o mundo fala ao homem e, para compreender basta
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o mundo fala ao homem e, para compreender basta
“O MUNDO FALA AO HOMEM E, PARA COMPREENDER ... BASTA-LHE CONHECER OS MITOS E DECIFRAR OS SÍMBOLOS”: UMA BREVE REFLEXÃO ENTRE DIÁLOGOS DE SABERES. Roberta Moraes Simione (UFMT) Ivan Belem (UFMT) Edward Bertoline de Castro (UFMT) PERUARE, Mariléia Taiua de Oliveira Peruare (UFMT) Michele Sato (UFMT) RESUMO: Transformados a partir de uma base européia franco-britânica, foram os séculos XVIII e XIX o triunfo da indústria “capitalista”, da “classe média” e da “burguesia liberal”. O imperialismo europeu espalhou-se para o resto do mundo através da “crença no progresso individualista e racionalista”, na “evolução tecnológica” e no “conhecimento científico”, sob a égide de uma ética antropocêntrica – na qual os seres humanos, inseridos num sistema de valores, são o centro de todas as coisas –, com a ideologia mecanicista começando a se impor. Nesse contexto, a concepção organísmica da natureza é substituída por uma concepção mecanicista em que a natureza de cores, cheiros e sons é substituída por um mundo “sem qualidades”, no qual se evita a associação com a sensibilidade. Entretanto, a experiência histórica demonstra que o conhecimento científico sozinho não deu conta de construir um mundo melhor. Ao desprezar os saberes não acadêmicos em razão de não possuir os mesmos traços e hábitos culturais dos europeus, o saber ancestral negado em favor da legitimação do mundo moderno resultou em perdas irremediáveis ao patrimônio natural e cultural. Sob essa perspectiva, este trabalho pretende proporcionar um diálogo de saberes entre o saber popular e o saber cientifico, a fim de que possamos pensar a respeito do patrimônio sociocultural e ambiental coletivo – impregnado de cosmovisões, sentimentos, crenças e afetos – expressos nos mitos populares. Ao revelarem conhecimentos sobre os fenômenos do mundo, as narrativas mitológicas, muitas vezes transcendendo valores, julgamentos ou verdades, podem nos ajudar a resolver injustiças históricas, responsáveis por um mundo de pobreza, exclusão, racismo, sexismo e violência. Acreditamos que o saber ancestral – mito – confere identidade e visibilidade ao grupo, contribuindo para o seu sentimento de pertença e preservando sua relação com os antepassados. É um saber que possibilita a existência das diversidades cultural e ambiental brasileiras, além de garantir a aquisição de atitudes favoráveis à sustentabilidade socioambiental. Nesse sentido, a compreensão dos mitos ancorados em 1 um saber ancestral através da história sociocultural de um determinado grupo social é mais que um estímulo a ações que trabalhem em favor de uma Educação Ambiental crítica e não homogeneizante ou superficial, que possibilite a inclusão e justiça social dos grupos. É uma abertura que somente uma educação para a vida torna possível. PALAVRAS-CHAVE: Educação Ambiental, Diálogos dos Saberes, Mitos. ABSTRACT: Transformed from a European (French-British) basis, the XVIIth and XIXth centuries were the triumph of capitalist industry, middle class and liberal borgeoisie. The European imperialism spread to the rest of the World across the “belief in individual and rational progress”, “technological evolution” and “scientific knowledge”, under the support of an anthropocentric ethics – in which human beings, inserted in a values’ system, are the center of all things –, with the mechanicism ideology starting to be imposed. In this context, the organismic conception of Nature is replaced by a mechanicist conception where nature has no colors, smells or sounds, where all kind of association with sensibility is avoided. However, the historical experience shows that scientific knowledge alone couldn’t build a better world. When not considering the nonacademic knowledges by the fact that they don’t have the same European features and cultural habits, the ancestral knowledge denied in favor of the legitimation of modern world resulted in losses to natural and cultural heritage. Under this perspective, this work intends to propose a dialogue between popular and scientific knowledge in order to reflect about sociocultural and environmental collective heritage – full of cosmovisions, feelings and beliefs – expressed in popular myths. When revealing knowledge about the world phenomena, the mythologic narratives, many times transcending values, judgements or truths, can help to solve historical injustices, responsible for a