Desde que iniciamos os estudos acerca da obra de

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Desde que iniciamos os estudos acerca da obra de
www.interletras.com.br – v. 2. n. 4 – jan./jun. 2006
A COSTURA DA COLCHA:
UMA LEITURA DE BERNARDO ÉLIS
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi*
RESUMO: Nosso trabalho propõe uma análise dos contos do escritor Bernardo Élis. Os
estudos acerca da obra bernardiana têm privilegiado, até o momento, questões
lingüísticas e temáticas, daí a necessidade de um estudo mais aprofundado das
técnicas e procedimentos literários da poética bernardiana. Analisamos o processo
metafórico representado pela imagem da colcha de retalhos, cujo fio condutor − o
ato de costurar − constitui-se um eixo poético da narrativa contista do autor. O corpus
deste trabalho delimitou-se em torno das obras Ermos e gerais, Veranico de janeiro,
Caminhos e descaminhos, acrescidos da coletânea Caminhos dos gerais, e evidenciam
que a literatura bernardiana possui características de uma ficção que segue técnicas do
expressionismo e surrealismo, num contraponto marcadamente modernista. Trata-se
de uma literatura exploradora de técnicas narrativas como o fluxo de consciência, o
monólogo interior, o discurso indireto livre, amparadas pela mais recente tradição da
arte literária.
Palavras-chave: Bernardo Élis; narrativa contista; metáfora da colcha; análise
literária.
RESUMEN: Nuestro trabajo propone un análisis de los cuentos del escritor Bernardo Élis. Los
estúdios acerca la obra bernardiana están privilegiando, hasta el presente momento, cuestiones
lingüísticas y temáticas, de ahí la necesidad de un estudio más profundizado de las técnicas y
procedimientos literarios de la poética bernardiana. Analizamos el proceso metafórico
representado por la imagen de la colcha de retazos, cuyo hilo conductor - el acto de coser - se
constituye un eje poético de la narrativa cuentista del autor. El corpus de este trabajo se
delimitó alrededor de las obras Ermos y generales, Veranico de enero, Caminos y descaminos,
añadidos de la recopilación Caminos de los generales, y evidencian que la literatura bernardiana
posee características de una ficción que sigue técnicas del expresionismo y surrealismo, en un
contrapunto marcadamente modernista. Se trata de una literatura explotadora de técnicas
narrativas como el flujo de la consciencia, el monólogo interior, el discurso indirecto libre,
amparadas por la más imnovadora tradición del arte literaria.
Palabras clave: Bernardo Élis; narrativa cuentista; metáfora de la colcha; análisis
literário.
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RETALHOS INTRODUTÓRIOS NO UNIVERSO DA COLCHA
Produzir uma obra em uma região ainda
estigmatizada, num topos determinado –
Mato Grosso do Sul -, sobre obra e autor
que ainda não foram efetivamente
submetidos ao crivo dos assim chamados
grandes críticos, exige, daquele que se
propõe essa tarefa, um caminhar além dos
mapas e, ao mesmo tempo, representar o
espaço que viu germinarem essas obras.
Marlene Durigan (UFMS/Três Lagoas)
Desde que iniciamos os estudos acerca da obra de Bernardo Élis, temos
sido constantemente questionados: por que Élis? Respondíamos que
tínhamos em mente trabalhar algo nosso, algo verdadeiramente nosso
(entravam-se aí os limites do geográfico) e que tivesse importância
literária, além de ser algo possível de se problematizar. Élis é nosso, é
um escritor nascido em nossa região centro-oeste e tido pela crítica
como realista social, além de introdutor do Modernismo nesta região do
país. Mas nosso entusiasmo pela literatura bernardiana realmente se fez
presente quando percebemos que esta literatura não era apenas de
natureza verossímil, característica do neo-realismo literário dos anos
30/40, tão bem explorado (bem e mal) por quase todos que escreveram
sobre a obra de Élis.1 Ora, a obra de Élis, com seus períodos
compassados por um controle delicado e aparentemente casual,
experimentando uma conformação simbólica particular e modalidades
de concreção diferenciadas, anda, a nosso ver, em muitos momentos,
na contramão da geração de 30. E foi desta forma que rompemos com a
barreira do geográfico, pois percebemos que Élis é muito mais “nosso”,
por morar no significado deste pronome a amplitude generalizante de
um dos escritores tão caros para a literatura brasileira e para a
literatura universal. E hoje, quando nos perguntam o porquê de estudar
um escritor ainda pouco conhecido, respondemos que queremos
ampliar os estudos sobre o virtuosismo técnico e sobre os
procedimentos literários de um dos maiores escritores brasileiros da
literatura moderna e contemporânea.
