PDF - Eurozine

Transcrição

PDF - Eurozine
Michael Billington, Jorge Silva Melo
Uma voz pertinente e única
Entrevista a Michael Billington
Michael Billington é o critico de teatro do jornal The Guardian desde Outubro
de 1971. E num sábado de Junho de 2008, ele veio ter ao pequeno hotel de
Gower Street onde eu estava. Era um dia bonito em que o clube de jardinagem
de Bloomsbury permitia uma visita a todos os jardins do bairro. E eram
centenas de senhoras e senhores de uma Inglaterra que julgaríamos extinta que,
à nossa volta, discutiam rosas e hortênsias.
Era o fim de uma manhã, e ficámos sentados no jardim.
À tarde, Michael Billington iria para um jogo de cricket.
Para mim, ele é o critico de teatro por definição: atento, escrevendo com
argúcia, conhecedor, mais do que entusiasta, amador da coisa amada. Leio−o
desde sempre, é o meu conselheiro, o meu interlocutor desde 1969, desde que
começou...
Há quarenta anos.
Michael Billington: Comecei a escrever sobre teatro no Times. Depois, em 71,
fui para o The Guardian, onde substitui Philip Hope−Wallace que lá estava
desde os anos 40. E ele era muito admirado e por isso penso que nos primeiros
anos as pessoas ressentiam o eu não ser o Philip Hope−Wallace... Era o novato
e não sabiam quem eu era, quais as minhas crenças... Demora o seu tempo a
definir a nossa identidade.
Jorge Silva Melo: Eu lia−o no The Guardian uma vez por semana. Agora com
a net, acompanho−o diariamente...
MB: A net mudou o jogo, porque− e há quem se esqueça −− escreve−se uma
crítica numa terça−feira à noite em Londres e na quarta−feira de manhã já está
acessível em qualquer parte do mundo. Às vezes custa−me a acreditar. Agora
recebem−se respostas a críticas de toda a parte.
JSM: Quando venho a Londres, vejo sempre o que disse sobre os
espectáculos, continua a ser o meu guia... Nestes dois dias, estou cheio de
pena, pois não poderei ver o Rosmersholm de Ibsen dirigido pelo Anthony
Page no Almeida Theatre... e vejo que você gostou tanto...
MB: É uma produção muito boa, porque se afasta do lado negro e sombrio,
literalmente, que essa peça parece sempre trazer, e coloca−a numa vaga luz
reluzente. E a Rebecca é interpretada como uma loira surpreendentemente
An article from www.eurozine.com
1/15
atraente, e apaga todo aquele ar de castigo e miséria predestinada, como se eles
soubessem desde o início de que se vão matar no final. E nesta produção eles
chegam a essa conclusão calmamente. Penso que é a primeira vez que consegui
entender a peça. Sempre achei uma peça impenetrável. Mas há muitas outras
coisas para ver. O National, como sabe, tem toda uma variedade... vai estrear
para a semana uma nova peça de Michael Frayn, Afterlife, estou cheio de
curiosidade... E há uma peça muito boa, The Pitmen Painters. Talvez seja uma
peça demasiado inglesa para traduzir. É sobre um grupo de mineiros , nos anos
30, que frequentam um curso de pintura. E o professor diz−lhes: "Não faz
nenhum sentido ensinar−vos coisas sobre Rafael e todos esses artistas...". E
eles decidem pintar o seu mundo de exploração de carvão... E tornam−se muito
bons pintores, são muito aclamados, conseguem exposições em Londres.... É
uma peça sobre o talento que se esconde no interior de cada pessoa, qualquer
que seja o seu nível na sociedade. É de Lee Hall, que escreveu o musical Billy
Elliot.
Kenneth Tynan, uma sombra que ainda paira
JSM: Quando começou a fazer critica, o grande Kenneth Tynan escrevia ainda
no Observer...
MB: O Tynan, sim. Haverá sempre o Tynan. É uma espécie de sombra que
ainda paira.
JSM: Um escritor fantástico.
MB: Ele foi uma inspiração para todos nós. Ele ajudou−me pessoalmente de
várias formas. Mas ao mesmo tempo, estava−se sempre a trabalhar, tal como
eu digo, debaixo da sua sombra, e todos nós ainda o citamos. Ele ainda é tido
em conta como autoridade. Eu penso que ele era o crítico ideal. Fez com que a
crítica parecesse uma profissão glamorosa, sensual e excitante. Ele escrevia
soberbamente. E mesmo quando as suas opiniões estavam erradas −− o que
quer que isso signifique −− estavam tão bem expressas que não fazia
importância. Quer dizer, os seus gostos eram às vezes bizarros, e se olhar para
os seus trabalhos, verá que ele esquecia−se muitas vezes de muitos
dramaturgos importantes. O Pinter é o exemplo mais conhecido; ele não
compreendeu o Pinter logo à primeira. O Harold Hobson compreendeu assim
que viu Feliz Aniversário. Mas não tem importância, porque a escrita de Tynan
era tão subtil e, fluente... Era maravilhoso lê−lo. E era por isso que ele era um
óptimo crítico.
Tynan é um desses críticos que surge uma vez em cada... século, se se tiver
sorte. E ele teve este tipo de equipamento ideal para um crítico: primeiro
porque sabia escrever e segundo porque ele respondia a uma peça, uma
representação, com emoção e intelecto. E a sua escrita tornou−se numa
extensão da representação, de uma forma curiosa. Quando ele escreve sobre
Laurence Olivier, consegue−se sentir que o Olivier inspirou o Tynan a escrever
com ainda mais eloquência do que antes. Penso que seja a diferença entre antes
e agora. Penso que quando o Tynan começou, o teatro foi dominado por
grandes actores e muitas das melhores críticas de Tynan são sobre
representações. Se se quiser saber o que é uma representação, ele descreveria.
