Meio século de investigação sobre Potâmio de Lisboa

Transcrição

Meio século de investigação sobre Potâmio de Lisboa
Meio século de investigação sobre
Potâmio de Lisboa
na publicação da tradução portuguesa das suas obras
Por
António Montes Moreira
Centro de Estudos de História Religiosa - UCP
A publicação da tradução portuguesa dos escritos latinos de Potâmio,
primeiro bispo conhecido de Lisboa em meados do século IV, assinala
uma etapa marcante da investigação dos últimos cinquenta anos sobre
este prelado da Lusitânia romana1.
À guisa de preâmbulo a esta primícia editorial, vou passar em revista
a bibliografia potamiana vinda a lume durante este meio século. São uns
trinta estudos que abrangem cinco áreas : autenticidade do tratado Epistula de substantia Patris et Filii et Spiritus sancti, percurso doutrinal do
bispo lisbonense, características do seu latim, edições críticas e traduções
inglesa e espanhola das suas obras e temas de filosofia e teologia.
Autenticidade do “De substantia”
Na dissertação de doutoramento na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lovaina na Bélgica, defendida em 1964 e publicada
em 1969, sumariei a história da descoberta e da atribuição a Potâmio de
Lisboa da Epistula de substantia Patris et Filii et Spiritus sancti.
* Por opção do autor mantemos a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
1
Potâmio – Obras, por Isidro Pereira LAMELAS e José António GONÇALVES, prefácio e
revisão de António Montes MOREIRA, col. Philokalia, nº 15, Alcalá, Lisboa, 2012, XXI+137 p.
(paginação dupla nas p. 90-135 com o original latino de Potâmio na página esquerda e a tradução
portuguesa na direita). O presente artigo reproduz o prefácio com as seguintes alterações:
aditamentos às n. 2, 6 e 50; acrescentamento dos textos correspondentes às n. 21-29 e 36-38, da
2ª e 3ª citações do texto correspondente à n. 43 e ainda da n. 44; e reformulação das n. 51 e 53 e
dos textos correspondentes.
Itinerarium, LVIII (2012) 591 - 612
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antónio montes moreira
Este tratado teológico foi transmitido pelos manuscritos medievais
sob o nome de S. Jerónimo. Em 1908-1909 G. Antolín deu-o à estampa
pela primeira vez mantendo a mesma autoria. Em 1912-1913 A. Wilmart
restituiu-o ao bispo lusitano atendendo, por um lado, a semelhanças de
estilo entre este opúsculo e os demais escritos de Potâmio e, por outro, à
circunstância de boa parte dos textos bíblicos e argumentos nele referidos aparecerem também na Epistula Potami ad Athanasium. Por sua vez
J. Madoz em 1947 identificou o superior tractatus, mencionado no exórdio do De substantia, com esta Epistula ad Athanasium2.
Em 1988 R. Hanson recusou ao prelado olissiponense a paternidade
do De substantia por causa da “diferença de estilo muito marcada entre
esta obra e os outros escritos conhecidos de Potâmio”. Em seu entender,
“simplicidade e clareza não distinguem nenhuma das obras atribuídas a
Potâmio excepto o De substantia”. É certo, acrescenta, que a maioria
dos textos bíblicos aí citados figura na Epistula ad Athanasium e que um trecho relativamente extenso desta se encontra igualmente no De
substantia 3. Mas tais coincidências, conclui Hanson, não provam que o
autor das duas obras seja o mesmo; “isto pode significar apenas que um
autor copiou o outro”4.
Dez anos mais tarde M. Conti rotulou de “inaceitável” a posição de
Hanson tendo em conta, sobretudo, a investigação de três filólogos que
analisaram o De substantia “especialmente do ponto de vista estilístico e
2
António Montes MOREIRA, Potamius de Lisbonne et la controverse arienne,Lovaina,
1969, p. 172, 230-232 e 238-239. Antes da saída da tese e como antecipação da mesma, publiquei
os seguintes trabalhos: Potâmio e as origens do Cristianismo em Lisboa, em Itinerarium,
10 (1964) 461-487; O “De Lazaro” de Potâmio de Lisboa, em Itinerarium, 11 (1965) 1953; Potâmio de Lisboa e a controvérsia ariana, em Repertorio de Historia de las Ciencias
Eclesiásticas en España, I, Salamanca, 1967, p. 87-93; Potâmio, primeiro bispo conhecido
de Lisboa, em Bracara Augusta, 22 (1968) 55-70; e Potâmio, em Dicionário de História de
Portugal, dirigido por Joel Serrão, III, Lisboa, 1968, p. 456 [nas reimpressões posteriores
deste Dicionário: Lisboa, 1971, III, p. 456; Lisboa, 1975,V, p.154; Porto, 1981, V, p.154; e
Porto,2002,V, p. 154]. Também redigi a entrada Potâmio de Lisboa em Verbo – Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura, XV, Lisboa, 1973, col. 871 [nas edições posteriores: Verbo, XX
(vol. II do I Suplemento),Lisboa, 1980, col. 897; e Verbo – Edição Século XXI, XXIII, LisboaSão Paulo,1999, col. 950-951] e em Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, IV, Ed.
Verbo, Lisboa-São Paulo, 1992, col. 383-384.
3
Nesta edição: Epistula ad Athanasium, p. 94-95, nº 8-9 e De substantia, p. 123, nº 20 (37-38).
4
R. P. C. HANSON,The Search for the Christian Doctrine of God, Edimburgo, 1993
(reimpressão da edição de 1988), p. 527, n. 110 (para as três citações).
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linguístico e mostraram nos seus detalhados artigos como esta obra, justamente nesse plano, se enquadra perfeitamente no contexto dos outros
escritos restituídos a Potâmio”5.
A menor vivacidade estilística do De substantia deve-se ao facto de
ser um tratado teológico expositivo e com recurso, quase didáctico, a numerosas comparações para ilustrar a doutrina da consubstancialidade divina. É uma perspectiva distinta da intenção polémica da Epistula ad
Athanasium e do realismo descritivo das homilias sobre a ressurreição de
Lázaro e o martírio de Isaías. Mas nem por isso faltam aí passagens de
cunho rebuscado a começar pela grandiloquência e pretensiosismo do
exórdio. As diferenças de estilo não são pois motivo para rejeitar a autenticidade potamiana do De substantia, a qual, por outro lado, está igualmente bem apoiada nos demais elementos de crítica interna supramencionados. Hanson, porém, não os tomou na devida consideração.
Percurso doutrinal de Potâmio
O desacordo entre a ortodoxia das obras de Potâmio (sobretudo da
Epistula ad Athanasium que, segundo o título tradicional dos manuscritos, teria sido escrita depois do concílio de Rimini de 359) e os testemunhos de vários contemporâneos sobre a sua passagem ao arianismo, com
participação destacada no concílio ariano de Sírmio de 357, deu origem a
um vivo debate sobre o percurso doutrinal do bispo lisbonense.
Para harmonizar estes dados, à primeira vista contrastantes, a partir
de meados do século XVIII começaram a formar-se duas opiniões antagónicas.
Um grupo de autores rejeita ou pelo menos duvida da historicidade
dos testemunhos desfavoráveis a Potâmio e assim defende a sua permanência inalterada na ortodoxia ou não dá como certo que a tenha abandonado6. Segundo outros, porém, o prelado lusitano aderiu ao arianismo e
Marco CONTI, The Life and Works of Potamius of Lisbon, Turnhout, 1998, p. 32. Uma
breve resenha dos artigos dos três filólogos aparece mais adiante no texto correspondente às n.