1
TELES. Gilberto de Mendonça. Dos ermos aos caminhos dos gerais. Folha de Goyaz.
Transcrição do suplemento cultura, p. 9. Goiânia, 12 ago.1979- Fundo Bernardo Élis/
CEDAE.
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Os estudos acerca da obra bernardiana têm privilegiado questões
lingüísticas e temáticas. Aí, na área desse quintal, sob a óptica de uma
concepção menos técnica, a obra de Bernardo Élis tem revelado a
cicatriz mais visível de sua circunstância regional: “o regionalismo das
formas lingüísticas (da língua e não da linguagem) e por isso mesmo
uma semântica mais ideológica que necessariamente literária”2. Assim,
é pujante a necessidade de um estudo mais profundo da técnica e dos
procedimentos literários da poética bernardiana. Um estudo que, sem
menosprezar ou supervalorizar o lingüístico ou o ideológico, aponte para
uma totalidade do ser literário da narrativa bernardiana. Só assim se
fará claro que a literatura bernardiana é uma criação da linguagem
muito mais que uma expressão do mundo (o que também é de grande
valor em sua literatura), pois Élis tem a característica peculiar de quem
se aplica à ficção, ou, como disse Mário de Andrade, ao ler seu primeiro
livro de contos Ermos e Gerais: “o dom de impor na gente, de
evidenciar a sua realidade, pouco importando que essa sua realidade
seja ou não o real da vida real.”3
Portanto é preciso problematizar as relações entre realidade e ficção e
discutir a utilização das metáforas e das imagens, provocadas, em
demanda, nos contos bernardianos. Metáforas que, eternizando o estilo
bernardiano, dão-lhe, além disso, um colorido especial. São as
metáforas que criam “a imagem e a simbolização que tornam os contos
bernardianos diferentes e ricos”.4 Contos em que a atmosfera é
sustentada por um fundo sonoro que concorre para plasmar a ambiência
do sertão, explicitamente ou em sugestivas metáforas fônicas:
Fundo sonoro que distende a solidão sertaneja,
reorganizada pelas onomatopéias e outros jogos fônicos
(aliterações, coliterações, quiasmas...). “O ermo que
alargado com o trilili dos grilos, com o sufocar da saparia e
o grololó da enxurrada crescida na grota, onde indagorinha
as saracuras apitavam”.5
2
TELES, Gilberto de Mendonça. Dos de ermos aos caminhos gerais. Folha de Goyaz.
Transcrição do Suplemento Cultura, p. 9. Goiânia, 12 de ago.1979- Fundo Bernardo
Élis/CEDAE
3
RIEDEL.Dirce Cortes. Saga de espantos. Transcrição do Jornal do Comércio, p. 12 e
13. Rio de janeiro, 24 de abr. e 1 de maio 1966-Fundo Bernardo Élis/CEDAE.
4
ALMEIDA. Estudos sobre quatro regionalistas, p. 57.
5
Dirce Cortes Riedel comenta em ensaio intitulado: Saga de Espantos. Cf. RIEDEL
Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 24 de abril e 1 de maio 1966-Fundo Bernardo
Élis/CEDAE .
3
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É a arte do novo, do anormal, do dissonante, que antes de trabalhar a
referência externa, trabalha a linguagem, num exemplo de arte
moderna.
COSTURANDO A COLCHA
A análise das questões metafóricas e da metáfora da colcha de
retalhos, na trilogia de Bernardo Élis, Ermos e Gerais, Caminhos e
descaminhos e Veranico de janeiro, acrescida pela antologia Caminhos
dos gerais, desdobrar-se-á em dois níveis de análise: proposições
teóricas, teorização – momento em que lançaremos mão de teorias da
narrativa e estudos de poética e retórica como suporte técnico de
abordagem literária, e na leitura dos contos propriamente ditos, quando
operacionalizaremos o corpus prático de nosso trabalho. Tal corpus
encontra-se delimitado por uma parcela significativa da produção
contista do autor (sete contos), extraída da trilogia mencionada.
