sabrina pereira paiva silêncio, não dito e vergonha no balcão da

Transcrição

sabrina pereira paiva silêncio, não dito e vergonha no balcão da
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA
SABRINA PEREIRA PAIVA
SILÊNCIO, NÃO DITO E VERGONHA NO BALCÃO DA DROGARIA:
ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA
CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA
NO RIO DE JANEIRO/RJ
RIO DE JANEIRO
2014
SABRINA PEREIRA PAIVA
SILÊNCIO, NÃO DITO E VERGONHA NO BALCÃO DA DROGARIA:
ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA
CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NO RIO DE JANEIRO/RJ
Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título
de doutor em Saúde Coletiva.
ORIENTADORA:
PROFA. DRA. ELAINE REIS BRANDÃO
Rio de Janeiro
2014
P149 Paiva, Sabrina Pereira.
Silêncio, não dito e vergonha no balcão da drogaria: estudo etnográfico sobre a
comercialização da contracepção de emergência no Rio de Janeiro/RJ / Sabrina Pereira
Paiva. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2014. 225 f.: il.; 30
cm.
Orientador: Elaine Reis Brandão.
Tese (Doutorado) - UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2014.
Bibliografia: f. 203-217.
1. Anticoncepção pós-coito. 2. Saúde reprodutiva. 3. Farmácia.
4. Gênero e saúde. 5. Pesquisa qualitativa. 6. Sexualidade I. Brandão, Elaine Reis.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III.
Título.
CDD 363.96
SABRINA PEREIRA PAIVA
SILÊNCIO, NÃO DITO E VERGONHA NO BALCÃO DA DROGARIA:
ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA CONTRACEPÇÃO
DE EMERGÊNCIA NO RIO DE JANEIRO/RJ
Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título
de doutor em Saúde Coletiva.
Aprovado em 28 de março de 2014
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profª Dra. Elaine Reis Brandão - Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Inst. Estudos em Saúde Coletiva
____________________________________________
Profa. Dra. Soraya Resende Fleischer
Universidade de Brasília- Departamento de Antropologia
____________________________________________
Prof. Dr. Rogério Lopes Azize
Universidade Federal Fluminense – Departamento Ciências Sociais
____________________________________________
Profa. Dra. Cristiane da Silva Cabral
Universidade de São Paulo – Faculdade de Saúde Pública
____________________________________________
Profa. Dra. Jaqueline Teresinha Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Inst. Estudos em Saúde Coletiva
____________________________________________
Profa. Dra. Míriam Ventura da Silva- membro suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva
____________________________________________
Profa. Dra. Daniela Tonelli Manica- membro suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
AGRADECIMENTOS
Apesar da dose de solidão envolvida no desenvolvimento de uma tese, certamente, ela é fruto
de um trabalho coletivo. Sua existência se deve ao esforço e carinho de muitas pessoas, as
quais sou imensamente grata por compartilharem, de várias formas diferentes, os desafios
colocados por essa árdua e gratificante tarefa a que me propus:
- Agradeço primeiramente a minha orientadora, Elaine R. Brandão, pelo acolhimento, pela
confiança no meu trabalho, por estar junto em todos os passos da pesquisa. Pela oportunidade
de troca acadêmica, fundamental para meu amadurecimento intelectual. Uma amiga e grande
exemplo para mim!
- Agradeço ao CNPQ/CAPES pelo financiamento da pesquisa e ao Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva/Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo acolhimento institucional.
- Agradeço aos meus informantes, que me receberam bem e me ofereceram mais do que
dados para a investigação, mas ricos momentos de troca entre pesquisadora e sujeitos
pesquisados.
- Agradeço às professoras Regina Maria Barbosa, Adriana Vianna, Jaqueline Ferreira e
Rachel Aisengart Menezes pelas brilhantes contribuições e diálogos férteis ocorridos durante
a qualificação do projeto de tese.
- Agradeço aos professores Rogério Azize, Soraya Fleischer, Cristiane Cabral, Jaqueline
Ferreira, Míriam Ventura e Daniela Manica por terem generosamente aceito o convite para
comporem minha banca de doutorado, pela oportunidade de compartilhar minhas reflexões e
enriquecê-las com vossas observações, sugestões, concordâncias e/ou discordâncias.
- Agradeço aos professores e funcionários do IESC que foram muito solícitos e prestativos
toda vez que necessitei, e não foram poucas as vezes, especialmente a professora Neide
Kurokawa; Fátima Gonçalves e Nadja Oliveira da Secretaria; e Roberto Unger e Sheila
Ferreira, da Biblioteca.
- Agradeço à professora Míriam Ventura, que além de representar um grande exemplo de
intelectual e pesquisadora, trouxe sugestões fundamentais para o delineamento ético e
metodológico dessa investigação.
- Agradeço aos meus pais, Agostinho e Therezinha, por estarem o tempo todo firmes na
‘retaguarda’! Foram muito mais do que cúmplices, mas pai e mãe e avô e avó dedicados,
permitindo-nos tranquilidade quando pai e mãe do Pedro estavam ‘na estrada’!
- Agradeço aos meus amados: Luciano, meu companheiro e, ao meu filho Pedro, que foram
valentes companheiros, não me deixando fraquejar, permitindo o isolamento necessário,
abstendo-se muitas vezes da minha presença com eles, e que vibraram junto a cada conquista.
Minhas conquistas são suas também!
- Agradeço à minha irmã querida Débora, meu cunhado Arthur, meus primos/as: Larissa e
Gui, Anna Paula, Samuel, Rodrigo e Lela, Juliana. Ao tio Celso e tia Tânia, tia Martinha, tia
Bernadete e toda a grande família Pereira que me acolheu no Rio de Janeiro, com todo
carinho e cuidado que nos são familiares! Ao tio Petit por estar sempre pronto para me levar
ao Rio de Janeiro, ótima companhia.
- As amigas Débora Carvalho e Luciana Chedier, que foram maravilhosas companheiras de
viagem, de estrada e de vida. Suas caronas foram providenciais, alimento para minha alma.
- Aos meus/minhas amigos/as juiz-foranos da Escola Paineira/Waldorf: Bernadete, Carlinhos,
Ilka, Ricardo, Rachel, Jorge, Ana Paula, Cláudio, por terem compartilhado as tarefas maternas
e, acima de tudo, por se colocarem continentes ao meu lado para tudo que fosse necessário.
Pelas alegrias e dificuldades partilhadas durante esses anos, pelas conversas, pelos momentos
de lazer!
- Aos amigos: Juju e Hamilton “Crazy”, Alexandre e Aline, pelos ‘respiros’ necessários, pelas
companhias agradáveis, cantantes, afeto puro para a vida toda!
- Agradeço ao meu irmão Daniel e minha cunhada Karine, pelo carinho com o sobrinho, por
estarem sempre por perto quando precisei de auxílio!
- Agradeço ao meu sogro, Sr. Luiz, e minha sogra, D. Nilza, que foram participativos e
carinhosos conosco durante estes anos de viagens constantes!
- Agradeço o apoio institucional da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde/Suprema, aos
amigos conquistados: Eloiza, Rogéria, Beatriz Farah, Cláudia Moura, Newton Lessa e,
especialmente, aos meus alunos que me apoiaram e me forneceram energia extra para
continuar minha caminhada!
- Às minhas amigas, parceiras do grupo de pesquisa no IESC/UFRJ, por tudo que refletimos,
compartilhamos e ainda vamos compartilhar, não apenas no âmbito acadêmico, mas afetivo:
Luiza Lena, Naira Oliveira, Iolanda Szabo. Este trabalho tem um pouco de cada uma de
vocês!
- Aos meus/minhas amigas/os do mestrado e doutorado no IESC: Rosana Souza, Priscila
Castro, Priscilla Soares, Patricia Barbosa, Ângela Sperone, Rosângela Rosa, João Vinicius
Dias, Gabriel Waichert, Alan Camargo, Joyce Flores, queridos/as parceiros/as nesta jornada!
- A Adriana Sleutjes, que me ajuda a enxergar a vida por outros ângulos! A ver melhor, com
honestidade e bondade!
RESUMO
PAIVA, Sabrina Pereira. Silêncio, não dito e a vergonha no balcão da drogaria: Etnografia
sobre a comercialização da contracepção de emergência no Rio de Janeiro/RJ. Rio de Janeiro,
2014. Tese (doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva,
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2014.
A tese deriva de pesquisa etnográfica realizada em drogaria na zona norte do
município do Rio de Janeiro, de janeiro de 2011 a dezembro de 2012. O objetivo foi
compreender a interação social, ocorrida durante a venda da contracepção de
emergência/levonorgestrel (CE), além de conhecer o posicionamento dos farmacêuticos/as e
balconistas no tocante à CE e suas consumidoras. Ao fim do século XX, a CE tornou-se tema
de inúmeros debates, em diferentes setores e sociedades. O fato de ser utilizada após o ato
sexual transformou esta pílula em um recurso contraceptivo importante. Entretanto, barreiras
morais e religiosas dificultam o acesso das mulheres que dela necessitam. Um dos argumentos
contrários à CE refere-se à sua presumida relação com medicamentos abortivos. Há ainda a
representação que relaciona a facilidade de acesso a esta pílula à ‘promiscuidade sexual’, ao
não uso de preservativos, especialmente entre jovens, permitindo a ‘decadência moral
generalizada’. Os defensores da CE destacam dois argumentos: o sanitário, ligado ‘à
necessidade de se diminuir as taxas de gravidez imprevista e aborto, especialmente entre os
jovens e nos países e regiões menos desenvolvidas’; e o argumento da ampliação da
autonomia reprodutiva feminina, que se conecta ao discurso feminista. Nesta investigação, a
CE aparece envolvida em mistérios, quanto aos efeitos dos hormônios no organismo
feminino, sua eficácia, e seu presumido caráter abortivo. Esta atmosfera se relaciona à própria
indefinição social global que cerca este contraceptivo. Sua posição ambígua e,
consequentemente ‘perigosa’, gerou uma classificação de suas usuárias, delimitando as
regiões geográficas e ‘morais’ onde se encontram as mulheres que a utilizam de forma
‘abusiva’. A disseminação do uso da CE parece ter fortalecido, no contexto da drogaria
investigada, certo tipo de “pânico moral” existente em torno das modificações nos padrões
dos relacionamentos afetivo-sexuais, particularmente dos/as jovens. O silêncio e a vergonha
percebidos, de ambos os lados do balcão, no momento da comercialização da CE, a compra
pelo parceiro ou por amigas/os, além das classificações socioespaciais e morais que recaem
sobre as consumidoras da “pílula do seguinte”, e das indefinições em torno da CE, são
elementos concatenados e alinhavados dentro de uma lógica tradicional, os quais caracterizam
as representações hegemônicas sobre este contraceptivo. Verifica-se a necessidade de
ampliação do debate nacional sobre a garantia de acesso e o uso racional da CE, incluindo os
farmacêuticos e funcionários de drogarias nessa discussão. O exemplo das políticas de saúde,
adotadas em outros países, pode nos ajudar a enfrentar as dificuldades do contexto brasileiro,
observando-se as diferentes características dos sistemas de saúde e cotejando com as
especificidades culturais de cada contexto considerado. Através do exemplo da CE, foi
possível chegar aos valores de nossas sociedades, aqueles relativos à sexualidade, ao corpo e
ao gênero.
Palavras-chave: contracepção de emergência; farmácia; pesquisa qualitativa; saúde
reprodutiva; sexualidade; gênero.
ABSTRACT
PAIVA, Sabrina Pereira. Silence, the unsaid and the shame in the counter of the
drugstore: Ethnography about the commercialization of the emergency contraception. Rio de
Janeiro, 2014. Tese (doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de pós-graduação em Saúde
Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2014.
This thesis comes from the ethnographic research held at a drugstore in the north area
of the municipal district of Rio de Janeiro, from January, 2011, to December, 2012. The
objective was to observe the social interaction occurring during the levonorgestrel/emergency
contraception’s sale, besides understanding the positioning of the pharmacists and clerks
concerning emergency contraception (EC) and their consumers. By the end of twentieth
century, EC became a subject of countless debates, in different social extracts. The fact of
being used after the sexual intercourse transformed this pill in an important contraceptive
resource. However, moral and religious barriers hinder access of women who need it. One of
the arguments against EC refers to its assumed relationship with abortive medicines. There is
also the representation that relates the ease of access to this pill to 'sexual promiscuity' and to
the lack of condom use, especially among young people, enabling a 'widespread moral decay'.
Proponents of EC highlight two arguments: one, related to public health, is on the need to
reduce the rates of unintended pregnancy and abortion, especially in developing countries and
regions; other is the women's reproductive autonomy expansion argument, connected to the
feminist discourse. In this investigation, EC shows to be involved in mysteries over the effects
of hormones in the feminine organism, over its effectiveness, and over its supposed abortive
character. This atmosphere is related to the global social uncertainty surrounding this
contraceptive. Its ambiguous position, and therefore dangerous, created a classification for
their users, delimiting the geographical and 'moral' regions where women use it in an 'abusive'
way. The widespread use of EC seems to have strengthened, in the context of the drugstore
investigated, certain kind of "moral panic" regarding modifications in the existing patterns of
affective-sexual relationships, notably among youngsters. The silence and perceived shame,
from both sides of the counter at the time of EC’s commercialization, the purchase by the
partner or friends besides sociogeographic and moral ratings that fall on the consumers of the
"morning after pill" and the uncertainties surrounding the EC are elements of a traditional
logic, characterizing the hegemonic representations on this contraceptive. The thesis
encourages the expansion of the national debate about ensuring access and the rational use of
EC, including in this discussion pharmacists and drugstore employees. The example of health
policies adopted in other countries can help us face the difficulties of the Brazilian context,
observing the different features of health systems and comparing with the cultural specificities
of each context considered. Through the example of EC, it was possible to reach values of our
society, those related to sexuality, the body and gender.
Keywords: emergency contraception; pharmacy; drugstore; qualitative research; reproductive
health; sexuality; gender.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Mapa da disponibilidade da contracepção de emergência no mundo...............p.91
Quadro 1 Características sociodemográficas dos entrevistados...................................p.128/9
Quadro 2 Opiniões dos entrevistados sobre a contracepção de emergência...................p.163
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABA
Associação Brasileira de Antropologia
AMA
Australian Medical Association
AMI
Advocate for Medical Information
ANVISA
Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ARABWORLD
Arab World Regional Emergency Contraception Network
ASEC
American Society of Emergency Contraception
BEMFAM
Sociedade Civil para o Bem-estar familiar no Brasil
BTC
Behind-the-counter
CE
Contracepção de Emergência
CEP
Comitê de Ética em Pesquisa
CLAE
Consórcio Latino-Americano de Anticoncepção de Emergência
CONEP
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
DCB
Denominação Comum Brasileira
DCI
Denominação Comum Internacional
DES
Dietilestilbestrol
DIU
Dispositivo Intra-uterino
DST
Doenças sexualmente transmissíveis
ECEC
European Consortium for Emergency Contraception
EE
Etinilestradiol
FDA
Food and Drug Administration
ICEC
International Consortium of Emergency Contraception
IPCD
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
IPPF
International Planning Parenthood Federation
NICHHD
Center for Population Research at the National Institute of Child and
Human Development
OMS
Organização Mundial de Saúde
OTC
Over-the-counter
PAISM
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
PDS
Pílula do dia seguinte
PGD
Patient Group Direction
PNDS
Pesquisa Nacional sobre demografia e saúde da criança e da mulher
RDC
Resolução da Diretoria Colegiada
RHTP
Reproductive Health Technologies Project
RRC
Rock Reproductive Clinic
SUS
Sistema Único de Saúde
TCLE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
WFEB
Worcester Foundantion for Experimental Biology
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .............................................................................................. 5
RESUMO ................................................................................................................... 8
ABSTRACT .............................................................................................................10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ..................................................................................12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS............................................................13
APRESENTAÇÃO .................................................................................................18
INTRODUÇÃO .......................................................................................................21
PARTE 1 .................................................................................................................29
A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA SOB UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA E RELACIONAL ............................................................................29
1
PREPARANDO
O
TERRENO:
SEXUALIDADE,
GÊNERO,
REPRODUÇÃO E CONTRACEPÇÃO NO MUNDO PRÉ-MODERNO .....31
2
SEXUALIDADE
MODERNA:
A
ASCENSÃO
DO
SEXO
COMO
ASSUNTO DE ESTADO....................................................................................38
2.1
1ª ONDA DE DECLÍNIO DA FECUNDIDADE VERSUS PRÓ-NATALISMO
POLÍTICO ........................................................................................................................ 38
2.2 BRASIL: ENTRE O ‘ATRASO’ E A ‘CIVILIZAÇÃO’ .......................................... 46
3 A ERA DOS HORMÔNIOS ............................................................................51
3.1 A DESCOBERTA DOS
HORMÔNIOS, A
INVENÇÃO
DA PÍLULA
HORMONAL E A 2ª ONDA DE CONTROLE DA FECUNDIDADE .......................... 51
3.2 A DIFUSÃO DA PÍLULA HORMONAL NO BRASIL E A QUEDA DA
FECUNDIDADE .............................................................................................................. 56
4
A CRIAÇÃO DA “PÍLULA DO DIA SEGUINTE”: ENTRE A
AMPLIAÇÃO DA AUTONOMIA REPRODUTIVA FEMININA E A
‘FARMACOLOGIZAÇÃO DA SOCIEDADE’..................................................63
4.1 A CRIAÇÃO E DIFUSÃO DA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NO
CONTEXTO INTERNACIONAL ................................................................................... 63
4.2 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NO BRASIL: ENTRE NORMAS E
PRÁTICAS ....................................................................................................................... 76
PARTE 2 .................................................................................................................85
ETNOGRAFIA SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA CONTRACEPÇÃO DE
EMERGÊNCIA EM DROGARIA DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO.85
5 O DEBATE SOBRE A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA E SUA
PROVISÃO
PELAS
FARMÁCIAS/DROGARIAS:
CONTEXTO
INTERNACIONAL E NACIONAL...................................................................88
5.1 DISPONIBILIDADE E BARREIRAS À CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA
PELAS FARMÁCIAS: POSIÇÃO DOS FARMACÊUTICOS ....................................... 92
5.2 CONHECIMENTOS, REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DAS USUÁRIAS EM
RELAÇÃO À CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA E OS LOCAIS DE PROVISÃO
........................................................................................................................................ 102
6 A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA ANTROPOLÓGICA EM DROGARIA
NO RIO DE JANEIRO: REFLEXÕES METODOLÓGICAS E ÉTICAS ..110
6.1 OS DESAFIOS PARA A ENTRADA EM CAMPO ............................................... 111
6.2 O TRABALHO DE CAMPO EM DROGARIA: ASPECTOS ÉTICOS E
METODOLÓGICOS ...................................................................................................... 117
6.3 UMA ETNÓGRAFA EM DROGARIA: IDENTIDADES E DIFERENÇAS ENTRE
PESQUISADORA E SUJEITOS PESQUISADOS ....................................................... 121
6.4 A RELAÇÃO ENTRE PESQUISADORA E CONSUMIDORAS/ES DA
CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA: DESAFIOS E ADAPTAÇÕES .................. 129
7 CONVERSAS DE BALCÃO: GÊNERO, SEXUALIDADE E ESPAÇOS
URBANOS EM PERSPECTIVA ....................................................................136
7.1. A DROGARIA E SUA LÓGICA DE GÊNERO .................................................... 138
7.2. A PESQUISADORA E OS PROFISSIONAIS DO BALCÃO: GÊNERO E
SEXUALIDADE EM PERSPECTIVA ......................................................................... 150
8 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NA DROGARIA: SILÊNCIO,
VERGONHA E (I)MORALIDADE .................................................................159
8.1 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA SOB O OLHAR DOS BALCONISTAS
........................................................................................................................................ 160
8.2 O PÂNICO MORAL ENVOLTO NA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA:
PERCEPÇÕES SOBRE AS USUÁRIAS ...................................................................... 175
8.3 O COMÉRCIO DA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA: SILÊNCIO E
VERGONHA NO BALCÃO DA DROGARIA ............................................................. 185
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................196
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................204
ANEXOS ................................................................................................................219
18
APRESENTAÇÃO
Uma exposição sobre uma pesquisa é, com efeito, o contrário de um show
(...). É um discurso em que a gente se expõe, no qual se correm riscos.
Quanto mais a gente se expõe, mais possibilidades existem de tirar
proveito da discussão. (BOURDIEU, 1989, p. 18)
A citação de Bourdieu (1989), em epígrafe, é representativa do significado do fazer
científico, que nos remete à tarefa de detalhamento do processo de construção do objeto de
investigação, de abertura para os pares e de compromisso com a ética reflexiva, pois essa
abertura gera amadurecimento da própria pesquisadora e, consequentemente de seu produto: a
ciência.
Imbuída desse compromisso, apresento minha tese de doutorado, que versa, de forma
mais geral, sobre o tema da contracepção de emergência (CE), método anticoncepcional póscoito que é objeto de inúmeros debates e investigações nas duas últimas décadas.
Antes, algumas palavras sobre os caminhos percorridos para chegar a este tema.
Apesar de não ter realizado nenhuma investigação anterior sobre a questão específica da
contracepção, minha aproximação aos estudos relativos à sexualidade, gênero e direitos
sexuais e reprodutivos se iniciou durante a graduação em Serviço Social/UFJF, quando
estagiei em Unidades de Atenção Primária à Saúde e observei a importância dos trabalhos
com grupos de mulheres e a necessidade de envolver os homens nas decisões relativas à
reprodução/contracepção.
Após a graduação, o interesse pelo campo de estudos e práticas denominado “Saúde da
Mulher”, levou-me à residência em Serviço Social no Hospital Pedro Ernesto, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (HUPE-UERJ), em 1998/9. Fui aprovada, para um
período de dois anos, mas cursei apenas um semestre. Essa curta experiência foi intensa,
despertando o desejo de ingressar na pós-graduação strictu sensu. Até então, eu estava mais
voltada ao âmbito do Serviço Social, especializando-me na área da Assistência à Saúde da
Mulher. A formação estava centrada na discussão sobre estratégias para a efetivação das
políticas públicas de saúde, em especial aquelas que envolviam os direitos sexuais e
reprodutivos.
19
Nessa ocasião, enviei um projeto de pesquisa sobre o tema da gravidez na
adolescência, e fui selecionada para participar do 5º. Curso Regionalizado de Metodologia de
Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, do Instituto de Medicina Social
(IMS) da UERJ, em parceria com NEPO/UNICAMP, Fiocruz, ISC/UFBA, Fundação Ford,
em agosto de 1999.
Estimulada por esse curso, ingressei no mestrado em Saúde Coletiva, no IMS, em
2000, na área de Ciências Humanas e Saúde. Participei, como assistente de pesquisa, na
investigação denominada Homossexualismo, violência e justiça, coordenada pelo prof. Dr.
Sérgio Carrara, no município do Rio de Janeiro, com financiamento da Fundação Ford.
Defendi minha dissertação, A difusão da sexologia no Brasil na primeira metade do século
XX: um estudo sobre a obra de Hernani de Irajá, sob a orientação da prof. Dra. Jane Araújo
Russo, em 2002.
Durante este período, o contato com as abordagens construtivistas sobre gênero e
sexualidade, possibilitaram-me a abertura para novos horizontes teóricos e metodológicos,
que hoje constitui o braço mais forte de minha formação. Nesta tese, compreende-se que a
sexualidade, além de ser uma questão pessoal, é também social e política, sendo construída ao
longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos. Envolve rituais, linguagens,
fantasias, representações, símbolos, convenções. Nessa perspectiva, não há nada
exclusivamente ‘natural’, a começar pela própria concepção de corpo, ou de natureza. Nossos
corpos adquirem sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos
corpos é realizada, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, carregando
suas próprias marcas. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e
prazeres – também serão sempre socialmente estabelecidas e codificadas (GAGNON,
SIMON, 1973; FOUCAULT, 1999; WEEKS, 1986; VANCE, 1995; LOYOLA, 1998).
A partir de 2003, ao regressar a Juiz de Fora, iniciei minha carreira como docente, na
Faculdade de Serviço Social da UFJF (MG), como professora substituta1, e na Faculdade de
Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora/Suprema (2005- atual). Em ambas, tornei-me
responsável por disciplinas e orientação de trabalhos no campo da Saúde Coletiva, sendo
instada a exercitar mais minha formação no campo das políticas, planejamento e gestão em
saúde. Tendo como meta o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, encarei o desafio de
formar profissionais aptos para o trabalho no sistema público, entendendo o funcionamento da
1
Fui professora substituta na FSS/UFJF no período de 2003-2004, 2007-08.
20
rede de assistência à saúde, com olhar especial sobre a Atenção Primária à Saúde. Considero
que este é outro grande braço de minha formação profissional.
O período do mestrado e a participação em projetos de pesquisa no Rio de Janeiro, e
outras experiências acadêmicas, antes ocorridas, continuavam permeando minha vida, nas
orientações de monografias de conclusão de curso e na Coordenação de um curso sobre
Gênero e Sexualidade para a Residência e Especialização em Saúde da Família, para a
Residência em Serviço Social no Núcleo de Assessoria, Treinamento e Educação em
Saúde/UFJF. Tal curso foi realizado durante três anos consecutivos, com sucesso (2006/7/8),
e deixou claro a carência de formação no tema da sexualidade, gênero e direitos sexuais e
reprodutivos, por parte dos profissionais recém-formados, e o meu desejo de continuar meus
estudos nessa área.
O tempo decorrido entre o mestrado e o doutorado, preenchido com a experiência
docente, serviu como estímulo para o mergulho necessário à reflexão que o doutorado
permite. Assim, em fins de 2008, expus minhas intenções em relação ao doutorado à profa.
Dra. Elaine Reis Brandão, no IESC/UFRJ, que já havia sido minha professora e ‘tutora’
durante o período de graduação, em Minas Gerais, na UFJF. Em 2009, comecei a acompanhar
as reuniões de seu grupo de pesquisa, vinculado ao projeto intitulado “Contracepção de
emergência (pílula do dia seguinte): o desafio para torná-la um dispositivo institucionalizado
na rede pública de serviços de saúde no Brasil”, com apoio do Programa Jovem Cientista do
nosso Estado/FAPERJ – 2008.
A temática da CE e todas as controvérsias sociais e morais criadas em torno desse
contraceptivo chamou minha atenção e, aos poucos, fomos delineando, com interlocução
constante com o grupo de pesquisa, a investigação ora apresentada.
21
INTRODUÇÃO
A contracepção de emergência (CE), popularmente conhecida como “pílula do dia
seguinte”, pode ser caracterizada como tipo específico de contraceptivo, utilizado após o
coito, concebido como a última chance para as mulheres que desejam prevenir a gravidez.
Atualmente, é possível enumerar três tipos de pílulas para a contracepção de emergência: 1)
pílulas combinadas que contêm estrogênio e progesterona (método Yuzpe); 2) pílulas
contendo uma antiprogesterona - mifepristone; 3) pílulas contendo somente progesterona –
levonorgestrel, que nos interessa neste estudo, por ser a forma mais difundida e utilizada de
contracepção de emergência. Além disso, o dispositivo intra-uterino de cobre também
representa uma opção de contracepção pós-coital efetiva2 (TRUSSELL, 2012, p. 20-2; grifo
nosso).
Atualmente, o modelo mais aceito de CE hormonal emprega exclusivamente o
levonorgestrel, na dose total de 1,5 mg. Nas apresentações comerciais com 1,5 mg de
levonorgestrel por comprimido, administra-se um comprimido em dose única. Quando a
apresentação é de 0,75 mg, a CE hormonal é feita com um comprimido a cada 12 horas, ou,
preferencialmente, com dois comprimidos juntos e em dose única. Há evidências, descritas na
literatura especializada, de que a dose única de levonorgestrel é igualmente segura e eficaz,
com a vantagem de facilitar o uso e adesão. Em todos os casos, a CE/levonorgestrel tem efeito
anticonceptivo até cinco dias (120 horas) após a relação sexual desprotegida, não sendo
limitado ao período de três dias, como é descrito em protocolos médicos mais antigos e não
atualizados (DREZETT, 2010, p. 69; BRASIL, 2011).
Tentar prevenir a gestação após uma relação sexual não esperada ou desprotegida não
é ideia exatamente nova. Desde a Grécia são descritas superstições, magias e medicamentos
usados com esse propósito. Aliás, já houve momentos, antes da modernidade, nos quais as
técnicas contraceptivas e aquelas utilizadas para provocar os abortos, que hoje são vistas
como procedimentos absolutamente distintos, eram percebidos como um continum. Aborto
não era entendido como ‘tirar a vida do feto’, mas como a última tentativa feminina de ‘fazer
2
De acordo com Trussell (2012, p. 22), o DIU de cobre é utilizado desde a década de 1970, sendo que, a partir
de então, pode ser computada a inserção pós-coital de mais de 12 mil dispositivos, possuindo somente 12 falhas
conhecidas, o que significa ocorrência de 0,1 % de gravidez. Não há relatos na literatura consultada sobre o uso
do DIU hormonal (contendo levonorgestrel, encontrado no mercado sob a designação Mirena ®, produzido pela
Berlimed- divisão do laboratório Schering) para a contracepção pós-coital.
22
descer as regras’, através de plantas, ervas e infusões3. Além disso, métodos como as duchas
vaginais, espermicidas injetados após a relação sexual, até mesmo a indicação de espirros
após a relação sexual, são exemplos de que essa ideia não pertence exatamente à
contemporaneidade (MCLAREN, 2009).
Segundo o Manual do Ministério da Saúde “Perguntas e respostas sobre a
Contracepção de Emergência para profissionais de saúde” (2011), este método não deve ser
usado de forma planejada ou programada e nem substituir qualquer outro método
anticonceptivo. De acordo com este documento, as indicações da CE se restringem a situações
especiais, como a relação sexual inesperada sem uso de anticonceptivo, falha ou uso
inadequado do método, ou em casos de violência sexual. A falha do anticonceptivo,
conhecida ou presumida, é observada no rompimento do preservativo masculino, no
deslocamento do diafragma durante a relação sexual, ou na posição incorreta do DIU. O uso
inadequado se verifica no esquecimento prolongado da ingestão da pílula anticoncepcional,
ou no atraso na aplicação do injetável mensal ou trimestral. Outra situação relaciona-se ao
cálculo incorreto do período de fertilidade ou dos dias necessários de abstinência sexual para
quem adota o método da ‘tabelinha’ ou método de Ogino-Knaus, ou à interpretação
equivocada da temperatura basal ou do muco cervical (BRASIL, 2011).
Por sua especificidade e maior eficácia em relação aos métodos usados no passado,
tornou-se um recurso importante para mulheres e profissionais nos serviços de saúde no que
se refere ao planejamento reprodutivo. No entanto, como já foi salientado em inúmeras
investigações, barreiras de várias ordens, especialmente morais e religiosas, têm dificultado o
acesso das mulheres que dela necessitam. Tais controvérsias tornaram a contracepção de
emergência, no fim do século XX, um dos temas mais debatidos no campo da sexualidade e
reprodução, tanto no âmbito acadêmico quanto por parte de determinadas parcelas da
sociedade (SIMONDS, ELLERTSON, 2004; PECHENY, TAMBURRINO, 2009; SOUZA,
BRANDÃO, 2009; SOUZA, BRANDÃO, 2012; BISSEL et. al., 2006; SAMPSON et. al.,
2009; BERGALLO, 2010; COOPER et. al., 2008).
Wynn e Foster (2012) a classificam como uma tecnologia liminar, parafraseando V.
Turner, devido principalmente ao fato da CE ser imaginada como algo que assume uma
posição entre o contraceptivo e o abortivo, o que contribui para torná-la terreno
particularmente fértil para o debate e a contestação. Entre as representações hegemônicas e
3
Compreende-se que as noções sobre o que é considerado aborto ou não são dependentes das percepções sociais
presentes em cada época, nesse caso, depende do que se concebe como o ‘início da vida’.
23
negativas sobre a CE, estão aquelas que a relacionam ao ‘descontrole’, à ‘imoralidade’, à
“promiscuidade”, com um estado de emergência. Concebida ainda, nas representações mais
amplas como uma “bomba hormonal”, é identificada como um medicamento4 perigoso para a
saúde da mulher (SOUZA, BRANDÃO, 2012).
Aqueles que argumentam a favor da ampliação do acesso à CE são, em geral, os
provedores dos serviços de saúde, pesquisadores clínicos e cientistas sociais, ativistas dos
direitos reprodutivos e companhias farmacêuticas. As ponderações sobre os benefícios da
maior disponibilidade do contraceptivo se concentram em dois argumentos: o sanitário, ligado
à necessidade de se diminuir as taxas de gravidez imprevista5 e aborto, especialmente entre os
jovens e nos países e regiões ‘menos desenvolvidas’; e o argumento favorável à ampliação da
autonomia reprodutiva das mulheres, que se conecta ao discurso feminista (WYNN,
FOSTER, 2012).
O posicionamento da Organização Mundial de Saúde veio em 1995, com a inclusão da
CE na lista de medicamentos essenciais. Nesse mesmo ano, esta organização em consonância
com seis instituições de Saúde Sexual e Reprodutiva formaram o Consórcio Internacional de
Contracepção de Emergência (ICEC), com o objetivo de ampliar o acesso e uso do método.
Ainda assim, os estudos evidenciam que, frequentemente, muitas mulheres encontram
dificuldade para obter a receita médica em tempo oportuno e que elas vivenciam atitudes de
julgamento moral dos profissionais de saúde, especialmente aqueles responsáveis pela
prescrição (médicos/as, enfermeiros/as, farmacêuticos/as). Essas barreiras encontradas pelas
usuárias da CE tornam-se cruciais, já que, quanto mais cedo a mulher ingerir o medicamento,
maior será a chance de ela obter sucesso (RAGLAND, WEST, 2009; SHOVELLER et al.,
2007; DIAZ et al., 2003b).
O contexto latino-americano reflete essa realidade, pois, apesar de se reconhecer a
importância da contracepção de emergência no combate à gravidez imprevista, a CE não está,
4
Manica (2012, p. 177), ao se referir aos contraceptivos, pondera sobre o uso do termo medicamento, já que não
se trata de um medicamento no sentido estrito, mas determinada substância que passou a ser formada e
produzida tendo como fim último seu uso como contraceptivos, isto é, como preventivo de uma eventual
gestação.
5
Optei pela utilização deste termo a partir da leitura de Heilborn et al. (2006) e Cabral (2012), que comentam
sobre a utilização majoritária na literatura científica do campo da saúde das nomenclaturas “gravidez não
planejada”; “gravidez indesejada”, as quais reduzem os contextos de ocorrência de uma gestação. De acordo
com estes pesquisadores, apesar do termo ‘gravidez imprevista’ estar relacionado à ideia de programação, ele é
mais amplo que os demais, que buscam designar os contextos que escapam ao controle deliberado da
fecundidade. Remetem-se à rubrica ‘non prévue’ utilizada por Bajos et al. (2002), que concebe que as situações
nas quais uma gestação resulta de uma relação sexual sem contracepção, de esquecimento da contracepção ou do
fracasso da mesma, envolvem inúmeros aspectos, entre eles a dinâmica da relação entre os gêneros.
24
de fato, acessível na maioria dos programas de planejamento familiar, muitas vezes, por
razões morais e religiosas.
Como apoio à inserção da CE na região, foi criado o Consórcio Latino-americano de
Anticoncepção de Emergência (CLAE), em 2000, marcando avanço importante para os
grupos que defendem os direitos sexuais e reprodutivos. A Conferência Regional sobre o
Direito à CE na América Latina, realizada em Quito, em 2002, resultou dos esforços do
CLAE para ampliar o conhecimento e aceitação da CE como método seguro e eficaz para
prevenir gravidez imprevista e, ao mesmo tempo, conclamar os responsáveis pela elaboração
de políticas públicas a incluir esse método nas normas oficiais de planejamento familiar
desses países (MARTIN, 2004).
No Brasil, as decisões regulatórias representam avanços políticos quanto ao acesso à
CE, em relação a vários outros países latinoamericanos. A CE encontra-se disponível, desde
1996, mediante a fórmula Yuzpe, tendo sido incorporada ao Manual de Assistência ao
Planejamento Familiar do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011). Em 1999, foi aprovada a
comercialização da CE/levonorgestrel (Postinor 2®6) pelas farmácias com prescrição médica,
mas não encontramos discussões a respeito da liberação da venda sem prescrição, como
também em todos os outros países latinos.
Em 2005, o governo federal ampliou o fornecimento da CE para além dos serviços de
atendimento às vítimas de violência sexual. Entretanto, como destaca Figueiredo (2004), o
atendimento público no Brasil mantém-se em discordância com as normas federais, já que os
serviços que oferecem o anticoncepcional regularmente, continuam sendo aqueles de
atendimento às vítimas de violência sexual, com raras exceções em alguns municípios e
estados brasileiros.
O fato é que o uso da contracepção de emergência cresceu consideravelmente no
Brasil, entre 1996 e 2006, segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e
da Mulher (PNDS). A CE não apareceu na PNDS de 1996 mas, em 2006, 12% das mulheres
de 15 a 49 anos afirmaram já ter utilizado esse método, cujo consumo teve maior
representatividade na faixa etária de 20 a 24 anos (18,5%), e 10,4% entre mulheres de 15 a 19
anos. A CE passou a ocupar, em 2006, o quinto lugar entre todos os métodos contraceptivos
usados e o terceiro entre mulheres não unidas e ativas sexualmente (BRASIL, 2008).
6
Medicamento de referência para a contracepção de emergência, do laboratório Aché, vendido no Brasil a partir
de 1999.
25
Atualmente, o debate internacional a respeito deste método contraceptivo tem como
um dos temas centrais a política que visa ampliar o acesso ao método através das farmácias,
com aconselhamento em saúde sexual e reprodutiva pelos farmacêuticos, ou mesmo mais
recentemente através da liberação da venda over-the-counter (OTC), ou seja, nas gôndolas,
fora do balcão. No Brasil, sabemos que grande parte da população adquire este medicamento
nas drogarias, sem orientação adequada e sem que tais estabelecimentos integrem quaisquer
protocolos de distribuição e de comercialização dos métodos contraceptivos no âmbito das
políticas públicas de saúde (PAIVA, BRANDÃO, 2012).
Considerando-se a importância desse estabelecimento como um recurso muito
utilizado pela população para cuidados com a sua saúde (nesse caso, reprodutiva e sexual),
esta tese teve como objetivo conhecer, através da investigação etnográfica em drogaria, a
interação social que ocorre durante o processo de comercialização da contracepção de
emergência em drogaria, entre quem compra e quem vende tal método anticoncepcional.
Busquei ainda compreender o posicionamento dos farmacêuticos/as e balconistas no tocante à
CE e suas percepções sobre as consumidoras da ‘pílula do dia seguinte’.
A tarefa de pensar sobre a circulação/venda desse deste método anticoncepcional na
drogaria e sobre o processo de interação estabelecido entre consumidores e funcionários,
poderia nos levar ao debate político mais amplo relativo ao papel social da drogaria, às formas
de dispensação deste medicamento, atrás ou fora do balcão, com/sem orientação do
farmacêutico, com/sem prescrição médica ou de outros profissionais, gerando orientações
mais específicas para as políticas públicas de saúde. Aqui, ao invés de privilegiar o ângulo das
estruturas institucionais, privilegio as representações, as estratégias discursivas e as práticas
sociais e profissionais operadas no interior deste estabelecimento, buscando captar a lógica
subjacente às relações sociais ocorridas no balcão entre vendedores e compradores da “pílula
do dia seguinte”. Através do olhar etnográfico, procuro amarrar os fios de conexão desse
contexto com cenários mais amplos, verificando as noções que o entrelaçam ao gênero, à
sexualidade, à reflexão pessoa/indivíduo e às divisões simbólicas do espaço urbano da cidade
do Rio de Janeiro.
Meu objetivo foi captar práticas cotidianas, os significados dos olhares e dos não
olhares, as histórias sobre as experiências vividas no comércio farmacêutico e, mais
especificamente, na venda da CE. Este olhar também se volta para as características das/dos
consumidoras/os, seus modos de apresentação no balcão da drogaria, as perguntas mais
26
frequentes, em busca da lógica subjacente que rege a relação social estabelecida no balcão da
drogaria, entre funcionários/as e consumidores/as da CE.
O campo de investigação foi uma drogaria de rede local 7, situada na zona da
Leopoldina, zona norte do município do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada entre janeiro
de 2011 e dezembro de 2012, com observação participante e entrevistas semi-estruturadas
com doze balconistas e 1 farmacêutica.
Valoriza-se aqui o olhar “de perto e de dentro”, o qual busca enxergar os sujeitos e
suas lógicas próprias, ao mesmo tempo em que não se perde da paisagem em que as práticas
estudadas se desenvolvem, sendo que esta paisagem não funciona como cenário apenas, mas
como elemento constitutivo para análise (MAGNANI, 2009).
* *
*
A tese é composta por duas partes, cada uma com quatro capítulos.
Na primeira parte, ocorre o descentramento do foco na contracepção de emergência
(CE) e a busca por suas relações com outros contraceptivos e outros métodos
anticoncepcionais. Seguindo a trajetória histórica da contracepção, desde as técnicas
utilizadas na Grécia até os medicamentos hormonais e à “pílula do dia seguinte”. O objetivo
principal foi estabelecer uma perspectiva mais ampla para entender, ainda que de forma
embrionária, a identidade específica da CE/levonorgestrel diante de outros métodos
anticoncepcionais. Os capítulos foram divididos da seguinte forma:
- O capítulo 1 apresenta a discussão sobre sexualidade, gênero, reprodução e contracepção no
mundo pré-moderno, trazendo exemplos da Grécia, Roma e Idade Média, visando evidenciar
as estratégias mais comuns utilizadas para controle de nascimentos e as características das
representações sobre a sexualidade feminina e masculina nesse período histórico.
- No capítulo 2 são discutidas as características da sexualidade moderna, que culminam na
ascensão do sexo como assunto de Estado. Perpasso a 1ª onda de declínio da fecundidade,
ocorrida na Europa, no século XIX, e as discussões entre os defensores do controle dos
nascimentos e aqueles que defendiam a perspectiva designada pró-natalista. Também é
considerado o contexto brasileiro do início do século XX, quando, entre nós, pairava a
7
Aqui utilizo esta ideia para diferenciar esta drogaria de rede, campo desta investigação, de outras redes
maiores, regionais e até nacionais.
27
sensação de ‘atraso’ e o desejo de ‘civilização’, o que mantém relação intrínseca com o
controle sobre a sexualidade feminina e sobre a reprodução.
- O capítulo 3, denominado “A era dos hormônios”, apresenta uma nova fase de controle de
nascimentos, com a invenção, difusão e popularização da pílula hormonal combinada e a 2ª
onda de declínio da fecundidade, no contexto internacional e nacional.
- No capítulo 4 discuto a criação e difusão da contracepção de emergência, no contexto
internacional e sua chegada ao Brasil, que apesar de não ter sido documentada e
propagandeada pela mídia, gerou controvérsias sociais e morais, especialmente pela
influência de setores religiosos.
A segunda parte da tese, também dividida em 4 capítulos, é dedicada à análise sobre a
contracepção de emergência (CE) no contexto de uma drogaria da zona norte do município do
Rio de Janeiro, a partir de investigação etnográfica. Os capítulos ficaram assim organizados:
- O capítulo 5 privilegia a discussão sobre uma das políticas mais utilizadas para a ampliação
do acesso a CE, a sua disponibilização através das farmácias, com ou sem orientação do
farmacêutico, behind ou over-the-counter (dentro ou fora do balcão), a partir de uma revisão
crítica de literatura, realizada no contexto internacional e nacional.
- No Capítulo 6 apresento os desafios metodológicos e éticos vivenciados nessa investigação,
relativos às prerrogativas éticas que envolvem as pesquisas com seres humanos e às
dificuldades ligadas ao estabelecimento de uma pesquisa etnográfica em drogaria,
estabelecimento privado, designado legalmente como de interesse para a saúde (BRASIL,
1973). Além disso, problematizo as identidades e diferenças estabelecidas entre pesquisadora
e seus sujeitos de investigação, buscando revelar as características e o formato das relações
estabelecidas em campo, as quais foram determinantes para o desenvolvimento da pesquisa.
- No capítulo 7 destaco, inicialmente, a dinâmica das estruturas de gênero presentes na
organização do cotidiano da instituição farmacêutica investigada, bem como outras estruturas
sociais entrelaçadas, como classe, raça e divisões morais do espaço urbano. Em seguida, a
análise recai sobre as posições de gênero e sexualidade dos sujeitos investigados, moldadas
em universo sociocultural distinto daquele da pesquisadora.
- No capítulo 8, trato das questões fundamentais que endereçaram meu olhar sobre o ‘campo’,
as quais se relacionam às representações e práticas dos trabalhadores desta drogaria sobre a
“pílula do dia seguinte”, sobre suas/seus consumidoras/es; e sobre o processo interativo,
28
envolvendo consumidoras/es da CE e balconistas/farmacêuticas no momento de sua
comercialização.
Encerro a tese com algumas considerações sobre a ‘identidade’ assumida pela
contracepção de emergência nesta drogaria, que remete ao olhar sobre o medicamento e
simultaneamente sobre sua consumidora. Através do olhar sobre a interação social
estabelecida entre consumidoras/es e balconistas durante a comercialização da contracepção
de emergência, nós podemos chegar aos valores de nossas sociedades, especialmente aqueles
relativos à sexualidade, ao corpo e ao gênero.
29
PARTE 1
A
CONTRACEPÇÃO
DE
EMERGÊNCIA
SOB
UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA E RELACIONAL
Os quatro capítulos que compõem a parte 1 dessa tese foram construídos no momento
em que retornei do mergulho etnográfico e lancei o olhar para mais além. Aqui foi
fundamental o descentramento do foco na contracepção de emergência (CE) e a busca por
suas relações com outros métodos anticoncepcionais, visando compreender sua posição no rol
dos contraceptivos disponíveis. Segui um percurso histórico sobre a contracepção, desde a
época clássica até os medicamentos hormonais e à “pílula do dia seguinte”. O objetivo
principal foi estabelecer uma perspectiva mais ampla para entender, ainda que de forma
embrionária, alguns aspectos relativos à “biografia”8 da CE/levonorgestrel. Algumas
problematizações se fizeram presentes:

De que forma podemos comparar a história da contracepção de emergência com a de
outros métodos contraceptivos ao longo dos tempos? E o prestígio versus desprestígio
de certas práticas e medicamentos utilizados pelas mulheres e casais para o controle de
nascimentos?

Quais foram as circunstâncias e forças sociais que possibilitaram a criação do
contraceptivo pós-coital? Qual o contexto de sua inserção no Brasil?

Como se dá o debate atual em torno da ‘pílula do dia seguinte’? Quais são os
principais interlocutores presentes na cena pró e anti contraceptivo pós-coital?
Para respondê-las, oriento-me por determinados pressupostos que nortearam Angus
McLaren, em sua obra Histoire de la contraception: de l’antiquité à nos jours (1996). Tratase de um inventário histórico9 sobre as variadas formas encontradas pelas civilizações
ocidentais para reduzir ou ampliar o número de filhos. Seu objetivo foi compreender de que
forma a decisão de reproduzir é dependente das relações sociais, culturais e entre os sexos.
8
De acordo com Kopytoff (2008, p. 121), facultar às coisas e objetos o direito a um bios, através da construção
de determinado tipo de narrativa que lhes permita um percurso “existencial”, anuncia a possibilidade
extremamente provocadora de inclusão efetiva de tais objetos nos coletivos que compõem o “social”.
9
Baseando-se em obras literárias, médicas, jurídicas, religiosas, iconográficas entre outras fontes (MCLAREN,
1996).
30
Segundo o autor, não se pode apreender as mudanças de atitudes em torno da limitação do
número de filhos sem recolocá-las em seus contextos (MCLAREN, 1996, p. 21).
Sua obra repousa sobre dois postulados. O primeiro assinala que as sociedades sempre,
por uma razão ou outra, empregaram medidas para limitar o número de filhos. O controle da
fecundidade não se traduz, então, em um movimento que vai da ignorância ao conhecimento.
O segundo pressuposto ressalta a decisão de reproduzir ou não, que possui historicamente um
significado maior para as mulheres do que para os homens. O autor busca compreender os
meios pelos quais a sociedade, no seu conjunto, se esforçou para minimizar a vantagem do
poder reprodutivo das mulheres (MCLAREN, 1996, p. 22-5).
As decisões relativas à reprodução e contracepção estão envoltas em questões de
gênero, que traduzem, sobretudo, relações de poder. O controle sobre a capacidade
reprodutiva é um dos eixos centrais sobre os quais se constroem as prerrogativas em torno das
capacidades e das funções sociais de cada gênero. Evidentemente, a proposição de novas
formas de contracepção ou a adoção mais regular de determinada prática, por parte das
mulheres, introduz novos alvos à disputa (BOURDIEU, 2002; HÉRITIER, 1980; MARTIN,
2006).
A complexidade dos temas colocados fez com que estes capítulos iniciais assumissem
a forma de um mosaico, composto por elementos históricos, teóricos, filosóficos e
ideológicos, os quais são modulados pelas questões referentes ao gênero, à sexualidade e às
escolhas reprodutivas e contraceptivas em diferentes períodos da história ocidental. Para
tanto, permito-me operar a partir de poucos autores e de uma perspectiva mais panorâmica,
diacrônica. Busco compreender a identidade particular da “pílula do dia seguinte” entre os
outros métodos anticoncepcionais disponíveis. Acredito que há algo inspirador no
reconhecimento das raízes de nossas próprias concepções e na identificação de outras formas
empregadas para lidar com as questões relativas à sexualidade, reprodução e contracepção. O
distanciamento histórico pode se converter em um poderoso aliado na relativização dos
impasses que vivemos contemporaneamente.
31
1 PREPARANDO O TERRENO: SEXUALIDADE, GÊNERO,
REPRODUÇÃO E CONTRACEPÇÃO NO MUNDO PRÉ-MODERNO
Na sociedade grega, evocamos a atribuição específica de cada sexo na reprodução
humana. Para Aristóteles, o homem é o único apto a cozinhar seu sangue que, transformado
em esperma, é recebido pela mulher, receptáculo frio. Os gregos pareciam recusar a
contribuição das mulheres na procriação, retirando-lhes a faculdade de produzir uma semente.
Para muitos, os homens eram responsáveis por produzirem as sementes e as mulheres
unicamente emprestavam o terreno sobre o qual os embriões pudessem crescer. Segundo
McLaren (1996, p. 40), foi nos textos hipocráticos do fim do século V a.C. que o papel da
mulher na procriação foi tratado mais longamente10.
De acordo com King (1998, p. 46), a expressão da sexualidade, tanto na Grécia quanto
em Roma, estava centrada numa desigualdade fundamental, não somente nos relacionamentos
entre homens e mulheres, mas também entre parceiros do sexo masculino. Na literatura, essa
desigualdade, representada pelo par de opostos ativo/passivo, aparecia através das imagens de
predação, guerra, fuga e captura. Apesar das mulheres serem representadas de forma passiva e
como vítimas aterrorizadas, acreditava-se, ao mesmo tempo, que seriam sexualmente vorazes,
criaturas insaciáveis cujo objetivo era secar a semente dos homens.
Na Grécia, estima-se que nasciam, em média, quatro crianças por família e, somente
dois ou três conseguiam sobreviver. Uma família ideal era aquela que sustentasse suas
próprias necessidades, gerando filhos capazes de preservar os bens e os deuses familiares.
Nobres eram aqueles que buscavam conscientemente a limitação do número de nascimentos,
o que traz à tona a existência objetiva de estratégias para o controle da fecundidade. No
entanto, devemos aguçar nossa atenção, pois eles possuíam diferentes razões e empregavam
métodos diversos dos que utilizamos hoje (MCLAREN, 1996, p. 34-9).
O celibato era considerado a forma masculina de contracepção, enquanto métodos
femininos envolviam o uso de pessários obstrutores, de tampões e de poções. Segundo
McLaren (1996, p. 52), inúmeras fontes demonstram que a limitação dos nascimentos era
principalmente uma tarefa feminina. O coito interrompido apesar de ser considerado o meio
10
Hipócrates afirmou que os dois parceiros produziam uma semente, o que explicava o fato das crianças
poderem parecer com o pai e/ou com a mãe.
32
mais simples de contracepção, foi raramente aludido em obras da Grécia Antiga. Uma das
razões pode ser o valor extraordinário dado à semente masculina nos textos aristotélicos, o
que justificaria a hostilidade dos homens em recorrer a tais métodos (MCLAREN, 1996, p.
51).
Além disso, a investigação de McLaren (1996) revela que as alusões ao aborto, no
mundo antigo, são bem mais abundantes que as referências à contracepção. A contracepção
era compreendida como um ato íntimo que, em geral, não era revelado publicamente. Ao
contrário, o aborto exigia frequentemente uma assistência ou o aconselhamento. Os textos
médicos gregos trazem numerosas técnicas de aborto, que evocam o uso de perfurações,
pesos, poções orais, supositórios, fumigações e cataplasmas.
Para os gregos, a vida nascente tinha apenas direitos limitados. Os filósofos e médicos
ensinavam que um embrião macho não era uma criatura dotada de razão ou de alma antes de
trinta ou quarenta dias após a concepção. Sendo assim, o aborto representava um problema
moral menos delicado para os antigos que para nós contemporâneos, na medida em que eles
pressupunham que a vida não coincidia com o momento da concepção (MCLAREN, 1996, p.
61).
Roma diferia do padrão grego pelo encorajamento do desenvolvimento da população,
o que pode ser notado pelas leis romanas, que refletiam o interesse em se ampliar a
fecundidade da população. Mas, o que dava à família romana sua característica única, era
aparentemente a tirania exercida pelo pai sobre sua família (patria potestas), o que limitava a
possibilidade do Estado de intervir nas questões relativas ao casamento, ao abandono das
crianças, à contracepção e aborto (MCLAREN, 1996, p.75/7).
Os romanos se casavam para ter uma família ou nos dizeres de Soranus 11: “as
mulheres se casavam ordinariamente para ter filhos e não por simples prazer”. Era tão
importante ter herdeiros, que os romanos toleravam toda uma gama de estranhos arranjos
conjugais a fim de obtê-los, como o “compartilhamento de fêmeas fecundas”12 (MCLAREN,
1996, p. 81).
11
12
Soranus foi considerado o maior autor romano no domínio da ginecologia (McLaren, 1996).
Os romanos se apoiavam principalmente na medicina grega para compreender os mecanismos da reprodução.
Os médicos romanos, como Galeno, supunham, ao contrário dos gregos, que o corpo permanecia em estado de
perpétua deterioração, assimilando a saúde simplesmente como ausência de enfermidades. É a partir daí que
podemos entender o maior interesse dos romanos pela procriação (MCLAREN , 1996, p. 83).
33
Soranus contrariou os autores hipocráticos, ao afirmar que as menstruações regulares e
a gravidez eram fenômenos prejudiciais. Segundo ele, a gravidez vinha acompanhada de
diversos inconvenientes e de desejos que levariam a uma senilidade precoce. A mulher que
engravidasse numerosas vezes ficaria velha antes da época. Por isso, ele aconselhava a boa
esposa e boa mãe a ter a sabedoria de preservar sua saúde, multiplicando os períodos de
abstinência sexual (MCLAREN, 1996, p. 83/4).
Galeno de Pergamo, o mais influente anatomista da antiguidade, propôs uma
interpretação um pouco diferente, a partir da síntese das teorias aristotélicas e hipocráticas
concernentes à concepção, reconhecendo a importância dos “humores”13, juntamente com a
teoria da procriação pela união de duas sementes. Mesmo assim, como Aristóteles, Galeno
supunha que à mulher faltava calor e ele relacionava o fluxo menstrual com a semente
feminina. Ele afirmava, ao contrário de Soranus, que se a semente ou as menstruações não
fossem expulsas, elas poderiam se tornar perigosamente tóxicas (MCLAREN, 1996, p. 84).
Deve-se salientar ainda que a antiguidade se caracteriza pela circulação de toda uma
gama de informações sobre o comportamento sexual. Além dos tratados médicos, havia os
manuais sobre sexo, que parecem ter fornecido uma escala de prazer, que culminava em listas
de posições sexuais. Nestes escritos, os homens deveriam ser capazes de dominar seus corpos,
no mesmo nível que as “irrefreáveis, desavergonhadas e enganadoras mulheres” (PORTER,
1998, p. 168).
Acreditava-se que o ato sexual em demasia levava à doença. Esta crença sobre os
perigos do excesso sexual auxiliava na argumentação favorável à diminuição da frequência de
relações sexuais. Soranus também fazia alusões ao método do ciclo (tabela), que consistia em
evitar as relações sexuais durante os dias que se seguiam à menstruação. Acreditava-se que
certos movimentos e posições poderiam impedir a concepção, como a recomendação dos
“espirros” após a relação. Recorria-se ainda aos tampões ou tampas, supondo-se que a base
dos efeitos contraceptivos dos mesmos estava ligada à faculdade humoral destes produtos, que
implicava no resfriamento e fechamento do útero, e não no simples obstáculo físico que eles
13
A Teoria humoral constituiu o principal corpo de explicação racional da saúde e da doença entre os séculos IV
a.C. e XVII. Também conhecida por teoria humoral hipocrática, segue as teorias dominantes na escola de Kos,
segundo as quais a vida seria mantida pelo equilíbrio entre quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis
negra, procedentes, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço. Cada um destes humores
teria diferentes qualidades: o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e úmida; a bílis amarela, quente e seca;
e a bílis negra, fria e seca. Segundo o predomínio natural de um destes humores na constituição dos indivíduos,
teríamos os diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o fleumático, o bilioso ou colérico e o melancólico
(SCLIAR, 2007).
34
forneciam. Até findar a época clássica, nem a contracepção, nem o aborto eram considerados
ilegais, apesar de certos homens terem desconfiança quanto a esses recursos, pois
confirmavam a capacidade das mulheres de controlarem seus corpos (MCLAREN, 1996, p.
104).
A partir da Idade Média, não devemos pensar em modificações quanto ao conteúdo da
ética sexual e procriativa/contraceptiva, mas principalmente em modulações de intensidade e
alcance dos discursos produzidos. Foucault e Senett (1981, p. 6), no texto Sexuality and
solitude, citam uma passagem de São Francisco de Sales como ponto de partida para
compreendermos as origens da ética sexual cristã, que transcrevo abaixo:
Eu contarei a você um ponto da honestidade do elefante. Um elefante nunca troca
sua companheira. Ele a ama eternamente. Ele não se acasala com ela, exceto de três
em três anos. E apenas por cinco dias, e tão secretamente que ele nunca é visto em
ação. Mas no sexto dia, ele se mostra por toda parte novamente, e a primeira coisa
que faz é ir diretamente para algum rio lavar seu corpo, não querendo voltar para sua
tropa de companheiros até ser purificado. Não são bondosas e honestas essas
qualidades num animal que ensina ao povo casado a não ser dado demais aos
prazeres sensuais e carnais?
A partir da exaltação da fidelidade e ascetismo do elefante, podemos reconhecer o
modelo do comportamento sexual decente para os primeiros cristãos: monogamia, fidelidade
e procriação como a principal, ou talvez a única justificativa dos atos sexuais, os quais
permaneceriam, mesmo em tais condições, intrinsecamente impuros (FOUCAULT, SENETT,
1981, p.6).
Na maior parte das vezes, somos inclinados a atribuir esse modelo ao cristianismo ou à
moderna sociedade cristã. Mas, os filósofos pagãos nos séculos anteriores e posteriores à
morte de Cristo propuseram uma ética sexual muito similar à denominada ética cristã. De todo
modo, é sabido que este modelo filosófico de comportamento sexual, o modelo do elefante,
não era, naquele tempo, o único a ser conhecido e colocado em prática. Estava claramente
competindo com vários outros (FOUCAULT, SENETT, 1981, p. 6).
Foucault (1981, p. 38) afirma que “(...) não há muito sentido em falar de uma moral
cristã da sexualidade, e menos ainda de uma moral judaico-cristã”. McLaren (1996, p. 121)
concorda que os primeiros cristãos não romperam, de forma espetacular, com a maior parte
das posições éticas da época. O progresso do cristianismo acompanhou, mas não provocou, a
mudança de atitude no que se refere à sexualidade. Os méritos da família são defendidos
como chave para a edificação social. A vida privada fez sua aparição à medida que o Estado
declinou. As opiniões mais negativas vieram abafar os pontos de vista mais racionais e
35
otimistas sobre a sexualidade. Exacerba-se o empenho pela cruzada contra as falhas morais,
entre elas a fornicação, ou seja, o excesso sexual. Sexo só para procriação.
Apesar dos cristãos não terem sido os criadores desta moralidade, eles foram seus
principais propagandistas, na medida em que construíram um movimento social. Foucault
(1981, p. 37) considera impressionante o vigor com o qual eles enumeraram e atacaram toda
uma lista de vícios. Observa-se que o que estava em jogo não era simplesmente um código de
atos permitidos ou proibidos, mas uma técnica para analisar os pensamentos, suas origens,
qualidades, perigos, e todas as forças decadentes que poderiam permanecer ocultas. Os
pensadores cristãos mais extremistas protestavam contra quase todas as expressões que
pudessem se relacionar à sexualidade, desde o aborto, a contracepção, o divórcio e o adultério
até aqueles que usassem perucas ou maquiagem.
A Igreja inova ao fixar na sexualidade o símbolo da diferença entre cristãos e pagãos,
além de ser o grande indicador da moralidade individual. O papel de Agostinho foi essencial,
porque ele ajudou a cristalizar a doutrina que iria desfrutar de vida longa no pensamento
cristão. O casamento era celebrado se engendrasse uma progenitura, uma fidelidade e a
continência, sem menções ao amor mútuo (MCLAREN, 1996, p. 127).