Curiosamente, quando o Tynan estava como que gradualmente a finalizar a sua
carreira, o teatro estava a mudar, tornando−se muito, muito mais num teatro de
autor. E penso que às vezes ele era vacilante com dramaturgos: entendeu
Beckett logo à primeira, entendeu Osborne à primeira, mas rejeitava
inicialmente Pinter, John Arden −− com quem ele não simpatizava muito. Uma
An article from www.eurozine.com
2/15
pessoa nem sempre podia fiar−se nele quando escrevia sobre o dramaturgo,
mas era sempre óptimo de ler.
O renascer do autor
JSM: Para si o mais importante é seguir o autor.
MB: Bem, comecei a interessar−me por teatro nos anos 50, vi esse renascer do
autor. E sim, adoro os clássicos, mas por vezes é o desafio de interpretar uma
nova peça aquilo que acho mais estimulante neste trabalho. É estimulante
encontrar um novo Pinter, ou um novo Stoppard, ou um novo Caryl Churchill,
ou o que quer que seja, e ser a primeira pessoa a escrever sobre isso. E tentar
explicar, avaliar e interpretar é muito estimulante. E depois tenho daqui a uns
dias uma estreia do novo Michael Frayn. Entusiasma−me a perspectiva de ver,
aceitar e entender de alguma maneira.
JSM: O seu livro sobre Harold Pinter é um livro extraordinário...
MB: Obrigado.
JSM: Há uma amizade crítica ao longo dos anos, e nós conseguimos senti−la,
você é uma companhia para o autor, não apenas um crítico.
MB: É curioso dizer isso. Foi uma amizade que levou tempo a desenvolver. Eu
não conhecia o Harold muito bem, quase nada. E quando Trações estreou, não
me lembro em que ano...
JSM: 1976, não foi?
MB: ... fui muito severo com a peça... Na altura eu queria que todas as peças
fossem de cariz político... e essa era uma peça sobre o adultério da classe
média. Fui muito bruto. E o Harold, facto muito conhecido, quando estava a
receber um prémio para Melhor Peça, virou−se para mim e... deu−me uma
palmadinha nas costas. Havia uma certa frieza entre nós. Mais tarde, tive a
oportunidade de o conhecer melhor, porque fiz uma biografia de Peggy
Ashcroft e o Harold ajudou−me muito. E um dia, vinda do nada, chegou uma
carta de um editor que dizia: "O Harold Pinter gostaria que você escrevesse um
livro sobre o teatro dele". E tudo começou aí. Por isso tenho uma boa amizade
com ele agora, mas não foi logo à primeira.
JSM: O Michael é uma companhia para eles, e o crítico. Um critico que é
companheiro...
MB: Há autores com quem se simpatiza mais do que outros. E são
visivelmente Pinter, Hare, Ayckbourn, Frayn, Bennett. Para ser franco, aquele
com quem eu vacilo é o Tom Stoppard. Quer dizer, eu gosto dele, bem, de
algumas das suas peças, mas outras nem tanto. E sinto em relação a algumas
peças do Tom que existe uma espécie de mente brilhante que não consegue
sobreviver a um segundo, terceiro ou quarto visionamento. Não todas as suas
peças, mas algumas. Por exemplo, Arcadia é uma peça magnífica. Mas outras,
a primeira vez que se vê...Jumpers, por exemplo.Travesties... Brilhante,
brilhante! Mas depois... quer dizer, Travesties, tal como eu me lembro, tinha
um actor fantástico, John Wood...
JSM: ...eu vi...
An article from www.eurozine.com
3/15
MB: Viu? E com o John Wood foi maravilhoso. Depois vi a peça em
Coventry, numa matiné de Quinta−feira, com um actor não muito bom e um
público que estava desorientado e aborrecido. De repente, parecia que a peça
afundava. O Tom requer uma representação brilhante para fazer com que o seu
trabalho apareça...
JSM: Ele é tão brilhante, que é preciso ser−se igualmente brilhante. Com
Harold Pinter basta fazer exactamente o que ele escreveu.
MB: Precisamente. Penso que se se seguir as direcções do Harold, penso que...
De momento −− não há muitas pessoas que o sabem, os meus empregadores
ainda não o sabem −− mas estou negociações para dirigir uma peça de Pinter
com estudantes de teatro. Em cada dez anos, eu dirijo uma peça. Após o
lançamento de um livro pergunto−me: "O que é que vou fazer agora? Não
quero outro livro por enquanto". Mas gostava de fazer qualquer coisa. Por isso
deixo que se saiba de que gostaria de dirigir uma escola de teatro, e a LAMDA
(London Academy of Music and Dramatic Art) convidou−me. E estou a tentar
persuadi−los a deixarem−me fazer a peça Regresso a Casa. Estão nervosos,
porque perguntaram se "podem actores nos seus vinte e poucos anos interpretar
Regresso a Casa?" Eu disse−lhes: "Estou certo de que há alguém na vossa
escola com peso e presença..." Disse isto porque tem de se trabalhar numa peça
de Pinter e, como o Jorge disse e bem, o Pinter dá−nos muita informação sobre
como interpretar a peça.
JSM: Eu uma vez tentei fazer o contrário do que está escrito, mas...
MB: Já fez uma peça de Pinter?
JSM: Até já representei O Encarregado.
MB: A sério? Mas até você tentou ir contra a...
JSM: Por exemplo, eu tentei fazer o O Encarregado sem intervalo...
MB: Ah, não se pode...Não, é a estrutura. É uma peça de três actos. É muito
cansativo sem intervalos...
JSM: Não sente falta de alguns autores que desapareceram? Acontece
regularmente no teatro britânico alguns autores escreverem uns anos e depois
desaparecem. Sinto falta de alguns deles, como o David Storey, por exemplo.