Propomo-nos, no decorrer deste trabalho, levantar a evolução literária e
o processo criativo de Bernardo Élis. Para isto, em um primeiro
momento fazemos um estudo conceitual do regionalismo-modernista,
para, só assim, melhor abordar a questão da forma e da construção da
matéria ficcional dos textos do autor. Analisaremos, dentre outros, dois
procedimentos literários que, aprofundados, poderão constituir
excelentes interpretações do sentido mais amplo da obra bernardiana: o
primeiro está ligado ao enigma das metáforas que, produzindo imagens
literárias, perpassa toda a linguagem literária bernardiana. Desvendá-la,
como em toda obra literária, será impossível, mas familiarizarmo-nos
com ela será um desafio! O segundo diz respeito à variação da metáfora
da colcha de retalhos, que acreditamos ser recorrente na literatura de
Bernardo Élis. As transformações operadas nesses dois pontos levantam
um postulado ou hipótese de trabalho, que nos pode indicar uma análise
e uma série de reflexões críticas as quais poderão apontar a totalidade
do ser literário da obra bernardiana e mostrar que ao interesse
argumental contrapõe-se o virtuosismo técnico. Isso tudo, segundo a
perspectiva das modificações operadas nas figuras narrativas em um
período de 35 anos de produção literária bernardiana. Assim, este
trabalho de levantar a evolução literária e o processo criativo do referido
autor terá como base não o estudo de um único livro de contos, mas o
projeto de análise das seguintes narrativas curtas (contos): 1.“O caso
inexplicável da orelha de Lolô”, do livro de contos Ermos e gerais, 2.
“Uma certa porta”, do livro contos de Caminhos e descaminhos,3. “ A
Enxada”, do livro contos de Veranico de janeiro, 4.“Talvez uma vida,
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talvez uma lenda” e 5.“Noite de São Lourenço”, do livro
Caminho dos gerais.
de contos
A escolha desses contos não resulta em uma escolha arbitrária, pois
todos esses relatos possuem relevância no percurso da literatura de
Bernardo Élis, conforme procuraremos demonstrar no decorrer da
investigação. Neste sentido algumas especificidades do conto
bernardiano podem ser já assinaladas: o relato“O caso inexplicável da
orelha de Lolô”, faz parte de uma obra maior, Ermos e gerais (1944),
que vai tornar o escritor conhecido do público e da crítica. Já nessas
primeiras narrativas o trabalho de Élis se mostra de nível superior,
registrando o falar da gente simples e imprimindo-lhe consistência
artística. O conto “O caso inexplicável da orelha de Lolô”, segundo o
próprio autor, tem destacada importância por ser um grande exemplo
de sua prática da literatura fantástica e de seu humor negro, além de
ser uma sátira ao mito da virgindade da mulher sertaneja: “O Caso
inexplicável da orelha de Lolô” era uma sátira à mulher fatal, ao mito da
virgindade ou fidelidade amorosa da mulher sertaneja...”6 Com relação
ao conto “Uma certa porta” foi selecionado do livro Caminhos e
Descaminhos (1965), uma vez que nesta obra, segundo o cotejo crítico,
Bernardo Élis, atinge sua maturidade artística e mostra grande
conhecimento da técnica do conto.”7 Tal obra mereceu o seguinte
comentário de Guimarães Rosa :” Ninguém em país nenhum, nenhum
tempo, parte alguma escreveu coisa melhor”8. Em “Uma certa porta”,
Élis utiliza-se eficazmente da técnica simultaneísta por meio da
focalização alternada da situação vivida pela personagem protagonista e
seu fluxo de consciência.”
O conto “A Enxada”(Veranico de Janeiro 1966) é considerado pela crítica
como sua principal produção literária, em virtude da confluência das
técnicas de realização estilística com a temática social.9
Os dois últimos contos citados, “Talvez uma vida, talvez uma lenda” e
Noite de São Lourenço”, só aparecem em Caminhos dos Gerais, uma
coletânea que reúne contos extraídos de Ermos e Gerais e Caminhos e
Descaminhos, reunidos, agora, como contos inéditos. Esses contos
chamam a atenção pelo seu teor lírico e pela inovação da técnica do
ponto de vista, da construção e do trabalho estilístico ali desenvolvidos.
Diante do exposto, a análise do processo metafórico e da metáfora da
6
Élis comenta em entrevista intitulada : “A vida são as sobras”. (Cf. FREDERICO e
LEÃO. Remate de Males, 1997, p.71.)
7
Cf. ABDALA Jr. Bernardo Élis, p. 31.
8
ÉLIS. Seleta, p. 04.