33-35.
5
6
Entre os defensores da versão mais rígida desta posição destacam-se E. FLÓREZ,
España Sagrada, XIV, Madrid, 1758, p. 177-183, e sobretudo M. J. MACEDA, Hosius vere
hosius[…], h.e. Hosius vere innocens, vere sanctus, Bolonha, 1790, p. 95-115, 134-150, 205-209,
381-440 e 474. Dos historiadores que põem em dúvida a passagem de Potâmio ao arianismo
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teria redigido a carta a Atanásio antes de 357. A referência ao concílio de
Rimini de 359 na segunda parte do título tradicional da Epistula – a saber: ab Arrianis postquam in concilio Ariminensi subscripserunt – seria
obra do organizador luciferiano da colectânea onde a carta foi incorporada em finais do século IV. A pós-datação dessa carta, vincadamente
ortodoxa e para esses investigadores anterior a 357, teria como objectivo denunciar a adesão subsequente de Potâmio ao arianismo associando-o aos bispos que assinaram em Rimini uma fórmula doutrinal ambígua
e depois, como testemunha S. Jerónimo, escreveram aos confessores da
fé exilados por causa de Atanásio, isto é, pela sua fidelidade ao credo de
Niceia, sem dúvida para se redimirem da sua atitude nesse concílio. Na
imaginação do falsário luciferiano, o bispo de Lisboa ter-se-ia dirigido
directamente ao metropolita de Alexandria7.
Na segunda metade do século XIX deram-se os primeiros passos noutra direcção. Em 1864 P. B. Gams aceitou a data do título tradicional mas
defendeu que a Epistula não provava que o bispo de Lisboa fosse “amigo de Atanásio” em 359 nem que ele não tivesse estado implicado dois
anos antes no concílio de Sírmio8. Por sua vez, em 1887 F. H. Blackburne Daniell admitiu igualmente a cronologia do título da carta e apresentou Potâmio como “tendo regressado, ou declarando ter regressado, à
ortodoxia”9.
Na dissertação de doutoramento em Lovaina frisei que nem o niceísmo da Epistula constitui motivo para colocar a sua redacção antes de
357, nem os paladinos da ortodoxia ininterrupta do prelado olissiponense podem invocar tal argumento para negar ou pôr em dúvida a historicisaliento U. DOMÍNGUEZ DEL VAL, Potamio de Lisboa – Su ortodoxia y doctrina sobre la
consustancialidad del Hijo, em La Ciudad de Dios, 172 (1959) 237-258 especialmente 238-239
e 248-255 e art. Potamio de Lisboa, em Diccionario de Historia eclesiástica de España, III,
Madrid, 1973, p. 2011-2012. Este patrólogo voltou a ocupar-se de Potâmio na sua Historia de la
antigua literatura latina hispano-cristiana, I: Siglos III-IV, Madrid, 1998, p. 197-221, obra que
não tive oportunidade de consultar.
7
Os autores desta reconstituição histórica e literária foram L. SALTET, Fraudes littéraires des
schismatiques lucifériens aux IVe et Ve siècles, em Bulletin de littérature ecclésiastique, 8 (19O6)
300-326 e A. WILMART, La lettre de Potamius à saint Athanase, em Revue bénédictine,30
(1913) 257-285 especialmente 269-275.
8
P. B. GAMS, Die Kirchengeschichte von Spanien, II/1, Graz, 1956 (reimpressão da edição
de l864), p. 225 e 315-316.
9
F. H. BLACKBURNE DANIELL, art. Potamius, em A Dictionary of Christian Biography,
IV, Londres, 1887, p. 448.
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dade dos testemunhos sobre a sua passagem ao arianismo. Assim sendo,
defendi que a data desta carta devia ser estabelecida à base de indicações
internas e externas sólidas, independentemente da referência cronológica do título tradicional. Esta dissociação metodológica, justificada em si
mesma, renovou consideravelmente o debate sobre o percurso doutrinal
do bispo olissiponense.
De facto, existe uma dupla coincidência textual entre a fórmula de
Sírmio de 357 e a Epistula. O documento ariano recorre a Jo 14,28 (na
realidade, uma combinação de Jo 14,24 e 28) para afirmar a superioridade do Pai sobre o Filho e condena o uso do termo substantia em teologia trinitária devido à sua ausência na Escritura. A Epistula regista esses
argumentos e até cita da mesma maneira o versículo joânico: ”Qui me
misit”, inquiunt, “maior me est” e Dicunt etiam quod in libris dominicis
substantiam numquam videatur esse conscripta. Coincidência não é necessariamente dependência. Atendendo, porém, aos verbos inquiunt e dicunt, usados por Potâmio, admiti a possibilidade de ele visar deste modo
a fórmula de Sírmio: mas não me pronunciei de forma peremptória por
não ter então identificado no texto da carta dados mais seguros nesse sentido. Como quer que seja, a falta de argumentação decisiva para rejeitar
a data do título tradicional da Epistula deixava em aberto a hipótese do
regresso do bispo lusitano à ortodoxia. Foi esta a conclusão principal da
minha investigação universitária em Lovaina 10.
Em 1974 M. Simonetti advertiu que a fórmula de 357 é o primeiro documento a citar a versão combinada de Jo 14,28 numa perspectiva ariana. Tal circunstância, anotou, não é suficiente de per si para demonstrar
que a Epistula refuta aquele texto; mas, unida à dupla coincidência supramencionada, confirma “de maneira convincente” essa tese, “considerando também a absoluta carência de argumentos sérios em sentido
oposto”11. No ano seguinte o mesmo patrólogo defendeu que a carta a
Atanásio visa também a fórmula de Rimini de 359 e situou o regresso de
Potâmio à ortodoxia depois da morte do imperador Constâncio, ocorrida
a 3 de Novembro de 361 12.
António Montes MOREIRA, op. cit., p.143-144, 178-179, 188-190 e 318-319.
10
Manlio SIMONETTI, La crisi ariana e l’inizio della riflessione teologica in Spagna, em
Colloquio italo-spagnolo sul tema: Hispania Romana, Roma, 1974, p. 129-130, n. 8.
11
Manlio SIMONETTI, La crisi ariana nel IV secolo, Roma, 1975, p. 252 e 285, n. 115.
12
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Em 1975 voltei ao assunto e, na esteira de Simonetti, sublinhei a divergência entre a fórmula de Sírmio de 357 e a Epistula na explicação do
sentido do enunciado bíblico Pater maior me est (Jo 14,28). O texto de
Sírmio defende a superioridade qualitativa do Pai: Nulli potest dubium
esse Patrem honore, dignitate, claritate, maiestate et ipso nomine patris
maiorem esse. Para o bispo lisbonense a “inferioridade” do Filho deve-se unicamente à relação de origem entre Ele e o Pai, sem diferença ou
divisão de substância entre ambos: Maior ergo, quia Pater, Filio. Ordo
praeponitur, non substantia separatur. Era esta a interpretação tradicional do versículo joânico, bem distinta da exegese inovadora da fórmula
ariana de Sírmio. A contraposição da doutrina entende-se melhor em caso
de ligação entre os dois documentos.