MB: Sim, percebo o que quer dizer. Jovens autores desaparecem porque muito
rapidamente a televisão apodera−se deles, para filmes, se tiverem sorte. Penso
que podemos dar−nos por felizardos por muitos dramaturgos terem
permanecido leais ao teatro. O Alan Ayckbourn é um exemplo clássico, David
Hare... Parece extraordinário, porque ele fez cinema e televisão, mas sempre
voltou para o teatro. Como se o teatro fosse a maneira de ele expressar as suas
afirmações sobre a vida. O David Storey ainda seguiu em frente, teve uma
óptima fase no Royal Court, as suas peças eram montadas pelo Lindsay
Anderson. Penso que depois... Sim, é uma indústria estranha, não é? Escrever
peças de teatro? Porque alguns autores parecem ter expressado a sua visão nas
suas primeiras peças e agora não há mais sítio para eles se virarem, por isso
voltam−se para a ficção ou qualquer coisa do género, não é? Mas outros
autores, aqueles que mencionei...
JSM: O que aconteceu ao Ted Whitehead, que era tão interessante?
An article from www.eurozine.com
4/15
MB: Ele é um óptimo exemplo, sim. Eu conheço o Ted... Ele no fundo foi para
a televisão, teve uma carreira muito satisfatória a escrever peças para televisão,
adaptações e isso. Mas adoraria voltar para o teatro, e chegou a escrever uma
peça para a rádio, e ele quer desesperadamente que seja feita em Liverpool.
Mas saiu de moda. Até mesmo as suas primeiras peças não são revistas.
Quando o Royal Court Theatre comemorou o seu 50º aniversário, pensei:
deve−se voltar atrás e fazer algumas peças clássicas dos últimos 50 anos.Alpha
Beta é uma peça que, que eu saiba, ninguém fez. Ele continua a escrever, não
parou de trabalhar; apenas trabalhou num outro meio. Existem tantas
histórias... Cada autor tem uma história diferente, mas a mais conhecida é a de
Edward Bound, claro. Entrevistei−o, creio que em Dezembro, porque O Mar ia
ser feito de novo. O Edward Bond vive no campo e dá a impressão de que tem
sido ignorado pelo teatro britânico, que está em exílio... E ele insiste em que
apenas em Paris se fazem as suas peças... Mas depois falo com pessoas do
teatro e dizem−me: "Estamos desesperados para fazer uma boa peça", ao que
ele insiste "Não, não podem". Adoraríamos fazê−lo, mas o Edward continua a
negá−lo. O Royal Court gostaria de voltar a fazer a peça Saved, mas o Edward
diz que não. Portanto...
JSM: ...está a martirizar−se a si próprio.
MB: Exactamente. Está a martirizar−se.
Uma visão pertinente −− e única
JSM: O Michael escreveu que procura nos autores uma visão pertinente,
única. E o mesmo acontece consigo. Você tenta ter uma visão pertinente e
única da actuação e da peça.
MB: Bem, suponho que não se analisa muitas vezes como se escreve. Mas
acabei de mandar uma crítica sobre The Pendulum de Alexander
Fiske−Harrison, um jovem autor, e escrevi: "O que se procura numa nova
peça?" E disse precisamente isso: "Uma visão individual e um tom de voz
distinto". Aquilo que pensei sobre esta peça que vi, na quinta−feira passada, é
que parecia uma peça perdida de Schnitzler. Porque decorria em Viena, em
1900. E era desse estilo, La Ronde, etc. E disse que está tudo muito bem, mas
quando se quer escrever é para contar qualquer coisa específica, não apenas
imitar outros autores. Por isso, sim, perdoarei muitas falhas técnicas numa
peça, se houver visão e imaginação, um estilo.
JSM: Também gosto do adjectivo "pertinente".
MB: Pertinente, sim, uma espécie de visão imediata, não nublada. Todos os
autores que me interessam e de quem falo no livro State of the Nation, todos
eles como que estabelecem o seu próprio território de um modo curioso e todos
eles escrevem de maneira diferente, cada um tem o seu próprio território e isso
é o que os torna fascinantes.
JSM: E enfrentar os dilemas pessoais com o que se passa no mundo, é isso o
teatro para si?
MB: Isso é teatro para mim. O verdadeiro teatro é quando os problemas
psicológicos ou pessoais de alguém se cruzam com o que eles realmente são,
com o que fazem. E pode ser um príncipe ou um porteiro, não tem
importância. O estatuto não interessa. O que interessa é que tenha uma função
definida. Para a semana vou à ópera, e o Don Carlos de Schiller é uma peça
An article from www.eurozine.com
5/15
que eu adoro. É exactamente sobre isso, um jovem apaixonado pela mulher
que se casou com o pai. E, ao mesmo tempo, é um "príncipe do reino", que
acredita na libertação da Flandres, etc. Tudo na peça é perfeito, porque tudo se
encontra em confronto, mas pode acontecer a um nível humilde.Contractions a
peça de Mike Bartlett que estreou há pouco numa salinha do Royal Court, é
muito interessante, é sobre o que acontece na indústria agora, no trabalho.
Quando uma pessoa está à espera de criança, a empresa dirá: "Faz parte do
negócio". Parece−me um bom exemplo de quão pessoal e política... Mas isso
pode dar−se num épico de quatro horas ou numa peça de 45 minutos como a
de Bartlett.
JSM: Mas quando escreve, também tenta cruzar a sua experiência pessoal da
representação com o resto do mundo.
MB: Obrigado. Quer dizer, é essa a intenção, caso contrário... Pode tornar−se
numa estreita procura das obsessões privadas ou, num outro extremo, se se for
mais um marxista dedicado, todo o drama terá de se confrontar com um certo
modelo ideológico. O Oscar Wilde disse que "A crítica é a única forma pura da
autobiografia". Bem, estou sempre a citá−lo. Ele diz que o crítico é na
realidade um artista −− não acho que seja verdade −− e que ao discutir o
trabalho de outras pessoas revelamo−nos a nós próprios. E isso, sim, creio que
seja verdade.