De acordo com Flandrin (1987, p. 135), há no centro da moral cristã, uma
desconfiança muito aguda em relação aos “prazeres carnais”, porque eles mantêm o espírito
prisioneiro do corpo, impedindo-o de se elevar na direção de Deus. É necessário comer para
viver, mas é preciso evitar os prazeres da gula. Da mesma forma, há a obrigação da união com
o outro sexo com a finalidade de gerar filhos, mas não podemos nos prender aos prazeres
sexuais. São Paulo, com efeito, escreve aos coríntios (I Cor. 7, 1-3):
É bom ao homem não tocar em mulher. Todavia para evitar a fornicação, tenha cada
homem sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever conjugal
para com a esposa; e a mulher faça o mesmo com relação ao marido.
Agostinho, como outros padres da Igreja, não era favorável às famílias numerosas. Ele
esperava que os cristãos que se casassem tivessem somente um ou dois filhos, por
consentimento mútuo, venerando uma vida de continência. Ele teve, sem dúvida, um papel
chave na elaboração da sutileza do argumento cristão, segundo o qual o mal não estava na
união em si, mas no desejo que a acompanhava. Ele julgava severamente todos os recursos
deliberados a um método para prevenir a concepção (VEYNE, 1987, p. 47).
Aborto e contracepção foram considerados, pelos primeiros cristãos, como práticas
similares, por isso utilizavam-se dos mesmos produtos para ambas. Uma mulher que
36
praticasse o aborto era culpada não por homicídio, mas por perversão. Mas tanto Tertuliano,
quanto Agostinho, concordavam com os médicos da antiguidade pagã, reconhecendo que não
se podia falar de um feto até determinado período da gestação, e que um aborto era justificado
somente para salvar a vida da mãe (MCLAREN, 1996, p. 133-4).
De todo modo, Flandrin (1987, p. 140) afirma que do século XIII ao século XIV, o
aborto era condenado se ocorresse após a “animação” ou o “nascimento da alma”. A
animação se produzia no quadragésimo dia, e os primeiros movimentos do feto no centésimo
vigésimo dia. O aborto, anterior à animação, não era ainda considerado pela Igreja como um
homicídio.
As famílias na Idade Média eram de tamanho modesto, o que pode ser atribuído ao
casamento tardio e às altas taxas de mortalidade infantil. Mas, há fortes indícios de que os
métodos empregados para limitar os nascimentos desempenharam importante papel. Havia
uma lista considerável de poções feitas de ervas venenosas, os métodos de barreira e os
supositórios, “relações contra a natureza” (anal e oral), e o aborto. Certos testemunhos
provam que havia o recurso ao coito interrompido particularmente nas relações incestuosas
(ROSSIAUD, 1987, p. 99).
É bem verdade que, durante toda a Idade Média, a Igreja se preocupou mais com o
prazer resultante dos atos “contra a natureza”, com a fornicação, do que com seus efeitos
contraceptivos. Sendo assim, é plausível pensarmos que a condenação da Igreja em relação ao
controle da fecundidade fez parte, naquele momento, de uma campanha mais ampla para
reformar o casamento (MCLAREN, 1996, p. 203/4).
Enfim, podemos perceber que no mundo ocidental pré-moderno eram comuns os
métodos de controle de nascimentos. Recorria-se mais frequentemente à abstinência sexual,
ao coito interrompido, além do uso de chás feitos de certas ervas pelas mulheres, que também
poderiam servir como material para fabricação dos tampões. Além disso, as mulheres
recorriam à prática do aborto, através de uso de instrumentos e chás que provocavam as
contrações, quando não conseguiam prevenir as gestações. O aborto representava um
problema moral menos delicado para os antigos que para nós contemporâneos, na medida em
que eles pressupunham que a vida e o nascimento da alma não coincidiam com o momento da
concepção.
Entre pagãos e cristãos faz sentido remetermos a uma lógica inscrita em um regime de
economia sexual, na medida em que deveriam ser evitadas as práticas sexuais que tentassem
37
enganar a natureza em busca da esterilidade, como a sodomia ou o coito interrompido. O
cristianismo exacerbou e difundiu tais princípios, tornando o ‘controle da carne’ inscrito na
ordem dos sexos que consta dos desígnios de Deus e da natureza. Lembrando que a ‘boa
ordem’ é aquela que põe, social e sexualmente, as mulheres em seu ‘verdadeiro’ lugar de
‘subordinação’ (BOZON, 2004, p. 20).
A institucionalização do cristianismo no ocidente e a ética sexual restritiva que o
acompanhou não corresponderam a uma ruptura total com a Antiguidade. A verdadeira
inovação, segundo Bozon (2004, p. 26), foi que as práticas do conjunto dos fiéis estariam, a
partir de então, sob a vigilância de um aparelho de controle institucionalizado, e os
comportamentos controlados em função de princípios absolutos e sagrados. É possível
caracterizar duas grandes etapas do tratamento cristão da sexualidade: 1) A recusa à
concupiscência (desejo) e ao prazer; 2) Instituição, a partir dos séculos XII e XIII, do
casamento cristão, monogâmico e indissolúvel, que delimita o quadro dessa atividade sexual
legítima. Enfim, para os cristãos, excluída a busca do prazer na sexualidade lícita, só seria
possível experimentá-lo na transgressão. Mas, enquanto a transgressão era amplamente
tolerada para os homens, a procura do prazer pelas mulheres, permanecia, de certo modo,
como inaceitável.
Vejamos agora como os modernos organizam as questões relativas às vivências
sexuais e reprodutivas/contraceptivas, a partir do rompimento com certa representação
tradicional do sexo e da reprodução, que pode ser ilustrada na cultura ocidental pela medicina
da Antiguidade.
38
2 SEXUALIDADE MODERNA: A ASCENSÃO DO SEXO COMO ASSUNTO
DE ESTADO
2.1 1ª ONDA DE DECLÍNIO DA FECUNDIDADE VERSUS PRÓ-NATALISMO POLÍTICO
De acordo com a formulação foucaultiana (2000), o nascimento da época moderna
possibilitou a ascensão do sexo como núcleo para compreensão de uma larga rede de práticas
sociais. Em um nível mais profundo, a sexualidade moderna é vista como algo que opera
dentro dos campos de poder, envolvida na formação e consolidação das instituições sociais
modernas.
Esta afirmação se apoia no que denominou de “biopoder”, que se refere às formas
modernas de exercício do poder14, implicando na extensão de seus tentáculos sobre as várias
esferas da vida. Como ele mesmo sinteticamente conceituou, “biopoder” significa “uma
tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico
ou, pelo menos, certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do
biológico” (FOUCAULT, 2000, p.286).
Por que a sexualidade se tornou, no século XIX, um campo com importância
estratégica tão fundamental? As razões podem ser buscadas de várias maneiras, mas para o
autor, destaca-se, sobretudo, o fato de ela estar localizada justamente na encruzilhada entre o
corpo e a população, dependendo tanto da disciplina quanto da regulamentação.
Em suas palavras,
de um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente corporal, depende
de um controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente
(...); e depois, por outro lado, a sexualidade se insere e adquire efeito, por seus
efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao
corpo do indivíduo mas a esse elemento, a essa unidade múltipla constituída pela
população (2000, p. 300).
O século XIX foi palco de uma proliferação discursiva e tecnológica em torno da
sexualidade, denominada pelo autor de ‘dispositivos de sexualidade’. Esses dispositivos, que
14
A “analítica do poder” foucaultiana rompe com concepções minimalistas, as quais o caracterizam como ligado
à ideia de negação, repressão, coação. Neste sentido, o autor relaciona o poder a uma multiplicidade de
correlação de forças que criam o real, agindo como um fenômeno mobilizador e não apenas como impositor de
limites. Não há um único pólo irradiador do poder, pois este se produz a todo instante, transforma-se, mistura-se.
Tanto a resistência quanto as relações de dominação ou de governo do poder devem ser pensadas como sendo
parte integrante das múltiplas relações de poder. Para Foucault, independente da noção de poder enfatizada, suas
relações sempre implicam a resistência e não se restringem às estruturas centralizadoras do Estado
(FOUCAULT, 2000).
39
funcionaram como conjuntos estratégicos de ação do poder/saber, constituíram os
personagens célebres na história do ocidente moderno: a mulher histérica, o casal
malthusiano, a criança masturbadora e o perverso sexual (como o homossexual, o fetichista, o
zoofilista e muitos outros protagonistas) (FOUCAULT, 1999). Neste contexto, o discurso
sobre a fecundidade, até então sob o controle da Igreja, assumiu uma matriz mais
secularizada. O Estado buscou substituir progressivamente a Igreja na regulamentação da
maternidade e do controle sobre os nascimentos.
O processo que culminou no que se denomina “medicalização da sexualidade”
permitiu a transferência, de forma relativa, da autoridade da Igreja, em matéria de procriação
e contracepção, para os médicos aliados do Estado. De acordo com Oudshoorn (1994), a
construção da ciência moderna transformou os corpos em objetos manipuláveis a partir das
mais variadas técnicas e instrumentos, em seus diferentes níveis e instâncias. É nesse contexto
que a atenção médica se voltou diretamente para o corpo feminino, mais especificamente o
útero e os ovários, na busca pela “essência” da feminilidade (ROHDEN, 2001).
A partir dessa concepção defendida no século XIX, os corpos de machos e fêmeas
tornaram-se “opostos incomensuráveis, horizontalmente ordenados” (LAQUEUR, 2001, p.
24). Nomes foram atribuídos para o que, até aquele momento, permanecera confuso.
Descobriu-se que a ovulação se produzia espontaneamente, sem laços com a fecundação nem
com o coito, e que a menstruação estava ligada à ovulação, ainda que esse mecanismo só
viesse a ser elucidado por volta de 1930. Ficou também estabelecido que o encontro dos
espermatozoides com o óvulo poderia se realizar sem o orgasmo feminino, perdendo este
último qualquer função fisiológica. A diferença sexual, agora de espécie e não mais de grau,
aparece solidamente ancorada na natureza, tanto nos caracteres visíveis dos corpos quanto em
seus elementos microscópicos. Toda uma psicologia da diferença acompanhou essa biologia.
O pudor, a possibilidade de continência sexual, a moderação, a ausência de desejo foram
considerados pela ciência como qualidades naturais das mulheres, vinculados à perda da
antiga função do prazer feminino. Inversamente, o desejo, a agressividade e a atividade foram
definidos como próprios do indivíduo masculino (BOZON, 2004, p. 37).
No que se refere ao controle populacional, no fim do século XVIII, Thomas Malthus,
pastor anglicano, apresentou um argumento radicalmente novo. Ele afirmou que a população
gerava uma limitação de recursos, e que não haveria progresso social se as classes inferiores
não adotassem um ‘freio moral’, demonstrando maior prudência ao evitarem casamentos
muito precoces e precipitados. A mensagem pessimista de Malthus dizia brutalmente que o
40
problema da pobreza não poderia ser resolvido com almas caridosas. Assim, no século XIX, o
controle dos nascimentos, aliado aos mecanismos do “biopoder”, não foram jamais
concebidos como simples meios para limitarem o tamanho das famílias, associando-se à
pobreza, à política e à devassidão (THERBORN, 2006, p. 358).
A importância do controle da fecundidade foi reforçada pelo espetacular julgamento
Bradlaugh-Besant15, sobre contraceptivos, na Inglaterra em 1877, que gerou a difusão em
massa do conhecimento sobre anticoncepcionais também no além-mar. McLaren (1996)
salienta que, no último quartel do século XIX, contraceptivos (incluindo preservativos,
pessários, diafragmas e seringas) e abortivos eram anunciados em jornais e revistas, vendidos
em lojas e farmácias e mesmo de porta em porta. No fim do século, era possível encontrar
preservativos (condom), único contraceptivo novo da época, nos bordeis não somente de
Londres, mas também de Paris, Berlim e São Petsburg. Mas, seu preço e sua ligação com as
doenças venéreas16 limitavam seu uso pelos casais (MCLAREN, 1996, p. 241).
Caso os métodos falhassem, as mais desesperadas recorriam ao infanticídio ou ao
abandono, mas bem mais comum era a tentativa de provocar o aborto. Contracepção e aborto
eram estratégias que ainda se confundiam, apesar dos esforços empreendidos pelos médicos e
neomalthusianos para diferenciá-los. O aborto fazia parte de um contínuo de práticas de
controle da natalidade e era principalmente utilizado por mulheres de classes populares, que
tinham menos acesso aos contraceptivos. Apesar dos médicos terem autorização para realizálo com segurança, eles pretendiam fazê-lo somente por razões terapêuticas e estavam
procurando vigorosamente expulsar do ramo os praticantes irregulares, parteiras e herbalistas
associados a esta prática (MCLAREN, 1998, p. 312).
De fato, os médicos do século XIX operaram uma transformação nos limiares entre
práticas contraceptivas e abortivas. Até o início do século, o aborto não era penalizado antes
dos “chutes”- isto é, quando as mulheres sentiam os movimentos do feto, por volta de trezes
15
Desde 1834, o livro “The Fruits of Philosophy”, do médico C. Knowlton, era vendido na Inglaterra numa
média de aproximadamente setecentos exemplares por ano. Mas em 1876, a Corte de Justiça inglesa proibiu a
circulação do livro sob a alegação de julgá-lo obsceno. Para pôr à prova a decisão da corte, Charles Bradlaugh e
Annie Besant fundaram a Companhia Publicadora Livre Pensamento com o único intuito de publicarem o livro.
Ambos foram presos e levados a julgamento três meses depois. Durante estes três meses, o livro de Knowlton
vendeu cento e vinte e cinco mil cópias, não incluído neste número uma verdadeira inundação de imitações e de
edições piratas. Terminado o julgamento, os acusados foram condenados a seis meses de prisão e uma multa de
duzentas libras; a justiça inglesa iniciou, ademais, uma série de outras perseguições contra outros proponentes do
movimento. Tudo isto só veio para a alegria dos principais envolvidos, que apelaram e foram absolvidos no ano
seguinte, mas conseguiram, justamente por causa disto, uma propaganda para a sua causa que nenhum dinheiro
poderia ter pago (THERBORN, 2006, p. 345).
16
Modo como as Doenças sexualmente transmissíveis (DST) eram designadas à época.
41
semanas após a concepção. Após esse prazo, o aborto era punido com uma multa ou curto
período na prisão. Mas, no século XIX, os médicos passaram a condenar o aborto em todos os
estágios, e traçaram uma linha muito nítida entre contracepção e manobras abortivas
(MCLAREN, 1996, p. 316).
A popularização e difusão da contracepção, no século XIX, contribuiu para que a
América do Norte e a Europa ocidental entrassem em uma nova era demográfica. Até os anos
de 1870, a maior parte das nações europeias conservaram níveis de fecundidade relativamente
mais elevados. O que os demógrafos costumam denominar de 1ª onda de ‘transição
demográfica’ foi a diminuição espetacular das taxas de natalidade, que se produziu entre 1870
e 1920. Na Alemanha, a fecundidade matrimonial baixou 65% por volta de duas gerações. Na
Inglaterra, os casais entre 1861 e 1869 tinham em média 6,16 filhos; entre 1890 e 1899 eles
passaram para 4,13 filhos; e entre 1920 e 1924 para 2,31 (THERBORN, 2006, p. 336).
Na literatura consultada, há uma tônica predominante que descreve o século XIX
como o momento em que a contracepção tornou-se mais acessível, possibilitando a
diminuição do número de filhos, o que estava a cargo sobretudo do controle individual das
mulheres. Na Inglaterra, por exemplo, a criação da Liga Malthusiana começou, na década de
1870, a alardear as vantagens da família pequena. Acrescenta-se a isso o fato de que a
propagação dos métodos contraceptivos e o recurso ao aborto se converteram, com o passar
do tempo, em um mercado relativamente grande e lucrativo, particularmente no meio
urbano17. As empresas comerciais começaram, na virada do século, a produzir geleias e pós
ácidos para imobilizar e destruir os espermatozoides. Os diafragmas e os pessários eram
verdadeiramente eficazes quando associados à ducha vaginal. As lavagens efetuadas com a
ajuda de uma seringa vaginal, para destruir as propriedades fecundantes do esperma pelos
agentes químicos, eram também recomendadas pelos médicos (MCLAREN, 1996, p. 280).
Ainda assim, segundo McLaren (1996, p. 281), faltam provas de que tais métodos
fossem largamente utilizados. Estima-se que somente 16% dos casais ingleses, casados até
1910, empregavam métodos contraceptivos mecânicos. Ademais, a taxa de natalidade baixou
também nas regiões europeias onde estes métodos não estavam disponíveis. De acordo com a
17
McLaren (1998, p. 311) ressalta que embora fosse possível encontrar inúmeras fórmulas antigestação expostas
nas vitrines dos farmacêuticos, os preservativos, diafragmas e duchas eram caros. Por isso, admite-se que até o
século XX, eram empregados por uma parcela bem reduzida da população, e o coito interrompido permaneceria
o principal método de contracepção nos lares das classes trabalhadoras.
42
interpretação do autor, as propagandas médicas sobre a eficácia dos novos métodos
contraceptivos provam, sobretudo, que um número significativo de casais já praticavam o
controle dos nascimentos, sem o benefício de nenhuma técnica moderna. Usavam o coito
interrompido, o método dos ciclos, que envolvia a abstinência em determinados períodos,
outros métodos de barreira, feitos de plantas, entre outros.
A atmosfera do fim século XIX contribuiu para que a contracepção figurasse entre as
mais importantes novas ideias disseminadas, sendo que o controle de natalidade preventivo
tornou-se propaganda radical, pelo menos na Inglaterra e nos Estados Unidos (THERBORN,
2006, p. 362). Entretanto, o decréscimo do número de nascimentos, sobretudo a partir de 1875
abriu um aflorado debate entre neomalthusianos e natalistas. Na concepção dos natalistas, era
necessário combater o individualismo excessivo por meio da valorização da família e da
maternidade. Para os neomalthusianos, a superpopulação seria a origem da miséria e da guerra
e precisaria ser combatida pelas práticas de restrição da natalidade. Alguns neomalthusianos
se associaram ao eugenismo propondo também a ‘procriação consciente’ dos indivíduos
considerados saudáveis e a esterilização dos indesejáveis. O fato é que a queda da natalidade
começou a incomodar, especialmente os poderes públicos. Instaurou-se um clima de medo da
ruína nacional a partir da natalidade, e o aborto e a contracepção foram logo identificados
como vilões (ROHDEN, 2001, p. 33).
Do ponto de vista das instituições governamentais, na década de 1920, foram criadas
leis que intensificaram a repressão ao aborto e à propaganda neomalthusiana, especialmente
sob a acusação de pornografia e antipatriotismo. Os recursos contraceptivos desaparecem das
farmácias e os propagandistas das ideias neomalthusianas foram severamente perseguidos e
condenados. Apesar da repressão, a limitação dos nascimentos tornou-se ainda mais forte na
década seguinte, devido às novas descobertas de Ogino e Knaus sobre o ciclo de fertilidade da
mulher (THERBORN, 2006).
A redução da dimensão da família foi vivenciada de forma muito real na Europa
ocidental e na América do Norte no fim do século XIX. Essa tendência se manteve contínua
nas regiões orientais e meridionais da Europa no curso dos primeiros decênios do século XX
(THERBORN, 2006, p. 344). Principalmente na Europa e América do Norte destacaram-se
fortemente duas perspectivas de defesa do controle de nascimentos, aquela mais direcionada
ao aspecto econômico no sentido malthusiano e a perspectiva mais afinada com o feminismo
mais radical, que argumentava a favor do direito das mulheres de engravidarem somente por
desejo. Nos Estados Unidos, por exemplo, na primeira década do século XX, a anarquista
43
Emma Goldman18 causou fortes impressões ao proclamar publicamente a necessidade de
controlar os nascimentos, em uma perspectiva mais “libertária” do que econômica.
Duas feministas americanas alcançaram destaque na divulgação das ideias sobre o
controle de nascimentos nas primeiras décadas do século XX - Margaret Sanger19 e Marie
Stopes20. Ambas tinham inquietações parecidas, na medida em que se impressionaram com as
taxas de mortalidade materna e infantil, especialmente nas famílias numerosas e passaram a
explorar as ideias eugenistas presentes naquela época, sobre a necessidade de melhorar a
qualidade da raça (MCLAREN, 1996, p. 326; PRESCOTT, 2011, p. 7).
As ideias destas duas feministas estavam afinadas com as estratégias políticas de
controle de nascimentos, pensadas, naquele momento, sob o viés econômico e eugênico, mas
também continham argumentos de defesa da autonomia feminina e do direito de decidir o
número de filhos que se deseja ter. Partindo do princípio que a classe média havia conseguido
reduzir o número de filhos, elas buscaram tornar acessíveis os métodos contraceptivos às
mulheres menos favorecidas. Ambas insistiam sobre a necessidade dos estabelecimentos de
saúde, dirigidos por profissionais qualificados, ensinarem ao público em geral sobre o uso de
contraceptivos (MCLAREN, 1996, p. 327).
Marie Stopes foi a primeira das conselheiras matrimoniais modernas a colocar como
obrigação entre os casais “se adorarem”, se comportarem como “amantes”, sem jamais cessar
de fazer a “corte”, sem falar da recomendação para leituras em comum sobre as técnicas
sexuais. De passagem, tornou-se uma das maiores defensoras da heterossexualidade moderna,
condenava as lésbicas e a masturbação, porque deturpava o desejo das mulheres por uma
“verdadeira união” (MCLAREN, 1996, p. 331).
18
Conhecida com uma das mais combativas militantes do movimento anarquista internacional, Emma Goldman,
nascida em Kovno, na Rússia, em 1869, imigrada para os Estados Unidos na juventude, mantém-se em destaque
pela ousadia das suas ideias e práticas. Goldman renovou e radicalizou as posições libertárias e feministas de sua
época, destacando-se, segundo suas biógrafas, pela maneira como articulava eros e política, em sua própria
existência e em suas narrativas políticas ou autobiográficas. Em diferentes frentes de ataque à exploração
capitalista, ao imperialismo e à opressão de gênero, ousou discutir assuntos até então pouco enunciados por
mulheres, mesmo entre as feministas. O tráfico das "escravas brancas", a prostituição, o casamento e o amor
livre compõem um conjunto desses temas (RAGO, 2011, p. 263).
19
Margaret Sanger (1979-1966) foi enfermeira, educadora sexual e ativista norte-americana pelo controle de
natalidade como meio de controle populacional. Foi presidente da International Planned Parenthood Federation
(IPPF) de 1952 a 1959, com sede na Índia. Foi considerada por muitos como a fundadora do moderno
movimento de controle de natalidade.
20
Marie Stopes (1880-1958), nascida em Edimburgo, tornou-se uma das primeiras ativistas britânicas pelos
direitos das mulheres e pelo planejamento familiar. Em 1930, ajudou a criar o National Birth Control Council,
mais tarde denominado Family Planning Association.
44
Parte do trabalho de ambas era trocar cartas com mulheres que desejassem saber suas
opiniões a respeito das suas vivências sexuais e contraceptivas. Elas recebiam milhares de
cartas, o que as levou a perceber claramente as principais motivações das mulheres que lhes
escreviam. Segundo Stopes e Sanger, as mulheres lhes confessavam o terror que vivenciavam
ao fim de cada mês, pois suas vidas sexuais estavam reguladas pelo medo de uma gestação. O
mais impressionante é que as mulheres que escreviam tais cartas, desejando informações
sobre a contracepção, afirmavam que não era para seu próprio interesse, mas para se tornarem
“melhores esposas e mães” (MCLAREN, 1996, p. 332).
Importante destacar que, na virada do século, a sexologia elaborou um novo conceito
de desejo e prazer feminino, assim como de comportamento sexual “normal”, sendo dado um
passo importante rumo a uma “teoria geral da sexualidade”. Um das obras importantes foi o
livro de Albert Moll, Untersuchungen über die libido sexualis21, de 1897, no qual ele
desvinculou a sexualidade da procriação, contestando a noção de “impulso procriador”.
Considerava a vida conjugal heterossexual como precondição social para a propagação
biológica (HEKMA, 1995, p. 249).
As necessidades biológicas foram definidas por sexólogos como Havelock Ellis, que
reconheceu o direito da mulher ao prazer, tal como havia sido reclamado por feministas como
Emma Goldman e Ellen Key. Mas a teoria freudiana da sexualidade dá um passo adiante, na
medida em que não é mais o instinto de reprodução, mas a busca do prazer que passa a ser
considerada a predisposição original (HEKMA, 1995, p. 239).
As mulheres são certamente objeto de atenção particular, sendo que diferentes
fronteiras do “normal” e do “anormal” foram estabelecidas para elas e os homens. Nas cartas
escritas para Margaret Sanger e Marie Stopes havia sempre a súplica feminina por métodos
contraceptivos mais eficazes. A questão para ambas era descobrir um meio de disponibilizar
os métodos mais modernos para um número maior de mulheres. Nesse caso, defendiam o uso
do diafragma, preferindo-o ao preservativo e coito interrompido, que não eram considerados
vantajosos para as mulheres, pela sua falta de controle no uso. Elas buscavam um método de
auto-proteção que a própria mulher pudesse utilizar, sem depender da vontade masculina
(MCLAREN, 1996, p. 339/40).
21
Tradução nossa:“Estudo sobre a libido sexual”, Albert Moll, 1897.
45
Apesar da oposição que ambas faziam ao aborto, as mulheres que lhes escreviam
afirmavam que continuavam utilizando-o22 como método para o controle dos nascimentos. Na
Alemanha, estima-se que o número de abortos passou de trezentos mil antes da 1ª guerra para
um milhão nos anos 1920 e que entre cinco e oito mil mulheres morriam a cada ano por
consequência dessa prática (MCLAREN, 1996, p. 340).
Prescott (2011, p. 40) ressalta que tanto Sanger quanto Stopes colaboraram no
processo de medicalização da contracepção, já que ajudaram a construir um modelo de
controle reprodutivo “baseado na doença”. As feministas ativistas da década de 1960 vieram a
criticar esse modelo, argumentando que ambas pareciam mais preocupadas com o controle de
nascimentos, principalmente nas áreas com abundância de carências sociais, do que com a
liberação sexual feminina.
A difusão social dos discursos destas ativistas anti-natalistas a favor dos métodos
mecânicos ainda era modesta, os testemunhos recolhidos nas clínicas revelaram que o coito
interrompido continuou como o primeiro método de contracepção empregado pela maioria da
população. Nos anos 1930, os métodos mais populares eram, na ordem, o coito interrompido,
o condom, a abstinência e o diafragma. É neste momento que se começa a fabricar os
preservativos de látex, mais confortáveis do que os de tripa de carneiro. O uso dos
preservativos masculinos generalizou-se durante a Primeira Guerra Mundial, sobretudo para
evitar as doenças denominadas à época de “venéreas”, reforçando sua associação com a
prostituição (MCLAREN, 1996, p. 352).
Métodos novos apareceram no início do século XX, mas não foram considerados
satisfatórios por várias razões. A esterilização de homens e mulheres, por exemplo, tornou-se
possível tecnicamente nos anos 1890, mas foram reservadas aos portadores de deficiências
mentais, por razões eugênicas. A datação precisa da ovulação realizada por Ogino e Knaus,
nos anos 1920, resultou na elaboração de um novo método, fundado sobre o ciclo. Mesmo que
este fosse superior ao que fora elaborado no século XIX, ele tinha uma taxa de falha ainda tão
elevada quanto o anterior. Os pesquisadores alemães que, em 1914, tinham trabalhado sobre
os Dispositivos intrauterinos (DIUs), destinados a impedir a implantação do óvulo fertilizado,
tiveram decepções semelhantes. Estes dispositivos causaram irritações internas perigosas e
22
As mulheres não utilizavam habitualmente o termo “aborto”, porque este era associado com a imagem de um
médico praticando uma operação, tratava-se de “fazer vir as regras” ou de “retornar seu ciclo” (M CLAREN,
1996, p. 346).
46
uma quantidade enorme de problemas médicos que limitaram sua utilização23 (MCLAREN,
1996, p. 354/5).
A guerra tinha possibilitado o fortalecimento do discurso pró-natalista, especialmente
no continente europeu e América do Norte. Na União Soviética, nos anos 1930, Stalin havia
limitado o acesso ao aborto. De fato, a taxa de natalidade se elevou após 1933 (com exceção
da França), segundo McLaren (1996, p. 356) não por causa da política natalista nazista, mas
por conta do fim da Grande Depressão.
Apesar do baby boom no continente europeu e norte-americano ter sido bem acolhido
pelos governos ocidentais, por outro lado, o desenvolvimento rápido da população dos países
à época denominados de “Terceiro Mundo”, marcado pelo declínio da mortalidade, foi
considerado uma ameaça para o equilíbrio social mundial. A fundação Rockefeller 24, entre
outros dirigentes de sociedades menos conhecidas, sustentavam financeiramente o Population
Council 25 criados na Ásia, África e América do Sul, países assombrados pela superpopulação,
para que estes não tombassem nas mãos dos comunistas (PRESCOTT, 2011, p.8).
2.2 BRASIL: ENTRE O ‘ATRASO’ E A ‘CIVILIZAÇÃO’
No contexto de modernização do Estado brasileiro, ocorrido especialmente a partir da
virada do século XIX para o XX, em meio às tentativas para transformar um país ‘arcaico’ e
‘incivilizado’, em uma nação civilizada, a produção de uma identidade nacional não foi
simples e unilinear. Que o país não constituía uma nação era voz corrente, estabelecendo-se
um sentimento de falta em relação aos países europeus. Compartilhando desse diagnóstico, as
correntes de pensamento do período diferenciavam-se basicamente no que diz respeito à
crença na viabilidade da construção da nação e às imagens de sociedade que idealizavam
(HERSCHMANN, PEREIRA, 1994, p. 12-3).
23
Devido ao fato do DIU não ter sido tomado como um produto farmacêutico quando foi lançado, não passou
por ensaios clínicos e não foi regulamentado pelo Food and Drug Administration (FDA). Após a distribuição de
quatro milhões de esterilets entre 1971 e 1975, ocorreu uma epidemia mundial de infecções pelvianas, de falsas
gestações, defeitos congênitos, relacionadas imediatamente ao uso deste produto (MCLAREN, 1996, p. 377).
24
A Fundação Rockefeller existe há mais de cem anos com o objetivo expresso de “promover o bem-estar da
humanidade em todo o mundo”. Faria (1995) discute os primeiros anos de atuação da Fundação Rockefeller no
Brasil (1915- 20) e demonstra sua participação no ensino e pesquisa na área biomédica (1995, p. 127).
25
Population Council organização sem fins lucrativos que conduz pesquisas biomédicas, de saúde pública e
ciências sociais para melhorar o bem estar e saúde reprodutiva de mulheres pelo mundo. Suas pesquisas têm
instrumentalizado o desenho de produtos de saúde, serviços, programas e políticas públicas. (Acesso em
http://www.popcouncil.org/who/).
47
A ideia majoritária, que agregou especialistas das mais diversas áreas, relacionou o
“atraso” brasileiro ao seu povo, que era em sua origem “impuro”, uma vez que se constituiu
pela miscigenação (índio, negro, português), tendo tal concepção originado o “mito das três
raças”. Entrelaçada à questão da miscigenação, havia outra imagem simbólica, que foi
fundamental na construção do mito de origem do povo e nação brasileira, qual seja, da
“sexualidade exacerbada”. Parker (1991) assinala a grande profundidade desse mito de
origem, já que este fez parte da caracterização dos primeiros viajantes que aqui chegaram em
tempos remotos, tendo mais tarde sido apropriado pelos próprios brasileiros, que compuseram
a história nacional.
De acordo com o autor,
por causa da ênfase que os brasileiros colocaram na mistura das três raças, (...) como
a chave de sua constituição histórica, a questão da sexualidade, da interação sexual
como mecanismo concreto da mistura racial assumiu uma importância sem paralelos
no pensamento moderno brasileiro. (PARKER, 1991, p. 33-4)
Qual seria a saída para o progresso nessa sociedade miscigenada e sexualizada? O
debate era bastante fecundo, havia uma pluralidade de ideias circulando. Um dos expoentes
neste cenário foi Nina Rodrigues, o qual defendia a tese de degeneração racial ocasionada
pela mistura de raças. Para os defensores dessa teoria, o processo de miscigenação era o fator
determinante do atraso do país, pois ela estava associada às doenças, ao crime, o que
significava que, no limite, o mestiço era um degenerado em todos os aspectos.
Diante da grande efervescência discursiva em torno da busca de uma solução para o
Brasil, havia também os que pensavam os problemas da inferioridade nacional do ponto de
vista social, econômico e político, como alguns médicos e intelectuais higienistas que
participavam do movimento sanitarista da Primeira República. De acordo com Lima e
Hochman (2000, p. 316):
os conhecimentos dos médicos-higienistas sobre a saúde dos brasileiros e sobre as
condições sanitárias em grande parte do território nacional, revelados ao público em
meados da década de 1910 [através do Relatório de viagem de Arthur Neiva e
Belisário Pena], absolvia-nos enquanto povo e encontravam um novo réu. O
brasileiro era indolente, preguiçoso e improdutivo porque estava doente e
abandonado pelas elites políticas. Redimir o Brasil seria saneá-lo, higienizá-lo, uma
tarefa obrigatória dos governos.
Fazia-se urgente um movimento amplo de luta contra as doenças, pois como afirmou
Miguel Pereira em 1916, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, numa frase
que se tornou célebre: “o Brasil é um imenso hospital”. Organizou-se, então, a partir de 1916,
a campanha pelo saneamento do Brasil, a qual foi ampliada, em 1918, com a criação da Liga
48
Pró-Saneamento do Brasil, tendo importantes impactos na sociedade brasileira, entre eles a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública.
A ligação da medicina ao Estado previa uma intervenção cada vez mais capilarizada
na vida das pessoas, tentando se afirmar como um importante instrumento de controle social
(COSTA, 1989). Como afirma Herschmann (1994, p. 48), “cada vez mais, a medicina tornase responsável pela orientação da vida privada dos indivíduos”. Além disso, a ligação com o
positivismo, evolucionismo e darwinismo social possibilitou a definição de um método
convincente para esses propagadores do progresso, transformando a ciência no único meio
plausível para se atingir a saúde plena do corpo social, a civilização.
Além do desenvolvimento de pesquisas visando extinguir as moléstias, era necessário
intervir no ambiente social que colaborava no desenvolvimento das doenças tropicais. Sendo
assim, cresceu cada vez mais o interesse em investimentos sanitários voltados para a
educação, pois os hábitos deveriam ser moralizados, orientando-se os costumes alimentares e
higiênicos, controlando-se o desvio e evitando a degeneração.
A proposta de educação do povo brasileiro implicava, acima de tudo, uma nova
concepção de infância, família, espaço público e privado. Neste contexto, a questão do
controle de natalidade ganhou cada vez mais destaque. Assistimos, no início do século XX, a
uma valorização da maternidade e da infância, o que está articulado a vários fatores, tais
como: ascensão da ideologia nacionalista, presença das ideias eugênicas (no caso brasileiro,
redefinidas devido ao impasse interno provocado pela miscigenação), a propagação dos
recursos de controle de natalidade, os movimentos de emancipação feminina e a entrada da
mulher no mercado de trabalho, além dos aspectos comentados da redefinição do papel da
medicina na sociedade, especialmente da medicina da mulher e da criança (COSTA, 1989;
FONSECA SOBRINHO, 1993; ROHDEN, 2001).
Os ginecologistas e obstetras se definiam como os mais capazes para delimitar, entre
outras coisas, o terreno do que era ou não permitido em relação ao aborto e contracepção. No
que se refere ao aborto ilegal, foram os principais envolvidos em polêmicas e debates
públicos. O aborto representava um problema social, que deveria ser resolvido pela
intervenção médica no comportamento feminino, envolvendo a sexualidade e a
reprodução/contracepção (ROHDEN, 2001, p. 85).
Em suas pesquisas, Rohden (2001) percebeu que, no início do século XX, os médicos
ginecologistas e obstetras brasileiros procuravam diferenciar o olhar sobre as mulheres que
49
praticavam infanticídio, aborto criminoso e contracepção. Aquelas que praticavam
infanticídio estariam sob o domínio da loucura puerperal, desordem mental que poderia
suprimir a consciência das ‘doentes’. Por outro lado, aquela que comete um aborto é
considerada uma criminosa completamente consciente dos seus atos. Mas, no discurso
médico, ambas estão lesionando a sociedade, a nação, na medida em que se suprime um novo
cidadão. Além disso, assemelhavam-se pelo fato de serem ‘perigosas’, por enfatizarem a
disjunção entre sexo, reprodução e maternidade (ROHDEN, 2001, p. 85).
Nesses casos, o tipo de solução aventada pelos médicos para os problemas brasileiros
tendiam a uma profilaxia social mais ampla, com ações mais focadas no nível populacional.
Os médicos parecem investir menos no ‘tratamento’ individual e mais em campanhas de
condenação ao aborto e à contracepção e de valorização da maternidade. Segundo Rohden
(2001), o argumento invocado naquele momento referia-se ao perigo que estas práticas
representavam no sentido de comprometimento do projeto nacional de construção de um povo
numeroso e “saudável”.
A perspectiva eugenista, sem dúvida, foi grande inspiração, servindo como argumento
de defesa da esterilização dos ‘incapazes’, ou seja, os degenerados e deficientes. Um dos
pontos fundamentais através do qual a contracepção era discutida referia-se ao seu valor como
meio de evitar a propagação de seres que contribuiriam para o enfraquecimento da raça. Notase que o aperfeiçoamento da raça estava ligado ao aumento da natalidade nas classes mais
altas. Rohden (2001) enfatiza que havia certo deslizamento entre a noção de raça e classe. Os
mais pobres, por uma série de circunstâncias, eram responsáveis pela reprodução dos
degenerados, enquanto os mais ricos contribuíam para a realização do projeto eugênico.
Por fim, Rohden (2001, p. 118) enfatiza que através da difusão das ideias eugênicas,
sempre revestidas e resguardadas pelo caráter científico, o tema da contracepção passa a ser
considerado. Recorrendo às teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ela percebeu
que os raros trabalhos que tratavam da anticoncepção tinham uma matriz eugenista. A partir
da vontade de impedir o nascimento de indivíduos “indesejáveis”, até mesmo a esterilização
era defendida como um meio legítimo. Mas, para os indivíduos considerados “normais”
imperava a lei da procriação. Os próprios médicos admitiam que vigorava uma pressão social
em torno da propagação da contracepção, especialmente por parte das mulheres. Os médicos
se viam investidos da responsabilidade de convencer as mulheres saudáveis da importância da
maternidade, considerando os princípios da eugenia, da higiene e da puericultura.
50
Fonseca Sobrinho (1993) também observa que, antes de 1964, prevalecia no Brasil, a
postura – difusa e teoricamente desarticulada – que foi caracterizada como ‘pró-natalismo’, a
qual se manterá durante toda a primeira metade do século XX, com algumas modulações
relativas à discussão sobre raça e miscigenação no contexto nacional.
Volto, em seguida, ao contexto global para penetrarmos em uma nova fase de controle
de nascimentos, com a invenção da pílula hormonal e a 2ª onda de declínio da fecundidade.
51
3 A ERA DOS HORMÔNIOS
3.1 A DESCOBERTA DOS HORMÔNIOS, A INVENÇÃO DA PÍLULA HORMONAL E A 2ª
ONDA DE CONTROLE DA FECUNDIDADE
O passo inicial para a criação de um novo contraceptivo foi dado no início do século
XX, com a “descoberta e isolamento” dos hormônios sexuais. O próprio termo hormônios foi
utilizado pela primeira vez em 1905. O professor de fisiologia Ernest H. Starling cunhou este
vocábulo para falar sobre mensagens químicas produzidas em determinados órgãos, que
conduzidas pela corrente sanguínea afetam outros (OUDSHOORN, 1994; HARDING, 1996).
Mais do que uma nova definição em torno dos saberes biomédicos, a emergência deste
conhecimento instaurou uma nova apreensão do corpo humano e sua regulação. Uma
concepção do corpo que se funda em parâmetros e medições hormonais, que se liga à
medicina, mas também a outros campos disciplinares, sobretudo a bioquímica. Para Harding
(1996, p. 99),
Hormones are major 20th-century inventions. They have captured scientific and popular imaginations
because of their perceived power to account for and control how individual look, fell and behave 26.
O que hoje se sabe sobre os hormônios pode ser creditado aos “endocrinologistas do
sexo” que, nas décadas de 1920 e 1930, definiram e estabeleceram a função dos hormônios
nos corpos humanos. Um novo modo de apreender os corpos femininos e masculinos emerge,
no conjunto destes novos saberes, a partir do que era conhecido em termos das gônadas
humanas: os testículos e os ovários, interpretados como agentes de diferenças sexuais
(OUDSHOORN, 1994; HARDING, 1996).
Com a introdução do conceito de hormônios sexuais, os cientistas da época
acreditavam ter encontrado a explicação sobre os determinantes da feminilidade e
masculinidade, sexualidade, reprodução e sobre as marcas da diferença sexual. O grupo de
hormônios produzidos nos ovários seria responsável pelo que faz uma mulher tornar-se
mulher e aqueles secretados pelos testículos, um homem tornar-se homem. O interesse pelo
corpo feminino, contudo, é mais relevante para os “endocrinologistas do sexo”; o
entendimento sobre a feminilidade centra-se, então, nos hormônios produzidos pelos ovários
26
Tradução nossa: “Os hormônios são as mais importantes invenções do século 20. Eles capturaram a
imaginação científica e popular por conta de seu poder de controlar a forma como cada indivíduo olha, sente e se
comporta” (HARDING, 1996, p. 99).
52
humanos (ROHDEN, 2001). Para Oudshoorn (1994, p. 38), a introdução do conceito de
hormônios sexuais como mensagens químicas que controlam a masculinidade e a
feminilidade significou uma mudança na conceitualização do sexo de um ente anatômico para
um agenciamento químico.
Nos conjuntos dos “hormônios sexuais femininos”, encontra-se o grupo dos
estrogênicos – a estrona, 17 ß estradiol e estriol – e a progesterona. Os androgênios, sobretudo
a testosterona, são produzidos especialmente nos corpos masculinos, em que pese também
serem constitutivos dos corpos femininos. Durante o período reprodutivo feminino, o mais
importante dos estrogênios é o 17 ß-estradiol. Cerca de 95% desse hormônio é produzido
pelos ovários (REIS, 2002).
Conforme McLaren (1996, p. 359), as primeiras pesquisas hormonais foram realizadas
na Áustria, pelo doutor Haberlandt, graças à ajuda dos fundos Rockefeller, mostrando que era
possível bloquear a ovulação no animal através de injeções de estrogênio. Experiências sobre
as interferências dos esteroides foram igualmente feitas pelo doutor B. P. Wiesner em
Edimburgo, nos anos 1920, igualmente graças ao financiamento americano.
Nos Estados Unidos, Gregory Pincus começou a trabalhar sobre os hormônios
sintéticos, no momento em que trabalhou na Worcester Foundantion for Experimental
Biology (WFEB). Partindo do princípio que a ovulação era controlada pela hipófise e pelo
hipotálamo, ele descobriu que poderia bloquear o processo estimulando a atividade de tais
glândulas, através de um medicamento. É necessário comentar que as pesquisas ainda não
eram realizadas com o interesse de produzir um contraceptivo mais eficaz, mas estudavam as
causas da infertilidade e outras desordens reprodutivas femininas (MCLAREN, 1996, p. 359).
Entretanto, Prescott (2011, p. 7-8) ressalta, com relação à história da pílula hormonal,
que a noção hegemônica de que o desenvolvimento desse medicamento se deu graças ao
trabalho de um pequeno grupo de médicos pesquisadores é, em realidade, um mito histórico,
gerado em parte pelas memórias escritas por estes cientistas e seus colaboradores. Segundo
sua visão, estas histórias frequentemente minimizam o papel crucial de uma das pioneiras da
defesa dos direitos reprodutivos - Margaret Sanger, que lutou pelo acesso das mulheres à
contracepção confiável por décadas, e Katherine McCormick, que proporcionou um fundo
generoso para os pesquisadores, no momento em que nenhuma agência governamental e
poucas organizações privadas estavam dispostas a bancar tais pesquisas.
53
Além disso, a pílula não surgiu de forma repentina. Antes, baseou-se em trabalhos
anteriores de endocrinologia reprodutiva e química esteroide, como citado, que forneceu a
fundamentação para o desenvolvimento dos primeiros contraceptivos hormonais. Em 1950,
Margaret Sanger questionou Gregory Pincus sobre as aplicações práticas de seus estudos
científicos. Convencida da importância desse novo medicamento, ela se coloca em torno de
Katherine MacCormick, uma feminista rica e favorável desde longa data ao controle dos
nascimentos, e obtém dela a subvenção para as pesquisas de Pincus (PRESCOTT, 2011, p.9).
O primeiro contato de MacCormick com a WFEB ocorreu por conta da relação de
Pincus com o Worcester State Hospital para doentes mentais. Ela colaborou no financiamento
das pesquisas por ele desenvolvidas sobre o uso do esteroide adrenal para o tratamento de
esquizofrenia. Quando ela descobriu que a Fundação (WFEB) estava conduzindo uma
pesquisa sobre o controle de nascimentos, restabeleceu seu contato com esta organização e
forneceu mais de um milhão de dólares para financiar e testar as pílulas contraceptivas
(PRESCOTT, 2011, p. 12).
Embora Pincus tivesse dirigido pequenos estudos usando enfermeiras voluntárias do
hospital de Boston e do Worcester Hospital para pacientes psiquiátricos, para conduzir um
grande estudo sobre a efetividade desta droga, ele teve que buscar além de Massachussets,
onde o controle de nascimentos ainda era ilegal. As questões éticas relacionadas ao fato dos
ensaios clínicos sobre os contraceptivos orais terem sido produzidos em Porto Rico e Haiti,
sob a coordenação de J. Rock27, foram discutidas extensivamente por outros historiadores.
Certos críticos afirmam convincentemente que as preocupações sobre a superpopulação entre
as pessoas negras e vulneráveis era a motivação central das pesquisas com contraceptivos na
década de 1950 (PRESCOTT, 2011, p. 13).
Pincus e Chang (cientista pesquisador sênior da mesma instituição - WFEB)
escreveram sobre o interesse no desenvolvimento de novos métodos contraceptivos por conta
das numerosas reportagens sobre a explosão populacional no mundo após a 2ª Guerra
Mundial. Argumentavam ainda que a pílula era o caminho natural para prevenir a
superpopulação, porque imitava as mudanças hormonais normais (MCLAREN, 1996, p. 355).
Paralelo às pesquisas científicas neste campo, cresceu o interesse da indústria
farmacêutica que passa a financiar diretamente os cientistas e se beneficiar de seus achados e
27
J Rock, ginecologista de Harvard e católico convicto, antigo adversário da contracepção, inquietou-se com as
ameaças postas pela superpopulação, declarou que a pílula era um contraceptivo natural, e que os católicos
poderiam se utilizar com sua alma e consciência.
54
saberes. No fim do século XX, os medicamentos à base de hormônios sintéticos tornaram-se
os mais consumidos no mundo, movimentando cifras milionárias, principalmente no que diz
respeito à “prevenção e tratamento” da menopausa, gravidez, sintomas pré-menstruais, entre
outras condições (HARDING, 1996).
Quando as novidades sobre os estudos clínicos começaram a aparecer nas revistas e
jornais americanos, Pincus recebeu cartas de mulheres de todas as regiões dos Estados Unidos
ansiosas para se inscreverem como voluntárias nestes estudos dos novos contraceptivos. Os
estudos clínicos convenceram o Food and Drug Administration (FDA) que Enovid ®
(Laboratório Searle), composto sintético de progestagênio, era segura e, em maio de 1960, a
agência aprovou o uso da droga para fins contraceptivos neste país, depois outros laboratórios
desenvolveram produtos similares (PRESCOTT, 2011, p. 13).
Logo, ela se tornou a forma mais usada para o controle de gestações no país, depois na
maior parte do globo. Sem dúvida, deve-se admitir que a rápida adoção da pílula pelas
mulheres americanas foi forjada pelos materiais promocionais distribuídos gratuitamente para
médicos pelas companhias farmacêuticas. Embora a propaganda direta ao consumidor fosse
proibida, as mulheres aprendiam sobre a pílula por conta da cobertura extensiva da mídia em
jornais e revistas populares. Cinco anos após sua aprovação, seis milhões e meio de mulheres
casadas estavam usando a pílula. Centenas de milhares de mulheres não casadas também
estavam tomando a pílula, embora seja impossível determinar esse número exato, já que estas
contas não eram incluídas nas estatísticas oficiais. O uso da pílula era extremamente alto entre
jovens, brancas, não católicas, casadas, escolarizadas, sendo que um estudo, conduzido em
1965, destacou que 80% das mulheres americanas de 20-24 anos tinham usado contraceptivos
orais (PRESCOTT, 2011, p. 13). Em 1969, quando a Igreja condenou categoricamente a
pílula, os católicos, influenciados por J. Rock e habituados a utilizar o contraceptivo oral, não
se renderam mais aos argumentos do papa (MCLAREN, 1996, p. 360).
De acordo com McLaren (1996, p. 360), a intenção de M. Sanger e J. Rock não
passava pela incitação a uma revolução moral. Ambos assumiam posições conservadoras,
aliando-se à estabilidade familiar e ao equilíbrio populacional. Segundo suas percepções, a
contracepção oral poderia assegurar certa estabilidade ao desenvolvimento. Não obstante, a
colaboração de M. Sanger com os médicos reforçou a noção de que a gravidez era uma
doença que precisava ser tratada com soluções tecnológicas desenvolvidas por médicos
cientistas. Esta aproximação com a prevenção de gestação, e os bias de classe e raça
55
embutidos, moldaram as pesquisas dos contraceptivos por muitas décadas (PRESCOTT,
2011, p. 15). Arrisco a dizer que ainda hoje a determinam.
Os embriologistas não faziam mistérios em suas publicações sobre suas ambições de
“higienizar” a procriação. As metáforas utilizadas para descrever a concepção e o
desenvolvimento do embrião eram anteriormente emprestadas do vocabulário corrente, mas
naquele momento os médicos aderiram à linguagem dos engenheiros. Eles falavam sobre
assoalho pélvico, parede uterina, canais, estoque e transporte de óvulos- o que faz o útero
parecer mais com um espaço arquitetônico do que com um órgão humano (MCLAREN, 1996,
p. 360).
Médicos e pacientes pareciam convencidos de que a pílula anticoncepcional era uma
panaceia. Entretanto, como qualquer outro contraceptivo, depende do modo correto como é
utilizada. Ou seja, sua eficácia depende do seu bom emprego. A fé no milagre farmacêutico,
que procurou um meio simples e eficaz de controlar os nascimentos, não durou muito tempo.
Mal a pílula havia sido adotada maciçamente, a talidomida28 causou uma epidemia trágica de
anomalias fetais congênitas, e o público começou a temer os efeitos colaterais de todas as
substâncias bioquímicas. O desastre da talidomida forneceu também argumentos aos
defensores do aborto, em especial quando a qualidade de vida estivesse em jogo (M CLAREN,
1996, p. 361).
Embora a pílula tenha passado por aprovação anterior a 1962, nos Estados Unidos, em
resposta às sérias reportagens que condenavam os efeitos adversos das pílulas em algumas
usuárias, o FDA lançou uma nota de pronunciamento afirmando que a pílula anticoncepcional
era segura somente para o uso por curto período (dois a quatro anos) em mulheres com idade
inferior a 35 anos. O Estado também requereu à companhia farmacêutica Searle que enviasse
uma nota aos médicos alertando-os sobre a necessidade de conversar com as pacientes sobre
os possíveis efeitos adversos do produto (PRESCOTT, 2011, p. 16).
Os médicos, de modo geral, sustentavam o argumento de que as únicas mulheres que
poderiam se tornar usuárias deste medicamento seriam as brancas e de classe média. No caso
das mulheres sem nível educacional, especialmente as mulheres negras e vulneráveis, os
médicos recomendavam o DIU, por considerarem-no mais adequado, pois este método não
dependia da iniciativa diária feminina, como no caso da pílula (PRESCOTT, 2011, p. 18).
28
Sedativo que havia sido prescrito às mulheres gestantes para controle dos enjoos matinais.
56
Na acepção de McLaren (1996, p. 365), apesar das mulheres terem efetivamente
obtido métodos mais eficazes para o controle dos nascimentos, tiveram que pagar certo preço:
assumir a responsabilidade total pelos inconvenientes e riscos da contracepção. Além disso, a
sofisticação crescente dos contraceptivos não diminuiu o medo de uma gravidez não desejada.
A nova onda de feministas, denominada de ‘feminismo da diferença’, ‘pós-feminismo’ ou
‘eco-feminismo’ (SORJ, 1992) coloca uma próxima questão: os contraceptivos modernos,
mais eficazes, pelo fato de serem dispensados por médicos, não privaria as mulheres do
controle sobre seus corpos?
De fato, segundo Bozon (2004, p. 43), apesar das críticas das ‘eco-feministas’, a
denominada “segunda revolução contraceptiva”, que aconteceu a partir do final dos anos 1960
nos países desenvolvidos, marcou o fim de um processo secular. Caracterizou-se pela difusão
maciça de métodos contraceptivos médicos, que atuam sobre a fisiologia feminina (pílula,
DIU, esterilização) e agem sobre o corpo feminino. Além de serem mais eficazes do que os
métodos masculinos de outrora, o fato de serem usados pela mulher, permitiu-lhe uma
sensação de domínio sobre si nunca antes experimentada, apesar da relação hierárquica com o
médico. Enfatiza-se que este controle significou, sintomaticamente, maior responsabilidade
feminina pela contracepção/reprodução.
Nos anos 1980, na maior parte dos países ocidentais, 90% dos casais vivendo em
matrimônio empregavam métodos contraceptivos. Um estudo internacional sobre as pessoas
que utilizam métodos contraceptivos mostrou que 33% entre os entrevistados estava
esterilizado, 20% empregava anticoncepcional oral, 15% DIU, e 10% preservativos. McLaren
chama atenção para a novidade desse processo, já que em países como França e
Tchecoslováquia, por exemplo, o coito interrompido ainda era o meio mais comum utilizado
para controlar gravidez até o aparecimento da pílula anticoncepcional nos anos 1960/70. Em
vários países do mundo em desenvolvimento, as taxas de fecundidade começaram a diminuir
no curso dos anos 1970.
3.2 A DIFUSÃO DA PÍLULA HORMONAL NO BRASIL E A QUEDA DA FECUNDIDADE
No Brasil, do ponto de vista estritamente demográfico, os níveis de fecundidade da
população começaram a baixar significativamente entre 1964 e 1974. De acordo com Fonseca
Sobrinho (1993, p. 80), as causas que determinaram essa queda certamente não se relacionam
57
a uma política explícita de contenção da natalidade, já que o governo brasileiro não chegou a
implementar tal iniciativa.
O contexto brasileiro, regido pela ditadura militar, foi palco de novas formas de
abordagem da questão populacional. Apesar da heterogeneidade dos interesses que se
manifestaram naquele momento, segundo o autor, notava-se a emergência de dois grandes
blocos de opinião, a ‘coalizão anti-natalista’ versus ‘coalização anticontrolista’. O primeiro
colocou do mesmo lado atores sociais diversos, como o governo norte-americano, que lançava
seu olhar sobre os países da América Central e Sul, buscando evitar uma eventual
‘cubanização’ e ainda tentando evitar uma possível explosão demográfica que estaria em
curso nos países em desenvolvimento; militares da Escola Superior de Guerra, que passaram a
ver riscos relacionados ao crescimento populacional para a segurança nacional; grandes
empresários, que temiam que as taxas de crescimento demográfico pudessem se tornar um
obstáculo para o desenvolvimento nacional; grupos de médicos, especialmente ginecologistas
e obstetras, interessados em abrir espaço para o exercício do planejamento familiar no país.
A ‘aliança anticontrolista’ se formou por reação à primeira, congregando, do mesmo
modo, interesses conflitantes. A Igreja Católica posicionou-se nesse debate contra o uso de
anticoncepcionais, por razões de ordem moral. Também as forças políticas denominadas de
‘esquerda’, por perceber no discurso antinatalista uma manifestação antinacionalista,
imperialista e capitalista. Este bloco também incluiu frações das Forças Armadas,
“nacionalistas de direita”, que defendiam a tese de que os espaços vazios do território
brasileiro deveriam ser ocupados, por razões de segurança nacional (FONSECA SOBRINHO,
1993, p. 80).
De fato, durante a década de 1960, o Brasil passa a defender, em conferências e
encontros internacionais, o direito dos casais ao planejamento familiar e o dever do Estado em
prover meios e informações sobre contracepção. Este posicionamento relacionou-se ao alerta
quanto ao crescimento demográfico e à descrença em relação ao crescimento econômico
frente a uma recessão mundial, além das pressões externas, oriundas principalmente do
governo norte-americano. Porém, nenhuma medida concreta, proveniente do próprio governo,
foi tomada para implantar esta ideia.
Para Costa e col. (2006), a frágil posição do Ministério da Saúde frente às ações de
planejamento familiar possibilitou que instituições de cunho controlista agissem em território
nacional de forma desordenada. Fonseca Sobrinho (1993) comenta sobre a proliferação de
clínicas privadas de planejamento familiar e do comércio de contraceptivos no Brasil, já em
58
1965. Estas clínicas foram introduzidas por agências financiadas por órgãos internacionais,
almejando políticas de controle populacional e adotando metas demográficas que incluíam o
declínio da fecundidade.
Vieira (2003, p. 156) afirma que o que ocorreu no Brasil foi muito diferente do
modelo neomalthusiano concebido para um típico país em desenvolvimento, em termos de
população e crescimento econômico. As principais características diferenciadoras foram: - a
mortalidade não declinou abruptamente após a Segunda Guerra; - a densidade populacional
era baixa; e o declínio da fecundidade estabeleceu-se a despeito da recusa governamental em
implantar o planejamento familiar.
Embora não tenha partido do Estado brasileiro qualquer iniciativa explicitamente
controlista, atuaram no país sociedades civis internacionais, principalmente junto às camadas
populares. Foi o caso da International Planning Parenthood Federation (IPPF), que financiou
a partir de 1965, a Sociedade Civil para o Bem-estar Familiar (BEMFAM) no Brasil.
A historiadora Joana Pedro (2003, p. 242) afirma que o comércio da pílula
anticoncepcional no Brasil teve início em 1962, dois anos após ter sido aprovada pelo FDA a
pílula denominada Enovid®, produzida pelo laboratório Searle. A sua entrada no país foi
marcada pela divulgação em jornais e revistas voltadas ao público feminino, além da difusão
pelos representantes de laboratórios junto aos médicos. A partir de 1966, as revistas médicas
brasileiras começaram a difundir, para os ginecologistas e obstetras, as pesquisas e estudos
realizados tanto no Brasil quanto em outros países.
As mulheres das camadas médias aderiram rapidamente ao consumo da pílula,
representando um mercado em crescimento acelerado. Em 1970, 6,8 milhões de cartelas de
pílulas anticoncepcionais foram vendidas e, em 1980, este número subiu para 40,9 milhões.
Segundo Joana Pedro (2003), muito desse consumo foi certamente de mulheres dos estratos
médios, já que as mulheres dos estratos populares poderiam obtê-las, de forma gratuita,
através de organismos como a BEMFAM.
Apesar das políticas populacionais dirigirem-se para o contexto de pobreza, as
mulheres envolveram-se, de modo geral, na experiência da contracepção, em busca da
redução do número de filhos. Joana Pedro (2003) considera que a facilidade dada no Brasil
para a entrada de anticoncepcionais, devido à frágil regulação estatal, expôs as mulheres
brasileiras aos experimentos iniciais deste medicamento. Através de sua pesquisa, com
mulheres da geração anterior e concomitantes à pílula, a autora observa que ficou marcado na
59
memória das mulheres usuárias da pílula os seus efeitos colaterais: mal-estar, enjôos, varizes e
“engordamentos”. Pode-se dizer que tais desconfortos provocaram, no final da vida
reprodutiva, a busca por formas definitivas de controlar a fertilidade – a esterilização.
Com relação à posição da Igreja, em julho de 1968 foi publicada a Enciclica Humanae
Vitae, que reafirmava que qualquer ato matrimonial deveria permanecer aberto à transmissão
da vida. Sendo assim, todos os métodos chamados ‘artificiais’ continuavam condenados,
sendo permitida somente a utilização do método do ciclo. No entanto, as mulheres da década
de 60 não deram a mínima atenção às recomendações papais, considerando-se mesmo assim
‘boas católicas’ (PEDRO, 2003, p. 252).
O uso intensivo das pílulas anticoncepcionais no Brasil coincidiu com o grande
aumento da força de trabalho feminina no mercado formal, passando de 31% em 1981, para
35% em 1989, crescendo ainda mais na década de 1990. Entretanto, no contexto nacional, a
possibilidade de usar os novos contraceptivos não resultou da reivindicação ou luta coletiva
do movimento feminista, e por isso não parece estar identificada com a ampliação da noção
de autonomia feminina, como no caso francês (PEDRO, 2003, p. 253).
Para as mulheres da França, assim como para as de outros países ditos
desenvolvidos - as quais poderiam usufruir de sua cidadania, a possibilidade de
controlar a reprodução foi um dado importante na busca de autonomia e dos direitos
reprodutivos. Assim, além do direito à educação, ao salário igual por trabalho igual,
direitos políticos etc., as mulheres reivindicavam contraceptivos. (PEDRO, 2003, p.
254).
No Brasil, o movimento feminista não teve participação direta na liberação dos
contraceptivos. A ditadura militar reprimia qualquer manifestação popular, bem como
reuniões, associações e debates. Sendo assim, determinados setores do movimento feminista
brasileiro se articularam à Igreja Católica, em apoio ao discurso ‘anti-controlista’.