poor world, exclusion, racism, sexism and violence. We believe that ancestral knowledge gives identity and visibility to the group, contributing to the feeling of belonging and preserving their relation to their ancestors. It’s a knowledge that makes possible the existence of Brazilian cultural and environmental diversities, at the same time guaranteeing the acquisition of favorable attitudes to socioenvironemntal sustainability. In this sense, the comprehension of the myths anchored in an ancestral knowledge across the sociocultural history of a particular social group is more than a stimulus to promote actions that work in favor of a critical Environmental Education – 2 and not a homogenous and superficial one –, making possible the inclusion and social justice of the groups. It’s an opening that only an education for life can make it happens. KEYWORDS: Environmental Education, Knowledge Dialogue, Myths. MITOS: POR UMA MEMÓRIA DO PRÓPRIO TEMPO O surgimento da agricultura cerealífera, a invenção da cerâmica e a domesticação de animais foram fatores decisivos para a história da humanidade. Constantemente ameaçados pelas vicissitudes do tempo, perigo da caça e acentuado crescimento demográfico, tornava-se aos grupos humanos cada vez mais difícil garantir alimentos por meio da atividade predatória. Assim, o trabalho na terra foi essencial para o aparecimento de pequenas comunidades camponesas, como Çatal Hüyük na Anatólia e Jericó na Palestina (LEVÊQUE, 1991). Organizadas as sociedades em famílias, eram estas dirigidas por um chefe responsável pela organização e vida de seus descendentes. Trocadas e/ou ofertadas, eram sobre as mulheres que recaiam a estabilidade da família, do grupo e a asseguridade da reprodução. Essencialmente agro-pastoril a fertilidade da terra e das mulheres, era fundamental para a manutenção da vida da comunidade. Envolvidos os seres humanos por concepções ideológicas e imaginárias, neste período, a “Mãe da Fecundidade”, fertilidade e também da vida eterna, fornecia proteção aos agricultores, caçadores e coletores sem que deixasse de manter seus poderes sobre os mortos. Era um universo humanizado sobrenatural e estável ao redor das Grandes Deusas. Nas crenças do período Neolítico é impressionante o agrupamento da Terra-Mãe com uma deusa filha concebida esta última, por meio de uma união entre a Terra-Mãe e um deus animal, em geral um grande cornudo. Também é nesta perspectiva que se encontra ritos que evocam os ciclos vegetativos e mitos que relembram o desaparecimento de deusas jovens (LEVÊQUE, 1991). Segundo Levêque (1991), no período neolítico, com o aquecimento global e o requerimento de reprodução biológica, teve início a necessidade de criação, pelos seres humanos, de novas paisagens e desenvolvimento de técnicas mais sofisticadas as quais orientariam posteriormente o aparecimento, já sistematizado na idade do Bronze, de mitos de criação que remontavam a esta coletividade que se principiava, nos momentos de lazer da vida camponesa, a levantar problemas e esboçar soluções. Neste contexto, os mitos de origem derivam do mito cosmogônico, pois sendo este, a criação do mundo, torna-se exemplo para as posteriores formas de criação. Não 3 se trata, entretanto, de uma imitação do “modelo cosmogônico”, mas do aparecimento de uma nova espécie que por sua vez, implica em uma explicação da existência do mundo. Segundo Eliade (1998), através dos mitos podemos compreender o segredo da origem das coisas do mundo. Os mitos ainda nos ensinam como podemos assegurar a multiplicação das espécies ao tornar possível a repetição dos gestos criadores de Entes Sobrenaturais. Em sociedades antigas, uni-se ao contar, fundamentos religiosos relacionados aos mistérios e feitos divinos. Nesta perspectiva, Boff (2001) ao descrever a lenda da mandioca ou corpo de mandi do povo guarani, nos conta que no tempo antigo apareceu grávida a filha de um chefe indígena. Sentindo-se desonrado diante de tal situação o chefe resolveu matá-la com propósito de que este sacrifício servisse de exemplo para as demais jovens mulheres. Sua filha, entretanto, alegando inocência negou que tivesse tido relação sexual com algum homem. Ao dormir teve o chefe em sonho uma revelação a qual dizia que sua filha era inocente. Desistindo de matar a filha, após nove meses deu esta, luz a uma menina branca. Todos da aldeia ficaram amedrontados com criança a ponto de pedir ao chefe que matasse a menina, pois acreditavam que isto era um triste presságio. Lembrando-se do seu antigo sonho, o