NEM TODO HOMEM VIVO É UM HOMEM LIVRE: JUSTIFICATIVAS

Transcrição

NEM TODO HOMEM VIVO É UM HOMEM LIVRE: JUSTIFICATIVAS
NEM TODO HOMEM VIVO É UM HOMEM LIVRE: JUSTIFICATIVAS DA
ESCRAVIDÃO NA ANTIGUIDADE AFRICANA
Jessica Caroline de Oliveira
(UNESPAR-campus União da Vitória)
Orientador Prof. Dr. Ilton Cesar Martins
Bolsista do Projeto História da África e da Cultura
Afro-Brasileira: para além das leis rumo à cidadania
Pibid/Unespar, campus União da Vitória.
Resumo: Ao realizar uma pesquisa acadêmica tendo como foco a escravidão, o
historiador se depara com uma diversidade e heterogeneidade de produções, no
qual, percebe-se que o conceito de “escravidão” é múltiplo e complexo, nesta
acepção, para ser compreendido precisa estar contextualizado dentro das
sociedades e temporalidades em que foi empregado. Sendo assim, esta
apresentação tem por intuito investigar as justificativas para a escravidão na
Antiguidade, enfatizando esta prática no contexto africano e, demonstrando como
cada ambiente criou discursos legitimadores que operaram e funcionaram dentro
daqueles espaços. Esta temática possibilita também, refletir que a escravidão não é
um conceito homogêneo e uniforme, por outro lado, é um processo de longa
duração e que se reinventa. Acerca desta questão WEDDERBUM (2007, p. 162163) descreve a escravidão como “a mais primitiva forma de coerção destinada a
extorquir de um ser humano a sua força de trabalho em proveito de outro que se
dispensa da mesma obrigação. Trata-se da primeira e mais primitiva das formas de
esmagamento do homem pelo homem, de extorsão da força de trabalho do
semelhante, e do confisco de sua dignidade humana”. As interpretações,
conceituações, olhares e escritas sobre a escravidão nos permitem (re) conhecer
como grupos humanos entendiam-se e entendiam o outro, construindo modelos e
princípios para subjulgar uns sobre os outros. Para o debate historiográfico será
utilizado autores como MEILLASSOUX (1995), LOVEJOY (2002), WEDDERBUM
(2007), entre outros.
Palavras-chave: Escravidão; Antiguidade Africana; Conceito.
2646
Introdução
No texto intitulado “A África que incomoda”, o autor Wedderburn (2011)
discorre sobre o emprego de novas epistemologias, metodologias e didáticas em
relação às pesquisas sobre a temática africana. Segundo o autor, o continente
africano é detentor de tamanha singularidade que acaba se tornando “um campo
movediço,
prestando-se
a
múltiplas
distorções”
quando
pesquisadores
e
profissionais da educação pautam-se em universalismos, generalizações e
preconceitos ideológicos na argumentação e sustentação de seus discursos. Recai
sobre o contente africano uma confusão sobre seus povos, culturas e diversidades,
sendo assim, é provável que nenhuma outra região do mundo receba olhares e
opiniões tão estereotipados e distorcidos quanto os espaços africanos.
Neste sentido, há também uma constante associação do africano com a figura
do escravo, seja pelo tráfico negreiro transatlântico, ou ainda, pelas argumentações
de que este espaço já conhecia e convivia de longa data com a escravidão.
Buscando analisar as formas de como este processo se desdobrou sobre a África,
selecionou-se o espaço civilizacional senegalo-guineo-maliense (também conhecido
como região da África Centro-Ocidental1) como eixo norteador deste trabalho, pois
conforme expõe Meillassoux (1995), este recorte possibilita verificar a íntima
associação com o mercado de escravos, seja abastecendo-se dele, ou o
abastecendo. Esclarece o autor que o é mercado quem situa o escravo como classe
social e orienta o seu “estado”, ao passo que é a sociedade quem determinar as
“condições”. Portanto, estudar o continente africano é necessário fazer recortes
espaciais metodologicamente específicos, como também, um recorte temporal
adequado e próprio das dinâmicas africanas, por isso, “antiguidade” não diz respeito
à “antiguidade” utilizada pelo pensamento ocidental, e sim, conforme os
historiadores sobre temática africana o teorizam e utilizam.