F.R.Leavis, Raymond Williams, Steiner, os grandes formadores
JSM: Na Grã−Bretanha houve grandes intelectuais e críticos que foram
decisivos para o teatro contemporâneo, foram grandes formadores.
MB: Para a cultura? Sim. Mencionarei um outro crítico que penso que seja
importante para o teatro, embora ele odeie o teatro: F.R. Leavis, o grande guru
de Cambridge. E é fantástico quantos encenadores estavam em Cambridge
quando o Leavis estava a ensinar. O Peter Hall é o exemplo mais conhecido.
Trevor Nunn é outro exemplo. John Barton. Todos esses encenadores de
Cambridge foram parte desse mundo de Leavis, e herdaram essa sua atenção
para o texto, e a crença de que a arte teve um propósito moral... Tudo isso veio
do Leavis. E no entanto, que eu saiba, o F.R. Leavis quase não meteu os pés
num teatro, pensava que era uma coisa frívola, etc. Mas foi uma grande
influência. O Raymond Williams escreveu um excelente livro, tal como sabe,
sobre teatro moderno, e o David Hare é alguém que foi realmente ensinado
pelo Raymond Williams. Por isso aqui a influência foi directa.
JSM: E o Howard Brenton?
MB: Acho que o Brenton teve o George Steiner como tutor. Penso que isso lhe
deu uma visão interessante da literatura mundial. E embora ele tenha rejeitado
muitos desses valores de Cambridge, penso que o Steiner tenha tido influência
nele, ele era uma figura cosmopolita.
Os estudantes de Cambridge sempre tiveram um teatro só seu, o Arts Theatre.
Eles geriam−no, era para os estudantes, por isso se se fosse um actor ou um
encenador interessante, podia−se fazer quantas peças se quisesse. O Peter Hall
fez isso diversas vezes. Daí a influência que Cambridge teve no teatro moderno
britânico, particularmente nos encenadores. Em Oxford −− onde eu estive −−
nós tínhamos de alugar a Playhouse, um teatro muito grande, um teatro difícil,
muito difícil de se trabalhar. Por isso não tínhamos um espaço que pertencesse
a nós da mesma forma que os de Cambridge. Mas nós também tínhamos esta
An article from www.eurozine.com
6/15
rigorosa tradição académica. Essa era a diferença. A aproximação de Oxford
da literatura e teatro inglês foi muito diferente. Oxford produzia críticos como
Harold Hobson, Kenneth Tynan, mais tarde eu próprio e os meus
contemporâneos, Paul Taylor, Charles Spencer.. Cambridge produziu muitos
mais encenadores... E actores.
Do encenador, o que espera? E do critico?
JSM: E os novos encenadores, agora... Katie Mitchell, por exemplo? O que é
que admira num bom encenador?
MB: Katie Mitchell, sim. Ela agora é, como sabe, uma figura controversa.
Costumava achá−la fantástica. E claro, ela foi encenadora da peça que vai ver
esta noite, The City de Martin Crimp, em que ela fez um óptimo trabalho Mas
recentemente, comecei a preocupar−me com ela. Para dizer a verdade, não
cheguei a ver o seu mais recente trabalho... Fez aquele espectáculo a partir de
Virginia Woolf no National, As Ondas, depois fez Atentado de Martin Crimp
no National. E estragou a peça. O que é que procuro num encenador? O que
quero é que respeite o texto, obviamente, e que esteja preparado para às vezes
rebaixar o seu ego para dar lugar à visão do autor. Mas também um encenador
que, se estiverem a fazer um clássico, ofereça alguma interpretação
imaginativa. O papel do encenador muda se for uma peça antiga ou uma mais
recente. Se se estiver a fazer uma peça inédita, a responsabilidade primordial é
a de se submeter à peça, porque se se fizer mal, pode−se matar a peça e nunca
mais ela ser produzida novamente. Com um clássico, se se estiver a fazer o
Hamlet pela milésima vez, o encenador tem um papel mais interventivo. O
espectador quer ver o que o encenador tem a dizer. Por isso penso que é
variável, dependendo do contexto. Mas no geral, quero encenadores que se
submetam à peça ou, se for um clássico, que a recriem com imaginação. É um
território arriscado, não é? Porque... Viu no ano passado, o Macbeth com o
Patrick Stewart? Foi uma produção fantástica de um jovem chamado Rupert
Goold. Ele fez um Macbeth sensacional, penso que ainda esteja em cena na
Broadway. Começou num estúdio em Chichester, foi para o West End e depois
para a América. E o Rupert Goold é agora o jovem encenador de topo. O facto
é que ele realmente reinventou esta peça, utilizou muito do imaginário
soviético, graças ao Exército Vermelho; transformou o Macbeth numa figura
estalinista. Não apenas um assassino, mas um verdadeiro tirano sangrento. Mas
por outro lado, utilizou muitas técnicas de filmes góticos e de terror. Havia no
palco uma torneira que jorrava sangue, as bruxas transformavam−se em
enfermeiras numa ala do hospital, etc. Era cheia de coisas ostensivas, , mas o
certo é que ele repensou a peça e trouxe algo do seu horror, que temos
tendência a ignorar.
JSM: Mas são estas as mesmas coisas que exige de um crítico? De ler o texto?
MB: Sim, suponho que sim. Penso que o papel do crítico muda também. Para
uma nova peça, penso que, primeiramente, tem de se tentar explicar e
interpretar a peça.
JSM: O mesmo que acontece com o encenador.