chefe resolveu que nada faria a menina e que defenderia sua posição diante dos anciões alegando que os espíritos benfazejos disseram que Mandi deveria ser bem tratada por todos. Contrariados com esta decisão todos, no entanto, obedeceram ao chefe e com passar do tempo aprenderam a amar a pequena. Mas certa vez, a menina morreu inesperadamente. O chefe-avó não comia e não bebia, só chorava. Todos da aldeia compadecendo-se de sua tristeza decidiram que enterrariam o corpo de Mandi na maloca dele. O chefe tanto chorava que do chão nasceu um broto e pouco tempo depois a terra se abriu ao que fez surgir uma raiz marrom por fora e branca por dentro. Muitos disseram que parecia a pele de Mandi e que aquela raiz era manifestação de sua vida. Após este episódio o povo Tupi-guarani nunca mais deixou de comer a raiz de “Mandi-oca” (BOFF, 2001). Desta forma, cultivada por diversos povos - quilombolas, indígenas, ribeirinhos, sesmeiros, entre outros - o mito da mandioca ao ser narrado, se relaciona com a existência, caracterizando-se com uma genealogia que conta a origem de diversos seres e coisas. Os mitos narram, entretanto, não apenas a origem do mundo, dos animais, das plantas e dos seres humanos, mas também dos acontecimentos que ocorreram no principio da criação convertendo hoje os seres humanos no que são: mortais, sexuados, 4 trabalhadores e obrigados a viver de acordo com as regras estabelecidas (ELIADE, 1998). Inserido num universo sagrado e profano, o mito de Mandi apresenta um saber identidário que possui segredos da técnica de cultivo, produção e consumo, que adquire uma representação simbólica que envolve em um mesmo espaço e tempo integração e desintegração dos grupos (RIBEIRO, 1998). Diante deste cenário, adquire muitas vezes um símbolo de luta em prol de identidades contrários a uma subordinação a atual sociedade excludente. Quanto à estrutura, alguns estudiosos consideram que todos os mitos são mitos de origem. Os mitos de origem revelam a origem e a condição atual dos seres humanos, dos vegetais, dos animais, da vida, da morte, das instituições religiosas (iniciações da puberdade, sociedades secretas, sacrifícios de sangue, entre outros), além de regras de conduta e comportamento. O “essencial” não foi para estas religiões decidido durante a Criação do Mundo, mas posteriormente em um Tempo mítico, “cosmogônico” (ELIADE, 1998). A narrativa histórica mitológica se constitui, neste sentido, como um conhecimento esotérico e, para tanto, em alguns casos, é insuficiente conhecer o mito, devendo neste sentido, recitá-lo ritualmente, pois o mesmo caracteriza-se como uma “demonstração“ do conhecimento “ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, conseqüentemente, ‘contemporânea’, de certo modo, dos eventos evocados” (ELIADE, 1998, p. 21). Neste contexto, contos e mitos possuidores de noções do bem e do mal, adquirem muitas vezes funções educativas além de originarem respostas mais imediatas às necessidades de evasão e desejo de retorno a um espaço e período idealizado pelos seres humanos (REIS, 1984). Desta forma, o mito constitui-se como um acontecimento do passado, porém contemporâneo ao ser vivenciado por meio de rituais em cerimônias especiais. Vive-lo é uma verdadeira experiência religiosa, situação que o distingue da experiência quotidiana. Presente e “vivo” em grupos ou em sociedades os mitos tem, como função, fazer reviver uma realidade “primeva”, que satisfaça as necessidades religiosas e morais o que resulta, por sua vez, em regras que conduzem e orientam o ser humano. Como elemento vital para a civilização humana, o mito não é uma “fabulação”, mas uma “realidade” a qual a mesma se recorre constantemente. A cosmogonia como modelo para toda a situação criadora repete o feito do Deus criador no ato da Criação do Mundo (ELIADE, 1998). 5 Relacionados a ritos de passagem, os mitos, por este motivo, não podem ser narrados aleatoriamente em algumas sociedades por constituírem-se ao mesmo tempo como “verdadeiros”. Em algumas sociedades indígenas os seus mitos de origem são absolutamente reais. Quando ocorre a ritualização do mito, toda a comunidade é beneficiada, pois ela reencontra suas ‘fontes’, revivendo suas ‘origens’. Sendo assim, “a idéia de uma renovação universal produzida pela ritualização cultural de um mito cosmogônico é encontrado em muitas sociedades tradicionais” (ELIADE, 1998, p. 37). Desta forma, a inauguração de um novo ciclo temporal se faz com a renovação do Ano Novo, o que por sua vez, é uma reiteração da cosmogonia