Meillassoux (1995) ressalta que na comunidade doméstica, a ideia de
propriedade dava-se por um direito sobre pessoas e coisas baseadas no sistema de
parentesco, prevalecendo a noção de patrimônio, onde a transmissão e aquisição de
1
Cabe esclarece ao leitor que o termo senegalo-guineo-maliense é utilizado pelos historiadores
africanistas, ao passo que África Centro-Ocidental é utilizado por autores da Diáspora Africana,
todavia, ambos representam o mesmo espaço físico, buscando localizar e orientar geograficamente o
continente africano.
2647
bens dá-se por uma troca equivalente, essas concepções de direito são desiguais
quando comparadas aos modelos ocidentais, visto que, pautam-se no princípio de
usus, fructus e abusus. Sendo assim, o escravo dentro dessas relações, por vezes,
é associado ao caçula perpétuo, designado à cumprir obrigações familiares e
privado à paternidade. Por isso, essa estrutura social africana vai se transformando
à medida que novos escravos são inseridos, todavia, não se deve cair no clichê de
que uma sociedade doméstica, arraigada a costumes de parentesco, produziu a
escravidão. Logo, mesmo não sendo o intuito deste trabalho fazer um estudo
detalhado e reconstruir a história do aparecimento da escravidão no globo, busca-se
refletir e examinar como o continente africano significou a inserção e o uso do
escravo.
Ser e tornar-se escravo na África
A escravidão era uma forma de exploração. Suas características específicas
incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram
estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou
outras, se retirara a herança social que lhe coubera aos nascer; que a
coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à
completa disposição de um senhor; que eles não tinham o direito à própria
sexualidade e, por extensão, às suas próprias capacidades reprodutivas; e
que a condição de escravo era herdada, a não ser que fosse tomada
alguma medida para modificar essa situação. (LOVEJOY, 2002, p. 29-30)
Para compreender a forma como o escravo era entendido e instituído dentro
do contexto africano, faz-se preciso examinar cada um destes atributos acima
elencados por Lovejoy (2002), compreendendo, nesta acepção, que esses
elementos possuem justificativas pautadas em lógicas próprias às sociedades,
territorialidades e períodos em que foram empregadas. Sendo assim, esclarece o
autor que os escravos eram entendidos como propriedade através da ideia de “bens
móveis”, podendo ser vendidos ou comprados como mercadorias pelos seus
senhores que, teoricamente, possuíam poderes sobre eles.
A escravidão, de acordo com Lovejoy (2002), é o ato de negar aos
estrangeiros os direitos e privilégios em determinadas sociedades, legitimando sua
exploração econômica, política e/ou social. Esses “estrangeiros” eram assim
considerados conforme a ausência de grau de parentesco, se a diferença cultural ou
no dialeto fosse insignificante, o grau de exploração e isolamento era limitado.
2648
Portanto, os modos mais desenvolvidos de escravidão eram aqueles que levavam
os sujeitos às distancias longínquas do seu lugar de origem, enfatizando, assim,
suas características estrangeiras, definindo o sujeito como um “estranho”. Quanto
maior a complexidade social e econômica do lugar, mais atenuada ficava as
relações entre os sujeitos.
O contato que se estabelecia entre senhor e escravo era violento, conforme
expõe Pacheco (2008), tanto pelo fato da perda da liberdade pessoal quanto da
identidade do sujeito, o qual, aos olhos da sociedade em que era inserido, tornavase um “morto social”, retirado do seu seio familiar e cultual, reduzido à condição de
estrangeiro num lugar distinto e distante, onde lhe era negado determinados direitos
e justificado à sua exploração. Lovejoy (2002, p.32) salienta que “outras distinções
mais sutis eram feitas, incluindo as diferenças de dialeto, [...] marcas faciais e
corporais, características físicas evidentes e, a mais comum de todas, a memória”.