MB: O mesmo que o encenador, precisamente. Penso que os papéis são em
muito semelhantes. Penso que para a peça clássica, o que o leitor quer saber do
crítico é o que tem de novo, de diferente, o que esta produção nos diz desta
peça que nos é familiar. Sim, penso que o crítico e o encenador têm papéis
semelhantes. O encenador, como é obvio, é o primeiro intérprete, mas ambos
An article from www.eurozine.com
7/15
têm de aceitar e compreender a peça, não é? E é por isso que eu gosto de, às
vezes, ser encenador. Não posso fazê−lo com muita frequência, mas é uma
extensão da crítica. E faço−o uma vez em cada dez anos.
JSM: Alguma vez teve a intenção de dirigir um teatro, como o fez Tynan
quando aceitou o convite de Olivier para dirigir o arranque do National
Theatre?
MB: Bem, sim e não. Quando estive na faculdade, hesitava muito, pensava que
gostaria de encenar ou de fazer críticas, não me conseguia decidir, ambos os
trabalhos me seduziam. E fiz algumas produções. Mas achei que me faltava
imaginação visual. Achei que era bom na psicologia da peça e na interpretação
do texto. Não era lá muito bom na cenografia, ou na marcação que é maior
parte do trabalho, meter pessoas a entrar e a sair do palco... ou na iluminação e
coisas do género. Faltava−me o senso visual, poderia ter sido um encenador de
peças para rádio. Quando descobri que gostava mais de escrever críticas
senti−me mais confiante. Mas esta vontade de encenar nunca morreu e, há dez
anos atrás, fiz O Amante de Pinter... há vinte anos fiz um Marivaux, A
Herança, com alguns muito bons actores em ambas as peças. E descobri que
encenar é, em grande parte, escolher o elenco, não é? Se o elenco for bom, o
encenador fica fascinado. Se o elenco for mau...Presumo que seja um pesadelo,
não é? Se se tomar uma má decisão...Presumo que valha a pena levar o seu
tempo a escolher o elenco, não é? È por isso que estou um pouco nervoso com
esta produção de Regresso a Casa na escola de teatro. Não vale a pena fazer a
menos que encontremos um peso pesado na escola. E aos vinte anos, é muito
difícil encontrar actores de peso. É esperar para ver. [As peças que Billington
acabou por dirigir na Lamda foram Party Time e Comemoração].
8.000 noites no teatro. E gosta?
JSM: Neste seu livro, State of The Nation, que é um livro que admiro
particularmente, você diz que passou 8.000 noites e tardes no teatro e
continua...Mais do que Scheherazade.
MB: Penso que devem ser 8.000, porque se eu comecei em 1965 e desde 1971
tenho andado semana sim, semana não, devem ser 8.000... Não se pensa nisto
desta forma, pois não? Não se pensa que isto é, sabe, o 30.000º jantar que tive
com a mesma pessoa, ou... Acho que não vou chegar a perguntar "com este são
8.012?", percebe...
JSM: E ainda gosta de ir ao teatro?
MB: Sim, adoro ir ao teatro.
JSM: E está ansioso em relação às novas produções, às novas peças?
MB: Como já tinha dito, o desafio de lidar com um novo trabalho −− isso é o
que me satisfaz. E falha−se muitas vezes, porque não se percebe ou não se
interpreta da forma correcta. Mas é o desafio de encontrar um novo Stoppard,
um Frayn, quem quer que seja... um Pinter. Acho que este é um ano rico. Há
anos que são um pouco parados. Este ano é fantástico porque é uma peça atrás
da outra. Há um novo Frayn, um novo Crimp, há um novo David Hare, no
final do ano, acho que há um novo Ayckbourn prestes a estrear, etc. Os
escritores parecem estar a trabalhar este ano. Isso é uma das coisas que me
motiva a continuar. A outra é escrever. Adoro escrever, o desafio técnico de
tentar comprimir os pensamentos em palavras escritas.
An article from www.eurozine.com
8/15
E a critica? Ainda se faz nos jornais?
JSM: E o Guardian é um dos poucos jornais onde os críticos ainda existem...
MB: Bem, diria que a maioria dos jornais nacionais ingleses ou britânicos
ainda têm críticos −− graças a Deus −− mas a grande questão é "Durante
quanto tempo isto irá durar?" e se a net vai mudar alguma coisa. Porque, agora,
qualquer pessoa pode criar o seu próprio website e auto−intitular−se de crítico.
Há muitos pessimistas que dizem: "Este é o fim da crítica tal como a
conhecemos". Penso que não seja o caso. Penso que o que vai acontecer é que
ainda vai haver espaço para a crítica impressa no papel; para além disso, irá
haver um outro tipo de debate no website, onde, como era de esperar, qualquer
um pode entrar. Seria muito mais democrático, mas mesmo assim penso que...
Fiz esta mesma questão ontem, numa conversa em Oxford, que na política, no
desporto, em qualquer actividade, é preciso alguém −− parece−me −− que
tenha algum conhecimento mais aprofundado sobre o assunto, que tenha visto
mais ou saiba mais que o leitor. E isso aplica−se às artes. Para ser franco, no
The Guardian... Bem, eu sou talvez um dos vinte críticos nacionais, se se
incluir os jornais diários, os jornais de Domingo, as revistas semanais, etc. inda
há muitos de nós.
JSM: No continente as críticas estão a desaparecer.
MB: Estão? A sério?
JSM: Na Itália, num jornal como o La Repubblica, agora as críticas só saem
uma vez por semana. 600 caracteres se a peça for má, 1.000 caracteres se for
boa.
MB: A sério? A Alemanha costumava ter grandes quantidades...
JSM: Deixei de seguir o que se passa na Alemanha.
MB: E Portugal?
JSM: Já quase não há críticas, fazem quando muito uns artigos antes da
estreia..., se tiver uma cara conhecida no elenco.
MB: Meu Deus, é incrível.