Sinteticamente, sobre os novos contraceptivos, o movimento feminista afirmava: 1) que a
solução para o problema do crescimento
populacional estava
condicionada
ao
desenvolvimento econômico e justiça social; 2) os métodos artificiais disponíveis trazem
prejuízos à saúde das mulheres; 3) que as políticas do Estado brasileiro em relação à
natalidade visavam o controle do corpo das mulheres e pretendiam acabar com a miséria,
evitando eminentemente o nascimento de pobres (PEDRO, 2003, p. 254).
Foi, portanto, no contexto da ditadura militar que as pílulas anticoncepcionais
começaram a ser comercializadas no país, apesar destes medicamentos não terem sido
reivindicados entre nós. A entrada deste contraceptivo esteve entrelaçada às políticas
60
internacionais de controle da natalidade direcionadas aos países em desenvolvimento. Nos
programas não-governamentais, o autoritarismo das iniciativas, a falta de informação
adequada e a má qualidade dos serviços oferecidos faziam com que as mulheres vivessem
experiências ruins ao usar os métodos, como efeitos colaterais, os “engordamentos”,
orientando-se gradativamente para a opção da esterilização (ÁVILA, CORRÊA, 1999, p. 86).
Viera (2003, p. 166) apresenta uma análise sobre o aumento do uso de métodos
anticoncepcionais no Brasil, a partir dos dados da Pesquisa Nacional sobre Demografia e
Saúde da Criança e da Mulher (PNDS- 1986 e 1996). Em 1986, 65,8% das mulheres unidas
de 15 a 44 anos usavam um método anticoncepcional; dez anos depois, 76,7% das mulheres
unidas de 15 a 49 anos usavam contraceptivos. Observa-se que essa proporção de uso de
métodos ultrapassa a média encontrada em outros países desenvolvidos. O aumento do uso de
métodos entre 1986 e 1996 foi principalmente à custa da esterilização feminina, que cresceu
de 26,9% para 40,1%, enquanto houve pequena diminuição do uso da pílula (de 25, 2% para
20,7%), da abstinência periódica (de 4% para 3%) e do coito interrompido (de 5% para 3,1%).
A aproximação entre as feministas brasileiras e o mundo da demografia ocorreu pela
via desse debate, intensificado a partir dos anos 1980. Os grupos feministas identificaram no
discurso e na prática médica um óbice crucial a ser enfrentado, quer na política de saúde
materno-infantil implementada pelo Estado, quer no âmbito dos programas paralelos de
planejamento familiar. O abuso e o desrespeito às mulheres foram considerados graves, tanto
nas clínicas e programas comunitários de planejamento familiar, quanto na assistência ao prénatal e parto na atenção ginecológica oferecida pela rede pública de saúde (ÁVILA,
CORRÊA, 1999, p. 86).
Nesse momento, firmou-se no movimento feminista a premissa de que o acesso à
anticoncepção era direito básico de cidadania das mulheres e deveria ser oferecido na rede
pública de saúde como componente de uma política mais ampla de saúde reprodutiva, que
incluiria: assistência de qualidade ao pré-natal, parto e puerpério; prevenção de DST e do
câncer cervical e de mama; atenção às adolescentes e à menopausa, ou seja, o Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).
Compreende-se que durante o processo de revitalização da democracia no Brasil, a
elaboração coletiva do PAISM, na década de 1980, por setores progressistas do Ministério da
Saúde e da sociedade civil, foi o primeiro passo realizado pelo Estado brasileiro para atender
diretamente às necessidades da saúde da mulher, compreendida, até então, como mãereprodutora pelos Programas de Assistência Materno–Infantil. Este importante fato histórico
61
se consolidou na Constituição Federal de 1988, que, entre outras conquistas, acrescentou às
funções do Estado, a promoção do acesso ao Planejamento Familiar a toda a população.
A partir deste momento, o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade, através do
Sistema Único de Saúde (SUS) e do compartilhamento das funções com Estados e
Municípios, pelo fornecimento e orientação do uso de métodos contraceptivos,
regulamentados pelas normas técnicas federais naquela época, a pílula anticoncepcional oral,
a mini-pílula, o injetável hormonal, o DIU de cobre, o diafragma e o preservativo masculino.
Iniciou-se, desde então, o processo de implantação dos Programas de Planejamento Familiar
nas unidades básicas de saúde de todos os estados29, buscando ampliar o acesso da população
aos métodos contraceptivos, especialmente da população usuária do SUS, considerada
prioritária.
Certamente, as lutas sociais mais abrangentes dos movimentos feministas, e os
movimentos
mundiais
em
torno
dos
direitos
humanos
à
sexualidade
e
reprodução/contracepção, colaboraram ao amadurecimento das discussões relativas aos
direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. O país, hoje, é signatário dos tratados internacionais
de direitos humanos30, assumindo compromisso com questões relativas ao aborto e ao
planejamento reprodutivo. A Constituição brasileira estabelece no artigo 226, § 7o, que
fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais e privadas (BRASIL, 2006).
Apesar dos avanços legais nessa área, Vieira (2003) comenta que as duas principais
características do planejamento familiar no Brasil são a medicalização e a privatização.
Compreende-se que a medicalização do corpo da mulher deve ser vista como um dispositivo
social que relaciona questões políticas mais gerais, como as relativas à população, aos
29
Em muitos locais tais programas recebem uma denominação mais afinada com o discurso internacional sobre
direitos humanos das mulheres, incorporando a noção Direitos Sexuais e Reprodutivos.
30
Destaca-se a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (IPCD), realizada no Cairo, em
1994, e a 4a Conferência Internacional sobre a Mulher, em Beijing, 1995, que consolidam os direitos humanos
das mulheres no campo da saúde sexual e reprodutiva (UNITED NATIONS, 1994). Em Beijing, países
participantes afirmaram o direito das mulheres de decidirem livremente sobre a fertilidade e a sexualidade, livres
de coerção, discriminação ou violência (UNITED NATIONS, 1995). No Cairo, os governos reconheceram o
aborto como grave problema de saúde pública, comprometendo-se a reduzir sua prevalência pela expansão de
ações de planejamento reprodutivo (UNITED NATIONS, 1994). Acrescente-se que a IPCD declara que todos os
casais têm direitos sexuais e reprodutivos fundamentais, que incluem a decisão livre e responsável pelo número,
espaçamento e momento de terem filhos, bem como o direito de receberem informações e meios necessários para
que alcancem a mais elevada qualidade de saúde sexual e reprodutiva (UNITED NATIONS, 1995).
62
aspectos individuais de cuidados com o corpo feminino, normalizando, regulando e
gerenciando aspectos da vida ligados à reprodução humana (FOUCAULT, 1999).
A seguir, abordo a criação e difusão da contracepção de emergência e sua chegada no
Brasil, novos episódios envolvendo os dispositivos de controle sobre o corpo feminino, bem
como as lutas por sua autonomia sexual e reprodutiva.
63
4 A CRIAÇÃO DA “PÍLULA DO DIA SEGUINTE”: ENTRE A AMPLIAÇÃO
DA AUTONOMIA REPRODUTIVA FEMININA E A
‘FARMACOLOGIZAÇÃO DA SOCIEDADE’31
4.1 A CRIAÇÃO E DIFUSÃO DA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NO CONTEXTO
INTERNACIONAL
Para certos autores, a CE não deve ser considerada uma novidade. De fato, as
pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de métodos contraceptivos pós-coitais tiveram
início em 1920, com a descoberta de que “altas doses de estrogênio” poderiam interferir na
gravidez de mamíferos. Os responsáveis por esta descoberta foram os fisiologistas britânicos
A. S. Parkes e C. W. Bellerby, os quais perceberam que a ingestão de “altas” doses de
estradiol impedia a fertilização em ratos, caso utilizado alguns dias após o coito (WYNN,
FOSTER, 2012; PRESCOTT, 2011; ELLERTSON, 1996; HASPELS, ANDRIESSE, 1973).
Nos Estados Unidos, Gregory Pincus duplicou este estudo em ratos e coelhos durante
a década de 1930. Ele e seu colaborador H. O. Burdick perceberam que a ingestão de estradiol
não interrompia a gravidez, mas poderia preveni-la se utilizado até poucos dias após o ato
sexual. Em 1938, Parkes, Dodds e Noble publicaram a descoberta de um estrogênio sintético
composto por etinilestradiol (EE) e dietilestilbestrol (DES) que poderia ser usado como
contraceptivo pós-coital. Segundo esses pesquisadores, apesar de não ter sido ainda testado
em humanos, seus resultados poderiam perfeitamente ser testados em mulheres, devido à
similaridade com o ciclo menstrual dos animais estudados (PRESCOTT, 2011, p. 9).
Prescott (2011, p. 10) considera que apesar da importância destas pesquisas para o
controle reprodutivo, estes cientistas estavam mais interessados, naquele momento, em usar
suas descobertas para o tratamento de variadas desordens reprodutivas ocorridas na pecuária.
O primeiro estudo realizado com humanos foi publicado somente em 1965, como um relato
de caso proveniente da Holanda, quando se testou a administração de altas doses de
estrogênio em uma vítima de estupro com 13 anos de idade (HASPELS, 1994, p. 102).
In 1964, the Amsterdam police brought a girl of 13 who had been raped by 3 men, to
our department. She was in midcycle and we asked a veterinary doctor about the
estrogen dose used for dogs after “unwanted” mating and started to administer
31
Tomamos emprestado o termo utilizado por Williams, Martin e Gabe (2011), em que os autores descrevem o
processo denominado de ‘pharmaceuticalisation of society’, que será melhor descrito nas páginas seguintes.
64
postcoital EE [ethinylstradiol] in a similar fashion. This method has become
popularly known as the “morning-after pill”32. (HASPELS, 1994, p. 103).
Em um artigo escrito em 1966 para a revista New York Times, Lawrence Lader, uma
repórter investigativa e ativista pró-aborto, celebrava as conquistas daqueles denominados
“pais” da pílula contraceptiva hormonal: Dr. Gregory Pincus (diretor pesquisador do
Worcester Foundantion for Experimental Biology - WFEB); Min Chueh Chang; e John Rock
(ginecologista-obstetra, responsável pela Rock Reproductive Clinic - RRC). O artigo também
anunciava a dedicação destes pesquisadores a um novo experimento, que poderia se tornar o
“arauto de uma segunda revolução no controle de nascimentos” (PRESCOTT, 2011, p. 7).
Os cientistas buscavam por novos métodos que pudessem compensar os erros
cometidos pelas usuárias do contraceptivo hormonal combinado (especialmente relativo ao
esquecimento de ingeri-lo), bem como reduzir o custo da contracepção, visando ampliar seu
acesso. Além disso, de acordo com Haspels (1994, p. 102),
The devastating effects of teenage pregnancies are of great concern in many
countries. Some 60% of the first sexual experiences among youngsters are
unprotected. The medical, social, psychological and financial hazards of induced
abortion mean that abortion, while offering a possible solution, is a far from ideal
solution33.
Durante os anos 1960, Chang manteve pesquisas envolvendo os componentes
químicos que poderiam afetar a fertilização após o coito e a inseminação artificial. Ele
descobriu que determinados estrogênios e progestagênios poderiam prevenir a fertilização. A
progesterona funcionava melhor se utilizada antes da ovulação, enquanto o estrogênio
demonstrou que trabalhava bem após a ovulação. Segundo sua concepção, estas formas póscoitais de pílulas deveriam ser especialmente úteis para os “países em desenvolvimento”,
onde o uso de contraceptivos não era considerado suficientemente efetivo (PRESCOTT, 2011,
p. 18/19).
Entretanto, o trabalho de Pincus e Chang a respeito dos contraceptivos pós-coitais
causou uma divisão com Rock, que acreditava que esta nova pílula possuía efeitos abortivos,
32
Tradução nossa: “Em 1964, a polícia de Amsterdam trouxe, para o nosso departamento, uma menina de 13
anos que havia sido estuprada por três homens. Ela estava na metade do ciclo e nós pedimos a um médico
veterinário esclarecimento sobre a dose de estrogênio usado para cães após o acasalamento "indesejado".
Começamos a administrar EE [ethinylstradiol] de forma pós-coital. Este método tornou-se popularmente
conhecido como "pílula do dia seguinte" (HASPELS, 1994, p. 102).
33
Tradução nossa: “Os efeitos devastadores da gravidez na adolescência são razões de grande preocupação em
muitos países. Cerca de 60% das primeiras experiências sexuais entre os jovens são vivenciadas de forma
desprotegida. Os prejuízos sociais, psicológicos, financeiros e médicos de aborto induzido significa que esta
prática, apesar de oferecer uma solução possível, está longe de ser ideal” (HASPELS, 1994, p. 102).
65
e por conta disso, entrava em conflito com a doutrina católica, que ele seguia. A WFEB
acabou não levando à frente as pesquisas sobre os contraceptivos pós-coitais. Pincus morreu
em 1967. Chang retornou sua atenção para métodos mais eficazes de fertilização in vitro,
deixando para outros pesquisadores expandirem este trabalho prévio (PRESCOTT, 2011, p.
19).
Os precursores, que deram continuidade aos trabalhos de Pincus e Chang nos EUA,
foram John McLean Morris e Gertrude van Wagenen do Departamento de Obstetrícia e
Ginecologia da Faculdade de Medicina, Universidade de Yale. Em 1966, eles anunciaram os
resultados do primeiro estudo amostral em humanos com o contraceptivo pós-coital
dietilestilbestrol (DES), durante o Encontro Anual da Sociedade de Ginecologia Americana.
Ambos notaram que a despeito do sucesso de seus resultados com macacos, eles estavam
relativamente satisfeitos com a extensão da pesquisa para humanos, por não terem encontrado
efeitos colaterais (HASPELS, 1994, p. 102; WYNN, 2012, p. 41).
Os primeiros sujeitos de pesquisa foram mulheres vítimas de estupro, tratadas no
Hospital Yale-New Haven. Nenhuma das mulheres participantes do estudo engravidou, sendo
que os efeitos negativos também foram considerados raros. Os pesquisadores ainda
solicitaram a um pequeno grupo de mulheres, que denominaram de ‘voluntárias corajosas’,
estudantes de graduação ou graduadas na mesma universidade, que participassem do estudo
como sujeitos da pesquisa. Nesta pequena amostra também não se verificou gravidez após o
uso do medicamento, mas devido ao pequeno número de participantes, os pesquisadores
sugeriram que os resultados “deveriam ser vistos com cautela” (PRESCOTT, 2011, p. 19).
Apesar disso, um dos interlocutores dos pesquisadores em questão, Somer Sturgis,
professor de ginecologia em Harvard, sugeriu que o trabalho de Morris e van Wagenen
deveria ser considerado o avanço mais importante na pesquisa de anti-fertilidade dos seres
humanos, desde o trabalho de Pincus, Chang e Rock. Ressalta-se que, para esse professor, sua
importância estava diretamente referida ao benefício do controle populacional nas regiões
mais pobres do planeta, locais em que ainda não tinha sido possível resolver o problema do
crescimento populacional com as mesmas medidas utilizadas nos países desenvolvidos
(PRESCOTT, 2011, p. 22).
Para Prescott (2011, p. 23), tais declarações são reflexos dos vieses de classe e raça
que moldam as pesquisas sobre contraceptivos em solo norte-americano. Os avanços nas
tecnologias contraceptivas foram vistos como meios para a “cura da gravidez indesejada e
adolescente”, tida como uma doença (disease), especialmente entre populações socialmente
66
vulneráveis e negras, tanto no contexto doméstico quanto no restante dos “países em
desenvolvimento”. A pílula pós-coital, de todo modo, foi apregoada como panaceia para as
consequências da sexualidade feminina descontrolada.
O jornal Science News anunciou, em 1967, que o DES e outros estrogênios poderiam
ter uma vida dupla, podendo ser utilizado tanto no tratamento de desordens reprodutivas
quanto como pílula pós-coital. Embora o FDA proibisse as companhias farmacêuticas de
anunciarem a recomendação do DES para o uso pós-coital, os médicos tinham permissão para
prescrevê-la, já que este órgão poderia regular a indústria farmacêutica, mas não a prática
médica (ELLERTSON, 1996, p. 46).
Também nos Estados Unidos, em 1967, outro grupo de médicos obstetras e
ginecologistas do Hospital da Pensilvânia começou um estudo sobre a efetividade do
contraceptivo pós-coital DES na prevenção de gravidez entre meninas e mulheres vítimas de
estupro. Um dos principais investigadores deste estudo foi o Dr. Celso-Ramon Garcia, chefe
do departamento de obstetrícia e ginecologia, o qual tinha colaborado com Pincus e Rock nos
ensaios de campo da pílula contraceptiva hormonal. Embora estes pesquisadores reconheçam
as consequências sociais e psicológicas do estupro, eles estavam principalmente interessados
em prevenir um dos efeitos deletérios do estupro - a gravidez indesejada (PRESCOTT, 2011,
p. 27).
Na Inglaterra, Haspels (1969) começou a prescrever etinilestradiol (EE) em altas
dosagens para prevenir gravidez após o coito desprotegido. Segundo ele, os métodos póscoitais devem ser usados em situações emergenciais, não mais que 72 horas após o estupro,
incesto ou falha dos métodos mecânicos, bem como nos casos de rompimento do condom ou
mau uso do diafragma. Além do mais, o método permite mais segurança para as mulheres que
vivenciam intercurso sexual desprotegido, evitando a gravidez e, consequentemente, um
possível aborto inseguro (HASPELS, 1994, p. 102).
Nos Estados Unidos, algumas Universidades criaram serviços de atendimento à saúde
sexual e reprodutiva de suas estudantes. A primeira foi a Universidade de Yale, onde estavam
Morris e van Wagenen pesquisando o contraceptivo pós-coital. A ideia fez tanto sucesso que,
de acordo com o Yale Daily News, em seis meses, o serviço havia se tornado tão popular que
a espera para as consultas era de dois meses. Porém, as mulheres que necessitavam de
atendimento emergencial eram encaminhadas imediatamente com a prescrição da “pílula do
dia seguinte”- DES (PRESCOTT, 2011, p. 29).
67
Mais tarde, devido ao interesse crescente de aconselhamento em questões sexuais,
estudantes de várias Universidades criaram guias de auto-ajuda para sexualidade e
contracepção para distribuir e ampliar o nível de informações sobre prevenção de gravidez
entre elas. Os guias foram elaborados em conjunto com organizações feministas, tendo
servido como demonstrações públicas das demandas das mulheres por direitos sexuais e
reprodutivos (PRESCOTT, 2011, p. 31).
Para além de oferecerem informações básicas sobre contracepção e sexualidade, estas
publicações contribuíram para ampliar a conscientização sobre a “pílula do dia seguinte” entre
colegiais e estudantes universitários. O guia da Universidade de Washington “How to have
intercourse without getting screwed”[Como ter relações sem se ferrar] alerta que esta pílula
contém doses extremamente altas de estrogênio, equivalente a tomar a pílula por 41 anos.
Portanto, seu uso seria recomendado somente em casos de extrema emergência (PRESCOTT,
2011, p. 32).
Certamente, o rápido aumento do uso da ‘pílula do dia seguinte’ entre as norteamericanas possibilitou que duas questões ganhassem destaque: Esta é uma droga segura? Os
médicos poderiam prescrevê-la sem a aprovação do FDA? A década seguinte assistiria a
novos testes com a “pílula do dia seguinte”, ao mesmo tempo em que se amplia a crítica em
relação à forma como os médicos estavam testando os efeitos de tais hormônios em humanos,
desconsiderando as principais normas éticas internacionais (PRESCOTT, 2011, p. 36).
Em 1971, foi publicado, por pesquisadores de câncer de Massachussetts, um estudo
em que se encontrou uma alta incidência de um tipo raro de câncer vaginal em filhas de
mulheres que haviam consumido DES durante a gestação. Conforme Prescott (2011, p. 38),
este escândalo envolvendo o uso de DES foi somente um dos publicados sobre as falhas do
FDA em manter drogas perigosas fora do mercado, especialmente aquelas vendidas para as
mulheres. Em 1970, um subcomitê do Senado americano investigou sobre a sonegação de
informações importantes por parte dos médicos e da indústria farmacêutica para as mulheres
que consumiam os métodos contraceptivos pós-coitais.
O composto hormonal utilizado por pesquisadores de Yale e Michigan era o
dietilestilbestrol, popularmente conhecido como DES. Trata-se de um estrogênio sintético
prescrito a partir da década de 1930 para prevenir abortos em gestantes. O nome de marca do
produto é Nulabort®. Em 1971, o FDA orientou os médicos a não mais prescreverem DES,
pois seu uso estava relacionado a uma forma rara de câncer em mulheres que foram expostas
68
ainda no útero, mas mesmo assim foi aprovado para uso pós-coital a partir de 1973 (WYNN,
2012, p. 41).
Alguns segmentos do movimento feminista se posicionaram criticamente em relação
ao modelo de controle reprodutivo hegemônico, no qual estava presente a ideia de que a
gestação imprevista deveria ser vista como “doença”. Um exemplo desta nova perspectiva
feminista dos direitos reprodutivos foi o trabalho desenvolvido por Advocates for Medical
Information (AMI), grupo formado por estudantes feministas da Universidade de Michigan.
Embora este grupo defendesse a política de acesso a métodos contraceptivos no campus,
também argumentava que o desejo de proteger as mulheres jovens da “doença” da gravidez
não planejada, acabava expondo-as a riscos de saúde desnecessários (WYNN, 2012, p. 41).
Estas jovens feministas denunciavam que as mulheres, especialmente estudantes
universitárias, estavam sendo usadas como “cobaias”, sem a mais rudimentar observação de
padrões profissionais e consentimento informado. Os médicos dispensavam DES sem
informar às pacientes a respeito dos riscos e sem acompanhamento posterior quanto a seus
direitos sexuais e reprodutivos. De todo modo, a extensa discussão nos Estados Unidos sobre
o uso do DES como um método pós-coital, indicou a necessidade de se pesquisar novos
contraceptivos de emergência, que pudessem substitui-lo (WYNN, 2012, p. 45).
Em 1971, em artigo no periódico Family Planning Perspectives, o autor Dr. Philip
Corfman, diretor do Center for Population Research at the National Institute of Child Health
and Human Development (NICHHD)34, anunciou o plano plurianual do Centro para o
desenvolvimento de novos métodos contraceptivos. Este centro se manteve durante vários
anos, atuando em conjunto com outras organizações e agências não governamentais e a
indústria farmacêutica, com a forte intenção de produzir métodos contraceptivos mais seguros
(WYNN, 2012, p. 55).
Simultaneamente às pesquisas realizadas nos Estados Unidos, pesquisadores
canadenses também buscavam uma alternativa segura ao DES. Como os americanos, seus
vizinhos também investiram na criação de centros de saúde reprodutiva e sexual em campus
universitários e colégios, especialmente devido às pressões sociais dos movimentos
organizados de jovens universitárias, algumas vezes ligados ao movimento feminista
(WYNN, 2012, p. 67).
34
Este Centro foi criado em 1968, como parte dos esforços do governo do Presidente americano Lyndon B.
Johnson para aliviar a pobreza e oferecer suporte federal para a pesquisa e desenvolvimento de novos
contraceptivos (PRESCOTT, 2011, p. 55).
69
Albert Yuzpe foi contratado como médico responsável pela clínica de ginecologia na
University Western Ontario, em 1970, com o objetivo de reduzir as taxas de gravidez entre
mulheres jovens universitárias e não casadas. A partir deste trabalho, Yuzpe percebeu que
mais da metade das mulheres que ele atendia na clínica não havia utilizado nenhum método
contraceptivo durante a primeira experiência sexual e, por volta de 40% continuava se
abstendo de métodos nas relações subsequentes. Em 1972/3, ele lançou um estudo piloto
sobre o uso de Ovral® (contraceptivo combinado oral que contém progesterona e
ethinilestradiol) como contraceptivo pós-coital35, pois até aquele momento, era o único
contraceptivo disponível no mercado que continha o levonorgestrel (DIAZ-OLAVARRIETA
et.al., 2002, p. 143).
Os resultados deste estudo demonstraram que, comparativamente o uso de Ovral ® é
mais vantajoso do que o contraceptivo pós-coital DES: a) as pílulas foram administradas em
uma única dose, enquanto o DES deveria ser utilizado por um período de cinco dias; b) pelo
fato das mulheres já utilizarem Ovral® como método de rotina, foi possível uma visão menos
influenciada pelas representações negativas relacionadas ao DES. Após esse primeiro
momento da investigação, Yuzpe estendeu a pesquisa para outros quatro centros
universitários de saúde no Canadá. Novamente, ele enfatizou a importância de seus achados
para as jovens mulheres universitárias e para as vítimas de estupro (WYNN, 2012, p. 68).
Alguns estudos conduzidos durante a década de 1970, a respeito daquele que se tornou
conhecido como método Yuzpe, demonstraram que o regime combinado de estrogênio e
progesterona tinha baixos efeitos colaterais, evitando as sequelas relacionadas com a
exposição a altas doses de estrogênio e poderia ser utilizado até 72 horas após o coito
desprotegido. Informações sobre este método foram se espalhando entre as mulheres e, em
seguida, disseminou-se entre grupos de advocacy e organizações feministas. Entretanto, o
conhecimento sobre a contracepção de emergência continuava precário, mobilizando esforços
maiores no sentido de garantir o acesso às mulheres vítimas de estupro (PILLSBURY,
COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 7).
In 1974 doctors in Canada confirmed the effectiveness of the method with studies
documenting that if a woman took two tablets of a birth control pill, Ovral, within
72 hours of having sex, and two more pills 12 hours later, her chances of becoming
pregnant would be reduced. In Europe doctors were also cutting up and providing
35
Os médicos canadenses também relutavam em receitar o DES como método pós-coital, por sua associação
com o câncer.
70
pill packets to women in need36. (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON,
1999,p. 7).
O regime Yuzpe foi utilizado por décadas no Canadá sem contar com um
medicamento específico para esse fim. Em 1999, foi aprovado para venda um produto
específico para contracepção de emergência, composto por progesterona e estrogênio,
denominado Preven® (ERDMAN, 2012, p. 59).
De acordo com Wynn e Foster (2012, p. 5/6), a década de 1970, além de ter sido
marcada pela investigação sobre outros métodos contraceptivos pós-coitais, incluiu os
primeiros esforços para o desenvolvimento de um regime hormonal pós-coital envolvendo
somente a progesterona (levonorgestrel). Um estudo em larga escala conduzido na América
Latina investigou sobre seu uso. Em seguida, certas companhias farmacêuticas começaram a
colocar no mercado os produtos contraceptivos para uso de emergência.
Durante a década de 1980, o método Yuzpe se manteve como a fórmula mais utilizada
para a contracepção de emergência, registrando-se o interesse crescente no desenvolvimento
de produtos farmacêuticos específicos para esse fim. Nesse período, Schering PC4® (regime
combinado de ethinilestradiol com norgestrel) foi introduzido no mercado inglês, e na década
seguinte em vários outros países europeus, África do Sul e Nova Zelândia (GLASIER, 2000).
Mas, o conhecimento sobre a contracepção de emergência se manteve pouco difundido e seu
uso limitado.
Furthermore, in contrast to most new pharmaceutical products that benefit from
large-scale promotion by the companies that make the product, for the morning-after
pill there was no promotion. Not only was there no single product with companies to
promote it; because the method was not FDA approved, it could not be readily
promoted by anyone else either37 (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999,
p. 8).
Durante a década de 1990 intensificaram-se as pesquisas relacionadas aos
contraceptivos pós-coitais, bem como as atividades políticas, educativas e de advocacy
relacionadas à ampliação do acesso a esta tecnologia contraceptiva. Em 1992, dois
36
Tradução nossa: “Em 1974, os médicos canadenses confirmaram a eficácia do método em estudos que
comprovam que, se uma mulher tomar dois comprimidos de pílula de controle de natalidade, Ovral, dentro de 72
horas após ter relações sexuais, e mais dois comprimidos 12 horas depois, as chances de engravidar eram
reduzidas. Na Europa, os médicos também estavam oferecendo pacotes de comprimidos para mulheres
carentes”. (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 7).
37
Tradução nossa: “Além disso, em contraste com a maioria dos novos produtos farmacêuticos que se
beneficiam da promoção em larga escala pelas empresas fabricantes do produto, para a pílula do dia seguinte não
houve nenhuma promoção. Não havia um produto específico para as empresas promoverem, porque o método
não foi aprovado pela FDA, não poderia ser facilmente promovida por qualquer outra pessoa” (PILLSBURY,
COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p 8.).
71
importantes artigos foram publicados na revista Family Planning Perspectives. No primeiro,
James Trussell38 e Felicia Stewart39 definiram os dados teóricos e científicos sobre a
contracepção de emergência. No segundo, os autores cunharam o termo “contracepção de
emergência” e argumentaram a favor da ampliação do seu acesso nos EUA, com a
justificativa de que poderia reduzir significativamente o número de gravidezes imprevistas e
abortos (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 8).
Em 1992, o Reproductive Health Technologies Project (RHTP), nos EUA, criou uma
força tarefa visando a expansão do conhecimento público sobre a contracepção pós-coital,
apresentando como direito da mulher a obtenção de informações seguras sobre este método.
Esta força tarefa, coordenada por Felicia Stewart, concluiu que o nome “contracepção de
emergência” claramente o diferenciava dos métodos hormonais de seguimento utilizados,
reforçando a ideia de que não são para uso regular. Esta noção tinha como intuito dirimir as
desconfianças dos profissionais prescritores a respeito da substituição dos métodos regulares
pelo uso repetido da contracepção de emergência. Emergência também carregava o
significado de que a mulher teria que agir rapidamente, embora não necessariamente no dia
seguinte (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 9).
Também nos anos 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) conduziu um estudo
clínico comparando o regime Yuzpe com o método à base de progesterona (levonorgestrel).
Este estudo demonstrou que o levonorgestrel é superior ao método Yuzpe, o que gerou
interesses renovados na produção de um contraceptivo de emergência acessível, composto
somente por progesterona (WYNN, FOSTER, 2012, p. 6).
Em 1995, Trussel, Stewart e Hatcher40 publicaram um livro intitulado “Emergency
contraception: the nation’s best-kept secret”, que incluiu informações sobre quais marcas de
pílulas contraceptivas poderiam ser utilizadas em situação de emergência, as dosagens para
cada uma das marcas e um certo número de provedores e serviços de saúde que poderiam ser
38
Professor de Economia e Relações Públicas do Instituto de Pesquisa Populacional da Universidade de
Princeton. Faz parte do grupo técnico consultivo do International Consortium of Emergency Contraception
(ICEC). Ele é o autor ou co-autor principal nas áreas de saúde reprodutiva e metodologia demográfica. Sua
pesquisa recente está centrada em três áreas: contracepção de emergência, falha do método contraceptivo, e o
custo-efetividade da contracepção (Acesso em: http://www.princeton.edu/~trussell/).
39
De 1999 até seu falecimento, em 2006, Felicia Stewart foi diretora e professora do Centro de Política e
Pesquisa em Saúde Reprodutiva da Universidade da California - EUA, também teve participação ativa no ICEC.
40
Robert Anthony Hatcher - professor de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade
de Emory, em Atlanta, Estados Unidos.
72
procurados pelas mulheres que necessitassem de um método pós-coital. Algumas questões
eram pertinentes segundo esses ativistas e pesquisadores:
What made emergency contraception take off? While the scientific literature was
clear, the method still remained a near secret. The spark that ignited the smoldering
idea was women activists saying ‘We can’t believe this method was out there and
we didn’t know about it. Why should this method exist, be available and used in
Europe, yet remain almost a secret in America?’41 (PILLSBURY, COEYTAUX,
JOHNSTON, 1999, p. 8).
Enquanto as ativistas americanas expressavam indignação e consternação pela
existência do método pós-coito sem que ocorresse sua disponibilização para a maioria das
mulheres norte-americanas, na Europa a situação era claramente outra. Em 1994, o
Reproductive Health Technologies Project (RHTP) enviou sua coordenadora, Sharon Camp,
em uma viagem de estudos à Europa para aprender lições sobre como tornar o método mais
acessível às mulheres americanas. Observou-se que duas empresas farmacêuticas europeias
comercializavam produtos para a contracepção de emergência, amplamente disponíveis no
Reino Unido, Holanda, Alemanha, Suíça, Finlândia, Suécia, Hungria e outros países no leste
Europeu. Na Inglaterra, por exemplo, um produto com o nome comercial de PC4® (quatro
comprimidos embalados, vendidos para uso pós-coito) estava no mercado desde 1984 e era
fornecido através do Serviço Nacional de Saúde. No restante da Europa, havia outras marcas:
Neoprimovlar®, Tetragynon® e Postinor® (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999,
p. 15).
A despeito dos vários esforços de propaganda e informação sobre a contracepção de
emergência, realizados por diversas instituições e grupos nos Estados Unidos, o conhecimento
sobre o método mantinha-se baixo neste país. Em resposta a esta situação, a Fundação
Rockefeller organizou um encontro em 1995 para discutir sobre a contracepção de
emergência. Um pouco depois desse evento, um grupo composto por sete organizações
parceiras formaram o Consórcio Internacional em prol da Contracepção de Emergência
(International Consortium of Emergency Contraception - ICEC)42, com o objetivo de
41
Tradução nossa: “O que fez a contracepção de emergência decolar? Enquanto a literatura científica era clara, o
método ainda permanecia um quase segredo. As faíscas que acenderam as ideias latentes foram as mulheres
ativistas que trouxeram: “Não posso acreditar que este método está disponível lá fora e nós não sabíamos sobre
ele. Por que esse método existe, disponível e utilizado na Europa, e ainda permanece quase um segredo nos
Estados Unidos?” (PILLSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 8).
42
O consórcio se constituiu com sete instituições: the Concept Foundantion, International Planned Parenthood
Federation, Pacific Institute for Women’s Health, Pathfinder International, Program for Appropriate Technology
in Health, o Population Council, e a Organização Mundial de Saúde, através do Programa Especial de Pesquisa,
Desenvolvimento e Treinamento em Reprodução Humana (que havia conduzido um estudo multicêntrico sobre o
73
estimular a produção nos “países em desenvolvimento” de produtos pós-coitais, que poderiam
colaborar na ampliação do acesso ao método.
Coordenado, na época, por Sharon Camp, o ICEC postula que o acesso à contracepção
de emergência é parte fundamental da saúde da mulher em todo continente, especialmente
para aquelas regiões onde os índices de ‘gravidez indesejada’43 e aborto são mais altos. A
posição assumida pelo ICEC era de que a existência de uma única marca de contracepção de
emergência (Preven®) no mercado americano era prejudicial, pois não oferecia possibilidades
de escolhas para as mulheres. Além disso, postulava-se que havia métodos melhores para a
contracepção de emergência do que o Preven®, já que esta combinação de estrogênio e
progesterona causava, em grande medida, náuseas e vômitos entre suas usuárias
(PRESCOTT, 2011, p. 102).
Apoiando-se em alguns estudos, entre eles uma investigação prospectiva,
randomizada, realizada em Hong Kong, na qual se comparou a eficácia do regime de Yuzpe e
levonorgestrel (0,75 mg em duas doses de 12 horas de intervalo) na contracepção pós-coito,
os ativistas lançaram-se em uma campanha para estimular a comercialização do
levonorgestrel no mercado americano. De acordo com o estudo, a incidência de náuseas,
vômitos e fadiga no grupo Yuzpe foi significativamente maior do que no grupo
levonorgestrel. Concluiu-se que o levonorgestrel é um fármaco eficaz para a contracepção
pós-coito, com menor incidência de efeitos colaterais do que o método de Yuzpe (HO,
KWAN, 1993, p. 390).
O Consórcio trabalhou cooperativamente com a Gedeon Ritcher, companhia
farmacêutica húngara, que produziu o contraceptivo pós-coital, denominado Postinor-2®. O
ICEC ajudou na programação do rótulo, facilitou o registro do produto e ainda atuou no
sentido de incorporar a contracepção de emergência (Postinor-2®) nas normas e protocolos
dos países considerados “em desenvolvimento” (PRESCOTT, 2011, p. 103; WYNN,
FOSTER, 2012, p. 6; SCHIAPPACASSE, DIAZ, 2006, p. 301).
A década de 1990 foi marcada pela comunhão de esforços em busca da expansão de
informações e do acesso à contracepção de emergência. Houve criação e circulação de
materiais educacionais em várias línguas, tanto para provedores dos serviços quanto para
pacientes, e acirrado marketing social para o registro de um produto para a contracepção pósuso do composto de progesterona levonorgestrel como um contraceptivo de emergência) (PRESCOTT, 2011, p.
103).
43
Termo nativo, utilizado em todo o material do ICEC.
74
coito em vários países (PILSBURY, COEYTAUX, JOHNSTON, 1999, p. 13). A partir do
ICEC, formaram-se consórcios regionais, ampliando os tentáculos da rede favorável à
ampliação do acesso à CE: American Society of Emergency Contraception (ASEC);
Consórcio Latino-americano de Contracepção de Emergência (CLAE); EC Afrique; European
Consortium for Emergency Contraception (ECEC); Arab World Regional EC Network (Arab
World).
Em 1995, a OMS incluiu a anticoncepção de emergência (AE) na lista de
medicamentos essenciais, alinhando-se aos acordos internacionais, como o da Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento, que ocorreu no Cairo, em 1994. Tal
acordo postulava a necessidade de ampliar o acesso da população à informação e aos métodos
contraceptivos, de modo geral, e para os jovens, em particular, na direção de garantir os
direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2005).
Wynn e Foster (2012, p. 7) afirmam que o novo milênio marcou o início de uma era
plena de prioridades adicionais. Várias companhias farmacêuticas começaram a fabricar e
comercializar produtos contendo somente a progesterona. Em um editorial publicado na
revista Contraception, em 2009, Francine Coyetaux44, Elisa Wells45 e Elizabeth Westley46
resumiram o sucesso dos vinte anos de esforços empreendidos para alterar o status da
contracepção de emergência “from secret to shelf” [de segredo para as prateleiras]. De acordo
com as autoras, a despeito dos inúmeros progressos obtidos até o momento, parece que o
ativismo a favor da CE encontra-se diante de uma curva que o coloca de volta em seu
momento inicial (COYETAUX, WELLS, WESTLEY, 2009, p. 1-3).
Analyses of the impact of growing availability of emergency contraception indicated
that this technology had not fulfilled the promise of substantially reducing unwanted
pregnancy on the population level. Rather than blaming this on user error, the
editorial suggested that the population model aimed at reducing the epidemic of
44
Francine Coeytaux - especialista em saúde pública, com experiência no desenvolvimento e avaliação de
programas de saúde reprodutiva. Mais conhecida por seu trabalho com novas tecnologias reprodutivas, Coeytaux
tem se concentrado na promoção de serviços de saúde reprodutiva abrangentes, incluindo o desenvolvimento da
contracepção de emergência e a defesa do aborto médico. Além disso, Coeytaux participou da fundação do
Pacific Institute for Women’s Health (COYETAUX, WELLS, WESTLEY, 2009).
45
Elisa Wells - consultora da Association of Reproductive Health Professionals (ARHP), consultora em saúde
reprodutiva, com experiência no desenvolvimento e gestão de programas voltados para a saúde das mulheres
(COYETAUX, WELLS, WESTLEY, 2009).
46
Atua como coordenadora do Consórcio Internacional para Contracepção de Emergência (ICEC) desde 2005. É
autora e co-autora de uma série de documentos e coordenadora de conferências internacionais sobre CE
(FOSTER, WYNN, 2012, p. 301) .
75
unwanted pregnancies and abortions was outdated and insulting to women 47
(PRESCOTT, 2011, p. 125).
As investigações realizadas mais recentemente revelaram que a contracepção de
emergência pode ser utilizada até 120 horas após o intercurso desprotegido. Ainda assim, em
muitos países, o fato da CE ser disponível com a apresentação de receita médica se mantém
como uma grande barreira para o acesso das mulheres que dela necessitam. Esse aspecto leva
os grupos ativistas a lutarem por sua dispensação sem prescrição médica, ou seja, sob o status
“over the conter”48, como veremos na parte 2, capítulo 5.
No caso das pílulas para a contracepção de emergência/levonorgestrel, o debate social
é polarizado e as forças sociais atuantes constroem alianças, mesmo que tais setores em outras
situações estejam de lados opostos. De um lado, há forças relacionadas aos profissionais dos
serviços de saúde, pesquisadores clínicos e cientistas sociais, ativistas dos direitos
reprodutivos e sexuais e as companhias farmacêuticas, que lutam pela maior conscientização e
disponibilização da contracepção de emergência. Esses grupos recorrem a dois argumentos: o
sanitário, ligado à necessidade de se diminuir as taxas de gravidez imprevista e aborto
inseguro, especialmente entre os jovens e nos países e regiões menos desenvolvidas, noções
fortes nas correntes neomalthusianas; e o argumento da autonomia reprodutiva e
empoderamento das mulheres, que se conecta ao discurso feminista.
Do outro lado, estão os grupos que buscam impedir e/ou restringir o acesso à ‘pílula
do dia seguinte’, compostos por profissionais de saúde, políticos, médicos e forças religiosas.
Um dos argumentos refere-se à relação equivocada entre CE e os medicamentos abortivos
(RU-486). O outro recorre a uma representação muito forte de que a ampliação da
disponibilidade deste medicamento leva ou facilita a promiscuidade sexual, o não uso de
preservativos, uma “epidemia” de doenças sexualmente transmissíveis, morte de embriões,
enfim a decadência moral generalizada (WYNN, FOSTER, 2012, p. 8).
47
Tradução nossa: “As análises do impacto da ampliação do acesso à contracepção de emergência indicaram que
esta tecnologia não cumpriu a promessa de reduzir substancialmente os índices de gravidez indesejada em nível
populacional. Ao invés de culpabilizar o usuário, o editorial sugere que o modelo populacional destinado a
redução da epidemia de ‘gravidezes indesejadas’ e abortos estava ultrapassado e era um insulto para as
mulheres” (PRESCOTT, 2011, p. 125).
48
Tradução: fora do balcão, à disposição do consumidor nas gôndolas.
76
4.2 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NO BRASIL: ENTRE NORMAS E PRÁTICAS
A difusão da contracepção de emergência no Brasil, iniciada através do método Yuzpe,
ocorreu sem muito alarde, mantendo sua visibilidade restrita, por algum tempo, somente entre
setores dos movimentos de mulheres e profissionais de ginecologia, principalmente para casos
de violência sexual. Drezett (2010, p. 66) comenta que os países com leis mais restritivas ao
aborto são, geralmente, os mesmos que colocam fortes impedimentos à CE. Essa posição é
considerada paradoxal pelo autor, na medida em que ignora os direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres e as políticas públicas de saúde. Muitas vezes, as restrições ao uso da CE podem
ser reflexos da falta ou desatualização de informações por parte dos gestores, profissionais de
saúde e setores legislativos e judiciários. Mas, é mais provável que a desatenção às normas
técnicas esteja diretamente ligada aos conflitos de ordem moral, particularmente religiosos.
Diversos setores sociais no Brasil estão influenciados pela noção equivocada, mas
disseminada socialmente, de que a CE é um medicamento abortivo ou um “método abortivo
precoce”.
Em 1996, por força de algumas instituições brasileiras parceiras do ICEC, esse
contraceptivo, mediante a fórmula Yuzpe, foi incluído nas Normas Técnicas de Planejamento
Familiar do Ministério da Saúde. Em 1999, regulamentou-se a Norma Técnica para
atendimento das vítimas femininas de violência sexual, que permitiu a obtenção da CE, além
de atendimento por uma equipe interdisciplinar (SOUZA, BRANDÃO, 2009). No mesmo
ano, foi aprovada, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a
comercialização do Postinor-2® (levonorgestrel) pelas drogarias, com prescrição médica.
Atualmente, há mais de quinze marcas disponíveis no mercado nacional, sendo possível
afirmar que o ressurgimento do debate em torno deste medicamento muito se deve à
facilidade de sua aquisição no mercado, sem exigência de receita médica ou orientação
(PAIVA, BRANDÃO, 2012).
A criação do Consórcio Latino-americano de Anticoncepção de Emergência (CLAE),
em 2000, significou apoio à inserção da CE, com um avanço importante para os grupos que
defendem a ampliação do acesso à CE como questão de direitos humanos e como forma de
diminuir as taxas de gravidez imprevista e abortos na região.
Em 2005, o governo brasileiro decidiu ampliar o fornecimento da CE para atender a
todas as mulheres que dela necessitem, independente do motivo. Tal decisão, contudo, como
destaca Figueiredo (2004), não garantiu o acesso das mulheres ao medicamento. Os processos
de trabalho e as práticas das unidades de atenção básica à saúde e outros setores voltados para
77
a atenção à saúde da mulher não funcionam em consonância com as normas técnicas de 1996
e 1999, como demonstra os resultados de algumas pesquisas realizadas no Brasil (Diaz et al.,
2003a; Faúndes, 2007).
Inúmeros processos judiciais no âmbito nacional, regional e local referem-se ao
estatuto legal da fabricação, venda e distribuição da CE para a população latino-americana.
Tratam-se de várias iniciativas, algumas vezes organizadas de forma articulada, constituídas
majoritariamente por forças políticas ligadas à Igreja Católica, objetivando alterar as leis
existentes, ou criar novas, instaurando barreiras ao acesso aos contraceptivos pós-coitais nos
serviços públicos de saúde, outras vezes no mercado (HEVIA, 2012, ARRILHA, CITELI,
2010; BERGALLO, 2010; COSTA, 2008).
No Brasil, tais setores sociais criticam as propostas da Política Nacional de Direitos
Sexuais e Reprodutivos, conseguindo, em determinados momentos, influenciar decisões
legislativas desfavoráveis à distribuição da CE nos serviços públicos. Há inúmeros fatos que
demonstram essa restrição à distribuição dos medicamentos por decisões judiciais, em cidades
do interior do país, dentre elas, a Câmara Municipal de Jundiaí que, em 2008, proibiu a
distribuição de CE nos serviços públicos desse município (ARILHA, CITELI, 2010).
Apesar dessas barreiras, no que diz respeito às decisões regulatórias tomadas em
âmbito nacional, a realidade brasileira é relativamente mais favorável em relação a outros
países latinos, já que se destacam avanços políticos e legais quanto ao acesso à CE. Por
exemplo, recentemente foi publicado um protocolo pelo Ministério da Saúde, no contexto da
Rede Cegonha49, que permite a dispensação da contracepção de emergência pelo(a)
enfermeiro(a) nos serviços públicos de saúde (BRASIL, 2012). Além disso, o Ministério da
Saúde lançou duas edições de manuais contendo perguntas e repostas sobre a CE, voltados
para os profissionais de saúde, os quais visam ampliar as informações e reduzir as
intervenções restritivas ao uso deste contraceptivo, em especial para a população jovem
(BRASIL, 2011).
O Conselho Federal de Medicina posiciona-se favorável o uso da CE, tendo divulgado
em 2006, uma nota técnica na qual afirma que a CE não é abortiva e pode ser usada em
qualquer idade. O uso da ‘pílula do dia seguinte’ cresceu consideravelmente no Brasil, entre
1996 e 2006, segundo a pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher
49
A Rede Cegonha, instituída em junho de 2011, consiste numa rede de cuidados que visa assegurar à mulher o
direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto, aborto e puerpério, tendo como
uma de suas diretrizes a garantia de acesso às ações do planejamento reprodutivo.
78
(PNDS). A CE não apareceu na PNDS de 1996 mas, em 2006, 12% das mulheres de 15 a 49
anos afirmaram ter utilizado esse método, cujo consumo teve maior representatividade na
faixa etária de 20 a 24 anos (18,5%), e 10,4% entre mulheres de 15 a 19 anos. Este
contraceptivo passou a ocupar, em 2006, o quinto lugar entre todos os métodos contraceptivos
usados e terceiro entre mulheres não unidas e ativas sexualmente (BRASIL, 2008).
Sobre o aumento do seu uso, pode-se dizer que as mulheres brasileiras estão buscando
esse medicamento nas farmácias, onde há grande disponibilidade e facilidade de se adquirir a
CE. Nos estabelecimentos farmacêuticos brasileiros, este medicamento é vendido
cotidianamente, sem orientação e controle apropriado da ANVISA ou da própria drogaria,
para que se possa acompanhar a saúde reprodutiva de seus consumidores. Além disso, em
certos estabelecimentos, esse medicamento é um dos que são conhecidos como bonificados, o
que significa que os balconistas e farmacêuticos possuem incentivo financeiro, oferecido
pelos laboratórios farmacêuticos e pelos proprietários das drogarias, para indicar uma marca
ou outra ao cliente (PAIVA, BRANDÃO, 2012).
Podemos
argumentar
que
a
incorporação
da
contracepção
de
emergência/levonorgestrel no cenário brasileiro não está consolidada nos serviços públicos de
saúde, na maior parte das vezes por razões de ordem moral e religiosa, ainda por interrupções
no fornecimento e por falta de informação por parte das usuárias. Por outro lado, a facilidade
de sua aquisição no ambiente privado das farmácias, sem orientação quanto aos aspectos
relativos à sexualidade e contracepção por parte dos farmacêuticos e/ou balconistas, levou as
usuárias a utilizarem prioritariamente este cenário para adquirirem o contraceptivo pós-coital,
ambiente que elas já acionavam para a compra da pílula hormonal de rotina (CABRAL,
2011).
**
*
ENFIM...
Considerando minhas questões iniciais e os atuais debates globais sobre o acesso à
contracepção de emergência, pode-se perceber que as discussões são geradas por inúmeras
controvérsias morais/religiosas relativas a este anticoncepcional pós-coito em diferentes
regiões do planeta, buscando coibir a expansão do seu uso pelas mulheres. Diante da visão
panorâmica sobre a história da contracepção, vimos que as diversas formas encontradas pelas
mulheres para controlar o número de filhos, em geral, estiveram envoltas em controvérsias
sociais nas diferentes sociedades e grupos sociais. Não parece ter havido uma época mais
79
simples, já que tais questões, de uma forma ou de outra, sempre foram matérias de combate
político e ideológico. Pode-se dizer que jamais aceitamos com ‘estoicismo’ a vinda dos filhos.
A
questão
do
tamanho
das
famílias
sempre
foi
objeto
de
propagandas
e
confrontos/negociações entre os casais, pelo próprio Estado, grupos e classes sociais em
confronto (MCLAREN, 1996, p. 394/395).
Por conta disso, podemos pensar que o processo de valorização e/ou desvalorização
dos métodos pelas sociedades em seus diversos momentos históricos também são sempre
modulados pelas injunções morais/religiosas presentes nestes contextos determinados e pelos
interesses sociais em jogo. Se compararmos os vários períodos históricos e métodos
contraceptivos discutidos nesta primeira parte, teremos um quadro complexo e não linear,
pois o estatuto prestigioso ou não de determinado método dependerá de uma série de
circunstâncias sociais, que envolvem as forças em confronto nos momentos analisados. É
importante considerarmos o lugar das mulheres e dos homens nos processos de reprodução e
contracepção, observando-se que a carga maior de responsabilidade sobre a gestão da vida
reprodutiva é feminina.
Como exemplo, a discussão em torno do aborto, que figura como tema muito
polêmico no Brasil, especialmente pelas intervenções de setores religiosos, em especial a
Igreja Católica, a qual argumenta a favor da vida do feto, entendida como existente a partir do
momento da concepção, que coincide com o ato sexual. De uma perspectiva histórica,
percebemos que tal método nem sempre gozou de desprestígio, pois foi considerado um
problema moral menor para os antigos. De fato, até a época moderna era possível visualizar
uma linha contínua de práticas contraceptivas que começava com coito interrompido,
abstinência sexual, uso de pessários, chás e, caso estas técnicas não funcionassem, as
mulheres terminavam por utilizar determinados medicamentos e técnicas abortivas como
alternativa para evitar filhos ou para ‘fazer descer as regras’. Tal prática não era
compreendida como distinta da contracepção. Mais tarde, o Estado, os médicos e a Igreja
consagraram a distinção entre tais práticas.
O aborto, apesar de seu desprestígio social, mantém-se como prática adotada pelas
mulheres e casais desde as épocas mais remotas. A seu favor, estão as forças sociais que
defendem a ampliação da autonomia sexual e reprodutiva feminina, como os movimentos
feministas na saúde, profissionais e pesquisadores do campo da saúde coletiva etc. Tais
grupos argumentam ainda que o aborto se tornou um problema de saúde pública, na medida
em que as preocupantes taxas de mortalidade materna estão diretamente relacionadas a tais
80
práticas, como pode ser observado no caso brasileiro, em que o aborto é feito em condições
inseguras em boa parte dos casos.
Comparando as discussões e o processo de difusão da contracepção de emergência no
mundo e no Brasil, podemos observar que este medicamento teve em sua origem uma
identidade marcada pela controvérsia e por interditos morais e religiosos. Wynn e Foster
(2012) classificam a ‘pílula do dia seguinte’ como uma tecnologia liminar, parafraseando V.
Turner, pois ela pode ser entendida como mais do que um contraceptivo e menos do que um
abortivo: “betwixt and between” [nem uma coisa nem outra] (WYNN, FOSTER, 2012, p. 8).
Além disso, no Brasil, há uma relação direta entre as forças sociais implicadas no debate
sobre o aborto e a contracepção de emergência, ou seja, aqueles que defendem a legalização
do aborto no Brasil, em geral também se posicionam favoravelmente à ampliação do acesso à
contracepção de emergência, e vice-versa.
Outra tecnologia contraceptiva apropriada para comparação com a CE é a pílula
hormonal combinada de uso de rotina. A retomada da história da introdução desses
combinados hormonais está vinculada a um contexto de ‘fé’ no ‘milagre farmacêutico’,
marcada pela busca de um meio simples e eficaz de controlar os nascimentos, particularmente
nos locais e regiões mais vulneráveis. Mas a crença foi fugaz. Logo após o lançamento da
pílula no mercado, o escândalo envolvendo o uso da talidomida, que provocava anomalias
fetais congênitas, levou o público a temer os efeitos colaterais de todas as substâncias
bioquímicas. Houve uma revalorização dos métodos tradicionais, em detrimento dos
modernos50. No entanto, a busca feminina por um método mais eficaz, sob o seu próprio
controle, sobrepujou os argumentos daqueles que temiam os riscos do consumo de tais
hormônios pelas mulheres e os interesses políticos e econômicos envolvidos no controle de
nascimentos.
Com a CE, podemos dizer que a história se repete, pois sua criação também foi
fundamentada na relação entre setores ativistas e a indústria farmacêutica, estando também
presente a narrativa da necessidade de ampliação da eficácia dos medicamentos
contraceptivos e controle de natalidade, em especial nas regiões e países que ainda não
tivessem resolvido os problemas de gravidez adolescente/imprevista e aborto inseguro. Havia
também essa esperança relacionada à pílula hormonal combinada, mas sua eficácia se tornava
50
Determinados setores dos movimentos feministas (‘eco-feministas’) nos Estados Unidos, que se opunham às
intervenções médicas e aos objetivos neomalthusianos dos que defendiam o uso das pílulas hormonais
combinadas, chegavam inclusive a se aproximar do discurso religioso.
81
mais restrita devido ao fato de que as mulheres poderiam tomá-la indevidamente, gerando
gravidez e aborto. A CE significa que há uma chance após o coito desprotegido ou falha nos
métodos utilizados. Neste sentido, um dos discursos favoráveis à CE é elaborado a partir de
uma matriz sanitária, defendendo a necessidade de reduzir as taxas de ‘gravidez nãoplanejada’ e de abortos inseguros, especialmente entre adolescentes.
Por outro lado, a ‘pílula do dia seguinte’/levonorgestrel surgiu no mercado, no final do
século XX, como o arauto de uma nova revolução contraceptiva, que deveria ampliar ainda
mais a autonomia reprodutiva feminina (PRESCOTT, 2011). Assemelhando-se ao processo
ocorrido com a pílula regular de rotina, gerou expectativas em relação à conquista da
igualdade entre os sexos, pois representou um sinal de libertação da maternidade compulsória.
Feministas e intelectuais de destaque (HÉRITIER, 1996; 1999; 2000; BEAUVOIR,1987)
concordavam que a pílula anticoncepcional representava mais uma etapa na redução das
desigualdades entre os gêneros. Mas, podemos relativizar os argumentos favoráveis às pílulas
hormonais, na medida em que o próprio fato dos homens poderem se abster de
responsabilidades contraceptivas, parece ter gerado maior responsabilização feminina
(CABRAL, 2011, p. 25).
Além disso, Oudshoorn (2003) alerta que no século XX nenhum novo método
contraceptivo masculino foi desenvolvido, exceto o aperfeiçoamento dos já existentes desde o
século XIX, como o preservativo e a esterilização. Não obstante, vários novos métodos
contraceptivos femininos foram criados, entre eles, as pílulas anticoncepcionais hormonais, os
dispositivos intra-uterinos e as pílulas hormonais pós-coitais.
É fundamental considerarmos um panorama mais amplo, pois até o final do século
XVIII e começo do XIX, sob uma perspectiva geral, as mulheres dispunham de um arsenal
mais limitado de meios para evitar filhos. No final do século XIX e início do XX, as técnicas
para esse fim se tornaram mais comuns e acessíveis. Em uma sociedade centrada na divisão
que postula como domínio feminino a reprodução e o cuidado da família, o uso mais intensivo
de recursos para o controle de número de filhos poderia gerar sérias ameaças aos casais. É
importante compreendermos de que forma estas mudanças geram ou não rupturas no modelo
tradicional de relação entre os gêneros, que se atualiza cotidianamente.
Por fim, um aspecto fundamental a comentar diz respeito à atuação das companhias
farmacêuticas nas novas formas de medicalização da sexualidade, na medida em que tais
empresas exerceram papeis chaves, tornando-se aliadas dos setores médicos, de ativistas
feministas e dos direitos sexuais e reprodutivos. Conrad (2007, p. 155) salienta o expressivo
82
investimento da indústria farmacêutica no marketing dos medicamentos, revelando o grande
esforço empreendido na criação de um mercado consumidor para os produtos farmacológicos.
Comenta ainda sobre a necessidade de refletirmos sobre o marketing em torno das soluções
farmacêuticas para os ‘problemas da vida cotidiana’, oferecido através das companhias,
gerando a expansão da indústria da medicalização, que implica cada vez mais no aumento da
comercialização de fármacos.
No que se refere aos medicamentos essenciais para os direitos sexuais e reprodutivos,
Cottingham e Berer (2013, p. 145) problematizam certos aspectos. Primeiramente, afirmam
que em nenhuma outra área da saúde há tanta ‘medicação’ para pessoas saudáveis. A
contracepção e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST) por meio de
preservativos são formas de prevenção muito diferentes daquelas utilizadas em outros
aspectos da saúde, como, por exemplo, a vacinação infantil. Enquanto na vacinação infantil, a
utilização de produtos farmacêuticos é pouco frequente, no caso da proteção contra gravidez
não planejada e as DST é algo que pode ser utilizado durante todo o período de vida sexual
ativa. Dados publicados pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2009, revelam que
em todo o mundo, entre 700 e 800 milhões de mulheres ou casais estão utilizando alguma
forma de contracepção. Apesar disso, cerca de 215 milhões de mulheres deixam de ser
atendidas em suas necessidades de contracepção, pela falta de informação, dos meios de
obtenção de métodos ou de acesso a serviços de saúde.
Não é surpresa alguma que os investimentos da indústria farmacêutica em inovação e
desenvolvimento de medicamentos, apesar de baseados na saúde, sejam prioritariamente
orientados pelo lucro. Uma empresa farmacêutica não irá investir em produtos que não
tenham a capacidade de levá-las a recuperar seus custos e a lucrar o suficiente. Isso significa
que os investimentos em medicamentos tendem a se destinar majoritariamente para os países
desenvolvidos, que podem pagar por eles. Quando o investimento é recuperado, a indústria
nem sempre se interessa em tornar os produtos acessíveis para outras partes do mundo.
Segundo a perspectiva de Cottingham e Berer (2013), o mercado de contraceptivos
movimentava em torno de 6,2 bilhões de dólares para as maiores empresas farmacêuticas,
enquanto que o mercado de diagnóstico e tratamento de problemas cardiovasculares
movimentava cerca de 111 bilhões de dólares. Isso significa que estimativas como essas têm
um grande impacto sobre a definição dos medicamentos que serão desenvolvidos e sobre o
modo como serão promovidos.
83
Essa discussão é interessante, pois pode explicar a articulação da indústria
farmacêutica com os setores ativistas e de advocacy feministas, tanto no processo de
desenvolvimento da pílula hormonal combinada, quanto no desenvolvimento de uma fórmula
específica para a contracepção de emergência. Podemos citar, por exemplo, a grande
importância do trabalho de advocacy realizado pelo ICEC, que ajudou na programação do
rótulo, facilitou o registro do produto e ainda trabalha no sentido de incorporar a contracepção
de emergência (Postinor-2®) nas normas e protocolos dos países, especialmente aqueles
considerados “em desenvolvimento” (PRESCOTT, 2011, p. 103; WYNN, FOSTER, 2012, p.
6; SCHIAPPACASSE, DIAZ, 2006, p. 301).
Certamente, tais reflexões podem nos levar a pensar sobre as formas contemporâneas
que intensificam a medicalização da sexualidade, que parece se aproximar do que Williams,
Martin e Gabe (2011) denominam de ‘farmacologização da sociedade’. Segundo apontam, a
farmacologização denota a tradução ou transformação das condições e capacidades humanas
em oportunidades para a intervenção farmacêutica. Trata-se de um complexo processo
sociotécnico que interage com os processos de medicalização. Este processo se estende para
além do domínio médico, por conter outras utilidades não médicas para o estilo de vida dos
indivíduos. Nesse processo, a tendência é se estabelecer uma relação direta entre
consumidores e medicamentos (CAMARGO JÚNIOR, 2013).