Nesta acepção, por mais que se faça uso do termo escravidão, o mesmo
não deve ser entendido como um processo único, e como já destacado, seu uso é
fruto de dinâmicas que alteram-se conforme suas necessidades. Sobre este fato
Lovejoy (2002) aponta que para além da escravidão, havia a servidão (obrigações
vinculadas a terra e ao costume), clientela (subordinação voluntária sem
remuneração), penhor (trabalhava-se para pagar uma dívida) e o trabalho comunal
(trabalho entre parentesco ou classes etárias com trocas recíprocas). A autora
Pacheco (2008) discute que essas formas de dependência direta ou indireta do
senhor em relação ao escravo (e vice-versa) não só mantêm um número equilibrado
para a subsistência da comunidade, como também, controla e fortalece os laços
familiares, contribuindo nas relações de poder e autoridade individuais ou coletivas.
Meillassoux (1995) expõe que a principal diferença entre o modelo de
servidão e escravidão concentra-se no modo de reprodução. Segundo o autor, os
servos reproduziam-se naturalmente, não havendo a necessidade de compra, sua
exploração decorria do pagamento de uma quantidade fixa de um certo produto todo
ano, ou em determinados períodos e, através da benevolência do seu senhor,
poderia dispensar-se dessas obrigações. Essas prestações fixas impediam o servo
de formar reservas e, por vezes, endividar-se com o senhor. Na servidão, o sujeito
era um patrimônio, sendo cedido junto a terra que cultivava, porém, não era uma
mercadoria, por isso não podia ser comprado nem mesmo vendido. Além disso, ao
2649
servo era garantido o direito de possuir e viver em família, o que não ocorria em
relação ao escravo.
Em seu livro, Meillassoux (1995) aponta que os escravos no processo de
escravidão de subsistência, produziam tanto para si, quanto para alimentar o senhor
e os demais cativos que não faziam parte da produção agrícola. Esse “estado” do
escravo servia para tirar essas obrigações do seu senhor e, mesmo que fosse
retirado o caráter de cativo, esse estado de trabalhador agrícola permanecia. Vale
ressaltar que na categoria de subsistência, não havia um mercado de escravos,
portanto, seus senhores não tinham despesas para a aquisição. Sua condição davase pela sua origem, no qual, era estigmatizado e designado como “estranho” às
relações familiares em que foi “encaixado” socialmente. Sua captura era seletiva,
eliminava-se os sujeitos cujas características físicas estavam fora da idade
produtiva, impedindo, sobretudo, sua reprodução natural.
Os escravos poderiam representar uma porcentagem pequena ou
substancial em uma sociedade, porém, mais importante que sua densidade era a
sua posição dentro da mesma. Suas funções variavam, podendo exercer ofícios no
exército e na administração, funções domésticas ou sexuais, ou ainda, na produção.
Lovejoy (2002) ressalta que a escravidão tornou-se mais importante em alguns
lugares devido o seu caráter produtivo, necessitando, desse modo, de uma oferta
regular de cativos, fosse pelo viés comercial, de escravização ou de ambos. Logo, a
quantidade de escravos se torna significativa a ponto de mudar a organização social,
adquirindo, desta forma, características adicionais. Esses escravos faziam o trabalho
ao lado de trabalhadores livres, o que não tinha grande relevância, pois o que
importava era quem os controlava e para quem eles produziam.
Conforme descreve Lovejoy (2002), uma comunidade tinha o seu
desenvolvimento baseado na estrutura social, étnica e parental. Neste sentido, as
sociedades parentais são caracterizadas por um modo de produção “de linhagem”
ou “doméstico”, tendo a distinção etária e sexual como divisão fundamental da
sociedade, não havendo, desta forma, um antagonismo de classe. Os mais velhos
controlavam os meios de produção e acesso às mulheres, como também, o poder
político ligado à gerontocracia. A manutenção social ficava sob responsabilidade da
fertilidade feminina e do resultado do seu trabalho. Por isso, um homem velho
poderia ter várias esposas e filhos, assegurando a cooperação por parte dos jovens
2650
e parentes, bem como, acesso aos bens imóveis da linhagem, seja terra, caça e
água. Os escravos não faziam parte das linhagens, tendo como direito somente o
que lhes fosse concedido, e mesmo que fizessem parte, eram considerados como
membros integrantes ou dependentes sem voz ativa.
