sem entender, mas podia adivinhar
que a diversão de sua noite estava irremediavelmente comprometida por algum plano do vampiro.
— Conseguiu o que pedi? — indagou Drácula.
— Sim, há mais do que o suficiente — apressou-se em
responder o corcunda.
Drácula avançou até Nara e a encarou sem piedade.
CAPÍTULO 2
Alessandro Garbo depositou sobre a mesa sua garrafa
térmica, o embrulho com alguns sanduíches e um livro.
Depois foi até seu armário, apanhou o coldre e afivelou-o
ao quadril.
Aproveitando para mais uma olhada ao espelho. Consertou o boné, piscou um olho e sorriu convencido. Uma
porta se abriu atrás dele e, pelo espelho, viu seu amigo se
aproximar.
— E daí, Nuno, tudo tranquilo neste museu? — indagou.
— Apenas as múmias estão um pouco inquietas — riu
o outro, passando-lhe a arma e um chaveiro de onde pendiam todas as chaves das portas principais do prédio.
— É preciso avisar o diretor para que trate de eliminar
os pombos no telhado — disse-lhe o amigo, após guardar o
seu coldre no armário.
— O barulho o assusta? — riu Alessandro.
— Não, mas incomoda. Dá a impressão de que há alguém caminhando pelo forro.
— Deixe comigo! Se quiser um café, aproveite. Está
quente. — disse.
— Não, vou embora agora mesmo. Há alguém a minha
espera — sorriu o outro, ajeitando os cabelos.
— Loura ou morena?
— Moreníssima — disse o outro, acenando um adeus
e saindo.
Alessandro esperou até que ouvisse o girar da chave.
Depois deixou o vestiário, girando o chaveiro em suas
mãos. Mal havia dado alguns passos pelo corredor sombrio,
ouviu um barulho acima de sua cabeça.
Ergueu os olhos, prendendo a respiração. Pombos não
vinham tão longe.
Instintivamente sua mão pendeu na direção do coldre
e ele soltou a trava que prendia a arma. Tudo ficou em silêncio, porém.
— Talvez tenha se desgarrado — conjeturou, em voz
baixa, continuando em frente.
O barulho se repetiu. Era como se alguma coisa o acompanhasse, caminhando sobre o forro. A madeira rangia
e estalava.
— Diabos! — praguejou ele, olhando para cima.
A alguns metros dali, em linha reta pelo corredor, havia um alçapão. Alessandro sabia que encontraria uma escada no vestiário, assim como uma potente lanterna. Hesitou por instantes, depois girou nos calcanhares.
Apanhou a escada e retornou ao corredor, procurando
caminhar sem ruído. Seus músculos estavam tensos, mas
sabia que não seria uma noite tranquila se não investigasse
logo a origem daqueles ruídos.
Firmou a escada sob o alçapão, no exato momento que
qualquer coisa arranhava a madeira de sua cabeça. Estremeceu.
Verificou se a escada estava firme, depois começou a
subir lentamente os degraus. Quando teve o alçapão ao seu
alcance, empunhou a arma numa das mãos e a lanterna no
outra.
O ruído se repetiu. Alessandro engatilhou a arma e
empurrou o alçapão. O facho de luz foi bater contra um
emaranhado de fios elétricos e teias de aranhas.
Um silêncio mortal reinou no corredor. Alessandro adiantou um pé e começou a ergueu lentamente o corpo, enquanto, com a lanterna procurava iluminar o interior escuro.
Um estalo o fez girar os olhos e, com espanto, viu a
tampa do alçapão descer violentamente sobre sua cabeça,
atordoando-o.
Seu corpo despencou pela escada estatelando-se no piso frio. Logo em seguida, um vulto negro e sinistro saltou
sobre ele.
Alessandro ouviu o estalar dos ossos de suas costelas,
antes de desfalecer. Por algum tempo tudo foi trevas em
sua mente. Quando recobrou a consciência, ergueu-se dolorosamente.
Havia silêncio no interior do museu. Um filete de sangue descia pelo seu rosto. Ele apalpou a cabeça ferida, depois procurou sua arma e a lanterna.
Havia um disparador de alarme logo adiante. Cambaleou naquela direção, mas estacou quando dois vultos encapuzados deixaram rapidamente uma sala.
A surpresa o paralisou. Uma das sombras ergueu a
mão, onde faiscava um punhal antigo.
— Não com esse! — Alertou uma voz cavernosa.
Alessandro não entendeu e jamais teve tempo de entender. Apenas viu a lâmina brilhante e fria rumar em sua
direção, depois o sangue escorrer pelo seu peito.
***
A garota estava nua estendia sobre a prancha enegrecida. A fumaça desprendida dos archotes, mesclada ao mofo e à podridão daquela sala de torturas, fazia exalar um
cheiro nauseabundo e repugnante.
A um canto, Torg assistia àquele estranho ritual. Jamais vira Drácula agir daquela forma. Não ousará questionar, no entanto, as intenções de seu mestre.
Por instantes, porém, revoltou-se contra as atitudes do
príncipe das Trevas. Drácula lhe pedira que conseguisse os
malditos convites e ele o fizera. Por que não deixar, então,
que Torg se divertisse com a garota?
—Venha cá — disse Drácula, sem olhá-lo.
O corcunda coxeou rapidamente para junto dele.
— Sim, mestre.
— Segure isso — disse o vampiro, passando-lhe um
punhal de prata.
Torg estranhou a ordem, mas não hesitou em obedecêla. Drácula rugiu e espasmos abalaram seu corpo. Seus olhos chamejaram, injetados e arregalados. Sua boca se abriu
e as presas enormes se sobressaíram.
Resfolegando animalescamente, o monstro debruçouse sobre a garota, agarrando-a pelos cabelos e torcendo-lhe
a cabeça para o lado.
Sua língua fétida lambeu o pescoço delicado, antes
que os caninos aguçados se cravassem nas carnes tenras de
onde o sangue borbulhou, vermelho e vivo.
Ruídos esganados e desagradáveis dominaram o tétrico aposento, enquanto Drácula se contorcia sobre o corpo
da jovem, sugando gota após gota, num festim macabro.
Quando terminou, a palidez havia coberto a pele acetinada. O vampiro se voltou para o corcunda. O sangue
lambuzava seus lábios, escorrendo para o seu queixo. Uma
expressão delicada transformava seu rosto numa máscara
amedrontadora e repulsiva.
Torg estremeceu, fitando aqueles olhos com faiscar de
fogo infernal. Drácula apanhou a estranha caixa de metal e
derramou seu conteúdo numa espécie de banheira medie-
val, onde, com certeza, eram torturados por afogamento os
infelizes que caíam naquelas masmorras.
— Corte! — ordenou, então, estendendo os pulsos para o corcunda.
Torg balançou pateticamente a cabeça disforme, sem
compreender a ordem.
— Corte! — rosnou Drácula, numa ordem ameaçadora.
Tremulamente o fio da lâmina pousou sobre um dos
pulsos. Torg ainda olhou direto nos olhos do vampiro, antes de empurrar e puxar com força o punhal.
O sangue jorrou, enegrecido, apodrecido, fétido, das
veias dilaceradas.
— É o bastante! — disse Drácula, estendendo o braço
sobre a banheira macabra e fazendo seu sangue se misturar
às cinzas malcheirosas que jogara lá dentro.
Uma nevoa sobrenatural começou a se elevar da banheira. Torg compreendeu, então, o que seu mestre pretendia, mas não sabia a quem ele pretendia ressuscitar.
Observar atentamente. Sob a névoa, um vulto começou a se delinear. Primeiro os contornos delicados das pernas, depois arredondados dos quadris e afunilados à cintura. Além disso, a névoa parecia mais espessa e confusa,
mas o olhar penetrante de Drácula revelava satisfação.
— Ela está de volta — murmurou.
Torg observou, então, que uma palidez cadavérica e
perigosa cobria o rosto de Drácula.
— Mestre — ousou ele.