De acordo com Williams, Martin e Gabe (2011), pode-se identificar seis dimensões
chaves para a sociologia entender a farmacologização: 1) a redefinição ou reconfiguração dos
problemas de saúde como tendo uma solução farmacêutica; 2) as mudanças nas relações entre
as agências regulatórias e a indústria farmacêutica; 3) a mediação dos produtos farmacêuticos
na cultura popular e na vida diária; 4) a criação de uma nova identidade tecno-social e a
mobilização de grupos de pacientes ou consumidores sobre os medicamentos; 5) o uso de
fármacos para “aperfeiçoamentos” não-médicos e a criação de um novo mercado consumidor;
6) inovação de medicamentos e a colonização do futuro da saúde, apesar da crise de produção
e inovação da indústria.
Olhando para estas dimensões e refletindo sobre as questões presentes no debate atual
a respeito da CE, podemos falar sobre novas relações entre Estado, ativistas e companhias
farmacêuticas. Atualmente, a defesa da ampliação do acesso à ‘pílula do dia seguinte’ passa
pela defesa da estratégia de disponibilizá-lo ‘over-the-counter’, ou seja, fora do balcão e sem
receita médica, via farmácias e drogarias. Essa busca de ampliação do acesso à CE parece
84
servir tanto à ampliação da autonomia reprodutiva feminina quanto à intensificação do
processo de ‘farmacologização da sociedade’, aqui da sexualidade.
85
PARTE 2
ETNOGRAFIA
SOBRE
A
COMERCIALIZAÇÃO
DA
CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA EM DROGARIA DO
MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO
A segunda parte da tese, dividida em 4 capítulos, é dedicada à análise sobre a
comercialização da contracepção de emergência (CE) no contexto de uma drogaria da zona
norte do município do Rio de Janeiro, a partir de um estudo etnográfico.
Desde o momento inicial desta investigação, a opção por etnografar o ambiente
privado de uma drogaria51 foi desafiadora. Era possível conjecturar sobre dificuldades
adicionais que poderíamos enfrentar para, de fato, construir este campo de investigação, até
então inexplorado no Brasil. A priori, este ambiente parecia improvável para a construção de
diálogo e vínculo com os sujeitos de pesquisa: balconistas/farmacêuticos e consumidores/as
da CE. Além disso, a temática referente à sexualidade e contracepção, por ser considerada de
foro íntimo, tendia a tornar o processo de aproximação com os/as consumidores/as da CE
mais complexo.
Como uma etnógrafa principiante, eu tinha muitas incertezas. Diário de campo,
entrevistas com diferentes sujeitos, “mergulho denso” no campo, análise de material
qualitativo. Teoria e método que forjam a história da Antropologia e que demandam os
devidos cuidados por parte dos pesquisadores, além de um olhar ‘apurado’, construído
também em diálogo com os sujeitos pesquisados. Meu esforço em encontrar as melhores
estratégias para etnografar este ambiente aguçou a seriedade das ressalvas críticas, feitas por
iminentes pesquisadores da área de saúde coletiva no Brasil, sobre a qualidade das pesquisas
que recebem a denominação de ‘etnografia’ (KNAUTH, 2010; DESLANDES, IRIART, 2012;
MINAYO, 2008, DESLANDES, 2012). Mas, para além de minhas dificuldades e receios
pessoais, a drogaria era um território ainda ‘selvagem’ para estudos etnográficos.
51
A Lei n. 5991/1973, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos
farmacêuticos e correlatos, prevê especificidades para o que se denomina como farmácia e drogaria no Brasil:
Farmácia - estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas,
medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento
privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica;
Drogaria - estabelecimento de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e
correlatos em suas embalagens originais.
86
No Brasil, tais estabelecimentos são legalmente caracterizados como de “interesse
para a saúde”, responsáveis pela dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos
farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais52 (BRASIL, 1973). Possuem o dever
legal de garantir e zelar pela manutenção da qualidade e segurança dos produtos ofertados,
bem como pelo uso racional de medicamentos53, a fim de evitar riscos e efeitos nocivos à
saúde, conforme disposto na Resolução da Diretoria Colegiada n. 44/2009 (RDC n. 44/2009),
da ANVISA, que dispõe sobre as boas práticas farmacêuticas (BRASIL, 2009).
Contudo, na prática, percebe-se que o fim último de sua atividade é a venda de
produtos farmacêuticos, e não a prestação de atendimentos e informações para o uso correto e
racional de medicamentos. Ampliando o olhar, percebemos que a intensificação do processo
de “medicalização da sociedade”(CONRAD, 2007), que culmina no que alguns autores
denominam de “farmacologização da sociedade” (WILLIAMS, MARTIN E GABE, 2011),
transformou o “negócio farmacêutico” em um disputado mercado em crescimento. Essa
engrenagem precisa do estímulo constante ao consumo de medicamentos para o seu
funcionamento, estejam ou não os indivíduos com algum transtorno ou doença
(NASCIMENTO, 2005; BASTOS, CAETANO, 2010; ANGONESI, SEVALHO). Chamo
atenção para a observação de Cottingham e Berer (2013), de que nenhuma outra área se
compara aos setores de contracepção e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis no
tocante à produção de medicamentos para pessoas saudáveis.
No contexto nacional, o debate sobre o papel das instituições farmacêuticas está
centrado na defesa, pelos Conselhos Profissionais de Farmácia, ANVISA, Conselho Nacional
de Saúde e outros setores, da regulação das farmácias e drogarias como estabelecimentos de
saúde, assegurando que os produtos ali comercializados influenciam diretamente na saúde da
população e que os medicamentos não podem ser tratados como simples ‘mercadorias’. Nesse
52
Droga - substância ou matéria-prima que tenha a finalidade medicamentosa ou sanitária;
Medicamento - produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa,
paliativa ou para fins de diagnóstico;
Insumo Farmacêutico - droga ou matéria-prima aditiva ou complementar de qualquer natureza, destinada a
emprego em medicamentos, quando for o caso, e seus recipientes;
Correlato - a substância, produto, aparelho ou acessório não enquadrado nos conceitos anteriores, cujo uso ou
aplicação esteja ligado à defesa e proteção da saúde individual ou coletiva, à higiene pessoal ou de ambientes, ou
a fins diagnósticos e analíticos, os cosméticos e perfumes, e, ainda, os produtos dietéticos, óticos, de acústica
médica, odontológicos e veterinários (Brasil, 1973).
Fármaco – substância química que é o princípio ativo do medicamento (Brasil, 1998- portaria ministerial n.
3916/MS/GM).
53
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (Nairóbi, Quênia, 1985), entende-se que há uso racional de
medicamentos quando pacientes recebem medicamentos apropriados para suas condições clínicas, em doses
adequadas às suas necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e para a
comunidade.
87
sentido, também pretendem evitar que as drogarias/farmácias percam suas características de
estabelecimentos de saúde, voltando-se estritamente para o mercado.
Apesar de alguns avanços, inscritos na aprovação da RDC n. 44/ 2009, que dispõe
sobre as boas práticas farmacêuticas, não se pode negligenciar o poder tentacular da indústria
farmacêutica e dos proprietários de redes de drogarias. As drogarias continuam ocupando uma
posição ambígua no sistema de saúde brasileiro, na medida em que têm uma dimensão de
interesse público, mas são regidas pela lógica privada (FARINA, ROMANO-LIEBER, 2009;
OLIVEIRA et al., 2005).
Tendo em vista o contexto de problematização sobre o lugar das drogarias/farmácias
nos sistemas de saúde e de ampliação internacional do acesso à CE através destes
estabelecimentos, inicio com uma revisão de literatura a respeito da disponibilidade da CE no
contexto das farmácias/drogarias. Em seguida, dedico-me à investigação etnográfica
propriamente dita e seus resultados.
88
5 O DEBATE SOBRE A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA E SUA PROVISÃO
PELAS FARMÁCIAS/DROGARIAS: CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL
Neste capítulo contextualizo o debate internacional e nacional sobre as políticas de
ampliação
do
acesso
à
contracepção
de
emergência,
notadamente
através
das
farmácias/drogarias. Trago à tona as estratégias políticas, ideológicas e discursivas que
embasam os debates favoráveis e desfavoráveis a este contraceptivo. Importante reafirmar que
estes discursos se relacionam intimamente às representações e práticas relativas à sexualidade,
gênero e contracepção em contextos e sociedades diversas, associando-se ou não à linguagem
dos direitos sexuais e reprodutivos.
Tomo como ponto de partida, um trecho significativo do editorial publicado no
periódico Contraception (2012, p. 429), escrito por Elizabeth Westley e Eleanor Bimla
Schwarz54:
Emergency contraception (EC) is unique among modern contraceptive methods in
its capacity to prevent pregnancy after sex. Perhaps for this reason, from the days of
its earliest introduction, EC has engendered extraordinary anxiety and opposition in
multiple settings around the world. (…) Although dedicated EC products are now
registered and available in most countries (and over the counter in more than 50),
concerns continue to focus on three issues: emergency contraceptive pills'
mechanism of action, impact on behavior, and safety. The fact that a growing body
of evidence refutes each of these concerns seems to do little to quiet those
committed to the broader agenda of restricting access to family planning services.
The existing evidence demonstrates that levonorgestrel emergency contraceptive
pills (ECPs) work primarily, and probably exclusively, by preventing ovulation and
fertilization; despite this, the antichoice movement continues to equate EC with
abortion. Similarly, multiple studies have now shown that increased access to EC
does not increase sexual risk-taking or lead couples to abandon use of condoms.
Rather, women add EC to a range of short-term contraceptive methods and are as
likely to switch to condoms after using EC as from condoms to EC. The active
ingredient in the most widely available EC product (levonorgestrel) has a robust
safety profile after over 40 years on the market. Nonetheless, concerns about the
safety and appropriateness of use of this medication continue to dominate the
discourse on EC. What is rarely discussed is the fact that few women anywhere in
the world consistently have easy access to EC, although a global epidemic of
unintended pregnancy and unsafe abortion rages on. In many developing countries,
women continue to die from unsafe abortion, yet a large majority has simply never
heard of EC55.
54
Pesquisadora do Centro de Pesquisa em Ciências Obstétricas, Ginecológicas e Reprodutivas do Serviço de
Saúde da Universidade de Pittsburg.
55
Tradução nossa: “O contraceptivo de emergência é único entre os anticoncepcionais modernos com
capacidade de prevenir gravidez após o sexo. Talvez por essa razão, desde o momento em que este método
apareceu, tem gerado uma grande ansiedade e oposição em muitos lugares ao redor do mundo. (...) Embora
produtos específicos para contracepção de emergência estejam agora registrados e disponíveis na maior parte dos
países (e fora do balcão, mais de cinquenta), as preocupações mantêm o foco em três questões: mecanismos de
ação da contracepção de emergência, impacto no comportamento, e segurança. O fato de que um crescente
89
Nessa passagem, as autoras defendem a ampliação do acesso à CE enfatizando dois
argumentos principais: sua eficácia e seus mecanismos de ação, visando afastá-lo de sua
relação com medicamentos abortivos; e o argumento que podemos relacionar mais à saúde
pública, de defesa do uso do método como forma de combater a dita ‘epidemia’ de gravidezes
não planejadas e abortos inseguros, com ênfase nos países em desenvolvimento.
Essa ideia faz parte da gênese do ICEC, que nasceu tendo como um dos objetivos
fundamentais o lançamento de um produto específico para a contracepção de emergência, a
preço acessível, nos países em desenvolvimento. Para tanto, buscou a parceria da indústria
farmacêutica Gedeon Ritcher, que veio a produzir o contraceptivo de emergência- Postinor2®. Como salientado anteriormente, o ICEC trabalhou desde a programação da rotulagem do
produto até a viabilização da incorporação da CE nas normas e protocolos dos países. Os
primeiros países identificados pelo ICEC para o desenvolvimento de estratégias multifocais
para expansão do acesso à CE foram: Indonesia, México, Kenya e Sri Lanka. Essa escolha
demonstra a força da perspectiva ‘neomalthusiana’ (WYNN, FOSTER, 2012, p. 6).
Sem dúvida, a década de 1990 foi marcada pelo aprimoramento de estratégias,
engendradas principalmente através do ICEC e suas agências regionais e instituições parceiras
com vistas a expandir o acesso à CE. A principal justificativa utilizada refere-se à necessidade
dos países reduzirem o número de gestações adolescentes, imprevistas e abortos inseguros.
Esse argumento é fortalecido por outro, afinado à linguagem dos direitos sexuais e
reprodutivos, voltado para a defesa da autonomia sexual e reprodutiva feminina, dando-lhe
mais uma chance de prevenir a gestação não planejada e o eventual aborto.
Entre as políticas de ampliação do acesso, destacadas na literatura internacional,
podemos citar a que prevê distribuição ou provisão antecipada da CE para as mulheres, tanto
nos serviços de planejamento familiar quanto nas farmácias/drogarias. Essa proposta pretende
número de evidências refuta cada uma dessas preocupações parece pouco para acalmar os setores
comprometidos com a agenda de restrição do acesso aos serviços de planejamento familiar. A evidência
existente demonstra que pílulas anticoncepcionais de emergência/levonorgestrel trabalham principalmente, e
provavelmente, exclusivamente, impedindo a ovulação e fertilização. Apesar disso, o movimento antichoice
continua a equacionar CE com o aborto. Da mesma forma, vários estudos têm mostrado que o aumento do
acesso a CE não aumenta os riscos sexuais assumidos nem leva ao abandono do uso de preservativos pelos
casais. Pelo contrário, as mulheres adicionam a CE a uma gama de métodos contraceptivos de curto prazo e são
mais propensas a mudar para preservativos depois de usar CE. O princípio ativo do produto CE mais
amplamente disponível (levonorgestrel) tem um bom perfil de segurança, já que está há mais de 40 anos no
mercado. No entanto, as preocupações com a segurança e adequação do uso deste medicamento continuam a
dominar o discurso sobre CE. O que raramente se discute é o fato de que poucas mulheres em qualquer lugar do
mundo tem acesso fácil a CE, apesar da continuidade da epidemia global de gravidez indesejada e aborto
inseguro. Em muitos países em desenvolvimento, as mulheres continuam a morrer de aborto inseguro, mas a
grande maioria simplesmente nunca ouviu falar de CE” (WESTLEY, SCHWARZ. 2012, p. 429).
90
diminuir o tempo entre a relação sexual desprotegida e o uso do contraceptivo de emergência,
já que a mulher tem acesso em média a três cartelas de CE antes mesmo da necessidade de
utilizá-la. Nesse caso, o contraceptivo de emergência é ofertado nos serviços de saúde, por
médicos responsáveis pelas orientações relativas à reprodução/contracepção.
Outra estratégia política muito discutida na literatura é a que oferece permissão legal
para que o farmacêutico forneça a CE sem receita médica, mediante cumprimento de
protocolos específicos. Nesse caso, o medicamento é disponibilizado ‘behind-the-counter’
(BTC), dentro do balcão, e o/a consumidor/a recebe orientação do/a farmacêutico/a sobre o
medicamento e sobre os métodos de uso de rotina disponíveis. Em alguns países, o produto é
disponibilizado sem custos para o/a usuário/a ou é subsidiado pelo Estado (PAIVA,
BRANDÃO, 2012).
É importante ressaltar, por fim, a estratégia mais citada atualmente, que envolve a
dispensação da CE ‘over-the-counter’ (OTC), ou seja, fora do balcão e sem orientação do
profissional farmacêutico. A defesa dessa política se alinha ao discurso de ampliação dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Enfrenta a oposição dos setores médicos, que
alegam riscos sanitários relativos à venda de contraceptivos hormonais sem receita médica e
sustentam a manutenção de sua competência neste âmbito. Além da resistência aberta de
setores religiosos, os quais argumentam que a ampliação da disponibilidade do contraceptivo
leva ao aumento da ‘promiscuidade sexual’, especialmente entre jovens, além de uma
aclamada nova ‘epidemia’ de doenças sexualmente transmissíveis, chegando, por fim, à
decadência moral da sociedade global (WYNN, FOSTER, 2012, p. 8).
Apesar da resistência destes setores, o fato é que os países ocidentais, desenvolvidos e
em desenvolvimento, interessados em reduzir as taxas de gestações adolescentes e
imprevistas, e ao mesmo tempo, estimulados pelo interesse em reduzir gastos com seguro
saúde, introduzem crescentemente a política de dispensação da CE pelas farmácias e “fora do
balcão”. Como nos mostra Fainzang (2012, p. 2), hoje em dia, na França, os poderes públicos
incitam largamente os indivíduos a praticarem a auto-medicação, já que este é um meio eficaz
de reduzir os encargos do seguro-doença, na medida em que os medicamentos comprados sem
receita não são financiados pelo Estado, mas sim pelos próprios cidadãos.
Fainzang (2012) observa ainda que a auto-medicação se coloca, hoje em dia, na
interseção de vários discursos, o que pode ser exemplificado pelo caso específico da discussão
sobre a liberação da venda over-the-counter da CE. De fato, o recurso à auto-medicação tem
sido objeto de percepções contrastantes ao longo do tempo, as quais estão ligadas às
91
implicações sociais, econômicas, terapêuticas e culturais desta prática. Fortalecer esta noção
pode significar a busca pela autonomia do sujeito, no que se refere aos cuidados consigo
mesmo, com seu corpo. Mas, como ela mesma ressalta, é preciso compreender os argumentos
favoráveis e desfavoráveis à auto-medicação a partir de contextos específicos, já que estes
terão estatutos diferentes, conforme a origem cultural e religiosa dos indivíduos e grupos.
De acordo com Wynn e Foster (2012, p. 16), em 2010 já havia cento e cinquenta e
dois (152) países com produtos registrados para a CE, destes sessenta (60) já permitiam a
dispensação do produto via farmácias/drogarias sem prescrição médica. Havia mais de 100
marcas de CE disponíveis no mercado, sendo empreendidos esforços para identificar novos
componentes que podem ser usados na prevenção de gestação após o sexo. Abaixo apresento
uma figura, disponível na página online do ICEC, o qual retrata o mapa da disponibilidade da
CE no mundo.
Figura 1 Mapa da disponibilidade da contracepção de emergência no mundo:
Fonte: "Emergency Contraception: The Story of a Global Reproductive Health Technology, edited by Angel M.
Foster and L.L. Wynn". Disponível em: http://www.cecinfo.org/
Buscando compreender as linhas que organizam esse debate e seus focos de tensão,
apresento uma revisão crítica de literatura56, com o objetivo de discutir as políticas de acesso
à CE, notadamente por meio das farmácias, na literatura internacional e nacional.
56
Esta revisão foi ampliada até 2012, tendo sido publicada por Paiva e Brandão (2012), considerando o período
2005- 2009.
92
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Medline/Pubmed, Sociological Abstracts e
SciELO Brasil, considerando, de forma sistemática, o período de janeiro/2005 a julho/2012 57.
Os descritores utilizados foram: emergency contraception e pharmacy; incluindo-se também
anticoncepção de emergência para o contexto brasileiro. Além destas bases, consultei o
material produzido pelo ICEC, tanto artigos quanto documentos provenientes de conferências
e protocolos específicos. E ainda materiais oficiais brasileiros entre outros produzidos por
organizações favoráveis à ampliação do acesso à CE, especialmente da Rede Brasileira de
Promoção de Informações e Disponibilização da Contracepção de Emergência no Brasil
(RedeCE)58.
A partir dos resultados obtidos, apresento a discussão do material consultado sob duas
perspectivas analíticas: a) disponibilidade e barreiras à provisão da CE nas farmácias,
verificando a posição dos farmacêuticos no contexto internacional e nacional; b) posição das
usuárias/consumidoras da CE a respeito do método e seus locais de provisão no contexto
nacional e internacional.
5.1 DISPONIBILIDADE E BARREIRAS À CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA PELAS
FARMÁCIAS: POSIÇÃO DOS FARMACÊUTICOS
A literatura consultada sobre o acesso à CE via farmácias/drogarias, no contexto
internacional, enfatiza a discussão sobre as facilidades e dificuldades enfrentadas pelos/as
consumidores/as para adquirir a CE via farmácias, considerando-se diferentes cenários (rurais,
urbanos, cidades fronteiriças), abordando ainda as representações e práticas dos farmacêuticos
quanto à dispensa desse medicamento. A maior parte dos estudos encontrados foi proveniente
do Canadá, Reino Unido, Estados Unidos e França, todos relacionados ao contexto de
discussão sobre a liberação da venda da CE pelas farmácias.
Em relação a este aspecto, os Estados Unidos representam a maior parte dos estudos,
muitos descritivos e de base populacional, realizados em diferentes regiões do país. Essa
57
Ressalto que apesar da pesquisa sistemática ter se restringido a tal período, a inserção dos materiais variados
provenientes de outras fontes, como das organizações não governamentais e documentos oficiais não ficou
restrita a esse intervalo de tempo, o que possibilitou uma abordagem bastante condizente com a realidade política
mais atual.
58
Rede Brasileira de Promoção de Informações e Disponibilização da Contracepção de Emergência é uma
articulação de entidades de todo o país que troca suporte técnico, materiais e informações, visando garantir o
exercício dos Direitos Sexuais e Reprodutivos de brasileiras, através do acesso à contracepção de emergência
(único método de prevenção à gravidez que pode ser utilizado após o sexo), em consonância com políticas de
prevenção de DST/HIV/AIDS.
93
grande confluência de publicações, principalmente durante a primeira década deste século,
refere-se ao desenvolvimento do programa Pharmacy Access em alguns estados americanos, e
depois ao debate sobre a venda OTC (BIGBEE et al., 2007).
O programa Pharmacy Access possibilitou acesso direto à CE nas farmácias, com
treinamento específico para farmacêuticos, os quais passaram a trabalhar de acordo com
protocolos de acordo mútuo com os médicos. A legislação é original de 1979, permitindo ao
farmacêutico desenvolver acordos colaborativos com a categoria médica, possibilitando ao
primeiro o direito de prescrever certas drogas descritas no acordo, passando por revisão a cada
dois anos (SOON et al., 2005).
Em 2006, o FDA permitiu aos farmacêuticos vender o medicamento sem prescrição
médica para mulheres com idade igual ou superior a 18 anos. Essa decisão visou aumentar a
probabilidade de sua obtenção no tempo oportuno pelas mulheres, já que as farmácias são
mais numerosas e ficam abertas nos fins de semana e horários noturnos, ao contrário da maior
parte dos outros estabelecimentos de saúde. Mas, ainda assim, para obtê-lo as mulheres
necessitam encontrar um farmacêutico disposto a fazê-lo.
A literatura enfatiza que nem sempre as usuárias da CE conseguem adquiri-la por essa
via, já que os farmacêuticos podem optar por não vendê-la, com base na cláusula da ‘objeção
consciente’. De acordo com essa premissa, o farmacêutico, em alguns estados americanos,
está autorizado a negar a dispensa de qualquer medicamento, caso este colida com sua ética
pessoal (SHACTER et al., 2007).
Considerando este contexto, os estudos observam baixa disponibilidade desse
medicamento nas farmácias americanas e as razões mais alegadas pelos farmacêuticos são:
falta de demanda, de treinamento para aconselhamento em contracepção e preocupações
quanto ao impacto negativo do medicamento no organismo. Embora não represente a tônica
principal
dos
discursos
farmacêuticos,
houve
relatos
relacionados
às
objeções
morais/religiosas em dispensar o medicamento, principalmente para o público jovem
(SAMPSON et al., 2009; DAVIDSON et al., 2010; FRENCH, KAUNITZ, 2007; CHUANG,
SHANK, 2006; RIPER, HELLERSTEDT, 2005).
Como observam Chuang e Shank (2006), embora não tenham sido encontradas
diferenças significativas entre farmácias urbanas, rurais e de fronteira, as mulheres rurais
enfrentam barreiras relacionadas ao tempo em que as farmácias ficam abertas, sobretudo nos
94
fins de semana, e quanto à impossibilidade de anonimato. Essa característica é normalmente
considerada relevante para as usuárias da CE.
O estudo de Shacter e col. (2007) teve como objetivo determinar a disponibilidade da
CE nas farmácias das três maiores áreas metropolitanas dos Estados Unidos, incluindo-se
estados com diferentes políticas relacionadas à recusa dos farmacêuticos em dispensar o
contraceptivo. A hipótese dos autores, de que a política de Estado que permite aos
farmacêuticos se apoiar na cláusula da ‘objeção consciente’ está associada à baixa
disponibilidade da CE nas farmácias, foi confirmada. Demonstra-se a forte ligação entre
política adotada pelo Estado e disponibilidade da CE nas farmácias.
A investigação realizada por Sampson e col. (2009) contemplou entrevistas em
profundidade, revelando aspectos relativos à motivação do farmacêutico para dispensar a CE.
Enquanto alguns farmacêuticos têm preocupações quanto ao impacto negativo do uso do
método nas adolescentes, a preocupação mais frequente se relaciona à necessidade de mais
tempo para aconselhamento do público a respeito do método. Mas, de todo modo, observa-se
a discussão aberta pela cláusula da ‘objeção consciente’, que incita o debate sobre a ética
profissional versus ética pessoal/subjetiva.
Em 2009, o FDA aprovou a venda da contracepção de emergência Plan B® over-thecounter (OTC), para as mulheres de 17 anos ou mais velhas. Aprovou ainda a
comercialização da Plan B One-Step®, produto que consiste na mesma droga da anterior já
vendida, mas com apenas um comprimido. Tanto a Plan B® quanto a Plan B One-Step®
estavam disponíveis OTC para mulheres com 17 anos ou mais e somente com prescrição para
aquelas com 16 anos ou menos. Recentemente, em abril de 2013, foi liberada a venda da CE
OTC para mulheres de todas as idades, após anos de discussões e ações judiciais provenientes
de setores sociais diversos59.
Devemos considerar o grande peso do argumento sanitário, que vincula a ampliação
do acesso a este método anticoncepcional com a redução das taxas de gestações imprevistas e
abortos inseguros. Ressalta-se que o mesmo não é válido somente para os países em
desenvolvimento, mas também é prioridade nos países desenvolvidos. Além disso, destaco a
capacidade de organização social dos grupos defensores dos direitos sexuais e reprodutivos,
que nesse caso, se vinculam fortemente à perspectiva favorável à ampla disponibilização da
CE.
59
“EC OTC Status in the U.S. unclear”. Disponível em: http://www.cecinfo.org/. Acessado em: 10 de maio de
2013.
95
Um recente estudo, realizado no estado de Iowa, desenvolvido por Mackin e Clark
(2011), teve o objetivo de comparar a disponibilidade da CE como um medicamento “overthe-counter” em farmácias deste estado, antes e depois da aprovação do FDA para maiores de
16 anos. Observou-se, de modo geral, aumento da disponibilidade, mas ainda se manteve uma
flutuação quanto à presença desse medicamento nas farmácias. Outro estudo, realizado por
Legare e col. (2012), verificou a disponibilidade da CE em farmácias de dois bairros vizinhos
em Nova York, com diferentes cenários socioeconômicos e culturais. Não foram encontradas
diferenças significativas em termos de disponibilidade da CE OTC nos dois bairros.
Entretanto, os autores observam que fatores como custo e conhecimento/informação
constituem barreiras para as mulheres acessarem a CE. Para tanto, observam a necessidade de
investimentos públicos na redução dessas barreiras, que podem vir por subsídios e campanhas
educativas governamentais, além da ênfase destacada ao papel do farmacêutico.
Também Samson e col. (2012) realizaram uma investigação em regiões rurais e
urbanas de Kansas, visando comparar a disponibilidade da CE nas farmácias dessas regiões,
sendo consultados, no total, 186 estabelecimentos, 41% em áreas rurais e 59% urbanas. Os
resultados mostram que não houve diferenças significativas em termos de disponibilidade da
CE nas farmácias investigadas. Entretanto, as farmácias denominadas “de rede”, foram mais
propensas a ter o produto disponível no período de 24 horas, do que as farmácias ditas
“independentes”60. O custo da CE em ambos os locais girava em torno de $25.00–$60.00,
com uma média de $46.35.
As recomendações dos autores são úteis tanto para gestores das políticas públicas
quanto para as empresas farmacêuticas, apontando o direcionamento para o crescimento do
mercado. Os autores observam essencialmente a necessidade de treinamentos relativos à CE
para os profissionais do ramo farmacêutico, enfatizando as áreas rurais e farmácias
independentes, onde se observou frequência maior de restrições morais e religiosas quanto ao
uso da ‘pílula do dia seguinte’ (SAMSON, 2012).
Vale ressaltar, nesse caso, o estudo de Richman e col. (2012), com uma ampla amostra
de farmacêuticos do Estado da Flórida. O estudo observou os conhecimentos e atitudes dos
farmacêuticos a respeito da CE e sua influência sobre as práticas de dispensação deste
contraceptivo. Neste Estado é permitido ao farmacêutico objetar a venda de determinada
60
Tais expressões são utilizadas de forma corrente no mercado farmacêutico: Farmácias ‘de rede’: são aquelas
que funcionam como franquias, agregadas a determinadas ‘marcas’ já consolidadas no mercado; - Farmácias
‘independentes’: são aquelas que não estão vinculadas a nenhuma marca.
96
droga que colida com sua ética pessoal. Com uma amostra de 272 farmacêuticos, 56%
respondeu incorretamente que a CE pode causar danos ao feto, e 46% afirmou que poderia
causar aborto. Mais da metade dos sujeitos que responderam ao survey afirmou se sentir
desconfortável em dispensar a CE para adolescentes (61%) e para homens (58%). Aqueles
farmacêuticos que não viam a ‘pílula do dia seguinte’ como um abortivo estavam mais
propensos a dispensá-la. Novamente, postula-se a importância de preparar o profissional do
ramo farmacêutico para o aconselhamento sexual e reprodutivo, não somente os
farmacêuticos com curso superior, mas especialmente os técnicos (RICHMAN et. al., 2012).
Já o Estado canadense modificou, em 2005, a regulação da venda da
CE/levonorgestrel nas farmácias, que passou a ser viável com o farmacêutico e sem a
prescrição médica. Embora essa modificação elimine a necessidade de receita médica e
facilite o acesso, também nesse país podem existir barreiras ao estoque do medicamento nas
farmácias. Dois estudos selecionados, de base populacional, avaliam os efeitos da política de
disponibilização da CE nas farmácias sem prescrição médica. Ambos demonstram que a
provisão do método via farmácias ampliou o acesso, principalmente em áreas rurais, por conta
do tempo maior de atendimento destes estabelecimentos e do seu maior número em relação
aos serviços de planejamento familiar ou outros serviços (SOON et al., 2005; DUNN et al.,
2008).
Neste país, a discussão sobre a política de dispensação da CE gerou oposições entre
grupos de defesa da venda da contracepção behind-the-counter (BTC) e de defesa da
dispensação over-the-counter (OTC).
The focus is a political struggle between two advocacy groups and their claim
making over EC regulation. Both groups supported the deregulation of EC as a
physician-prescribed drug, but their alliance ended there. The advocates are defined
by their positions post-deregulation: behind-the-counter or over-the-counter. BTC
advocates campaigned for professional intervention from a pharmacist. OTC
advocates claimed the women should be free to access EC without intervention 61
(ERDMAN, 2012, p. 57).
Em 2008, o levonorgestrel para contracepção de emergência satisfez todos os critérios
sanitários desse país para se tornar um medicamento disponível OTC e foi movido para esta
categoria. Mas, ainda assim, Erdman (2012) afirma que as controvérsias foram mantidas,
61
Tradução nossa: “O foco é a luta política entre dois grupos de advocacy que se posiçionam quanto à
regulamentação da CE. Ambos apoiaram a desregulamentação da CE como um medicamento prescrito pelo
médico, mas suas alianças terminam ali. Os adversários são definidos por suas posições pós-desregulamentação:
behind-the-counter ou over-the-counter. Defensores BTC fazem campanha para a intervenção profissional de um
farmacêutico na venda da CE. Defensores OTC alegam que as mulheres devem ser livres para acessar CE sem a
intervenção de nenhum profissional” (ERDMAN, 2012, p. 57).
97
sendo que a venda de CE OTC não foi regulamentada em Quebec, que manteve o
contraceptivo sob prescrição e orientação do farmacêutico. Nesse sentido, a autora salienta
que a reforma regulatória da CE no Canadá pode ser compreendida como uma luta política
que mobilizou duas figuras chaves - a mulher e o farmacêutico, através de dois discursos
dominantes: acesso e autoridade, prevalecendo a disputa pela autoridade, seja da mulher ou do
farmacêutico.
No Reino Unido, a iniciativa de tornar disponível a contracepção de emergência por
meio das farmácias surgiu de um projeto da Estratégia Nacional para a Saúde Sexual e HIV,
cujo objetivo era reduzir em torno de 50% a gravidez em adolescentes (LLOYD, GALE,
2005). O apelo para a disponibilidade da CE nas farmácias cresceu principalmente a partir de
1999, com a presença de um projeto piloto que facilitou o acesso livre via o Patient Group
Direction (PGD). O protocolo PGD auxilia a tomada de decisão do farmacêutico e provê
autoridade legal para esse profissional dispensar o medicamento. Nesse caso, o medicamento
é adquirido sem custos para o usuário (BLACK et al., 2008). Hoje, a CE é um medicamento
largamente disponível nas farmácias comunitárias dessa região (AGOMO, 2012).
A partir de dezembro de 2000, criou-se também nessa região o mecanismo para
ampliar a disponibilidade da CE (levonelle- 2®) através das farmácias, por meio da venda
livre “fora do balcão” (OTC). Podem adquirir o medicamento por este meio as mulheres com
idade igual ou superior a 16 anos e, nesse caso, o consumidor precisa pagar pelo medicamento
(BLACK et al., 2008).
A investigação realizada por Lloyd e Gale (2005), com enfoque populacional,
verificou o aumento da provisão da CE por meio das farmácias em duas regiões rurais do
Reino Unido. A principal conclusão é que a provisão pelas farmácias aumentou a
possibilidade de escolha do usuário e o acesso ao medicamento, o que resultou em
crescimento global do fornecimento da CE nessas áreas.
O estudo de Bissell e col. (2006) analisou, a partir da perspectiva dos farmacêuticos, a
disponibilização da CE pelas farmácias, que prevê dispensação pelo farmacêutico. De modo
geral, os farmacêuticos entrevistados destacaram os benefícios para as mulheres,
relacionando-os a: preocupação das mulheres em evitar que seus médicos generalistas
soubessem do uso da CE; ampliação do acesso ao medicamento pela diminuição do tempo
necessário para obtê-lo; ausência de custos para mulheres que adquirem o medicamento via
PGD. Entretanto, os farmacêuticos também expressam certas reservas, pelo receio tanto de
98
ocorrer aumento do uso repetido do método e de DST, quanto aos possíveis impactos
negativos sobre o comportamento contraceptivo de rotina.
Já a pesquisa realizada por Cooper e col. (2008) mantém o foco nas questões práticas,
religiosas e éticas relacionadas à dispensa da CE pelos farmacêuticos. Foram identificados
três ‘tipos’ de farmacêuticos: os que não têm problemas éticos em dispensar a CE; aqueles
completamente opostos a seu provimento; e os que decidiram contingencialmente dispensar o
medicamento somente em algumas situações. Uma preocupação dessa pesquisa se refere à
confusão generalizada a respeito da terminologia apropriada e ação farmacológica da CE.
Muitos profissionais continuam usando o termo ‘pílula do dia seguinte’, que pode causar
equívocos. Novamente, surge a ideia de que a provisão via farmácias poderia levar ao uso
frequente e ao aumento de DST (COOPER et al., 2008).
Glasier e col. (2010), ao analisarem a qualidade dos serviços de farmácia em relação
ao fornecimento de CE na Escócia, afirmam que pelo fato das farmácias serem
estabelecimentos comerciais, os farmacêuticos por vezes priorizam as atividades de venda em
detrimento das orientações e conselhos sobre a CE. Mas, de uma maneira geral, a investigação
revela que os farmacêuticos fornecem um bom serviço quando dispensam a CE. Resultados
semelhantes foram encontrados por Weiss e col. (2010), na região sul da Inglaterra, pois os
autores consideram que a qualidade do serviço oferecido nas farmácias é boa e os
farmacêuticos comprovaram um nível razoável de habilidades nas consultas.
Furedi (2012, p. 136) ressalta que os profissionais no campo da sexualidade e direitos
reprodutivos, na Grã-Bretanha, têm se colocado diante de um dilema. Ao mesmo tempo em
que eles são favoráveis ao uso da CE, eles temem mudanças no comportamento sexual das
mulheres e casais, no sentido de aumento das relações sexuais desprotegidas e sem
planejamento, negligenciando o uso de métodos de rotina. Essa discussão traz à tona o debate
que coloca em lados opostos aqueles que defendem maior controle sobre as vivências sexuais,
reprodutivas e contraceptivas das mulheres e casais e aqueles que pleiteiam a ampliação da
autonomia sexual feminina, afinando-se ao debate internacional sobre os direitos sexuais e
reprodutivos.
A França destaca-se como o primeiro país desenvolvido a permitir a dispensa da CE
pelas farmácias, em junho de 1999. Apesar de determinados movimentos enfatizarem o receio
quanto ao aumento do comportamento sexual “irresponsável”, o governo francês introduziu,
em 2000, um novo projeto de lei, a ser debatido no Parlamento, intitulado: "Contracepção de
emergência: por uma abordagem responsável em favor de mulheres e meninas". Aproveitando
99
o debate da mídia e da opinião pública, a Assembleia Nacional, maioria de esquerda, aprovou
a Lei da CE em Dezembro de 2000. A lei promulgada trouxe três decisões regulatórias: o
status livre de prescrição médica da CE/levonorgestrel; a distribuição gratuita de CE para
menores em farmácias, e a distribuição de CE por enfermeiras escolares.
A partir de 2002, o Decreto 2.002-39 permitiu aos menores de 18 anos obterem a
contracepção de emergência gratuitamente nas farmácias. Pesquisa realizada por Delotte e
col. (2008), na região de Nice, na França, avaliou a aplicação desse Decreto, por meio da
seleção aleatória de 53 farmácias. Pouco mais da metade das farmácias entregou a medicação
gratuitamente. Além disso, na maior parte das farmácias visitadas, não houve possibilidade de
conversa reservada com as jovens, indicando desconforto maior para essa faixa etária adquirir
o medicamento. Menos da metade dos farmacêuticos ofereceu aos clientes explicações sobre
uso e efeitos secundários da CE.
Além disso, nenhuma farmácia cedeu informação a respeito da contracepção regular,
sobre prevenção das infecções sexualmente transmissíveis, nem comunicou aos menores as
coordenadas dos serviços de planejamento familiar. Essa questão pode estar relacionada à
ausência de local privado para atendimento, impossibilitando uma conversa sobre sexualidade
e contracepção (DELOTTE et al., 2008).
De acordo com Moreau e Gainer (2012), a experiência francesa tem gerado dados
consideráveis sobre os efeitos populacionais do acesso à CE sem prescrição, em particular
graças aos estudos longitudinais e transversais conduzidos em paralelo com a introdução e
propagação da CE. Mas, estes estudos revelam que apesar do crescimento do uso deste
contraceptivo, este ainda se mantém subutilizado neste país. Salienta-se a necessidade dos
profissionais de todos os níveis do sistema de saúde - desde farmacêuticos aos enfermeiros,
médicos generalistas, ginecologistas, discutirem abertamente com seus clientes sobre as
indicações de uso do contraceptivo pós-coito, visando produzir resultados em termos de saúde
pública, ou seja, de redução das taxas de gravidez imprevista e aborto.
A Austrália também conseguiu avanços no acesso à CE via farmácias, pois, desde
2002, o comprimido para esse fim é encontrado sob prescrição nas farmácias e, a partir de
2004, sem prescrição, podendo ser requerido aos farmacêuticos. Esse medicamento está
disponível nas clínicas de planejamento familiar (MOHORIC-STATE, COSTA, 2009). Um
dos pontos destacados como barreira para a ampliação do uso da CE na Austrália é o seu
custo, devido ao fato de não ser um medicamento subsidiado pelo Estado.
100
Estudos realizados por Hussainy e col. (2011) e Queddeng e col. (2011) nesse país,
buscaram informações significativas sobre a efetividade da implementação da política
farmacêutica para CE. Hussainy e col. (2011) coletaram informações em 750
estabelecimentos, com questionários direcionados aos proprietários das farmácias e aos
farmacêuticos empregados. A maioria dos farmacêuticos alegou que, ocasionalmente, não
dispensava a CE, quando o pedido não vinha de quem iria consumir o medicamento ou
quando havia preocupação com a idade da pessoa, ou ainda quando a relação sexual
desprotegida tivesse ocorrido há mais de 72 horas.
A questão moral apareceu nas narrativas desses farmacêuticos pela ênfase na idade das
consumidoras, o que revela o receio ou preocupação com a sexualidade das jovens como um
fator relevante na decisão do farmacêutico em dispensar ou não o medicamento, porém
questões como: provisão antecipada, a responsabilidade do uso de CE e o impacto na saúde
reprodutiva mostraram-se também significativas nas decisões dos farmacêuticos (HUSSAINY
et al., 2011).
Queddeng e col. (2011) avaliam o serviço de farmácia na dispensação de CE, através
da metodologia da compradora secreta62. Foram avaliadas 100 farmácias e, em geral,
percebeu-se que apesar do sexo do farmacêutico não influenciar na qualidade da informação,
as mulheres se mostraram mais empáticas, fazendo com que o paciente se sentisse mais
confortável. Apesar de os farmacêuticos não seguirem o protocolo, os autores consideram que
os aconselhamentos sobre segurança e eficácia do contraceptivo foram satisfatórios.
Calabretto (2012, p. 218) observa que a discussão sobre a ampliação do acesso à CE
via farmácias na Austrália passou também por uma disputa corporativa entre as entidades
médicas e farmacêuticas. Como exemplo, cita o posicionamento da Sociedade Médica
Australiana (AMA), que expressa preocupações quanto à adequação do aconselhamento
realizado pelo farmacêutico, em defesa do direito exclusivo de prescrição do médico. Do
mesmo lado, posicionam-se as forças religiosas (Family First; the Festival of light; Coalition
for defense of human life), que classificam a CE na categoria de medicamento abortivo e com
potencial para ampliação do sexo desprotegido e de “risco”. A força desse movimento, com
suas nuances mais controlistas do que autonomistas, é um dos fatores que dificultam a
liberação da venda OTC neste país.
62
Nesta metodologia, a ‘compradora secreta’ não se apresenta como pesquisadora nas farmácias, mas como
possível consumidora do medicamento. As ‘falsas consumidoras’ apresentam diferentes características físicas e
idades, chegam às farmácias e utilizam settings diversificados de perguntas para os farmacêuticos/balconistas,
visando avaliar o serviço oferecido.
101
Na América Central, destaco um estudo desenvolvido na Nicarágua, por Erlhe e
Sarker (2011), onde a CE é disponível nas farmácias com receita médica, por sua
aproximação com o caso brasileiro. Os autores visaram identificar barreiras de acesso à CE
pelas mulheres da capital Managua, a partir dos conhecimentos e atitudes dos profissionais do
ramo farmacêutico.
Tal estudo revelou que a maior fonte de informação sobre CE para os profissionais do
ramo é a indústria farmacêutica, poucos receberam informações do Ministério da Saúde.
Nenhum estava ciente de que a pílula podia ser tomada após 5 dias do sexo desprotegido e 5%
achava que a pílula poderia induzir ao aborto. Além disso, aproximadamente a metade
acreditava que a CE é 100% efetiva e 25% que a CE é um método contraceptivo de uso
contínuo (ERLHE, SARKER, 2011).
A maioria dos participantes afirmou que o uso da CE encoraja o “sexo de risco”,
aumenta transmissão de HIV e DST, desencoraja o uso de métodos contraceptivos contínuos e
aumenta o uso desse método ou seu uso repetido. Entretanto, 68% acredita que a CE é
necessária para reduzir gravidez imprevista, mas supõe que deve ser vendida sob prescrição
médica, apesar de não ser essa a realidade (ERLHE, SARKER, 2011).
Nos países latino-americanos, apesar de não se encontrar, no período pesquisado,
estudos que avaliem diretamente a disponibilidade do medicamento nas farmácias, as
investigações que consideram os farmacêuticos destacam suas reservas com relação à
dispensa pelas farmácias, as quais estão relacionadas às mesmas razões alegadas pelos
provedores de outros países, em diferentes graus dependendo das influências religiosas
(PECHENY, TAMBURRINO, 2009; DÍAZ et al., 2003; BASTOS et al., 2009).
É importante considerar que a América Latina possui um cenário marcado pela força
estratégica dos grupos políticos e afiliados à Igreja Católica e outras religiões como fortes
oponentes à expansão do acesso à CE. Devido às objeções destes setores, comumente ocorrem
dificuldades no cumprimento da legislação e distribuição deste contraceptivo nos serviços
públicos de saúde e farmácias (SOUZA, BRANDÃO, 2009; BERGALLO, 2010, FAÚNDES
et al., 2007).
A estratégia política utilizada nos países europeus e América do Norte – que inclui a
farmácia como local privilegiado para o acesso à CE e permite sua dispensação sem receita
médica, com aconselhamento sexual e reprodutivo do farmacêutico – encontra-se distante do
que temos hoje no Brasil, talvez até mais do que a dispensação OTC. Recentemente,
102
conforme salientado antes, no contexto da Rede Cegonha, o Ministério da Saúde lançou o
protocolo para utilização do levonorgestrel (BRASIL, 2012), o qual autoriza a dispensação da
CE nos serviços públicos de saúde, de atenção básica, sem receita médica e sob orientação da
enfermagem. Mas, ainda assim negligenciamos uma política que defina mais claramente a
participação complementar das drogarias, com seus farmacêuticos e balconistas nesta
dispensação.
Estudo inédito em drogarias, realizado por Bastos e colaboradores (2009), no contexto
de um projeto de intervenção educativa voltado à prevenção de DST/Aids, com profissionais
desse ramo na área metropolitana de São Paulo, demonstrou o desconhecimento destes sobre
a CE. Os autores assinalam a necessidade de incorporação de estratégias educativas nas
farmácias, focando na prevenção de gravidez e DST/Aids, por meio da proposição de
‘condutas eficazes’ de saúde para a população.
Por fim, a literatura consultada argumenta que os farmacêuticos estão em uma posição
estratégica no que se refere à ampliação do acesso a CE. Há evidências de que nem o acesso
pelas farmácias, nem a provisão antecipada do anticonceptivo comprometem o
comportamento contraceptivo ou sexual, o que sugere equívoco nas afirmativas de grande
parte dos farmacêuticos em várias regiões do globo63 (AGOMO, 2012; HABEL e
LEICHLITER, 2012; MOREAU, TRUSSELL, GLASIER, 2012).
Entretanto, algumas evidências recentes e crescentes de que o acesso à CE via
farmácias não contribuiu até agora para diminuir as taxas de aborto em alguns países têm
deixado o debate mais acirrado, gerando a relativização do argumento sanitário e enfatizando
o discurso em prol da ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos (BISSELL et al., 2006;
RAINE et al., 2005; ROS et al., 2009).
5.2 CONHECIMENTOS, REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DAS USUÁRIAS EM
RELAÇÃO À CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA E OS LOCAIS DE PROVISÃO
Os estudos analisados apontam para a ampliação do uso da CE entre mulheres de
várias regiões do mundo no decorrer da primeira década do século XX, e a relacionam com as
políticas que permitem sua disponibilização nas farmácias/drogarias, seja fora ou dentro do
balcão.
63
Em anexo 1 apresento tabelas com dados sobre o uso e uso repetido da CE em algumas regiões do globo.
Material proveniente do ICEC. Vide: http://www.cecinfo.org/
103
Entretanto, inúmeras investigações também evidenciam que a falta de conhecimento
sobre a CE e seu modo de funcionamento no organismo entre suas possíveis usuárias, e locais
onde se pode adquiri-la se mantêm como barreiras de acesso ao medicamento dentro do prazo
de 120 horas. A respeito do conhecimento, o método é muitas vezes confundido com um
medicamento abortivo e perigoso, que pode causar danos à saúde das mulheres e aos futuros
fetos (FOSTER et al., 2006; BALDWIN et al., 2008; ROCCA, 2007; SHOVELLER et al.
2007; GOULARD et al., 2006; MOHORIC-STATE, COSTA, 2009; PECHENY e
TAMBURRINO, 2009; FIGUEIREDO et al., 2008; DIAZ et al., 2003; COSTA et al., 2008;
SOUZA, BRANDÃO, 2009; ARAÚJO, COSTA, 2009; ROS et al., 2009; HOBBS et al.,
2011; ALANO et al., 2012).
Além desses equívocos, observações moralizantes – baseadas em pareceres negativos
sobre vivências sexuais e reprodutivas das mulheres que recorrem ao uso da CE – são
verificadas em várias pesquisas. Tais concepções expressam contradições relevantes, já que as
próprias usuárias do contraceptivo apresentam receios quanto ao uso, considerando que pode
induzir ao “comportamento sexual de risco”. Tais mulheres operam distinções entre as
usuárias, podendo haver aquela que faz o uso legítimo e aquela que não é legitimada, por
questões de ordem moral. Observa-se aqui uma gradação moral que classifica as usuárias da
CE (SHOVELLER et al., 2007; WILLIAMSON et al., 2009; MOHORIC-STATE, COSTA,
2009; PECHENY, TAMBURRINO, 2009).
Nesse sentido, várias pesquisas salientam que as mulheres relatam sentirem-se mais
culpadas quanto ao uso da CE quando há esquecimento do método regular (pílula) e não uso
do preservativo. Ao contrário, caso ocorra o rompimento da camisinha, elas se culpam e se
envergonham menos. Algumas mulheres confessam preferir ocultar do profissional quando
deixam de utilizar camisinha, algumas vezes preferem relatar que a camisinha ‘estourou’ do
que assumir o não uso de método (SHOVELLER et al., 2007; WILLIAMSON et al., 2009;
PECHENY, TAMBURRINO, 2009).
O grau de vergonha e culpa, principalmente das jovens, é ampliado quando o provedor
médico ou farmacêutico conhece a consumidora. Questão mais crítica para pessoas que vivem
em regiões rurais, onde muitas vezes só há um serviço de saúde disponível e uma farmácia,
sendo os provedores, em sua maioria, conhecidos das mulheres que necessitam da CE
(MOHORIC-STATE, COSTA, 2009; PECHENY, TAMBURRINO, 2009).
Em investigação para conhecer os mecanismos que acionam a vergonha em um grupo
de 30 mulheres jovens (13-19 anos) inglesas que adquiriram a CE, após falha no uso do
104
contraceptivo ou sexo desprotegido, Fallon (2012) explica que a CE invoca julgamentos e
sentimentos antecipados de vergonha que as faz sentir ‘fora do lugar’, mesmo em ambientes
jovens. Isso resulta em dificuldades para buscar o serviço necessário, chegando algumas vezes
a não buscá-lo, para evitar tal sentimento.
A procura por este método está associada à divulgação antecipada da atividade sexual,
que traz sentimentos de vergonha, relacionados aos julgamentos de pais, profissionais de
saúde e pares. Tais julgamentos são baseados em percepções relativas à idade, ao status do
relacionamento ou uso repetido - ser muito jovem, usar CE cedo ou usar frequentemente.
Fallon (2012, p. 320) comenta que a contracepção de emergência pode ser considerada
um catalisador interessante para discussões sobre a vergonha, já que é tão ligada aos discursos
sobre “risco” e “irresponsabilidade”, que inevitavelmente chamam a atenção para o sexo
desprotegido, como um comportamento “irresponsável”, ao invés de reconhecer o acesso à
‘pílula do dia seguinte’ como uma ação de saúde responsável.
Segundo Fallon (2012, p. 320), um dos mais importantes aspectos desta experiência é
que o privado se torna público, revelando uma atividade até então íntima, e tornando
particularmente visível o “risco sexual”. As narrativas das mulheres jovens deste estudo
demonstraram o contrário do que é retratado pela mídia popular - de que as jovens sentem-se
“sem vergonha”. O momento que antecede a busca pelo método é caracterizado por intensa
vergonha e ansiedade que levam as jovens a evitarem comunicação com pais ou profissionais
nos serviços, ou mesmo algumas vezes no contexto das relações de amizade (FALLON,
2012).
A vergonha trouxe a estas mulheres a sensação de estar “fora do lugar” nos serviços
como farmácias e clínicas de planejamento familiar e outros serviços públicos de saúde, o que
permitia o uso de estratégias como comprar cada hora em um local ou mentir para os
profissionais para reduzir o potencial de vergonha no momento da interação. A autora inverte
a relação, enfatizando a necessidade de problematizarmos a vergonha, argumentando que a
busca pela CE deve ser vista como um esforço racional de proteção de uma reputação social
frágil64.
Em pesquisa realizada na Escócia, Williamson e col. (2009) exploram as percepções
de mulheres jovens sobre o uso de CE e suas experiências com sexo desprotegido, discutindo
as razões pelas quais o acesso à CE pode não ter sido suficiente para reduzir as taxas de
gestações imprevistas e abortos inseguros nessa região. O estudo evidencia que é mais comum
64
Voltaremos a esse aspecto no capítulo 8.
105
o uso da CE após falha no contraceptivo do que após experiência de sexo desprotegido,
podendo significar bias de conveniência social nas respostas das mulheres jovens. Embora
não possamos generalizar, os seus resultados lançam luzes para futuras investigações que
busquem explicação sobre por que o crescimento da provisão da CE em diferentes locais de
acesso tem falhado em reduzir as taxas de aborto e gravidez não planejada em alguns países.
Os autores percebem que, em algumas situações, as mulheres optam por se arriscar, por
acreditarem que não estão no período fértil ou por informação equivocada de que o
contraceptivo só pode ser utilizado até 24 horas após o coito (morning after pill).
Em relação a esse aspecto, pesquisa realizada por Keogh (2005), na Austrália, buscou
compreender, mediante entrevistas em profundidade, a situação que levou ao uso do
contraceptivo de emergência, a decisão e experiência de usá-lo e o uso dos contraceptivos de
rotina. Tornou-se claro, a partir das entrevistas, que o uso da CE envolve mais do que simples
falha no contraceptivo, pois implica uma série de decisões inter-relacionadas e com diferentes
significados. O estudo define tipos de usuárias da CE, englobando desde as que têm alto
controle sobre sua saúde sexual e reprodutiva até as que têm controle mais ‘frouxo’ por
inúmeras razões pessoais, relacionais e sociais.
Sobre as preferências de locais de acesso à CE, as investigações comparam os cenários
das clínicas de planejamento familiar, clínicas gerais e farmácias. Alguns países, por
desenvolver a política de provisão antecipada da CE, também comparam padrões de uso,
diferenciam o acesso à CE antes e após a relação sexual (LEWINGTON, MARSHALL, 2006;
SESTON et al., 2007; BLACK et al., 2008; MOREAU et al., 2006a; GOULARD et al., 2006;
FIGUEIREDO et al., 2008; KAVANAUGH et al., 2011).
De modo geral, as farmácias representam alternativa fundamental para as usuárias, já
que podem permanecer abertas por mais tempo e por facilitar o acesso ao medicamento
comparando com outros locais. Contudo, em relação às preferências, predominam as clínicas
de planejamento familiar, dada a possibilidade de privacidade, de conversa mais extensa com
o profissional sobre contracepção e pela obtenção de informações sobre a CE (LEWINGTON,
MARSHALL, 2006; BLACK et al., 2008; ROCCA et al., 2007; HOBBS et al., 2011;
CAMERON et al., 2011; ALANO, et al., 2012).
O estudo realizado por Seston e col. (2007), na Inglaterra, objetivou identificar quais
atributos dos serviços as mulheres consideram importantes. Foram avaliados os seguintes:
tempo diário de funcionamento; consulta médica; custo do serviço, tempo de espera;
privacidade na consulta; atitudes do profissional (SESTON et al., 2007).
106
Os resultados demonstram que os principais fatores considerados pelas mulheres para
escolha dos serviços são as atitudes dos profissionais, privacidade na consulta e orientação
recebida de um médico ou enfermeira, mantendo o farmacêutico em segundo plano. Outro
dado interessante refere-se às evidências de que, se as mulheres não se sentem satisfeitas com
alguns aspectos do serviço procurado, elas preferem não utilizá-lo, mesmo correndo risco de
engravidar. Além disso, a manutenção da privacidade é importante para elas, principalmente
as mais jovens. O custo também é identificado como barreira para acessarem a CE via
farmácias (SESTON et al., 2007).
Com relação ao contexto francês, a pesquisa de Moreau e col. (2006) evidencia que a
introdução da CE como produto disponível, sem prescrição, tem resultado em significativo
crescimento de seu uso nos últimos cinco anos, especialmente entre mulheres mais jovens de
25 anos. Em 2004, a maioria das mulheres (85%) obteve a CE diretamente nas farmácias.
Quanto à realidade latino-americana e de países africanos, os locais de provisão do
método são registrados como grandes obstáculos, pelo simples fato de não haver muitas
alternativas além da farmácia para o consumidor. Desde o início dos anos 2000, a
CE/levonorgestrel está disponível no mercado de parte de países africanos e da América
Latina. O objetivo expresso pelo setor público nestes países relaciona-se à necessidade de
reduzir as ‘altas’ taxas de gestação imprevista e adolescente, e a mortalidade associada à
prática de aborto inseguro (KEESBURY et al., 2011; TEIXEIRA et al., 2012; PAIVA,
BRANDÃO, 2012).
Keesbury e col. (2011) avaliam a experiência do Quênia com a CE, visando
determinar o impacto do fácil acesso à CE através das farmácias privadas neste contexto.
Além disso, o estudo examina questões sobre o uso repetido do método, já que as
consumidoras obtêm o método quase exclusivamente nas farmácias. Identificou-se que mais
da metade das mulheres entrevistadas faziam uso repetido da CE, destacando-se como
principal causa a não utilização de um método regular de planejamento reprodutivo. A maior
parte das mulheres que utilizou CE repetidamente acredita que o medicamento possui 100%
de efetividade, embora este não tenha sido um dado estatisticamente significativo. O estudo
sugere que sejam feitas campanhas educativas no contexto das farmácias, para uma melhor
informação sobre métodos de planejamento reprodutivo (KEESBURY et al., 2011).
A investigação de Teixeira e col. (2012), na África do Sul, que entrevistou 149
mulheres e 77 homens, com idades entre 18 e 40 anos, variando o status social, marital e
profissional, residentes em três cidades, utilizou a hipótese de que as representações e usos do
107
método estão fundamentados na interseção de duas dimensões: 1) a norma farmacêutica
proveniente do ‘norte’; 2) percepções locais sobre o tempo para a concepção.
Observou-se que a CE foi percebida pelos sujeitos como um tratamento médico do
‘norte’, que encoraja a ampliação da liberdade sexual entre as mulheres. Muitos entrevistados,
tanto homens quanto mulheres, acreditam que a CE é um produto químico que pode causar
esterilidade, e há sérios questionamentos sobre seu suposto caráter abortivo.
Na acepção dos autores:
The social representations of EC seem to reveal the strength of the social control
over women’s sexuality. As we have seen, these representations are gendered in two
ways. First, males were more likely to report opinions concerning the risk of
women’s sexuality becoming unbridled, while women more often referred to the
issue of health side effects and especially the risk of sterility. Second, these opinions
almost systematically refer to women’s sexuality becoming out of control but refer
very rarely to men’s sexual life. The same kinds of arguments were heard in the past
about the diffusion of the hormonal pill65 (TEIXEIRA et al., 2012, p. 154).
Tais colocações são relevantes, pois apresentam aspectos fundamentais do processo de
controle da sexualidade feminina que se reatualizam com a ‘pílula do dia seguinte’, a partir
das inter-relações na história da pílula hormonal de uso contínuo e da CE, como visto nos
capítulos anteriores. Observa-se a importância de se considerar os homens nas investigações
sobre conhecimentos e usos da contracepção de emergência.
Os resultados destes estudos evidenciam que apesar das mulheres estarem mais
informadas sobre a existência da contracepção de emergência e formas de uso, estão ainda
pouco cientes dos mecanismos de funcionamento do contraceptivo no organismo,
confundindo-o com medicamentos de efeitos abortivos. De modo geral, as farmácias são os
locais mais procurados, em alguns contextos com orientação do farmacêutico, em outros sem
orientação alguma, sendo disponibilizada over-the-counter.
EM SÍNTESE...
Quanto à disponibilidade da CE nas farmácias/drogarias, a maior parte dos estudos
apresenta discussões relacionadas ao contexto de liberação da venda da CE nestes
65
Tradução nossa: “Finalmente, as representações sociais sobre a CE parecem revelar a força do controle social
sobre a sexualidade das mulheres. Como vimos, essas representações são engendradas de duas maneiras.
Primeiro, os homens parecem mais propensos a relatar sobre o risco da sexualidade feminina ‘desenfreada’,
enquanto as mulheres mais frequentemente referem os efeitos colaterais da pílula sobre a saúde e, especialmente,
o risco de esterilidade. Em segundo lugar, essas opiniões se referem quase sistematicamente à sexualidade das
mulheres que se tornariam fora do controle, mas referem-se muito raramente à vida sexual dos homens. Os
mesmos tipos de argumentos foram ouvidos no passado sobre a difusão da pílula hormonal” (Teixeira et al.,
2012, p. 154).
108
estabelecimentos, sem prescrição, com ou sem orientação do farmacêutico. Os resultados
destas investigações revelam que as mulheres preferem buscar o contraceptivo na farmácia ao
invés de procurarem médicos comunitários ou de família, clínicas de planejamento familiar,
especialmente pela possibilidade de maior sigilo e agilidade no atendimento.
De um modo geral, a principal característica positiva das farmácias apontada pelas
mulheres foi o menor tempo para adquirir o medicamento. Entretanto, no que diz respeito ao
nível de conforto e possibilidade de conversar sobre temas relativos à sexualidade,
contracepção e reprodução, as mulheres preferem as clínicas de planejamento familiar e
clínicas gerais.