9
Cf. ABDALA Jr. Bernardo Élis, p. 61.
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colcha de retalhos no percorrer do mundo criativo de Bernardo Élis é
tarefa que nos propomos com o intuito de melhor compreender o
universo poético que alimenta a escritura do autor. Para tanto, julgamos
indispensável o desenvolvimento da análise e estudo dos contos que
compõem o corpus de nossa pesquisa. Cientes de que o
desenvolvimento toda e qualquer opção de análise significa escolher
uma forma de crítica10 e de que nesse terreno censuram-se as idéias
preconcebidas, não nos pautaremos por uma crítica empírica que se
julga destituída de princípios, mas que os tem sem saber. As nossas
análises
serão
confrontadas
com
as
teorias
da
narrativa,
particularmente do conto, não enquanto gênero literário, mas como
matéria ficcional, e da valorização do discurso bernardiano pelo estilo
poético. Assim, a análise da narrativa será o eixo orientador ou
desorientador do trabalho, afinal, na literatura moderna, a atividade de
análise, traduzida como atividade de crítica, antepõe-se ao trabalho do
crítico na qualidade de uma opção do próprio fazer literário, uma vez
que o escritor age em comunhão com os projetos e propostas ditados
pelo seu tempo11.
Segundo Pouillon, o conto é uma simples narrativa na qual o primeiro
lugar cabe à ação; por certo a psicologia não fica forçosamente ausente
e os contos visam muitas vezes a um significado que compete ao leitor
propor. Portanto o nosso lugar é o do leitor-crítico, pois, se todo texto
se constitui enquanto produção não da escrita e sim da leitura, o sentido
da obra não estará no seu próprio texto, mas no texto que o leitor cria.
Aceitar a obra ou recusá-la é tarefa do leitor que a desenvolverá com
pressupostos estéticos.12 No decorrer do trabalho, parafraseando Élis,
também estaremos confeccionando a nossa colcha de retalhos,
nascida da costura de retalhos de análise, arrematada pela voragem da
escrita, para, num último momento, o da análise, construir um eixo
analítico, que, metaforicamente, reforçará a idéia da costura, tão cara
e emblemática na narrativa contista de Bernardo Élis. Essa emblemática
do texto como costura, como colcha de retalhos, já assinalada pelo
título deste trabalho constitui-se numa imagem recorrente, uma
invariante comum no corpus selecionado.
Este livro, como vimos, com o objetivo primordial de pontuar a
importância do corpus em análise, propõe-se chamar a atenção para
alguns aspectos estilísticos da prosa de Bernardo Élis, bem como
justificar a escolha de um escritor que, apesar dos parcos escritos sobre
sua obra, há muito se tornou um grande nome na literatura brasileira,
10
Cf. NOLASCO. Nas malhas da rede, p 18.
Cf. NOLASCO. Nas malhas da rede, p.18.
12
Cf. FARINA. Estatuto poético, p. 57.
11
6
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garantindo lugar definitivo entre os melhores prosadores da língua
portuguesa, e especialmente da literatura brasileira contemporânea: “A
minha impressão é que Bernardo Élis subiu a uma altura de mestre
original, e que na literatura brasileira poucos podem gabar-se de ter
encontrado fórmula narrativa tão eficiente”.13
O ARREMATE POSSÍVEL
Para todos os sentidos, preferimos que nosso estudo seja entendido
como work in progress. Afinal, trabalhar o texto literário será sempre
um desafio, significará trabalhar o imponderável. E para se chegar a ele
não há o caminho, nem um caminho e sim caminhos, pavimentados pela
poética.
É, pois, de modo provisório, arbitrário, que arrematamos o viés final de
nossa colcha de análise. Tentamos, através dos resultados conseguidos,
evidenciar o quanto o trabalho de pesquisa sobre a literatura tende a ser
limitado pelo corpus operacional, pois o ato criador é a manifestação de
uma linguagem carregada de virose simbólica que vai revelando-se em
seu mistério. Assim temos a convicção de que nossa leitura é um
convite a outras leituras e de que nossa colcha pode ser o retalho de
outras colchas que poderão ser confeccionadas por nós, ou por outros
estudiosos que se interessem pela instigante obra do escritor brasileiro
contemporâneo Bernardo Élis.