— Eu sei — cortou-o a besta preferida de Satanás, apanhando um tira do que fora as roupas de Nara Coletto e
envolvendo rapidamente o pulso ferido.
— Quem é ela, mestre? — Indagou Torg, quando percebeu que um vulto de mulher se delineara contra o fundo
da banheira macabra.
— Daura! — rosnou o vampiro, os olhos brilhando de
satisfação.
***
Suzanah deixou de lado o livro e apanhou o telefone.
Ligou para a copa e pediu um lanche. Depois consultou o
relógio. Vanessa ainda não retornara e, com toda certeza,
seu pai também não.
Já era madrugada, mas, apesar do cansaço da viagem,
não se sentia com sono. Havia qualquer coisa no ar, inquietando-a, perturbando-a.
Aquela vinda a Roma sempre fora um sonho para ela.
Sua mãe era italiana, era uma das poucas coisas que sabia
sobre ela.
Voltar à terra de sua mãe produzia uma enorme inquietante dentro de Suzanah. Ela queria visitar os locais onde
sua mãe residia. Observar os prédios onde brincara, respirar
o ar que ela respirara.
Talvez nisso estivesse a explicação para aquela sensação incomoda que não a deixava adormecer. Levantou-se,
caminhou um pouco pelo quarto, parou junto à janela e ficou observando as ruas vazias, antes de voltar ao livro.
Batidas na porta indicaram que seu lanche estava chegando. Foi atender. Um garçom sonolento empurrou o carrinho, depois acomodou o prato e travessa sobre a mesa ao
lado de um espelho.
Suzanah estendeu a mão para descobrir o lanche apetitoso que lhe fora servido. A manga do roupão deslizou e o
sinal negro se mostrou aos olhos do rapaz, que estremeceu
e, pelo espelho observava a garota.
Suzanah teve um pressentimento e ergueu os olhos.
— Algo errado? — indagou.
O rapaz baixou o olhar, fixando no sinal do diabo ao
pulso da garota. Ao perceber o que chamara a atenção dele,
Suzanah encolheu o braço, ocultando a marca.
— Eu agradeço sua gentileza, agora pode ir — disse,
secamente.
O rapaz hesitou, como se aquela marca houvesse provocava sua imaginação ou chocado sua sensibilidade.
— Eu disse que pode ir — falou a jovem com firmeza
e rispidez.
— Sim, claro — murmurou ele, retirando-se e empurrando o carinho.
À porta, porém, ele estacou e se voltou, olhando-a nos
olhos de um modo que a fez estremecer.
— Faz parte daquela excursão de americanos, não? —
indagou.
— Sim, algo que o interessa?
— Terão a tarde livre amanhã. Por que não visita o
parque de diversões na Praça Da Vinci? Tenho certeza que
encontrará algumas respostas na cartomante da primeira
barraca ao lado do lado — afirmou o rapaz, saindo para o
corredor.
— Espere! — pediu ela, confusa. — Que tipo de respostas?
— Não sei quais suas perguntas — respondeu ele, olhando o braço que se apoiava ao batente da porta.
Aquele sinal negro e assustador parecia ganhar um
significado especial para ele e isso instigou a curiosidade
da garota.
***
O carro avançou lentamente pela rua deserta estacionando finalmente, diante de um prédio de apartamentos. O
homem ao volante desligou a chave e as luzes, depois se
voltou para a jovem ao seu lado.
Passou os braços pelos ombros dela, depois puxou-a
para si, prendendo seus lábios num beijo demorado e voluptuoso. Sua mão livre foi pousar sobre os joelhos dela, iniciando uma carícia envolvente e provocante.
Ela suspirou, quando ele afrouxou o braço. Seus olhos
lânguidos e delicados se alongaram pela rua, depois se fecharam lentamente e sua cabeça pendeu na direção do ombro dele.
Um ruído sibilante quebrou o silêncio. A garota abriu
os olhos e encarou o namorado. Ele a olhava igualmente intrigado.
— O que foi isso? — quis saber ela.
— Não sei... Acho que o vento... — conjeturou ele,
inclinando-se para frente para olhar através do para-brisa.
A porta ao seu lado se abriu repentinamente e um braço feminino de unhas negras e longas estendeu-se, agarrando-o pelo pescoço e puxando-o para fora com incrível força.
A garota ao seu lado se ergueu, atônita e horrorizada.
O vidro ao lado foi quebrado e a mão forte e fria de Drácula se estendeu, agarrando-a pelo pescoço e puxando-a.
O corpo e as roupas rasgaram-se contra os estilhaços
do vidro e, com um olhar de impotência e súplica ela encarou o rosto diante de si.
Presas alongadas se sobressaíam sobre os lábios finos
do vampiro. Sua respiração era apressada e opressiva. Seu
hálito era fétido, insuportável.
— Deus! — gaguejou a garota.
Uma gargalhada satânica explodiu aos seus ouvidos,
arrepiando-a. Um facho de luz repentino bateu em cheio
naquele rosto monstruoso.
— O que está havendo aí? — indagou o porteiro, alertado pelo barulho dos vidros quebrados.
Drácula encarou-o fuzilando. O homem estremeceu e
persignou-se antes de sacar uma arma e apontar direto para
o corpo do vampiro, que lhe voltou as costas e observou o
que acontecia no meio da rua.
Um vulto de mulher se debruçava sobre um homem e
seus lábios se colavam voluptuosamente ao pescoço dele. O
disparo ecoou pela rua, assustando-a.
Drácula se voltou para o porteiro, que observava estarrecido. Daquela distancia jamais poderia ter errado. Drácula rosnou ameaçadoramente e se inclinou apanhando o corpo da garota e erguendo-o com incrível facilidade.
O porteiro tentou correr, mas o arremesso o atingiu
nas costas. Ele caiu, horrorizado, ante o peso da garota, que
estremecia convulsivamente, como se estertorasse.
— Daura! — chamou o vampiro.
Ela ergueu o rosto para ele. Seus cabelos dourados oscilavam ao vento. Sua boca lambuzada de sangue esboçava
um sorriso satisfeito. Seus olhos esbranquiçados luziam
macabramente.
A um gesto de Drácula, ela o seguiu e as sombras da
noite os envolveram. Algum tempo depois, diante dela,
Drácula a tomou nos braços, olhando-a longamente.
Depois beijou-a sofregamente, fazendo-a regurgitar.
Com indizível satisfação, o vampiro colheu em sua boca o
vômito sanguinolento e morno.
CAPÍTULO 3
O policial fez um sinal para a ascensorista, depois correu até o elevador. A garota sorriu-lhe enquanto pressionava o botão de um dos últimos andares, onde se localizava a
seção de homicídios e latrocínios.
Rocco, postado logo atrás dela, aspirou o suave perfume e, por instantes, admirou os contornos roliços e firmes
das nádegas comprimidas na calça justa do uniforme dela.
— Chegamos, tenente — sorriu ela, quando a porta se
abriu.
— É uma pena — murmurou ele, saindo, após esbarrar
provocadoramente nela.
Ela ficou observando o policial caminhar até a porta
de sua sala antes de fechar a porta.
Quando entrou em seu gabinete, Rocco viu seu assistente sentado diante da escrivaninha. Sobre ela, algumas
pastas novas, o que indicava que o plantão noturno fora agitado.
Antes de iniciar suas atividades, foi até uma mesa ao
canto e serviu-se de café. Retornou, então, sentando-se.
Encarou o subordinado.
— Péssima noite, não? — comentou, contando as pastas sobre a mesa.
— Realmente! Nem tudo está aí, porém, como deve
saber. Separei os casos que iam lhe interessar.
— E o que há de interessante neles?
— Tudo parece preparado para a festa de depois de
amanhã — respondeu o assistente.
— Eu sei — suspirou o tenente, terminando a xícara
de café e procurando um cigarro.
Tragou demoradamente, antes de apanhar as pastas.
Observou com desanimo os títulos anotados. Tudo lhe parecia semelhante ao anos anteriores.