Os estudos analisados evidenciam que a adoção, pelos países da Europa, América do
Norte e Austrália, de uma política pública favorável ao acesso à CE pelas farmácias, seja
através dos protocolos estabelecidos entre farmacêuticos e médicos ou pela liberação da
venda sem prescrição (behind-the-counter ou over-the-counter), possuem, de modo geral,
dimensões distintas implicadas na avaliação de farmacêuticos e de usuárias.
Os pesquisadores destacam como aspectos positivos a possibilidade de adquirir o
contraceptivo de forma mais ágil e privada do que se a mulher tivesse que conseguir a receita
médica diretamente nos serviços públicos, além de sua distribuição gratuita, em alguns casos.
Os negativos se referem às objeções morais, que relacionam equivocadamente a CE com
outros medicamentos para fins abortivos e sua vinculação com o “medo do descontrole sexual
das jovens”, com consequente aumento da “promiscuidade sexual” e das DST/Aids, dimensão
recorrente no debate sobre a CE.
Numerosos desafios se mantêm, incluindo preocupações sobre privacidade, custos e,
em alguns locais, as dificuldades relacionam-se à necessidade de ampliação do número de
farmácias que mantenham a CE em estoque e farmacêuticos dispostos a dispensá-la. Esse
aspecto está claramente relacionado ao ponto de vista dos farmacêuticos, que apesar de não
citarem muito claramente as ressalvas morais e éticas quanto à venda da CE, estão envolvidos
em narrativas negativas quanto à experiência sexual das jovens e suas respectivas estratégias
de controle reprodutivo.
Considerando-se o conhecimento dos farmacêuticos a respeito do método e seu
funcionamento no organismo, as pesquisas demonstram que ainda há uma taxa razoável de
desinformação entre estes profissionais. Eles, em geral, utilizam os argumentos da saúde
pública, revelando que se preocupam com as taxas de gravidez imprevista e aborto,
109
especialmente entre jovens, mas apresentam receios quanto ao uso repetido e aumento da
incidência de DST/Aids. Aqui o discurso epidemiológico parece ocultar a face moral do
debate.
Presentes em todos os países pesquisados estão o desconhecimento das usuárias sobre
o funcionamento da CE e a confusão desse medicamento com os utilizados, em geral, para
fins abortivos. Além disso, aparece a noção de que este contém uma “alta dosagem
hormonal”, sendo “perigoso” para a saúde das mulheres e dos futuros fetos.
Alguns estudos apontam que a CE é um método que as mulheres consideram que deve
ser mantido em segredo, pois elas sentem embaraço, vergonha e culpa pelo seu uso. As
pesquisas também demonstram que as mulheres utilizam estratégias para driblarem a
vergonha e culpa sentidas, apesar da maior facilidade em se manter o anonimato no contexto
farmacêutico. No estudo de Fallon (2012) ficou claro que as participantes sentiram vergonha,
por se sentirem como ‘outsiders’ culturais no mundo dos serviços de saúde sexual, já que é
tacitamente explicado que elas não deveriam precisar usar tal método. É interessante observar
que as próprias jovens, às vezes, fazem julgamentos negativos sobre seus pares, perpetuando
o argumento do ‘uso legítimo x ilegítimo’. Na investigação de Fallon (2012), algumas
entrevistadas apresentaram o argumento de defesa de seu próprio uso, dito legítimo, ao
mesmo tempo em que julgavam o comportamento de outras usuárias.
Finalmente, apesar de privilegiarmos na escolha das bases de dados critérios como
amplitude, abrangência e diversificação dos métodos de investigação, ainda assim prevaleceu
o olhar mais afinado à perspectiva epidemiológica e de saúde pública, relegando a um
segundo plano a perspectiva sociológica. As pesquisas realizadas nas bases Sociological
Abstracts e Scielo não nos renderam muitos resultados, ao contrário da base Medline/Pubmed
que apresentou uma grande confluência de investigações. Esse aspecto nos leva a duas
considerações,
em
primeiro
lugar,
a
necessidade
de
ampliação
das
pesquisas
socioantropológicas sobre esta temática, e em segundo lugar, da importância de
considerarmos outras bases mais abrangentes no contexto internacional, que extrapole o
contexto das pesquisas do campo da saúde especificamente. A base Scopus pode ser uma
opção interessante, no caso de ampliar a abrangência de estudos específicos das ciências
sociais e humanas.
110
6 A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA ANTROPOLÓGICA EM DROGARIA NO RIO
DE JANEIRO: REFLEXÕES METODOLÓGICAS E ÉTICAS
Neste capítulo, trato das dimensões metodológicas e éticas envolvidas nesta
investigação etnográfica, realizada em drogaria da zona norte do município do Rio de Janeiro,
na zona da Leopoldina, durante o período de janeiro de 2011 a dezembro de 2012.
Vivenciei inúmeros desafios, que implicaram em modificações de objetivos da
pesquisa e em ganhos de aprofundamento do olhar sobre tais instituições. De fato, o processo
de abertura do campo foi permeado por injunções referentes ao jogo de forças prevalente no
seio das drogarias, comprometidas com competições, em diferentes graus, para sua
sobrevivência no mercado. Após passarmos aproximadamente um ano em negociações
(2010), em janeiro de 2011, iniciei o período exploratório da pesquisa66.
Para fins didáticos, é possível dividir o período de campo em três etapas:
1- Período de campo exploratório: realizado no 1º semestre de 2011 (janeiro a julho) para percepção da viabilidade da investigação, realização dos primeiros contatos e
preparação dos instrumentos, com observação em dias da semana diversificados,
desde quinta-feira até domingo. Esse momento também foi útil para a identificação
dos melhores dias e horários para observação, uma vez que meu interesse estava
voltado para um medicamento específico de uso emergencial.
2- Período de observação sistemática/realização de entrevistas: agosto 2011 a março de
2012, com visitas semanais ao campo, aos domingos e segundas-feiras, pelo fato
destes terem se configurado como dias de maior venda da CE. Além disso, foram
realizadas entrevistas com 12 balconistas e a farmacêutica diurna, mediante roteiro
semi-estruturado67 e contatos informais com os/as consumidores/as do contraceptivo.
Buscou-se abordar nas entrevistas com os funcionários da drogaria o perfil
sociodemográfico; atitudes e conhecimentos sobre a CE e locais de acesso; fontes de
informações; abordagens e interações com os consumidores; e representações sobre os
consumidores do método.
66
Sobre os desafios metodológicos e éticos desta investigação, ver: PAIVA, SP, BRANDÃO, ER. Etnografia
sobre a comercialização da contracepção de emergência em drogaria do município do Rio de Janeiro: aspectos
metodológicos e éticos. Saúde e Sociedade, no prelo.
67
Vide anexo 2.
111
3- Período para complementação dos dados após a qualificação do projeto de tese: junho
a dezembro de 2012. Após a qualificação do projeto de tese, optamos por permanecer
na drogaria na região da Leopoldina, visando adensar o material etnográfico, com foco
sobre as práticas e interações ocorridas durante a venda da CE e outros métodos
relativos às vivências sexuais e reprodutivas.
Inicialmente, neste capítulo, percorro os caminhos para obtenção da aprovação da
pesquisa pelos proprietários das drogarias, e, em seguida, pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP), de acordo com as determinações constantes na resolução vigente à época 196/1996
(BRASIL, 1996).
Considerando que uma das principais características da pesquisa etnográfica é a
integração do observador no campo, o terceiro elemento trabalhado neste capítulo refere-se à
relação estabelecida entre pesquisadora e sujeitos pesquisados, orientada inicialmente pela
tarefa de construção do vínculo, elemento fundamental para a pesquisa qualitativa. Apoiandome na noção de reflexividade em Bourdieu (1989), problematizo as identidades e diferenças
estabelecidas entre pesquisadora e seus sujeitos de investigação, buscando reconstruir e
revelar as características e o formato das relações estabelecidas em campo, as quais foram
determinantes para o desenvolvimento da pesquisa.
Por fim, algumas considerações sobre o relacionamento estabelecido em campo entre a
pesquisadora e as/os consumidoras/es da contracepção de emergência, focando nos desafios e
adaptações ocorridos durante o processo de investigação e seus rebatimentos nos resultados
finais alcançados. Pretende-se evidenciar no decorrer do capítulo a complexidade do trabalho
de campo, percebido como experiência prática (MAGNANI, 2009), exibindo a inadequação
das normas e regras como determinantes da ética e, ao mesmo tempo, demonstrando as
estratégias metodológicas utilizadas pela pesquisadora nas situações concretas de
investigação.
6.1 OS DESAFIOS PARA A ENTRADA EM CAMPO
O projeto inicial da investigação envolvia o estudo etnográfico em duas drogarias do
município do Rio de Janeiro, uma na zona norte, outra na zona sul. Tal escolha foi orientada
pela “pré-noção” bem estabelecida na literatura antropológica produzida na cidade, da
persistência de determinada hierarquia simbólica que organiza o espaço urbano do Rio de
Janeiro, engendrada pela oposição entre as regiões norte e sul (DUARTE, 1986; VELHO,
1987; KUSCHNIR, 2003).
112
Seguindo a argumentação de Park (1979 [1916]), partimos da percepção de que a
metrópole carioca pode ser pensada a partir da interação recíproca entre sua organização física
e moral. A Zona Sul nos remete à ideia de modernidade, riqueza e cosmopolitismo, enquanto
à Zona Norte e aos diferentes subúrbios se atribui uma construção moral de natureza mais
tradicional e, portanto menos permeáveis aos valores modernos relativos aos indivíduos e
suas construções singulares e autônomas (KUSCHNIR, 2003; HEILBORN, 1999).
Essa dicotomia, cara aos habitantes do Rio de Janeiro, estende-se para além da zona
norte até os subúrbios da Baixada Fluminense, conhecidos como cidades dormitórios e onde
se percebe com clareza a persistência da desigualdade social em termos absolutos e relativos.
Já a zona oeste designa uma série de bairros bastante díspares, desde Magalhães Bastos até
Santa Cruz, passando por Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Os dois últimos considerados como
áreas de moradia da parcela mais abastada da cidade, chamada de “emergente”, por constituirse majoritariamente de pequenos burgueses (GONTIJO, 2007, p. 29-30).
Como bem situou Azize (2002, p. 33), uma das grandes dificuldades de se estudar
determinados aspectos das sociedades complexas contemporâneas é o estabelecimento dos
limites e características do “grupo” que queremos analisar. Ou seja, o exercício de se mover
do discurso particular para o discurso mais amplo da cultura, coloca-nos no centro da
“complexidade urbana”, espaço onde são possíveis inúmeras combinações de hábitos,
vicejando o trabalho comparativo.
Considerando as particularidades deste objeto de estudo, implicadas no desafio de se
estudar a venda de uma pílula contraceptiva relativamente nova em um contexto híbrido, já
que é um estabelecimento comercial de “interesse para a saúde” (BRASIL, 1973; BRASIL,
2009), buscamos construir estratégias de aproximação que se basearam no contato prévio com
farmacêuticos conhecidos, inseridos ou não no ramo comercial, visando sua intermediação
com proprietários ou funcionários/gerentes de drogarias, preferencialmente localizadas nestas
duas regiões da cidade.
Passei o ano de 2010 em busca das duas drogarias, mantendo contatos telefônicos e
construindo redes de relacionamento, a partir das conversas prévias de amigas farmacêuticas e
outros conhecidos que se dispunham a intermediar a interlocução com os proprietários e/ou
gerentes destes estabelecimentos. De modo estratégico, a drogaria foi o local escolhido para
apresentação da proposta. Além da autorização para a pesquisa, nos moldes da resolução
113
196/96, vigente à época68, era necessário verificar a localização do estabelecimento, as
condições de venda da CE, ou seja, a viabilidade do trabalho de campo. Visitei bairros como
Ilha do Governador, Méier, Olaria, Ipanema, Catete, Laranjeiras, sendo que os da zona sul eu
já conhecia, os outros nunca havia visitado. Nestas incursões, conheci gerentes,
farmacêuticos, balconistas, representantes de laboratório e outros profissionais do ramo,
drogarias pequenas e grandes, independentes e franqueadas.
Pouco a pouco, fui me surpreendendo com as diferenças e desigualdades observadas
entre drogarias de zona norte e sul da cidade do Rio de Janeiro, e obviamente com as grandes
disparidades sociais presentes entre e nos cenários visitados. A estratégia de aproximação com
estes sujeitos foi pensada considerando outra “pré-noção”: o presumido temor que os sujeitos
desse ramo de atividade mantêm com relação à fiscalização sanitária pública, especialmente
devido ao debate sobre o uso racional de medicamentos. Por isso, optamos por colocar o foco
sobre os/as consumidores/as da CE, durante os diálogos para viabilizar a entrada em campo,
evitando provocar um clima de fiscalização sobre o trabalho desenvolvido nas drogarias, que
poderia vir à tona caso citasse o interesse em observar a interação ocorrida no balcão.
A partir das referências oferecidas por uma farmacêutica amiga, houve o primeiro
contato com o gerente distrital de uma grande rede de drogarias conhecida na cidade (Rede
Pacheco®). No momento inicial da conversa por telefone, ele pareceu disposto a colaborar,
mas logo mudou de ideia alegando que não seria aprovado pelos 'superiores', temendo que a
investigação pudesse comprometer a privacidade dos clientes e pelo simples fato de ser algo
inovador, fora do protocolo da empresa. Enviei ainda via email, um resumo da proposta de
investigação, mas sem sucesso.
A segunda tentativa ocorreu em uma drogaria independente, localizada na Ilha do
Governador, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Nesse caso, foi agendado um encontro
pessoal com a farmacêutica responsável e com um dos proprietários da drogaria, sendo
possível prever uma abertura maior para a pesquisa. Porém, a visita ao estabelecimento
revelou a inadequação da drogaria aos objetivos da investigação, por sua localização isolada
em região pouco movimentada do bairro. De acordo com a farmacêutica do local, na região a
procura por CE não é considerada ‘expressiva’ para o mercado. Por isso, apesar da boa
68
Em 12 de dezembro de 2012, o Conselho Nacional de Saúde instituiu a Resolução n. 466, a qual substituiu a
196/1996 na regulamentação das diretrizes e normas éticas referentes às pesquisas envolvendo seres humanos no
Brasil. No que se refere aos aspectos particulares das investigações em ciências sociais e humanas tratados neste
capítulo, a nova resolução não traz novidades. Mas, afirma-se que as especificidades éticas das pesquisas nas
ciências sociais e humanas serão contempladas em resolução complementar, dadas suas peculiaridades.
114
aceitação da pesquisa, optou-se pela não inclusão desta drogaria como campo para
investigação.
Com o tempo fui percebendo as diferenças entre drogarias de rede e independentes,
como o fato das primeiras trabalharem com preços menores, tornando-se mais competitivas
no mercado, dificultando a sobrevivência daquelas que se denominam ‘independentes’, por
não trabalharem com franquias. Outra questão apontada pelos sujeitos contatados é que as
drogarias de rede são regidas por normas mais rígidas e homogêneas, visando obter o melhor
resultado em termos de vendas. Estimula-se a competição intra e inter-drogarias. Já as
drogarias independentes são geralmente empresas familiares, nas quais o proprietário muitas
vezes é o próprio farmacêutico, administrando um ou mais estabelecimentos.
Cheguei à terceira indicação da farmacêutica, o proprietário de outra drogaria privada
no bairro do Méier, também na zona norte do Rio de Janeiro. O contato foi realizado com sua
filha, também farmacêutica. Posteriormente, foi agendada reunião nesta drogaria. Entretanto,
com a chegada ao local, observei que a família havia mudado de ramo, tendo vendido a
drogaria privada e aberto uma farmácia de manipulação, devido às dificuldades de competição
com as redes de drogarias, que segundo minha informante ‘atualmente dominam o mercado’.
Apesar disso, o encontro com a farmacêutica foi fundamental.
Por conta da antiga amizade com a farmacêutica que havia me indicado e mútua
empatia no processo de apresentação da pesquisa, os proprietários desta farmácia
demonstraram interesse em me auxiliar na apresentação da proposta para outros proprietários
de drogarias conhecidos. O farmacêutico, pai da jovem contatada, atua como consultor em
várias drogarias do Rio de Janeiro. Assim, ele estabeleceu contato com duas outras drogarias
de rede, na zona norte e sul do município do Rio de Janeiro, mesmo sem me conhecer
pessoalmente.
No caso da drogaria de zona sul, ele me encaminhou ao estabelecimento localizado na
rua principal do bairro do Catete, para conversa com o farmacêutico. Logo que cheguei, o
estabelecimento estava muito movimentado, com grande circulação de pessoas. Fui recebida
pelo farmacêutico no balcão e ali mesmo expliquei a razão de minha visita. Porém, ele não
havia sido informado da pesquisa. Enquanto explicava, percebi sua surpresa. Quando
terminei, ele solicitou que eu aguardasse. Fiquei ali por algum tempo e, ao final de nossa
conversa, ele comentou sobre o ineditismo da investigação e que não poderia me dar uma
resposta, pois teria que conversar com o gerente regional. Deixei cópias do resumo da
investigação e o compromisso de retornar na semana seguinte.
115
Na semana posterior, fui encaminhada para o escritório de recepção dos vendedores de
medicamentos. O escritório fica na mesma rua da drogaria, possui uma secretária e duas salas.
Identifiquei-me e a secretária solicitou que eu aguardasse. Havia outras pessoas esperando,
que pareciam representantes de laboratórios, também nesta pequena sala. Observei ainda uma
televisão ligada, o que imediatamente relacionei ao tempo de espera. Abri um livro e fiquei ali
por volta de uma hora e meia aguardando.
O gerente me recebeu com muita educação, mas com pressa e demonstrou o mesmo
estranhamento com a proposta. Apresentei-lhe a pesquisa, pedi para ele ficar com os
documentos (resumo da pesquisa e questionário) para mostrar para ao proprietário e verificar
a possibilidade da pesquisa se realizar em uma das drogarias da rede. Citei o meu 'tio'69
farmacêutico, ele disse que já tinha ouvido falar, mas que não o conhecia pessoalmente. Por
fim, afirmou que conversaria com o proprietário e depois me responderia. Solicitou um tempo
de duas semanas. Voltei no período estabelecido e fui direto ao escritório, sem obter sucesso.
Nesse mesmo dia, ele ligou e solicitou maiores esclarecimentos sobre a proposta. Diante de
minha resposta, ele retrucou: “mas logo esse medicamento?” Negou do mesmo modo,
alegando a defesa da privacidade do/a consumidor/a.
Após essa conversa telefônica, optamos por concentrar nossas investidas na drogaria
de rede da zona norte da cidade. Nesse caso, a recepção da pesquisa foi diferente desde o
princípio. Com reunião agendada com a farmacêutica, cheguei à drogaria, que se localiza em
região central do bairro de zona norte, em uma avenida movimentada. O estabelecimento é o
maior da região, sendo muito frequentado e com venda de CE em larga escala, segundo
funcionários70. A conversa inicial foi muito amistosa, mesmo antes da apresentação da
investigação, a farmacêutica comentou sobre a concordância do proprietário com a pesquisa.
69
Durante contato telefônico com o farmacêutico que aceitou intermediar meu contato com as drogarias, ele
solicitou que eu dissesse, na drogaria da zona sul, que era sua sobrinha, pois era o que ele havia dito ao
proprietário da drogaria. Mesmo me valendo da possível influência de relações pessoais, como disse DaMatta
(1983) que é comum ocorrer no Brasil, não consegui abertura nesta drogaria.
70
A CE mais vendida nesta drogaria é a Poslov®, fabricada pelo laboratório Cifarma, devido ao fato de sua
bonificação ser mais vantajosa para o proprietário. De acordo com dados oferecidos pela própria drogaria, no
ano de 2010 vendeu-se em média 153 caixas por mês desta marca de CE, no ano seguinte caiu um pouco,
chegando a uma média de 142 caixas. Já em 2012, a média chegou a 170 caixas por mês. Quanto às outras
marcas, há mais duas disponíveis, dos laboratórios Libbs e Aché, as quais venderam, em 2011, 35 e 9 caixas
respectivamente.
116
Assim, definiu-se que esta drogaria de zona norte seria o locus inicial da pesquisa
etnográfica71.
Além das drogarias citadas, foram visitadas outras duas na zona sul, ambas de rede,
para verificar suas possibilidades, com apoio de outra farmacêutica. Entre estas, uma negou,
logo de início, pelo incômodo que poderia ocasionar aos clientes. Localizada em Ipanema,
bem próxima à orla, a farmacêutica, responsável técnica, alegou que a pesquisa não tinha
viabilidade naquele contexto, e principalmente naquele ‘endereço’ da rede. A outra,
localizada no bairro Laranjeiras, em rua movimentada, mas eminentemente residencial,
possuía venda inexpressiva do medicamento, por ser uma pequena drogaria, com uma
clientela composta em sua maior parte por idosos, moradores do entorno.
Assim, optamos por iniciar a investigação em drogaria matriz de uma rede pequena,
mas em expansão, na zona norte do Rio de Janeiro, para amadurecimento dos objetivos e
avaliação de sua viabilidade72. A drogaria escolhida se localiza na zona da Leopoldina. Sua
população, registrada no último censo demográfico, pelo Instituto Pereira Passos/RJ (RIO DE
JANEIRO, 2010), está em torno de 58 mil habitantes, com predominância das faixas etárias
entre 20 e 59 anos, que corresponde a 57% da população do bairro. Os jovens adolescentes
representam 10,5% desta população.
A drogaria se situa no vale cercado pelas comunidades que compõem o Complexo do
Alemão. Trata-se de uma drogaria de rede, em plena expansão, com poder de competição com
as grandes franquias presentes no território. Em um curto período, o proprietário transformou
seu negócio em uma franquia e expandiu sua rede para outros bairros da zona norte e oeste do
município, além da Baixada Fluminense. Assim, a matriz permanece na região da Leopoldina
e filiais foram abertas na Av. Brasil/Bonsucesso, Ramos, Bento Ribeiro, Jacarepaguá e
Belford Roxo. O estabelecimento funciona de 8 às 22 horas diariamente, com plantão nos fins
de semana durante o período noturno, com 2 farmacêuticas, 3 gerentes,10 balconistas, 2
funcionários responsáveis pelo call center, 2 embaladoras, 2 funcionárias no caixa, 6
perfumistas nas gôndolas, 5 entregadores, 2 estoquistas, 1 secretária, 1 profissional de
informática.
71
Saliento que somente após esse passo de aprovação por escrito do proprietário da drogaria de zona norte do
Rio de Janeiro pudemos dar entrada com a solicitação da aprovação da investigação pelo CEP, de acordo com o
que é recomendado normativamente por este órgão.
72
Importante ressaltar que apesar de concentrar meus esforços para a entrada em campo, continuei a busca por
drogarias na zona sul.
117
6.2
O
TRABALHO
DE
CAMPO
EM
DROGARIA:
ASPECTOS
ÉTICOS
E
METODOLÓGICOS
A etnografia de uma drogaria, visando conhecer o processo interativo entre quem
compra e quem vende a contracepção de emergência, foi entendida nesta investigação como
meio mais adequado para acessar determinados processos sociais, que são difíceis de serem
apreendidos somente por meio de entrevistas e questionários. Considerando a importância
desse estabelecimento como recurso muito utilizado pela população para cuidados com a sua
saúde (nesse caso, sexual e reprodutiva), conhecer, a partir da prática etnográfica, as
características, dificuldades e o contexto em que tais interações se desenvolvem é relevante no
sentido de aprofundamento do olhar sobre essa instituição e sobre a relação com seus
consumidores a partir deste medicamento.
O objetivo inicial era captar práticas cotidianas em torno da contracepção de
emergência: as relações entre os profissionais das drogarias e destes com os consumidores; as
trocas de olhares; expressões corporais; as histórias sobre as experiências vividas, buscando
os sentidos e significados que as perpassam e articulando-os aos contextos e situações nos
quais estão inseridos.
Schmidt (2008) observa que o trabalho de campo, como experiência prática, pessoal e
intransferível, exibe de modo mais decisivo a impossibilidade das normas e regras per se
serem determinantes da ética, assim como revela a necessidade do método ser maleável,
podendo ser reinventado nas situações concretas de investigação. Segundo a autora, na
identificação de método e ética conta, sobremaneira, o exercício autônomo da ação e do
julgamento do pesquisador. A pesquisa etnográfica é uma experiência compreensiva que
envolve a totalidade da pessoa, o que torna mais difícil apresentar uma metodologia articulada
em torno de passos específicos a serem seguidos, visando assegurar um produto final
(GIUMBELLI, 2002).
O modus operandi etnográfico envolve a não abertura de todas as questões que serão
investigadas, por isso os pesquisadores, em geral, apresentam seus estudos sem muitos
detalhes. Busca-se fornecer um panorama geral e espera-se que várias outras questões possam
emergir do campo, e até mesmo associações inesperadas não previstas (HEILBORN, 2004). A
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), ao contrário, seguindo a matriz de
pesquisas médicas clínicas e experimentais, estabelece que os pesquisadores devem informar
118
os detalhes da pesquisa a todos os sujeitos que dela participarem, como entrevistados ou não,
antes da fase de coleta de dados.
De acordo com a resolução 196/96, vigente à época, o passo inicial para o contato com
o sujeito pesquisado é a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), que deve conter todos os aspectos referentes aos objetivos, hipóteses, métodos,
riscos, benefícios e questões referentes ao anonimato e sigilo dos sujeitos da pesquisa
(BRASIL, 1996). Trata-se de um instrumento valioso, que expressa o direito do sujeito
pesquisado de obter informações precisas sobre o pesquisador, sua localização no espaço
social e a quem se destina a pesquisa. Ao mesmo tempo, frequentemente o termo protege os
pesquisadores de possíveis processos (LUNA, 2008).
Apesar da popularidade do TCLE no campo das ciências médicas, ele é publicamente
criticado de forma generalizada pelos pesquisadores de ciências sociais e humanas, em
particular aqueles que trabalham no campo das humanidades em saúde73. (FONSECA, 2010;
DINIZ, GUERRIERO, 2008; SCHMIDT, 2008; NUNES, 2008; MINAYO, 2008;
HOONAARD, 2008; ALLEBRANDT, 2010; SILVA et. al., 2012; KNAUTH, 2010). Uma
relação inicial mal estabelecida na pesquisa de cunho etnográfico pode inviabilizar a sua
continuidade ou provocar bias de conveniência social por parte dos sujeitos observados, na
medida em que estes podem, tendo domínio pormenorizado dos interesses do pesquisador,
manipular e controlar as suas impressões, ou seja, alterar de forma significativa o contexto
etnografado (BERREMAN, 1975).
Nas drogarias privadas, que se configuram como locais de curta permanência para os
consumidores, avaliamos como inoportuna a assinatura individual do TCLE por todos aqueles
73
Os pesquisadores das ciências sociais e humanas se organizam com vistas a promover alterações nesta
resolução, antes que a mesma se transforme em lei. Em 28 de outubro de 2011, a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) aprovou a moção sobre a separação da regulamentação da ética em pesquisa em ciências
sociais e humanas da regulamentação da ética em pesquisa em ciências biomédicas. Entre os inúmeros
problemas enfrentados, menciona-se:
1- A multiplicidade e complexidade dos aspectos éticos das pesquisas sociais e humanas não contempladas na
regulamentação biomédica oficial, incorporada na Resolução e fundada na lógica de ciências positivas; 2 - A
desconsideração da condição "poderosa" dos agentes da pesquisa biomédica nas sociedades contemporâneas, e
no campo científico em particular, que contrasta com a condição dos agentes da pesquisa social e humana; 3 - A
inadequação do "termo de consentimento livre e esclarecido" para resolver as dificuldades éticas da pesquisa em
ciências sociais e humanas, pelos riscos de reificação contidos na assinatura de um documento escrito como
garantia de procedimentos éticos; 4 - Os riscos de generalização de uma atitude de construção de fachadas
apenas para satisfazer os critérios formais do sistema CONEP/CEPs; 5 - O desconhecimento e a desconsideração
das diferenças entre os protocolos da pesquisa científica naturalista e as exigências éticas na pesquisa científica
social e humana, particularmente pela abertura desta última à experiência de campo e seus imponderáveis; 6 - O
acréscimo de mais uma instância - e em nada justificável - na complexa burocracia do acesso para pesquisa
social e humana junto a populações indígenas (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 2011).
119
que circulam em seu interior e são objeto de observação de acordo com os objetivos da
pesquisa: consumidores, representantes de laboratórios, funcionários do telemarketing,
balconistas, farmacêuticos, gerentes, embaladoras, perfumistas, operadores de caixas,
proprietário, etc.
Qual, então, a melhor forma de apresentar o estudo para os sujeitos? Quais sujeitos
deveriam ser consultados sobre seu consentimento?
Considerou-se inconveniente a entrada em campo através deste documento que prevê
autorização por escrito, pois tal procedimento poderia assustá-los, principalmente devido ao
ineditismo da pesquisa nesse espaço e por conta do temor que têm em relação à fiscalização
dos órgãos reguladores do Estado. A solução encontrada foi a abordagem face-a-face para
esclarecimento dos principais aspectos da investigação, além daqueles relativos ao anonimato
e sigilo, com indagação verbal sobre a concordância em participar da mesma. Este
procedimento deveria ser realizado com todos os funcionários da drogaria que fossem se
tornando personagens importantes para a investigação: balconistas, farmacêutica diurna,
perfumistas, embaladoras, representantes de laboratório, etc. Optamos por utilizar o TCLE
somente com os sujeitos entrevistados individualmente74. Nesse caso, os/as funcionários/as
das drogarias - balconistas e farmacêuticas.
Quanto à utilização do diário de campo, optamos por não tomar notas em campo,
mesmo considerando os riscos de perder informações e/ou detalhes relevantes das vivências
em campo. Tal escolha foi orientada pela ideia de que eles (funcionários da drogaria)
poderiam se sentir inseguros e/ou fiscalizados com esse exercício. A opção encontrada foi sair
do ambiente da drogaria para anotar qualquer detalhe ou evento ocorrido quando o mesmo
fosse muito importante de ser lembrado.
E quanto à participação dos consumidores? Como poderia se dar essa relação?
Levando em consideração que sua passagem pela drogaria é fortuita e que a compra da CE
envolve urgência, optou-se, no primeiro momento, por garantir sua participação através de um
questionário fechado, auto-preenchível e de urna, com isenção do TCLE75.
74
75
Em anexo 3 o Termo de Consentimento livre e esclarecido.
O conteúdo do questionário de urna referia-se: ao perfil sociodemográfico das consumidoras da CE;
razões/circunstâncias de uso do método; tempo transcorrido do intercurso desprotegido; número de vezes que
usou a CE; fontes de informações sobre o método, informações sobre a CE.
120
Pelo fato do objetivo principal da investigação estar mais relacionado à interação
ocorrida entre balconistas/farmacêuticos/as e os/as consumidores/as no momento da compra
da CE, optamos por privilegiar a observação e não a via das entrevistas com as/os
consumidoras/es. Além disso, o questionário fechado e de urna, poderia permitir uma
aproximação, legitimada pelo proprietário da drogaria, com os/as consumidores/as da CE,
logo após a compra deste contraceptivo. A urna, segundo o planejamento da pesquisa, deveria
ter sido instalada no balcão da drogaria, visando facilitar sua visualização e o preenchimento
pelo/a consumidor/a.
Outra questão desafiadora no contato com os/as consumidores/as da CE,
especialmente pelas prerrogativas estabelecidas pelo CEP, refere-se aos jovens menores de 18
anos, que conformam parte importante do público consumidor. Consideramos relevante a
abordagem, pela própria especificidade relativa à juventude, das circunstâncias em que estão
consumindo tal medicamento, com que periodicidade e como adquiriram informações a
respeito. Entretanto, a resolução 196/96, tanto quanto a 466/12, estabelecem a obrigatoriedade
da assinatura do TCLE pelos pais ou responsáveis legais desses/as jovens.
Baseando-se em diretrizes internacionais sobre a garantia de confidencialidade e
privacidade para com os sujeitos de pesquisa adolescentes, Guariglia e col. (2006) afirmam
que há previsão de consentimento autônomo para o/a adolescente, ou seja, sem autorização
dos pais, em determinados casos em que esta exigência possa inviabilizar a pesquisa.
Ponderando-se riscos e benefícios, como determinava a resolução 196/96, entendeu-se que a
exigência de assinatura do TCLE pelos pais ou responsáveis poderia tornar essa população
vulnerável76 ao invés de protegê-la, já que é sabido que esta adquire métodos contraceptivos,
na maior parte das vezes, sem anuência dos pais ou responsáveis, dificultando ou impedindo
sua
participação
na
pesquisa77
(VENTURA,
2009;
UNFPA,
2010;
ROGERS,
BALLANTYNE, 2008).
O processo de diálogo com o Comitê de Ética em Pesquisa da instituição acadêmica
foi produtivo, incitando o debate no interior do grupo de pesquisa e do próprio Comitê a
respeito das premissas éticas previamente estabelecidas. Partindo do compromisso primordial
com o bem-estar e livre-arbítrio dos sujeitos da pesquisa em sua totalidade, é possível pensar
76
De acordo com a resolução 196/96, a vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos que, por
quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere
ao consentimento livre e esclarecido (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 1996).
77
Agradeço muito a profa. Dra. Míriam Ventura, IESC/UFRJ, que nos ajudou a pensar sobre os pressupostos
éticos, sem desrespeitar as premissas metodológicas da pesquisa etnográfica.
121
em ajustes flexíveis das regras que não são adaptáveis ao contexto das pesquisas qualitativas,
especialmente etnográficas. A pesquisa foi aprovada pelo CEP do Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob protocolo n. 1/2012.
6.3 UMA ETNÓGRAFA EM DROGARIA: IDENTIDADES E DIFERENÇAS ENTRE
PESQUISADORA E SUJEITOS PESQUISADOS
Rostagnol (2011) considera valioso analisar o início do trabalho de campo, já que este
encerra um volume de informações muito grande, sobretudo em relação ao que os sujeitos
pensam de nós - pesquisadores. Desse modo, a imagem do pesquisador feita pelo grupo
constitui uma valiosa ferramenta de análise para decifrar e apreender o universo estudado. Por
outro lado, percebendo o trabalho de campo como um processo reflexivo, pessoal, na medida
em que parte de uma análise detalhada e profunda produzida primordialmente por um único
pesquisador em campo, deve-se considerar também o próprio pesquisador e seus interesses
como ferramentas do processo de produção do conhecimento (GEERTZ, 2005;
HOONAARD, 2008).
Sendo assim, a característica peculiar da pesquisa social, quanto à relação com os
sujeitos investigados, aponta para a necessidade de refletirmos sobre os papeis e posições
assumidos pela pesquisadora e sujeitos pesquisados e as identidades e diferenças percebidas
no processo de construção do vínculo. Buscando problematizar a construção das relações em
campo, apresento uma descrição desta vivência, entremeada por fragmentos do diário de
campo. Neste item, o foco recai sobre a relação com os/as funcionários/as da drogaria,
especialmente os balconistas, que se tornaram os principais informantes e interlocutores da
investigação. Em seguida, problematizo os desafios vivenciados no que se refere à busca de
uma relação entre uma observadora ‘externa’ (presente no espaço da drogaria) e os/as
consumidores/as da CE, após a compra do contraceptivo.
De fato, minha entrada nesta drogaria ocorreu de modo inusitado e um pouco estranho,
pois o contato prévio foi realizado por um farmacêutico consultor, o qual eu não havia
conhecido pessoalmente. Conheci sua filha, a qual se interessou em me ajudar a conseguir a
inserção nas drogarias das zonas sul e norte, mesmo sem me conhecer profundamente e/ou os
objetivos desta investigação. Para mim, ficou claro que a facilidade de entrada nesta drogaria
na zona norte se deveu precipuamente ao prestígio de meu contato prévio indireto, o
farmacêutico consultor do Méier.
122
Quando cheguei ao local pela segunda vez, já no meu primeiro dia de trabalho de
campo, em 21 de janeiro de 2011, sentia um misto de ansiedade, medo e curiosidade. Além da
ansiedade pela chegada em um território desconhecido, havia também o receio quanto à
região em que eu estava penetrando no Rio de Janeiro. Para os mineiros, a cidade toda é
perigosa, mas a zona norte é cercada de “mitos” sobre a violência, tanto da polícia quanto dos
traficantes e outros “criminosos”. Para chegar até lá, foi necessário utilizar dois transportes
urbanos - ônibus e metrô.
A drogaria fica em um vale cercado pelas comunidades que compõem o Complexo do
Alemão78. Apesar de não ser a primeira vez que ia até lá, nesse momento foi diferente.
Observei um grande movimento próximo à drogaria, uma praça, uma escola pública de ensino
fundamental e médio, vários setores comerciais, como bares, restaurantes, lojas de sapatos,
roupas, etc. Ao chegar ao local, indaguei aos funcionários do balcão sobre a farmacêutica,
eles informaram que ela já estava chegando.
De algum modo, à primeira vista, a atmosfera desta drogaria se aproximou muito do
padrão de estabelecimentos farmacêuticos que eu conhecia em outros lugares, o que serviu em
parte para desmistificar o receio inicial de entrada em campo. Ao mesmo tempo, era um sinal
de alerta para que eu não perdesse a capacidade de estranhá-lo. Logo que a farmacêutica
chegou, entramos para o interior da drogaria, onde ficam os medicamentos de uso controlado,
o estoque, computadores, a cozinha, os banheiros dos funcionários. A mesa de trabalho da
farmacêutica se localiza em uma bancada, com várias outras utilidades, vários medicamentos
em estoque próximos, papeis variados. Expliquei-lhe de modo bem informal e geral os
objetivos já delimitados e a proposta metodológica da pesquisa.
Após uma breve conversa, que eu esperava que fosse bem mais longa, ocorreu o
momento da apresentação individual da pesquisa para todos os balconistas e funcionários e
solicitação de sua colaboração. Foi um momento desafiador, já que era horário de grande
movimento na drogaria e eu não previa que a farmacêutica encaminhasse dessa forma.
Conversei com os balconistas e apresentei o projeto muito brevemente para que tivessem
ciência dos objetivos da pesquisa. Foram todos amistosos, porém ansiosos para saber sobre os
papeis que desempenhariam.
78
O Complexo do Alemão é composto por 15 comunidades hoje pacificadas: Itararé, Joaquim de Queiróz,
Mourão Filho, Nova Brasília, Morro das Palmeiras, Parque Alvorada, Relicário, Rua 1 pela Ademas, Vila
Matinha, Morro do Piancó, Morro do Adeus, Morro da Baiana, Estrada do Itararé, Morro do Alemão e Armando
Sodré, segundo Censo Demográfico 2010 (INSTITUTO PEREIRA PASSOS/RJ).
123
O fato de ter sido apresentada pela farmacêutica aos balconistas parece ter soado, no
momento inicial, como mais uma “tarefa” a cumprir no meio de tantas outras. Para eles, não
fazia parte do script concordar ou discordar da investigação, o proprietário já havia
concordado. Essa entrada atravessada não foi desconsiderada por mim, à medida que busquei
aproximações, identidades que amenizaram a primeira impressão destes/as trabalhadores/as
sobre mim.
Inicialmente, combinamos que eles poderiam me avisar com os olhos quando algum/a
cliente solicitasse a CE, sem chamar sua atenção. Neste primeiro momento, percebi que
apenas um dos balconistas foi menos amistoso, mais velho que os demais, também parecia
mais atarefado. Quando a farmacêutica me apresentou, ele estava olhando algumas caixas de
medicamentos, disse apenas “prossiga”, sem levantar os olhos. Enquanto explicava, ele
levantou os olhos e disse ”acho que você vai ter dificuldades. Sua pesquisa vai ser
complicada”. Perguntei o motivo, ele explicou que as pessoas que vão comprar o
medicamento sentem vergonha, “vão pelo cantinho, ficam olhando as gôndolas até ficar mais
vazio”. Mas concordou em ajudar, sem maiores comentários. Neste momento, senti um alívio,
pois temia uma resistência aberta logo de início.
Outra narrativa que apareceu no primeiro dia de trabalho de campo por um dos
balconistas, a qual depois se tornou muito comum, foi: “com a pesquisa você vai descobrir
que elas estão tomando de qualquer jeito, como se fosse o método de rotina. Às vezes, a
mesma pessoa vem comprar várias vezes”. Outro balconista perguntou se eu era representante
de laboratório farmacêutico, confusão que se tornou bastante frequente, já que estes são os
únicos que os visitam rotineiramente e ficam mais tempo no estabelecimento.
Para minha surpresa, logo nos primeiros momentos, um primeiro elemento nos
aproximou: eu e muitos funcionários da drogaria, inclusive o proprietário, somos originários
da zona da mata mineira. Eles logo perceberam o meu sotaque. Um dos balconistas me
perguntou há quanto tempo eu tinha saído de Minas, quando eu lhe disse que não tinha saído,
que eu continuava morando em Juiz de Fora e estudava no Rio, ele riu e brincou: “ah bom,
então por isso essa cara e sotaque de roceira”. Eu ri meio sem graça. Foi uma situação
constrangedora. Mais tarde, percebi que eles interpretavam os próprios deslocamentos para a
metrópole carioca como expressão de vitória, revelando certa ascensão social perante àqueles
que continuavam em Minas, como eu. Também percebi que eles gostavam de fazer chacota
uns com os outros sobre os comportamentos, ‘cacoetes’, ‘truques de venda’, era um hábito
cotidiano.
124
Sem dúvida, meu sotaque se destacou pela diferença, já que uma das formas por eles
utilizadas para identificação com aquele espaço parece ter sido a incorporação da linguagem
nativa, neste caso, dos moradores da periferia do Rio de Janeiro. Usavam muitas gírias e
expressões idiossincráticas, incompreensíveis fora daquele contexto. Como, por exemplo, a
expressão “nem”, utilizada para identificar/chamar qualquer pessoa, seja homem ou mulher, o
que consegui entender somente depois de algum tempo de campo.
A aproximação pela origem atenuou, em parte, as inúmeras diferenças existentes entre
nós: eu, apesar de ser ‘estrangeira’ na cidade, era identificada como alguém que vinha da zona
sul, local onde eu residia nos momentos de permanência no Rio de Janeiro. Alguns dos
funcionários, especialmente os balconistas, já transitaram e trabalharam na zona sul, mas em
suas narrativas ficou clara a preferência e, de certo modo, o orgulho pela socialização junto à
população da zona norte. Morar esporadicamente na zona sul não era absolutamente uma
característica que me aproximava de meus interlocutores.
Além disso, eles demonstraram, desde o início, surpresa e admiração com minha
“determinação” em relação ao estudo, estranhavam minha atitude de “trocar” residência e
“abandonar” a família para fazer pesquisa fins de semana e outros dias no Rio de Janeiro. De
fato, considerando que a maioria dos/as funcionários/as possuía ensino médio incompleto,
demonstraram uma valorização por aqueles/as que concluíam o terceiro grau, ou seja, que
tinham “diploma”. Inúmeras vezes expressaram admiração, através de comentários como:
“Essa menina é demais, sai lá de Minas para vir pesquisar nos fins de semana no Rio de
Janeiro e longe da praia”. (gerente regional homem)
“Isso mesmo, estuda para não ter que ralar no futuro, como nós aqui de sol a sol”.
(perfumista mulher)
Logo quiseram saber mais sobre minha vida, minha família, enfim aspectos que lhes
oferecessem mais elementos para o estabelecimento da confiança mútua, fundamental no
trabalho etnográfico. Certamente, neste primeiro momento, havia dúvidas a respeito da minha
presença na drogaria. Eles entendiam superficialmente os objetivos da pesquisa e estranhavam
as razões pelas quais a pesquisadora precisava permanecer neste local para obter os dados, já
que não havia ficado claro, propositalmente, meu interesse em observar a interação. A
curiosidade se generalizou, não somente por parte dos balconistas, mas também por conta dos
consumidores e representantes de laboratórios, que procuravam perguntar discretamente sobre
a função da “moça desconhecida”.
125
Às vezes, percebi que eles tentavam explicar minha inserção naquele espaço pelos
mesmos parâmetros que justificavam suas presenças ali, ou seja, o retorno financeiro. Durante
o feriado de carnaval, esta observação se tornou mais frequente, pois houve surpresa geral
quanto à minha presença na drogaria neste período. Um deles chegou a sugerir “você deve
estar ganhando bastante dinheiro com a pesquisa ou definitivamente não gosta de carnaval”.
Essa questão é relevante, pois no decorrer do trabalho de campo, um ou outro vinha até mim e
repetia a mesma pergunta: “Essa pesquisa é para quê? Para algum laboratório?”; “Você é
fiscal de quê?”; “Quanto está ganhando para sair da sua cidade e vir parar aqui?”.
Acredito que lentamente fui me tornando uma pessoa mais próxima deles/as e as
razões de minha pesquisa, por conta disso, foram se tornando menos importantes. Para os
balconistas principalmente. Mas, o tempo todo ficou patente minha posição de “estrangeira”
perante o grupo, sendo possível pensar esta etnografia como o esforço de captar as ações e
discursos dos sujeitos da forma menos controlada, enfatizando a convivência e vínculo com
os/as funcionários/as desta drogaria (GIUMBELLI, 2002; GOLDMAN, 2003).
Na construção da minha identidade procurei não seguir a rota de uma observadora
distanciada e/ou recolhida, nem ao contrário, de uma pesquisadora “afetada”, mas sim de uma
observadora que buscou o desempenho de papeis mais ativos e passivos, dependendo da
ocasião (FAVREET-SAADA, 2005). Os momentos em que fui instada a desempenhar papel
mais ativo relacionam-se aos períodos de menos movimento na drogaria, quando pude me
aproximar e conversar um pouco mais longamente com cada um dos balconistas e outros/as
funcionários/as. Os momentos passivos foram aqueles em que me restringi à observação dos
atendimentos realizados pelos balconistas aos clientes da drogaria, em especial da CE.
Durante os períodos em que era mais fácil puxar uma conversa, eu tentei não fazer
perguntas diretas e deixar a interação sem muitas interferências no sentido de uma entrevista.
Um momento que considero relevante para sinalização de minha aceitação pelo grupo foi
quando fiquei uma semana sem comparecer à drogaria, e na semana posterior fui recebida
com exaltação e alegria por todos. Um dos balconistas, que inicialmente havia reagido com
rispidez, saiu do balcão e veio me receber e contar eventos ocorridos no fim de semana em
que estive ausente. Eles comentaram sobre a venda da CE e fizeram chacota a respeito do
comportamento de um dos balconistas com relação a uma cliente. Com o tempo foram
tentando me mostrar como lidar com os clientes, ensinavam-me questões inerentes ao serviço
por eles desenvolvido, à forma ideal de conquistar os/as clientes, enfim, detalhes sutis que
126
revelam a experiência por eles acumulada em seus processos de trabalho (FOOTE-WHYTE,
1975; GEERTZ, 1989).
Entretanto, é importante destacar que nesta construção relacional com os/as
trabalhadores/as da drogaria, o vínculo conquistado não ocultou o fato de que nossas relações
estavam baseadas em níveis hierárquicos. A começar pela forma como se deu minha inserção
neste contexto, que ocorreu sem que eles/elas tivessem qualquer possibilidade de gestão. Eu
possuía um lugar diferenciado na hierarquia social por meu vínculo com a Universidade,
aspecto muito valorizado em suas narrativas, apesar de suas discordâncias quanto ao
afastamento de uma mulher de sua família, para o trabalho ou para os estudos.
Optei por me posicionar mais próxima ao balcão, para facilitar a observação da venda
da CE, o que acabou gerando maiores possibilidades de diálogo com os balconistas, todos
homens. Este, aliás, foi um dos aspectos que estranhei no momento inicial do trabalho de
campo, pois só havia balconistas do sexo masculino e perfumistas do sexo feminino. A
organização do trabalho nesta drogaria pareceu-me fundada em uma lógica hierárquica de
gênero, através de uma rígida divisão sexual do trabalho. Comecei a questionar se essa
característica era cultivada intencionalmente ou não no processo de gestão do trabalho deste
estabelecimento79.
Mesmo com possíveis dificuldades adicionais pelo fato deles serem homens e eu
mulher, era imprescindível que os balconistas aceitassem a pesquisa, para tanto eu necessitava
de elementos que pudessem nos aproximar, para além de nossas diferenças de gênero. Sendo
assim, minha origem mineira se transformou, em certa medida, em um importante vínculo
identitário entre nós. Essa identidade regional nos aproximou e permitiu que nossa relação
inicial fosse permeada por curiosidades de ambos os lados e, por isso tornou-se menos
artificial. Eles sempre puxavam assunto sobre Minas Gerais e se gabavam das conquistas
realizadas na “cidade maravilhosa”.
Importante destacar que a aproximação ao balcão aguçou meu olhar de pesquisadora
do campo da saúde coletiva, observando-se a dissonância entre o atendimento solicitado e o
oferecido à clientela na drogaria. Os clientes, em sua maioria, chegavam ávidos por verem
seus problemas resolvidos, solicitavam informações sobre os medicamentos. Entretanto, os
profissionais designados para tal função – balconistas-, não pareciam preparados, não
possuíam informações seguras, mas ainda assim opinavam, explicavam e trocavam receitas.
79
A questão da organização do trabalho sob a ótica de gênero nesta drogaria será discutida no capítulo 7.
127
O interesse precípuo não é prestar atendimento de modo seguro, mas vender o maior
número possível de medicamentos. Além disso, a vivência laboral dos balconistas pareceu-me
cercada por pressões e tensões, as quais eles transferem para os consumidores, convencendoos a adquirir sempre mais medicamentos. O estabelecimento de vínculos entre balconistas e
consumidores/as pareceu ocorrer de forma recíproca, os clientes conquistados procuram
sempre os mesmos balconistas. Nesse sentido, neste trabalho um dos meus grandes desafios
foi relativizar meu olhar de sanitarista, já que inúmeras vezes, obviamente sem que eles
soubessem, suas lógicas entravam em confronto com as minhas, o que poderia direcionar meu
olhar somente para este aspecto.
Outro desafio foi a construção metodológica, pois a ausência ou desconhecimento de
trabalhos sociológicos em drogarias, somente em farmácias públicas, levou-nos a uma
estrutura metodológica mais solta, moldada no devir do trabalho de campo. Apesar de ter
alguns passos metodológicos delineados, fui descobrindo e me adaptando ao longo desta
jornada. Como nos ensinou Bourdieu (1989), a investigação sociológica não pode ser pensada
como a aplicação metodológica de passos muito bem planejados, mas derivado de um
processo de constante (re)planejamento e reflexividade do pesquisador.
No início, não calculávamos que o campo seria tão longo, em extensão fiquei em
campo durante dois anos (janeiro de 2011 - dezembro de 2012). Os primeiros seis meses
serviram para o estabelecimento do vínculo, com realização da observação participante.
Depois, parti para a observação sistemática, a qual durou mais de seis meses. Somente após
esse tempo, senti segurança para entrevistá-los e usar o gravador.
A maior parte das entrevistas foi realizada no ambiente da drogaria, pela
indisponibilidade de tempo dos balconistas e da farmacêutica para se ausentarem daquele
espaço. Apesar disso, os entrevistados não demonstraram receio ou intimidação. Ao contrário,
em determinados momentos, observou-se modificações nas estratégias discursivas dos
entrevistados, visando impressionar a pesquisadora e/ou os ouvintes que transitavam pelo
ambiente. Sem dúvida, esses aspectos foram relativizados na análise. Sendo assim, 11
entrevistas foram feitas na própria drogaria, em sua parte interna, fechada ao público. As
outras duas foram realizadas em ambientes externos à drogaria pelo fato dos balconistas terem
deixado o trabalho neste local, antes do fim do período de observação sistemática.
Apesar de haver outros balconistas que deixaram o trabalho durante o período
investigado, a opção por entrevistá-los está relacionada à vasta experiência destes dois no
setor farmacêutico (um deles trabalha há 21 anos e o outro há 42 anos) e pelo papel assumido
128
como informantes-chaves durante o trabalho de campo. Ressalta-se ainda que, nesta drogaria,
há duas farmacêuticas, sendo que somente uma foi entrevistada, devido ao fato de que a
segunda só trabalha em período noturno, não tendo ocorrido a construção do vínculo que
motivasse a situação de entrevista.
Através do contato prévio, a primeira entrevista, em ambiente externo, ocorreu em
bairro da zona norte do município do Rio de Janeiro, em outra drogaria cujo atual proprietário
é um dos balconistas definidos para entrevista (Pontes, 37 anos), o qual se demitiu para abrir o
próprio negócio em outro bairro. A segunda entrevista foi realizada no centro da cidade do
Rio de Janeiro, com o balconista José (55 anos).
Apresento a seguir o quadro 1 com as características sociodemográficas dos sujeitos
entrevistados no período dezembro 2011 a março 2012, bem como seus nomes fictícios.
Quadro 1 Características sociodemográficas dos entrevistados:
Informante
Idade
Sexo
Local
Escolari
moradia
dade
Balc. Gilberto
23
M
Balc. Gilmar
29
M
Balc. Gonzaga
34
M
Zona norte
Balc. José
55
M
Zona oeste
Balc. Júlio
27
M
Zona norte
Balc. Mário
37
M
Balc. Mateus
37
M
Zona norte
Balc. Pontes
37
M
Zona norte
Balc. Rogério
30
M
Zona norte
Balc. Rômulo
34
M
Zona norte
80
Zona oeste
Médio
Incomp.
Baixada
Médio
Fluminense
Incomp.
Fund.
Comp.
Médio
Comp.
Médio
Comp.
Baixada
Médio
Fluminense
Comp.
Fund.
Incomp.
Médio
Incomp.
Médio
Comp.
Médio
Raça/etnia foi considerada a auto-classificação dos informantes.
Tempo
Renda
no setor
Ind.
(anos)
R$
7
2.000,
Não possui
Pardo
16
3.000,
Não possui
Negro
14
4.500,
Católica
Pardo
42
2.800,
2
4.500,
14
3.500,
20
3.000,
Não possui
Pardo
21
3.500,
Católica
Branco
10
3.000,
Católica
Pardo
20
3.500,
Católica
Pardo
Religião
Racion.
Cristão
Católica
Evang.
Pentecostal
Raça/
Etnia80
Pardo
Pardo
Pardo
129
Incomp.
Baixada
Médio
Fluminense
Incomp.
Balc. Ronaldo
44
M
Balc. Souza
31
M
Zona norte
35
F
Zona norte
Farmacêutica
Melissa
Médio
Incomp.
Pós-grad.
26
15
12
3.000,
Não
inf.
4.000,
Evang.
Pentecostal
Católica
Evang.
Pentecostal
Negro
Branco
Pardo
Foi difícil finalizar o trabalho de campo, pois sempre ficava uma sensação que eu
relacionei com a que tomava conta dos trabalhadores desta drogaria, de que mesmo não
estando lá, estávamos pensando nela. Segundo alguns depoimentos: “trabalhar nesse ramo é
como o gosto de beber cachaça, ninguém consegue sair”. Fora dali, após mais de um ano de
campo, eu me via, a todo momento, pensando nos nossos encontros, nos eventos e interações
ocorridos. Certamente vivenciei o que DaMatta (1978) denominou de anthropological blues,
que implica no envolvimento do pesquisador para além do contexto de observação. Daí o
sinal de alerta para que eu me mantivesse reflexiva em campo, questionando meu lugar e dos
sujeitos investigados.
Minhas vivências em campo, a partir da construção do vínculo com os/as
funcionários/as desta drogaria, tornaram-se muito agradáveis e menos artificiais. Enfim,
evidencia-se que o processo lento, gradual e longo de aproximação com este ambiente e
pessoas foi fundamental, já que possibilitou uma situação relacional menos rígida, em que os
sujeitos poderiam se sentir a todo o momento sob o olhar da pesquisadora. Não ficou bem
definido, de forma proposital, o amplo espectro de questões passíveis de observação. Aos
poucos, pude ficar mais próxima do balcão, tornei-me conhecida de consumidores frequentes
e os balconistas, bem como outros/as funcionários/as sentiram-se seguros/as para conversar
sobre os contextos e situações relativos aos seus processos de trabalho.
6.4 A RELAÇÃO ENTRE PESQUISADORA E CONSUMIDORAS/ES DA CONTRACEPÇÃO
DE EMERGÊNCIA: DESAFIOS E ADAPTAÇÕES
Nesta investigação tínhamos como pressuposto que um dos grandes desafios seria o
estabelecimento de relações com quem se encontra do lado de fora do balcão, que paga pelo
medicamento, que está com pressa (especialmente em se tratando de um medicamento de uso
emergencial), e talvez constrangida/o pelas circunstâncias que a/o levaram a necessitar de tal
130
contraceptivo. Ademais, em todas as drogarias visitadas para verificar as possibilidades de
obtenção de autorização para o trabalho de campo, as negativas estavam ligadas ao receio
quanto à abordagem das/dos consumidoras/es.
Assim, a utilização do questionário de urna, auto-preenchível, como instrumento de
coleta de dados juntos aos/as consumidores/as, configurou-se, no primeiro momento, como
uma estratégia ética e metodológica mais adequada a ser utilizada neste contexto,
considerando-se ainda a necessidade de absoluta garantia do anonimato, por envolver tema
sensível e íntimo (DINIZ, MEDEIROS, 2010).
Sendo assim, meu plano inicial era abordar o/a cliente após a compra do
anticoncepcional, preferencialmente do lado de fora da drogaria, evitando causar
constrangimento ou dificultar as vendas. Optamos por não instalar a urna no início do trabalho
de campo, visando testar o questionário e ouvir a opinião das/os consumidoras/es sobre tal
instrumento de coleta de dados. Além disso, desde o princípio percebi que seria difícil
encontrar um local adequado e bem visível no interior da drogaria para instalar a urna e que,
ao mesmo tempo, fosse aceito pelo proprietário e/ou farmacêuticas.
O primeiro lugar que sugeri foi o próprio balcão, mas a farmacêutica alegou que neste
local também ficam expostos muitos produtos farmacêuticos, além dos telefones e
computadores. Segundo ela, a presença de uma urna no balcão poderia também dificultar o
preenchimento pelas usuárias, as quais poderiam ficar constrangidas. Optei por deixar esta
questão em aberto, durante o período inicial do campo.
Combinei com os balconistas que caso estivessem realizando uma venda deste
medicamento e eu não tivesse notado, que eles poderiam fazer sinal com a cabeça ou com os
olhos para me avisarem. Todos concordaram. Entretanto, essa estratégia não se mostrou
eficaz, e depois de um tempo em campo, decidi abandoná-la, já que criava uma situação
artificial em que o balconista ficava preocupado somente em me avisar ou, ao contrário, já
pedia a consumidora para me conceder uma entrevista, com a intenção de ajudar. Nos dois
casos, é perceptível a interferência no processo de interação.
Houve um episódio no primeiro dia de campo que já sinalizou as dificuldades dessa
estratégia. Enquanto olhava um atendimento realizado próximo a mim, ouvi um chamado:
“senhora Sabrina”, fiquei em dúvida, pois era o balconista que não tinha me recebido muito
bem, mais fechado do que os outros. Perguntei se ele havia me chamado e ouvi uma resposta
num tom irritado: “óbvio”. Percebi que havia um rapaz jovem no balcão, ele logo colocou
131
uma caixa de Poslov® (CE) na cestinha. O jovem não perguntou o preço ou qualquer outra
coisa ao vendedor e nem este se preocupou em fornecer-lhe qualquer informação. A interação
foi muito rápida, sendo que pude perceber o deslocamento da atenção do balconista para mim,
o que me gerou desconforto, pois minha intenção era acompanhar com menos interferência
possível tal encontro.
Outra situação me fez ponderar mais seriamente sobre a (in)utilidade de ser avisada ou
receber qualquer tipo de ajuda do balconista, durante a comercialização da CE. Ocorreu
durante o Carnaval de 2011. Por volta de 14 horas entrou uma jovem, encostou perto de mim
no canto do balcão da drogaria e pediu em tom de voz baixo, quase inaudível até mesmo para
mim: “uma caixa da pílula do dia seguinte, por favor”. Mesmo antes que ela pudesse
terminar a última palavra, ele olhou para mim e disse a ela “enquanto eu pego o medicamento
para você, poderia responder umas perguntas para ela, que veio de Minas só para fazer uma
pesquisa sobre esse medicamento?”.
Achei solidário o apelo dele, mas, sem dúvida, representou uma intervenção no
processo interativo do balconista com a jovem, pois a mesma, apesar de ter sido muito
simpática e ter aceitado participar, ficou claramente envergonhada com tal situação. A partir
daí, procurei me fixar por mais tempo próxima ao balcão, focando no processo de interação.
Quando o/a cliente se encaminhava para o caixa, eu ficava do lado de fora esperando para
estabelecer a abordagem com estes/as consumidores/as, que quase sempre demonstravam
muita pressa.
No decorrer do trabalho de campo, optamos pela não continuidade da aplicação do
questionário com os/as consumidores/as, devido ao fato dele ter sido concebido como um
instrumento preliminar de aproximação ao campo e, não sendo utilizado em larga escala, seus
resultados pouco acrescentariam à pesquisa. Assim, priorizamos a observação da interação
entre as/os consumidoras/es e balconistas no momento da venda da CE. Certamente, o fato de
ter tido pouco contato com os/as consumidores/as da CE se deveu tanto ao próprio processo
de estruturação do trabalho de campo que ocorreu dentro da drogaria, quanto ao caminho
escolhido para integração naquele espaço.
Percebemos que seria inviável valorizarmos, em igual medida, o olhar sobre quem está
dentro e fora do balcão. Por isso, consideramos mais viável e adequado aos objetivos,
priorizarmos o olhar sobre a drogaria, seus personagens, suas formas de organização e como
tais aspectos rebatem no atendimento realizado às/aos consumidoras/es da ‘pílula do dia
seguinte’. Mas, este questionário havia se tornado a âncora que me ligava à drogaria, segundo
132
a concepção de meus informantes. Para eles, pelo fato de termos escolhido colocar o foco
sobre os/as consumidores/as da CE, eu estava eminentemente preocupada com o
“preenchimento” de questionários. De todo modo, não eliminei as chances de aproximação às
consumidoras pela via deste instrumento, que passou a ser apenas um pretexto para iniciar
uma conversa informal com àquelas que se dispunham a tocar no assunto com uma pessoa
estranha.