JSM: É horrível. Os jornalistas vêm ao ensaio antes da estreia, escrevem e...
MB: Então, o Jorge como artista não está a ser considerado, o seu trabalho não
está a ser avaliado.
JSM: Nada, nada. Desapareceu.
MB: Gostava de saber que efeito é que isto tem em si.
JSM: Odeio.
MB: E o público?
JSM: O público agora é indiferente. As pessoas olham para o jornal, vêem o
número de fotos, as fotos grandes, e...
An article from www.eurozine.com
9/15
MB: Mas o que decide... Quero dizer, o que influencia o público?
JSM: O nome da companhia. E o local. Nos últimos dez anos dirigi uma
companhia e temos feito teatro contemporâneo nos últimos dez anos. Portanto,
temos um nome e pode−se dizer que temos um público. Mas os espectadores
virão ver esta e outra peça, uma boa produção ou uma má produção. Virão
mais num teatro com mais conforto, menos num teatro com cadeiras de pau... e
depende de haver estacionamento de carro por perto... E claro que se tiver uma
cara conhecida no elenco, eles virão.
MB: Mas então como é que uma nova companhia consegue afirmar−se?
Porque precisa de atenção... Isso é uma das coisas onde penso que a crítica
pode ser útil, dar a um novo teatro, um novo encenador, uma nova companhia,
o que quer que seja. Uma das tarefas do crítico é encorajar novos talentos. Há
um teatro em Londres chamado Gate Theatre, que teve a época de ouro com o
David Farr. E antes do David Farr, com o Stephen Daldry. E foi aí que o
Stephen ganhou nome. Porque o Stephen fazia produções com 25 pessoas no
elenco... Ele faria peças épicas, e nós elogiávamos este encenador inovador
num espaço inovador. E ele tornou−se numa figura internacional. O que eu
quero dizer é que os críticos podem ser de grande valia em dar atenção a
material novo.
JSM: Deve ter sido åuma alegria para o Harold Hobson ter descoberto Feliz
Aniversário de Harold Pinter.
MB: Claro, absolutamente. Mas o Harold Hobson continuou, estava sempre à
procura do próximo Pinter, e às vezes iria reclamar algum talento que não valia
a pena... Mas ele era uma inspiração. É triste ouvir isto, que a crítica está
gradualmente a ser rebaixada, ou marginalizada, nós precisamos de debate
sobre as artes. E o outro aspecto é que os artistas, na minha experiência,
precisaram sempre de críticos de uma forma curiosa... Recebo muitas cartas de
protesto de artistas cujo trabalho ainda não avaliei, não daqueles que já avaliei.
O livro State of The Nation
JSM: O seu livro State of The Nation é um admirável livro sobre teatro −−
mas é mais do que um livro sobre teatro, é um livro sobre o mundo do
pós−guerra, a Inglaterra a transformar−se. Você é magistral em ligar as
transformações estéticas com as alterações da sociedade, é um dos grandes
livros sobre a vida na segunda parte do século XX... Você começa−o com a
pirmieira vitória eleitora de Clemence Attlee, o primeiro ministro trabalhista
que sucedeu a Churchill e que esteve no poder entre 1945 e 1951. Para si,
houve uma nova esperança... a chegada dos trabalhistas ao poder mudou a
sociedade inteira...
MB: Mudou. O Attlee mudou a Grã−Bretanha e, até determinado ponto,
continuamos a vivê−lo agora ... O nosso mundo começou aí, exactamente.
Ainda acreditamos em... Penso que o Serviço Nacional de Saúde é,
provavelmente, a melhor coisa que aconteceu na Grã−Bretanha do pós−guerra.
E à medida que vou envelhecendo, utilizo−o cada vez mais −− e vejo que
funciona, é uma instituição fantástica. Não vou aborrecê−lo com pormenores,
mas há umas semanas atrás tive uma dor terrível no meu lado esquerdo, vi o
meu médico numa Quarta−feira e na Sexta−feira estava a fazer um devido
exame cardiovascular no hospital. Estava tudo bem, em 48 horas o problema
tinha sido analisado e endereçado, e pensei: "Graças a Deus que existe o
Serviço Nacional de Saúde!" O que é que tem em Portugal? É tudo privado?
An article from www.eurozine.com
10/15
JSM: Começa a ser desarticulado e há uma grande discussão sobre o privado.
MB: E privatizam... que desgraça. Acho que é uma marca da verdadeira
sociedade civilizada.
JSM: E nesta sua admiração pelo trabalhismo do pós−guerra, gosto muito do
destaque que dá a J. B. Priestley, na história do teatro britânico moderno.
MB: Ele era −− e de certa forma ainda é −− uma figura muito fora de moda.
Mas ele também é visto como uma figura facilmente acessível, não um
inovador. Mas quando se olha para as peças dele, acho−o muito experimental.
E obcecado por aquilo que está a acontecer no país. Ele escreveu este belo
livro, Theatre Outlook, muito difícil de encontrar, mas é um livro mesmo
extraordinário. Ele tem uma visão futurista para o teatro. E é uma visão
socialista, vê a Grã−Bretanha repleta de teatros regionais, cada um a reflectir o
gosto da sua própria região, companhias juvenis e companhias itinerantes... Ele
foi um grande homem.
JSM: Na escrita ele foi uma surpresa...
MB: Exactamente.Está Lá Fora Um Inspector é o óbvio... presumo que seja
essa peça a que se traduz para outras culturas.
JSM: A Curva Perigosa foi uma produção muito conhecida nos anos 50 em
Portugal.
MB: A sério? É uma peça extraordinária. São feitas muitas peças dele... Mas
na Grã−Bretanha esteva fora de moda. E depois o Stephen Daldry... No
National, quando lhe perguntaram "O que é que quer fazer?", ele respondeu
"Quero fazer Está Lá Fora Um Inspector." Eles gemeram! E dizem: "Por
Deus, não!" Foi como uma espécie de velha peça bafienta. E é claro, ele
redescobriu−a.