que recorda ao ser humano, a origem do mundo. São os mitos, portanto, responsáveis por esta recordação. Transmitidos por gerações, como o ritual do Ano Novo, que se inicia com o recomeçar da Criação são os mesmos forma peculiar de ser dos seres humanos que varia com os “contextos culturais em que está compreendida a existência humana” (ELIADE, 1998, p. 43). Quanto às divindades misteriosas ou “Entes Sobrenaturais” sabe-se somente que a origem geralmente não é conhecida e vieram à Terra somente para serem úteis aos seres humanos. Houve, em sociedades antigas, mitos que perderam sua significação religiosa passando a ser reconhecidos como lendas ou contos infantis. Este processo de desmitificação ocorreu em um determinado momento da História. Segundo Eliade (1998), o conto mitológico ou mythos, criticado e também rejeitado desde os tempos de 565-470 a.C., foi sendo destituído de seu valor religioso contrapondo ao “logos” que passou a constituir-se como “tudo o que não pode existir realmente”. Para o cristianismo, ao “mythos” foi relegado ao que era falso e ilusório, ou seja, tudo aquilo que não podia ser validado no Testamento Judaico. Para os eruditos ocidentais do século XIX, o mito adquire o estatuto de fábula ou invenção, contrastando com o que atualmente se considera, sendo o mesmo empregado com duplo sentido, como ilusão, invenção ou uma tradição sagrada, revelação ou mesmo um modelo. Como modelo fornecedor de modos para a conduta humana, o mito confere também uma significação, um valor à existência ou uma função na sociedade primitiva ou comunidade tradicional. Através do mito é possível compreender a estrutura seja dos cultos proféticos ou milenaristas como a profecia da nova era, constituído ou não de atos orgiásticos. Quando depositado num contexto socioeconômico, o mito deve ser considerado como uma realidade cultural extremamente complexa, podendo para tanto ser interpretada através de perspectivas múltiplas e também complementares. Assim, ao 6 contar uma história sagrada, relatar um acontecimento que ocorreu no “principio” dos tempos os mitos descrevem as diversas formas de irrupções do sagrado ou sobrenatural e ainda “é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural” (ELIADE. 1998, p. 11). Como “história sagrada” é o mito também, uma “história verdadeira”, pois o mesmo se refere e se origina das realidades culturais. Como função, o mesmo consiste em fornecer modelos exemplares de ritos e atividades humanas como o casamento, a alimentação, o trabalho, a educação, a arte e a sabedoria do grupo. Podemos neste sentido, considerar que em qualquer “tipo de civilização, cada costume, objeto material, idéia e crença preenche uma função vital, tem uma tarefa por realizar, representa uma parte indispensável no interior de um todo que funciona” (CASTORIADIS, 1982, p. 140). Como exemplo desta exposição, temos em “os ritos de violência” de Davis (DESAN apud HUNT, 1992), conflitos e guerras religiosas na França, ocorridos entre católicos e protestantes do século XVI, um tumulto que tinha as suas vítimas uma identidade constituída de valores comunitários inspirados em “atos tradicionais da justiça” popular religiosa: “os charivaris, que já eram usados há muito tempo para fazer valer as normas da comunidade, também constituíam um meio ideal legítimo de humilhar um indivíduo que violasse a verdadeira doutrina e atentasse contra o sagrado” (DESAN apud HUNT, 1992:83). A “história verdadeira” pode, ainda, fornecer a forma correta de cozer alimentos, caçar animais, estabelecer dias festivos para a comilança, entre outros. Quando desmistificados e assimilados, mitos, religiões e crenças sobrevivem em algumas sociedades ou comunidades, porque passam a se expressar como obras-primas literárias, artísticas ou contos folclóricos. Neste sentido, as “várias versões de uma mesma lenda podem apresentar diferentes possibilidades de interpretação de uma mesma realidade e, ainda assim, manter a essência da história, perpetuando o mito” (CINTRA & MUTIM, 2002, p. 18). Assim o ser humano, como animal histórico, não se perde no reino animal quando se utiliza, de imagens e símbolos, pois sonhos, devaneios, imagens nostálgicas de desejos e entusiasmos projeta historicamente os seres humanos em um mundo muito mais rico do que o seu momento histórico (ELIADE, 1998). A “saída do tempo” também é possível por meio da literatura, onde sua função aproxima-se das mitologias. Sendo o leitor transportado para um tempo imaginário, com 7 ritmos variados sem que deixe de ser