De qualquer modo, acrescentei no mesmo estudo, a Epistula contém
uma indicação cronológica segura que nunca tinha sido assinalada até então pelos historiadores de Potâmio. Trata-se da prova definitiva de que a
carta visa a fórmula de 357. Ao refutar a exegese ariana de Jo 14,28 o prelado olissiponense dirige esta apóstrofe ao arianismo: Quid ad haec dicis,
adulter infamis? Bene quod ante antiquitas patrum in synodo sanctiore,
voluntate viperea impurae virositatis inflata, castis etiam te transfixere
missilibus. A alusão ao concílio de Niceia é manifesta. A orientação antiariana do sínodo (castis etiam te transfixere missilibus) e os qualificativos antiquitas patrum e synodus sanctior convergem claramente para
a assembleia ecuménica de 325. Por outro lado, a evocação de Niceia
implica referência a outro sínodo. Com efeito, se o concílio de Niceia é
qualificado de “sínodo mais santo” (in synodo sanctiore), daí resulta, por
contraste com esse termo de comparação, que outro sínodo, aqui subentendido, é menos santo. A identificação de tal concílio não levanta dificuldades. Entre 357 e 360 sete sínodos rejeitaram o uso do termo substantia em teologia trinitária por não figurar na Escritura. Mas o de Sírmio
de 357, além de ser o primeiro a citar Jo 14,28 como anotou Simonetti,
foi também o único a fazê-lo. Assim sendo, a Epistula critica a fórmula
de 357 e documenta o regresso de Potâmio à ortodoxia.
Quanto à data da Epistula, defendi no mesmo artigo que foi redigida
muito provavelmente depois do concílio de Rimini de 359 atendendo à
convergência de três indícios: presumível historicidade da segunda parte do título tradicional (postquam in concilio Ariminensi subscripserunt)
apesar da sua eventual autoria luciferiana, possibilidade de a argumen-
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tação sobre o fundamento bíblico do termo “substância” visar também a
fórmula de Rimini e enquadramento mais ajustado ao movimento de restauração nicena iniciado pouco depois desse concílio13.
A datação da Epistula depois do concílio de Rimini goza hoje de consenso generalizado como testemunham duas obras de referência em Patrologia, cujas primeiras edições no original italiano saíram em 1978 e
198414.
No debate sobre o percurso doutrinal do bispo olissiponense M. Meslin avançou em 1967 uma opinião dissonante a respeito da teologia do
De substantia cuja ortodoxia nunca tinha sido posta em causa até então.
Em seu entender, esta obra do escritor lusitano “marca a sua adesão às teses subordinacionistas dos Eusebianos” 15; Potâmio “revela-se aí preocupado em lutar contra o neo-sabelianismo e toda a sua argumentação tende a fazer do Pai e do Filho duas pessoas distintas. Desse modo liga-se à
teologia da via media de origem eusebiana”. Além disso, continua Meslin, um bispo contemporâneo da Aquitânia na Gália, Febádio de Agen,
“censura Potâmio por ter fabricado, na sua Epistula ad Athanasium, um
deus demasiado humano, de ter tirado partido das indicações psicológicas próprias da humanidade do Filho e de ter fundamentado, a partir daí,
a sua diferença do Pai”16.
Esta exegese do De substantia é de rejeitar conforme demonstrei em
1975 numa comunicação apresentada em Oxford na VII Conferência Internacional de Estudos Patrísticos e que corresponde ao supracitado artigo desse mesmo ano 17. Tal como na Epistula ad Athanasium, cuja ortodoxia Meslin admite, a afirmação da distinção das pessoas divinas no De
13
António Montes MOREIRA, Le retour de Potamius de Lisbonne à l’orthodoxie nicéenne,
em Didaskalia, 5 (1975) 303-354 especialmente 336-344.
Manlio SIMONETTI, Hilario de Poitiers y la crisis arriana en Occidente – Polemistas y
herejes, em Patrologia,III: La edad de oro de la literatura patrística latina [1ª edição italiana,
Marietti, Casale Monferrato, 1978], Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), nº 422, Madrid,
1981, p. 38-165 (sobre Potâmio, p. 94-97), e Potamio, em Dizionario patristico e di antichità
cristiane,II,Marietti, Casale Monferrato, 1984, col. 2880-2881. O meu artigo de 1975 só aparece
citado na bibliografia da primeira obra.
15
Designação dada aos membros do bloco ariano de meados do século IV em referência ao seu
principal corifeu nesse período, o bispo Eusébio de Nicomedia, falecido no inverno de 341-342.
14
Michel MESLIN, Les Ariens d’Occident, 335-430, Paris, 1967, p. 32 (primeira citação) e 33.
16
O conhecimento tardio da obra de Meslin impediu-me de a analisar na dissertação de
doutoramento, publicada em 1969. Limitei-me a referir o seu aparecimento e a anunciar para mais
tarde um comentário à mesma (op. cit. p. XIX).
17
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substantia é acompanhada da confissão da unidade substancial da Trindade. A exegese aí feita de vários passos joânicos – Jo 1,1 (In principio
erat Verbum), 10,30 (Ego et Pater unum sumus), 14,9 (Qui me vidit videt
et Patrem) e 14,10 (Ego in Patre et Pater in me) e 1 Jo 5,8 (Et tres unum
sunt) – mostra-o bem. As numerosas comparações e analogias deste tratado convergem na mesma direcção. Por outro lado, as críticas de Febádio ao recurso a indicações psicológicas para apoiar a teologia ariana não
visam a Epistula de substantia Patris et Filii et Spiritus sancti, mas outra
Epistula Potamii, hoje perdida e da qual o bispo de Agen transcreve o seguinte passo: caro et spiritu Christi coagulatis per sanguinem Mariae et
in unum corpus redactis passibilem Deum factum 18. Este texto não se encontra no De substantia.
O comentário de Febádio revela que a Epistula Potamii defendia uma
cristologia do tipo Verbo-carne na perspectiva ariana, conforme demonstrei na dissertação de doutoramento e pela primeira vez na historiografia do escritor lusitano19. Com efeito, nesse esquema cristológico não se
atribuía a Cristo alma humana e as faculdades desta eram assumidas pelo
Verbo. Assim sendo, as fraquezas psicológicas de Jesus (tristeza, medo,
etc.), de que o Verbo se tornava agente, provariam, segundo os arianos,
que Ele é um Deus “passível”, inferior, que não é consubstancial do Pai.
O niceísmo do De substantia situa-se nos antípodas de semelhante orientação doutrinal. A leitura eusebiana desta obra está viciada pela confusão
estabelecida por Meslin entre os dois escritos de Potâmio 20.
Para conclusão deste apartado, acrescento cinco estudos publicados
em Lisboa nos últimos quinze anos.
Em 1996 M. Justino Maciel deu à estampa um valioso trabalho sobre a arte romana tardia e paleocristã em Portugal nas suas quatro vertentes principais: arquitectura, escultura, pintura e mosaico. Para melhor enquadramento da matéria, sumaria nos três primeiros capítulos os dados
da história geral desta região do império romano nos séculos III-VII com
atenção particular às controvérsias doutrinais e aos escritores eclesiásticos. Em relação a Potâmio, aceita a historicidade do controverso testemunho do Libellus precum dos luciferianos Faustino e Marcelino segun FEBÁDIO DE AGEN, Contra Arianos, 5; PL 20,16 e CCL 64,27.
18
António Montes MOREIRA, op.cit., p. 151-155, 158 e 322.
19
António Montes MOREIRA, art. cit. , p. 315-326.
20
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do o qual o bispo lisbonense, por ocasião da passagem ao partido ariano
em 355-356, teria sido gratificado pelo imperador Constâncio II com a
oferta dum domínio público (fundus fiscalis); não teria, porém, tomado
posse dele por ter morrido no caminho quando se dirigia para lá21. Tratar-se-ia, continua o autor, de “uma grande propriedade rural”, una villa que
“estaria algo longe de Olisipo, mas na sua área de influência ou eventualmente até no actual Alentejo”.