Através deste instrumento, busquei manter certo relacionamento com os/as
consumidores/as da CE deste estabelecimento, e mesmo que nossa relação fosse marcada pela
urgência, consegui conversar com algumas mulheres consumidoras sobre suas experiências
com o contraceptivo de emergência. Além disso, nos momentos de contato com os/as
consumidores/as busquei questionar sobre os locais onde eles/as preferencialmente buscavam
a CE81.
A breve interação com elas/eles demonstrou logo de partida que muitas mulheres, de
fato, sentem vergonha e constrangimento no momento da compra da CE, o que não ocorre
com os homens. Várias vezes, durante o processo de abordagem às consumidoras para
apresentação da investigação, ouvi comentários como os citados abaixo:
“Ai que vergonha, foram os balconistas que te avisaram?” (mulher, 21 anos).
“Logo hoje que eu vim comprar, vocês estão fazendo a pesquisa?” (mulher, 16 anos).
As mulheres, especialmente as mais jovens, expressaram maior constrangimento do
que as mais velhas, notado pela expressão corporal, voz trêmula e ruborização daquelas que
aceitaram participar da investigação. Apesar disso, o índice de negativa em participar da
pesquisa foi baixo, de trinta e quatro abordagens realizadas, somente duas se recusaram a
colaborar.
A primeira recusa foi de uma mulher de aproximadamente trinta anos, bem vestida, a
qual entrou rapidamente na drogaria falando ao celular, e assim procedeu ao pedido da CE.
Após efetuar o pagamento, interpelei-a e ela, sem desligar o telefone, alegou atraso para o
trabalho. Já a segunda envolveu um casal bastante jovem, quando indaguei o rapaz, que
comprou o medicamento, sobre a possibilidade de participação na pesquisa, a jovem que
estava próxima, respondeu por ele que não, também sob a alegação de atraso para outros
compromissos.
81
Estes aspectos serão tratados no capítulo 8.
133
**
*
REFLEXIVIDADE...
O exercício metodológico e ético de construção desta investigação etnográfica em
drogaria foi permeado por dificuldades e incertezas, mas também por surpresas e
aprendizados. Pude observar características marcantes destas instituições e de seus
personagens e avaliar as estratégias metodológicas utilizadas.
Por exemplo, a utilização da intermediação de colegas do ramo farmacêutico para
aprovação dos/as proprietários/as de drogaria funcionou melhor na zona norte que na zona
sul. Nos estabelecimentos franqueados da zona sul, a recepção da pesquisa foi atravessada
pela ênfase em protocolos da empresa, que rejeita a presença de terceiros nos
estabelecimentos. Este foi o fator determinante para a negativa da proposta, não importando
as justificativas e a prerrogativa do contato prévio com alguém conhecido. Por outro lado,
minha entrada na zona norte foi determinada pelo contato de um intermediário, o qual eu nem
mesmo
conheci
pessoalmente. Revela-se a
importância de problematizarmos as
determinações relativas aos níveis de fechamento das instituições farmacêuticas e,
consequentemente, das possibilidades de compreensão das práticas sociais realizadas em seus
interiores.
Além disso, nossa estratégia de colocar o foco sobre os/as consumidores/as não soou
positivo na zona sul, já que eles demonstraram extrema preocupação com a privacidade dos/as
clientes. Na região norte, ao contrário, não ouvi, nas drogarias visitadas, comentários sobre a
obediência aos protocolos, nem grandes preocupações quanto à privacidade da clientela. A
maior preocupação com a privacidade na zona sul é justificada, pelos meus informantes, pelo
nível de informação e/ou escolaridade destes consumidores. Essa questão é importante de ser
problematizada, especialmente porque no Brasil os medicamentos contraceptivos são
adquiridos por suas usuárias principalmente através das drogarias, não pelos serviços públicos
de saúde (CABRAL, 2011, p. 32).
Interessante observar que os momentos de visita aos estabelecimentos trouxeram
pistas também sobre a relação dos seus personagens com a “pílula do dia seguinte”. No
estabelecimento franqueado no Catete, por exemplo, enquanto eu aguardava, conversei com
uma vendedora da perfumaria, que me confundiu com uma consumidora. Quando eu disse
que estava fazendo uma pesquisa sobre a contracepção de emergência e que aguardava o
farmacêutico, ela começou a discorrer sobre as vezes em que tinha utilizado a pílula: “nossa,
134
eu mesma, já tomei várias vezes, inclusive ensinei a várias amigas”. Contou que não tinha
parceiro fixo, o que na sua compreensão dificultava o uso de anticoncepcional regularmente.
“Daí, quando acontece, às vezes tem que recorrer à PDS”. Esse comentário da perfumista foi
muito útil, demonstrando a importância de explorar também com os/as funcionários/as das
drogarias as experiências sobre o consumo da CE. Àquela altura, meu olhar ainda estava
ingenuamente polarizado: de um lado, os/as consumidores/as e de outro, os/as funcionários/as
das drogarias.
A substituição do uso do TCLE de modo formal, pela técnica de passar mais tempo
conversando e explicando um a um sobre os aspectos mais gerais da pesquisa resultou
promissor, pois permitiu uma interação real, e não intimidou os funcionários da drogaria com
assinaturas de documentos no momento inicial de construção do vínculo.
A experiência vivenciada fomenta a discussão a respeito da necessidade dos
pesquisadores das ciências sociais e humanas, especialmente aqueles atuantes na área da
saúde, problematizarem os modelos de pesquisas consagrados nas ciências naturais, em favor
da incorporação de um arcabouço ético e metodológico mais amplo que oriente a prática de
investigação, mas que ao mesmo tempo permita a criatividade e a construção de um processo
empático pouco convencional entre os investigadores e sujeitos pesquisados. Nas pesquisas
antropológicas, a inclusão da subjetividade de pesquisador e sujeitos é a matéria prima com a
qual confeccionamos nossa análise e interpretação dos dados coletados.
No decorrer do trabalho de campo, optamos pela não utilização do questionário de
urna com os consumidores, devido ao fato do mesmo não acrescentar dados válidos à
pesquisa, priorizando-se a observação da interação entre os/as consumidoras/es e balconistas
no momento da venda da CE. Certamente, o fato de termos tido pouco contato com os/as
consumidores/as da CE se deveu tanto ao próprio processo de estruturação do trabalho de
campo que ocorreu dentro da drogaria, quanto ao caminho escolhido para integração naquele
espaço.
Finalmente, é fundamental observar que os papeis e posições, identidades e diferenças
vivenciadas pela pesquisadora e sujeitos pesquisados no início do trabalho de campo foram
determinantes para o desenvolvimento desta etnografia. Em pesquisa social, não temos
fórmulas prontas para o estabelecimento deste relacionamento, por isso o método e a ética
estão interligados e dependem do exercício criativo e do julgamento do pesquisador e sujeitos
investigados.
135
Minha origem mineira foi um fator de aproximação inicial importante com os/as
funcionários/as da drogaria, em especial com os balconistas. Chegar sem dar muitas
explicações foi possível na realidade de zona norte. Ali não tive dificuldades de comunicação
e integração, apesar do distanciamento e estranhamento inicial em relação ao universo
sociocultural que eles/elas faziam parte e se identificavam.
Após algum tempo de trabalho de campo, quando boa parte dos receios havia se
dissipado, e devido às dificuldades de inserção nas drogarias da zona sul, observei que mesmo
não penetrando nesta região, as comparações realizadas pelos meus informantes eram
frequentes. À medida que o tempo passava e eu acompanhava o trabalho de todos, percebiame submersa em uma lógica moral fortemente fundamentada na hierarquia relativa aos
territórios da cidade, de classe social, raça e gênero/sexualidade.
Após o exame de qualificação do projeto de tese, ao invés de buscarmos outra drogaria
na zona sul da cidade, optamos por permanecer na drogaria na região da Leopoldina, visando
adensar o material etnográfico, no sentido de aprofundar o olhar sobre as práticas e interações
ocorridas no interior deste estabelecimento. A banca82 sugeriu ainda que incorporássemos a
discussão sobre tais divisões simbólicas do espaço urbano no Rio de Janeiro, através das
narrativas e práticas dos sujeitos investigados na zona norte e suas relações com a zona sul.
Assim, a ideia de uma segunda drogaria foi abandonada e o esforço analítico comparativo
empreendido através das representações dos funcionários sobre os distintos espaços sociais na
cidade.
82
Agradecemos à professora Adriana Vianna (MN/UFRJ) pelas valiosas sugestões sobre como discutir as
oposições norte e sul no Rio de Janeiro, sem necessariamente vivenciar uma experiência etnográfica em drogaria
na zona sul.
136
7 CONVERSAS DE BALCÃO: GÊNERO, SEXUALIDADE E ESPAÇOS URBANOS
EM PERSPECTIVA83
Depois de certo tempo de trabalho de campo, foi possível perceber que, do mesmo
modo que meus sentimentos pelo grupo eram oscilantes - às vezes tudo me era muito familiar,
mas outras era tomada pelas sensações de estranhamento, os/as funcionários/as da drogaria
também pareciam assim reagir diante da minha constante presença. Recordo o ensinamento de
DaMatta sobre o processo de construção de um etnólogo, que deve ocorrer pelo aprendizado
de uma tarefa, que se traduz em duas fórmulas: “transformar o exótico em familiar e/ou
transformar o familiar em exótico” (1978, p. 28).
Levando em conta minha posição de pesquisadora do campo da saúde coletiva e meu
lugar de mulher na sociedade, vivenciei alguns confrontos subjetivos em campo, relativos às
minhas noções e/ou concepções críticas sobre o processo de ‘farmacologização da sociedade’
(WILLIAMS, MARTIN, GABE, 2011; CAMARGO JR., 2013). Em muitos momentos tinha
que resistir para não romper com minha posição discreta e dar uma ou outra opinião, tanto
para os consumidores, quanto para os vendedores. Para isso, durante meus diálogos em
campo, sempre buscava encontrar algo que estivesse além de minhas percepções sobre este
setor.
Além disso, como mulher, ao contrário, tive que desenvolver algumas habilidades para
conseguir me relacionar com os balconistas, todos homens, que se tornaram meus principais
informantes na investigação. Ou seja, nesse caso, era fundamental que eu ultrapassasse a
barreira do estranhamento.
Como salientado no capítulo anterior, desde o primeiro momento que cheguei à
drogaria observei que a organização do seu processo de trabalho estava perceptivelmente
fundada em uma lógica hierárquica de gênero, através de uma divisão sexual do trabalho. Na
drogaria, só havia balconistas do sexo masculino e perfumistas (atendentes nas gôndolas) do
sexo feminino. Entregadores homens e embaladoras mulheres.
Como isso se dá? Será intencional? Se sim, quais as justificativas dadas pelo próprio
grupo? Decidi não perguntar diretamente. Com o tempo percebi que este formato
83
Agradeço as professoras Jaqueline Ferreira e Soraya Fleischer pelas sugestões feitas ao artigo PAIVA, S.P.;
BRANDÃO; E.R. Conversas de balcão: notas etnográficas em uma drogaria, o qual foi aprovado para o livro
“Etnografias nos serviços de saúde”, organizado por Soraya Fleischer e Jaqueline Ferreira, editora
Garamond/FAPERJ, com previsão de lançamento para 2014. Tais sugestões foram também incorporadas aqui.
137
organizacional era proposital, pensado estrategicamente com o objetivo de obter mais lucro
com a venda de medicamentos. Para este grupo, os homens são mais capazes que as mulheres
no ramo comercial.
Tal orientação não passou despercebida pois ao me deparar com todos aqueles homens
no balcão (seis ou sete ao mesmo tempo) comecei a questionar sobre as dificuldades que as
consumidoras da CE teriam para adquiri-la. Por se tratar de um medicamento ligado às
vivências sexuais, em geral as mulheres sentem constrangimento e vergonha, que talvez possa
se exacerbar com balconistas homens e conhecidos das consumidoras.
Após meses de convivência, com a confiança estabelecida entre pesquisadora e
balconistas, começaram a se tornar frequentes entre nós as conversas sobres suas vidas
sexuais e afetivas, suas experiências extra-conjugais. Decerto ter como objeto de investigação
um medicamento que se relaciona diretamente ao sexo forjava tal ambiente de cumplicidade.
Dei-me conta de que estava imersa em uma atmosfera sexista e discriminatória quanto ao
gênero e às vivências sexuais e reprodutivas. Durante o trabalho de campo, os assuntos mais
tratados entre nós espontaneamente foram o futebol, pagode, mulheres e trabalho, temas
centrais à sociabilidade masculina.
Percebi-me naquele terreno movediço, descrito por Sarti (2005), como característico
da posição do antropólogo, de estar próxima, pela situação de pesquisa, pela familiaridade que
se vai desenvolvendo e, simultaneamente, de não fazer parte daquele grupo social, pelo fato
de ser mulher e de outra inserção sociocultural. Em algumas situações, que envolviam suas
percepções a respeito dos relacionamentos afetivo-sexuais e dos papeis e posições assumidos
pelos homens e mulheres nas relações, quando solicitavam minha opinião, ficava procurando
palavras que evitassem a semelhança com o discurso igualitário feminista, que normalmente
eu faria.
Tal discussão envolve o surgimento das emoções na pesquisa de campo, levando-nos a
reflexões sobre a posição de observadora e sobre as formas de envolvimento com os sujeitos
de investigação. Como nos aponta DaMatta, há um paradoxo na situação etnográfica: “para
descobrir é preciso relacionar-se e, no momento mesmo da descoberta, o etnólogo é remetido
para o seu mundo e, deste modo, isola-se novamente” (1978, p. 32).
A opção por uma investigação etnográfica, que prima pela construção de um olhar “de
perto e de dentro” (MAGNANI, 2002), levou-me a viver com intensidade o desafio de olhar
para meus sujeitos de pesquisa com a lente própria das ciências sociais e humanas. Do
138
questionamento inicial referente ao processo interativo construído no ato de comercialização
da contracepção de emergência, percebo que minhas “aventuras antropológicas” foram além.
O processo de interação com os sujeitos de pesquisa me levou a conhecer suas práticas sociais
para além do contexto e objeto observado. Considero que, mesmo sem ter lido Fleischer
(2012, p. 415) antes de ir a campo, segui a direção por ela apontada, transformando minha
investigação sobre/com a CE em um “atalho etnográfico” fértil para pensar outras questões
que extrapolam o objeto em foco.
Desse modo, este capítulo destaca, no primeiro momento, a dinâmica das estruturas de
gênero presentes na organização do cotidiano desta instituição farmacêutica, bem como outras
estruturas sociais entrelaçadas. No segundo momento, o foco recai sobre os aspectos
referentes às posições de gênero e sexualidade dos sujeitos investigados, moldadas em
universo sociocultural distinto daquele da pesquisadora.
Parto da compreensão do trabalho antropológico como uma mediação, que está sempre
aquém da realidade, na medida em que como pesquisadora necessito não só ir a campo, mas
em seguida, retornar à descrição de minhas vivências, orientada por certo olhar sobre a
realidade. A perspectiva de Sahlins (1990), que remete à importância de estudarmos os
processos de percepção da realidade associados à concepção que dela o grupo faz ou possa
fazer torna-se central.
Valorizar os detalhes no diário de campo e as percepções dos sujeitos envolvidos
integra a atividade de pesquisador/a, que Lévi-Strauss (1989) chama de bricoleur, ou seja,
aquele/a que relaciona fragmentos, elementos dispersos, que por esta “costura” interpreta e
cria novos significados.
7.1. A DROGARIA E SUA LÓGICA DE GÊNERO
Desde o primeiro dia em campo, chamou-me atenção a divisão de funções no interior
da drogaria, pois parecia estruturada segundo uma divisão sexual do trabalho. As mulheres
assumiam funções de embaladoras, perfumistas - responsáveis pela venda dos produtos das
gôndolas, caixas, secretária e farmacêuticas e aos homens cabiam as atribuições de
balconistas, gerentes, entregadores, controladores de estoque.
De acordo com Hirata e Kergoat (2007, p. 599):
139
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das
relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a
sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e
socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação
pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos,
militares etc.).
Kergoat (2000) ressalta que esta forma de divisão social organiza-se sob dois
princípios: - princípio da separação (“trabalhos de homens” e “trabalhos de mulheres”) e; hierarquização (“trabalhos de homens” valem mais que os “trabalhos de mulheres”). O
processo de legitimação desses princípios se constrói calcado em uma base essencialista, que
reduz as práticas sociais a atributos sexuais e as coloca como destino natural de cada sexo.
Senti-me impelida a entender melhor essa rede complexa de hierarquizações de poder.
Como já comentado, optei por me posicionar do lado de fora do balcão, mas na maior parte do
tempo, bem próxima a ele. Isso tornou possível o desenvolvimento de um relacionamento
mais próximo com os balconistas, tornando-se frequentes em nossas conversas assuntos
relativos às suas vivências profissionais e as (in)satisfações com o trabalho. Muitas vezes, por
eu representar alguém de “fora”, eles se sentiam à vontade para reclamar e/ou valorizar
aspectos de suas atividades profissionais.
Estes trabalhadores, todos homens, são responsáveis pela comercialização de todos os
medicamentos que ficam “atrás” do balcão, ou seja, aqueles que devem ser vendidos com
receita, além de antitérmicos, digestivos, analgésicos, de acordo com as normas da ANVISA
(BRASIL, 2009). São também responsáveis pela organização, limpeza e tabelamento
permanente de preços dos medicamentos.
O processo de aprendizagem desse ofício se inicia pelo setor de entregas e estoque,
implicando a possibilidade de ascensão profissional na empresa, especialmente para os
homens. Nesta drogaria, todos, inclusive o proprietário, começaram como entregadores e/ou
estoquistas, e ao se “interessarem” pelo aprendizado de tal ocupação, começaram a auxiliar
os colegas balconistas com vistas a receberem uma oportunidade de “passar para trás do
balcão”.
Estando lá, segundo eles, o objetivo seguinte quase sempre é chegar à gerência e/ou
montar sua própria drogaria, sendo que nenhum deles expressou interesse em se tornar
farmacêutico, pois não veem diferenças entre o salário que recebem e o da farmacêutica.
Como disse Souza (31 anos, médio incompleto):“Tirar diploma é muito sacrificante, caro, e
não recebe salário superior ao da classe. Então por quê?”.
140
O regime semanal de trabalho para os balconistas chega a 68 horas semanais, quando
há plantão no final de semana. São dois fins de semana de plantão - sábado e domingo o dia
todo (8:00 às 22:00h) - e um de folga. Além disso, ocorre uma alternância entre eles nos
plantões, já que a cada fim de semana dois balconistas são escalados para o horário noturno
(22:00 – 8:00h), quando a drogaria funciona 24 horas.
Sobre essa rotina extenuante de trabalho, lamentam não ter mais tempo junto à família,
gerando ansiedade até mesmo nas folgas, quando ficam divididos entre descansar ou se
dedicar à vida doméstica. Júlio, 27 anos, ensino médio completo, comentou que quando sai
para trabalhar, a filha está dormindo e, quando volta, ela também está dormindo. Ele lamenta
não poder ter mais tempo com a família, pois nos dias de folga fica dividido entre repousar ou
estar com a mulher e filha. Ronaldo (44 anos, ensino médio incompleto), sempre brincalhão,
se referia à drogaria como uma instituição penitenciária: “venha para a prisão, aqui você
entra e não sai nunca mais”. Alguns demonstram cansaço, outros, talvez por serem muito
jovens, conseguem driblá-lo e/ou escondê-lo.
De acordo com o relato do balconista José (55 anos, ensino médio completo), que
trabalha há 42 anos no ramo, a fórmula para se ganhar dinheiro é trabalhar muito, ficando tal
função restrita às pessoas mais jovens. Ele comenta sobre as mudanças nesta atividade, pois
antes era preciso conhecer mais sobre medicamentos e era possível estabelecer vínculo “mais
humano” com os clientes. E acrescenta que vários amigos da mesma faixa etária perderam
seus empregos por não terem se adaptado a esse ritmo frenético e competitivo de trabalho. Ele
pareceu-me muito cansado e insatisfeito, e afirmou que continuará nessa vida somente até os
filhos se formarem, após isso pretende se aposentar.
Sobre o horário de almoço, vários disseram que possuem direito a uma hora para fazer
as refeições, mas que preferem ficar sem se alimentar até o fim do expediente, recorrendo a
lanches rápidos. Fazem isso para não perderem clientes e não ficarem sonolentos. A
explicação é de que a maior parte do que recebem ao fim do mês corresponde às comissões,
por isso não podem parar.
O valor mensal recebido por estes balconistas gira em torno de três até quatro mil
reais, com salário correspondente ao mínimo regional dos comerciários no Estado do Rio de
Janeiro84. Quando eles “batem a cota” (atingem a meta de vendas estabelecida pelo
proprietário) por três meses seguidos, recebem abono salarial. No caso dos medicamentos
84
Salário mínimo do Rio de Janeiro na época das entrevistas/2012: R$ 607,88.
141
genéricos, a cota estipulada no período do campo, considerada alta por eles, era de treze mil
reais por mês. Aquele que conseguisse vender esse valor ou mais, ganhava o correspondente a
10% do valor destas vendas. Com os similares e aqueles denominados éticos ou de referência,
também havia comissão, maior no primeiro do que no segundo caso85.
Esta é a lógica que impera, é preciso ter resistência física e psicológica, quem não está
ali com o objetivo de “bater as cotas” pode acabar perdendo o emprego, enquanto aquele que
vende mais ganha reconhecimento, “sobe de posição” dentro da empresa. Essa concorrência
é claramente mais vivenciada entre os balconistas (homens) do que entre as atendentes da
perfumaria (mulheres), que também possuem acréscimos no salário provenientes das
comissões.
Eles ficam no balcão, em disputas nada veladas, e utilizam várias estratégias para
vender sempre mais do que os outros colegas. Observei logo que a oferta de medicamentos
era comumente superior à indicada na receita, quando havia receita. Chamou-me atenção
ainda a corrida para o atendimento dos pedidos por telefone (antes da instalação do call
center), pois eles ficavam próximos aos aparelhos, às vezes com as mãos sobre os mesmos.
Presenciei vários desentendimentos entre eles, especialmente quando alguém era acusado de
fazer, ao mesmo tempo, um atendimento no balcão e por telefone.
As concorrências abertas por esse atendimento foram razoavelmente apaziguadas com
a opção do proprietário pela criação do serviço de call center, com atendentes homens. Essa
modificação significou uma separação entre os atendimentos do balcão e os acolhidos por
telefone. Somente nos plantões de fim de semana, ou caso os telefonistas não dessem conta de
atender a todos os clientes, as ligações eram transferidas para os balconistas.
Alguns funcionários não cumpridores das metas por dois ou três meses, foram
designados para o call center, como certo “castigo”, levando a um rebaixamento salarial.
85
De acordo com a Lei n.9787/1999: – Medicamento Similar – aquele que contém o mesmo ou os mesmos
princípios ativos, apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e
indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado no órgão federal
responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do
produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por
nome comercial ou marca.
– Medicamento Genérico – medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser
com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros
direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela Denominação
Comum Brasileira (DCB) ou, na sua ausência, pela Denominação Comum Internacional (DCI).
– Medicamento de Referência – produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância
sanitária e comercializado no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente
junto ao órgão federal competente, por ocasião do registro (BRASIL, 1999).
142
Segundo meus informantes, sair do balcão gerava uma diminuição de pelo menos 1/3 no
salário, já que as comissões eram menores e a venda mais restrita. O fato é que esse setor
começou a ser visto por todos como uma ameaça, gerando maior insegurança e competição
por vendas.
José (55 anos), ao me contar sobre sua transferência para o setor de call center,
demonstrou sua insatisfação, segundo ele, não por conta do serviço em si, mas por conta da
falta de preocupação com o bem estar do funcionário. Para ele, “o poder está nas mãos de
funcionários que têm pouca capacitação para o trabalho, mas que puxam o saco do dono
[gerentes]. Estas pessoas começam a fazer as mudanças e todos têm que aceitar e ainda fazer
cara de satisfação”. Logo em seguida, José foi demitido.
Quando isto ocorreu, conversei com alguns colegas sobre sua demissão, todos
concordaram que ele estava “velho” para o ramo, pelo fato de não saber trabalhar com o
“esquema de bonificação” e não utilizar bem o computador. A diminuição da resistência
física e psicológica e menor disposição para mudanças acabaram restringindo o espaço desse
experiente balconista no mercado de trabalho86.
Pairava certo ar de “vale tudo” na corrida pelo alcance das metas de venda
estabelecidas, sendo que o clima se tornava menos amistoso ao fim de cada mês, momento
próximo ao pagamento das comissões. Como exemplo, cito Pontes (37 anos), o qual
apresentava um modo de trabalhar pouco convencional, definido por eles como
“escrachado”. Sua meta principal era vender medicamentos genéricos, pois o lucro é maior
para ele e para o proprietário. Dado momento, quando ele já havia adquirido intimidade
comigo, percebi enquanto ele falava ao telefone da farmácia que havia dito o meu nome, quis
ouvir a conversa e ele disse: “a Dra. Sabrina lá do hospital da Penha [mais próximo dali]
sempre diz que esse medicamento genérico é muito bom”. Quando ele desligou o telefone,
disse: “é muito fácil convencer as pessoas!”.
Percebi, após algum tempo, que eram comuns, nas narrativas de convencimento dos/as
consumidores/as para a compra de algum fármaco, as referências às indicações de médicos
fictícios, como signo de confiabilidade da sugestão feita pelo balconista. Essa e outras
estratégias discursivas como afirmar que é um “medicamento moderno, de última geração”
86
Mantive contato com este balconista, pois o mesmo se tornou um informante-chave para minha investigação,
trazendo detalhes do funcionamento destas instituições e suas percepções quanto à comercialização da CE e suas
consumidoras. Ao sair desta drogaria, logo em seguida empregou-se em outra, no bairro de São Cristóvão, bem
menor, com comissões também menores, mas, segundo ele, “bem mais tolerável em termos de pressão para
vendas e ritmo de trabalho”.
143
e/ou “muito utilizado nos Estados Unidos” muitas vezes eram aprendidas com os colegas
representantes de laboratório.
Aqueles que conseguem maior êxito nas vendas, em geral, são alvos de comentários.
Certo momento, ouvi uma discussão entre dois balconistas, um deles reclamou da ânsia por
vendas do colega, que retrucou no mesmo instante afirmando que tinha que comprar o leite
dos filhos, para isso precisava “fazer dinheiro”. E acrescentou em seguida: “estou aqui para
ganhar dinheiro e não para ficar de conversinha”. Com o tempo comecei a observar que
alguns chegam a romper temporariamente a relação com colegas de balcão, já que os
desentendimentos e acertos de contas eram frequentes.
Havia o medo de perder o emprego, que se tornou mais presente devido à alta
rotatividade de funcionários na empresa, especialmente entre os balconistas. Eram duas
alternativas: “ou se cumpre a meta ou sai da empresa”. Ficou claro, no decorrer do estudo,
que a gestão da empresa passava por modificações, assumindo postura mais arrojada de
competição no mercado, gerando a produção de normas mais detalhadas e rígidas, as quais
atingiram diretamente as práticas e perfis dos funcionários, aproximando-se mais do padrão
de drogaria de rede. Este formato organizacional trouxe, sem dúvida, uma atmosfera mais
competitiva para a drogaria, tanto interna quanto externamente.
Seguindo os objetivos de expansão, ocorreu a inserção da drogaria no programa
“Farmácia Popular”87 e o posterior deslocamento de função de uma das perfumistas para o
atendimento exclusivo aos clientes desse programa. Segundo a farmacêutica, quando
implantado o Programa, houve reclamações dos balconistas, já que eles não recebiam
comissão por estes atendimentos enquanto o proprietário recebia o repasse governamental.
Ela interviu no sentido de convencer o proprietário a designar um funcionário exclusivamente
para esta função e, para tanto, escolheram uma mulher, segundo ela, pelo fato de ter “mais
paciência e disposição para atender bem os clientes, independente da comissão”. Em geral,
boa parte destes consumidores são idosos/as e requerem mais atenção no ato de compra dos
medicamentos.
87
O objetivo do programa é, segundo o Ministério da Saúde, ampliar o acesso da população aos medicamentos
considerados essenciais, oferecendo-os a preços reduzidos. Os medicamentos são adquiridos pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), em laboratórios farmacêuticos públicos ou do setor privado. A Fiocruz disponibiliza os
medicamentos às Farmácias Populares sem custo algum, onde são vendidos em farmácias próprias, ou ainda em
farmácias da iniciativa privada. A redução de preços é possível graças a isenção de impostos e a aplicação de
subsídios, por parte do Governo. Em média, os medicamentos são vendidos com preços 85% menores do que as
farmácias comuns (disponível em: www.saude.gov.br/).
144
Observei no campo várias situações em que os balconistas tentavam convencer os
idosos a comprarem mais medicamentos sem receita médica ou em quantidade superior ao
que foi prescrito. Em geral, obtinham sucesso. As situações de deboche também eram
frequentes, as quais contrastavam com atitudes cuidadosas por parte de um ou dois
balconistas que, por conta disso, eram ridicularizados por seus colegas.
Cito dois exemplos contrastivos. Em um dos dias em que estava mais detida na
observação dos atendimentos de balcão, notei uma situação que, apesar de não estar
relacionada à CE ou outra tecnologia reprodutiva é digna de nota. Um idoso, por volta de 70
anos de idade, estava contando para um dos balconistas mais novos sobre uma dor que tem
sentido no peito, mesmo tomando a medicação corretamente. Não sei se por impaciência, já
que o medicamento do cliente estava na cesta, mas a resposta do balconista foi “dá um ou
vários socos no peito que previne o infarto”. O colega que estava ao lado olhou para ele,
ouviu, ele continuou “é sério, já ouvi dizer isso, que se você der soco em seu próprio peito
pode evitar um infarto” e riu em seguida. O idoso foi embora. O colega fez uma crítica em
tom de brincadeira: “vê se pode falar para um idoso, completamente sem força, dar soco em
seu próprio peito, ai ai ai...”. Eu preferi não falar nada.
Em outro momento, ocorreu mais ou menos o contrário, um dos balconistas mais
antigos nesta drogaria, Gilmar (29 anos) atendeu a solicitação da cliente, a qual lhe pediu para
transcrever com sua letra os exames pedidos pelo médico no papel do plano de saúde. Ela
reclamou muito, pois precisava agenda-los por telefone e não conseguia entender o que o
médico havia escrito. Foi até à drogaria apenas para pedir a colaboração do balconista, que a
atendeu prontamente. Assim que ela saiu, fui até o balconista e aguardei seu comentário, que
logo veio: “o povo não tem para quem perguntar as coisas, vem até nós”.
Esse balconista, que apesar de bem novo, trabalha há 16 anos no ramo, exibe uma
postura um pouco diferente dos demais. Segundo ele, “sua escola foi outra”, pois aprendeu o
ofício com um balconista “bem mais velho”, o qual lhe ensinou a trabalhar com os/as clientes.
A cliente era uma senhora idosa, moradora do bairro e, para o balconista, também uma
excelente consumidora e “fiel” a ele, já que não aceita comprar com outro balconista. Seu
jeito de trabalhar incomodava aqueles que visavam somente o “cumprimento das metas”. No
entanto, de modo geral, a relação dos balconistas com os consumidores é pautada pela venda
crescente de medicamentos.
Na estrutura organizacional da empresa, os balconistas são subordinados ao
proprietário, aos gerentes e às farmacêuticas. Na prática, eles estão diretamente vinculados
145
aos gerentes. Como dito, a maior parte deles pretende chegar ao cargo gerencial, sendo que
para isso, precisa vender mais do que os demais, saber trabalhar com fornecedores de
medicamentos, ter liderança, fidelidade à empresa e papel ativo no comércio de
medicamentos.
Nos dois anos de campo, a drogaria contou com três gerentes, todos homens. Dois
deles permaneceram no cargo durante a observação, sendo que o terceiro gerente foi rotativo.
Dos que mantiveram o cargo, um deles era sobrinho do proprietário, e o outro um funcionário
antigo e de muita confiança. Os dois trabalhavam diretamente com fornecedores. O terceiro
gerente é responsável pelo controle/gestão do processo de trabalho dos funcionários e auxilia
na resolução de problemas com a clientela. Este tem um salário menor que os demais, maior
que dos balconistas e pode ainda concorrer pela comissão na venda de medicamentos.
Os entregadores estão posicionados na base da estrutura organizacional da empresa,
detentores de baixo prestígio. A maior parte almeja chegar ao cargo de balconista, como
ocorreu na trajetória de todos que atuam neste estabelecimento. Eles podem permanecer
pouco tempo no interior da drogaria, aguardam os pedidos de entrega sentados em alguns
bancos do lado de fora da drogaria. Quando soa a campainha é sinal de que o próximo da fila
deve entrar e receber a solicitação das mãos da embaladora. Enquanto esperam, muitas vezes
ficam atentos à movimentação no estoque, visando ampliar suas funções na empresa.
Trabalham oito horas diárias e recebem o salário mínimo regional, sem comissões. Somente
um utiliza motocicleta, o restante faz as entregas com bicicletas.
As perfumistas trabalham 8 horas diárias, recebem o salário e comissões, porém as
mesmas correspondem a 1/3 da que é recebida pelos balconistas. E nos fins de semana
trabalham um e folgam outro. Desfrutam de status equiparável ao dos balconistas, mas têm
poucas chances de melhorar os salários ou de ocupar postos de gerência, somente pelos
estudos. A única funcionária, nesta drogaria, que migrou do salão de perfumaria para trás do
balcão, ficou em desvantagem salarial, pois sua nova função de atendimento aos usuários da
“Farmácia Popular” não inclui comissões.
De acordo com a avaliação dos balconistas, as mulheres não são contratadas para o
balcão porque “não têm interesse de aprender, têm preguiça de pensar e pouca experiência
em ganhar dinheiro, com negócios”. Além disso, um dos balconistas argumentou que uma
mulher no balcão poderia atrapalhar, “já que com elas os homens devem agir com
cavalheirismo”. Para eles, as mulheres não possuem resistência física e psicológica para o
duro trabalho de balcão.
146
De fato, meu estranhamento frente a essa divisão sexual do trabalho, parece não ter
eco na experiência dos trabalhadores desta drogaria, homens e mulheres. Conversei sobre esse
assunto com uma das perfumistas que me tornei mais próxima. Vânia (22 anos) me disse que
eles ganham mais, porém também trabalham muito mais. Pelo fato dela ter um filho de 2
anos, sua vida profissional adquire um caráter de necessidade, estando seu desejo ligado ao
filho, que ela precisa deixar com familiares. Ela me confidenciou que se pudesse não deixaria
o filho para sair para trabalhar, que se sente em dívida com a família.
Todas as perfumistas são bem jovens e mães, possuem uma rotina difícil para trabalhar
e cuidar da família. Uma delas me contou que era casada com um homem com boa situação
econômica. Porém, “ele não a tratava bem, não conversava com ela e não dava atenção aos
seus sentimentos”. Depois de algum tempo “aguentando quieta”, resolveu se separar dele.
Segundo conta, ninguém em sua família foi favorável à sua decisão, pois para eles “a culpa
era dela por ter perdido um marido tão bom partido”. Ela tem duas filhas, uma ainda é
pequena e a mais velha cuida. Além disso, contou que a sua filha também já é mãe, por isso
toma conta de duas crianças enquanto a mãe trabalha.
Outra perfumista, também muito jovem, estava sempre com ar cansado, olheiras um
pouco disfarçadas pela maquiagem, e eu resolvi lhe perguntar se gostava do trabalho, sobre
sua rotina. Ela suspirou e reclamou da carga horária estabelecida. Daquelas que consegui me
aproximar, não senti descontentamento com as funções familiares, mas sim com as vivências
e perspectivas profissionais.
Diversos analistas sociais observam que o processo de globalização acelerou o
crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, tanto em áreas formais quanto
informais da vida econômica, assim como no setor de serviços. Contudo, tal participação tem
se traduzido principalmente em empregos precários e vulneráveis, como tem sido o caso na
Ásia, Europa e América Latina. Argumenta-se que as desigualdades de salários, de condições
de trabalho e de saúde não diminuíram, e que a divisão do trabalho doméstico não se
modificou substancialmente, a despeito de um maior envolvimento nas responsabilidades
profissionais por parte das mulheres (HIRATA, 2001; ARAÚJO, SCALON, 2005; HIRATA,
KERGOAT, 2007).
Todos trabalhavam nos fins de semana em sistemas de rodízios, com exceção das
farmacêuticas e do proprietário. Perguntei para uma das perfumistas os motivos pelos quais as
farmacêuticas não trabalhavam nos fins de semana e sua resposta foi instantânea, “elas
estudaram, nós não”. De fato, as farmacêuticas detêm uma posição diferenciada, remetendo à
147
valorização da educação entre eles e à construção de uma vivência profissional hierárquica.
Todos os funcionários da drogaria, inclusive os gerentes, tratavam-nas pelo apelido de
“doutoras”.
Ao comentar sobre o fato com a farmacêutica do turno diurno, responsável técnica
nesta drogaria, ela riu e afirmou que ali desde o início é tratada com esta reverência,
identificando como uma característica de drogarias de bairros mais populares, já que quando
trabalhou na zona sul esse apelido não existia. Apesar de não existir disparidades no que se
refere ao nível salarial entre balconistas/gerentes e a farmacêutica, há uma distinção referente
às funções, já que elas não têm preocupação com as vendas e dedicam menos tempo ao
trabalho.
Outro exemplo que remete à valorização de distinções sociais relativas ao nível de
escolaridade alcançado ocorreu durante uma festa surpresa organizada para outro dos
sobrinhos do proprietário, que era funcionário da drogaria no setor de estoques. A festa foi
realizada em homenagem à sua formatura no curso de farmácia e eu fui convidada a
participar. Foi encomendado um bolo, salgadinhos e refrigerantes, além de uma decoração
feita pela farmacêutica diurna, como bolas coloridas. Na parede havia um cartaz escrito
“Parabéns Dr. Ricardo!”. Quando ele chegou, achei bastante curioso o comentário do
proprietário: “Cadê o jaleco? Cadê o jaleco? Busquem o jaleco lá embaixo”. Enquanto o
jaleco não chegou, não houve sossego. O jaleco, sem dúvida, era um dos signos de distinção
social dos/as farmacêuticos/as.
As histórias das duas farmacêuticas eram muito semelhantes, ambas trabalharam como
balconistas durante vários anos e tiveram que equacionar trabalho com estudos. Ambas
possuíam mais de um vínculo empregatício. Quanto ao processo de trabalho, as duas
permaneciam no balcão somente quando suas presenças eram solicitadas pelos clientes e/ou
balconistas. Nesta estrutura organizacional, as farmacêuticas estavam subordinadas apenas ao
proprietário, mas não interferiam no trabalho daqueles comprometidos diretamente com as
vendas.
A farmacêutica diurna, 35 anos, parda, migrante do nordeste do país, trabalha
diretamente ligada aos gerentes, tendo responsabilidade sobre o controle dos medicamentos
(entradas/saídas), especialmente aqueles de uso controlado, e outras funções técnicas. A
noturna, 41 anos, branca, carioca, tinha funções mais restritas na empresa. Percebi que sua
contratação havia se dado mais por conta da exigência da ANVISA quanto à presença de
farmacêuticos na drogaria durante o período integral de seu funcionamento.
148
O proprietário Alexandre é temido por todos. Percebi esta dinâmica durante um
almoço com a farmacêutica, quando ela me alertou sobre “o patrão”, afirmando que era uma
pessoa ética, porém “rústico”. Não entendi sua intenção e aguardei a continuidade: “Pode ser
que você ouça ele gritar com algum funcionário, não esquenta, as pessoas já estão
acostumadas”. De fato, presenciei momentos constrangedores em que Alexandre fez
comentários e teve atitudes de demonstração de poder, com uso de uma linguagem forte e
humilhante no relacionamento com os balconistas e gerentes.
Uma das situações envolvia o gerente Gustavo, funcionário antigo, o qual não
encontrou certo número de telefone solicitado por Alexandre, que supostamente havia sido
repassado para ele. Alexandre começou a lhe pressionar, com expressões verbais e corporais.
Ele disse algumas vezes para Gustavo: “Você está doido?”; “Como não se lembra de eu ter
lhe entregue o papel com o telefone?”; “Procura nos seus bolsos”. Em um momento, perdeu
a paciência e tomou alguns papeis da mão dele, tentando encontrar o telefone. Em seguida,
vistoriou seus bolsos. Reclamou muito na presença de todos, consumidores e funcionários, foi
uma cena forte de se presenciar. Gustavo não apresentou nenhuma reação, só fazia sinal
negativo com a cabeça, dizendo que não se lembrava do proprietário ter lhe passado o papel.
Entretanto, este tipo de agressividade pública não era exercido com ou entre as
mulheres, que se mantinham inferiores na lógica estrutural, mas imunes a este tipo de
humilhação, que servia para preservar a hierarquia entre os homens. Ficou claro que tais cenas
faziam parte do cotidiano da drogaria, o que justifica reproduzir tal lógica com os
subordinados. Esse evento sublinha um dos aspectos marcantes do “espírito do grupo”, que
se refere à percepção da organização da vida social a partir de uma lógica hierárquica, que
envolve claramente as dimensões de gênero, classe social, educação, raça, localização no
território (MALINOWSKI, 1980).
Especialmente para os balconistas, a experiência laboral parecia ter um valor em si, às
vezes demonstravam orgulho por trabalharem tanto, pois o sacrifício físico e mental era
recompensado pelo êxito obtido no sustento digno de suas famílias. Para eles, o trabalho
masculino representava um troféu e, ao mesmo tempo, um fardo pesado. No plano ideal, eles
gostariam que suas mulheres estivessem em casa cuidando dos filhos, mas na realidade,
muitas delas trabalhavam fora assim como eles, justamente para garantir o sustento dos filhos
(ARAÚJO, SCALON, 2007; SORJ, FONTES, MACHADO, 2007; SARTI, 2005).
No ambiente da drogaria, notei a construção de um ethos organizacional
marcadamente masculino, de enaltecimento do preparo físico, psicológico e astúcia para
149
vendas, concebidos como atributos mais masculinos do que femininos. As mulheres, por
estarem mais presas à esfera reprodutiva/doméstica, estavam relativamente subordinadas,
desde o recrutamento, divisão do trabalho, até os sistemas de controle e promoções
(GARCIA, 1998; BRUSCHINI, 2007).
Esta lógica de gênero se entrelaçava a outras, como classe social, capital educacional e
cultural (BOURDIEU, 2007). Por exemplo, os homens que assumiam cargo de chefia eram
brancos, aqueles que trabalhavam como estoquistas, entregadores e balconistas eram
majoritariamente negros e pardos com baixa escolaridade. As mulheres negras e pardas
estavam preferencialmente nas funções de embaladoras e operadoras de caixas. Todas as
perfumistas desta loja eram brancas, com baixa escolaridade.
Por fim, é importante situar que essa dinâmica organizacional centrada em princípios
hierárquicos de gênero e seus entrelaçamentos, parece bem articulada à ordenação simbólica
do espaço urbano no Rio de Janeiro, a qual opõe zona norte e zona sul. Tais regiões
comportam, além de divisões administrativas, estilos de vida muito diferenciados. A todo
momento, essa oposição se fez presente nas práticas e nos discursos dos trabalhadores desta
drogaria, especialmente quando os mesmos já haviam passado por drogarias da zona sul.
No que se refere à organização do processo de trabalho, comentam que na zona sul é
mais comum terem que “dividir o balcão” com as mulheres. Já na zona norte, há o
reconhecimento, presente nas práticas e discursos institucionais, da fraqueza natural,
congênita, das mulheres, tanto física quanto mental, o que justifica o fato de não poderem
pleitear o cargo de balconistas (HÉRITIER, 1980; HEILBORN, 1999).
Outro aspecto dessa oposição, segundo eles, se refere às diferentes formas de
relacionamento entre os funcionários, que na zona norte é eminentemente marcado por uma
rígida estrutura hierárquica, alimentada e justificada por todos, desde aqueles que estão no
topo até quem está na base desta pirâmide funcional. Daí a importância do uso do jaleco
pelos/as farmacêuticas e do apelido “doutora”, o que, de acordo com meus informantes, não
ocorre na zona sul. Outro aspecto bastante citado como um grande diferencial das drogarias
de zona norte se refere à divisão de lucros mais igualitária. Para eles, é mais vantajoso
trabalhar na zona norte, já que o salário é mais do que o dobro do que recebe um balconista na
zona sul, onde o “patrão abocanha tudo sozinho”.
Enfim, pouco a pouco meu relacionamento com os balconistas e demais
funcionários/as da drogaria se tornaram mais informais, e eles puderam me mostrar uma
150
concepção de mundo organizado hierarquicamente, segundo preceitos de gênero, classe
social, cor/etnia, posição ocupada no espaço da cidade, capital educacional e cultural etc.
7.2. A PESQUISADORA E OS PROFISSIONAIS DO BALCÃO: GÊNERO E SEXUALIDADE
EM PERSPECTIVA
Neste item, refletimos a partir dos diálogos e construções relacionais com os
balconistas, iluminando os aspectos relativos aos confrontos entre nossas diferentes posições
de gênero e seus vários entrelaçamentos, especialmente com a sexualidade (GEERTZ, 2001;
GOFFMAN, 1985). Além das observações diretas, busquei apreender as interpretações dos
balconistas sobre os eventos do setor, interagindo e participando de suas conversas e através
de entrevistas individuais realizadas com 12 balconistas, que se tornaram mais próximos.
Como salientado, nossa relação nunca passou à margem da percepção das diferenças
em nossos modos de conceber e levar a vida. O distanciamento era óbvio, pois eu claramente
não pertencia ao mundo deles, desde o fato de ser mulher, escolarizada, eu representava
claramente algo que não se “encaixava” naquele ambiente. Certa vez, um deles me olhou
diretamente e perguntou: “você é hippie?”. Eu ri e fiz expressão de que não tinha entendido,
ele disse que era pelo meu jeito feminino diferente (jovial e descontraído), pelas minhas
roupas, por não usar maquiagem.
De certa forma, o fato de me identificarem aos ‘hippies’ parece estar relacionado ao
estranhamento que sentem em relação ao meu modo de vida. Como foi comentado, eles
sempre falavam com admiração sobre minha determinação com a pesquisa, especialmente
pelo fato de não ter retorno financeiro direto. Além da minha estética que claramente
contrastava com as das mulheres com as quais eles conviviam.
Sempre procurei adotar uma atitude de simpatia, mas também de certo recato - isso se
refletia em minha apresentação pessoal (calça jeans, camisa de malha, sem maquiagem) e na
condução das interações. Só depois vim a entender que esse controle fazia parte da construção
de minha reputação. Como define Bailey (1971, p. 4), a reputação de uma pessoa não é uma
qualidade que ela possui, mas a opinião que as outras pessoas têm dela. Meu lugar ali não era
somente de observadora, mas também de observada.
151
Devagar fui me tornando uma figura menos perceptível, menos notada. No princípio
parecia que havia refletores sobre mim, principalmente considerando o espaço exíguo de uma
drogaria. Minha presença foi se tornando mais familiar ao longo dos dois anos que permaneci
em campo, simultaneamente parece que se tornou secundário, para eles, compreender as
razões de minha inserção neste ambiente. Logo começaram a me solicitar auxílio em algumas
de suas tarefas. Pegava, a pedido deles, determinados produtos que ficavam expostos fora do
balcão, para evitar que tivessem que se locomover até lá. Algumas vezes, eles me solicitavam
o pagamento de contas pessoais em uma lotérica próxima. O que fiz com muito
estranhamento, mas de todo modo era expressão da confiança conquistada e eu acabei
incorporando como uma troca de favores.
Apesar de me sentir aceita pelo grupo, reitero que minha posição de “estrangeira” foi
mantida. Às vezes, o lugar de exterioridade foi útil, pois eles comentavam comigo detalhes
cotidianos que não poderiam comentar com alguém de “dentro”. Como reclamações sobre o
jeito “grosseiro” do proprietário, quanto à escala de trabalho estabelecida pelos gerentes,
confissões sobre relacionamentos íntimos com alguma colega de trabalho etc. Por outro lado,
se eu indagasse diretamente sobre algo que extrapolasse os objetivos da pesquisa, eles não se
sentiam seguros para responder, especialmente se a conversa estivesse relacionada às
estratégias bem conhecidas, mas pouco éticas, utilizadas tanto pelos balconistas quanto pelos
proprietários de drogarias para ampliar o lucro das empresas.
Com relação a este aspecto, trago como exemplo um momento em que pude conversar
mais abertamente com eles sobre o funcionamento do mercado farmacêutico e como eles
vivenciam essa realidade. Ocorreu durante um momento bem específico do campo, quando
fui convidada para almoçar em um restaurante próximo à drogaria por três balconistas. Neste
dia, um dos balconistas, mais velho que os demais presentes à mesa, começou a contar do
tempo em que ele havia sido gerente em uma drogaria no bairro de Laranjeiras, zona sul do
Rio de Janeiro.
De acordo com seu relato, houve um dia que a Polícia Federal foi ao estabelecimento
por conta de uma denúncia anônima sobre a venda de medicamentos falsos. Os fiscais
solicitaram a vistoria e, de acordo com sua narrativa, “foram direto nas caixas de Amoxil”,
abriram e detectaram que, de fato, eram falsos. Ele foi preso, juntamente com 3 amigos. O
proprietário da drogaria pagou a fiança e depois indenizou cada funcionário. Ele afirmou que
o dinheiro recebido serviu para comprar uma Kombi, que ele usou para trabalhar com
escolares. Mas, depois de um tempo voltou para o ramo de farmácia. Destaco a forma
152
descontraída como conversam sobre tais assuntos, eles riem e comentam sobre a quantidade
de dinheiro que circula neste ramo.
Em relação a esse exemplo, é interessante observar que o conteúdo da conversa está
intimamente relacionado ao local em que ela ocorreu. Estávamos em um restaurante bem
simples, em um local aberto, fora da drogaria. Se estivéssemos na drogaria, a história
provavelmente não teria sido contada ou, pelo menos, não de forma tão aberta. Além disso,
certamente pelo fato de eu ser uma mulher e pesquisadora forasteira, às vezes eles me
permitiam acessar aspectos mais escondidos de suas vidas e de suas práticas profissionais.
Brincadeiras e gozações eram frequentes entre eles, muitas delas referentes às suas
masculinidades, que pareciam sempre colocadas à prova ou em destaque, devendo-se manter
controle sobre si e também sobre os colegas. Um dos balconistas, em especial, era sempre
alvo de brincadeiras, por ser considerado com jeito “meio afeminado”. Ele, por sua vez,
defende-se afirmando que os colegas são desinformados e “ignorantes”. Em dado momento,
olhou para mim e completou: “veja bem, como você sai para conversar e tomar um chopp
com um cara que não sabe conversar sobre nada, se eu quiser falar sobre o Pimenta Neves88,
sobre o caso que está ocorrendo no México? Ele não sabe nada disso, só sabe quem ganhou e
quem perdeu no futebol, a gostosona...”.
Este balconista/gerente, um pouco mais velho que os demais, branco e ensino médio
completo, expressa referências díspares da maioria na construção de sua masculinidade.
Segundo Welzer-Lang (2001), o padrão hegemônico de normalidade faz com que, de um
lado, se conceba a superioridade do homem sobre a mulher e, de outro, normatiza a
sexualidade masculina, produzindo uma visão heterocentrada sobre o homem normal,
entendido como ativo, viril, dominante e não-afeminado. Todos os homens que não se
enquadram nessa lógica serão os “outros”, pertencendo ao grupo dos que são dominados,
como as mulheres e crianças.
Interessante observar que há neste ambiente certo padrão racial, educacional e estético,
que é percebido por todos, inclusive pelos consumidores que comentam “esses aí são todos
do mesmo sangue, da mesma família”. A grande maioria dos balconistas que conheci nesta
drogaria são jovens, pardos ou negros, ensino médio incompleto e utilizam os mesmos
88
Antônio Marcos Pimenta Neves, ex-diretor de Redação do jornal O Estado de São Paulo, ganhou ampla
notoriedade policial em 2000 por ter assassinado a namorada (e também jornalista) Sandra Gomide, em um haras
no interior de São Paulo. Mais de dez anos depois, o jornalista ainda não cumpria pena, tornando-se notícia nos
principais jornais.
153
referenciais estéticos para cortes de cabelo, uso de adereços (pulseiras, cordões), gostam de
samba e pagode e são torcedores fanáticos de futebol.
Como nos mostra DaMatta (2010), ser homem é mais do que ter apenas um corpo de
homem, mas mostrar-se como masculino e macho em todos os momentos. Um dos preços da
masculinidade é a eterna vigilância das emoções, dos gestos e do próprio corpo. Neste mesmo
sentido, o estudo etnográfico realizado por Souza (2003) com quinze homens, moradores do
bairro do Irajá no Rio de Janeiro, é bastante revelador para esta investigação. O autor anuncia
alguns pontos fundamentais da identidade masculina, reforçando que ela só pode se dar no
social, no coletivo, sendo de extrema fragilidade e necessitando ser reforçada a todo o
momento. A gestualidade, o vocabulário, os testes lúdicos, como já ressaltado por DaMatta
(2010), estão constantemente a serviço da manutenção do status perante o grupo.
Outro aspecto valorizado, entre eles, como símbolo da identidade masculina é a
revelação sobre os relacionamentos extraconjugais. Depois de vários meses de campo, um dos
balconistas mais brincalhões, perguntou-me na frente de outros se eu era fiel ao meu marido.
Assustei-me com sua indagação e perguntei o porquê de seu interesse. Ele riu e afirmou que
era apenas curiosidade. Eu disse que sim. Então, ele começou a relatar que os homens, de um
modo geral, sentem necessidade de “variar o cardápio”, que quanto mais se vivencia a
sexualidade, mas se tem desejo sexual. Não é porque o “cabra” tem outras mulheres que não
irá transar com sua mulher, pelo contrário, quando chega em casa “é até melhor”.
Para eles, as mulheres não têm a mesma “necessidade” que os homens, por isso
conseguem viver a monogamia. Disse por fim: "você parece ser daquele tipo de mulher que é
preciso uma boa lábia para o homem conseguir conquistar, você é uma joia, um tesouro,
sabia né?”. Ruborizei. Situação constrangedora, mas diante de minha reputação já construída
perante o grupo, todos levaram na brincadeira e o assunto cessou. Para o próprio grupo não
soou como uma “cantada”, mas talvez como um “galanteio” sem maiores intenções.
Aqui o trabalho de Machado (2007) nos inspira, quando ela destaca não somente as
dificuldades, mas as riquezas adicionais que a posição "peculiar" de uma mulher pesquisando
homens pode aportar. A autora aborda métodos de prevenção às doenças sexualmente
transmissíveis, gravidez e Aids com homens de origem popular e evidencia como negociar o
papel de “mulher de respeito” em rodinhas de homens, bem como o papel de mulher que
estuda homens frente às suas esposas.
154
Para esse grupo, a necessidade imperiosa de atividade sexual é um atributo instintivo
do homem, assim como a agressividade. De acordo com Connell (1995), trata-se de um
padrão hegemônico de masculinidade que coexiste com outras expressões menos valorizadas
do feminino e também do masculino, tais como o homem gay, traído, desempregado.
Vale de Almeida (1995), em seu estudo realizado em Portugal, na região de Alentejo,
aborda questões especificamente pertinentes à identidade masculina, desvendando aspectos de
que concebe como seu modelo hegemônico. Segundo ele, a sexualidade esperada dos homens
em geral e dos solteiros em particular pode ser nomeada como sexualidade predatória. Outro
estudo desenvolvido com homens e mulheres adultos de estratos populares no Brasil indicou
que ambos os sexos descrevem a sexualidade como algo incontrolável, primitivo, quase que
instintivo. Neste modelo, o homem precisa de sexo para ficar calmo e equilibrado, para a
mulher o sexo é uma questão de ‘vontade’, que precisa ser despertada (BARBOSA,
VILLELA, 1996).
Exemplificando essa percepção de que o sexo variado é algo que o homem
“necessita”, um deles, acotovelando-se no balcão, veio solicitar minha opinião sobre a sua
vida pessoal. Segundo ele, já faz tempo que tem relacionamentos amorosos extra-conjugais,
que considera sua mulher uma “pessoa muito legal”, mas que sente “necessidade” de ficar
com outras. Há algum tempo conheceu uma mulher casada, com um filho. Estabeleceu
relacionamento com ela e “os dois acabaram se apaixonando”. Ele se sente em uma situação
difícil, pois se sente “amarrado” à sua esposa, o que revela seu sentimento de
responsabilidade para com a ordem familiar.
Neste sentido, os resultados encontrados por Arrilha (1998), em sua pesquisa realizada
com homens com e sem filhos, casados e solteiros, dos estratos B e C do estado de São Paulo,
são coincidentes com a nossa, pois apontam que a palavra responsabilidade está fortemente
associada à concepção de homem, sendo que a mesma está relacionada à vida e subsistência
familiar.
Outro aspecto revelador do ‘espírito do grupo’ refere-se ao elogio da violência entre
eles, particularmente entre os homens e envolvendo as mulheres, podendo-se tomar como
emblemático o caso relatado por um dos balconistas. Pontes (37 anos, branco) em um
momento de tranquilidade na drogaria, contou-nos que há vários anos, no início de sua vida
profissional, apaixonou-se por uma mulher casada, ele sem compromissos. Encontraram-se
por um bom tempo “às escondidas”. Quando não “suportaram mais a vida separados”, ele
resolveu “matar o desgraçado”. Arranjou um revólver e investigou os horários do “dito
155
cujo”. Desfechou três tiros e matou o marido de sua amante na madrugada, quando o mesmo
saia de casa para trabalhar. O balconista Pontes nunca cumpriu pena pelo homicídio, pois não
descobriram a autoria, mas também não se casou com a amante, da qual se separou pouco
tempo depois.
Tal história me pareceu muito chocante, mas os colegas presentes pareciam já ter
ouvido outras parecidas, e faziam expressões negativas, como se as mulheres fossem a razão
da “perdição masculina”. Eles sempre faziam referências a certas categorias de mulheres,
que são capazes de “virar” as cabeças dos homens, sendo que estas não são adequadas para o
casamento. Por exemplo, muitas vezes quando entravam na drogaria moças com roupas
apertadas e curtas, logo vinham os comentários “assim não tem como resistir”, “elas fazem
isso para provocar”.
Esses exemplos nos ajudam a entender a predominância naquele ambiente de uma
noção de masculinidade voltada para a afirmação da coragem, da força, da virilidade, e que
está ancorada na figura do pai-marido, do provedor, a exemplo do que vários estudiosos têm
indicado entre classes populares (DUARTE, 1986; FONSECA, 2000; GUEDES, 1997;
LEAL, BOFF, 1996; SARTI, 2005). Nesta drogaria de zona norte, o modelo predominante de
masculinidade exacerba a exibição de virilidades por meio de brincadeiras, de disputas
corporais e verbais. Já as representações sociais mais gerais relativas às mulheres,
apresentadas a mim, colocam-nos como seres dotados de inteligência rasa, com reduzidas
aspirações profissionais e necessidades sexuais, pairando o reconhecimento da vocação para o
cuidado do lar. A fuga a este padrão é vista com estranhamento.
Outra cena que nos remete a certa categorização das mulheres ocorreu com um dos
balconistas mais jovens, que depois de ficar muito tempo atendendo uma única mulher, me
chamou e mostrou os medicamentos que havia vendido. E discursou: “veja bem, todos esses
são para alguma doença venérea que ela está. Ela disse que é pelo tempo que toma
contraceptivo, mas eu acho que não. Deve ser doença mesmo. Para você ver, uma moça tão
limpinha, de cabelinho arrumadinho e tem esse tanto de doença. Eu é que não saio por aí
transando com qualquer uma sem camisinha. Esse povo é louco”. Para ele, a mulher apesar
de “limpa” na aparência, era suja por suas presumidas atividades sexuais.
Além disso, segundo suas percepções, a responsabilidade do uso do contraceptivo é
percebida como eminentemente feminina. O relato de um deles sobre o uso da “pílula do dia
seguinte” por sua mulher e sua posterior gravidez traz à tona sua irresponsabilidade quanto ao
processo
contraceptivo/reprodutivo,
além
de
revelar
aspectos
contraditórios
nas
156
representações sobre as categorias de mulheres que utilizam a CE. Ele contou que sua mulher
estava usando a CE, mas que estava “abusando”, às vezes utilizava mais de uma vez na
mesma semana. “Resultado: engravidou”. Ou seja, à mulher cabe esta coordenação, mas
ocorrendo uma gravidez, o homem também tem que “entrar na dança”, participar.
Nesta mesma direção, Heilborn (2010), ao apresentar dados sobre duas investigações
realizadas no Rio de Janeiro sobre o tema da contracepção e aborto, revela a persistência, nas
gerações mais jovens, de representações e valores que atrelam a contracepção e a reprodução
ao feminino. De fato, o precário envolvimento dos homens com a anticoncepção é, em geral,
uma situação confortável. Por outro lado, no caso de gestações não previstas, nem sempre a
situação se constitui da mesma forma. A falta de controle sobre a possibilidade de ter ou não
um filho é vivenciada como uma inversão hierárquica que causa desconforto na identidade de
gênero dos meus informantes.
