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Regenerações / 11 –Todos experimentamos o sofrimento e podemos ressurgir
A séria felicidade das lágrimas
“Então, a jovem alegrar-se-á, bailando;
jovens e velhos partilharão do seu júbilo.
Converterei o seu pranto em exultação,
hei-de consolá-los, e aliviá-los das suas penas”.
Jeremias, 31,13
A felicidade prometida pelas bem-aventuranças não é a promovida e prometida pela nossa cultura. A das bemaventuranças tem pouco a ver com prazer, não é o bom (eu) demónio (daimon), floresce da dor. Também podemos
obter prazer das coisas da vida se a busca do prazer não se tornar a única coisa na vida. Porque, confundindo
felicidade com prazer, acabamos por não ter nem uma coisa nem outra.
As bem-aventuranças são um 'modo de vida', são um outrojá. São uma proposta concreta e um parecer sobre a
nossa justiça e injustiça, abraços e muros, nossas indiferenças e nossas consolações. Quemacredita na verdade das
Bem-aventuranças entra no mundo concretíssimode quemsó vê pobres, mansos, puros e os chama bemaventurados. E, depois, deseja viver no seu reino.
A bem-aventurança dos aflitos, a felicidade daqueles que choram, parece a mais paradoxal, a do último dia, não a
dos nossos penúltimos dias. Que felicidade pode haver num choro? O choro bíblico não são lágrimas de alegria, nem
as falsas e produzidas para o lucro em talk shows de TV. São as lágrimas dos aflitos, o grito desesperado do luto, o
das separações, das falhas, as derramadas pelos filhos que cometem erros e não voltam para casa, as que caem
quando não conseguimos impedir que um irmão ou amigo deite fora a própria vida. As lágrimas das guerras, dos
muitos pobres esmagados e dos oprimidos, as de quem perdeu os seus lugares de trabalho, as das traições. Mas são
também asdas dos arrependimentos e dos perdões, as da dor pelas nossas conversões e dos outros. As lágrimas das
bem-aventuranças são todas muito sérias. Na Bíblia é frequente encontrar a experiência do choro. Choram também
os patriarcas, reis, Job. Jesus chora pelo amigo morto, por Jerusalém, e talvez o seu último grito de abandono
também tenha sido um grito de choro. Os Salmos estão cheios de lágrimas fecundas.
As lágrimas são a primeira linguagem dos humanos. Podemos falar línguas muitíssimo diferentes, acreditar em
deuses diferentes, tercostumes e culturas muito distantes entre si; porém, todoscompreendemos a linguagem do
choro, todos sabemos decifrá-lo imediatamente. Os homens, as mulheres, os povos começaram a conhecer-se,
chorando nos trabalhos dos migrantes, quando John não entendia a língua de Sergej, mas podia confortá-lo quando
ele chorava, olhando para a foto vincada dos filhos e da esposa distantes. Lapo não entendia quase nada daspalavras
de Carmelo, mas as lágrimas, que caíamde ambos, nas trincheiras,dialogavam e eles entendiam-se perfeitamente.
Nem todos somos perseguidos por causa da justiça, nem todos somos mansos, mas todos choramos. A bemaventurança de quem chora é promessa universal, que atinge todooser humano na suacondição mais essencial,
radical, ferial, nua. Ela aplica-se a todos os seres humanos: mulheres, homens, velhos, meninos e meninas.
Chamando bem-aventurados aos aflitos, Jesus tornoubem-aventurados todos os homens e todas as mulheres da
história e da terra. Entramos, no mundo,a chorar e o choro mudo é, muitas vezes, a nossa última palavra antes de o
deixar. Como Job nos ensina, há também um choro dos animais, das árvores, da terra, dos vermes. No mundo, há
mais lágrimas do que as dos humanos. Há umsofrimento de natureza, uma espera dolorosa de uma consolação, um
grito da criação. Quando conseguimos ouvir algum eco seu, acedemos a uma dimensão mais profunda da vida,
descobrimos uma fraternidade cósmica, com Francisco - ontem e hoje - cantamos um outroLaudatio Si. E nasce-nosa
necessidade de ver chegar uma consolação para os seres humanos, mas também para a terra humilhada e ofendida,
para os animais não respeitados e esmagados, para as espécies que morrem todos os dias. Nós sentimos que deve
haver uma consolação das lágrimas no mundo, que devechegar um consolador, um restaurador, umGoel. Tornamo-
nos plenamente humanos quando começamos a sofrer com a não-chegada destas consolações - um sofrimento que,
uma vez iniciado, nunca acaba e cresce connosco.
A bem-aventurança que se encontra dentro do pranto chama-se consolação: “Serão consolados”. A palavra grega
que traduzimos como ‘consolação’ é parakaleo, que indica a figura daqueles que estão perto da vítima, como um
advogado, para a defender do seu acusador. A bem-aventurançaconsiste, então, em fazer a experiênciada chegada
de uma consolação. Descobrir uma presença real que nos consola enquanto choramos. E com a consolação
deixamos de chorar, ou choramos de modo diferente. Nestabem-aventurança, ao contrário das outras, a felicidade
está na mudança da condição quegera bem-aventurança. Os mansos, os misericordiosos, os construtores da paz, os
pobres, os perseguidos e sedentos de justiça, permanecem na sua condição quando a promessa se cumprir. Não se
deixa de ser pobres porque estamos no Reino dos céus, de ser misericordiosos quando encontramos misericórdia, de
construir a paz quando, um dia, nos sentimos chamados "filhos de Deus". Mas quando,dentro do nossochoro e do
nosso desespero, chegaa consolação, o choro diminui, muda o tom, as lágrimas começam a ser enxutas.