E agora, no West End? Estamos a voltar para trás?
JSM: Ontem, quando cheguei a Londres, só vi no West End, peças dos anos
30, 40, o Chalk Garden de Eniid Bagnold, o Profundo Mar Azul...do Terence
Rattigan o Vórtice... de Noel Coward...
MB: E estão todos em cena ao mesmo tempo. Bem, estou sempre feliz por ter
o Profundo Mar Azul de volta, é uma peça fantástica. Já The Chalk Garden...
No meu livro é claro que não gosto daquilo, tenho mesmo um certo
ressentimento sobre isso, mas se tiver um bom elenco pode resultar. E acho
The Vórtice interessante, gosto do Coward dos primeiros tempos. Não gosto do
Coward tardio, mas acho o inicial interessante. Por falar no The Vórtice... Sei
que não tem tempo para ver outras coisas, mas já ouviu falar de uma peça
notável, That Face? De Polly Stenham, uma rapariga de vinte anos. Referi esta
peça por causa do The Vórtice, porque é sobre uma relação entre mãe e filho.
Penso que seja mesmo sobre incesto. Acho que a mãe e o filho cometeram
incesto. E penso que é a primeira peça que conheço que lida com incesto
explícito entre mãe e filho. E houve pessoas que me disseram: "The Vórtice é
uma relação intensa, eles não cometeram realmente incesto..." Mas, quer dizer,
se se tiver tempo para comprar uma cópia de That Face... Se se estiver à
procura de novas peças, essa é uma a ter em conta. É uma peça muito
poderosa. E penso que também funcionaria noutras línguas e situações.
An article from www.eurozine.com
11/15
JSM: Aquele West End sofisticado dos anos 30, o das rosas de Cecil Beaton, o
teatro que fez o triunfo de empresários como Binkie Beaumont estará de volta
[risos]?
MB: [risos] Bem, acho que não. Nalguns aspectos, quase que desejo que
estivesse de volta, porque acho que agora a tragédia do West End é ter 26, 28
musicais. E o West End costumava ter uma grande variedade de teatro, peças,
comédias, thrillers, farsas, revistas, musicais. Agora está dominado por
musicais. Há espaço para cerca de três peças ao mesmo tempo, e tem de se ter
um nome conhecido para fazer com que a peça tenha sucesso. Por isso, o que
quer que o Binkie Beaumont pensasse, ele pelo menos tinha uma rica
variedade de peças. E penso que é um aspecto importante do West End: o que
sinto falta é o colapso de coisas como a farsa, o thriller, o romance policial.
Quando eu era um jovem crítico, costumava declinar nestas coisas. Agora
estou mais velho. Começo a ver como são importantes se se tiver formas em
reserva; outros dramaturgos podem então usar essas formas e reinventá−las.
Ontem, numa conferencia, afirmei que, por exemplo, o Michael Frayn nunca
poderia escrever Noises Off, se não houvesse antes essa coisa chamada farsa, a
velha farsa britânica. O Joe Orton, em Apanhados no Divã, pegou também nas
convesões da farsa e conseguiu jogar com elas. Para o Harold Pinter, há o
thriller.Feliz Aniversário é um velho thriller, que ele reinventa. Penso que o
desaparecimento deste género vai limitar a variedade de outros dramaturgos. É
o que sinto mesmo falta no West End, não há público para a maior parte destas
formas.
O teatro regional agora
JSM: No seu livro considera os anos Blair como os anos em que houve um
grande desenvolvimento do teatro regional.
MB: Penso que nestes anos pós−Thatcher se salvou o teatro regional, que
estava prestes a morrer. Quer dizer, ainda está a lutar para se manter vivo, mas
pelo menos... Porque a maior parte dos teatros faliram e podiam ter fechado. E
depois receberam novos financiamentos. Pelo menos os teatros das grandes
cidades vão sobreviver. Oque é preocupante é a situação dos teatros em
cidades pequenas. Darby tinha um teatro muito bom, que era... Acho que ainda
não deve ter estado lá, porque é uma cidade um pouco feia nas Midlands. Mas
costumava ser um teatro relativamente bom, que vai agora ser fechado porque
a autoridade local não lhe dá o devido apoio. Mas o teatro em sítios como
Birmingham, Manchester, Sheffield e Liverpool são seguros e em muitos casos
bem sucedidos.
JSM: O que desapareceu é o teatro popular de gente maravilhosa e mais do
que talentosa, pessoas, artistas como John McGrath, Joan Littlewood...
MB: Essa ideia... Sim, penso que sim.
JSM: O teatro documental tenta...
MB: Tem razão. Não consigo pensar em ninguém que hoje tenha essa espécie
de "toque popular". Por isso é que o Joan Littlewood e o John McGrath são
extraordinários. Porque eles eram artistas sérios. E isso é qualidade, tornar o
teatro político acessível a todos. E não consigo lembrar−me de ninguém que
faça isso... ou que tente fazê−lo. É uma triste perda. Conheci muito bem o John
McGrath, estivemos na mesma altura em Oxford. O John adorava comédias,
adorava Chaplin e Keaton, adorava piadas, teatro de variedades, etc.
An article from www.eurozine.com
12/15
Lembro−me de uma produção que ele fez de As Aves de Aristophanes, em que
ele utilizou todas as piadas possíveis e imagináveis e ao mesmo tempo tentava
expressar um ponto político através da peça. Não sei se hoje ainda há pessoas
assim, com esse conhecimento da cultura popular do passado.
JSM: Há uma peça de Enda Walsh que respira esse mundo, essa cultura da
cerveja e da piada: The Walworth Farce (A Farsa da Rua W).