exclusivo. Quando enfraquecidos, acreditam alguns, o símbolo, o mito e a imagem resistem graças à literatura, pois se adaptam a um novo contexto. Entretanto, o pensamento simbólico não se restringe somente ao imaginário da criança, do poeta ou do não lúcido, mas algo que revela as secretas modalidades do ser. Para Eliade (1998), o homem moderno conserva alguns resquícios de comportamento mitológico. Estes traços revelam muitas vezes um desejo de reencontrar a intensidade vivenciada anteriormente em um passado longínquo, numa época benéfica do “princípio”. Nesta perspectiva, o mito, como narrativa oral, compositor ao mesmo tempo que intérprete, nas noites estreladas de lua cheia, possibilita que pessoas narrem histórias de seres fantásticos numa perspectiva de fidelidade do real. Como forma simples de expressão do maravilhoso, de uma linguagem que fala de prodígios fantásticos oralmente transmitidos pelos antepassados (REIS, 1984). Mitos, lendas, contos de fadas, fábulas ou contos de ensinamento, encantam porque permitem que o imaginário se liberte enchendo de brilho o “eu” interior daqueles que os escutam, ou deles se lembrem. Neste sentido, o narrar possibilita que o ouvinte crie seu próprio cenário compreendido por sons e cores também próprios. Como uma forma democrática de expressão, ouvintes e contadores constroem histórias de acordo com seus singulares referenciais de existência (BUSATTO, 2003). Passível de adquirir uma formulação artística, literária e plástica, transpõe a linguagem coletiva para um universo individual com um estilo próprio e único e, neste sentido, literário. Apresentado sob duas formas artística e popular ou folclórica, o conto literário pode ser considerado como uma mutação de narrativas de tradição oral ou expressão coletiva a qual sofreu mudanças decorrentes do processo de transmissão realizada por gerações que adquiriu posteriormente uma categoria artística e individual (REIS, 1984). Geralmente caracterizados como fantasiosos, os mitos “sinalizam a necessidade de manter algum elo que possa garantir a continuidade da vida” (CINTRA & MUTIM, 2002, p. 18). Adquirindo diferentes papéis, os personagens lendários e mitológicos constituem-se muitas vezes como protetores, conselheiros, assustadores, bons ou maus que em geral, se propõem a ensinar as impositivas ou mesmo sugestivas regras comportamentais que são, entretanto, passíveis de serem compreendidas. Transformadas as imagens e os mitos “envelhecidos”, são os mesmos posteriormente reconstruídos para, assim, se tornarem “familiares”. As guerras, os movimentos e as revoluções são 8 exemplos de que a eliminação dos “mitos e dos símbolos é ilusória”. Histórias contadas e músicas ouvidas, nostálgicas, substituídas ou modificadas, ainda se mostram indispensáveis à imaginação dos seres humanos. Contadas, lembradas ou ritualizadas, os mitos transmitidos por gerações, servem muitas vezes de modelos para comportamentos aos quais se delegam o que pode ou não ser feito além, de apresentar uma realidade que não se encontra presente ao mundo visível - assombração. Em algumas sociedades, clara é a distinção entre “histórias verdadeiras” das “histórias falsas”, como fábulas ou contos. Nas primeiras encontramos a cosmogonia, a origem do mundo e da morte, a criação das estrelas e dos grupos distintos o que pode, por sua vez, resultar num padrão de comportamento, numa instituição e modos de trabalhar. Quanto às “histórias falsas”, estas possuem características anatômicas e físicas, que contam a história de algum animal ou ente sobrenatural constituído de valores morais. Caracterizadas as “histórias verdadeiras” como sobrenaturais e sagradas e as “histórias falsas” como profanas verifica-se que os eventos, em ambas categorias, ocorrem num tempo passado, onde os protagonistas dos mitos, como os Deuses e Entes Sobrenaturais e dos contos, como os heróis e animais fantásticos, possuem uma característica de não pertencimento do mundo cotidiano. Nesta perspectiva, considerando a cultura como modos de vida e de pensamento constituída por um sistema de símbolos mantidos pela coletividade, ela não se limita apenas a uma adaptação do indivíduo ao meio, mas é também este adaptado ao indivíduo, o qual constitui-se de uma expressão individual ocorrida em um idioma geral. O PAPEL DA MAGIA E DO MAGO NOS PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA A magia pode ser considerada como modo legítimo de uma expressão sintética do mundo natural e seu relacionamento com o ser humano. Isso porque o mago percebia que a sobrevivência do ser humano dependia do comportamento do mundo natural o que o levava a perceber procedimentos “corretos” dos fenômenos naturais. E sendo assim, o ser humano poderia controlar as forças da natureza e colocá-la a seu serviço. A magia, neste sentido, propõe uma visão anímica da natureza e nessa direção, o mundo era controlado pelos espíritos que habitavam os elementos naturais, tais como: plantas, mares, animais, ventos, tempestades, ventos etc. Percebemos que a magia imitativa e contemplativa via o mundo como sendo de afinidades e de solidariedades. 