Nestas sociedades, argumenta Meillassoux (1995) que mantém-se a
perspectiva de um sistema redistributivo da produção dos membros ativos da
comunidade. Portanto, não existe uma classe propriamente dita, mas sim sujeitos
que são produtivos e outros não, conforme suas aptidões físicas e mentais. Esses
sujeitos produtivos são os adultos capazes de trabalhar, enquanto que crianças e
velhos são considerados como improdutivos. Tanto a posição quanto o status dos
indivíduos dá-se por laços parentais de um desenvolvimento conjunto, fechado
dentro do ciclo de produção material e reprodução humana, sendo possível entrar
nesse ciclo somente pelo nascimento ou adoção. O sujeito alheio a esta formação
dual é caracterizado como “estranho”, enquanto que aquele que desde o nascimento
esteve presente nessa lógica é denominado como “ingênuo”, sendo assim, através
destas nominações pode-se perceber o surgimento da exploração do trabalho nas
sociedades domésticas. Seriam homens livres, esclarece Meillassoux (2002)
aqueles que nascessem e se desenvolvessem conjuntamente, ao passo que o
estranho caracterizar-se-ia pelos sujeitos que desenvolveram-se em outro ambiente
social, com laços culturais e econômicos distintos. Logo, não são os laços
sanguíneos que equivalem dentro desse sistema social, mas a “congeneração”.
Segundo Meillassoux (1995), a produção é o elemento que determina a
reprodução e crescimento demográfico dentro da sociedade doméstica. Por isso,
deve atender às necessidades mínimas e garantir a renovação das gerações até
que estas tornem-se capazes de produzir. Destaca-se que durante o período em que
um adulto é celibatário, sua produção vai para os mais velhos. Quando um sujeito
se casa e adquire o status de “pai de família”, torna-se responsável por manter laços
com sua descendência e crescimento desta nova prole. Portanto, quando um
homem não possui permissão para ter uma esposa, não tem a possibilidade de
investir o seu produto à seus descendentes e, desta forma, não será tratado como
um parente, e sim, um excluído das prerrogativas de status. Essa prática pode ser
observada em relação aos caçulas onde os laços familiares são fracos ou ausentes,
2651
sendo assim, são destinados ao celibato, proibidos de casar-se e, por assim dizer,
criar e gerar descendentes.
Dentro de uma comunidade doméstica, Meillassoux (1995) salienta que nem
sempre há um equilíbrio demográfico entre sujeitos produtivos e improdutivos, nesta
acepção, fazia-se necessário recorrer ao recrutamento de indivíduos para manter as
estruturas sociais, fosse por estratégias guerreiras, matrimoniais ou políticas, o que
resultava na incorporação de um estranho, fosse homem ou mulher. Para tanto, a
inserção de uma mulher nestas sociedades possibilitava a reprodução social, ao
passo que, a inserção de um homem pouco poderia contribuir nesta questão. Isso
deve-se, segundo o autor, porque um homem poderia fecundar de 15 a 30 mulheres,
garantindo assim, seu caráter reprodutivo e potencializando as relações filiais
legitimadas pelo laço conjugal.
Neste contexto, o estranho só pode participar da função reprodutora se
fosse aceito como “pai social”, sendo assim, alcançava esta condição caso
conseguisse matrimônio com uma jovem da comunidade, ou fosse adotado e
reconhecido por uma família. Esses casamentos auxiliam na manutenção e
extensão de laços familiares. Além disso, essas relações tornam-se mais aceitáveis
quando o estranho havia entrado jovem nesta sociedade, crescido com irmãos
adotivos e participado do ciclo produtivo; caso fosse um prisioneiro de guerra,
substituiria outro guerreiro que tenha desaparecido, assumindo com o tempo, uma
personalidade social. Esclarece Meillassoux (2002) que ao autorizar o matrimônio de
um estranho com uma mulher da comunidade, poder-se-ia ocasionar a privação
posterior de um caçula no ciclo reprodutivo, o que geraria um desconforto e laços
familiares mais fracos.