— Mas o que temos aqui? Alguma verdadeira novidade? — indagou, abrindo a primeira delas.
— O clássico caso de desaparecimento de Nara Coletto. Só que, dessa vez, ela não voltou mesmo. Desapareceu
ontem a noite e...
— Não voltou? — indagou o tenente, intrigado.
— Estranho, não? — disse Carmine, com verdadeira
ironia.
Rocco deixou de lado aquela pasta e apanhou a seguinte, apenas folheando-a diante dos olhos sem lê-la.
— O carneiro também foi roubado, como das outras
vezes. Posso descrevê-lo. Ativo, de boa linhagem e branco,
com chifres bem formados — disse Rocco, jogando a pasta
sobre a mesa.
Esmagou, em seguida, seu cigarro no cinzeiro, depois
encarou seu assistente.
— Posso descrever os outros casos, sem ao menos olhar para essas pastas — disse. — Uma loja de artigos místicos foi roubada e também o museu. Tudo como nos anos
anteriores, sem mudança alguma...
— Engano seu, Rocco — disse Carmine, olhando-o
com interesse. Durante os três roubos de ontem à noite, três
pessoas morreram — falou Carmine, observando-o sempre.
A testa de Rocco vincou-se e ele encarou com seriedade o outro. Depois apanhou as pastas e leu-as com maior
atenção. Um fazendeiro, o proprietário de uma loja de artigos místicos e um vigia do museu todos mortos de maneira
cruel e impiedosa.
Aquilo fugia ao padrão dos anos anteriores, Rocco sabia que tudo sempre fora obra de um bando de inconsequentes. Aquela maldita festa provocava-lhes a imaginação
e todos queriam abiscoitar o primeiro prêmio pela mais original apresentação.
Assim, roubavam tudo que pudesse contribuir para isso. Muita coisa já acontecera e muita ainda aconteceria.
Haveria pequenos furtos que nem seriam denunciados, mas,
na verdade, aquela festa era uma espécie de dor de cabeça
anual da polícia romana.
Jamais, porém, houvera algum caso de morte. Mesmo
Nara Coletto jamais fora molestada durante todos aqueles
anos em que trabalhava na comissão organizadora.
Rocco sabia que ela costumava levar consigo na bolsa
alguns convites e, não raro, era assaltada por interessados
em comparecer ao grande acontecimento.
Fazia parte da tradição. Os ladrões seriam reconhecidos depois, já que seus convites eram marcados. Mas, anos
após anos Nara jamais fora molestada e ninguém saíra ferido.
— Quero um levantamento em todas as seções de tudo
aquilo que possa ter relação com a festa. Depois iremos visitar alguém na comissão organizadora. Talvez alguma coisa lhes tenha fugido ao controle — declarou o policial.
***
A luz do dia jamais penetrava no aposento úmido. O
ar não se renovava, parecendo acumular-se com o passar
dos séculos, conservando no cheiro o terror de muitas mortes violentas e cruéis.
Os archotes queimando jogavam uma luminosidade tétrica sobre os aparelhos antigos e enferrujados. Espalhados,
como lembranças de um tempo de horror, fragmentos de
esqueletos apodrecidos, quase desfeito em pó, constituíam
uma decoração macabra.
No silêncio quebrado pelo guinchar de velhas ratazanas, Torg observava o corpo desnudo da garota coberto de
uma palidez cadavérica, contendo a custo seu apetite animalesco e mórbido.
Passado o terror e na rigidez da morte, o rosto da garota ostentava uma calma impressionante, quebrada apenas
pela deformação produzida em seus lábios com a mordida
cruel do corcunda.
Uma ratazana veio lamber-lhe os lábios dilacerados.
Torg apanhou uma clava, de massa coberta de cravos pontiagudos, arremessando-a com incrível precisão.
O animal rolou pelo chão imundo e fugiu, escorraçado, deixando uma trilha de sangue.
— Bela! — rosnou Torg, passeando o olhar pelo corpo bem torneado da mulher, concentrando-se à altura do
coração, agora imóvel, estático, sem vida, sem pulsações e
sem sangue.
Deveria arrancá-lo e saboreá-lo, como rezava a sua
maldição. Mas a garota era bela e, ao mesmo tempo, deformada agora.
Jamais um homem olharia para ela sem asco ou repulsa, da mesma forma como mulher alguma jamais olharia
Torg. Havia um macabro elo entre os dois.
Lentamente o corcunda se ergueu e se aproximou do
cadáver, fitando as marcas malditas em seu pescoço. Se o
coração não fosse extirpado, ela retornaria como um nosfe-
rato, criatura da noite como Drácula, com seu apetite estranho e aterrorizante.
— Companheira! — resmungou o corcunda inclinando-se para o corpo.
Sua mão nodosa e áspera acariciou os contornos macios e delineados dos seios dela, depois o ventre achatado e
os quadris provocantes.
Suas unhas sujas arranharam com malícia o triângulo
sedoso, concentrado acima da feminilidade escancarada na
grotesca posição em que fora deixada, após a morte.
Com um carinho repentino. Torg acomodou o corpo,
cruzando as mãos sobre o peito. Voltou-se à procura da
bolsa da garota.
Foi rebuscá-la. Encontrou o que procurava. Era o documento de identidade de Nara Coletto. Torg leu com interesse o local de nascimento da garota.
Conhecia a vila, não muito distante de Roma. Poderia
ir até lá e retornar antes do escurecer, trazendo o necessário, já que a garota não contaria com a proteção de Drácula,
como acontecia com Daura.
Ao pensar em seu mestre, hesitou. O príncipe do Mal
talvez não concordasse com aquilo. Era um risco calculado.
Torg não suportaria por mais tempo aquele desejo insatisfeito. A presença de uma companheira poderia amenizar a
espera.
Decidiu-se, então. Tudo que precisaria era um bom ataúde e um punhado de terra da localidade onde Nara nascera. Poderia conseguir tudo aquilo naquela tarde.
***
Suzanah pensou nas palavras do camareiro, na noite
anterior.
Tinha a tarde livre. Sua irmã Gantry, seu pai, já traçara
seus planos para aquela tarde romântica em Roma.
Apenas Suzanah restara, só em seu quarto de hotel,
hesitando. Aquele sinal negro em seu pulso a inquietava,
principalmente após a chegada à cidade.
Havia qualquer coisa no ar, como segredos sussurrados, como perguntas cujas respostas precisavam ser decifradas na passagem inquietante das brisas frias.
Apanhou a bolsa, finalmente, e desceu para o saguão
do hotel. Talvez fizesse algumas compras nas lojas próximas dali.
— Quer um carro, senhorita? — indagou-lhe uma voz
que reconheceu imediatamente.
— Não... — respondeu de imediato, enquanto o rapaz
continuava parado ali, com uma atitude respeitosa e, ao
mesmo tempo, impaciente.
— Vai ao parque de diversões, senhorita. Por que não
vai até lá?
— Eu não gosto de...
— Mas precisa ir — cortou-a ele, incisivo.
— E por que preciso ir?
— Isso não a intriga? — indagou ele, apontando para
o pulso dela.
Num gesto instintivo, Suzanah cobriu o sinal negro
com a outra mão. O rapaz esboçou um sorriso, depois saiu
para a calçada e fez um sinal. Imediatamente um táxi avançou, estacionando diante do hotel.
O camareiro abriu a porta e inclinou-se, numa reverencia prolongada, que só terminou quando Suzanah cedeu,
finalmente, ao convite.
Assim que entrou, o rapaz fechou a porta e olhou-a
com um sorriso satisfeito nos lábios.
— Ao Centro de Compras — ordenou ela ao motorista.
Suzanah não conhecia a cidade, mas recebera a necessária orientação dos guias para saber onde encontrar o Centro de Compras.
Quando o motorista tomou um rumo indefinido, fugindo ao roteiro esperado, ela se alarmou.
— Não é esse o caminho — disse, esforçando-se em
seu melhor italiano.