M. Maciel anota que, “mais do que a localização do fundus, o interesse desta informação vem do facto de também na Lusitania os bispos possuirem propriedades rurais fundiárias, quer para produção, quer para descanso ou otium como os seus congéneres da Itália ou da Gália, seja por
pertencerem a famílias aristocráticas detentoras de grandes fundi no campo, seja como administradores dos bens eclesiásticos, desde que Constantinus distribuiu à Igreja massa fundorum“. Esses prelados eram assim “grandes potentiores e possuidores de fundi, como Potamius de
Olisipo“22.
Na viragem do milénio vieram a lume duas sínteses modelares sobre
os escritores eclesiásticos do Ocidente Peninsular durante a época patrística: uma de Isidro Lamelas23 e outra de P. Alves de Sousa24. Sobre o percurso doutrinal de Potâmio, ambos afirmam, com alguma dúvida, o seu
regresso à ortodoxia depois de 35925. A hesitação do primeiro autor ficou
21
FAUSTINO e MARCELINO, Libellus precum ad imperatores Valentinianum, Theodosium
et Arcadium, IX (32) e XI (41); PL 13, 89 e 91 e CCL 69, 368 e 370. Na dissertação de doutoramento exprimi fortes dúvidas a respeito da historicidade do testemunho do Libellus precum sobre
a pasagem de Potâmio ao arianismo devido à origem luciferiana deste escrito (Potamius de Lisbonne et la controverse arienne, p 90-94). Em 1975, tendo em conta observações de M. Meslin, E.
Boularand e M. Simonetti, adoptei uma posição mais matizada distinguindo entre a historicidade
fundamental da informação do Libellus sobre a adesão do bispo de lisboa ao arianismo e alguns
pontos incontroláveis (Le retour de Potamuis de Lisbonne à l’orhtodoxie nicéenne, p 305-310),
concretamente a história do domínio público e as circunstâncias da morte de Potâmio.
22
Manuel Justino MACIEL, Antiguidade Tardia e Paleocristianismo em Portugal, Lisboa,
1996, p. 39 (três primeiras citações) e 49.
23
Isidro Pereira LAMELAS, Patrologia (Lusitana), em Dicionário de História Religiosa de
Portugal, III (J-P), Lisboa, 2000, p. 404-416, com apresentação de 14 escritores.
24
Pio G. Alves de SOUSA, Patrologia galaico-lusitana, Lisboa, 2001, com um elenco de 15
autores. Sobre Potâmio, p. 15-21.
25
Isidro LAMELAS, art. cit.,p. 412: “Depois do concílio que teve lugar em Rimini (359),
Potâmio parece ter regressado à fé de Niceia, como demonstra a sua Epistula ad Athanasium”
e Pio A. de SOUSA, op. cit., p. 16: “Tendo em conta, contudo, a provável fixação da data da
Epistula ad Athanasium a partir de 359, poderemos afirmar a volta à ortodoxia”.
600
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dissipada na introdução à edição bilingue das obras do bispo de Lisboa26.
Por sua vez, Ana Maria Jorge, na primeira e bem documentada obra
de conjunto sobre o episcopado lusitano da Antiguidade Tardia, sustenta
que, “por volta de 359, provavelmente depois do concilio de Rimini, Potâmio regressou seguramente à ortodoxia de Niceia como mostra a sua
carta dirigida a Atanásio”27.
Como referi na dissertação de doutoramento ao expor a restauração
do niceísmo nos anos sessenta do século IV, o concílio de Alexandria de
362 e outros sínodos efectuados logo a seguir na Grécia, na Itália, na Gália e na Espanha adoptaram uma atitude indulgente para com os arianos e
os lapsi nicenos que voltassem à ortodoxia. Todos os arrependidos manteriam o seu lugar entre o clero excepto os que tivessem dirigido ou patrocinado o movimento ariano. Assim sendo, deduzi, Potâmio, “tendo em
conta o papel desempenhado no seio do partido ariano, corria o risco de
ser excluído das fileiras do clero e por conseguinte de perder a sua sede
episcopal. Por falta de informações ignoramos como as coisas se passaram realmente”28.
M. Conti e M. Simonetti perfilham a hipótese de ele ter conservado a
diocese até à morte e o segundo “julga que isso em parte explica a atitude
extremamente hostil dos contemporâneos para com o bispo de Lisboa”29.
O latim de Potâmio
Na dissertação de doutoramento, à semelhança de investigadores precedentes sobretudo Wilmart, classifiquei o estilo do bispo lisbonense de
“extravagante e complicado”, de “obscuro e emaranhado” e marcado por
26
Potâmio – Obras, por Isidro Pereira LAMELAS e José António GONÇALVES, Lisboa,
2012, p. 49: “Como no-lo demonstra a sua Epístola a Atanásio, provavelmente após o concílio
de Rimini, Potâmio regressou à doutrina ortodoxa de Niceia”.
27
Ana Maria C. M. JORGE, L’épiscopat de Lusitanie pendant l’Antiquité tardive (IIIe-VIIe
siècles),Lisboa, 2002, p. 106. Segundo a autora há notícias fiáveis da existência de 13 dioceses e
113 bispos lusitanos desde meados do século III até ao XVI concílio de Toledo de 693.
António Montes MOREIRA, Potamius de Lisbonne et la controverse arienne, Lovaina,
1969, p. 207.
28
29
Marco CONTI, The Life and Works of Potamius of Lisbon, Turnhout, 1998, p. 44, texto e
n.8. Conti informa na mesma nota que “this hypothesis was proposed by Simonetti in a discussion
with the present author”.
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 601
“afectação barroca”30. Um recenseador, especialista em latim da época,
esclareceu que “a redundância […] e o emaranhado da frase são uma característica bastante comum do latim tardio, tanto em autores cristãos
como pagãos”31. Por outro lado, salientei a dificuldade acrescida do “ léxico muito pessoal de Potâmio” e sugeri que “a sua latinidade mereceria
certamente um estudo particular”32. Nos últimos cinquenta anos vários filólogos deram à estampa contributos significativos neste domínio.
Ainda em 1969 Scudieri Ruggieri mostrou que o dinamismo do ritmo
da descrição da decomposição do cadáver, as proposições breves e assindéticas e a expressividade bem graduada do epílogo do De Lazaro evocando o regresso à vida de Lázaro e o triunfo de Cristo, bem como o realismo das apóstrofes antiarianas da Epistula, tudo isso manifesta recursos
linguísticos inegáveis como o conhecimento da língua, a destreza na progressão e o sentido da cor e dos contrastes. Por sua vez, no De substantia (cujo estilo, anota, se caracteriza pela busca da ordem e do equilíbrio)
o bispo lisbonense cultiva o paralelismo, as antíteses, os apostos e as frases curtas ou minutissimae sententiae, técnica que o autor julga poder
atribuir à leitura de Séneca. O latim de Potâmio já não é a língua clássica. Encontra-se a meio caminho entre esta e a linguagem coloquial do seu
tempo e apresenta simplificações das relações sintácticas e mesmo alterações semânticas que poderão reflectir variantes linguísticas locais. O
artigo encerra com um glossário bem documentado de 184 vocábulos potamianos retirados principalmente do De substantia. Na intenção do autor, este elenco pretende ser um contributo para o estudo do processo de
dialectalização do latim vulgar na península ibérica 33.