Em geral, a introdução de um estranho no ciclo reprodutivo, dava-se quando
o número de caçulas é relativamente baixo, fortalecendo, deste modo, a
manutenção familiar e o equilíbrio de gênero. Homens e mulheres quando
categorizados como estranhos possuem formas de inserção diferentes, visto que, o
homem tem oportunidades e alcances limitados dentro da sociedade, ao passo que
a mulher além de ser preferida, torna-se parte da sociedade com mais facilidade,
tanto pelo seu caráter produtor quanto pelo reprodutor. Nestas sociedades, à medida
que as gerações vão passando e se aprofundando, o estranho vai se interiorizando
2652
dentro da estrutura familiar, afinal, os estranhos não se constituem um corpo social
distinto. (MEILLASSOUX, 2002, p. 34)
Em relação aos casamentos, Lovejoy (2002) discorre que envolviam
pagamentos valiosos, por vezes, inacessíveis aos jovens, todavia, os mesmos
mantinham suas relações com a família, o que em épocas difíceis promovia
segurança. Além disso, havia outra forma de suplementar ou contornar as relações
biológicas: o penhor. O autor aponta que o penhorado tinha relação familiar, mas
geralmente não com o credor. Afinal, “o seu valor estava baseado na expectativa de
que seus parentes pagariam a dívida e assim os livrariam da servidão”, (LOVEJOY,
2002, p. 45) Geralmente, escolhia-se as crianças para serem levadas sob a
condição de penhorado, no qual, legalmente não poderiam ser vendidas.
Considerando-se assim, o penhor como um investimento, e caso o indivíduo
morresse, outro deveria ocupar o seu lugar. Meillassoux (2002) argumenta que
quando os penhorados eram entregues a uma família, os mesmos eram utilizados
até a quitação da dívida, entretanto, ainda que fossem subjugados, não perdiam a
sua qualidade de parente, vivendo em família e com condições reversíveis ao estado
de escravo.
Em meio a esse contexto, um homem poderia ter o controle sobre muitas
mulheres, incluindo escravas, penhoradas e livres. Lovejoy (2002) salienta que ao
casar-se, requeria-se um pagamento à família da mulher livre, no qual, o pai com
sua riqueza e autoridade poderia melhorar sua posição e contratar bons casamentos
para suas filhas e sobrinhas. Ao unir laços com uma mulher penhorada ou escrava,
o homem livrava-se de pagar pelas núpcias. Sendo assim, em caso de penhoradas
havia o cancelamento da dívida, e em caso de uma escrava, ela tornava-se
dependente do seu marido. Todavia, estes matrimônios não eram casamentos
desejados, preferindo-se uniões entre primos, pois o casamento entre pessoas livres
fortalecia os laços familiares. Para Lovejoy (2002) essas práticas justificam a grande
demanda de mulheres na condição servil, afinal, promovia a assimilação nas
famílias, visto que, quando não tomadas e casadas com o seu senhor, eram
presenteadas a sobrinhos, filhos e leais servidores, tornando-se dependentes livres
e deixando a condição de escravas após o primeiro filho. Portanto, a incorporação à
família significava a sua emancipação, variando, contudo, com grau de aculturação,
2653
casamento com membros efetivos da linhagem ou manifestações individuais de
lealdade.
Por outro lado, existem sujeitos que não eram assimilados nas relações de
parentesco, sendo um “estranho” permanente, deste modo, Meillassoux (2002)
apresenta que sua inserção acabava por levantar alguns problemas quanto a
repartição comunal da sua produção, demonstrando certa incompatibilidade dentro
da economia doméstica. Esses indivíduos eram acolhidos por meio das guerras
vicinais, caça de vadios, viajantes surpreendidos, famintos em tempos de penúria.
Sendo assim, “se o estranho não é introduzido no ciclo reprodutivo, mas apenas na
produção, ele não é ressocializado na sociedade de adoção, pois não estabelece
nela nenhum laço de parentesco”. (MEILLASSOUX, 2002, p.27)
Nesta relação, pode-se perceber um estado que Meillassoux (2002) aponta
como latente e, posteriormente, aparecerá em todas as formas de escravidão: “a
incapacidade social do escravo de se reproduzir socialmente”, e “essa incapacidade,
[...] fará, portanto, da escravidão a antítese do parentesco e o meio legal da
subordinação do escravo em todas as formas de escravagismo”. Segundo o autor,
as condições colocadas sobre o estranho ou o cativo, não se pauta na exploração
do seu trabalho produtivo, mas sim, na recusa de integrá-lo socialmente.