Tentamos inovar, colaborando com alguma parcela de novidade, na
medida em que incorporamos traços da ensaística. Este é o destino da
ciência : pôr-se sempre em limites novos, com possibilidades de
resolver os problemas dentro desses limites, ou então abdicar de suas
pretensões e buscar novos rumos. Por isto, nosso estudo é apenas um
retalho a mais na extensa colcha que a humanidade tenta desenvolver
acerca do mistério e da luminosidade do fenômeno poético. Nossa
leitura e as argüições por ela feitas são o resultado de um íntimo
convívio com a
poética de Bernardo Élis e a junção de estudos
reflexivos sobre a teoria literária de nosso tempo, refletindo assim um
exercício de crítica literária.
Nosso estudo com certeza apresenta lacunas, anuncia degraus que não
foram concretados ou concretizados, afinal para que a leitura fosse
objetiva suporia um discurso objetivo. Isto nos faz lembrar que a teoria
literária, entidade reguladora do fenômeno literário, tem a finalidade de
13
Cf. ABDALA Jr. Bernardo Élis, p.3.
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reexaminar contínua e sucessivamente seu corpus teórico-prático e que
cabe ao leitor, denominante de todos os que trabalham o texto, o dever
de pensar o fenômeno literário com uma visão apurada e crítica.
Portanto, a partir do que acabamos de evidenciar , pode-se por fim
afirmar que as costuras do presente estudo indicam que o projeto
ficcional bernardiano possui fortes características de uma ficção pautada
segundo os moldes expressionista e surrealista, altamente exploradora
de técnicas narrativas como o fluxo de consciência e/ou o monólogo
interior, amparadas pela mais recente transformação da arte literária.
Pontuamos que o neo-realismo bernardiano é o neo-realismo da
linguagem, da construção dessa linguagem dentro de processos
narrativos e da totalidade de relações dessa linguagem, inclusive das
relações com a língua. Ao lado disso, mostramos que os textos
bernardianos, atingem o auge da problemática que envolve as relações
entre ficção e a realidade. Assim, sua realidade poética, tecida pelo
ponto de vista e pelos principais personagens, através do caminho da
linguagem, constrói imagens e sentidos de vida, de arte, de cultura,
metaforizado por nós na colcha de retalhos, que só se materializa
realmente no movimento individual da leitura. Pois a literatura
bernardiana, como toda obra de arte literária, é uma aventura da
linguagem, em que o autor consegue tornar o comum em incomum, em
pura realidade poética. Nessa aventura, a palavra e a arte de escrever
tornam-se personagens enunciadoras de teorias construídas na
interlocução de múltiplas vozes narrativas.
Assim, chegamos ao arremate possível de nossa colcha. Não a
findamos. Afinal, lembrando o próprio Élis, acabar com uma colcha de
retalhos é correr o risco dela acabar com a gente. Por isto, pontuamos
que o corpo inteiro da literatura bernardiana só se dá na experiência
funda e insubstituível da leitura, desta forma não podemos
desconsiderar que leitura é um ato individual e, sendo assim, a cada
leitura, nossos retalhos terão tamanhos, formas e cores diferentes,
transfigurando e transformando a imagem de nossa colcha, de acordo
com a visão de intensidade, luz, forma e tessitura de entendimento da
pessoa que a lê. Evidencia-se assim que o corpus reflete não apenas um
autor neo-realista que trabalha com os ritmos da oralidade, mestre em
captar os anseios e a alma do homem, especialmente do homem de sua
terra, mas acima de tudo um mestre da arte de contar. Assim,
parafraseando Tristão de Athayde, nada mais regional do que “A
enxada”. Nada mais universal de que a trilogia bernardiana. Ninguém
mais provinciano que Élis. Nenhuma obra mais total do que a obra
bernardiana, pois, ao fazer crer que a vida é vivida aos retalhos, nos
lembra o ser da literatura, “simulacral” e provisório como os retalhos da
precária existência humana.
8
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VIEIRA, Emílio. O expressionismo na obra de Bernardo Élis e Siron
Franco. Goiânia: Ed. da UFG, 2000.
* Profa. M. Sc. Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi é Mestre em
Letras/Estudos Literários pela UFMS/Três Lagoas. Professora de Teoria
da Literatura, Literatura Brasileira, Semiótica e Teorias da Comunicação.
Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em
Comunicação e Semiótica e bolsista do CNPq. Autora dos livros: A
costura da colcha: uma leitura de Bernardo Élis; A costura da colcha:
uma análise semiótica de Bernardo Élis (no prelo); Leituras diversas escritos vários ao Sul do Pantanal (Org.).
E-mail para contato: [email protected] - [email protected]
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