9 Neste contexto, o papel do mago era nada mais que persuadir, convencer os espíritos a cooperarem de forma compatível com a visão que se tinha das relações entre os elementos da natureza. Observamos aí, que a magia foi um modo legítimo de expressar uma síntese do mundo natural e do seu relacionamento com o ser humano. Podemos inferir daí que o conhecimento empírico (modo de escolha dos ingredientes das poções) possivelmente se originou a partir das associações mágicas. O mago pode ser considerado como sendo os primeiros investigadores experimentais e assim sendo, ancestral do cientista moderno. Adotando processos mais realistas, o poder do mundo dos espíritos passa a exercer um papel mais de cooperação e não de intervenção. Identificamos, ainda, na magia um primórdio de ciência já que haviam princípios que estabeleciam que o mundo não era habitado somente por coisas visíveis, mas também pelos invisíveis: espíritos e forças espirituais. Esse dado pode ser identificado como uma racionalização, pois é possível ser identificado um paradigma para explicar os fenômenos vivenciados pelos seres humanos. E, neste sentido, não havia conflito entre ciência e religião, pois estes eram aspectos que estavam interligados no mundo real. Assim, os mitos e os estudos empíricos realizados com propósito de compreender os fenômenos naturais permitem que entendamos como os seres humanos se relacionam com o ambiente. Este entendimento possibilita que o ser humano ao transformar a natureza e ao tentar interpretar-la adequando-a a seus projetos e princípios, ocorram diálogos entre os diversos saberes e valorização da identidade do grupo e também da Educação Ambiental. MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: MODOS DE COMPREENDER A EXISTÊNCIA HUMANA Observamos, sob vários aspectos, que a modernidade teve dificuldade em dialogar com outros saberes, provavelmente devido a um sentimento de superioridade sobre outros modos de vida, outras culturas. Ao desprezar os saberes não acadêmicos, que é também um desprezo pelo outro, a modernidade reafirma sua convicção de que somente o conhecimento científico é legítimo, portador de uma autoridade que possui direito de subjugar as culturas que se dão à margem das instituições científicas. Insensível ao modo de pensar, de sentir e de agir de outros povos, desrespeita os princípios da 10 alteridade, estabelecendo com seres humanos que se comportam de forma diferente, a mesma relação estabelecida com a natureza. Tendo como marco a escravidão (MERLO, 2005), a Modernidade justifica a dominação dos homens valendo-se de conceitos como “civilizados” e “bárbaros”, a partir de critérios estabelecidos pelos europeus, segmento dominante da sociedade. Assim, sua convivência com o outro é marcada pela violência material e simbólica e pela intolerância, configurando inclusive o racismo ambiental. Esses “civilizados”, entretanto, serão aqueles que, ao longo da história brasileira, irão dilapidar o meio ambiente, considerado por eles como mercadoria além de escravizar negros, índios e outras etnias em favor desta racionalidade (DIEGUES, 2006). Movida por interesses econômicos a modernidade age sobre o meio ambiente, desconhecendo que os seres humanos são suas partes integrantes e tenta desqualificar as narrativas míticas presentes no saber ancestral, negando-as enquanto veículos de saber e aprendizado para a vida (MARQUES, 2006). Resguardados pelos mais velhos ao longo dos anos, os mitos reconhecidos pela modernidade como “historias de mentira” ao longo do processo histórico, traduzem histórias, vivências e experiências de diversos grupos étnicos. Presentes em todas as sociedades, desde os tempos mais remotos, os mitos são elaborações feitas pela humanidade para tentar explicar os mais variados aspectos da realidade. De caráter sagrado, são os mitos fornecedores de modelos para o agir humano, ao mesmo tempo em que confere significado e valor a existência humana (ELIADE, 1998). Sua sobrevivência na atualidade, porém, não pode ser entendida como um resíduo do passado, pois é através de um conjunto de narrativas que diversos grupos conseguem dar sentido ao cosmo. É através das narrativas mitológicas que os povos etnicamente diferenciados agem sobre o meio ambiente e se reconhecem como partes integrantes da natureza. Aprendem com os mais velhos que a natureza não é apenas o local em que se busca garantir a sobrevivência material do grupo, mas também que esta é um patrimônio sócio-cultural e ambiental coletivo, impregnado de cosmovisões, sentimentos, crenças e afetos. Respeitando as tradições culturais, os mais novos descobrem que têm direito histórico sobre o território e o dever de agir sobre ele de forma a causar menor impacto ambiental, a fim de garantir a sobrevivência material e simbólica das futuras gerações. E, ainda, ao se narrar os mitos de geração a geração, os povos conseguem elaborar permanentemente sua identidade, guardar seus conhecimentos e, através da memória, 11 comunicar às novas gerações as regras de convivência com o mundo natural e o mundo social, indispensáveis para o futuro da vida no planeta (SATO, 2003). Apesar da tentativa da Modernidade de apagar da memória as narrativas míticas, desprezando-as, silenciando sobre elas, impondo um modelo homogeneizador e excludente, essa recusa ao esquecimento empreendida pelos grupos locais, narrando continuamente, geração a geração, é um ato de resistência. Pois, ao conferir visibilidade e identidade ao grupo a memória e o mito, contribuem para a existência de um sentimento de pertença, preservando uma relação com os antepassados e garantindo uma contribuição à diversidade cultural e ambiental brasileiras (MERLO, 2005). Ao não conviver sustentavelmente com o Cosmo e nem com os seres que o habitam, a modernidade compromete seriamente a qualidade de vida de todos os povos, através da violação dos direitos ambientais e humanos, destruição de territórios comprometendo gradualmente o futuro (BACHELARD, 1996). Atividades como monoculturas, pesca predatória, desmatamento, queimadas, incentivos à grande propriedade, enfim, a destruição sistemática do planeta, tem contribuído para o aniquilamento da vida e o desaparecimento de povos e etnias, perpetuando, assim, injustiças e preconceitos históricos. Neste sentido, os saberes populares, acumulados ao longo da história, podem ser importantes aliados da Educação Ambiental, que busca a construção de uma sociedade mais sustentável, justa e solidária. Objetivando contribuir para a construção de uma nova sociedade, resgatando e evidenciando tantos outros valores negligenciados pela Modernidade, a Educação passa a ser pensada e trabalhada através de uma perspectiva ambiental, levando em conta que o meio ambiente é o local onde homens e mulheres participam de uma teia de inter-relações. Ramo disciplinar do saber com uma história recente, a Educação Ambiental insere conceitos político-epistemológicos até então impensados pela Educação, visando o desenvolvimento e a aprendizagem coletiva de reconstruções de saberes inacabados. A mudança por uma vida mais digna é vista como uma responsabilidade coletiva, que deve ser articulada com os movimentos sociais comprometidos com a preservação da vida, incorporando a contribuição de outros povos na utilização e gestão sustentável do meio ambiente (GALIAZZI & FREITAS, 2005). Sendo assim, percebe-se que é impossível construirmos uma sociedade mais justa e ecologicamente sustentável, amparados em velhos paradigmas. Diversas tradições teóricas e metodológicas têm contribuído com a Educação Ambiental em sua tentativa 12 de diálogo com outros saberes, buscando, inclusive, uma “transgressão metodológica” (SANTOS, 2003). A abordagem participativa busca transformar a tradicional relação sujeito-objeto para sujeito-sujeito, criando mecanismos para a emancipação e empoderamento de grupos marginalizados, tendo como princípios norteadores o compromisso, a participação, a presença e a solidariedade, visando a transformação social (BRANDÃO, 2005). Ao buscar práticas interativas e dialógicas, privilegiando uma visão diferenciada do mundo e de seres humanos, a abordagem participativa pode contribuir para a transformação das relações entre a sociedade e o meio ambiente, além de reforçar o sentimento de pertencimento (JACOBI, 2005). Entendida como atitude, postura, um modo de entender o mundo, a fenomenologia procura descrever os fenômenos ao invés de explicá-los, com o intuito de atingir a essência