Ouvi relatos sobre momentos em que os mesmos tiveram que comprar a CE e a
entregar para alguma parceira eventual, solicitando seu uso por uma questão de “precaução”,
especialmente em se tratando de um relacionamento extra-conjugal. Segundo eles, apesar da
afirmativa do uso de contraceptivo de rotina por elas, eles preferem garantir comprando e
solicitando o uso da CE: “é melhor prevenir do que remediar, mas só se a gente pede para
elas tomarem na nossa frente é possível garantir de fato a segurança” (Rogério, 30 anos).
Enfim, estes foram alguns aspectos revelados durante o período de campo, quando
ocorreu ali no balcão, de certo modo, a representação pública de certos valores masculinos
grupais, que para mim, estavam claramente colidentes com a lógica igualitária de gênero, que
caracteriza o meu próprio discurso, afinado a outros setores sociais. Sem dúvida, a forma
como eles se revelaram a mim se deveu ao meu próprio objeto de investigação- o
contraceptivo de emergência. Meu objeto remeteu diretamente à vivência da sexualidade e
nosso relacionamento permitiu que eles revelassem suas identidades masculinas.
**
*
ENFIM...
As seções deste capítulo foram constituídas como forma de revelação de algo
fundamental: “ponto de vista do nativo”, suas visões de mundo (MALINOWSKI, 1980).
Percebo que o formato organizacional desta drogaria está atrelado ao contexto sociocultural
157
da zona norte do Rio de Janeiro, no qual a instituição farmacêutica, os sujeitos e a opinião que
eles têm sobre a CE estão inseridos.
Chama atenção, sem dúvida, a força do discurso que opõe zona norte e sul no Rio de
Janeiro, observando-se a persistência de uma hierarquia simbólica do espaço, organizada por
esta oposição (HEILBORN, 1999, SOUZA, 2003). Para mim, cuja penetração na cidade havia
se dado pela zona sul, ocorreu um estranhamento, pois tais atitudes e representações não se
encaixavam no universo do Rio de Janeiro “cosmopolita” que eu conhecia. Observa-se que
praticamente todos os sujeitos envolvidos na pesquisa não somente trabalhavam na zona
norte, como também se tornaram moradores.
Nesta drogaria, onde trabalhavam aproximadamente 40 funcionários, somente um dos
gerentes, sobrinho do proprietário, era morador da zona sul, o restante morava nesta região, na
baixada fluminense e na zona oeste (Irajá, Piedade, Realengo, Belford Roxo, Senador
Camará, Caxambi, Sampaio, Olaria, Saracuruna, etc). Alguns dos funcionários, especialmente
os balconistas, já transitaram e trabalharam na zona sul, mas em suas narrativas ficou clara a
preferência e, de certo modo, o orgulho pela socialização junto à população da zona norte.
Pouco a pouco, conhecendo e observando o cotidiano deste estabelecimento
farmacêutico, pude experenciar a representação das identidades de gênero de seus
personagens, em especial os balconistas, através dos relatos sobre suas vivências afetivas e
sexuais, bem como pela observação de suas práticas profissionais. Para mim, como etnógrafa
iniciante, a facilidade de relacionamento e diálogo com estes homens e suas construções do
masculino foi inesperada e vivenciada de forma inteiramente experimental. Mas sempre
apoiada na reflexividade, que consiste no estabelecimento de comunicação com o grupo
compondo os cálculos racionais com intuições, elementos improvisados, não calculados. O
objetivo final é, como se sabe, compreender o grupo, o modo como estabelecem relações e
organizam as posições em seu interior e com a própria pesquisadora (BOURDIEU, 1989).
Apesar de meu interesse estar voltado para as interações ocorridas no balcão, com o
foco sobre as mulheres usuárias da CE, o campo trouxe o desafio de penetrar em um universo
eminentemente masculino, em que se tornou mais viável o acesso aos homens balconistas, do
que propriamente às mulheres. Isso sem considerar que nunca poderíamos esperar encontrar
somente homens no balcão. Com o tempo, construí uma rede de conversas e afinidades, que
possibilitou que meu lugar de mulher na sociedade e principalmente no campo, apesar de
conflituoso em relação ao modelo tradicional por eles valorizado, não entrasse em confronto
direto com o lugar ocupado por estes homens na sociedade (MACHADO, 2007).
158
Vi-me envolta em um universo ‘machista’, mas ao mesmo tempo acolhedor e
receptivo. As representações sociais relativas às mulheres, neste contexto, nos apresentam
como seres dotados de inteligência rasa, com reduzidas aspirações profissionais, pairando o
reconhecimento de que sua vocação é cuidar do lar. Já os homens são dotados de maior
resistência física e mental, espírito competitivo e, por isso, considerados mais aptos para
ascenderem ao topo, aos cargos considerados estratégicos para o desenvolvimento da
empresa.
Para finalizar, é importante salientar que a partir da visão e da escuta dos atores
observados, buscamos construir uma versão, no meio de tantas outras possíveis. Nestas
observações são apresentadas as práticas e a lógica deste grupo profissional a partir de uma
imersão, que modificou a mim e possivelmente o grupo estudado.
159
8 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA NA DROGARIA: SILÊNCIO,
VERGONHA E (I)MORALIDADE
Neste capítulo, busco conciliar, de um lado, meu engajamento teórico/político no
campo da saúde coletiva, que me conduziu aos desafios relativos à ampliação do acesso das
usuárias ao contraceptivo de emergência no Brasil. Como salientado anteriormente, sabemos
que apesar das pílulas de emergência se encontrarem disponíveis nos serviços públicos de
saúde, as mulheres comumente as buscam nas drogarias. Acrescenta-se que, no contexto
nacional, não havia investigações que nos ajudassem a revelar o formato estrutural e a
qualidade da atenção dispensada às usuárias nos estabelecimentos farmacêuticos,
especialmente para o público mais jovem, um dos focos primordiais desta política.
De outro lado, o ângulo de visão escolhido implicou na aprendizagem e incorporação
do habitus89 (BOURDIEU, 1989, p. 23) do trabalho etnográfico, ou seja, na interiorização de
referenciais teórico-metodológicos próprios dessa abordagem, de tal maneira que se
transformaram em lentes a dirigir meu olhar, ferramentas invisíveis que me ajudaram a captar
sinais, recolher indícios, descrever práticas, atribuir sentido a gestos e palavras. Em minhas
reflexões, busco o entrelaçamento de dois campos de conhecimento introjetados durante
minha formação, como quem tece uma teia de diferentes matizes.
As questões que endereçaram meu olhar sobre o ‘campo’ relacionam-se às
representações e práticas dos trabalhadores desta drogaria sobre a “pílula do dia seguinte”,
suas consumidoras; e sobre o processo interativo, envolvendo consumidores/as da CE e
balconistas/farmacêuticas no momento de sua comercialização:

Qual a posição ocupada por este método contraceptivo no âmbito deste
estabelecimento farmacêutico? Qual a sua relação com outros medicamentos ligados à
vivência sexual e reprodutiva?

Como são percebido/as e recebido/as seus/suas consumidores/as? E as consumidoras
dos contraceptivos hormonais de rotina? E outros medicamentos que se relacionam
89
Utilizo aqui este conceito com o sentido oferecido por Bourdieu em “O poder simbólico” (1989, p. 23),
quando ele afirma que: “O habitus científico é uma regra feita homem, ou melhor, um modus operandi científico
que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem: é esta espécie
de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido a
necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada”.
160
com a vivência sexual, a exemplo do viagra, contraceptivos injetáveis, preservativos,
cremes para tratamentos de DST?

Qual a linguagem oral e corporal utilizada pelos/as consumidores/as?

Qual a lógica que rege a relação social estabelecida no balcão entre funcionários e
consumidores/as da CE?
Buscando inspiração em Goffman (1985; 1981), fui me abrindo, pouco a pouco, para a
observação do contexto de interação construído para a venda deste anticoncepcional,
buscando refletir sobre a posição dos sujeitos, tanto daquele/a que solicita tal contraceptivo,
quanto daquele que o comercializa.
Tal autor nos ajuda a pensar sobre os microprocessos ritualísticos envolvidos nas
interações sociais, mostrando-nos as diversas implicações e significados envolvidos em
diferentes tipos de comunicação, absorvendo não somente a fala dos personagens em ação,
mas também as “olhadelas”, os não olhares e as posturas corporais dos sujeitos envolvidos na
interação. De acordo com ele, nós adultos somos maravilhosamente treinados para produzir
determinados tipos de relações sociais, e também somos muito perspicazes na captura de seus
significados, quando tais ações são realizadas por outros acessíveis (GOFFMAN, 1981, p. 129).
8.1 A CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA SOB O OLHAR DOS BALCONISTAS
O trabalho de campo evidenciou prematuramente aspectos fundamentais referentes à
posição ocupada pela contracepção de emergência na drogaria investigada. Desde o primeiro
dia no cotidiano desta drogaria, percebi que este anticoncepcional está envolto em mistério e
dúvida, o que expôs sua posição ambígua e anômala, especialmente em relação aos outros
métodos anticoncepcionais de uso regular.
Durante a apresentação da investigação para os funcionários, ouvi perguntas como:
“há casos em que ela não previne a gravidez?” (gerente Souza, 31 anos, branco, ensino
médio incompleto). Percebi, após algum tempo, que enquanto as pílulas anticoncepcionais de
uso contínuo eram consideradas seguras, efetivas, a contracepção de emergência era
questionada exatamente quanto à sua eficácia.
Souza demonstrou certa restrição com a CE, o que percebi por seu questionamento:
“se não resolve o problema, por que está no mercado?”. Sua pergunta ficou no ar e, bem
161
mais tarde, quando fui entrevistá-lo, relatou-me que sua mulher havia engravidado, mesmo
tendo tomado a PDS:
“Assim que foi lançado o medicamento, eu mesmo dei para minha esposa, não sei se ela
tomou de um modo errado, e hoje tem onze anos já, está aí meu filho. Essa informação de que
o produto pode não ser eficaz o laboratório não passa” (Souza, 31 anos, branco, ensino
médio incompleto).
Eles as comparavam, muitas vezes, relacionando o grau de eficácia de cada uma:
“enquanto as pílulas anticoncepcionais normais têm 99,9% de eficácia, a pílula do dia
seguinte [PDS] não resolve bem o problema, já que há casos de gravidez com o uso deste
medicamento” (gerente, 37 anos, branco, ensino fundamental incompleto).
Depois fiquei sabendo de outro balconista, Gonzaga, 34 anos, que estava esperando
um filho, mesmo após sua mulher ter ingerido a “pílula do dia seguinte”, nas primeiras 24
horas. Da mesma forma, seu questionamento sobre a eficácia do produto se tornou aparente. É
um medicamento que eles não sabem muito bem as características, possuem dúvidas quanto à
eficácia, até mesmo pelas experiências pessoais. Investidos de uma lógica médico-sanitária
falam em termos de sua eficácia, querem saber numericamente sobre sua capacidade de falha
e compará-lo ao contraceptivo de uso diário.
Ressalto que nestes dois casos em que os balconistas vivenciaram a gravidez
imprevista, mesmo tendo utilizado o contraceptivo de emergência, eles relataram seu uso
repetido, devido às dificuldades das parceiras em manejarem outro contraceptivo, seja por
esquecimento de tomar a pílula hormonal ou por não se adaptarem ao uso de hormônios,
devido a enjoos e ganho de peso. O uso que as próprias parceiras fizeram da CE não configura
o que eles classificam, em tese, como legítimo.
Aqueles que receberam informações sobre o “produto”90, foram provenientes dos
laboratórios, conversas informais com colegas do ramo farmacêutico e até mesmo vivências
pessoais.
“O balconista não tem acesso a informações sobre o produto. Até porque é automático, sabese a posologia, que eu também não tenho certeza porque eu nunca abri para ver. (...)
ninguém sabe mais nada” (balconista, José, 55 anos, pardo, ensino médio completo).
90
Forma como os/as funcionários/as em geral se referem a qualquer droga ou medicamento.
162
“Olha, nem um profissional da área, nem um fabricante, ninguém chegou ao balcão para
informar ou dar explicações sobre esse comprimido. As meninas chegam e pedem no balcão:
‘eu quero a pílula do dia seguinte’. Mas não sabem nem como tomar, se é correto entre o
tempo que ela teve a relação e entre o tempo que se deve tomar o medicamento e nem nós
sabemos”. (balconista, Ronaldo, 44 anos, pardo, ensino médio incompleto).
“O que eu sei de efeitos colaterais é o que já aconteceu com uma namorada minha, é que
pode desregular a menstruação. Já ouvi dizer que dá enjoo, mas não sei direito”. (balconista,
Gilberto, 23 anos, pardo, ensino médio incompleto).
A informação recebida por alguns referia-se somente à posologia da CE, que segundo
meus informantes, implicava que a mulher precisava tomar o primeiro comprimido da PDS
até 72 horas após o ato sexual desprotegido e o segundo, 12 horas após o primeiro. Tal
informação, ainda constante na bula do anticoncepcional, está desatualizada, pois segundo as
pesquisas clínicas mais recentes, a contracepção de emergência pode ser utilizada até 120
horas após o intercurso sexual sem proteção, com a ressalva de que o tempo transcorrido
implica também em diminuição da efetividade do produto (BRASIL, 2011; LEVINE, SOON,
2006; DREZETT, 2010).
Pignarre (1999) caracteriza o papel dos representantes de laboratórios farmacêuticos
como aqueles responsáveis por levar as indicações dos medicamentos lançados pelos
laboratórios para dentro dos consultórios médicos e, acrescento, drogarias, com a intenção de
despertar a associação entre estas indicações e os diagnósticos médicos, no caso aqui das
indicações dos balconistas. Os representantes, ao circularem em ambientes comerciais,
constroem sua divulgação utilizando um discurso com termos científicos, que se mescla com
o popular, mais palatável a estes setores.
Saliento que durante todo o período do campo não percebi nenhum destaque, por parte
dos representantes de laboratório que conversei, para o marketing visando à comercialização
da CE. De acordo com meus informantes, os contraceptivos hormonais vendem muito mais
do que os de emergência. Às vezes, o representante fazia promoções e oferecia a ‘pílula do
dia seguinte’ como brinde por alguma compra feita pela drogaria. Nesse caso, o proprietário
não tinha custos, só ganhos. Isto justifica o fato de ser um medicamento cuja bonificação para
os balconistas é bem superior a de outros. No caso desta drogaria, a bonificação chegou a
20% do valor do produto.
163
Como salientei, a CE mais vendida nesta drogaria é a Poslov®, fabricada pelo
laboratório Cifarma, devido ao fato de sua bonificação ser mais vantajosa para o proprietário e
balconistas. De acordo com dados oferecidos pela própria drogaria, no ano de 2010 vendeu-se
em média 153 caixas por mês desta marca de CE, no ano seguinte caiu um pouco, chegando a
uma média de 142 caixas. Já em 2012, a média chegou a 170 caixas por mês. Quanto às outras
marcas, há mais duas disponíveis, dos laboratórios Libbs e Aché, as quais venderam, em
2011, 35 e 9 caixas respectivamente.
Visando explorar de forma diversificada as percepções dos funcionários, em especial
dos balconistas e farmacêutica sobre a CE, durante as entrevistas, solicitei o preenchimento de
um quadro, adaptado da investigação realizada na Argentina, por Pecheny e Tamburrino
(2009), o qual apresento abaixo:
Quadro 2 Opiniões dos entrevistados sobre a contracepção de emergência:
A ‘pílula do dia seguinte’...
Opinião
Sim
Não
Não
Total
sei
Atua antes da relação sexual
Atua depois da relação sexual
Impede a fecundação (união do óvulo com espermatozóide)
Impede a nidação do óvulo fecundado
É a última barreira frente a uma relação sexual desprotegida ou
quando falha o contraceptivo
Pode produzir malformações se utilizado quando a mulher já está
grávida
Vende-se com receita médica
Pode-se conseguir facilmente nos hospitais ou centros de saúde
Serve como medicamento abortivo
É algo que poucas pessoas usam
13
7
11
12
1
1
6
1
5
7
1
13
13
13
13
13
7
13
4
2
13
13
13
13
6
2
1
5
1
11
8
6
12
Fonte: PECHENY, M. e TAMBURRINO, M. C. ¿“La palabra lo dice”? Interpretaciones cruzadas y obstáculos
al acceso a la anticoncepción de emergência. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n.1,
p.158-176, 2009.
Meus informantes demonstraram dúvidas a respeito da CE, sendo que estas se
tornaram mais frequentes à medida que avançamos das questões referentes ao modo de usar,
para as referentes ao seu funcionamento, efeitos colaterais e quanto ao acesso nos serviços de
saúde. Resultados semelhantes foram encontrados em um projeto de intervenção realizado no
Brasil e em investigações realizadas em outros países, o que parece favorecer a atmosfera
controvertida e misteriosa que envolve a CE (PECHENY, TAMBURRINO, 2009;
164
RICHMAN et al., 2012; HUSSAINY et al., 2011; EHRLE, SARKER, 2011; COOPER et al.,
2008; BASTOS et al., 2009).
De modo geral, estas investigações, contextualizadas a partir do interesse em ampliar o
acesso a este método, sugerem a necessidade de revisão do treinamento oferecido aos
farmacêuticos e o desenvolvimento de protocolos simplificados que não criem obstáculos para
as mulheres que desejem obter o método, como a estratégia over-the-counter (fora do balcão),
com a intenção de potencializar a participação da CE na redução de gestações não previstas e
abortos inseguros (HUSSAINY et al., 2011).
Como ressaltado por Bastos e colaboradores (2009), no Brasil, a desinformação pode
estar ligada ao discreto lançamento do método, que chegou às drogarias sob única marca
comercial em 1999, e só teve seu uso ampliado a partir de 2000. Também se deve considerar
que, de modo geral, as informações e discussões a respeito da CE e outros métodos
anticoncepcionais, realizadas por órgãos públicos, não têm sido dirigidas aos profissionais de
farmácias e drogarias. Como essa investigação mostra, esses profissionais têm acesso a
informações sobre medicamentos via propagandas dos representantes de laboratórios
farmacêuticos, com a clara intenção de auxiliar na venda de seus produtos.
O crescimento do mercado farmacêutico mundial trouxe, o investimento maior da
indústria em marketing, superando os outros estágios91. Nos últimos tempos, a propaganda
voltada diretamente aos consumidores tem crescido muito. Em relação à CE, ressalta-se a
relevância do marketing voltado aos consumidores, o que pode ser relacionado ao estímulo
cada vez maior, no contexto internacional, à política de acesso via farmácias ‘over-thecounter’, ou fora do balcão, sem passar pela intermediação de qualquer profissional. Como foi
observado na parte 1, a indústria é aliada do Consórcio Internacional de Anticoncepção de
Emergência (ICEC) na ampliação do acesso à CE, especialmente nos países em
desenvolvimento, com foco no acesso através das farmácias (VAN DER GEEST et al., 1996;
ANGELL, 2007).
Em suma, em relação ao ciclo de vida da CE, parece que o foco da indústria está no
marketing aos consumidores, na sua distribuição por todas as regiões do globo, na ampliação
91
Van der Geest e colaboradores (1996) em “The Anthropology of Pharmaceuticals” adotam uma abordagem
nova e útil, criando uma genealogia ou "ciclo de vida” de uma droga: 1- produção (pesquisa e desenvolvimento),
marketing, prescrição (ou seja, a geração de receitas pelos médicos), distribuição, compra, consumo e eficácia.
Eles notam que cada uma destas fases “possui seu próprio contexto específico, atores e transações, e é
caracterizada por diferentes conjuntos de valores e ideias " (1996, p. 153), o que permite aos antropólogos se
concentrarem em cada fase particular do ciclo.
165
da venda e competição capitalista, através da multiplicação de marcas desse produto. Nesse
sentido, os profissionais do ramo farmacêutico ficam com as atribuições limitadas à função de
simples revendedores de medicamentos, não importando o grau de conhecimento acumulado
sobre os mesmos. Como disse o balconista Pontes:
“Nunca tive interesse em saber detalhes sobre a pílula do dia seguinte. (...) Meu interesse é
vender. (...) É lucrativo demais”. (37 anos, branco, ensino médio completo).
Outro aspecto que me chamou atenção foi que presenciei poucos momentos em que
eles/elas (tanto os/as profissionais quanto os/as consumidores/as) utilizaram o nome fantasia
do contraceptivo de emergência: Postinor®, DiaD®, Poslov®, Pozato®, etc. De modo geral,
utilizavam somente a designação “pílula do dia seguinte”, sem referir uma marca do produto.
Essa designação dada ao contraceptivo foi uma das primeiras utilizada, a qual demonstrou ser
mercadologicamente eficaz, apesar da insistência do ICEC e pesquisadores ativistas sobre as
confusões causadas pelo uso do termo. Em geral, os possíveis usuários podem acreditar
erroneamente que só podem recorrer no prazo de 24 horas. Na drogaria observada, os/as
funcionários/as sentiam-se satisfeitos pelo fato das consumidoras usarem tal termo, já que
facilitava a escolha pelo produto que lhes rendesse mais bonificação (PECHENY,
TAMBURRINO, 2009; COOPER et al., 2008).
Sobre a relação da CE com medicamentos abortivos, ouvi poucos questionamentos a
esse respeito. Entre os funcionários da drogaria apenas em dois casos foi possível observar
claramente a relação entre crenças religiosas e a posição sobre a CE, um de filiação católica e
outro frequentador do racionalismo cristão. Ambos observam que são contrários à CE por
considerarem-na abortiva.
“O católico não aceita o aborto. Se você tem uma relação para depois você tomar o
contraceptivo - a pílula do dia seguinte, é como se você estivesse matando uma pessoa, uma
criança, é abortiva”. (balconista Souza, 31 anos, branco, ensino médio incompleto).
“Eu acho que ela é abortiva. Eu tenho essa ideia”. (balconista José, 55 anos, pardo, ensino
médio completo).
Embora esta não tenha sido uma ideia insistente durante o trabalho de campo, algumas
vezes percebi dúvidas a esse respeito, especialmente por parte da farmacêutica diurna:
“Algumas pessoas acreditam que é uma pílula abortiva, então isso gera uma polêmica, né!
Porque os religiosos não vão querer utilizar porque acham que é equivalente a tirar uma
vida. E a Igreja é contra”. (farmacêutica Melissa, 35 anos, pós-graduação, evangélica).
166
Sua posição a esse respeito me pareceu ambígua durante todo o campo, já que ela não
se posicionou em primeira pessoa. Além disso, percebi que sua religiosidade, de certo modo,
interferia na forma de atendimento à população, pois em seus poucos atendimentos no balcão
ela sempre trazia mensagens religiosas, demonstrando sua vinculação aos princípios
evangélicos. Eu, por outro lado, procurei sempre me esquivar de responder, segundo meu
ponto de vista, esta questão.
Outro aspecto que revelou a ambiguidade do estatuto da CE foi que apesar de não
terem tratado livremente sobre a relação com medicamentos abortivos em nossas conversas
no balcão, no quadro de perguntas e respostas sobre a CE, cinco informantes relacionaram a
CE com medicamentos abortivos. Vale lembrar aqui a classificação proposta por Wynn e
Foster (2012, p. 9) que concebem a CE como uma tecnologia liminar, devido ao fato de ser
imaginada como ‘produto’ que está entre o contraceptivo e o abortivo, o que contribui para
gerar amplo debate e a sua contestação.
Entretanto, levando em consideração os estudos que demonstram grande abrangência
da confusão da CE com medicamentos abortivos, especialmente no contexto latino-americano
(PECHENY, TAMBURRINO, 2009; SOUZA, BRANDÃO, 2009; COOPER et al., 2008;
RICHMAN et al., 2012; EHRLE, SARKER, 2011; BERGALLO, 2010), podemos afirmar
que comparativamente essa noção não foi a mais enfatizada pelos sujeitos dessa investigação.
Quando este tipo de objeção apareceu nas narrativas, relacionava-se a uma opinião pessoal,
que eles não deixavam interferir no contexto das vendas. Ou seja, “acho que é abortivo, mas
se o sujeito quer comprar, fique à vontade” (balconista José, 55 anos, pardo, ensino médio
completo).
O fato da CE estar envolta em uma aura de mistério e dúvidas, possibilitou que,
durante todo o tempo de campo se tornasse matéria de inúmeras discussões. De todo modo,
devemos lembrar que do ponto de vista histórico, contracepção e aborto possuem uma história
de certo modo compartilhada, pois como vimos, os primeiros cristãos ainda as consideravam
práticas similares para evitar filhos, ambas ligadas ao tabu da sexualidade feminina
(MACLAREN, 1996; SIMONDS, ELLERTSON, 2004). Através da perspectiva histórica,
buscamos um olhar relativizador, não essencialista sobre o lugar deste medicamento na
drogaria em questão, problematizando-se a forma como os sujeitos elaboram as questões
relativas ao gênero e sexualidade.
167
Nessa direção, os fatores positivos da CE, para eles, estão relacionados ao controle de
gravidez, principalmente entre jovens “pobres”, “moradoras das regiões de periferia e do
morro” e sua utilização em casos de estupro.
“o benefício é o controle populacional, o adolescente não está preparado para ser mãe e
pai” (farmacêutica Melissa, 35 anos, pós-graduação, evangélica).
“se não fosse a pílula do dia seguinte, eu acho que a gente teria uma taxa de natalidade o
dobro do que temos hoje” (balconista Rogério, 30 anos, ensino médio completo).
“em caso de estupro, a mulher pode tomar para se proteger” (gerente Souza, 31 anos, ensino
médio incompleto, branco).
De certa forma, estas narrativas recorrentes me sugeriram cenas particularmente
montadas por representantes de medicamentos/laboratórios, que ao fazerem propaganda dos
fármacos, utilizam uma linguagem mais palatável ao campo da saúde, afinada ao paradigma
biomédico. Essa linguagem é claramente incorporada de forma superficial por estes
trabalhadores, que passam a utilizar as noções comuns no campo das políticas estatais (como
“controle populacional”; “taxa de natalidade”; e o próprio conhecimento sobre a
disponibilização nos serviços públicos para o uso em casos de estupro), mas na perspectiva de
controle sobre o nascimento de “futuros marginais”92 e/ou pobres. Como me disse um dos
balconistas, Rogério, 30 anos, nascido e criado no subúrbio do Rio de Janeiro:
“Essa pílula traz um benefício em si... têm muitas pessoas aí que... [silêncio] é igual a um
funcionário que estava aqui agora, não tem condições de criar um, mas tem seis”.
Sendo assim, apesar dos mistérios que cercam este contraceptivo, a maioria se
posicionou favorável à sua venda sem prescrição pelas drogarias, ponderando as barreiras de
acesso aos serviços de saúde do país, ressaltando a urgência para utilização deste
medicamento, em um prazo máximo de 72 horas. Mas, com aqueles que conversei sobre a
venda fora do balcão, ou seja, nas gôndolas, houve relutância quanto a essa perspectiva, pelo
receio quanto ao uso “abusivo” ou indiscriminado.
“Tem que ser sem prescrição. Você já pensou? São 72 horas. No Brasil tem ginecologista de
plantão para atender as mulheres nesse curto período de três dias? Pode-se marcar uma
consulta ou entrar numa fila?” (balconista Mário, 37 anos, ensino médio completo, pardo).
92
Termo nativo.
168
“Tem essa oportunidade, tem de recorrer, que seja barato. Agora se for controlado, com
receita médica, ela não vai ter tempo de ir no médico e pegar uma receita, vai
engravidar”(balconista Gilmar, 29 anos, ensino médio incompleto, negro).
Alguns concordam com a venda sob prescrição, alegando a ausência de conhecimentos
sobre os efeitos causados no organismo feminino, tanto em curto quanto longo prazo, e
relacionando o maior risco com as faixas etárias mais jovens:
“Eu acho que deveria ser controlado. Como eu falei, a gente não sabe o mal que se pode
causar ao organismo de quem usa. Adolescente, onze anos ou doze, já estão usando”
(balconista Ronaldo, 44 anos, pardo, ensino médio incompleto).
“Eu acho errado que o medicamento seja vendido sem controle. Pelas contraindicações que
ninguém sabe o que é, né! Não sei nem se o médico saberia responder” (Balconista Gonzaga,
34 anos, pardo, ensino fundamental incompleto).
“É danoso porque ninguém sabe de nada. Dizem, dentro da minha ignorância, que estes
hormônios têm alguma associação com trombose, essas doenças cardiovasculares, eu
acredito que não seja bom”. (balconista José, 55 anos, pardo, ensino médio completo).
Mas, apesar disso, eles se sentem pressionados economicamente a vender
medicamentos em larga escala, sendo a CE também bastante lucrativa, já que é bonificada. A
respeito deste aspecto, Glasier e col. (2011), avaliando a qualidade dos serviços oferecidos na
Escócia pelas farmácias em relação à CE, ponderam que nestes estabelecimentos são
preponderantes os interesses comerciais, o que dificulta a interação com orientação e
aconselhamento por parte de seus funcionários.
“Ela ajuda a gente como vendedor, pois o produto é bonificado, é o nosso emprego; ele
sendo bonificado ou não a gente tem que vender” (balconista Gilmar, 29 anos, ensino médio
incompleto, negro).
“Muito positivo é o lucro que a pílula do dia seguinte traz” (balconista Rômulo, 34 anos,
ensino médio incompleto, pardo).
O medicamento bonificado é aquele que oferece mais lucro para o proprietário e para
os vendedores:
“A pílula DiaD® sai para a drogaria por R$ 0,99, é muito barato. E funciona, o curioso é que
funciona. Hoje em dia eles vendem por R$ 9,99, R$ 12,99. Quer dizer, eles nos dão 20% do
valor da venda. Houve uma época, logo no início, que custava R$ 18,00. Na verdade, se você
169
pegar o caderno de referência de preços custa R$ 24 e pouco”. (balconista José, 55 anos,
pardo, ensino médio completo).
“Aumentou a concorrência, aumentaram os descontos também, aumentaram ainda mais as
bonificações. O Poslov®: você compra 30 vidros de xarope adulto ou pediátrico do mesmo
fabricante e mais uma vitamina (150 unidades) e você ganha 100 cxs. de Poslov, de graça. E
não adianta o pessoal dizer, como os donos de farmácia dizem que não entra no faturamento,
porque vem numa nota à parte. É autorizada uma nota de bonificação, então isenta de ICMS
e tudo o mais”. (Balconista Ronaldo, 44 anos, ensino médio incompleto, pardo).
Importante destacar outra noção muito presente entre eles/elas de que este
medicamento é “perigoso”, sendo que uma das duas dimensões desta noção implica em
considerar o perigo associado à ideia de “risco” para a saúde das mulheres, já que é
compreendido como uma “bomba hormonal”, especialmente pela noção de que ele vem
sendo utilizado de “forma indiscriminada”:
“É um produto muito sério, eu acredito que traz sérios efeitos colaterais, a contraindicação
dele é muito forte, pode até atrapalhar o hormônio da pessoa, pode desregular o hormônio”.
(balconista Júlio, 27 anos, branco, ensino médio completo)
“Pelo que me dizem, um dos perigos é o ciclo menstrual que já é interrompido, isso é um mal,
pois a mulher menstruando ela está eliminando vários males que ela pode ter...a dosagem
hormonal é maior”. (balconista Mário, 37 anos, branco, ensino médio completo).
“Se é um medicamento de emergência, é porque você vê que o medicamento tem uma
superdosagem, é uma ‘bomba hormonal’. Então, a mulher se ela está se enchendo de
hormônio isso pode prejudicá-la, talvez não hoje, mas amanhã. Com certeza, vai causar
alguma coisa, eu não sei te dizer o quê. Mas, eu acho que com certeza prejudica”.
(perfumista, 23 anos, ensino médio incompleto, branca).
“Existe sim vários efeitos colaterais, principalmente a taxa de hormônio que é muito maior
do que o contraceptivo comum, é uma “bomba” no organismo, dá náusea, dá enjoo, deixa o
paciente com algumas reações, mas a pior delas eu acredito que seja a taxa hormonal, que é
muito grande e com certeza vai trazer problemas para o paciente, talvez não de imediato,
mas no futuro sim. Mas, também acredito que de imediato também, porque ela vai ter um
descontrole na menstruação, isso gera problemas para o paciente”. (farmacêutica Melissa,
35 anos, parda, ensino superior).
170
Essa ideia de receio quanto ao uso de um medicamento considerado uma “bomba
hormonal” apareceu também na investigação realizada por Souza e Brandão (2012) sobre a
cobertura jornalística brasileira concernente ao tema. De acordo com este estudo, a noção de
que é um medicamento que contém altas dosagens hormonais foi reproduzida pelos jornais,
como parte dos discursos sobre o anticoncepcional. A mesma noção foi encontrada em estudo
realizado em 2004, em quatro capitais brasileiras: Belém (PA), Salvador (BA), Curitiba (PR)
e Goiânia (GO). De acordo com os resultados encontrados, os serviços públicos de saúde
dessas cidades mantinham cuidados especiais para armazenar e dispensar esse método (OSIS
et al., 2006).
De acordo com Drezett (2009):
A alegação de que a CE representa uma “bomba hormonal” é utilizada para tentar
desqualificar o método diante da opinião pública, fazendo acreditar que cause dano
para a saúde da mulher ou para o processo de reprodução. Em parte, essa ideia foi
reforçada por muitos profissionais de saúde que, ainda hoje, utilizam termos como
“alta dose” para descrever a quantidade de hormônios presentes na CE. Nesse caso,
por “alta dose” pretende-se explicar a dose de levonorgestrel maior do que a
encontrada nas pílulas anticoncepcionais. No entanto, a dose de levonorgestrel
utilizada na CE não excede o limite farmacologicamente terapêutico e é muito
menor do que a dose tóxica conhecida. (...) A concentração de levonorgestrel na CE
não excede 30% a 40% da dose encontrada numa cartela inteira de uma pílula
anticoncepcional de baixa dosagem, de uso rotineiro por milhares de mulheres.
(DREZETT, 2009, p. 75-6)
É importante notar que a nomeação da CE como ‘bomba hormonal’ não foi
encontrada na literatura internacional, observando-se a ausência dessa expressão no site do
ICEC93, bem como de outras como ‘higher doses of the hormones’ e ‘mega dose of hormone’.
Entretanto, nessa pesquisa, foram encontrados dois sites que trazem tais designações à CE.
Cito aqui o site “Catholic Voices: putting the church’s case in the public square”, que
se propõe a apresentar uma versão denominada epidemiológica sobre a CE, através do artigo
intitulado “The morning after pill: why nobody wins”. No manuscrito, o entrevistado David
Paton, professor da Nottingham University, destaca possíveis riscos para a saúde das
mulheres por conta do uso da CE, além de outras observações relativas ao aumento das DST,
ao aumento do seu uso nos últimos anos etc. Chama atenção a estratégia de utilização da
linguagem “científica” em um site abertamente católico.
Entre as observações, destaco:
93
Agradeço aqui a Luiza Lena Bastos, mestranda do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que realizou tal pesquisa, em setembro de 2013.
171
While the voices of “Plan B” advocates are louder, couples are increasingly
exposing themselves to sexually transmitted disease by engaging in unprotected sex,
more women are taking the morning-after pill (a mega-dose of female hormone)
when the long-term health consequences are unknown94 (Acesso em:
http://www.catholicvoices.org.uk/)
Na drogaria, ouvi inúmeras vezes a expressão “bomba hormonal” que nos remete à
ideia de destruição, explosão, algo que danifica. Para eles, significa que pode causar danos ao
corpo feminino e à saúde das mulheres, mais especificamente em seus órgãos reprodutivos e
outros sistemas vitais, em especial o cardiovascular. Tal perspectiva certamente aparece
atrelada ao processo de regulação dos corpos, ao campo da moralidade. O medicamento é
perigoso também porque pode levar a “risk compensation” ou “behavioral disinhibition”,
que segundo o professor David Paton, ocorre porque a segurança de que há um método póscoital leva a não prevenção de DST e comportamentos ‘promíscuos’.
No campo, esse outro aspecto ligado à noção de “perigo” foi muito acionado pelos
meus informantes, podendo-se observar que a ‘pílula do dia seguinte’ aparece fortemente
associada às vivências sexuais “promíscuas”, servindo para ampliar o prazer, para tornar o
sexo mais ‘livre’, já que dispensa o condon. É quando se espalha a “pouca vergonha”. Ou
seja, significa que sua utilização interfere nos mecanismos de controle social sobre a vivência
sexual e contraceptiva feminina, especialmente das moças mais jovens e tidas como “livres”.
A antropóloga norte-americana Mary Douglas, em um clássico da antropologia
“Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu” (1966) faz uma reflexão sobre
os sentidos e conexões entre pureza, poluição e perigo em "sociedades primitivas" que nos
ajuda a pensar, em nossa sociedade, sobre a questão suscitada acima. Mary Douglas afirma
que pensar sobre pureza implica assimilar a poluição como experiência correlata e em seguida
observar nesta correlação, entre pureza e poluição, a presença do perigo à continuidade das
estruturas de um sistema social (DOUGLAS, 1966).
Para Douglas (1966), a sujeira é desordem e a reflexão sobre as coisas impuras deve
passar por uma reflexão sobre a ordem e a desordem. Sendo a sujeira, as coisas impuras,
vinculadas diretamente a desordem, à não forma, fica evidente o porquê dos símbolos
ambíguos serem considerados como perigosos. Nesse sentido, podemos pensar que a ‘pílula
do dia seguinte’ nasceu e se mantem associada à ideia de perigo por uma causa
especificamente social, relativa ao receio ou medo da ‘desordem’, como se fosse um ato
94
Tradução da autora: "Enquanto as vozes dos "defensores do Plan B" são mais altas, os casais se expõem cada
vez mais a doenças sexualmente transmissíveis, por envolvimento em relações sexuais desprotegidas, mais
mulheres estão tomando a pílula do dia seguinte (a-mega dose de hormônio feminino), quando as consequências
a longo prazo para a saúde são desconhecidas".
172
impuro capaz de poluir as vivências sexuais impróprias/indevidas/inadequadas, especialmente
das ‘moças’ mais novas.
Outra narrativa muito presente em meu campo referia-se a certa ordenação geográfica
e moral sobre os “lugares” ou bairros na cidade onde a “pílula do dia seguinte” circulava
mais, ou seja, onde era mais vendida. Tais classificações relacionavam diretamente os lugares
de maior venda aos tipos de pessoas que nele habitavam.
O melhor exemplo refere-se à narrativa de um representante de laboratório, antigo no
ramo e muito conhecido dos funcionários da drogaria, o qual foi apelidado “Alegria,
alegria”, devido ao fato de se utilizar desse jargão como cumprimento. Senhor de 50 e
poucos anos, muito comunicativo e que gostava de acariciar e beijar as funcionárias da loja,
logo puxou conversa comigo. Toda vez que me encontrava, abraçava-me forte e me beijava o
rosto.
A ele, por meu contato mais frequente, revelei minha identidade de pesquisadora e o
tema de minha pesquisa. Logo começou a me convidar para ir para a área das “comunidades”,
dizia sempre “é lá que o bicho pega, é lá que a venda é quente”. Sua representação, a mim
apresentada inúmeras vezes, sobre o uso da contracepção de emergência é de que este
medicamento é mais usado por quem não tem informação, educação, e que, talvez por isso, se
deixem levar pelos impulsos sexuais, considerados excessivos. Com suas palavras: “as
menininhas tudo novinhas estão usando igual água”. Segundo sua opinião, “no morro” vende
muito mais do que “no asfalto”. Em várias ocasiões, ele repetiu esse relato, convidando-me a
ir com ele visitar tais locais95.
Outra aproximação interessante foi com o balconista José, que trabalha há 42 anos
nesse mesmo ramo de atividade. Começamos a conversar sobre a pílula, perguntei como ele
estava sentindo a venda da CE naquela drogaria, já que ele era novato por ali. Respondeu-me
que na drogaria que trabalhava em São João do Meriti, vendia-se muito mais, por volta de 10
cartelas por dia. Segundo ele, esse medicamento sai mais nos “bairros populares”, onde
podemos observar uma pobreza maior, menos educação e menor acesso às informações. Essa
associação entre pobreza, baixa escolaridade e uso indiscriminado da contracepção de
emergência apareceu repetidas vezes no campo.
95
Apesar de não ter ido com ele, pois ponderamos as questões de segurança, sua narrativa é considerada aqui
como inserida em uma classificação bem homogênea sobre as categorias de consumidoras da CE e suas relações
com as práticas desenvolvidas no interior desta drogaria.
173
Os estudos qualitativos, realizados por Bissell et al. (2006) e Cooper et al. (2008), no
Reino Unido, ao explorarem a perspectiva dos farmacêuticos a respeito da viabilização da CE
pelas farmácias, segundo o protocolo de acordo mútuo entre estes profissionais e os
prescritores médicos, demonstram que há ambivalências em relação à aceitação da CE. Os
fatores positivos apontados pelos profissionais referem-se à maior facilidade de acesso ao
método, à privacidade do consumidor e ausência de custos nestes países. Entretanto, os
farmacêuticos também expressam reservas sobre tal acesso, receio quanto ao uso repetido,
aumento de doenças sexualmente transmissíveis e quanto aos possíveis perigos gerados.
Considerando as representações apresentadas por meus informantes e ampliando o
olhar para além das drogarias e do contexto nacional, podemos perceber que, como salientado
antes, o debate social em torno da CE está polarizado entre os que defendem seu uso e os que
são contrários. Tanto a argumentação favorável à CE quanto a desfavorável aparecem no meu
campo, ganhando destaque, sem dúvida, a perspectiva defendida, em geral, por profissionais
de saúde, quanto aos riscos de ampliação da divulgação e uso da CE. No caso em questão, o
perigo do medicamento parece se unir a uma dinâmica moral, refletida em atitudes de controle
social, especialmente direcionadas à sexualidade feminina (DOUGLAS, 1966).
Buscando comparações, procurei observar o contexto geral das vendas realizadas no
balcão. Os medicamentos são classificados de várias formas, entre estas há aquelas relativas
aos riscos/perigos que podem causar à saúde dos/as clientes. Os antibióticos e os
denominados “tarja preta" são medicamentos vendidos somente sob receita médica,
classificados em níveis distintos de riscos à saúde, sendo portanto resguardado o domínio do
poder médico. Por outro lado, inúmeros medicamentos são oferecidos diariamente sem crises
“morais”, sem referências quanto ao uso abusivo ou descontrolado pela população. Como, por
exemplo, os antiinflamatórios, muito vendidos atualmente por conta da proibição, pela
ANVISA, da venda sem receita dos antibióticos. Não é preciso dizer dos enormes riscos
relativos à saúde pelo uso irracional desses medicamentos.
Presenciei inúmeras situações de indicação de tais fármacos pelos balconistas, os quais
admitem utilizar essa estratégia, em especial com a população menos escolarizada e de faixa
etária mais avançada. Houve uma situação, inclusive, em que um dos balconistas utilizou o
meu nome, como seu eu fosse médica e trabalhasse em um hospital da região, para indicar um
medicamento à cliente que estava ao telefone com ele: “(...) Inclusive a dra. Sabrina, que
trabalha no Hospital da Penha, costuma indicar esse medicamento [anti-inflamatório] para
seus pacientes” (Balconista Pontes, 37 anos, branco, ensino médio completo; grifo da autora).
174
Um medicamento que eles/elas associaram livremente à CE foi o Viagra®, utilizado
para o controle da “disfunção erétil”, que também é muito vendido, sem receita médica,
muitas vezes para jovens, classificados, como a “pílula do dia seguinte”, dentro da categoria
daqueles que causam constrangimento na hora da compra.
De acordo com os balconistas, já que não presenciei nenhuma venda de Viagra®, os
clientes que adquirem este medicamento são, em geral, homens jovens, os quais chegam
“meio constrangidos” no balcão, e costumam solicitá-lo não pelo nome de marca, mas por
apelidos como: “pílula azulzinha” ou “aquele que deixa turbinado” etc. Além disso, segundo
as narrativas de meus informantes, os consumidores sempre utilizam a estratégia de negar que
a compra seria para uso próprio, contando que estariam adquirindo para algum amigo/colega.
De acordo com suas percepções, os usuários mais frequentes de tal fármaco, o qual
recebeu, pela mídia, rótulo de pílula do “estilo de vida”, não seriam aqueles que possuem
necessariamente “impotência sexual”, pois por serem jovens, parecem mais interessados em
“prolongar” ao máximo suas potências sexuais: “ao invés de dar duas, eles podem dar
quatro, cinco” [leia-se: ao invés de permanecer ativo e com potência sexual para gozar duas
vezes, consegue permanecer ativo por mais tempo e obter um número maior de ejaculações].
De acordo com Azize (2002, p. 16), esta pílula passou a ser comercializada nos EUA
em abril de 1998 e chegou às drogarias brasileiras em junho deste mesmo ano. Após três anos
de comercialização no Brasil, em 2001 o Viagra® passou a ocupar a posição de medicamento
mais vendido no país, seguido pelo Cataflan®, um anti-inflamatório tradicional no mercado.
A despeito de suas aproximações, a história da introdução e incorporação destes dois
fármacos no mercado possui matizes muito diferentes. Enquanto o Viagra® (AZIZE, 2002)
teve um lançamento triunfal no mercado, tanto no que se refere à propaganda direcionada ao
público leigo, quanto ao público biomédico, especialmente médicos, o Postinor®,
medicamento de referência para a contracepção de emergência, teve um discreto lançamento
no mercado brasileiro, também no fim da década de 1990, tendo uma propaganda mais focada
nas consumidoras (BASTOS, 2012).
O primeiro veio para potencializar e/ou resolver “problemas” da esfera sexual
masculina, o segundo surgiu como única opção contraceptiva após ato sexual. Ou seja,
enquanto o Viagra detém status social privilegiado, a CE parece dispor de uma posição
duvidosa, liminar. Mas, podemos pensar que ambos compartilham o fato de estarem entre os
fármacos que possibilitam, de certo modo, a potencialização do prazer. O Viagra por razões
175
óbvias e a CE por acionar a ideia de que é possível viver o ato sexual sem restrição alguma e
somente depois pensar no controle da reprodução. Caso falte proteção no momento do sexo,
ainda é possível “se salvar depois”, ou como diriam meus informantes: se “dormir sem
calcinha, acorda direto na drogaria”. Para meus informantes, funcionava como um
mecanismo para “facilitar” a vivência sexual “descontrolada”, iniciada mais cedo, “sem
freios”.
Entretanto, é curioso que eles não façam o mesmo juízo de valor em relação aos
compradores do Viagra referindo-se, por exemplo, a um possível exagero para exacerbação da
potência sexual masculina. Ou seja, apesar deles considerarem que este medicamento também
esteja sendo utilizado para além de suas indicações, não apresentam preocupações quanto à
imoralidade masculina. Suas observações relacionam o uso por esta faixa etária a um possível
temor masculino quanto à possibilidade de “brochar na hora H”, que é motivo de chacota
entre eles, por ser um elemento que coloca em questão suas masculinidades. De acordo com
um dos balconistas:
“O uso do Viagra® muitas vezes significa ou que o cara não dá conta do recado ou que
deseja ficar turbinado”[risos]. (balconista Gilberto, 23 anos, pardo, ensino médio
incompleto).
Entretanto, não foi possível perceber preocupações quanto aos perigos do uso
“indiscriminado” deste medicamento, pelo contrário, há comentários jocosos relativos à
questão da masculinidade, que nesse caso implica que a crítica recai moralmente naquele
“que não dá conta do recado” e não naquele que usa de artifícios para potencializar, de
alguma forma, a relação sexual.
8.2 O PÂNICO MORAL ENVOLTO NA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA:
PERCEPÇÕES SOBRE AS USUÁRIAS
Durante o campo, tornou-se muito marcante certo tipo de olhar sobre as usuárias da
contracepção de emergência, que as classificava e destinava especialmente para as mais
jovens e “colegiais” as preocupações quanto ao uso incorreto e repetido da ‘pílula do dia
seguinte’. De certo modo, o consumo recorrente da CE aparecia nas narrativas de meus
informantes como signo da decadência moral de quem a consumia. A reflexão sobre a
especificidade do olhar que meus informantes lançavam para as consumidoras da CE e, mais
especificamente, para as mais jovens, levou-me ao conceito de pânico moral.
176
Stanley Cohen é, sem dúvida, o autor que está mais associado ao conceito de pânico
moral, apesar deste ter sido utilizado pela primeira vez por Jock Young, em 1971. Este autor
utilizou tal conceito para se referir a um ‘efeito em espiral’ ocorrido na mídia, opinião
pública, grupos de pressão e políticos acerca da preocupação com o consumo de drogas. Tal
noção foi, um ano mais tarde, utilizada por Cohen no livro “Folk Devils and Moral Panics”
(1972), a propósito da inquietação gerada pelas confrontações e episódios de vandalismo
protagonizados por dois grupos juvenis rivais – os Mods e os Rockers – em algumas estâncias
balneares inglesas, articulando, propriamente, a primeira teoria do pânico moral.
Cohen (1987, p. 9) define o pânico moral como “uma condição, episódio, pessoa ou
grupo de pessoas que ameaçam os valores morais da sociedade e seus interesses”. Sua
natureza é, em geral, apresentada de forma estilizada e estereotípica pelos meios de
comunicação de massa, o que pode levar ao fortalecimento de certos tipos de ‘barricadas
morais’.
Heilborn, Brandão e Cabral (2007), em um artigo intitulado “Teenage pregnancy and
moral panic in Brazil” analisam a construção social do pânico moral em torno da gravidez na
adolescência no contexto nacional. Segundo as autoras, uma vez elaborada como um assunto
a ser abordado e uma vez construído como uma questão social, gravidez na adolescência
tornou-se um ‘problema’ que pode ser bem compreendido a partir desta noção.
Nas palavras das autoras:
Teenage pregnancy has become a potent terrain for the production of discourses in
both public opinion and expertise. These discourses display a social grammar that
reproduces the unequal distribution of power between different actors. There are
groups and individuals who enjoy positions that allow them to define what is proper
and morally acceptable and there are those whose positions do not allow them to
voice their points of view or their choices (…). Young women who experience early
pregnancy are not infrequently targeted by attempts to control and to label their
conduct as undesirable and injurious both to their proper development and to the
collective well-being. This process is connected to the persistence of a double
standard for male and female sexuality in Brazilian society, according to which men
are expected to exercise their sexuality while women must restrain it 96 (HEILBORN,
BRANDÃO e CABRAL, 2007, p. 405).
96
Tradução nossa: A gravidez na adolescência tornou-se um terreno fértil para a produção de discursos, tanto da
opinião pública quanto dos especialistas. Estes discursos exibem uma gramática social que reproduz a
distribuição desigual de poder entre os diferentes atores. Há grupos e pessoas que desfrutam de posições que lhes
permitem definir o que é adequado e moralmente aceitável e há aqueles cujas posições não lhes permitem
expressar seus pontos de vista ou as suas escolhas. (...) As mulheres jovens que experimentam a gravidez
precoce não raramente são alvo de tentativas de controlar e de rotular suas condutas como indesejáveis e
prejudiciais, tanto para o seu próprio desenvolvimento quanto para o bem-estar coletivo. Este processo está
ligado à persistência de um duplo padrão para a sexualidade masculina e feminina na sociedade brasileira,
177
Aqui apesar de não se tratar diretamente do problema social da gravidez na
adolescência, utilizo a discussão para pensar as representações evocadas por meus
informantes para caracterizarem as consumidoras da ‘pílula do dia seguinte’. Em suas
narrativas aparecem os elementos trazidos pela mídia de massa, especialmente quanto à
possibilidade de que o acesso a esse método pode provocar o exercício desenfreado da
sexualidade feminina, especialmente as mais jovens ou adolescentes. Abaixo algumas
narrativas elucidativas:
“com a pesquisa você vai perceber que elas estão tomando de qualquer jeito, como se fosse
método de rotina”. (balconista Mário, 37 anos, pardo, ensino médio incompleto).
“Elas estão usando desvairadamente. A meninada hoje aí, foi lá, transou, porque não é
namorar, nem fazer amor não, é transou mesmo. Depois disso, vai lá e tranquilo... Eu acho
que depois da pílula do dia seguinte, o uso da camisinha só mesmo quem tem consciência”.
(balconista Rogério, 30 anos, pardo, ensino médio incompleto).
“Hoje em dia estão tomando ‘à moda Bangu’, ou seja, de qualquer jeito. Eu vou sair com
meu namorado, vou ter relação sexual e vou tomar, não vou usar camisinha”. (balconista
Souza, 31 anos, branco, ensino médio incompleto).
“Tem pessoas aí (...) que compram até 3 caixas por mês. Ou seja, não gostam de usar
camisinha e recorre à pílula. (...) Na hora é uma maravilha, depois vem a dor de cabeça”.
(balconista Pontes, 37 anos, branco, ensino médio completo).
“Estão tendo acesso à pílula muito fácil, então não estão se preocupando mais com o
preservativo, nem com anticoncepcional comum”. (perfumista, 27 anos, branca, ensino médio
incompleto).
Essa concepção referente ao uso indiscriminado e irresponsável da contracepção de
emergência pelas consumidoras, especialmente as “meninas” adolescentes, colegiais, foi a
que mais prevaleceu durante o trabalho de campo. Ficou claro que a versão destes/as
trabalhadores/as sobre o uso da contracepção de emergência e sobre suas consumidoras,
estava bem alinhada ao discurso moral muito frequente sobre os riscos da sexualidade juvenil,
relativos ao aumento da promiscuidade, DST, e gravidez na adolescência (SCHALET, 2004,
p. 9). Em muitos momentos, meus/minhas informantes, ao se referirem à ampliação do uso da
CE entre as adolescentes, conectam à mesma discussão, por exemplo, a ideia de que houve
segundo a qual os homens devem exercer sua sexualidade, enquanto as mulheres devem contê-la (HEILBORN,
BRANDÃO E CABRAL, 2007, p. 405).
178
também um aumento da homossexualidade entre jovens, percebendo ambos como sinais da
“imoralidade” da juventude, da decadência dos “bons costumes”.
Como exemplo, utilizo uma conversa ocorrida entre dois ou três balconistas, a
pesquisadora e um consumidor, de aproximadamente 60 anos, conhecido por todos, não
usuário da CE. Era um dia bem tranquilo, fim de semana, após o almoço, estava conversando
com os balconistas, quando entrou um senhor para resolver determinado problema com uma
venda indevida computada em seu cartão. O seu atendimento foi demorado, e como ele já
havia me visto algumas vezes e estávamos ambos próximos ao balcão, ele então me perguntou
diretamente quem eu era e o que estava fazendo ali. Sua pergunta soou estranha, pois na
mesma hora os balconistas próximos começaram a prestar atenção na conversa. Eu respondi
dizendo-lhe o meu nome. Ele, então, continuou perguntando se eu era fiscal do Ministério da
Saúde. Então, contei-lhe que estava pesquisando a ‘Pílula do Dia Seguinte’. Essa foi a senha
para o início do discurso moral de que “as adolescentes estão perdidas”. A nossa conversa
foi fluindo, enquanto isso os balconistas pareciam concordar, fazendo expressões de aceitação
com a cabeça. Contou-me que era professor de educação física na escola pública do bairro e
que percebe, por se relacionar com esta faixa etária, que “os adolescentes, de modo geral,
estão muito promíscuos (...), eu não acredito nessa pílula, é abortiva”.
Esse momento foi ímpar, já que engendrou uma série de narrativas dos balconistas
sobre a concepção apresentada pelo cliente, não somente naquele momento, mas tal narrativa
passou a ser lembrada sempre quando faziam uma venda para alguma moça mais jovem, na
faixa etária inferior aos 20 anos.
“essas meninas não querem saber de nada, de responsabilidade... dormem sem calcinha e
acordam direto na drogaria”. (balconista Gilberto, 23 anos, pardo, ensino médio incompleto)
“quem usa mais são aquelas que não têm informação direito, moradoras de comunidade,
meninas perdidas”. (balconista Pontes, 37 anos, branco, ensino médio incompleto)
“é um risco para os homens, do jeito que as meninas estão hoje”. (balconista Júlio, 27 anos,
pardo, ensino médio completo)
Ademais, em geral, as representações sobre o uso indiscriminado da CE se confundem
com julgamento moral sobre o que compreendem como “iniciação sexual precoce das
moças”, em geral relacionando ao posicionamento social e geográfico/espacial das jovens no
território da cidade. Tais julgamentos geram um sistema de culpabilização das consumidoras
179
quanto ao uso da CE, em especial aquelas denominadas “perdidas”, moradoras das
comunidades (favelas, morros) e demais regiões periféricas da cidade.
Sobre a noção presente no grupo de que os jovens estão iniciando a vida sexual mais
cedo, ao abordar os costumes sexuais no Brasil, a literatura socioantropológica, constata
modificações recentes neste cenário, referentes a uma nova temporalidade na sexualização do
namoro e o surgimento de várias outras formas de relacionamento entre os jovens. Isso
significa que os jovens, de fato, estão começando a vida sexual mais cedo, sem que o
relacionamento sexual implique em uma dimensão afetiva de vivência amorosa (BOZON,
2004; HEILBORN, 2010).
Apesar disso, a cultura sexual brasileira continua fortemente marcada por uma
categorização de gênero que reserva atitudes e qualidades hierarquizadas e de oposição para
homens e mulheres. Daí, a sexualidade feminina ser mais ligada à esfera afetiva,
frequentemente referida como uma dimensão relacional do gênero feminino. Já os homens
vivenciam uma sexualidade que possui sentido em si mesma, como se portasse uma qualidade
intrínseca instrumental. A disposição para a atividade sexual e a valorização do número de
parceiras podem ser tomados como bons exemplos dessas representações (HEILBORN, 2012,
P. 399).
Apesar da virgindade não ser mais determinante/central no processo de discriminação
social das mulheres, atualmente ainda persiste a valorização do que pode ser denominado
como “virgindade moral” (HEILBORN, 2012, p. 59). Trata-se, sobretudo, da valorização de
uma forma passiva e ingênua de vivência sexual pelas mulheres, especialmente as
adolescentes, a qual se acredita perdida, devido à vivência sexual “indiscriminada”, “sem
pensar nas consequências”, que é reforçada, na acepção dos informantes, pela possibilidade
de tomarem a ‘pílula do dia seguinte’ logo em seguida.
Além disso, a noção do uso indiscriminado e/ou repetitivo traz consigo o temor quanto
ao aumento das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e HIV/Aids, já que percebem que
aquele/as que buscam a CE só estão preocupados/as com a gravidez, o que pode significar não
uso do preservativo nas relações sexuais.
O estudo qualitativo, realizado na Escócia, por Ziebland e col. (2005), aponta as
mesmas controvérsias em relação à CE, as quais frequentemente giram em torno da questão
da moralidade sexual, especialmente em relação à atividade sexual das jovens. As
preocupações se relacionam com uma suposta ‘promoção’ da promiscuidade sexual ao se
180
expandir o acesso à CE. Resultados semelhantes foram encontrados no estudo realizado por
Simonds e Ellertson (2004), no contexto norte-americano, demonstrando a crença de alguns
provedores quanto à relação entre fácil acesso à CE e o aumento da “irresponsabilidade”
sexual das mulheres, com a diminuição do uso de preservativos e contraceptivos de rotina.
No Brasil, além da CE estar associada no debate público, em especial na mídia de
massa, aos medicamentos abortivos (até mesmo entre os profissionais de saúde), ela também
aparece relacionada à noção de que vivemos em um período de “afrouxamento da
moralidade”, que leva ao uso inapropriado do método e ao medo do aumento de doenças
sexualmente transmissíveis pela ausência do uso do preservativo masculino (PAIVA,
BRANDÃO, 2012; SOUZA, BRANDÃO, 2009).
Neste contexto, há ainda a grande “cruzada moral” levada a cabo pela Igreja Católica,
tanto no Brasil como em outros países da América Latina, contra a distribuição e, algumas
vezes, até mesmo a comercialização de tal produto. A Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR) realizou um estudo sobre as intervenções restritivas ao acesso da contracepção de
emergência no Brasil, buscando construir e traçar elementos de análise em torno de um mapa
geopolítico destas ações, identificando a relação entre a territorialidade das iniciativas de
oposição à contracepção de emergência e suas vinculações com a presença de lideranças
pessoais e institucionais da Igreja Católica (ARRILHA, CITELI, 2010).
No material analisado, identificou-se a Igreja Católica como a instituição que lidera e
articula as intervenções contrárias à distribuição da contracepção de emergência. Nos
documentos examinados e evidências encontradas, os profissionais da religião (sobretudo
padres e bispos) são os elementos de articulação de discursos e práticas que transformam em
polêmica a implantação do atendimento à contracepção nos serviços públicos de saúde
brasileiros, provocando, em alguns locais, também a proibição de sua comercialização.
(ARRILHA, CITELI, 2010).
Nesse sentido, podemos pensar que o contexto de disseminação do uso da
contracepção de emergência entre nós parece ter fortalecido certo tipo de “pânico moral”
existente em torno das modificações nos padrões dos relacionamentos afetivo-sexuais,
especialmente dos/as jovens (HEILBORN, BRANDÃO e CABRAL, 2007).
O temor quanto à sexualidade juvenil (SCHALET, 2004) foi-me apresentado como
uma noção hegemônica, em vários momentos do trabalho de campo. Em conversa com um
dos balconistas mais bem informados, Mateus (37 anos), leitor assíduo de jornais, ele me
181
contava sobre uma matéria que havia lido no jornal Extra97, sobre o aumento do consumo da
‘pílula do dia seguinte’, especialmente entre as jovens brasileiras. Ele considerava o uso do
medicamento mais concentrado entre o público adolescente, principalmente “meninas de
colégio”, que têm “vergonha” de pedir o método. E completou agradecendo por não ter uma
filha, pois “as meninas não querem saber de se cuidar, só pensam depois do acontecido”.