— Vou levá-la onde deseja ir, senhorita — respondeu
o motorista, olhando-a por instantes pelo retrovisor.
O olhar dele a fez estremecer. Havia qualquer coisa de
assustador naqueles olhos sem expressão, frios e sem vida.
Ela encolheu-se em seu assento e, por instante, algo relanceou por sua mente.
— O parque de diversões — murmurou, ao perceber,
após, uma esquina, os enormes aparelhos em movimento,
cheios de um colorido infantil e extasiante.
Algo dentro dela, porém, encolheu-se, como se estivesse preste a encarar algo de que vinha fugindo há muito
tempo.
O carro parou, finalmente, diante da entrada, representada pela cara de um palhaço, de boca escancarada, por onde adultos e crianças avançavam sorridentes, portando balões coloridos e flocos de algodão-doce.
O motorista inclinou-se para trás e para o lado e puxou
o trinco, abrindo a porta. Suzanah estremeceu mais uma
vez, hesitando.
— Vá! — ordenou ele.
Rapidamente ela saltou do carro, então, depois o viu
partir antes que pudesse pegá-lo. Voltou-se e encarou a entrada do parque.
Tudo era muito alegre e colorido. Nada havia que pudesse assustar alguém, mas, dentro dela, aquele pressentimento provocava calafrios cada vez mais intensos.
Avançou, então, lentamente. Momentos depois estava
junto ao lago, que dividia o parque em duas seções distan-
tes. De um lado os carrosséis, rodas-gigantes e outros aparelhos; do outro lado, barracas sucessivas, de shows exóticos e promessas fantásticas.
Dessa vez não hesitou. Qualquer coisa parecia empurrá-la na direção da primeira barraca.
***
Rocco estava cansado de tantas asneiras e absurdos
cometidos na cidade, com ligação direta à festa medieval.
Desde pequenos furtos até delitos graves, como os últimos assassinos, tudo indicava que, pela primeira vez, algo
perigoso e de grande proporções poderia acontecer naquela
festa.
— E então, tenente? Satisfeito com o resultado? — ironizou seu assistente.
— Cale a boca, Carmine! — resmungou o tenente, de
mau humor.
Carmine sorriu, apenas, depois acendeu um cigarro.
Através da fumaça, observava o rosto do tenente. Uma pergunta dançava em sua cabeça e lá estivera ao longo de todo
o tempo em que trabalhava para ele.
Muitas vezes estivera preste a fazê-la, mas evitara-o
no último instante, lembrando-se dos alertas de amigos
mais velhos no departamento.
Na verdade, porém, jamais conseguira entender o interesse do tenente pela festa medieval. Durante alguns dias
por ano ele se esquecia de que seu departamento era de
homicídios e se entregava como um louco à tarefa de entender aquele acontecimento.
Parecia procurar alguém ou alguma coisa. Dentro de
si, transparecia um ódio irracional e inexplicável. Como
uma fera sedenta, mas astuta, estivera sempre observando,
aguardando algo que Carmine jamais pudera descobrir ou
entender.
Estavam juntos há muito tempo. Talvez isso justificasse, agora, a pergunta. Observar seu superior alterar-se radicalmente todos os anos, naquela mesma época, era algo intrigante e inquietante.
Tudo parecia uma rotina, porém, pelo modo como as
coisas eram feitas. Nara Coletto era sequestrada e devolvida em seguida inúmeras vezes. Alguém roubava um carneiro de raça, objetos místicos e peças do museu. Nada mudava, apesar do insólito a cada vez.
Naquele ano, no entanto, os assassinos pareciam mudar tudo. Três homens mortos violentamente. Um com o
corpo esmagado; outro com a cabeça decepada e ainda não
encontrada; o último com diversas costelas fraturadas e o
peito aberto como o de um animal no matadouro.
Bateram na porta. Logo em seguida, uma das recepcionistas entrou com um pacote.
— Encomenda para você — disse, indo depositá-lo
sobre a mesa do tenente.
— Obrigado! — agradeceu ele, olhando o curioso volume.
Um papel ordinário envolvia uma caixa de chapéu.
Barbantes encardidos rodeavam-na, presos em nós curiosos. Rocco puxou o embrulho para perto de si.
— Diabos! O que será isso?
— Só saberá se abri-lo — disse Carmine.
— Claro — riu o policial, abrindo uma gaveta e retirando dali uma baioneta afiadíssima, com a qual cortou os
cordões que prendiam o pacote.
Retirou o papel. Carmine juntou-o e jogou-o no cesto
de lixo, acompanhando-o em todos os seus movimentos.
— Engraçado! Não lhe parece que... — ia dizendo
Carmine, mas interrompeu-se, quando Rocco levantou a
tampa da caixa.
A primeira coisa que viu foi uma cabeleira com sangue incrustado. Rocco estremeceu, virando a caixa para
despejar o conteúdo sobre a mesa.
A cabeça do infeliz de artigos místicos rolou pelo
tampo de madeira e caiu no colo de Carmine, que saltou
horrorizado.
— Deus do céu! — exclamou Rocco, olhando a expressão de horror ainda estampada no rosto pálido daquela
cabeça.
Carmine levou as mãos à boca, mas não pode conter o
jato gosmento e ácido que lhe escorreu pelos dedos, pingando pelo assoalho, enquanto corria para o banheiro.
CAPÍTULO 4
O local conservava um ar místico e, ao mesmo tempo,
assustador, com grossas cortinas negras cobertas de estranhos símbolos.
Ao centro, sobre uma tosca mesa de madeira bruta
semelhante ao cepo de um açougueiro, repousava um maço
de cartas ensebadas e uma bola de aspecto sombrio que assimilava o negrume das cortinas ao redor.
Suzanah olhou o cristal e nele se viu refletida. A imagem distorcida, porém, a fez estremecer. Lutou contra a
vontade de ficar ali, mas aquela atmosfera agora a cativava,
como se dali irradiasse toda aquela mística sensação que a
envolvera desde a chegada a Roma.
— Deseja conhecer seu futuro? — indagou uma voz
atrás delas.
Sobressaltada, Suzanah se voltou, levantando uma das
mãos a boca. A velha encarquilhada e sorridente sorriu de
seu espanto.
Depois, uma seriedade mortal caiu sobre seu rosto e
ela cambaleou atônita e fascinada, ao ver aquele sinal negro
no pulso da garota.
Suzanah percebeu a reação da anciã diante do sinal e
isso aguçou sua curiosidade a respeito de tudo, afinal. A
outra se aproximou e, com seus dedos longos e vulgares,
tomou o pulso da garota.
Examinou o sinal. Sua mão tremia mais que a de Suzanah. Levantou os olhos para a garota. Havia neles um
brilho maravilhado.
— Sente-se — pediu a mulher, puxando uma das cadeiras.
A garota atendeu. A velha continuou segurando seu
pulso. Seus dedos frios e inquietantes. Sua voz tinha um
timbre metálico e gutural, como se soasse através de uma
cova de pedras frias e sólidas.
— Está tudo preparado, você saberá tudo no devido
tempo. Assim como sua mãe.
— Minha mãe? Conheceu minha mãe? — arrepiou-se
Suzanah, sentindo-se dominada por uma febril e intensa
perturbação.
— Sim, conheci sua mãe. Badiah era seu nome e ela
teve muito prestigio, enquanto não se apaixonou por um tolo mortal e nos deixou...
— Sim, eu me lembro dele, um americano que julgava
poder comprar tudo com seu dinheiro. Desgraçou sua mãe
ao iludi-la com vãs promessas e tirá-la de sua terra. Ela não
teve um só instante de descanso, enquanto não fosse libertada pela morte mais cruel...
— Deus! — exclamou a garota e a velha soltou-lhe o
pulso para esbofeteá-la com violência e depois cuspir-lhe
no rosto.
Suzanah se ergueu assustada. De sua boca escorreu
um filete de sangue que ela limpou nas costas da mão. A
mulher diante dela a encarava com severidade.