(MEILLASSOUX, 1995, p.28)
Há casos em que um sujeito é expulso ou fornecido à outra linhagem, nesta
acepção, o mesmo só pode fazer parte da produção dessa nova família caso seja
aceito como caçula, sendo assim, participará das mesmas funções que os demais
indivíduos da comunidade, portanto, para além de uma subjugação, ocorre uma
transferência de filiação. Caso torne-se pai de família, abandonará as obrigações de
caçula e, por assim dizer, de explorado. Além disso, haviam escravos que não
possuíam funções como produtores e/ou reprodutores sociais, sendo assim, eram
considerado um objeto desprovido de função ativa, utilizados em situações gloriosas
ou de prestígio, como funerais e cerimônias religiosas. Conhecidos como imolados,
esses indivíduos eram oferecidos como sacrifícios e oferendas; em raras ocasiões
eram mulheres, devido ao seu peso social tanto para a produção quanto para a
reprodução, sintetizando um “sacrifício” real, pois caracterizava-se como uma perda
para a comunidade. (MEILLASSOUX, 1995, p.30-31)
2654
Lovejoy (2002) aponta que haviam quatro formas de aquisição de escravos,
no qual, a primeira baseava-se nas guerras e capturas em larga escala promovidas
pelos estados centralizados à populações vizinhas, expandindo-se e reduzindo a
oferta de escravos a medida que a fronteira de escravização se alargava; a segunda
forma caracterizava-se pelas guerras entre estados vizinhos, escravizando pessoas
sem a necessidade de expandir a sua fronteira de escravização; o terceiro modo
fundamentou-se pela disseminação da anarquia, em que os sequestros em pequena
escala levavam a escravização pessoas aleatórias; por fim, a escravização como
punição para criminosos condenados. (LOVEJOY, 2002, p. 141)
Essas atividades representavam a ausência de um governo central e a
fragmentação política que impactava todos os meios sociais, tanto pela insegurança
quanto pela fácil escravização. A inexistência de uma autoridade impossibilitava a
liberdade, o sentimento de propriedade, riscos em viagens, ameaças de guerra,
sequestros e ataques. O problema destas práticas não estava na legalidade, e sim
nas justificativas que os Estados utilizavam para mantê-las. Neste sentido, quando
as guerras duravam muito tempo, era necessário buscar novos escravos para o
equilíbrio demográfico. O sequestro, apresenta Lovejoy (2002), era uma prática de
pequena escala para captura de escravos, sendo difícil distinguir se as expedições
tinham caráter punitivo contra os indivíduos ou serviam para hostilizar um inimigo.
Salienta-se que, à escravidão atribui-se muitas penalidades, tornando-se o
castigo mais comum impostos aos criminosos e, por mais insignificante que fosse o
crime, a escravidão era a punição mais viável e lucrativa. Lovejoy (2002) afirma que
“a escravidão tornara-se disseminada e moralmente destrutiva para muitas
instituições”. Meillassoux (1995) elenca condições que justificavam a captura e
escolha dos cativos, entre as quais pode-se descrever:
a) Dessocialização: segundo o autor, quando os sujeitos eram capturados, eles
não se tornavam de imediatos “escravos”, mas sim “prisioneiros”, tornando-se
escravos quando eram inseridos sob o „estado‟ de estranho dessocializado de
seu lugar de origem, sendo sua „condição‟ ajustada ao sistema de produção
e/ou reprodução.
b) Despersonalização:
essa
característica
recaía
sobre
os
sujeitos
impossibilitando-os de reatar com seus antigos laços familiares. Este fato,
segundo o autor, dava-se por uma filiação fictícia, no qual, eram colocados
2655
sobre a proteção dos ancestrais da linhagem recebedora, tem, a partir de
então, pai, mãe e irmãos fictícios.
c) Dessexualização: as noções de gênero dentro de um sistema social não
estão intimamente ligadas à feminilidade ou masculinidade dos sujeitos, neste
modo, à repartição de tarefas e a reprodução social só ocorre quando
autorizada.
d) Descivilização: caracterizava-se pelo seu não reconhecimento jurídico e civil
dentro de uma comunidade, sendo assim, o estranho dependia da vontade e
arbitrariedade do seu senhor.
e) Alienação: escravo é aquele que não domina as suas necessidades, seja elas
quais forem. Havia uma hierarquização entre os escravos que, conforme
expõe o autor, dava-se pela sua origem étnica, religião ou tempo de serviço.