Depois de certo período de campo, comecei a observar que as consumidoras da CE,
nesta drogaria, eram vistas como “transgressoras” em diferentes níveis. Tais níveis estavam
relacionados à faixa etária da consumidora, sua classe social e raça e seu pertencimento
geográfico-moral no contexto da cidade. Ou seja, pude apreender certa classificação espacial
e moral sobre os “lugares” ou bairros na cidade onde poderíamos encontrar maior número de
consumidoras da ‘pílula do dia seguinte’. Tais classificações relacionavam diretamente os
lugares aos tipos de mulheres neles encontradas.
Isso significa que há uma percepção difundida nesse grupo de que as mulheres que
mais utilizam a CE de forma “irresponsável” e “indiscriminada” são as mais jovens, com
baixo nível de escolaridade e renda e pertencimento às regiões da cidade onde vivem os
grupos populares, não somente a zona norte, mas todos os bairros considerados de “periferia”.
Podemos perceber nestas narrativas a presença do contraste entre zona norte e sul,
periferia/centro. Sendo que esse contraste hierárquico também se manifestou no interior do
grupo “periferia”, já que comentam sobre a diferença nas vendas naquela drogaria de
“asfalto” em relação a outros estabelecimentos localizados mais à frente no Complexo do
Alemão, onde a venda é muito mais “quente”.
A região em que eu estava realizando a pesquisa é considerada “asfalto”, sendo que o
bairro, até mesmo por sua importância histórica, era considerado de “classe média” em
relação a outras regiões da zona norte e periferia. Em suas narrativas, quanto mais se desce na
escala social, mais se vende ‘pílula do dia seguinte’, diminuindo sua distância em relação às
vendas dos contraceptivos hormonais de rotina, e vice versa.
Fallon (2010, p. 678) chama atenção para os critérios utilizados na identificação de
populações específicas como prioritárias para intervenções sanitárias, os quais muitas vezes
relacionam cultura, raça e classe social. Sendo assim, a construção do problema social em
torno da sexualidade adolescente é, sem dúvida, um bom exemplo do modo como ideias de
risco e perigo podem acionar mecanismos de controle social, engendrados através de
97
Jornal popular, veiculado no Rio de Janeiro, das Organizações Globo.
182
intervenções públicas. No entanto, isso pode ocorrer sem a devida consideração dos possíveis
danos causados às populações consideradas como prioridades para as políticas públicas, em
termos de constituição de certo tipo de ‘cultura da culpa’ ou até mesmo pela inexatidão das
alegações quanto às modulações dos riscos relativos à vivência da sexualidade e
contracepção.
Na visão dos balconistas, as usuárias da CE que adquirem mais frequentemente o
medicamento nesta drogaria não possuem exatamente o mesmo perfil daquelas “do morro” e
também não correspondem àquele “da zona sul”. A partir daí, podemos, grosso modo, pensar
em três perfis de usuárias:
- “meninas perdidas” - as quais começam muito cedo a vida sexual, sem orientação familiar
ou de instituição escolar, que promovem o uso indiscriminado do método, em geral, muito
jovens e moradoras do morro/comunidade;
- “usuárias esporádicas” - aquelas que não utilizam método contraceptivo em suas relações
sexuais, por não estarem em um relacionamento fixo ou por não se adaptarem aos métodos
hormonais, são também frequentes e um pouco mais velhas que as anteriores, mais frequentes
“no asfalto”, zona norte e sul;
- “usuárias emergenciais” - aquelas que utilizam algum método contraceptivo em suas
relações sexuais e optam por também tomar a pílula de emergência por descrença no método
de rotina ou medo de falha, estas estão em menor número no local onde trabalham agora, mais
presentes na zona sul.
O mapa socio-espacial e moral de uso da contracepção de emergência é muito claro
nos depoimentos destes informantes, tanto mulheres quanto homens. Vale a pena destacar a
comparação de um dos balconistas que havia passado mais tempo trabalhando na zona sul, na
faixa etária de 40 anos, a respeito do comércio da CE e consequentemente de suas
consumidoras. Segundo sua experiência, na zona sul observa-se uma faixa etária mais velha
comprando, “às vezes, dava até mãe comprando para a filha”.
Outro aspecto importante a respeito do olhar sobre as consumidoras de CE se refere às
avaliações sobre o grau de vergonha sentido pelas mesmas. Nesta investigação, desde o início
fui alertada quanto à vergonha das consumidoras de CE. Conforme relatam, quanto mais
“novinha”, maior a vergonha. A vergonha no ato da compra contrasta, na narrativa dos
balconistas, com a “falta de vergonha” destas jovens em suas vivências sexuais, percebidas
como disfuncionais, “fora de hora”, especialmente das moças mais jovens, identificadas
183
como “perdidas”. A vergonha emergiu como um dos vários temas identificados nas
narrativas, ao lado de “irresponsabilidade”, “risco”, “promiscuidade” e fim dos “bons
costumes”.
Interessante é que aquelas classificadas como “meninas perdidas”, são ditas “sem
vergonha” também no ato de compra do medicamento, pois não possuem “vergonha na cara”.
De fato, especialmente as perfumistas expressaram incômodo com aquelas jovens que
chegavam no balcão, conversavam alto, contavam sobre o tempo transcorrido da relação etc.
Em uma ocasião, uma delas veio me contar sobre uma “moça bem estranha” que havia
comprado a CE. Segundo seu relato:
“ela chegou e começou a conversar alto comigo, eu nem conseguia entender direito, pois ela
falava estranho. Disse que tinha tido relação na noite passada, que chegou em casa e dormiu,
só que dormiu 12 horas, queria saber se podia ainda tomar o ‘remédio do dia seguinte’. Ela
parecia não saber muito bem, solicitei que ela fosse ao balcão. Chegou lá e contou a mesma
história pros meninos. Mas essa não é aqui do bairro não, parece que veio do Alemão”
(perfumista, 22 anos, branca, ensino médio completo).
Em comparação com as consumidoras da zona sul, os informantes atestam que elas
têm menos vergonha no ato da compra, por serem mulheres mais velhas, “resolvidas”. O fato
é que a “falta de vergonha” das consumidoras da zona sul parecia outorgada pelo direito à
autonomia, enquanto as mulheres “sem vergonha” da zona norte é tomada como falta moral.
Percebi que, para eles, a vergonha implica o sentimento de autorregulação pelo receio
quanto ao olhar do outro (REZENDE, COELHO, 2010). Mas, quando a mulher não a sentia,
isso poderia significar ausência total de autocontrole ou de adesão a certa moral sexual,
especialmente se fosse adolescente e moradora das comunidades. Ou, ao contrário, caso fosse
moradora da zona sul, mais velha, estilo mulher “resolvida”, poderia ser interpretado como
sinal de “autonomia” feminina, independência pessoal, denotando o uso “consciente” e
responsável do contraceptivo.
As noções classificatórias sobre as mulheres que consomem a CE, utilizadas pelos
informantes, parecem estar relacionadas à suposta maior habilidade das jovens de classe
média em ter controle sobre sua sexualidade e decisões reprodutivas. Ao contrário, as usuárias
do tipo “perdidas”, com seus corpos excessivamente sexualizados, confrontam os valores
conservadores destes funcionários, sendo por eles desmoralizadas. Pareceu-me que o grau ou
dimensão dada à autonomia das consumidoras da CE e os mecanismos de controle acionados
184
estavam relacionados aos diferentes pertencimentos destas mulheres às regiões da cidade do
Rio de Janeiro, observando-se maior preocupação com as consumidoras adolescentes,
moradoras de áreas com baixo status socioeconômico e escolaridade.
Importante notar ainda que o olhar dos funcionários sobre as consumidoras da CE,
especialmente as ‘meninas perdidas’, pareceu-me excessivamente incomodado e preocupado,
o que me levou a pensar que talvez a explicação pudesse ser buscada na relação de
proximidade objetiva e subjetiva que possuem com tais consumidoras. Simmel (2009)
observa que o grau de distanciamento das pessoas em relação ao centro de nossa
personalidade interfere sobremaneira nos ajustes, práticos e subjetivos, que teremos que fazer
para aceitar a sua eventual falta de ‘integridade’. Sendo assim, o destaque maior para os
comportamentos das consumidoras da zona norte, especialmente aquelas da ‘comunidade’ e
periferias, é possível de ser compreendido a partir da relação de maior sociação e afetação que
eles possuem com as mulheres pertencentes aos seus meios socioculturais. Acima de tudo,
suas representações e classificações relacionadas às consumidoras da CE operam no sentido
de controle da sexualidade feminina, especialmente daquelas pertencentes ao mesmo contexto
sociocultural que eles.
É importante observar ainda, com relação às suas representações sobre o uso repetido
da CE que, no Brasil, não há evidências que comprovem o uso repetitivo, já que estudos sobre
o comportamento de jovens demonstram que este não é predominante, ocorrendo em menos
de 20% dos usuários desse método (FIGUEIREDO et al., 2008). No estudo de Perpétuo
(2010), a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da
Mulher (PNDS) de 2006, ela aponta que, no contexto brasileiro, a CE é mais utilizada por
aqueles que têm maior controle reprodutivo: as que nunca ficaram grávidas e ainda não têm
filho; as que têm conhecimento adequado sobre contracepção; as que usaram o primeiro
método antes de ter filho; e aquelas que planejaram a gravidez atual.
De acordo com a autora,
A pílula do dia seguinte também pouco aparece nos dados sobre os métodos em uso
na época da pesquisa, mas ganha lugar de destaque entre aqueles utilizados para
evitar a gravidez alguma vez na vida. Note-se que 97% das garotas sexualmente
ativas alguma vez usaram método para evitar filho, das quais 19% citaram a
contracepção de emergência. Este dado sugere que as adolescentes não identificam a
‘pílula do dia seguinte’ como opção anticoncepcional preferencial, mas sim,
efetivamente, como um meio contraceptivo de emergência a ser utilizado em
situações específicas. Esta é uma evidência contrária ao argumento frequentemente
utilizado pelos opositores da ‘pílula do dia seguinte’, que afirmam que ela
impulsionaria as relações sexuais desprotegidas e que haveria uma tendência entre as
185
adolescentes de banalizar seu uso, utilizando-a rotineiramente. (PERPÉTUO, 2010,
p. 114)
Os dados da pesquisa revelam ainda que o uso da CE, surpreendentemente, alcança o
nível mais alto no grupo das adolescentes indígenas, no qual 57% das entrevistadas
declararam tê-la utilizado alguma vez na vida. No outro extremo, com pequena utilização,
encontram-se as jovens de classe econômica e escolaridade baixas e as adolescentes que se
autodenominaram como pretas. Nota-se também que existem diferenças significativas no uso
da ‘pílula do dia seguinte’ entre os subgrupos definidos por todas as variáveis analisadas, com
exceção da religião. Seu uso é maior entre mulheres com 18 anos (com um padrão etário de
utilização não muito claro), na área urbana e nas Regiões Centro-Oeste e Sudeste, e aumenta
com a escolaridade e o status econômico (PERPÉTUO, 2010, p. 115).
Em contraste com estes dados, as representações destes profissionais do setor
farmacêutico revelam uma divisão simbólica entre aquelas que usam a “pílula do dia
seguinte” de forma emergencial, e aquelas que usam de forma “indiscriminada” e
“irresponsável”. Tal divisão se confunde, na prática, com as linhas de classe existentes e com
critérios etários, que significa que na acepção que compartilham, quanto mais jovem e pobre,
mais “perdidas” elas serão em termos de vivência sexual e reprodutiva. Percebo que, nesta
drogaria, a tensão entre autonomia e controle sobre a sexualidade feminina mais uma vez se
resolveu a partir de um cálculo, muito bem orquestrado dentro de uma “zona moral
específica”, sobre o grau de competência das mulheres para assumirem a gestão de suas vidas
sexuais e reprodutivas.
Desse modo, devemos considerar o significado social destas observações que dizem
respeito às usuárias da contracepção de emergência, que implica em determinada forma de
relacionamento entre os vendedores e as compradoras deste contraceptivo, no atual contexto
político de busca da ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, particularmente da
população jovem.
8.3 O COMÉRCIO DA CONTRACEPÇÃO DE EMERGÊNCIA: SILÊNCIO E VERGONHA
NO BALCÃO DA DROGARIA
A escassez de pesquisas neste cenário no Brasil e a própria opção pelo método
etnográfico, possibilitou-me abrir um leque de questões muito amplo e diversificado, as quais
iam desde as mais específicas do campo da saúde até aquelas de cunho mais sociológico:
186
quem compra? Que horas compra? Pergunta algo para o/a balconista ou farmacêutico/a?
Como reage o/a vendedor/a? O/a consumidor/a pede pela marca ou pelo nome genérico
“pílula do dia seguinte”? Vem sozinho/a ou acompanhado/a? Negocia preço? E quem vende?
Como oferece o “produto”? Oferece explicações sobre o produto em que circunstâncias? Faz
distinção entre os/as clientes? De forma englobante, meu interesse esteve voltado para o
processo de interação durante a comercialização da CE.
Para respondê-las, foi fundamental a criação de estratégias que me possibilitassem
observar o maior número de interações possível. Durante o período do campo, intercalei dias
e horários diferentes, tentando encontrar os momentos de maior procura deste
anticoncepcional. Mas, depois de um tempo percebi que mesmo indo nos fins de semana e em
períodos noturnos, não havia garantia de observação da venda da “pílula do dia seguinte”.
Um exemplo foi a minha visita ao estabelecimento durante dois dias de Carnaval, quando
calculei que teria várias oportunidades de observação, mas consegui observar somente uma
venda no balcão.
Segundo os balconistas, saíram algumas caixas pelo telefone, mas bem menos do que
o esperado. Em conversa com um dos funcionários mais antigos, gerente regional desta rede,
o mesmo me disse que os jovens não ficam no bairro durante o Carnaval, muitos viajam ou
vão curtir o Carnaval no centro da cidade, por isso se tiverem que comprar a pílula do dia
seguinte, em geral compram por lá. Ao invés de parecer movimentado, o bairro me pareceu
mais tranquilo no domingo e na segunda do carnaval de 2011. Foi possível perceber a
presença ainda maior de pessoas mais velhas em relação às jovens, as quais adquiriam
principalmente medicamentos anti-hipertensivos, anti-glicemiantes e outros para ressaca ou
para preveni-la.
Durante todo o tempo que passei em campo presenciei trinta e duas interações entre
balconistas e consumidores/as que terminaram na venda da CE. Vinte e três mulheres e nove
homens foram comprar a ‘pílula do dia seguinte’, com idades variadas, observando-se a
predominância da faixa etária de 19 a 25 anos98.
Em princípio, pareceu-me insuficiente para responder a todas as perguntas.
Especialmente, pela percepção, após pouco tempo de campo, de que a maior parte das vendas
ocorria por telefone, não implicando em contato pessoal entre balconistas e consumidores/as.
Entretanto, o longo tempo em campo e as leituras sucessivas, concomitantes e posteriores do
98
Dados coletados com o questionário de urna, idades do/as consumidores/as da CE: 12- 18 anos: 8; 19- 25
anos: 11; 26-32 anos: 5; 33- 39 anos: 8.
187
diário de campo, ajudaram-me a perceber que o aparente reduzido número de interações não
funcionava como um limitante, nesse caso. Durante todo o período de observação, as
interações encenadas para a venda deste medicamento me pareceram claramente vinculadas a
um padrão hegemônico e homogêneo, seguido por todos aqueles que ali estavam.
Meu diário de campo inicial tinha anotações “pobres” sobre o processo de interação,
já que meu olhar estava preso somente ao diálogo, ao conteúdo discursivo do encontro entre
balconistas e consumidores/as da contracepção de emergência. Mas, as interações duravam
menos de dois minutos, da seguinte forma: o/a cliente solicitava o medicamento quase sempre
em tom muito baixo, especialmente as mulheres. Na maioria absoluta sem referência às
marcas existentes do produto, chamando-o pela forma como é conhecido no senso comum:
“pílula do dia seguinte”. Em seguida, o balconista buscava-o na prateleira e o colocava na
cesta, entregando-a ao cliente, dizendo-lhe somente o preço do anticoncepcional. Nada mais
que isso.
Além da economia de palavras, havia nesse encontro uma economia de olhares,
especialmente quando se tratava de uma consumidora, o que significa que o balconista
notavelmente evitava “encará-la” de frente, especialmente se esta também demonstrasse, de
algum modo, vergonha e/ou fosse muito jovem.
Alguns chegavam a confessar que achavam “constrangedor” fazer esse tipo venda, e
por isso preferiam não perguntar nada à cliente, pressentindo que, caso o fizessem, poderiam
“levar um fora no balcão”, já que a “cliente” poderia sentir como se eles estivessem
“invadindo sua privacidade”. Por isso, desde o início alguns procuraram me alertar sobre as
dificuldades que eu teria para conseguir “entrevistar” as mulheres consumidoras. Um dos
balconistas mais jovens, com 23 anos, certa vez me disse:
"Eu não daria entrevista, acho invasivo, a pessoa chega constrangida porque acabou de fazer
as ‘parada’, todo mundo sabe que ela ‘deu umazinha’. Pílula corrida é diferente, porque
pode ser um sinal de prevenção ou tratamento hormonal, mas não necessariamente que ela
esteja fazendo ‘aquilo’". (balconista Gilberto, 23 anos, pardo, ensino médio incompleto)
Nesse caso, o próprio balconista, colocando-se no lugar do/a consumidor/a,
reconheceu que também ficaria constrangido, trazendo à tona seu próprio olhar sobre o
processo interativo, em que é fundamental manter a discrição para evitar embaraço de ambos
os lados do balcão.
188
De acordo com Simmel (2009), a discrição nada mais é do que o senso de justiça com
respeito à esfera dos conteúdos íntimos da vida. Nas interações sociais temos que lidar com a
problemática da determinação do grau de comunicação ou de reserva que deve haver nas
relações entre pessoas menos próximas, mas não desconhecidas. Para ele, a medida da reserva
e da comunicação é dada pelo grau de distanciamento entre os indivíduos em interação. Há
ainda que considerar o conteúdo da interação, já que por razões óbvias os atos imorais,
perigosos, ilegais são reservados à esfera do que deve ser ocultado, escondido.
Simmel (2009, p. 232) afirma que “se o que é secreto não está ligado ao mal, o mal se
associa ao que é secreto”. Podemos perceber que a quase ausência de palavras, a economia de
olhares e a cena criada pela consumidora para chegar até o balcão, que se traduz em escolher
o melhor momento, o balconista mais ‘amigável’, o local mais vazio, é algo que é aceito pelos
dois personagens desta cena. De um lado, as mulheres buscavam sempre estratégias bem
parecidas para driblar o constrangimento pela compra do contraceptivo. Do outro, os
balconistas tentavam manter uma postura discreta e pouco comunicativa, especialmente
quando avistavam as mulheres mais jovens solicitando a CE. Mesmo sendo impossível
ocultar o fato do ‘ato sexual’, ocorriam negociações relacionadas à reciprocidade da discrição
no ato de compra da CE pelas mulheres, especialmente as mais jovens (SIMMEL, 2009).
Mas, o contexto pós venda, quando as mulheres se retiravam do estabelecimento, era
prenhe de comentários que se misturavam a juízos morais sobre as mulheres que haviam
comprado o medicamento. A postura discreta cedia lugar à crítica condenatória sobre as
mulheres, contando sobre aspectos de suas vidas pessoais, até mesmo sobre fármacos
específicos para doenças sexualmente transmissíveis (DST) que elas porventura tivessem
adquirido. Pelo fato da farmacêutica participar pouco desse cenário, foi possível observar que
sua presença no balcão causava modificação nas atitudes dos balconistas, que demonstravam
maior distanciamento e respeito em relação às clientes quando ela estava entre eles, mas não
se incomodavam com a minha presença.
A regra de discrição seguida no momento da interação, se transformava- com a
ausência da consumidora, levando os trabalhadores da drogaria a colocarem o ‘sexo em
discurso’, promovendo classificações entre as consumidoras e revelando aspectos de suas
vidas pessoais, que servem como provas de uma vida sexual ‘imoral’ ou ‘excessiva’.
Importante remeter à ‘injunção pluri-secular ocidental’ que modula as narrativas sobre o sexo:
o que é permitido falar, quando é permitido, diante de quem e com que intencionalidades. O
discurso sobre o sexo, tão entranhado nos mecanismos de poder e saber das nossas
189
sociedades, aparece nas narrativas destes balconistas como uma visão negativa sobre o futuro
das novas gerações, como se reinasse o ‘imperativo do prazer’, que deturpa e compromete a
vida em sociedade, os relacionamentos e as famílias (FOUCAULT, 1999, p. 24-5).
Com o tempo foi se tornando cada vez mais fácil identificar possíveis consumidores/as
da CE, em especial aquelas mais jovens. Estas, em geral, vinham acompanhadas de suas
amigas, davam uma volta por dentro da drogaria esperando o balcão ficar mais vazio e, por
fim, escolhendo o canto do balcão, onde havia menos concentração de balconistas.
As observações das vendas de outros fármacos relativos à vivência sexual, permitiume estabelecer comparações e contrapontos em relação à CE. Entre eles, a comercialização
em larga escala dos contraceptivos hormonais orais. Muitas mulheres vêm adquirir os
anticoncepcionais de rotina acompanhadas de seus filhos pequenos, alguns ainda de colo.
Algumas sozinhas, outras com seus namorados ou esposos. Suas usuárias são muito
diversificadas em termos de idade, raça e condição social, mas, em geral, pude perceber
claramente a periodicidade mensal da visita destas mulheres à drogaria. Os balconistas,
especialmente aqueles que já estão no bairro há mais tempo, algumas vezes já pegam o
fármaco, antes mesmo que a cliente o solicite.
Como ocorre com a CE, não presenciei nenhuma compra de anticoncepcionais de
rotina com receita médica. Poucas realizadas pelos parceiros, ao contrário da CE, em que
notei vários homens comprando. Além disso, em geral, os anticoncepcionais orais de rotina
são igualmente vendidos sem que ocorra diálogo entre o balconista e a cliente, seja para oferta
de outros fármacos (prática, por sinal, muito utilizada na venda de outros medicamentos), para
esclarecimento de dúvidas ou fornecimento de informações livremente para as/os clientes.
Entretanto, apesar da interação entre quem compra e vende os anticoncepcionais de
rotina também seguir um roteiro básico similar à cena criada durante a comercialização da
CE, diferem no que se refere à ausência da vergonha no ato de compra de tais
anticoncepcionais. Algumas vezes, quando o balconista demonstrava claramente possuir
vínculo com a consumidora, este chegava a lhe oferecer o anticoncepcional em sua forma
genérica, caso o hormônio fosse o mesmo, por ser mais lucrativo para ele.
Uma das estratégias mais utilizadas para driblar a vergonha sentida no ato de compra
da CE foi a sua compra pelo parceiro ou alguma amiga, enquanto a ‘real’ usuária do
contraceptivo aguardava do lado de fora da drogaria ou em casa. As vendas da ‘pílula do dia
seguinte’ para homens, ao contrário, ocorriam de forma mais ‘natural’, sem o receio e
190
discrição que marcavam o comércio da CE. Tom de voz mais audível, atitudes mais assertivas
de ambos os lados, mas estes consumidores também não costumavam apresentar
questionamentos, além do preço do produto. Nesse caso, algumas vezes eu me deparei com a
parceira ou amiga do lado de fora da drogaria, no momento em que tentava conversar sobre a
possibilidade de responderem ao questionário da investigação.
Nestes casos, a contracepção é assegurada por quem não possui responsabilidade
direta do uso do método, sendo que ele/a pode se integrar à cena, ocupando-se das tarefas e/ou
encaminhamentos necessários. Nesse caso, observa-se a convergência com outros dados de
pesquisas qualitativas sobre contracepção no Brasil, que demonstram as situações em que o
parceiro compra o contraceptivo para a mulher ou fornece o dinheiro para sua aquisição
(CABRAL, 2003).
Considerando que, nessa investigação, a maior parte das mulheres se sente
constrangida na compra da CE, especialmente as mais jovens, algumas recorriam a tais
estratégias que implicavam na divisão de responsabilidades com o parceiro, ou na parceria de
amigas/os mais velhas/os, podendo insinuar uma interlocução com os pares ou parceiro sobre
contracepção. Mas os anticoncepcionais de rotina, em geral, eram comprados pelas próprias
usuárias, sem intermediação de terceiros.
Em uma dessas situações, quando comecei a conversar com o jovem que acabava de
deixar a drogaria, ele apontou logo para sua namorada sentada em um banco próximo e
solicitou que eu o acompanhasse até ela. Lá chegando a reação dela foi: “logo hoje que eu
vim comprar vocês estão entrevistando?”. Ela já tinha necessitado do comprimido outras
vezes, todas com a intermediação do parceiro, alegou constrangimento diante dos balconistas.
Em outra situação de compra pelo parceiro, a namorada não o acompanhou, destaco
aqui pelo fato de ter percebido uma interação mais solta, em que o cliente inclusive tentou
negociar o preço da pílula. Reparei quando entrou na drogaria um jovem, de 20 e poucos
anos, loiro, olhos azuis e trajava roupas esportivas. Pela forma como entrou no
estabelecimento, percebi que ele não conhecia ninguém no local. Ele parou do meu lado no
balcão e perguntou o preço da “pílula do dia seguinte”, assim que o balconista informou, ele
começou a reclamar que estava muito caro, solicitando um possível desconto no produto.
Perguntou qual era o nome do produto, quando ouviu Poslov®, solicitou a DiaD®, mas o
balconista lhe respondeu que esta não tinha na drogaria. Ele também reclamou a ausência da
marca, afirmando que era a mais popular, sendo que para justificar sua posição, alegou que
também trabalhava em drogaria e sabia que este medicamento era “bonificado”. O balconista
191
lhe explicou que no preço já estava incluído o desconto, então ele não levou o produto e saiu
reclamando. Abordei-o do lado de fora da drogaria, e ele, por eu ter assistido a cena lá dentro,
contou-me que até poderia pagar, mas que prefere andar mais um pouquinho e pagar mais
barato pela outra marca. Perguntei porque ele não comprou tal contraceptivo na farmácia em
que trabalhava por um preço bem melhor, mas ele disse que não poderia pelo fato do sogro
ser o dono da drogaria e evangélico. Ainda puxando assunto com ele, perguntei sobre a
namorada e porque ele veio comprar sem ela, sua resposta foi: “sabe como é... elas fazem,
mas tem vergonha de admitir”.
Teve também casos de amigas mais velhas adquirirem para as mais jovens, pude tomar
conhecimento de tal prática a partir de uma conversa com uma mulher de 25 anos, a qual
adquiriu uma caixa de Poslov® sem demonstrar constrangimento algum, chegou sozinha na
drogaria, parou no meio do balcão e eu, que não estava muito próxima a ela, pude ouvir seu
pedido. Quando a abordei, ela aceitou conversar um pouco comigo, sentamos em um banco
que havia próximo da drogaria. Ela afirmou que estava adquirindo para uma amiga de sua
sobrinha e que fazia isso constantemente para várias outras “meninas”, já que elas “tinham
vergonha de comprar”.
Fallon (2010), em sua investigação com jovens, descreve o modo como as amigas
assumem papeis coadjuvantes importantes que incluíram confidentes, consultoras e
motivadoras. Em alguns casos, isso inclui acompanhar fisicamente as amigas hesitantes e
envergonhadas aos serviços de saúde sexual e/ou farmácias. Os resultados desta investigação
contrastam com a ideia aceita socialmente de adolescentes “irresponsáveis” ou “sem
vergonha” (FALLON, 2010, p. 687).
Outra estratégia para driblar a vergonha, claramente relacionada ao fato do
atendimento de balcão desta drogaria ser feito somente por homens, era a solicitação,
especialmente pelas adolescentes, para as perfumistas (funcionárias que ficavam do lado de
fora do balcão) intermediarem a compra da CE. Nesse caso, as “meninas” esperavam entre as
gôndolas, enquanto as perfumistas iam até o balcão solicitar o medicamento. Houve uma
situação que a perfumista não quis intermediar a venda, e disse para a jovem que não poderia
fazer o pedido em seu lugar. Essa jovem, que aparentava menos de 20 anos, ficou mais um
pouco por ali, olhando as gôndolas e foi embora.
Minhas breves interações com os/as consumidores/as demonstraram que, de fato, a
vergonha é um elemento fundamental a ser considerado, pois várias vezes, quando eu iniciei a
conversa com as consumidoras, os comentários iniciais delas eram: “Ai que vergonha, foram
192
os balconistas que te avisaram?”; “Ai meu Deus, essa pesquisa não vai me comprometer?”;
“Logo hoje que eu vim, você está fazendo a pesquisa”.
Nesse sentido, as cenas relacionais montadas, neste estabelecimento, em torno desse
contraceptivo trazem à tona a representação vigente entre eles de que seu uso pode
“comprometer” a moral de suas usuárias diante da sociedade. Para tornar mais clara a relação
dessa cena com a interdição da sexualidade feminina, é importante frisar que as interações
para vendas da CE para os homens, em geral, não se construíam dessa forma, e por isso
serviram nessa investigação para reforçar o constrangimento moral por parte das mulheres,
em particular as mais jovens.
Em uma delas, observei quando entrou na “loja” um senhor que deveria ter por volta
de 50 anos de idade, branco e bem vestido. Ele não fez questão de procurar um local mais no
canto do balcão para fazer seu pedido, coincidentemente parou bem próximo de onde eu
estava. Então, perguntou ao balconista em tom perfeitamente audível se tinha teste de
gravidez, este respondeu que sim e foi buscar. Antes que ele pudesse pegar o teste, solicitou
que o funcionário lhe trouxesse também “aquele remédio que toma para antecipar aborto
espontâneo”. O balconista lhe disse que este não era vendido (pressupondo que se tratava do
Citotec®), mas que tinha a “pílula do dia seguinte”. Então, o senhor lhe respondeu “é esse
mesmo que eu quero”, pegou os dois produtos e se dirigiu ao caixa. Depois que ele saiu, o
balconista ficou me olhando como se quisesse uma resposta para aquela situação. Mas, eu
também fiz sinal que não havia compreendido.
Essa venda gerou muitas pressuposições sobre o que teria ocorrido, havendo a ideia de
que talvez ele estivesse se relacionando com uma mulher bem mais jovem, que teve vergonha
de ir à drogaria comprar a CE. Para mim, também foi uma surpresa tal interação,
primeiramente pela idade do cliente, já que foi a única venda que presenciei para alguém
desta faixa etária, por isso quando ele entrou, não desconfiei o motivo de sua visita à drogaria.
Também pela relação direta e explícita feita por ele entre a contracepção de emergência e os
medicamentos abortivos, o que é inusitado não pela relação, mas pela total falta de
constrangimento do cliente em solicitar um fármaco com tais propriedades, já que este tema
continua sendo um tabu.
Esse cliente claramente não pertencia àquele local, provavelmente estava ali de
passagem, já que nenhum funcionário o conhecia. Pelo fato dele ter saído do estabelecimento
falando ao celular, não tive oportunidade de estabelecer contato com o mesmo. Mas, é
fundamental considerar que seu comportamento espontâneo, informal e pouco afinado às
193
etiquetas morais daquele contexto, de certa forma, incomodou os “rapazes” do balcão, que
fizeram comentários jocosos: “velhinho assanhado e além de tudo sem juízo”; “com essa
idade pegando as menininhas, deveria ter vergonha”.
Nesse sentido, a vergonha prevalece como um aspecto fundamental no processo de
interação para a comercialização da “pílula do dia seguinte”, sendo que quando a cliente é
adolescente ou, nesse caso, um cliente mais velho do que a maioria dos consumidores deste
medicamento que não demonstram vergonha, opera-se um julgamento moral maior ainda,
reforçando a “cultura da culpa”, da imoralidade. Isso significa que a vergonha implica em
admissão da norma e do controle sobre a sexualidade (feminina ou masculina, se for o caso),
ou seja, aquelas que não sentem vergonha, estão colocando em questionamento tal ordem
social (FALLON, 2010, p. 678).
Ressalta-se que em contextos e países diversos, foi possível verificar a mesma
associação entre o uso da CE e o sentimento de vergonha e constrangimento por utilizar o
método, em pesquisas com usuárias e provedores deste contraceptivo. Pesquisas que
entrevistaram usuárias observam que o sentimento de vergonha é recorrente no discurso das
mulheres, constituindo como barreira ao uso do método, pois há receio de serem
estigmatizadas e julgadas (SHOVELLER et al., 2007; WILLIAMSON et al., 2009;
MOHORIC-STATE & COSTA, 2009; PECHENY, TAMBURRINO, 2009; FALLON, 2010).
De acordo com tais estudos, o grau de vergonha e culpa, principalmente das jovens
adolescentes, é ampliado quando o provedor médico ou farmacêutico conhece o consumidor.
Neste estabelecimento, este é um aspecto importante, já que se configura como uma drogaria
“de bairro”, em que os balconistas e demais funcionários estabelecem uma relação mais
próxima com os/as clientes, muitas vezes conhecendo toda a família dos/as mesmos/as.
Rezende e Coelho (2010, p. 106), citando a obra de Elias (1994), comentam sobre o
papel do equilíbrio emocional no processo civilizatório ocidental, que se transformou em um
ideal a ser atingido e mantido. A contenção emotiva e a necessidade de ajustar a conduta em
função dos outros e de suas possíveis consequências produz uma forma cada vez mais
racionalizada de agir. Nela, a dimensão de planejamento e cálculo se destaca não apenas no
modo como o sujeito se comporta, mas também na maneira como ele lida com a conduta dos
outros. Para este autor, a reflexão contínua, a capacidade de prever e calcular, a regulação
precisa de sua própria conduta, bem como o conhecimento de todo o contexto de ação
tornam-se condições indispensáveis de sucesso na vida social.
194
O controle sobre os outros tem seu lugar também internamente. Nesse sentido, pode-se
pensar que os sentimentos do medo e da vergonha tornam-se meios de incutir a
autorregulação. De um modo geral, essa emoção remete a uma preocupação com a
transgressão de normas que pode levar a uma degradação social diante dos outros (SIMMEL,
2009).
Para Elias (1994), o sentimento de vergonha está estreitamente articulado à estrutura
social. Assim, se no século XVI a vergonha da exposição do corpo surgia apenas na
companhia de algumas pessoas de posição social igual ou superior, as funções naturais do
corpo vieram a ser no século XX objeto de controle constante diante de todos e de vergonha a
ponto de não se falar sobre o assunto. Se antes a fonte da repressão era externa – pessoas e
manuais de etiqueta-, agora é interna. Essa divisão da personalidade em uma parte
controladora e outra impulsiva produz uma tensão interna e é dela que surge a vergonha, que
se reporta menos à opinião social concreta do que à sua internalização. É a possibilidade da
crítica ou repreensão, e não seu acontecimento de fato, que aciona a vergonha.
David Le Breton (2009) reitera a necessidade de enfatizar o caráter sociocultural da
expressão das emoções – e, tal como Simmel, seus aspectos formativos de relações de
“sociação”. Se por um lado, como afirma o autor, os sentimentos e emoções não são estados
absolutos, substâncias que se pode transpor de um indivíduo ou grupo ao outro, tampouco são
processos fisiológicos cujos segredos encontram-se no corpo. Elas correspondem a relações. E
essas relações expressam-se de modos distintos em cada cultura e sociedade. Assim, “o
registro afetivo de uma sociedade deve necessariamente ser compreendido no contexto de
suas condições reais de expressão” (LE BRETON, 2009, p. 10). A expressão dos sentimentos
é tributária de uma combinação de aspectos psicológicos e fisiológicos e de convenções e
expressões socioculturais.
Dessa forma, “a emoção experimentada traduz a significação conferida pelo individuo
às circunstâncias que nele ressoam” (LE BRETON, 2009, p. 12). Os sentimentos fazem parte
de um sistema valorativo próprio a um grupo social, e as expressões sociais combinadas às
individuais projetam um mosaico infinito de possibilidades na manifestação das emoções.
Nesta drogaria, as cenas que circunscreviam a comercialização da CE quase sempre
eram marcadas por desvio de olhares de ambos os lados, tom de voz muito baixo,
característica de uma situação social em que impera a discrição. Ao mesmo tempo, sua venda
gerava uma proliferação discursiva posterior, que envolve, em geral, juízos de valor sobre as
consumidoras e seus comportamentos sexuais. Destaca-se que no caso da ausência de
195
vergonha, as consumidoras eram julgadas com mais severidade, negando-lhes o direito à
autonomia na determinação de sua vida contraceptiva.
196
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta tese teve por objetivo conhecer, através da investigação etnográfica, a interação
social que ocorre durante o processo de comercialização da contracepção de emergência em
drogaria, entre quem compra e quem vende tal método anticoncepcional. Busquei ainda
compreender o posicionamento dos farmacêuticos/as e balconistas no tocante à CE e suas
percepções sobre as consumidoras da ‘pílula do dia seguinte’.
O fato de não haver pesquisas etnográficas considerando este cenário no Brasil,
possibilitou que meu olhar sobre o campo e as próprias estratégias metodológicas utilizadas
fossem construídas no desenrolar da investigação, baseando-me em uma reflexividade
constante. Essa característica permitiu uma maior exploração da criatividade da pesquisadora
e a construção de um processo de aproximação com o universo investigado pouco
convencional. Ressalto que apesar de ter encontrado estudos, no âmbito internacional, que
exploram o contexto das farmácias para pensar sobre o acesso à contracepção de emergência,
não encontrei nenhuma investigação etnográfica99.
Meu objetivo foi captar as práticas cotidianas, as trocas de olhares, as expressões
corporais, as histórias sobre as experiências vividas no comércio farmacêutico e, mais
especificamente, na venda da CE. Estava também interessada nas características das/dos
consumidoras/os, em seus modos de apresentação no balcão da drogaria, as perguntas mais
frequentes, o teor do diálogo estabelecido com os vendedores destes contraceptivos, em busca
da lógica subjacente à relação social estabelecida no balcão da drogaria, entre funcionários/as
e consumidores/as da CE.
Entretanto, como visto, minhas “aventuras antropológicas” foram além dos objetivos
definidos, na medida em que segui “atalhos etnográficos” férteis (FLEISCHER, 2012), que
me levaram a questões que extrapolam o próprio objeto, mas que de algum modo o
atravessam. Na construção do campo vivi o desafio de penetrar em um universo
eminentemente masculino, em uma drogaria localizada na zona da Leopoldina, zona norte do
Rio de Janeiro. Lá ‘dentro’ foi mais viável, até mesmo por minhas escolhas em campo, a
construção de vínculo com os/as funcionários/as deste estabelecimento, especialmente os
balconistas, do que propriamente com as mulheres usuárias da CE.
Pouco a pouco, pude vivenciar a representação das identidades de gênero de seus
personagens, especialmente os balconistas, através dos relatos sobre suas vivências sexuais e
99
Há estudos etnográficos em farmácias públicas, mas não encontrei em drogarias privadas.
197
afetivas, bem como através da observação de suas práticas. Fui tecendo minha rede de
conversas e afinidades, e simultaneamente envolvendo-me em um mundo organizado
hierarquicamente, segundo preceitos de gênero, classe social, cor/etnia, posição ocupada no
espaço da cidade, capital cultural e educacional etc.
A forma como nosso relacionamento foi estabelecido possibilitou que meu lugar de
mulher na sociedade e principalmente no campo, apesar de conflituoso em relação ao modelo
tradicional por eles valorizado, não entrasse em confronto direto com o lugar ocupado por
estes homens na sociedade. Apesar do incômodo pela concretude desta atmosfera ‘machista’,
que até então estava distante do meu ‘mundo’, foi perceptível a postura de acolhimento com a
pesquisadora, mais do que com a pesquisa.
Além disso, por minha identificação com as discussões provenientes do campo da
saúde coletiva, que problematizam o papel dos estabelecimentos farmacêuticos nos sistemas
de saúde, senti certo incômodo pela clareza e força da corrida pelas vendas, visando à
ampliação constante do lucro. O dia transcorria com convencimentos dos/as clientes para
adquirirem um medicamento para aumentar a “disposição”, como um complexo vitamínico
qualquer, da marca ‘bonificada’ para eles. Certa vez, um deles, ao se despedir de uma cliente
idosa e muito fiel a ele, pois só aceitava comprar com este balconista, disse-lhe: “tudo que a
senhora sentir fala comigo, eu tenho a solução. Mas não toma nada sem me consultar.
Cuidado!”.
Senti de forma muito presente uma das facetas do processo denominado de
“farmaceuticalização da sociedade” (WILLIAMS, MARTIN, GABE, 2011). Mas, não poderia
dar conta de tudo nesta tese. Afinal, como dizem, “uma tese é a arte de se deixar de fora”.
Por isso, as observações sobre as drogarias e sobre a ambiguidade de sua posição na rede
complexa que compõe o sistema de saúde servem aqui como ilustração das características
mais marcantes do ambiente investigado, que é o mais buscado pelas usuárias da
contracepção de emergência hoje no Brasil. E também podem servir de inspiração para
futuras investigações que tomem este contexto como objeto para estudos etnográficos.
A contracepção de emergência aparece nessa drogaria envolvida em mistérios,
especialmente quanto aos efeitos dos hormônios no organismo feminino, quanto à sua
eficácia, quanto ao seu possível caráter abortivo, tornando-se matéria de muitas discussões
durante minha permanência por lá. Saindo do particular para o geral, podemos pensar que a
atmosfera misteriosa que envolve este contraceptivo se reproduz nesta drogaria, a partir do
próprio contexto de indefinição social global que cerca este contraceptivo. Como vimos, a
198
mídia, os cientistas, os profissionais de saúde, movimentos sociais, entre outras organizações
nacionais e internacionais não estão em acordo sobre os efeitos deste hormônio nos
organismos femininos.
A partir das discussões mais amplas a respeito do processo de difusão da contracepção
de emergência no mundo e no Brasil, podemos retomar sua origem, marcada por
controvérsias e interditos morais e religiosos, pois ela pode ser entendida como mais do que
um contraceptivo e menos do que um abortivo: “betwixt and between” [nem uma coisa nem
outra] (WYNN, FOSTER, 2012, p. 8).
Westley e Schwarz (2012, p. 429), ambas pesquisadoras ligadas ao ICEC salientam
que, apesar da expansão do uso da CE, as preocupações ainda se mantêm, com foco em três
questões: os mecanismos de ação da contracepção de emergência, o impacto no
comportamento e sua segurança (eficácia). De acordo com a perspectiva das autoras, apesar
das evidências refutarem tais ‘especulações’, os setores contrários ao acesso a este
contraceptivo parecem não aceitar tais ‘evidências científicas’, gerando inúmeras
controvérsias sociais. Segundo elas, o que deveria ser colocado em discussão é o fato de
muitas mulheres ao redor do mundo ainda terem acesso restrito à CE, apesar “da continuidade
da epidemia global de gravidez indesejada e aborto inseguro” (grifo nosso).
Na drogaria pesquisada, foi possível perceber que apesar das indefinições a respeito
deste método anticoncepcional, suas percepções pessoais não poderiam interferir nas vendas.
No ramo comercial que eles estão envolvidos a tônica principal é “atingir as metas de
vendas”. Nesse caso, a ‘pílula do dia seguinte’ não passava de mais um produto disponível na
prateleira, que eles venderiam a despeito de suas ‘éticas pessoais’. O lucro de 20% por cada
caixa vendida é o aspecto mais positivo da CE, considerado pelos informantes.
Outro ponto positivo da CE, destacado por estes/as trabalhadores/as do ramo
farmacêutico é que este método pode ajudar no “controle de natalidade”, especialmente nas
regiões periféricas, mais pobres. Daí a representação de que a CE está mais difundida nas
“comunidades”, onde se vende CE “igual água”. Podemos perceber em suas narrativas a
penetração da noção de que a CE é uma panaceia para resolver a “doença” da gravidez
imprevista, adolescente e abortos inseguros.
Buscando relativizar essas controvérsias sociais, podemos comparar a CE com a pílula
hormonal combinada de uso contínuo, ambas surgiram como panaceias para resoluções dos
199
“problemas causados pelas gestações não planejadas e abortos”: hormônios sintéticos
fabricados para o comércio mundial. Os dois métodos causaram medo e dúvidas.
Observa-se que logo após o lançamento da pílula hormonal de uso contínuo, a
discussão girou em torno das dificuldades de manutenção da eficácia do medicamento, que só
pode ser mantida caso a mulher o tome corretamente. Naquele momento, os médicos e
pesquisadores acreditavam que este método seria melhor utilizado por mulheres escolarizadas,
de classe média, indicando o DIU para as mulheres com baixo “nível de instrução”,
moradoras de regiões pobres. Depois, foram buscar outro método, o qual deveria agir como
Plan B, caso as alternativas de prevenção tivessem falhado ou não tivessem utilizado
nenhuma forma de proteção. Nota-se que, desde muito tempo, buscamos ‘eficácia’ no
controle de nascimentos, esta parece ser uma das palavras-chave para pensarmos sobre a
‘biografia’ não só da CE, mas de muitos outros métodos anticoncepcionais, principalmente a
partir da ‘invenção’ da pílula hormonal. Sem esquecer os objetivos políticos sempre
envolvidos no lançamento de um método ou outro que envolva controle populacional.
Meus informantes destacaram diferenças entre os anticoncepcionais de uso de rotina e
de emergência, especialmente em termos de suas eficácias. Enquanto a pílula de uso contínuo
possuía crédito por ser muito eficaz, eles duvidavam da eficácia da CE, o que explicavam pela
própria observação de uso do contraceptivo seguido de gravidez, às vezes vividas por eles
mesmos, outras vezes pelos clientes. Outra diferença que pode ser destacada refere-se à forma
como classificavam as usuárias dos dois métodos hormonais. O método de uso de rotina era
muito mais vendido e não gerava constrangimento nem para o balconista, nem para a
consumidora. As usuárias da pílula hormonal de rotina, em seus imaginários, eram aquelas
mais velhas, em relacionamento estável, ou meninas mais jovens, que “precisam fazer
controle hormonal”. A CE denuncia o sexo ocasional desprotegido ocorrido há poucas horas,
logo se pensa em “risco” e “irresponsabilidade”.
O fato é que, a despeito das dúvidas e receios quanto aos possíveis efeitos nos
organismos das mulheres, podemos observar a crescente popularização e incorporação tanto
da pílula hormonal combinada quanto da CE no rol de métodos utilizados para prevenção de
gravidez. Não se trata, no caso do Brasil, de uma estratégia claramente montada pelo Estado
para reduzir as gestações, como em outros países, apesar da presença de ambos no rol de
medicamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde.
A pílula hormonal combinada de uso contínuo foi introduzida e incorporada
rapidamente no país, via organismos internacionais. A CE, apesar de ter sido incorporada
200
legalmente nos serviços de atendimento às mulheres vítimas de estupro e de estar hoje
disponível nas redes de atenção primária e nos serviços especializados de atendimento à
mulher, podendo ser dispensada por enfermeiros, teve sua difusão ligada à permissão de sua
venda no comércio farmacêutico. Os dois métodos hormonais são adquiridos por suas
usuárias eminentemente através das drogarias.
Nesta drogaria da zona norte do Rio de Janeiro, as dúvidas a respeito deste
contraceptivo se associam ao presumido “perigo” que esta pílula representa em termos
biológicos e sociais, já que é classificada como uma “bomba hormonal”, que pode causar
danos ao corpo feminino e à saúde das mulheres, mais especificamente em seu aparelho
reprodutor e outros sistemas. Certamente, este olhar não pode ser desatrelado do processo de
regulação dos corpos femininos, que nos remete ao campo da moralidade. Também é
importante observar a relação destas narrativas com o contexto mais amplo, já que é acionada
simultaneamente por setores diversos ligados à Igreja, por profissionais de saúde, em sites na
internet, apresentando-se como uma representação englobante sobre a CE.
No campo, a noção de “perigo” foi ainda acionada por meus informantes por conta da
associação da ‘pílula do dia seguinte’ com vivências sexuais “promíscuas”, servindo para
ampliar o prazer, para tornar o sexo mais ‘livre’. Significa que sua utilização interfere nos
mecanismos de controle social sobre a vivência sexual e contraceptiva feminina,
especialmente das moças mais jovens, “moças de comunidade”, concebidas como aquelas
que estão mais propensas a uma sexualidade “descontrolada” ou “exacerbada”.
Por ser um contraceptivo que ocupa uma posição ambígua e, consequentemente
perigosa, meus informantes classificam suas usuárias pela forma como presumem que elas a
utilizam, e delimitam as regiões geográficas e ‘morais’ em que as vendas desse contraceptivo
alcançam maior sucesso. Quando comentam sobre as preocupações quanto ao uso
indiscriminado da CE, suas impressões se confundem com julgamentos morais sobre o que
compreendem como “iniciação sexual precoce das moças”, relacionando ao posicionamento
social e geográfico das jovens no território da cidade.
Naquele contexto, a disseminação do uso da contracepção de emergência parece ter
fortalecido certo tipo de “pânico moral” existente em torno das modificações nos padrões dos
relacionamentos afetivo-sexuais, especialmente dos/as jovens (HEILBORN, BRANDÃO e
CABRAL, 2007; SCHALET, 2004). A marca social deste medicamento parece justificar a
vergonha sentida pelas mulheres que dele necessitam, sendo que aquelas que não sentem
vergonha tem sua honra colocada em xeque, pelo confronto com as regras tradicionais de
201
gênero e sexualidade que regem as representações destes trabalhadores do ramo farmacêutico.
Além disso, parece que a tensão entre autonomia e controle da sexualidade feminina se
resolve, na drogaria em questão, a partir do cálculo sobre o grau de competência das mulheres
para assumirem a gestão de suas vidas sexuais e reprodutivas, o qual está ligado diretamente à
questão etária e ao pertencimento social.
O silêncio e a vergonha, de ambos os lados, no momento da comercialização da
contracepção de emergência, a compra pelo parceiro ou por amigas/os, acompanhados das
classificações socioespaciais e morais que recaem sobre as consumidoras da pílula do
seguinte, e as indefinições que marcam a identidade da CE, estão concatenados e alinhavados
dentro de uma lógica tradicional, que é característica deste contexto social no Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo, ao cotejarmos com os resultados das investigações realizadas no contexto
nacional e internacional, notamos que a associação da CE ao ‘perigo’ e a aura de mistério que
a envolve são noções hegemônicas no contexto global, as quais identificam esse contraceptivo
no rol dos métodos anticoncepcionais disponíveis.
A discrição que marca o momento da venda pode auxiliar as mulheres que sentem
maior constrangimento, além do que as vendas podem ser feitas por telefone e envolver
somente a relação com o entregador, que muitas vezes não sabe qual medicamento está
entregando. Por outro lado, não se pode negar o fato das drogarias terem se transformado, no
Brasil, em um ambiente eminentemente comercial, o que as distanciou das funções
concernentes à saúde coletiva/pública. Esse é um fator relevante, caso se pondere a inclusão
do farmacêutico entre os profissionais aptos a prescrever a CE, além dos enfermeiros
(BRASIL, 2012).
Por outro lado, e contraditoriamente, a CE parece um bom exemplo do processo mais
amplo que concebemos como ‘medicalização da sociedade’, nesse caso da sexualidade,
entendido como projeto de controle sobre os corpos, em especial os femininos. Este projeto é
cotidianamente refeito e amplificado, com o aumento dos tentáculos da indústria farmacêutica
e, simultaneamente, com a redução do poder prescritivo médico. Esse aspecto deve ser
considerado, já que a defesa da ampliação do acesso à CE para as mulheres que dela
necessitam parece passar hoje pela defesa da ampliação do acesso através das drogarias via
OTC. Ou seja, ao mesmo tempo em que a ‘pílula do dia seguinte’ está envolvida no processo
que pode ser denominado de “farmaceuticalização da sociedade”, alimenta simultaneamente,
com objetivos diversos, a perspectiva de ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos.
202
Ilustrativamente, podemos citar a reunião anual do ICEC, ocorrida em 2011, em Nova
York, a qual contou com mais de 100 participantes, entre ativistas dos direitos sexuais e
reprodutivos, investigadores, representantes da indústria farmacêutica, profissionais
farmacêuticos, médicos e sanitaristas, visando discutir o estágio atual de incorporação do
método de contracepção de emergência no mundo (PUIG, 2011, p. 12).
Na opinião de Puig (2011), as reuniões do ICEC são especialmente interessantes na
medida em que congrega forças sociais diversas, com opiniões e interesses divergentes, em
um mesmo local, visando alcançar o objetivo comum: promover a expansão do uso da CE no
mundo, especialmente nos países em desenvolvimento e pobres. Um dos temas centrais nesta
reunião anual do ICEC em 2011 foi a promoção e informação sobre o novo produto de CE
lançado pela indústria farmacêutica, em alguns países do mundo, feito a base de acetato de
ulipristral (EllaOne®). Além disso, nessa reunião se discutiu a “peculiar situação” da América
Latina e Caribe.
Puig (2011) observa que essa região é considerada uma das mais desiguais do mundo,
com altas taxas de violência sexual contra as mulheres, o que torna ainda mais crítica a
necessidade da disponibilidade da CE. Além disso, durante a reunião registrou-se o
crescimento das gestações adolescentes, no mesmo momento em que se assistia a uma
progressiva redução da taxa de fecundidade da população nessa região. De modo geral, foram
destacadas as fortes desigualdades que marcam os países latino-americanos, onde se encontra
desde países como México e Brasil, nos quais a CE é dispensada pela rede pública e pelas
drogarias privadas, até Honduras, onde a Secretaria de Saúde proibiu o uso, a promoção e
venda de qualquer tipo de CE, incluindo o método Yuzpe. Uma região com países como o
Peru, que tem mais de 16 produtos registrados e uma feroz competição de preços, ou como a
Costa Rica no extremo oposto, sem nenhum produto no mercado.
Dois aspectos chamam atenção neste informativo de Puig (2011), membro do
Consórcio Latino-americano de Anticoncepção de Emergência (CLAE). Primeiramente, a
ênfase dada ao lançamento do novo produto da indústria farmacêutica, feito à base de acetato
de ulipristral, demonstrando mais uma vez a força da aliança do ICEC com a indústria
farmacêutica. Por outro lado, a força do argumento ‘neomalthusiano’, o que leva a autora a
destacar de forma genérica, ou seja, sem dados específicos, a desigualdade social e a
amplitude da violência sexual e da gravidez adolescente nestes países.
Reforça-se a importância de uma discussão mais ampliada no Brasil sobre as
possibilidades e contextos para disponibilização da CE, ressaltando a necessidade de
203
mantermos como ponto de chegada a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres, oferecendo-lhes melhores oportunidades de controle reprodutivo/contraceptivo
autônomo. Torna-se necessária a ampliação do debate nacional sobre a garantia de acesso e o
uso racional da CE, incluindo os farmacêuticos e funcionários de drogarias nesse debate. O
exemplo das políticas de saúde, adotadas em outros países, pode nos ajudar a enfrentar as
dificuldades do contexto brasileiro, observando-se as diferentes características dos sistemas de
saúde e cotejando com os aspectos relativos às especificidades culturais de cada contexto
investigado. Através do exemplo da CE, nós chegamos aos valores de nossas sociedades,
aqueles relativos à sexualidade, ao corpo e ao gênero.
204
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219
ANEXOS
1- Dados sobre conhecimento e uso frequente da contracepção de emergência – África, Ásia e
América Latina, publicados pelo ICEC, com base em surveys demográficos e de saúde.
220
221
ANEXO 2- Roteiro de Entrevista com farmacêutica e balconistas
Projeto de pesquisa: “A contracepção de emergência no contexto das drogarias: estudo
etnográfico em duas drogarias do Rio de Janeiro/RJ”
Pesquisador responsável: Sabrina Pereira Paiva
Data:
1) Dados sociodemográficos:
1.1) Idade:
Bairro onde mora:
1.2) Sexo: ( ) feminino ( ) masculino
1.3) Escolaridade: ( ) fundamental; ( ) médio; ( ) superior; ( )pós-graduação.
1.4) Há quanto tempo você trabalha neste ramo?
1.5) Gosta do que faz?
1.6) E neste estabelecimento comercial quanto tempo trabalha?
1.7) Você já exerceu alguma outra ocupação? Se sim, qual(is)?
1.8) Renda individual mensal:
1.9) Você frequenta alguma religião? ( ) sim ( ) não
Se respondeu sim, qual? ( ) católica; ( ) protestante, pentecostal; ( ) outras.
1.10) Raça/etnia: ( ) branca; ( )negra; ( ) parda; ( )amarela (origem asiática); ( ) indígena.
2) Atitudes e conhecimentos sobre a “pílula do dia seguinte”:
2.1) Você já recebeu ou já teve acesso a informações sobre a “pílula do dia seguinte”? De que
forma?
2.2) Conte-me um pouco sobre as características principais da “pílula do dia seguinte”
conhecidas por você (p. ex. quanto ao modo de funcionamento no organismo, efeitos
colaterais, indicações e contra-indicações de uso etc.).
2.3) Qual a sua opinião sobre a “pílula do dia seguinte”?
2.4) Como você percebe a utilização da “pílula do dia seguinte” pela população?
2.5) Quais são os benefícios e malefícios que você vê no que se refere ao uso desse
medicamento?
222
2.6) Você já indicou esse medicamento para algum cliente da drogaria? Se sim, conte-me em
que condições você o fez.
2.7) Caso seja necessário, você poderia oferecer informações aos clientes sobre a “pílula do
dia seguinte”?
2.8) Quais informações você considera mais importantes de serem fornecidas aos
consumidores de tal método?
2.9) Já houve alguma situação em que o consumidor o indagou sobre alguma questão relativa
à “pílula do dia seguinte”? Conte-me sobre esta(s) situação(ões).
2.10) Fale-me sobre as características principais do consumidor da pílula do dia seguinte, em
termos de idade, sexo, relação com o balconista/farmacêutico.
2.11) Qual a sua opinião sobre a venda da pílula do dia seguinte via drogarias com ou sem
prescrição medica?
2.12) Se o usuário não tiver meios financeiros de adquirir a pílula do dia seguinte pela
drogaria, há outra forma de se adquirir o método? Caso o entrevistado conheça: como obteve
essa informação?
2.13) Você é favorável à utilização da ‘pílula do dia seguinte’? Comente os fatores positivos
e/ou negativos que você percebe quanto à utilização desse medicamento pela população.
Por favor, preencha o quadro abaixo:
Afirmações sobre a pílula do dia seguinte:
Opinião
A pílula do dia seguinte...
SIM
Atua antes da relação
sexual
Atua depois da relação
sexual
Impede a fecundação
(união do óvulo com
espermatozóide)
Impede a nidação do óvulo
fecundado
É a última barreira frente a
uma
relação
sexual
desprotegida ou quando
falha o contraceptivo
Pode
produzir
malformações se utilizado
NÃO
NÃO
SEI
223
quando a mulher já está
grávida
Vende-se com receita
médica
Pode-se
conseguir
facilmente nas drogarias
Pode-se
conseguir
facilmente nos hospitais
ou centros de saúde
Serve como medicamento
abortivo
É algo que poucas pessoas
usam
Fonte: PECHENY M.; TAMBURRINO M.C. ¿“La palabra lo dice”? Interpretaciones cruzadas y obstáculos al
acceso a la anticoncepción de emergência. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n.1, p.158176, 2009.
224
ANEXO 3 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Dados de identificação:
Título do Projeto: “A contracepção de emergência no contexto das drogarias: estudo
etnográfico em duas drogarias do Rio de Janeiro/RJ”
Pesquisador Responsável: Sabrina Pereira Paiva, doutoranda.
Orientação: Profa. Dra. Elaine Reis Brandão
Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva/Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva
Telefone do pesquisador responsável: (32) 3231-4312 - (32) 88575969
Comitê de Ética em Pesquisa/IESC/UFRJ: Praça Jorge Machado Moreira, Cidade
Universitária – Ilha do Fundão/Rio de Janeiro – RJ Tels: (21) 2598-9293 - www.iesc.ufrj.br;
[email protected]
O/a Sr(a) está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa que tem como objetivo
conhecer os consumidores da pílula do dia seguinte que recorrem às drogarias, bem como a
interação que se estabelece entre consumidor e farmacêutico e/ou balconista no ato da compra
do medicamento. Esta pesquisa está sob minha responsabilidade, sou a pesquisadora Sabrina
Pereira Paiva. Queremos conhecer melhor as usuárias e as situações que levam ao uso desta
pílula. Além disso, será importante ouvir a opinião dos farmacêuticos e balconistas sobre a
pílula do dia seguinte. Espera-se que este trabalho possa contribuir para o debate deste método
contraceptivo entre os profissionais de saúde, principalmente entre farmacêuticos, tendo em
vista serem as drogarias muito procuradas pela população.
Sua participação nesta pesquisa consistirá na permissão para a observação do seu
cotidiano profissional, respeitando-se os parâmetros éticos. Além disso, convidamos-lhe a
conceder entrevista(s), onde o(a) senhor(a) relatará informações sobre a venda da pílula do dia
225
seguinte, sobre seu conhecimento a respeito dos mecanismos de funcionamento deste método,
vantagens e desvantagens do método, entre outros aspectos relacionados ao medicamento.
Você não está obrigado a responder todas as perguntas, pode desistir de participar a qualquer
momento da entrevista, sem prejuízo para sua relação com a pesquisadora e com a drogaria.
Ressaltamos que sua privacidade será respeitada, tanto quanto o sigilo, anonimato e
confidencialidade quanto à sua identidade estão garantidos.
Esta pesquisa não traz benefício direto para o pesquisador ou o entrevistado. As
informações obtidas através dessa pesquisa serão confidenciais. Os dados não serão
divulgados de forma a possibilitar sua identificação ou da drogaria onde tal pesquisa está
sendo realizada. Além disso, sua participação não oferece riscos, já que não serão realizados
procedimentos invasivos.
Caso você aceite participar, receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o
endereço institucional do pesquisador principal e do CEP, podendo tirar suas dúvidas sobre o
projeto e sua participação, agora ou a qualquer momento.
Eu, __________________________________________, declaro ter sido informado e
concordo em participar, como voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito.
Rio de Janeiro, _____ de ____________ de _______
_________________________________
Nome e assinatura do entrevistado

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