— Bem se vê como eles a estragaram. Mas não se
preocupe, minha filha, nós a traremos de volta — disse a
velha, com meiguice, indo tomá-la nos braços.
Com carinho ela fez que Suzanah se sentasse. Depois
tomou suas mãos e olhou-a nos olhos. A garota estremeceu.
Tudo aquilo lhe parecia absurdo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente claro.
— Como pode dizer que conheceu minha mãe se nem
ao menos eu lhe disse meu nome? — indagou, pateticamente.
A anciã apontou para o pulso de Suzanah, onde se
destacava aquele sinal.
— O sinal do mestre, o clã dos morcegos! A década se
inicia e os sábios disseram que ele viria. Sua presença no
ritual nos permitirá efetuar o batismo...
— Batismo? — gaguejou Suzanah.
— O batismo das feiticeiras! — explicou a mulher.
***
Fechado em seu gabinete, Rocco observava aquele
pedaço de papel em sua mão. Seu olhar, porém, parecia atravessar o convite e enxergar além, revelando horror e medo.
Bateram na porta. Carmine entrou em seguida, ainda
pálido após os acontecimentos. Rocco ergueu os olhos para
o assistente, mas não o recriminou.
— Era o comerciante... O tal dos artigos místicos... —
Disse Carmine e sua voz era rouca, como se algo estivesse
ainda atravessado em sua garganta.
— Sim, eu sei — respondeu o tenente, jogando o convite sobre a mesa.
— O que é isso?
— Veio junto com a cabeça. Acho que resolveram me
convidar em grande estilo — disse o policial, levantando-se
e indo até a janela.
O sol se escondia atrás das colinas. Um arrepio instintivo percorreu-lhe o corpo. Seus olhos brilharam, não de
medo, mas de ódio.
Um ódio que devorava suas entranhas e ano após ano
o perseguia como o pior dos estigmas. Uma esperança de
ver tudo ser explicado, após todos aqueles anos, invadia
seu coração.
— Todo esse tempo e, finalmente, eles resolveram me
convidar. Preciso saber o motivo. Preciso! — afirmou, febrilmente.
— Quem, tenente? — quis saber Carmine.
O policial não respondeu. Voltou para sua escrivaninha e sentou-se, olhando o convite. Seu punho fechou-se,
depois martelou com força o pedaço de papel, sobressaltando Carmine, que jamais vira tanto num só olhar.
— Tenente, todo esse tempo eu sempre estive ao seu
lado. Todos os anos eu o ajudei nesse caso absurdo, sem
jamais pedir uma explicação. Mas, agora, sinto que não
posso reter a minha curiosidade. O que há por trás dessa
festa, afinal?
— O mal, Carmine. O mal! — respondeu o tenente.
— Como assim?
O policial levou as mãos às faces, apertando-as com
forças. Depois jogou o corpo para trás e ergueu a cabeça,
fixando-se em algum ponto no teto.
— O que temos, aparentemente, é uma das maiores e
mais movimentadas festas do nosso calendário turístico. A
comissão organizadora é composta de gente da maior respeitabilidade. Por trás dela, porém, há um grupo de pessoas, cujos interesses e atividades fogem à mais rebuscada
das imaginações. Eles cultuam tudo que há de mal e a festa
marca, para eles, o início de um ritual cujos pormenores
desconheço, mas que adivinho assustadores.
— Bruxaria? Satanismo? — arriscou Carmine.
— Mais ou menos, Carmine.
— E o seu interesse nisso, tenente? É algo que não entendo e que jamais entenderei, a menos que me expliquei.
Por que todos os anos a seção de homicídios dispensa seu
melhor policial para que ele se dedique às investigações
mais disparatadas.
Rocco respirou fundo e empalideceu, mas não olhou
seu assistente. Continuou olhando fixamente para o teto. A
crispação em suas mãos e em seu rosto indicou que a pergunta fora inoportuna.
— Eu sinto muito — pigarreou Carmine, calando-se
em seguida.
***
Torg arrastou, pelos escuros calabouços daquele velho
solar, o ataúde onde depositara o corpo pálido e frio de Nara Coletto.
Forrara-o com uma camada de terra do local onde ela
nascera. A maldição inoculada pelas presas fatídicas do
Drácula e fariam reviver em breve.
Quando isto acontecesse, Torg teria a sua companheira também. Besta ou mulher, pouco importava ao seu apetite selvagem. Ele a teria e isso lhe bastava.
O importante era dominá-la e isso Torg sabia como
fazer. Vira a maneira como Drácula fizera ressurgir Daura.
Um pouco de seu próprio sangue faria Nara submissa a ele.
Se isso não bastasse, usaria seus poderes e conhecimentos
de magia negra para mantê-la sempre saciada de seu macabro apetite.
Assim a teria sempre dócil, como uma fera bem alimentada que passa indiferente a novas presas. Sim, Torg
faria isso por sua companheira. Noite após noite ele a banquetearia com um festim de sangue, depois, juntos, se entregariam aos prazeres mais sórdidos e extasiantes.
Após acomodar o esquife numa das celas escuras e
úmidas, retornou pelo corredor, tendo o cuidado de trancar
a pesada porta, reforçada com barras de ferro.
Quando chegou à sala de torturas, um pressentimento
o fez se voltar. Drácula o encarava raivosamente. Em suas
mãos finas, de unhas pontiagudas, o monstro acariciava
uma ratazana morta.
Torg recuou, intimidado com aquele olhar satânico.
— Você fez isso, Torg? — indagou o vampiro, segurando a ratazana pelo rabo e balançando-a diante do rosto
crispado do corcunda.
— Sim, mestre, mas eu não tinha...
— Maldito! — berrou o conde infernal, movendo o
braço com incrível rapidez.
A ratazana descreveu um semicírculo no ar e foi se esborrachar nas faces do corcunda. Suas vísceras explodiram,
malcheirosas e gosmentas, nauseando o corcunda, que
cambaleou ante o impacto.
— Perdão, mestre! — suplicou, caindo de joelhos.
Implacável, Drácula chicoteou-o novamente com o
corpo espatifado do animal, depois apanhou uma pesada
clava de ferro, erguendo-a acima da cabeça.
Torg fechou os olhos e percebeu que fora longe demais. Reconhecia que exagerara em seus desafios. Drácula
jamais esquecia ou perdoava. Em mente secular todas as
traições do corcunda se juntaram num só desejo de extermínio inadiável.
Uma figura pálida e suave surgiu à entrada da cela
macabra, fazendo todo o furor vingativo se aplacar no peito
do vampiro.
Ele jogou para o lado a clava e sorriu, exibindo os caninos selvagens. Daura sorriu em resposta, estendendo os
braços.
— Linda! — rouquejou o vampiro, enquanto se abraçavam.
Torg rastejou para um canto, observando enciumado a
maneira gentil com que Drácula tratava sua companheira. O
ódio martelou fundo em seu coração retorcido. Aquela mulher mudara Drácula e o mudara mais, fazendo-o desprezar
Torg até o momento em que o exterminasse.
Essa verdade o assustou. Após tanto tempo de dedicação, ao invés da grande recompensa, receberia a pior das
mortes. Lágrimas vieram a seus olhos, percebendo sua impotência diante da terrível realidade.
***
Quando Suzanah chegou ao restaurante, um coro de
risos abafados se fez ouvir, numa das mesas ao canto.
Era Vanessa e seus inseparáveis admiradores. Pela
quantidade de copos e garrafas de vinho, todos pareciam
muito alegres naquele princípio de noite.
Escolheu um canto discreto e se instalou do outro lado. Vanessa comentou qualquer coisa e todos riram, olhando na direção de Suzanah.
Ela estremeceu, sentindo seus nervos em frangalhos.
Depois de tudo o que a mulher lhe dissera, no parque de diversões, via-se confusa.
Aquele sinal negro em seu pulso ganhava significado.
Era o símbolo de um poder comandado pelo desejo e pelo
demônio. Um desejo caro, pago a preço de uma alma que
Suzanah teria de oferecer, para selar o pacto.