das coisas, aquelas que ficaram desprezadas pela Modernidade e com as quais o ser humano se identifica. Esse método proporciona, ainda, a possibilidade de um envolvimento com o ato de pesquisar, concomitantemente com o mundo dos sujeitos, em oposição ao Positivismo que, surgido durante a Modernidade, entende a ciência a partir de parâmetros estabelecidos pela lógica (BICUDO & ESPOSITO, 1994). A fenomenologia vai ao encontro daquilo que esteve oculto, estando o mais que possível livre de preconceitos, conceitos e predefinições, para revelar o universo do cotidiano, com seus valores, crenças, intuições, para compreender “qualquer coisa que se faça presente, seja ela um ruído, um perfume, uma lembrança, qualidade ou atributo e que ao ser experenciado possa ser descrita por aquele que a vivenciou” (FAZENDA, 1997, p. 82). Criada pelo filósofo e pedagogo francês Jacques Gauthier, inspirado, sobretudo, na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e no Teatro do Oprimido de Augusto Boal, a Sociopoética busca dialogar com outras culturas, notadamente as que possuem um histórico de dominação ou resistência. Contesta a idéia de uma ciência unicamente racional, separada da emoção, valorizando esse aspecto da vida humana ao considerar o corpo todo como fonte de conhecimento. Busca aliar o conhecimento científico aos conhecimentos populares, artísticos e espirituais, reconhecendo uma igualdade entre os diversos saberes. Por isso, cria dispositivos que facilitam a construção coletiva do conhecimento numa direção emancipatória. Nesse sentido, os pesquisadores são considerados facilitadores e os “objetos” da pesquisa passam a ser co-pesquisadores e 13 parceiros, com poder de decisão sobre todo o processo da pesquisa. (GAUTHIER, 2006) Se para a Modernidade o conhecimento está apartado do sensível e dos mitos, “a pós-modernidade resgata valores pré-modernos (como significados cósmicos, tradições, paz e feminismo, entre outros fatores) que a Modernidade negligenciou em nome da historicidade do ser humano e da ênfase à ciência” (SATO, 2003, p. 13). A Pós-modernidade não quer negar aspectos importantes da Modernidade, entretanto, ousa transgredir o engessamento tradicional da racionalidade na busca de justiça social e proteção ecológica. Alicerçada em incluir outros valores como raça, etnia, mitos ou conhecimentos populares, é ainda inacabada porque permite o vôo aprendiz da mutação, na metamorfose que sofre se não ousar a guinada política da ancestralidade planetária, com diálogos abertos entre a sociedade humana e a natureza em constante interação. Nesta perspectiva, ao buscar o diálogo com grupos historicamente marginalizados, querer ouvir suas histórias, conhecer seus saberes, práticas, crenças e valores, numa perspectiva socioambiental e cultural (MELLO, 2005), é possível que aspectos éticos de respeito às vidas através do reconhecimento das diferenças na relação existente entre a sociedade e a natureza seja uma alternativa de luta tão necessário à crise manifesta . CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste sentido, entender o saber popular através das representações de suas experiências é reconhecer a diversidade como integradora da vida. O impacto sobre o ambiente deve ser entendido tanto nas relações econômicas como nas relações sociais. Desta forma, o desmatamento da Amazônia, o efeito estufa, a camada de ozônio encontram-se no mesmo patamar em importância diante do desaparecimento de culturas, sociedades e etnias. A Educação Ambiental, desta forma, adquire função reivindicatória da cidadania, da justiça social, da ética e também do ambiente. Na tentativa de mudanças, a Educação Ambiental questiona a política atual de desenvolvimento na exigência de soluções mais criativas, inovadoras e acessíveis. Um tanto utópica quando da tentativa de mudar pessoas, coisas e relações, a Educação Ambiental ciente está da problemática de não conseguir resolver todos os problemas ambientais planetários. 14 Desta forma, os mitos e ritos existentes na cultura popular são reveladores – entre ambiente, espaços e ações - do modo de ser e de viver de grupos dificilmente considerados como portadores de saber e conhecimento e, neste sentido, raramente passíveis de poder. Questão, entretanto, falsa e que merece ser considerada sob todas as suas potencialidades. Uma revisão sobre o tema em questão - mitos/ritos - sempre se fará necessário para o entendimento das origens e finalidades das sociedades humanas. 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