Em 1978 também J. Lorenzo situou o latim de Potâmio numa fase de
transição da língua de Roma e defendeu a influência da linguagem coloquial na escrita do bispo lusitano. Como sinal dessa interferência aponta várias peculiaridades da sintaxe de Potâmio: anacolutos, mudanças de
casos, faltas de concordância quanto ao número (com permutas entre o
António Montes MOREIRA, op. cit., p. 221, 239 e 255, respectivamente.
30
José Geraldes FREIRE, recensão em Theologica, 2ª série, 6 (1971) 241.
31
António Montes MOREIRA, op. cit., p. 322.
32
Jole SCUDIERI RUGGIERI, Considerazioni sul latino di Spagna del secolo IV, em
Cultura Neolatina, 29 (1969) 126-158; sobre Potâmio, p. 133-158. Algumas posições deste autor
serão contestadas em 1999 por V. Yarza Urkiola (cf. texto correspondente à n. 48).
33
602
antónio montes moreira
singular e o plural) e faltas de concordância entre substantivos e adjectivos ou pronomes quanto ao género (com trocas entre masculino, feminino e neutro). Os exemplos indicados são quase todos do De substantia 34.
Por sua vez, em 1989 S. Alvarez estudou o latim do escritor lusitano
na perspectiva específica da cadência rítmica da sua prosa. Assim, afirma, “tomando o estudo do ritmo como critério de autenticidade e considerando que os opúsculos Epistula ad Athanasium e De Lazaro são genuínos, por Potâmio se nomear expressamente a si mesmo no segundo e
o primeiro levar o seu nome no título, e comparando-os com o De substantia e o De martyrio Isaiae resultam grandes coincidências de ritmo,
cadência, prosódia, rima e estilo geral, marcado por pretensões retóricas
e empolamentos. Em suma, as quatro obras pertencem a Potâmio”. Depois, exemplificando com textos dos quatro escritos, este filólogo mostra
que o bispo de Lisboa adopta um ritmo triforme tendo em conta a quantidade, o acento e o volume fónico das sílabas longas e breves. Também
nesta área Potâmio se situa numa fase de transição entre a herança clássica e a prosódia nova da latinidade medieval 35.
Incorporo também neste apartado quatro estudos sobre matérias afins.
A passagem sobre as lágrimas de Cristo, bem ilustrativa do estilo retórico do bispo de Lisboa36, foi objecto de análise em trabalhos de G. M.
Verd37 e de F. J. Tovar Paz38.
Por sua vez, M. Maciel estudou os textos de Potâmio noutras perspectivas em dois eruditos artigos: um de apontamentos sobre alguns aspectos
da vida das populações na Lusitânia do século IV a partir de vocábulos
dos seus escritos 39 e outro documentando em numerosos termos de Pa34
Juan LORENZO, Acercamiento a la sintaxis de Potamio, em Emerita, 46 (1978) 117-130.
Não tive oportunidade de consultar o artigo deste autor intitulado Sobre un pasaje de Potamio:
“Nemo neminem deserit”, em Helmantica, 29 (1978) 165-171. A frase analisada encontra-se no
De substantia, nº 24(46), na p. 126 da presente edição.
35
Sergio ALVAREZ, El ritmo prosaico de Potamio de Lisboa (2ª mitad del s. IV), em
Euphrosyne,2ª série, 17 (1989) 265-276; passagem transcrita, p. 275.
De Lazaro, nº 15, em Potâmio – Obras, Lisboa, 2012, p. 102-103.
36
Gabriel Maria VERD, La predicación patrística española, em Estudios Eclesiásticos, 47
(1972) 227-251; sobre esta passagem, p. 229-230.
37
38
Francisco Javier TOVAR PAZ, La narratio “De las lágrimas” en el ”De Lazaro” de
Potamio de Lisboa, em La narratio cristiana antica – Codici narrativi, strutture formali, schemi
retorici, Roma,1995, p. 491-500.
Manuel Justino MACIEL, Entre Constâncio II e Juliano: a linguagem de Potâmio de
39
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 603
ciano de Barcelona e do bispo de Lisboa a permanência dum fundo cultural romano, a continuidade da simbólica da romanidade e a presença
de sinais da originalidade do Cristianismo e dos seus debates internos40.
Edições críticas e traduções inglesa e espanhola
A viragem do milénio trouxe duas novidades editoriais: a publicação
em 1999 das edições críticas das obras de Potâmio por M. Conti 41 e V.
Yarza Urkiola 42. Ambas saíram acompanhadas de traduções: inglesa no
primeiro caso e espanhola no segundo.
A edição de Conti foi precedida no ano anterior por um estudo biográfico e literário sobre o bispo de Lisboa com extenso comentário aos
seus escritos, transcrição do original latino segundo editores precedentes
e ainda a primeira versão inglesa dos mesmos. O autor sumaria com clareza os dois séculos e meio do debate sobre o percurso doutrinal de Potâmio e do processo de reconstituição do seu “corpus” literário. A sua linguagem, acrescenta, revela “forte tendência pessoal para hiper-realismo
e expressionismo” e uma “experiência espiritual pessoal que foi particularmente complicada e controversa” e “parece reflectir o drama duma
personalidade sob evidente pressão psicológica”; além disso, o bispo lisbonense “junta passagens escritas em estilo oratório complexo a construções coloquiais e faladas” e “coloca ao lado de vocábulos clássicos não
só termos técnicos cristãos mas também palavras novas que ele forja na
sua busca expressionista de tensão estilística e de efeitos chocantes”. Finalmente, no comentário às obras, seguindo os textos passagem por passagem, Conti identifica peculiaridades sintácticas e diversos hápax do esLisboa e o conhecimento da Lusitânia do séc. IV, em Revista da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas nº 13, 2000, p. 135-148.
40
Manuel Justino MACIEL, L’art et l’expression de la foi, na obra colectiva Pacien de
Barcelone et l’Hispanie au IVe siècle, Paris, 2004, p. 207-218.
Marco CONTI, Potamii episcopi Olisponensis opera omnia, em Corpus Chistianorum –
Series latina (CCL), LXIX A, Brepols, Turnhout, 1999, p. 55-277. A forma toponímica Olispo e a
sua derivada Olisponensis não figuram no clássico Lexicon totius latinitatis de E. FORCELLINI
e J. PERIN (cf. art. Olisipo et Olisippo, VI (Onomasticon), Pádua, 1940, p. 374, que regista uma
dúzia de variantes antes da invasão da Península pelos Árabes em 711). A primeira parte do vol.
69 A do CCL (p. 1-53) contém a edição crítica da Altercatio Ecclesiae et Synagogae, obra de
controvérsia antijudaica do século V escrita provavelmente no Norte de África.
42
Valeriano YARZA URKIOLA, Potamio de Lisboa: Estudio, edición crítica y traducción de
sus obras, Universidade do País Basco, Vitoria/Gasteiz, 1999, 339 pp.
41
604
antónio montes moreira
critor lusitano e assinala bastantes paralelos e reminiscências de clássicos
pagãos e de Tertuliano em relação a quem a dependência directa é por vezes manifesta 43.