MB: Meu Deus, não vi essa peça. No ano passado, esteve em Edimburgo.
JSM: Uma produção de Druid Theatre. Excelente produção.
MB: Viu em Edinburgo?
JSM: Vi em Endiburgo, traduzimo−la e estou a dirigi−la. Fiquei tão feliz ao
descobrir essa peça! Pensei, alguém que goste de pessoas comuns e que o seu
próprio pai tenha visto Os Três Estarolas na televisão. É fantástico...
MB: Sim, sim. O único outro dramaturgo que me lembro é o Terry
Johnson.Dead Funny. É uma homenagem a velhos comediantes. E todas as
peças de Terry Johnson parecem−me ter algumas raízes na cultura popular do
passado. Quais são as boas? Insignificance, Hysteria, Dead Funny, penso que
essas são as melhores. E como encenador, ele parece trabalhar nessa tradição.
Mas estou à espera de ver a peça de Enda Walsh, que penso que este ano vai
ser refeita por Druid.
JSM: Penso que sim, penso que sim.
Traduções e supermercados
MB: E foi traduzida, obviamente.
JSM: Foi difícil... não temos os supermercados Tesco em Portugal.
MB: [risos] Não têm o Tesco? Porque não há nada como o Tesco.
JSM: Concordo, é um grande problema. [risos]
MB: Foi o Jorge que traduziu?
JSM: Não, foi Joana Frazão quem traduziu. Mas ontem fui ver o uniforme dos
empregados da Tesco, porque é algo muito importante na peça...
MB: Mas alterou o Tesco para outra coisa que o espectador português
entenda?
JSM: Estamos a ver como é que vamos fazer.
MB: Mas não há nada como o Tesco, pois não? Como sabe, o Tesco é um
supermercado mau. O Sainsbury é um clássico, o Waitrose é muito clássico, o
Tesco é o mais barato.
JSM: É verdade.
MB: Fez a peça ou...
An article from www.eurozine.com
13/15
JSM: Começamos os ensaios no final de Agosto. Fizemos duas peças de Enda:
Acamarrados e Disco Pigs.
MB: Ah, Disco Pigs. Deve ser muito difícil de traduzir. Está escrito num
dialecto muito irlandês...
JSM: Tivemos uma tradução que funciona na perfeição. O mesmo com
Acamarrados Mas penso que o Enda Walsh é alguém que tenta ter uma ligação
com o popular... Porque uma coisa foi, para nós nos anos 50, durante a ditadura
em Portugal, fim dos anos 50, princípio dos anos 60, o Joan Littlewood...
MB: Sim, sim.
JSM: Esse foi o exemplo a seguir e... Fantástico, foi algo da classe operária.
MB: Um bom exemplo ou um bom modelo a ter.
JSM: Foi fantástico. Foi proíbido, sabe.Uma Gota de Mel foi proíbida pela
censura em Portugal [risos].
MB: A sério? Devido a quê? Sexualidade ou...?
JSM: Sexualidade, linguagem ofensiva e...
MB: Estou a ver. Meu Deus!
JSM: Por isso, quando foi produzida já foi tarde de mais.
MB: Alguns escritores devem traduzir melhor para Portugal que outros, nem
todas as peças são traduzíveis...
JSM: É muito difícil traduzir Pinter.
MB: Pensaria que a linguagem seria difícil. Imaginaria que a situação seria
imediatamente reconhecida em todo o lado.
JSM: Mas a linguagem e... Ele é tão brilhante... [risos]
MB: Consigo compreender isso. Na maior parte dos países, há sempre uma
pessoa que parece ter−se tornado no tradutor de Pinter.
JSM: Sabe, há uma ideia muito engraçada. Descobri recentemente que todas
as produções continentais de Harold Pinter estão erradas. É que stage right em
inglês não é direita de cena em português... é esquerda! No continente, a
direita e esquerda são do ponto de vista da audiência.
MB: Ah, não são do ponto de vista do palco como aqui?
JSM: Não... Descobri isto quando estava a tentar fazer O Amante e vi
fotografias da encenação do Claude Régy com Delphine Seyrig a actuar −− e
ela está sempre ao contrário! [risos] E pus−me a ver as fotos de outras peças e
estão no lado oposto. [risos]
MB: Não sabia disso.
An article from www.eurozine.com
14/15
JSM: E no Amante uma pessoa não se pode enganar de porta à esquerda ou à
direita...
MB: Ai, é uma peça muito matreira. Quer dizer, tecnicamente. Fi−la uma vez.
É muito difícil a nível técnico devido à mudança de vestuário, mudança de...
JSM: Sim, e esquerda e direita... [risos]
MB: Mas, com a minha pouca experiência, sempre pensei que os franceses não
entendiam bem o tom de Pinter, porque muito de Pinter é baseado nesta
característica muito inglesa de "encher o saco". Por outras palavras, mandar vir
com alguém, gozar. E reparei numa produção francesa de Regresso a Casa
onde um dos irmãos está a chatear o outro a dizer: "Roubaste o meu queijo".
Continua a insistir também sobre a salsicha, ou uma coisa parecida: "Comeste
a salsicha". Mas na realidade ele não está a implicar por causa da salsicha, está
apenas a usá−la como pretexto para embirrar com o irmão, o qual é mais bem
sucedido do que ele. É uma forma de o destabilizar. Mas o actor francês fez
isto numa explosão de raiva. Não é sobre isso, ora, de facto é uma coisa muito
mais subtil.
JSM: São culturas muito diferentes.
MB: Há diferenças culturais por toda a parte.
Londres, 7 de Junho de 2008
Published 2009−08−07
Original in Portuguese
Translation by Inês de Castro
Contribution by Artistas Unidos Revista
First published in Artistas Unidos Revista 23 (2009)
© Jorge Silva Melo
© Eurozine
An article from www.eurozine.com
15/15