Depois, estaria pronta para o batismo. Toda sua crença
religiosa se chocava, agora, com as mais terríveis revelações.
A verdade sobre sua mãe, a decisão que teria de tomar,
o significado de estar ali, tudo a afetava naquele momento
de transição.
Uma escolha teria de ser feita. Continuou sendo a trêmula e assustadiça rainha de um clã cujas raízes estavam
plantadas nas profundezas do inferno.
Cabisbaixa, não percebeu que Freddy, um dos mais
simpáticos rapazes da excursão, constante par de Vanessa,
se ergueu e atravessou o salão.
Em seu rosto havia um brilho cruel e sádico. Parou diante da mesa.
— Posso me sentar com você? — indagou.
Ela estremeceu e, antes que pudesse responder, ele já
se postava diante dela, encarando-a de um modo que a ofendeu.
— Penso que você seja diferente de sua irmã. Vanessa
é tão fútil, tão vazia — declarou ele.
Suzanah o encarou surpresa.
— Gostaria de descobrir como você é. Que tal sairmos
logo mais?
Atônita, Suzanah não soube o que responder.
***
Uma sensação de horror e náusea dominava o peito de
Rocco, enquanto avançava pelo corredor sombrio. Sobre as
lajes frias, seus passos e o do enfermeiro ao seu lado ecoavam lugubremente.
Nas grades ao lado, homens e mulheres desgrenhados,
de olhares indefinidos e rostos crispados pela loucura, acompanhavam sua passagem.
Um calafrio percorreu-lhe o corpo ao avistar, iluminado por uma fraca lâmpada, ao fim do corredor. Ali, recortada no maciço de pedras, encrava-se uma pesada porta, com
uma pequena abertura à altura dos olhos.
Rocco não olhou. A chave foi girada, duas vezes. As
velhas dobradiças rangeram. A luz penetrou formando um
quadrado no chão encardido.
Um rato correu para seu ninho, a um canto fugindo da
luz. Baratas passeavam calmamente, lambendo velhos restos de comida.
Um odor de podridão, fezes e urina dominava todo o
sórdido aposento. Uma sensação de crueldade e impotência
estrangulou-lhe o coração.
O enfermeiro acendeu uma lanterna, iluminando as paredes cobertas de restos de fezes e palavrões obscenos, até
descansar sobre um vulto acuado a um canto com um animal selvagem.
Uma vestimenta macabra envolvia seu corpo, comprimindo-o entre correias e longos tirantes.
Seu rosto se achava coberto inteiramente por uma
máscara de ferro, presa no alto por um cadeado.
— Por que a máscara? — indagou Rocco, num tom
inexpressivo.
— Para que se calasse.
— E como ele se alimenta?
— Não tem se alimentado.
— Tire-a.
— Mas não o deixe gritar aquelas palavras. É como
abrir as portas do inferno — suplicou o enfermo, retirando
uma chave do bolso de seu avental e adiantando-se até o
prisioneiro.
Soltou-lhe o cruel capacete, depois lhe iluminou o rosto. A pele enrugada e gretada cobria-se de feridas pútridas e
nauseantes.
Rocco conteve-se para não vomitar. Ainda assim, encarou o velho, tomando a lanterna ao enfermeiro. Iluminou
o próprio rosto.
— Três homens estão mortos. O que isso quer dizer?
— Que a hora é chegada — murmurou o velho, antes
de escarrar em pleno rosto do policial.
A massa gosmenta desceu-lhe por sobre o nariz e foi
se acumular ao canto de sua boca.
Rocco cuspiu-a, enojado. O velho começou a rir.
— quando chegar a hora, eu saio daqui, não importa o
que façam, Rocco — declarou, gargalhando satanicamente.
Rocco se pôs em pé. O enfermeiro apanhou a máscara
de ferro para cobrir a cabeça do velho, mas este girou o
corpo, rolando pelo chão imundo.
— Abbadon! — berrou e sua voz soou como um trovão pelos corredores do hospício.
Por um instante, apenas o eco respondeu, até silenciarse. Depois, rugindo como o ruído de uma tempestade violenta, um coro de vozes alteradas engrossou-se, abalando as
paredes, enlouquecendo o enfermeiro, que golpeou a cabeça do velho com o objeto de ferro em suas mãos.
Rocco levou as mãos ao ouvidos, tentando fugir àquele ruído infernal. Um bando de enfermeiros surgiu no pavilhão, alguns munidos de longos cassetetes que introduziam
pelas frestas das grades e golpeavam os loucos.
— Pare! Pare! Pare! — suplicou o enfermeiro, erguendo mais uma vez o braço para golpear impiedosamente
o velho.
Rocco estendeu o braço e aparou o golpe, tomandolhe a máscara e atirando-a para longe. O velho, a seus pés,
gargalhou e sua voz voltou a ecoar pelos corredores, sobrepujando o terrível alarido.
— Abbadon! Filhos das trevas, Abbadon!
Rocco correu para a porta, mas o corredor lhe parecia
realmente um canto do próprio inferno, tamanha a loucura e
crueldade com que se deparava.
Um enfermeiro fora puxado para junto das grades e
mãos possuídas rasgavam-lhe as carnes, em meio a gritos
alucinantes.
— Rocco! Quando eu sair, você me pagará, meu filho!
— berrou o velho, antes que o enfermeiro o fizesse calar
com um pontapé.
— Não, pai! — urrou o policial, correndo alucinado
pelo corredor enlouquecido.
CAPÍTULO 5
— Eu me sinto tão fraca ainda — murmurou a voz doce e feminina.
— Não se preocupe, estará forte em breve. Vou conseguir-lhe alimento. Venha comigo, Daura!
***
O carabineiro passou pelo beco e julgou ter visto uma
sombra se mover ao fundo. Estacou. Sua mão procurou a
arma. Com os recentes crimes, era sempre bom estar preparado.
Avançou passo a passo, a lanterna iluminando as paredes de tijolos descobertos. Uma das mãos repousava na
coronha da arma, pronta para sacá-la.
Tudo era silêncio, porém. Repentinamente, uma respiração pesada bateu contra sua nuca e ele se voltou num sobressalto, já de arma em punho.
Dedos frios e fortes seguraram seu pulso, apertando
com tanta violência que a arma pendeu e caiu inútil. A lanterna escorregou da outra e ficou no chão, iluminando um
par de pés femininos e torneados.
O carabineiro tentou gritar, mas aquele odor de morte
e putrefação, diante de seu nariz, engasgou-o. Uma de suas
mãos foi solta, mas os dedos fortes se concentraram em sua
garganta, erguendo-o do solo.
Ele socou, então, com forças do desespero, golpeando
aquele vulto assustador diante de si. Chutou-o, debatendose, mas mal abalava aquela sinistra figura.
Drácula rugiu, então, arremessando-o contra a parede.
O carabineiro gemeu, caindo grotescamente. Tentou se levantar, mas uma das pernas parecia quebrada e suas costelas doíam horrivelmente.
Apoiado precariamente à parede, viu o vulto se aproximar novamente.
— Deus! — soluçou, antes de um jato de sangue espirrar de sua boca e ele sentir que suas vísceras eram expelidas.
O cheiro daquele sangue espicaçou as narinas de Daura, que se dilataram. Ela rosnou gravemente e avançou.
Drácula afastou-se para lhe dar passagem.
Sentiu apenas um corpo frio de mulher encostar-se a
ele e braços apressados rodearem seu corpo. Depois, aquela
respiração pesada martelou seu pescoço. Lábios gélidos se
colaram em sua pele. Um rosnar de animal se antecipou à
mordida feroz que aguilhoou—o, dilacerando suas carnes.
— Não! — urrou debilmente, percebendo o que se
passava.
A mulher sugava o sangue que brotava de seu pescoço, enquanto rosnava e se contorcia num êxtase macabro.
Drácula aguardou com impaciência até que a última
gota deixasse aquele corpo. Daura se ergueu, finalmente.