Nesta introdução à edição crítica M. Conti apresenta de forma cuidada os 65 manuscritos conhecidos das obras de Potâmio: 16 da Epistula ad Athanasium, 43 do De Lazaro dos quais 14 incluem o De martyrio
Isaiae e 6 do De substantia, um dos quais, incompleto, foi elaborado no
século XII na canónica de Santa Cruz de Coimbra e se encontra hoje na
Biblioteca Pública Municipal do Porto44. Os nove mais antigos remontam
ao século IX. Os manuscritos do De Lazaro entroncam em duas grandes
famílias conforme transmitem esta homilia segundo a versão atribuída a
S. João Crisóstomo em princípios do século V (25 manuscritos) ou conforme o texto mais longo da mesma inserido num sermonário de S. Zenão de Verona pela mesma época (18 manuscritos)45.
O aparato da edição crítica compreende três secções: citações bíblicas, lugares paralelos ou reminiscências de autores pagãos e cristãos e
lições variantes dos manuscritos. Os escritores mais representados são
Apuleio, Lucano e Virgílio entre os primeiros e Tertuliano entre os eclesiásticos. O aparato regista as variantes de todos os 65 manuscritos, excepto algumas variantes ortográficas dos apógrafos, de modo a oferecer
uma visão mais completa da tradição manuscrita de Potâmio. Conti op43
Marco CONTI, The Life and Works of Potamius of Lisbon, vol. XXXII de Instrumenta
Patristica, colecção paralela ao Corpus Christianorum, Brepols, Turnhout, 1998, 190 pp.;
citações do texto, p. 41 (as três primeiras) e 42. Esta obra reproduz a dissertação de doutoramento
(PhD) do autor em filologia clássica na universidade inglesa de Leeds em Setembro de 1995
(Potamii Olisiponensis opuscula omnia – Text, Translation and Commentary with Introduction;
313 pp., policopiada), excepto um Index potamianus (p. 261-313) que contém 1662 vocábulos
dos escritos do Olissiponense.
44
Cf. Catálogo dos Códices da Livraria de Mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na
Biblioteca Pública Municipal do Porto, coordenação de Aires Augusto NASCIMENTO e José
Francisco MEIRINHOS, Porto, 1997, p. 87: ms. 9 de Santa Cruz (nº geral 25),22, fol. 115rb116va.
45
O número global de 65 manuscritos inclui três espécimens hoje desaparecidos mas de
que se conhecem as variantes incorporadas em edições impressas. São eles: para a Epistula ad
Athanasium, o ms. 28 da Biblioteca Municipal de Saint-Mihiel, utilizado em 1913 por Wilmart
na sua edição desta carta; e para a versão zenoniana do De Lazaro e o De martyrio Isaiae, o ms.
31 da abadia de S. Remígio de Reims e outro de Verona, colacionado por Fr. Sparaverio, dos
quais algumas variantes foram integradas na edição dos sermões de Zenão de Verona publicada
em 1739 pelos irmãos P. e H. Ballerini. Sobre os manuscritos utilizados por V. Yarza Urkiola, cf.
adiante a n. 50 e o texto correspondente.
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 605
tou ainda, acertadamente, por editar o De Lazaro em três versões: os dois
textos veiculados sob os nomes de João Crisóstomo e Zenão de Verona e
a fusão de ambos num documento unificado sob a designação de Potami
versio. Finalmente, a tradução inglesa acompanha e valoriza esta edição
crítica das obras latinas do prelado olissiponense46.
A primeira parte da obra de V. Yarza Urkiola é também preenchida
com o estudo biográfico e literário de Potâmio. O autor reconstitui os escassos dados conhecidos da vida do prelado lusitano a partir de cuidada
análise dos testemunhos dos contemporâneos e dos dados cronológicos
da Epistula ad Athanasium e passando também em revista as intervenções de onze historiadores no debate sobre o percurso doutrinal de Potâmio desde Flórez em 1758 até Simonetti e eu próprio em 197547. Segue-se
pormenorizada descrição de cada obra com os seguintes tópicos: descoberta e restituição ao escritor olissiponense, datação, finalidade, estrutura
e fontes, com relevo nesta matéria para Tertuliano. Quanto à linguagem
e ao estilo, Yarza privilegia o estudo morfológico, sintáctico e lexical. É
nas duas últimas áreas que a escrita de Potâmio apresenta desvios em relação à norma clássica. Certamente, conclui, “o latim de Potâmio pertence à época em que vive, mas está de todo afastado da fala popular. O seu
latim é deliberada e pretensiosamente culto, tem muito pouco a ver com o
latim vulgar. Que alguns vocábulos ou locuções populares se tenham introduzido nas suas obras […] são factos isolados. Não creio que alguém
se atreva a qualificar o latim de Potâmio como característico de alguma
zona da latinidade”48. A finalizar, vem um glossário de 107 vocábulos po46
Tive oportunidade de acompanhar a investigação do Doutor Marco Conti durante a minha
permanência em Roma no sexénio de 1991-1997 como Definidor (Conselheiro) Geral da Ordem
Franciscana. Nessa altura indiquei o seu nome à Direcção do Corpus Christianorum para levar a
efeito a edição crítica dos escritos de Potâmio, tarefa para a qual Dom Eligius Dekkers,fundador
dessa prestigiada colecção patrística, me tinha convidado em carta de 4 de Outubro de 1963 (cf.
Potamius de Lisbonne et la controverse arienne, p. 6, n.7, e Le retour de Potamius de Lisbonne
à l’orthodoxie nicéenne, p.351, n. 203). O distinto investigador teve a amabilidade de tornar
público nas suas duas obras sobre Potâmio o seu reconhecimento pela minha colaboração em
termos que me sensibilizaram (The Life and Works of Potamius of Lisbon, p. V e Potamii episcopi
Olisponensis opera omnia, p. 57).
47
O autor poderia ter salientado os dois contributos fundamentais da minha investigação
sobre o percurso doutrinal de Potâmio, que vêm resumidos acima no texto correspondente às n.
10 e 13.
48
Valeriano YARZA URKIOLA, op. cit., p. 155-156, discordando das opiniões de J. Scudieri
Ruggieri (sobre estas, cf. acima o texto correspondente à n. 33).
606
antónio montes moreira
tamianos que não pertencem ao latim clássico, possuem significado distinto do clássico ou são utilizados com alguma acepção particular; desses, 14 são hápax, termos exclusivos, do escritor lusitano49.
A edição crítica de Yarza Urkiola assenta em 63 manuscritos: 15 da
Epistula ad Athanasium, 5 do De substantia e 43 do De Lazaro dos
quais 12 incluem o De martyrio Isaiae. Por sua vez, a versão crisostomiana do De Lazaro está representada por 27 manuscritos e a zenoniana
por 1650. O autor descreve com esmero todos os espécimens e, além disso,
reconstitui o stemma codicum de cada uma das quatro obras de Potâmio.
A visualização gráfica permite assim acompanhar melhor a história da
transmissão textual dos escritos do primeiro bispo conhecido de Lisboa.
O aparato crítico desta edição apresenta três secções: indicação geral
dos manuscritos utilizados em cada página, referências bíblicas e variantes dos manuscritos. Este aparato, esclarece o autor,”é o chamado ‘negativo’, em que só aparecem as variantes deixadas de lado”51. Perante a
diversidade dos manuscritos e das suas variantes, compreende-se a presença de não poucas leituras divergentes nas duas edições potamianas de
199952. Finalmente, Yarza Urkiola enriqueceu também a sua edição com
a publicação da primeira tradução espanhola de Potâmio, que vem acompanhada de abundantes notas explicativas.
Op. cit., p. 156-167.
49
Números não coincidentes com os da edição de Conti (cf. n. 45 e texto correspondente).