Para tanto, Lovejoy (2002) argumenta que a escravidão nas linhagens
pautava-se pelo recrutamento, estando intimamente ligada a emancipação
automática quando ocorria a incorporação do escravo. Neste sentido, fazia-se
necessária a exploração e doutrinação para que a integração fosse reconhecida.
Essa doutrinação dava-se aos cativos que vinham de regiões distantes e com
culturas díspares, cabendo ao senhor o ensino das práticas culturais que
permeavam sua comunidade, tanto pela manutenção da sua ancestralidade, quanto
pela assimilação do sujeito na comunidade doméstica.
Sendo assim, ao longo deste discurso, buscou-se discorrer sobre as
particularidades que faziam parte da lógica de escravizar sujeitos em algumas
regiões da África, além disso, pode-se perceber a forma como estes caracteres não
só se justificavam, como também, eram “aceitos” nas relações de poder dentro das
comunidades domésticas. Vale ressaltar ainda, que à medida que expandia a oferta
e a procura de indivíduos para escravizar-se, a linha tênue entre a escravização
“legal” vai rompendo-se, o que antes legitimava e garantia a subsistência, torna-se
algo de maior “valor”, visto que, essas capturas serviam como uma base produtora,
reprodutora e militar, entendidas e significadas para as sociedades ligadas aquele
contexto e processo, portanto, não devem ser confundidas e generalizadas à outras
formas de escravidão.
2656
Considerações finais
Este artigo representa um diálogo entre o PIBID História da África com
inquietações que partiam do meu desconhecimento sobre o continente africano,
sendo assim, a melhor forma de conhecer e entender as dinâmicas que operavam
historicamente na África seria através da pesquisa. Portanto, esse é o primeiro
resultado da análise feita sobre as justificativas e características da escravidão nas
sociedades africanas, partindo da lógica de “olhar” esse processo através de autores
que pautam-se em metodologias e teorias que discorrem sobre os africanos a partir
deles mesmos, sem hierarquizar, diminuir ou deturpar os eventos, conceitos e
sujeitos históricos que atuaram e fizeram parte da história africana.
Nesta acepção, esta pesquisa possibilita uma reorientação histórica, tanto à
acadêmicos quanto aos professores da rede de ensino, afinal, pouco sabia sobre
este continente e percebi nos alunos essa mesma carência de informações, no qual,
entendem a África como um espaço único, uniforme, onde há tribos de pessoas
negras. Estes estereótipos, já apontados no início deste texto, tem sua origem tanto
no déficits de ensino sobre a temática, quanto na pouca produção sobre o tema, ou
ainda, produções deturpadas, professores despreparados ou com pouca vontade de
promover um ensino de qualidade. Ou seja, pode-se elencar uma série de
elementos que contribuem para a formação de uma mentalidade estereotipada
sobre o continente africano, todavia, é através de pesquisas e práticas de ensino
atualizadas que pode-se desmistificar e promover um saber histórico e crítico sobre
África, escravidão e as formas como os africanos fizeram uso e significaram a
exploração do trabalho, onde as relações sociais, políticas e culturais estavam
intimamente presentes, promovendo a socialização ou exclusão dos sujeitos
colocados nesta condição.
Referências
LOVEJOY, P. E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MEILLASSOUX, C. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1995.
2657
PACHECO, C. M. F. Origens e transformação da escravidão na África: como o
negro foi transformado em sinônimo de escravo. Curitiba, 2008. Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1399-6.pdf Acesso em:
31 Mai 2014.
WEDDERBURN, C. M. A África que incomoda: sobre a problematização do legado
africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
_________________. O racismo através da história. Da antiguidade à
modernidade. Copyright, 2007.
2658