Todos conhecemos as bem-aventuranças nas lágrimas. Estão registradas no DNA moral dos seres humanos. O jugo
de vida seria insuportável se,nas lágrimas, não encontrássemostambém uma consolação.
Encontramos uma primeira consolação na experiência de poder chorar. O sofrimento inconsolável é o que já (ou
ainda) não conseguechorar. Muitos arrependimentos, por exemplo, começam com um profundo e incontrolável
pranto. Um pranto diferente, que só o podemos conhecer quando chegarna sua dor e bem-aventurança típicas.
Quando chega o momento do arrependimento e de “voltar para casa”, o primeiro movimento é quase sempre um
copioso choro - cada um à sua maneira, prantosmuito semelhantes e muito diferentes. É um prantobem-aventurado,
o início de uma vida nova. Enquantose chora,ouvimo-nosser chamados bem-aventurados: “Eram lágrimas de
felicidade, nascidas do despertar do ser moral adormecido nele há muitos anos” (L. Tolstoi, Ressurreição). Antes de
‘levantar-se’ para ‘voltar’para o seu pai, o filho pródigo iniciou seu regresso com um grande pranto. No inferno abrese umapassagem do paraíso, ea possibilidade de poder, finalmente, alcançá-lo já é paraíso. O caminho para casa já é
casa.
Estas lágrimas são totalmentebem-aventurança, regeneração. Dolorosíssimas, mas salvíficas,ao mesmo tempo
terríveis e maravilhosas. Aflitos e bem-aventurados. Este choro torna-se um meio de descoberta e conhecimento das
dimensões mais profundas da vida. Se queres realmente conhecer alguém, encontra-o e escuta-o enquanto chora
por um arrependimento, por um perdão, por uma conversão. Os grandes perdões, especialmente entre irmãos e
entre amigos, são realizados a chorar juntos, em abraços intermináveis e sem tempo: “Então disse José a seus
irmãos: «Chegai-vos a mim, peço-vos!». E eles aproximaram-se. José continuou: «Eu sou José, vosso irmão, que
vendestes para o Egipto…». Então lançou-se ao pescoço de Benjamim, seu irmão, e chorou; e Benjamim também
chorou nos seus braços” (Gênesis 45, 4-15).
Há também outra forma de consolação-bem-aventurança. É a que nasce de ser capaz de chorar com alguém que
acompanha a nossa dor. Chorar-com, sofrer-com, é uma forma especial de felicidade. Partilhar a dor e misturar as
lágrimas com um amigo é, para muitos, a única felicidade na vida, quando a dor e as lágrimas são o único“pão”.
Nestas aflições, a consolação vem com o rosto concreto de um amigo que se inclina sobre a nossa dor. Se existem
muitas aflições não bem-aventuradasé também porque lhes faltam os consoladores, amigos capazes de chorar
connosco. Em prantos sem consolações,que abundam à nossa volta, há muitas ausênciasdos consoladores. Muitas
lágrimas poderiam ser consoladas e enxutas, depressões acompanhadas, solidõespreenchidas, se nos víssemos no
papel de consoladores e não no de quem está à espera de consolação. Sou eu que falto na muita dor inconsoladado
mundo. Cada bem-aventurança é também um convite dirigido diretamente a nós, ati, a mim. A primeira terra
prometida é a da minha casa que eu compartilho com aqueles que a não têm, a primeira consolação do choro do
outro é meu pranto solidário.
Uma consolação especial e cheia de mistério é, também, a da poesia, da literatura, da arte. O poeta, escritor, o
pintor, com a sua obra pode atingir os desesperados da terra e, ao criá-los,consolá-los. Torna-se seu próximo,
companheiro de viagem e, assim, torna-os bem-aventurados. Nas histórias grandes não acontece o happy end, o
final feliz, porque o desespero, visto e 'tocado' pelo artista já é felicidade. A arte dá-nostambém estas bemaventuranças.
Mas há ainda uma outra consolação dos aflitos. É a que vem como um 'anjo'. Aqui, não há um amigo que nos
consola. É o paráclito, que vem como "pai dos pobres". É maravilhoso que, na Bíblia, o primeiro anjo vem à Terra
para confortar Agar, uma escrava expulsa para o deserto da sua senhora. A primeira teofania ea primeira anunciação
são para ela (Gênesis 16). As anunciações, as teofanias, a salvação de uma criança, acontecem, muitas vezes, no
auge das grandes aflições, quando um anjo vem até nós, onde ninguém nos podia alcançar, e nos consola. É a
consolação do espírito, o paráclito consolador, que nos ressuscita enquanto morremos na cruz. É o consolador
perfeito, que aquece, endireita, banha. Se,em cada manhã, nos conseguimos levantar, quando,na noite anterior,
pensávamos não conseguir fazê-lo, é porque o paráclito trabalha, e beija a ferida de nossas almas mesmo enquanto
dormimos e sonhamos, e as cura. Nem todos sabemos, ou queremos, fazer a experiência de Deus. Mas muitíssimos,
talvez todos, encontrámos na vida, pelo menos uma vez, este espírito consolador, ou o encontraremos num futuro
pranto. É uma promessa. "Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados."
Luigino Bruni, Avvenire, 11 de Outubro de 2015
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