Para a Epistula ad Athanasium o investigador italiano colacionou mais um manuscrito: o nº 77
da Biblioteca Humanista Municipal da cidade alsaciana de Sélestat. Quanto ao De Lazaro,Yarza
Urkiola consultou mais dois para a versão crisostomiana (os mss. theol. lat. fol. 122 e 592 da
“Staatsbibliothek Preussischer Kulturbesitz” de Berlim), mas, para a versão zenoniana e para
o De martyrio Isaiae, não teve em conta as variantes conhecidas de dois espécimens perdidos
(o ms. 31 da abadia de S. Remígio de Reims e outro de Verona). Finalmente, quanto ao De
substantia, ambos os editores, para além de quatro manuscritos comuns, utilizaram espécimens
próprios, todos incompletos: Conti, os mss. 25 da Biblioteca Pública Municipal do Porto e 134 do
Fundo Histórico da Biblioteca da Universidade Complutense de Madrid e Yarza Urkiola, o ms. 1
do Arquivo da Catedral de Córdova, que eu já tinha referenciado na dissertação de doutoramento
por incluir um trecho do De substantia (quase todo o nº 19/34-36 e parte do nº 20/38, p. 121123 da presente edição) incorporado num escrito moçárabe dos séculos IX ou X sobre os nomes
divinos (op. cit., p. 243-245).
51
Op. cit., p. 11. No original: «las variantes desechadas».
50
52
Yarza Urkiola só tomou conhecimento da edição de Conti quando o seu próprio trabalho
se encontrava já em fase de impressão. Por isso não pôde fazer um estudo detalhado do seu
conteúdo. Pareceram-lhe de atender duas opções de Conti no De substantia, acrescentando:
“noutras leituras, porém, o meu desacordo é bastante notório” (op. cit., p. 11).
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 607
Temas de filosofia e teologia
Para completar esta resenha diacrónica da bibliografia potamiana dos
últimos cinquenta anos resta apresentar quatro estudos: dois trabalhos
incorporados em obras de âmbito filosófico e outros dois sobre a doutrina mariológica dos escritos do prelado lusitano.
Em 1983 Pinharanda Gomes deu à estampa o segundo volume da sua
obra História da Filosofia Portuguesa, inteiramente consagrado aos escritores patrísticos do Ocidente Peninsular. Este investigador expõe brevemente o conteúdo dos escritos de Potâmio, mas não toma posição sobre as etapas do seu percurso doutrinal53.
Em 1999, no primeiro volume da obra colectiva História do Pensamento Filosófico Português, Paula Silva publicou um substancioso artigo sobre o contributo do escritor lusitano para a reflexão trinitária a partir da noção de substância54.
Por um lado, esclarece a autora, “a substância é apresentada como
nome de uma coisa singular, quando se diz que ‘os três são um só’”55. Assim “congregada numa mesma entidade, ela urde um entrançado de relações. Esta acepção deixa transparecer o limite da operatividade da noção de substância quando Potâmio a aplica à natureza trinitária de Deus.
De facto, o autor emprega de modo intencionalmente indistinto os termos
substância e relação,sem estabelecer um limite que permita entender a
especificidade deste último. (…) A união substancial entre o Pai e o Filho corresponde a uma mesma actividade realizada por dois diferentes”56.
Por outro lado, ”só ela [a substância] é garantia de toda a unidade, uma
vez que se pode definir como aquilo pelo qual uma coisa é, garantindo ao
real a sua consistência ontológica”57. Nesta segunda acepção, ela (subs53
J. Pinharanda GOMES, História da Filosofia Portuguesa, II: A Patrologia Lusitana, Porto,
1983, p. 127-131 (em especial p. 128: “a afirmação é arriscada, quanto à apostasia e regresso de
Potâmio”). O vol. I desta obra intitula-se A Filosofia Hebraico-Portuguesa e foi publicado em
1981.
54
Paula Oliveira e SILVA, Potâmio de Lisboa e a controvérsia ariana, em História do
Pensamento Filosófico Português, I: Idade Média, Lisboa, 1999, p. 43-65 especialmente 49-59.
55
Art. cit.,p.52-53, citando De substantia, 3(5): Substantia singularis vocabuli nomen est (p.
109 desta edição).
Art. cit., p. 53,citando De substantia, 10 (20-23), p. 116-117.
56
Art. cit.,p. 51, citando De substantia, 18 (33): Substantia ergo rei est omne illud per quod
57
608
antónio montes moreira
tantia) identifica-se com a própria realidade (res) “e a este nível o seu
sentido é suficientemente genérico para que Potâmio o possa tornar operativo, aplicando-o à análise de todo e qualquer grau de realidade, desde
a substância material à essência do próprio Deus”58.
O sentido genérico de substância e o recurso à linguagem figurada das
comparações levam Potâmio, explica a autora, a considerar indiferente
estabelecer a consubstancialidade das pessoas divinas sobre dados escriturísticos ou a partir da consideração da tessitura da túnica ou da substância de elementos da natureza. Nestes, a mesma substância persiste no
princípio originário e na realidade originada. Por exemplo: o trigo e a farinha, a lã e a túnica, o figo e a figueira (aliás, anota Potâmio, ambos designados em latim pela mesma palavra, ficus),o mel e o favo,o sol e os
seus raios e o rio e a sua nascente.
Finalmente, sobre a exegese do texto bíblico Faciamus hominem ad
imaginem et similitudinem nostram (Gn 1,26), adverte a autora, enquanto para Orígenes “a efígie divina não está no corpo, que se corrompe, mas
nas virtudes da alma pelas quais esta se une à substância divina, inversamente, para Potâmio, essa marca dá-se inclusivamente – e quase preferencialmente – na matéria”. Assim, o Olissiponense “faz notar que o
Criador, ao modelar o homem do limo da terra, formou nele um só rosto,
para revelar a unidade da substância, mas nele diversificou as faces”59. A
mesma convergência existe entre a sensação única dos órgãos dos sentidos e a composição dual dos seus membros externos bem como na actuação conjunta dos membros do corpo: unidade de visão com dois olhos
e de audição com dois ouvidos, unidade da linguagem graças aos movimentos combinados da língua e dos lábios e sinergia eficaz entre os braços e as suas três partes e entre a mão e os dedos.
No V Congresso Mariológico Internacional, celebrado em Lisboa em
1967 na ocorrência do cinquentenário das aparições de Fátima, apresentei uma comunicação sobre as duas passagens mariológicas do escritor lusitano: o pequeno fragmento, citado por Febádio de Agen, duma
Epistula Potamii de conteúdo ariano e há muito desaparecida e a primeiest res (p. 121). A mesma definição aparece no nº 3(5), p. 109.
Art. cit., p. 53.
58
Art. cit., p. 58 (primeira citação) e 59, citando De substantia, 23 (43): Dissona facies, sed
vultus aequalis est (p. 125).
59
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 609
ra parte da doxologia mariana conclusiva da Epistula Potamii ad Athanasium60. O comentário às doze palavras do fragmento dessa Epistula
da fase ariana de Potâmio foi incorporado acima noutro contexto61. Passo a resumir as conclusões da breve análise àquele trecho da Epistula ad
Athanasium, de cunho vincadamente ortodoxo. O bispo lisbonense afirma aí a virgindade perpétua, a maternidade divina e a glorificação de Maria e parece identificar a Virgem com a esposa do Cântico dos Cânticos
(Ct 6,9: una est columba mea) e eventualmente também com a mulher da
visão do cap. XII do Apocalipse. Afigura-se, porém, mais duvidoso que
testemunhe a favor da maternidade espiritual e da Assunção62.