Seus olhos haviam ganho vida e brilho, apesar de, ainda injetados, refletirem laivos de fogo do inferno.
Um casal passou diante do beco, andou mais alguns
passos, depois retornou, protegendo-se nas sombras. Ambos pareciam excitados e apressados. Mal se viram ocultos
de olhares reprovadores entregaram-se às mais loucas carícias.
Drácula e sua companheira se entreolharam, sorrindo
com satisfação e apetite. Após o banquete, Daura se sentira
outra, rejuvenescida e bela como jamais fora.
O casal macabro avançou pelo beco, que não traiu
seus passos leves, mas ameaçadores. Sons obscenos, de
respirações apressadas, de fechos soltando-se, de corpos
entrechocando-se dominaram o beco, silenciando repentinamente.
A mão firme de Drácula segurou o pescoço do homem
e girou-o num estalo desagradável. O corpo escorregou para o chão e Daura se atirou sobre ele, resfolegando animalescamente, cravando de imediato suas presas afiadas no
pescoço retorcido.
A mulher ficou encostada à parede, sem entender aquele súbito e violento ataque. Seus olhos se fixaram nos
olhos do Drácula que brilhavam fantasticamente dominando-a.
Nenhum grito escapou de sua garganta, apesar do terror que comprimia seu peito. Aquele hálito fétido e frio avançou para ele. Mãos bruscas devassaram seu corpo, rasgando-lhe as vestes, arranhando-lhe a pele.
O cheiro de sangue enlouqueceu Drácula, que se apertou contra ela e lhe cravou os dentes malditos. A mulher
jamais compreendia a monstruosidade que lhe tirava a vida.
O silêncio voltou ao beco, mas suas paredes jamais se
esqueceriam daquela tragédia.
Drácula reuniu os corpos ao fundo do beco. Olhou-os
com desprezo. Havia algo que precisava ser feito e Torg
não se encontrava disponível para aquilo.
A ideia de ir se acostumando a viver sem o corcunda
tentava Drácula. Atrás dele, Daura observava curiosa o que
o príncipe do Mal pretendia, compreendeu, afinal, como se
a maldição do Drácula a fizesse compartilhar de todos os
segredos dos seres malditos da noite.
— Vai destruí-los?
— Sim. Ainda não é chegado o tempo de espalhar minhas legiões sobre a face desta Terra maldita — rosnou o
vampiro.
Suas unhas se aguçaram como garras e peitos foram
abertos violentamente. Corações foram retirados e jogados
num canto onde jamais seriam encontrados e apodreceriam,
roídos pelas ratazanas e pelos vermes.
Findo o trabalho macabro. Drácula enlaçou Daura.
Seus corpos se roçaram e um desejo mórbido nasceu. O
príncipe das Trevas sorriu, sentindo-se forte e poderoso
novamente.
***
Qualquer coisa nova se agitava no peito de Suzanah,
desfalecendo aquela confusão estranha e fazendo-a se sentir mulher como sempre desejara ser.
Aprontou-se cuidadosamente. Usou seu melhor vestido e até arriscou um pouco de maquilagem. Quando Freddy
chegou, finalmente, ela já estava impaciente ante a expectativa de ler nos olhos dele uma aprovação.
Ao abrir a porta e encara-lo, sentiu-se recompensada.
Ele a olhou longamente, surpreso com a beleza que se rivalizava com a de Vanessa.
Depois, pareceu hesitante e envergonhado. Suzanah
não entendeu aquela estranha reação.
— Estou pronta! — disse.
— Quer sair comigo? — indagou ele, pateticamente.
— Claro que sim — concordou ela, alegremente.
Freddy mordeu os lábios e esperou que ela fechasse a
porta para oferecer-lhe o braço. Desceram para o saguão.
Os próprios camareiros a olharam com incredulidade. Suzanah estava irreconhecível em sua beleza.
À porta, porém, um deles a olhava surpreso, como se
pressentisse qualquer coisa errado no ar. Permaneceu calado, no entanto, observando-os rumarem para o estacionamento do hotel...
Freddy abriu cavalheirescamente a porta e esperou que
ela se acomodasse. Depois contornou o veículo. Antes de
abrir a porta e sentar-se ao volante, olhou ao seu redor.
Em seu rosto havia algo que Suzanah jamais poderia
esperar. O rapaz engoliu em seco. Depois se sentou, observando-a. Parecia inquieto e nervoso. Suzanah alegrou-se
inteiramente com aquilo.
Nada mais era para ela que a prova de que o surpreendera, tirando-o da pose de conquistador para prostrá-lo a
seus pés como um gatinho manso.
Aquela sensação a encheu de orgulho. Nem se deu
conta de que o braço dele passava pelo assento, pairando
sobre seus ombros.
— Suzanah, eu... — gaguejou ele, hesitante.
— Algo errado, Freddy? — indagou ela, encarando-o.
Ele pigarreou, depois olhou nervosamente para os lados.
— Não, é que... Você me fascinou — disse e sua voz
ganhou um acento ardente e inesperado para ela.
Atrevidamente seu braço pousou sobre os ombros de
Suzanah e uma das mãos introduziu-se pela barra de seu
vestido, buscando com impaciência suas coxas mornas e
torneadas.
— Freddy! — exclamou ela, mas seu protesto foi sufocado pelos lábios ávidos e gulosos do rapaz, cobrindo os
seus e sugando-os desajeitadamente.
Suzanah sentiu o gosto de sangue em sua boca, mas
não teve de fazer mais nada. Luzes se acenderam ao seu redor e gargalhadas zombeteiras se ouviram.
Freddy soltou-a e abriu a porta, descendo rapidamente
e desaparecendo em meio aos faróis ofuscante.
Suzanah saltou também, girando ao redor de si, tentando compreender aquela brincadeira. Acima dos risos,
ouviu claramente a voz indesejável de Vanessa, zombando
dela.
Algo quente e maligno agitou-se em seu peito. Seu
corpo se retesou e seus olhos chamejaram incrivelmente.
Ela estremeceu, sentindo que seu ódio saltava por todos
seus poros.
Ruídos de vidros quebrados, então, anteciparam a fuga
gradativa daquela claridade ofuscante. Um a um os faróis
dos carros ofuscaram, até que restassem apenas a escuridão
e o silêncio.
O vento começou a soprar forte e macabramente, levantando uma nuvem de poeira.
— Ei, pessoal! Vamos dar o fora daqui! — gritou alguém e todos saltaram para o interior dos carros.
Os olhos de Suzanah se esgazearam, refletindo o seu
ódio e um poder que se revelava.
Gritos de dor e de angustia se levantaram, quando os
para-brisas estouraram e cacos de vidro dilaceraram rostos
e corpos, num mar de sangue.
Jovens ensanguentados deixaram os carros, chocando-se numa fuga confusa e apavorada. No centro deles Suzanah ria, procurando por Freddy.
Viu-o rastejar em sua direção, cego pelos estilhaços de
vidro. As palavras da velha, naquela tarde vieram a sua
mente.
Era preciso um sacrifício humano. Suzanah estava
disposta a proporcionar dois. Não precisava pensar para
descobrir de quem fora a infeliz ideia para aquela brincadeira mórbida.
Seu olhar localizou Vanessa parada diante de um espelho retrovisor, tentando ver o que restara de seu belo rosto. Algo dentro de Suzanah pediu vingança e concordou
com o pacto.
As pessoas que chegavam não entenderam o que se
passavam. Viram apenas o corpo de Vanessa sendo arremessado para trás, até a cerca de ferros pontiagudos que a
transpassou.
Depois, incrédulos e impotentes, viram o corpo de
Freddy rolar para baixo de um carro e, inexplicavelmente,
passar sob uma das rodas, imobilizando-se depois, estrebuchando grotescamente e expelindo sangue pela boca escancarada.
Um silêncio pesado e opressivo caiu, então, sobre o
estacionamento do luxuoso hotel, sendo quebrado apenas
pelos passos leves de Suzanah afastando-se.
***
Uma careta de dor transformou o rosto deformado do
corcunda numa máscara horrenda. Ele fechou a mão com
firmeza e deixou que o sangue escorregasse para a tigela
depositada sobre a mesa.
Quando a encheu, apanhou um trapo e envolveu o pulso ferido. Sabia que teria de mudar seus métodos e conseguir alimento de outra forma, mas era fundamental que a
primeira vez fosse daquela maneira.
Com seu sangue no corpo de Nara, ela, reconhecia, o
aceitaria como companheiro. O casamento macabro estava
preste a se consumar.
Com a tigela na mão, Torg desceu para o calabouço e
caminhou cuidadosamente por corredores frios e úmidos,
evitando que uma gota fosse desperdiçada.
Chegou à porta da cela. Havia uma abertura à altura de
seus olhos. Torg girou o trinco e tentou localizar o esquife.
Viu-o aberto e alegrou-se.
No momento seguinte, um rosto furioso postou-se em
frente ao dele e Nara rugiu esfomeada, espicaçada pelo
cheiro de sangue.
Torg recuou por instantes, fitando-a. A maldição se fizera presente naquele olhar sem brilho e naquelas presas
pontiagudas que cobriam o lábio inferior da garota.
— Amigos! — rosnou o corcunda, erguendo a tecelã
de sangue à altura da abertura.
A mão da garota avançou rapidamente, buscando-a,
mas Torg se retraiu a tempo.
— Amigos! — voltou a dizer, observando o rosto
crispado pelo apetite macabro.
— Pelo sangue do demônio! — blasfemou ela, rugindo e forçando a porta.
Torg sabia da força descomunal de um vampiro, mas
sabia também que aquela porta não cederia com facilidade.
Seu olhar procurou o dela fixando-se nele.
A garota estremeceu e arreganhou a boca, como se a
hostilizasse. Torg afastou a tecelã de sangue, dando a entender que não a alimentaria.
— Não! — gritou ela, estendendo o braço.
— Amigos? — indagou.
— Sim, mas dê-me isso, diabos! — suplicou ela, a voz
alterada.
Torg se aproximou e entregou-lhe a tecelã que ela levou sofregamente aos lábios, bebendo prazerosamente.
Quando terminou, limpou a boca lambuzada nas costas da
mão e fez um gesto de atirar a tecelã fora.
Estacou, porém, depois olhou o corcunda como se
compreendesse algo. Estendeu a tecelã e sorriu macabramente. Torg suspirou, percebendo que ela entendera sua intenção.
Avançou para apanhar o recipiente. A garota agarrou
sua mão e puxou-a com violência, procurando mordê-la.
Torg teve de usar de toda sua força para se livrar antes que
ela lhe cravasse as presas mortíferas.
— Maldita! — rugiu. — Faça isso de novo e jamais
terá alimento. Se me destruir, morrerá nesse local maldito
ou vegetara com o sangue das ratazanas que infestaram essa casa.
A garota ofegou e seu rosto se acalmou, percebendo o
que ele queria dizer.
— Amigos? — indagou, estendendo a mão.
Torg hesitou, depois resoluto, aceitou.
CAPÍTULO 6
Batidas leves, quase imperceptíveis, na porta, fizeramna deixar aquela espécie de transe e se levantar. Foi até lá e
abriu lentamente.
Quatro pares de olhos assustadores encararam-na por
instantes, antes de passarem por ela silenciosamente, como
sombras.
Avançaram até a mesa de cabeceira e ali depositaram
uma pesada caixa de metal, que intrigou a garota tanto
quanto a presença daquelas estranhas pessoas.
Aproximou-se deles. Um a um ergueram as mangas
dos casacos e exibiram sinais negros, mas diferentes daquele que havia no pulso de Suzanah.
— Quem são vocês?
— Somos discípulos do Clã do Morcego — disse um
deles — Você é nossa sacerdotisa, a rainha das feiticeiras, a
poderosa. Aqui encontrara o necessário para seu batismo.
Depois, reinara sobre nós e batizará as outras.
Tão silenciosos como haviam entrado, eles saíram,
deixando aquela estranha caixa. Suzanah abriu-a. Havia um
convite para a Grande Festa Medieval e roupas adequadas.
Ela retirou o pesado vestido, ricamente adornado com
símbolos cabalísticos bordados a ouro e prata e preciosas
rendas debruando todo o tecido acetinado.
Ergueu-o diante de si e caminhou até o espelho. A
porta do quarto se abriu violentamente. O rosto pálido de
Amos Gantry encarou-a. Ao perceber o vestido, toda a sua
expressão se alterou violentamente.
— Eu sabia! Eu sabia! — repetiu, possesso — Você é
como sua mãe. Cedo ou tarde acabaria se entregando ao
demônio. Eu sabia, eu tentei de tudo para evitá-lo, mas estava em seu sangue maldito. Você destruiu Vanessa, você
vai me destruir. Antes que isso aconteça, porém, vou devolvê-la ao lugar de onde jamais deveria ter saído — urrou
e, exibindo um longo punhal em seu punho crispado.
Avançou para Suzanah, que se retraiu. Seu olhar refletiu o ódio que havia no olhar do pai. Este estacou como se
houvesse batido numa parede invisível.
— Por Deus, eu a destruirei — rugiu o homem, empunhando um rosário e agitando-o diante da garota.
De alguma parte dentro de si, Suzanah pressentiu um
perigo ainda desconhecido e reagiu prontamente. Seus olhos se esgazearam e um riso macabro estampou-se em seus
lábios.
— Não! — exclamou o homem recuando.
— Não — gritou horrivelmente e alguma pessoas surgiram à porta.
Jamais puderam entender o que houve. Com um grito
desumano explodindo de seu peito, Amos Gantry correu,
atravessando o aposento e se jogando contra a vidraça, num
mar de estilhaços prateados que refletiu o brilho da lua.
Um momento de silêncio, depois o baque agonizado e
surdo lá embaixo, no cimento frio. Suzanah se sentiu como
se uma tensão violenta e má deixasse seu corpo, fazendo-a
se relaxar deliciosamente.
— Pobre garota! — murmurou alguém, enquanto alguns, passada a perplexidade do momento, corriam até a
janela observar o corpo estatelado de Amos Gantry.
***
Quando Rocco chegou a seu gabinete, naquele dia,
Carmine o esperava com certa apreensão. Ao observar o
superior, entendeu logo onde estivera Rocco durante o dia
inteiro.
Fora um dia agitado para o departamento com uma série de acontecimentos inexplicáveis. Carmine esperou Rocco tomar o café e sentar-se. Trocaram um olhar.
Rocco esfregou os olhos. Simplesmente apagara-se
por dia, trancado em seu apartamento, isolado do mundo,
embriagando-se até a inconsciência.
Desde que visitara seu pai, aquela tensão angustiante
se acentuara dentro dele. Era seu estigma, sua maldição.
Seu pai era um feiticeiro, e pior deles. A única forma de afastá-lo do mundo fora aquela, trancando-o num asilo de
loucos irrecuperáveis.
Doera-lhe fazer aquilo, mas queria que o mundo jamais soubesse que ele, um eficiente policial, era filho de
um bruxo.
Os poderes de seu pai eram inquestionáveis e maléficos. Rocco presenciara muitas cenas de violência e magia
negra, de orgias infernais. Todas essas imagens ainda viviam em sua mente, torturando-o.
Seu desejo era acabar com aquela gente toda que usava o mal gratuitamente. Comparados a esses, os assassinos
mais pérfidos e traiçoeiros eram como garotos brincando de
mocinho e bandido.
Poucos sabiam daquele segredo porque poucos acreditariam. Bruxos e feiticeiros haviam passado para a categoria de mitos e lendas inofensivas, mas ainda existiam, vivendo nos subterrâneos do mundo, preparando maléficos.
A grande festa Medieval era o ponto de partida. Sabia
que dai se iniciaria uma série de rituais que

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