Em 2000 os textos mariológicos de Potâmio voltaram a ser objecto
de investigação, desta vez por I. Lamelas na secção portuguesa do Congresso Mariológico Internacional efectuado em Roma nesse ano jubilar.
A perspectiva de análise foi então alargada. Conforme indicado no título
da comunicação, o propósito era estudar o mistério da Trindade e Maria
nos escritos do Olissiponense situando-os num enquadramento histórico
e teológico mais vasto e “sublinhando a relação entre a mariologia aí implícita e a teologia trinitária que subjaz aos mesmos e que constitui o cerne de toda a questão potamiana”63.
Ao pequeno texto da Epistula, conservado por Febádio de Agen, e
a outros escritos perdidos da fase ariana de Potâmio o autor associa um
fragmento duma Epistula Athanasii ad Potamium episcopum, igualmente desaparecida, que censura o prelado olissiponense por considerar o
Verbo Encarnado como criatura64. O facto de a figura principal do movi60
O texto completo da doxologia ocupa quase todo o nº 10 da presente edição, desde Sola
semper até in aeterna semper saecula saeculorum (p. 95-96). Por lapso utilizei apenas a primeira
parte, desde Sola semper até caput coronatum adtollat.
Cf. texto correspondente às n. 17-20.
61
A comunicação foi apresentada em latim, segundo as normas então vigentes nesses
congressos organizados pela Pontifícia Academia Mariana Internacional de Roma, e saiu mais
tarde nas actas (Textus mariologici Potamii Olisiponensis, em De primordiis cultus mariani –
Acta Congressus Mariologici-Mariani in Lusitania anno 1967 celebrati, III, Roma, 1970, p. 205211). Entretanto, já tinha sido publicado o texto português: Dois textos mariológicos de Potâmio
de Lisboa, em Itinerarium, 13 (1967) 457-464. Na dissertação de doutoramento registei apenas
as conclusões da análise à primeira parte da doxologia da carta ao metropolita de Alexandria
(Potamius de Lisbonne et la controverse arienne,Lovaina, 1969, p. 224, n. 14).
63
Isidro Pereira LAMELAS, Mistério da Trindade e Maria em Potâmio de Lisboa (?-c. 360),
em Didaskalia, 31(2001) 61-87; passagem transcrita, p. 62.
62
Sobre este fragmento, citado por Alcuíno no seu Liber adversus haeresim Felicis escrito
64
610
antónio montes moreira
mento niceno se ter dado ao cuidado de o interpelar, explica, “mostra-nos
bem como também o papel de Potâmio não foi insignificante em todo
este debate”. Por outro lado, a argumentação do metropolita de Alexandria nesse fragmento segue uma linha apologética tradicional, já afirmada em Tertuliano,que evoca momentos significativos da história da salvação cujo ponto culminante foi o mistério do Verbo nascido da Virgem
Maria (caro factus ex Virgine). Em conclusão: “a concepção virginal aparece assim, no contexto da polémica trinitária, como argumento decisivo na defesa do dogma niceno” da consubstancialidade divina do Filho65.
A comunicação examina detidamente a dupla doxologia mariana e a
bênção final da Epistula Potamii ad Athanasium, que desdobra em sete
elementos. Segundo I. Lamelas, “facilmente constatamos estar perante
afirmações que não resultam da reflexão teológica do autor, mas são expressões espontâneas que tanto reflectem motivos da fé correntes, como
escondem reminiscências de fórmulas e expressões duma piedade e liturgia na qual a Virgem Maria ocupa já um espaço singular”66.Os comentários
do autor estão ancorados em ampla fundamentação patrística: cerca de 80
passagens de 25 escritores com relevo para Tertuliano,Santo Ambrósio
e Santo Agostinho. A referência a figuras posteriores a Potâmio visa ilustrar textos seus ou seguir a evolução de temáticas presentes nos mesmos. É o caso, nomeadamente, da polémica sobre a virgindade perpétua
de Maria, iniciada por Helvídio ao redor de 380 e na qual participaram
activamente Santo Ambrósio, S. Jerónimo, Rufino de Aquileia e o monge-diácono galego Baquiário, todos aqui mencionados nesse contexto.
O autor evidencia o nexo estabelecido pelo Olissiponense entre a virgindade perpétua de Maria e a sua maternidade divina (sola… semper…
virgo… puerpera) e anota judiciosamente que a preferência de puerpera (“parturiente”) a mater “serve para traduzir a realidade incarnada do
Verbo e negar qualquer interpretação doceta da Incarnação”, enquanto “o
complemento que lhe está associado (Deo) coloca de lado o erro extremo do arianismo”67.
cerca de 794, cf. António Montes MOREIRA, Potamius de Lisbonne et la controverse arienne,p.
159-167.
Art. cit., p. 68 (primeira citação) e 69.
65
Art. cit., p. 72.
66
Art. cit., p. 77 (para as duas citações).
67
meio século de investigação sobre potÂmio de lisboa 611
Por outro lado, também considera “anacrónico” tomar as fórmulas de
glorificação da Virgem (cum laureis… usque ad caeli caput coronatum
adtollat) como referência à Assunção e à doutrina da realeza de Maria.
Quanto às expressões una nobis columba e fecunditate numerosior, tendo em conta lugares paralelos de Clemente de Alexandria, Tertuliano, S.
Cipriano e Santo Ambrósio, admite a leitura eclesiológica da primeira e
que a segunda não se confina à maternidade divina da Virgem por obra
do Espírito Santo (columba) mas envolve igualmente a sua maternidade espiritual para com os fiéis; com efeito, adaptando um texto de Santo Ambrósio, “o que em Maria se iniciou é continuado e completado na
Igreja, na medida em que ela é o arquétipo da fecundidade eclesial e do
crescimento espiritual de todos os que acolhem a Palavra”68.
Finalmente, ao comentar a segunda parte da doxologia, o autor associa a virgindade e a maternidade/fecundidade de Maria ao mistério da
Trindade sublinhando que Ela foi declarada “bendita” por ter sido “consagrada” pela Trindade una e inseparável (Sit benedicta… Trinitatis unitate consecrata). Assim, anota, “Potâmio encerra com chave de ouro a
sua argumentação trinitária, colocando a mariologia como último argumento e chave de toda a questão tratada” ao longo da sua Epistula ad
Athanasium69.
A versão portuguesa das obras latinas de Potâmio de Lisboa vem coroar de maneira feliz meio século de investigação sobre esta relevante figura episcopal do Ocidente Peninsular de meados do século IV.
O resultado principal dessa pesquisa, para o qual contribuí de forma
determinante, foi ter demonstrado com segurança o seu regresso à ortodoxia de Niceia, pondo assim termo ao debate bicentenário sobre a sua
evolução doutrinal. Por outro lado, na viragem do milénio saíram duas
edições críticas dos seus escritos e duas traduções dos mesmos, uma inglesa e outra espanhola.
Agora chegou a vez da tradução portuguesa, incluída na apreciada colecção patrística Philokalia graças à clarividência do seu fundador e director, ao empenho das Edições Alcalá e ao esforço e competência do
Art. cit., p. 83 (primeira citação) e 82.
68
Art. cit., p. 71.
69
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antónio montes moreira
tradutor. É um meritório serviço prestado à história e à cultura teológica nacionais.
Pela minha parte, tendo iniciado o estudo de Potâmio no longínquo
1959 no primeiro ano do curso universitário de teologia em Lovaina,
agradeço a oportunidade oferecida para o revisitar neste prefácio, escrito em jeito de recapitulação e despedida.